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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VINGANÇA DE SANGUE
VINGANÇA DE SANGUE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

30
Saíram da mesquita através do portão principal e viraram na estrada em direção ao complexo residencial muralhado que Tariq lhe tinha indicado mais cedo nesse
dia como sendo a casa de Aazim Muktar. Avançaram rapidamente, com uma precisão quase militar, num grupo compacto com Hector no meio. Quando alcançaram a entrada
do complexo, os portões foram abertos do interior e todos marcharam para um pátio pavimentado. No centro erguia-se uma enorme figueira-de-bengala com ramagens amplas.
À sua sombra estava sentado um pequeno grupo de mulheres de rosto velado e crianças de tenra idade. Observaram com interesse enquanto Hector era obrigado a marchar
até aos degraus que conduziam à varanda coberta de um bangaló de telhado plano.
Era um edifício modesto e despretensioso, não o tipo de lar que se poderia esperar de um alto clérigo ou de um importante funcionário do governo. A maior parte
dos membros da escolta de Hector deteve-se na base das escadas, mas dois deles flanquearam-no e agarraram-lhe os braços para o conduzirem pelas escadas até à varanda.
Hector afastou-lhes as mãos num gesto irritado e eles não insistiram. Subiu os degraus dois a dois e parou no topo. A porta à sua frente estava aberta e atravessou-a
com passadas largas e determinadas, parando à entrada enquanto os seus olhos se adaptavam ao interior obscurecido que contrastava com o sol brilhante do pátio.
A divisão era espaçosa mas esparsamente mobilada, ao estilo árabe. A mobília estava alinhada ao comprido das paredes, deixando o centro da divisão despojado e
desimpedido. Aazim Muktar era a única pessoa presente. Estava sentado de pernas cruzadas em cima de uma pilha de almofadas de veludo verde, à frente de uma mesa
baixa. Levantou-se num movimento ágil e fez uma vénia, tocando na testa, nos lábios e no coração. Depois endireitou o corpo e falou numa voz pausada.
- É muito bem-vindo à minha casa, senhor Cross. - É muito amável da sua parte convidar-me, xeque Tippoo Tip. - Hector retribuiu-lhe a vénia.
Aazim Muktar esboçou uma ligeira careta perante o tom irónico dele. - Talvez seja melhor falarmos de forma aberta e franca, senhor Cross. Não é minha intenção
retê-lo mais do que o estritamente necessário. - O seu inglês era perfeito, educado e culto como o de um aristocrata britânico.
- Não esperaria menos de si, mulá Aazim Muktar. - Queira sentar-se, por favor. - Indicou-lhe uma cadeira de espaldar alto que obviamente fora ali colocada para
o convidado. Hector avançou sem hesitação e sentou-se. Estava em séria desvantagem, de modo que era essencial manter uma expressão dura e uma determinação austera.
Aazim Muktar sentou-se nas almofadas, virado para ele. Ambos se olharam fixamente, até que o mulá quebrou o silêncio.
- Sabia que conheci a sua mulher há uns anos, numa receção na residência do embaixador americano em Londres? Hazel Bannock-Cross era uma dama muito bela e superior.
Gostava dela e admirava-a imenso.
Hector inspirou lenta e profundamente. Não queria que a voz tremesse devido à raiva que lhe inundava cada célula do corpo. Quando respondeu, fê-lo num tom baixo
e neutro. - Então porque é que a mandou matar? Os olhos de Aazim Muktar eram escuros e expressivos. As pestanas, compridas e quase femininas, pareciam incongruentes
no meio daqueles traços masculinos tão vincados. Os seus olhos encheram-se lentamente de sombras de dor e mágoa. Inclinou-se para Hector e, por um momento, pareceu
prestes a estender a mão e tocar-lhe, mas conteve-se. Voltou a sentar-se direito e susteve o olhar irado de Hector.
- Peço a Alá e ao seu Profeta que me ouçam quando lhe digo que isso não é verdade, caro senhor. Não estive envolvido de nenhuma forma no homicídio da sua mulher.
- E eu digo-lhe, caro senhor, que as palavras fluem com leviandade dos lábios daquele que negoceia em palavras.
- Haverá alguma forma de o convencer? - perguntou o mulá numa voz calma. - Choro a morte dela quase tanto quanto você.
- Não consigo imaginar nada que me possa convencer disso - disse Hector. - Não há mais ninguém que tivesse um motivo,
a não ser você. O credo da retaliação e da morte por vingança está profundamente imbuído na sua religião, na sua cultura e na sua psique.
- Isso não é verdade, senhor Cross. Há também a luz do perdão que nos conduz. Não prestou atenção à súplica que lhe dirigi pessoalmente a si na mesquita hoje?
Implorei-lhe que pusesse fim a este círculo vicioso de morte atrás de morte.
- Ouvi o que você pregou - replicou Hector -, mas não acreditei numa única palavra.
- Assim sendo, parece que só me resta mais um recurso. - Qual? Também me vai matar? - Não, meu senhor. Não matei a sua encantadora mulher nem o vou matar a si.
É convidado na minha casa. Encontra-se sob a minha proteção. Dá-me licença por uns momentos, senhor Cross?
Hector não respondeu e Aazim Muktar levantou-se e saiu. Hector levantou-se da cadeira de um salto e moveu-se rapidamente pela divisão. Os olhos dardejaram-lhe
de um lado para o outro à procura de uma via de fuga, de uma arma com que pudesse defender-se. Não encontrou nada, a não ser livros e pergaminhos, e, quando olhou
através da janela, reparou que o pátio estava cheio de seguidores de Aazim Muktar. Estava desesperadamente encurralado.
O mulá voltou poucos minutos depois. - Desculpe-me, senhor Cross, mas tive de tratar dos preparativos finais para o levar para fora da cidade. Talvez não saiba
que se trata de um delito muito grave para qualquer pessoa que não professa a fé islâmica entrar nos locais sagrados da Medina e de Meca. A pena é a morte por decapitação.
Tenho um carro e um motorista à espera junto aos portões do complexo para o levar ao aeroporto de Jidá. Fiz uma reserva em primeira classe num voo da Emirates de
Jidá para Abu Zara. que parte às dez desta noite. Assim que tiver levantado voo, os seus homens na Cross Bow Security serão avisados da sua chegada. No entanto,
deve partir já de Meca.
Hector fixou-o, atónito e totalmente incrédulo. Não acreditava que iam libertá-lo. Não passava de mais um ardil, sabia-o bem. Tentou ver para lá do olhar franco
e da expressão sincera do mulá.
- Por favor, senhor Cross. É uma questão de vida e morte Tem de partir já. Segui-lo-ei num veículo separado. Voltaremos a ter outra oportunidade de falar no aeroporto
de Jidá, numa sala VIP que reservei.
Hector inclinou um pouco a cabeça, fingindo aquiescência Sabia que o motorista o levaria para o deserto, onde deparam depois com um pelotão de execução composto
por fanáticos religiosos. Provavelmente já lhe tinham até escavado a sepultura.
Por mais desvantajosa que seja a posição em que este cabrão me colocou, tenho mais hipóteses de sobrevivência lá no deserto do que encurralado aqui dentro, concluiu.
- É muito generoso... - começou por dizer, mas Aazim Muktar interrompeu-o.
- Aqui está o seu bilhete de avião. - Entregou a Hector um envelope com o timbre da companhia Emirates estampado na aba. Hector abriu-o e verificou o nome no
bilhete. Era o mesmo nome falso que constava do passaporte de Abu Zara com o qual viajava Claro, o traidor Tariq dera-lhe essa informação.
Hector ergueu a cabeça. - Parece estar em ordem.
- Muito bem! E agora, parta sem demora. Voltarei a vê-lo em Jidá.
Segurou na porta aberta para ele passar, e Hector desceu as escadas a correr para o pátio. Um sedã Mercedes preto cruzou de imediato o portão, vindo da rua. Estacionou
à frente de Hector. Um motorista barbudo e de turbante negro saltou do assento do condutor e abriu-lhe a porta de trás. Assim que Hector se instalou no assento,
o motorista fechou a porta e voltou a enfiar-se atrás do volante. Os discípulos abriram alas para deixar passar o Mercedes que seguiu pelo portão do complexo para
a rua. Hector olhou para trás através da janela na traseira. Aazim Muktar estava especado na varanda do bangaló a vê-lo partir.
Hector passou todo o trajeto até ao aeroporto de Jidá num tumulto de indecisão. Teria sido fácil estender a mão por trás do assento do motorista, imobilizá-lo
com um golpe de gravata e partir-lhe o pescoço. Depois poderia usar o Mercedes para fugir até à fronteira com Abu Zara. No entanto, a fronteira ficava a mais de
mil e quinhentos quilómetros de distância e o ponteiro do combustível no painel de instrumentos indicava menos de metade do depósito cheio. Só dispunha de alguns
dólares no bolso, insuficientes para atestar o depósito. Talvez o motorista tivesse algum dinheiro, mas duvidava. O homem provavelmente tinha um cartão de abastecimento
de combustível ou algum outro tipo de cartão de débito. Sem dinheiro, nunca conseguiria escapar. E, claro, assim que o alarme soasse, a polícia saudita emitiria
um alerta geral para todos os agentes na estrada. Não conseguiria percorrer cem quilómetros, e muito menos mil, até o apanharem. Pôs de parte essa ideia.
Depois pensou em Aazim Muktar Tippoo Tip e sopesou as probabilidades de ele ser inocente ou culpado: poderia acreditar e confiar nele? Quando o ouvira pregar
na mesquita, quase se deixara convencer. Contudo, agora que tinha sido libertado, tinha a certeza de que só podia ser um ardil. Sabia que devia haver outra surpresa
chocante à sua espera.
Havia um telefone no apoio de braço do banco traseiro do Mercedes e Hector levantou o auscultador, encostando-o ao ouvido. Ouviu um sinal de linha. Abriu o envelope
que Aazim Muktar lhe tinha dado e procurou o número de telefone do balcão do check-in da companhia aérea Emirates no aeroporto de Jidá. Marcou-o e, ao terceiro toque,
uma mulher atendeu-o. Deu-lhe os pormenores do seu bilhete.
- Pode confirmar, por favor, se a minha reserva está correta? - Queira aguardar um momento, senhor. - Houve uma breve pausa e depois a mulher voltou a falar.
- Sim, senhor. Estamos à sua espera. O seu check-in já foi confirmado online. O seu voo vai partir à hora prevista, às vinte e duas.
Hector pousou o auscultador. Tudo parecia bater certo, até certo de mais. Aquilo que finalmente o decidiu foi pensar em Hazel. Por respeito à memória dela, deveria
confrontar Aazim Muktar e levar as coisas até ao fim, por mais riscos que isso envolvesse. Quase conseguia ouvir a voz dela. Tens de o fazer, meu querido. Tens de
o fazer, senão tu e eu nunca mais teremos paz.
De modo que se acomodou no banco traseiro e deixou o motorista conduzi-lo a Jidá.
31
No portão de embarque no terminal das Linhas Aéreas da United Arab Emirates no aeroporto de Jidá, um porteiro em vestes tradicionais abriu-lhe a porta do Mercedes
e, com respeito cerimonioso, acompanhou-o até à sala privada que tinha sido reservada pelo mulá. Assim que ficou sozinho, Hector tentou abrir a porta e descobriu
que estava destrancada. Entreabriu-a um pouco e espreitou através da nesga. Não viu nenhum guarda postado no exterior. Por essa altura, sentia-se mais intrigado
do que receoso. Fechou a porta e olhou em redor da sala de espera luxuosamente mobilada. Tinha a boca seca devido ao gosto râncido do perigo.
De bom grado voltava a ser virgem em troca de um uísque decente, pensou, mas claro que não havia nenhuma bebida alcoólica forte à vista naquele bastião islâmico.
Bebeu um copo de água Perrier, serviu-se de um outro e levou-o consigo para uma das poltronas. Enquanto se sentava, ouviu alguém bater à porta.
- Entre - disse, e Aazim Muktar entrou. Certamente seguira de perto o Mercedes que transportara Hector desde Meca. No entanto, Hector ficou atónito quando o mulá
entrou acompanhado de uma mulher coberta da cabeça aos pés. Chorava baixinho por trás do véu. Conduzia pela mão um rapazinho de tez escura, com cerca de seis ou
sete anos. Era um menino encantador, com caracóis negros e olhos escuros e grandes. Estava a chuchar no polegar, com um ar infeliz e perplexo. Aazim Muktar fez sinal
à mulher, a qual se apressou a afastar-se para um dos cantos da sala, onde se sentou no chão, abraçando a criança contra o peito. Hector reparou no brilho dos olhos
dela por trás da burca enquanto o observava, e depois apercebeu-se de que ela recomeçou a chorar. Aazim Muktar, com uma ordem ríspida, advertiu-a que se calasse
e depois sentou-se numa poltrona virada para Hector.
- Dentro de quarenta e cinco minutos vão anunciar o embarque para o seu voo - disse ele a Hector. - É todo o tempo de que disponho para o convencer de que não
tive nenhuma responsabilidade no assassinato da sua mulher. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe que estou a par de quase todos os detalhes do trágico confronto entre
a sua família e a minha. Houve muitas mortes de ambos os lados Compreendo que, tendo sido você um oficial do exército, em certas ocasiões se justificasse matar em
cumprimento do dever. Houve alturas em que você fez justiça pelas próprias mãos. - Calou-se e olhou bem no fundo dos olhos de Hector.
- Continue! - incitou-o Hector, sem deixar transparecer nenhuma emoção.
- Aceito o facto de o meu pai e a maior parte dos meus irmãos serem piratas, agindo em contravenção direta do Direito Internacional. Capturaram navios mercantes
no alto-mar e retiveram as tripulações em troca de um resgate. Dissociei-me, ainda muite jovem, desses crimes cometidos pela minha família e fui para Inglaterra
para estar o mais longe possível deles. Nunca considerei ter qualquer direito de retaliação contra si ou contra a sua família Já lhe contei que conheci a sua mulher
e que a admirava. Fiquei profundamente devastado quando soube que a tinham assassinado. Foi um ato contra todas as leis do homem e de Deus. No entanto, sabia que
após a morte dela você me iria perseguir para aplacar os pecados cometidos pelo meu clã.
- Sou todo ouvidos.
- Há muito que eu receava o dia do nosso encontro, mas preparei-me para isso.
- Tenho a certeza que sim - ripostou Hector, cuja expressão era agora sombria.
- Não à sua maneira, já que você é um guerreiro experiente, senhor Cross, e a sua maneira é a linguagem da espada.
- Diga-me então, mulá Tippoo Tip. Em que consiste a sua maneira?
- No caminho de Alá. A minha maneira de agir é o perdão mútuo. A minha maneira é Al-Qisas. Ofereço-lhe uma vida por outra vida. - Levantou-se e acercou-se do
pequeno volume de ibjeta humanidade amontoado no canto da sala. Agarrou a criança pela mão e fê-la parar à frente de Hector.
- Este é o meu filho. Tem seis anos. Chama-se Kurrum, que 'ignifica "felicidade". - O rapazinho voltou a enfiar o polegar na boca e olhou fixamente para Hector.
- É um menino bonito - acedeu Hector.
- É seu - disse Aazim Muktar em árabe, empurrando delicadamente a criança para a frente.
Consternado, Hector levantou-se da poltrona de um salto.
- Pelo amor de Deus, que pretende que faça com ele?
- Em nome de Alá, deve levá-lo e retê-lo como refém contra a minha boa-fé. Se encontrar provas irrefutáveis de que matei a sua mulher, deve matá-lo como é seu
direito, segundo a lei de Al-Qisas, e perdoar-lhe-ei.
A mulher gritou e arrojou-se no chão.
- É meu filho! É o meu único filho! Mate-me se tiver de o fazer, efêndi. Mas não mate o meu filho. - Rasgou o véu e esfacelou o rosto com as unhas compridas.
O sangue brotou dos arranhões profundos e escorreu-lhe do queixo. Rastejou até aos pés de Hector.
- Mate-me, mas poupe a vida ao meu filho, suplico-lhe.
- Cala-te, mulher. - O marido usou um tom amável. Pousou a mão no ombro dela e afastou-a para o fundo da sala. Depois voltou para junto de Hector. Das dobras
da túnica branca tirou uma carteira de couro e estendeu-lha.
- Está aqui toda a documentação de que precisa para poder levar o Kurrum consigo: o bilhete de avião dele, a sua certidão de nascimento, o passaporte e os documentos
que o nomeiam seu tutor legal. Qual é a sua decisão, senhor Cross?
Hector continuava absolutamente estupefacto. Aquilo era a última coisa que esperava. Olhou para a criança. Abanou a cabeça, como se para negar aquilo que estava
a acontecer. Estendeu a mão e acariciou a cabeça do rapaz, cujos caracóis crespos lhe assomavam sob os dedos. Kurrum não fez nenhum esforço para se esquivar ao contacto.
Ergueu a cabeça e olhou para Hector. Os olhos eram escuros e transpareciam uma sabedoria muito para além da sua idade. Falou baixinho: - O meu pai diz que devo ir
consigo, efêndi. O meu pai diz que agora sou um homem e que me devo portar como um homem. É essa a vontade de Alá.
Hector continuava sem palavras. Sentia a garganta seca e o sangue que lhe latejava nas têmporas ecoava-lhe no crânio como um tambor. Curvou-se para pegar na criança
e apoiou-a no flanco. Kurrum não se debateu. Hector tocou-lhe na face e depois virou-se para o pai do rapaz.
Conseguiu ver-lhe finalmente o âmago, e o que viu era bom Sabia por fim, sem lugar para dúvidas, que aquele homem não era a Besta que ele andava a perseguir.
Hector falou com a criança apoiada no seu flanco. - És meu refém, Kurrum. - A mãe do rapaz ouviu-o e lamentou-se. Hecto: não fez caso dela e continuou a falar
com a criança. - Sabes o que isso significa, Kurrum?
O menino abanou a cabeça e Hector prosseguiu: - Significa que és valente e bom, assim como o teu pai é valente e bom
- Pousou Kurrum no chão, virou-o para a mãe e deu-lhe um empurrão delicado. - Volta para junto da tua mãe, Kurrum, e cuida bem dela, pois agora és um homem como
o teu pai foi um homem antes de ti.
A mulher estendeu os braços e Kurrum correu ao seu encontro. Ela levantou-o do chão e avançou para a porta, mas deteve-se quando a alcançou e olhou para Hector
atrás de si, com lágrimas e sangue dos arranhões a escorrerem-lhe pelo rosto.
- Mestre... - começou ela por dizer, mas depois perdeu a voz.
- Vai! - ordenou-lhe Hector. - Leva o teu filho e que Alá te acompanhe. - Ela saiu e fechou a porta suavemente, deixando Hector e Aazim Muktar sozinhos na sala
espaçosa.
- Tem a certeza? - perguntou Aazim.
- Tanta certeza como alguma vez tive em relação a qualquer outra coisa na minha vida.
- Não tenho palavras que possam exprimir a minha gratidão. - Aazim fez uma vénia. - Ofereceu-me uma dádiva superior a tudo aquilo que eu jamais poderia imaginar.
Nunca lhe poderei retribuir.
- Já me pagou o que haveria a pagar. Só o simples facto de ter conhecido um homem santo como você enriqueceu a minha própria vida.
- Continuo em dívida para consigo. A vida do meu filho tem mais importância do que tudo o resto - disse-lhe Aazim com sinceridade. - Segundo sei, você chegou
a ver o homem que assassinou a sua mulher, o qual tinha a tatuagem característica de um certo gangue.
- Foi o Tariq Hakam que lhe contou isso! - A fúria de Hector voltou a inflamar-se. - Ele é um traidor. Traiu a minha amizade. Um dia vou matá-lo.
- Não, senhor Cross. Ele não é seu inimigo. - Hector abanou a cabeça com uma determinação intransigente, mas Aazim ergueu a mão para o impedir de continuar. -
Um dia irá compreender isso. Tariq Hakam pediu-me para lhe transmitir uma mensagem. Prometi-lhe que o faria. Posso comunicar-lhe o que ele me disse?
- Se assim o desejar.
- Ele disse que não havia nenhuma outra forma de o convencer de que estava a seguir o caminho errado na procura do inimigo. Disse que você e eu precisávamos de
nos compreender.
- Jamais o voltarei a aceitar como amigo, diga ele o que disser. Nunca poderei voltar a confiar nele.
- Tariq sabe isso.
- O que é que ele vai fazer agora?
- Está determinado a abandonar o caminho do guerreiro. A partir de agora, irá seguir o caminho que conduz a Alá.
- Com que então agora descobriu Deus e tornou-se um dos seus discípulos, é isso? Ainda bem para ele, o velho tratante.
- Velho tratante. Ele mencionou que você diria isso. - Aazim sorriu. - No entanto...
Calou-se, interrompido por uma voz feminina que ecoou através do sistema de sonorização: Última chamada para todos os passageiros do Voo EK 805 da Emir ates para
Abu Zara. Embarque na Porta A2 f. Os passageiros devem dirigir-se para a Porta A26 para procederem de imediato ao embarque.
- O nosso tempo juntos chegou ao fim, senhor Cross. Quando vivi em Londres, trabalhei com um homem que dedica a vida - ajudar a reabilitar rapazes muçulmanos
apanhados na malha dos gangues criminosos de rua a operar nas principais cidades do Reino Unido. Vou enviar-lhe uma mensagem para entrar em contacto consigo. Talvez
ele consiga ajudá-lo a localizar o homicida com a tatuagem Maalek. Talvez assim você possa identificar sem margem para dúvidas o seu inimigo oculto.
- Como vai fazer para que esse homem entre em contacto comigo, Aazim Tippoo Tip? Você não sabe onde vivo.
- Desde que Brandon Hall foi arrasado pelas chamas, você mudou-se para o número onze de Conrad Road, em Belgravia.
O seu principal endereço eletrônico é cross@crossbow.com, mai tem muitos outros. Estou correto, senhor Cross?
Hector inclinou a cabeça num gesto de aquiescência irónica.
- O Tariq contou-lhe tantas coisas sobre mim. Não me surpreenderia se você soubesse que número calço.
- Onze e meio, pelas medidas americanas - replicou Aazim sem sorrir, mas Hector riu-se alto.
- Adeus, Aazim Tippoo Tip. Nunca o esquecerei.
- Nem eu, senhor Hector Cross. Posso-lhe dar um aperto de mão?
Hector estendeu-lhe a mão e olharam-se nos olhos.
- Que Alá o acompanhe, senhor Hector Cross.
- Reze por mim, xeque Tippoo Tip. - Hector deu meia-volta e saiu sem olhar para trás, dirigindo-se para a Porta de Embarque A26.
32
Embora já passasse da meia-noite quando Hector chegou à pen- thouse de Seascape Mansions em Abu Zara, convocou de imediato um conselho de guerra para a sala de
cinema privada.
À medida que os elementos da equipa foram surgindo, cumprimentaram Hector com entusiasmo, mas depois olharam em redor à procura de Tariq Hakam. Hector não fez
nenhum esforço para lhes mitigar a curiosidade até todos estarem sentados nas filas de assentos, virados para ele no estrado.
- E então, onde está o Tariq? - Foi Nastiya quem fez a pergunta em nome de todos eles.
- É uma longa história - esquivou-se Hector.
- Está bem. Então trata de a encurtar - sugeriu Nastiya.
- Continua em Meca. - Ninguém se moveu. Ninguém falou. Hector viu-se forçado a prosseguir. Fez um relato conciso, despojado de pormenores e comentários. A tensão
na sala aumentou progressivamente enquanto falava. Contou-lhes tudo, exceto a despedida final no aeroporto de Jidá e a proposta de um refém por parte de Aazim. Quando
terminou, todos se fixaram nele num silêncio sombrio. Nastiya quebrou o feitiço daquele horror coletivo. Era a única pessoa na sala que não temia Hector Cross.
- Com que então o Tariq era o traidor durante este tempo todo. Traiu-te a ti e a nós todos. Porque é que não o mataste, Hector?
Hector tinha-se preparado para aquele interrogatório durante o voo de regresso de Meca. Bombardearam-no com perguntas e dúvidas durante quase mais trinta minutos.
Hector descreveu-lhes em detalhe o sermão de Aazim Muktar na mesquita, repetindo-o quase palavra por palavra.
- E acreditaste nele, não foi, Hector?
- Foi muito convincente. Mas não acreditei verdadeiramente nele. Pelo menos, não nessa altura. Só quando ele me ofereceu o filho de seis anos como refém. Nesse
momento acreditei nele. Despiu a alma perante mim e deu-me o seu filho. Soube então que ele estava do lado dos anjos. Tive a certeza de que ele não tinha planeado
o assassinato da Hazel.
- Se ele te propôs esse tal refém, Hector, então onde está o rapaz agora?
- Aceitei-o como refém, sim, mas depois entreguei-o à mãe dele.
- Estás maluco da cabeça, Hector Cross? - exclamou Nastiya.
- Há quem possa pensar isso. - Hector sorriu e continuou:
- Mas depois Aazim Muktar Tippoo Tip forneceu-me a prova definitiva da sua inocência.
- Que prova era essa, seu tonto?
- Embora me encontrasse completamente à mercê dele, deixou-me embarcar no avião para regressar incólume aqui a Abu Zara.
Paddy O'Quinn soltou uma risada sonora e deu uma palmadinha no joelho da sua mulher. - O Hector tem razão, minha querida. Não há prova mais convincente do que
essa. Agora, até eu acredito em Aazim Tippoo Tip.
A tensão na sala dissipou-se e todos trocaram acenos de cabeça e sorrisos de complacência. Mas Nastiya afastou a mão de Paddy do seu joelho e desafiou Hector
pela última vez. - Sendo tu o cavalheiro inglês que és, tenho a certeza de que até deste um aperto de mão a esse mulá assassino, assim como tenho a certeza de que
nem sequer vais matar o Tariq Hakam, estou correta?
- Não consigo esconder nada de ti, czarina. Sim, dei um aperto de mão a Aazim Tippoo Tip e não vi nenhum sangue nela. E sim, deixei que o Tariq Hakam fosse ao
encontro do seu Deus
- admitiu Hector, levantando-se. - Se queres que te diga a verdade, sinto-me melhor por ter feito essas duas coisas. E agora, preciso de algumas horas de sono. Voltamos
a encontrar-nos aqui pela manhã, a seguir ao pequeno-almoço, para refletirmos sobre a nossa situação.
- Posso dizer-te, de borla, qual é exatamente a tua situação, Hector Cross. Voltaste à estaca zero e podes considerar-te um verdadeiro sortudo por estares aqui.
- Nastiya tentou soar austera, mas havia uma leve centelha de tristeza nos seus olhos.
33
Hector segurava Catherine no colo enquanto lhe dava o biberão. A bebé emitia pequenos grunhidos de satisfação enquanto atacava a tetina com gosto, totalmente
alheia à plateia interessada que estava sentada nas filas ascendentes na sala de cinema.
- És o único homem que conheço que consegue maquinar caos e morte ao mesmo tempo que alimenta um bebé - comentou Paddy O'Quinn, mas Nastiya assestou-lhe de imediato
um soco no braço.
- Não percebes nada de bebés, marido. Observa o Hector e cala-me essa boca.
- Já chega, meus meninos. Parem lá de brigar e acalmem-se. Temos trabalho a fazer - admoestou-os Hector. - Ontem à noite não quis discutir com a Nastiya quando
ela disse que tínhamos voltado à estaca zero. Mas isso não é inteiramente verdade. Continuamos a dispor de uma ténue pista a partir da qual podemos trabalhar. Isto
foi-me sugerido pelo próprio Tariq Hakam. Dou-lhe todo o crédito por isso. Estávamos a discutir como é que a Besta montou a emboscada à Hazel e o Tariq fez-me uma
pergunta simples. Disse: "Como é que eles sabiam?"
Hector calou-se e deixou-os assimilar aquela informação. Depois repetiu: - Como é que a Besta sabia que a Hazel ia nesse dia a uma consulta no ginecologista em
Londres? - Todos se agitaram nos seus lugares e emitiram murmúrios de concordância.
- As únicas pessoas do nosso lado que sabiam eram a Hazel, e a Agatha, a assistente pessoal dela, que marcou a consulta. Trlefonei à Agatha ontem à noite e ela
jurou a pés juntos que não tinha contado a ninguém. Ficou muito perturbada por eu ter feito essa insinuação. Trabalhou durante quinze anos para a Hazel e é absolutamente
de confiança.
- O ginecologista da Hazel sabia - aventou Nastiya.
- Sim, tens razão. O doutor Donnovan sabia. Vou regressar a Londres esta tarde para falar com ele, mas vai ser um pouco embaraçoso insinuar que ele quebrou a
confidencialidade com a sua paciente. Quero que o Paddy e a Nastiya venham comigo, e, sim, Dave, já reparei nesse teu olhar ansioso. Também podes vir connosco. É
bem provável que venhamos a precisar de ti. - Dave Embiss sorriu de alívio. Hector prosseguiu: - Por agora, a Catherinne ficará em segurança aqui em Seascape, entregue
aos bons cuidados da Bonnie e da sua equipa de apoio. - Verificou as horas no relógio de pulso. - São nove e treze. Há um voo que parte às onze e trinta para o aeroporto
de Heathrow, em Londres. Se todos puserem esses cus a mexer, conseguimos lá chegar a tempo.
34
Os quatro jantaram nessa noite no nº 11. Sentado à cabeceira da mesa, Hector ergueu o copo na direção dos outros. - Acabo de me dar conta de que passaram exatamente
quatro meses desde que a Hazel me deixou. Parece-me que foi há muito menos tempo. Sempre que entro nalguma divisão desta casa, estou à espera de a ver. Gostava que
se juntassem a mim num brinde à sua paz eterna.
Horas mais tarde, quando Paddy e Nastiya subiram para a sua suíte, a russa sentou-se à frente do toucador enfiada num roupão de seda cor-de-rosa para escovar
o cabelo. Observou Paddy pelo espelho, deitado na cama a ler o jornal vespertino. - Sabes do que o Hector precisa? - perguntou-lhe.
- Diz lá - grunhiu ele enquanto virava a página.
- Precisa de uma boa mulher na cama dele para o ajudar a esquecer.
Paddy soergueu-se de repente, alarmado, amarfanhando inadvertidamente a folha do jornal. - Não te atrevas a sugerir-lhe isso' Ele mata-te, meu docinho de coco
russo desnaturado.
- Desnaturado não sei o que é. Docinho de coco sei o que é e é bom e delicioso. Se quiseres, posso-te dar a provar um bocadinho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Hector encontrou um lugar para estacionar em Harley Street e caminhou ao longo de meio quarteirão até à clínica de Alan Donnovan.
Subiu as escadas em vez de usar o elevador e, quando entrou na área da receção, encontrou-a vazia. Aguardou alguns segundos junto à secretária de atendimento, até
que a rececionista voltou do consultório de Alan com um conjunto de dossiês de pacientes.
- Lamento tê-lo feito esperar, senhor Cross.
- Não tem mal, Victoria. - A rapariga pareceu ficar um pouco perturbada ao vê-lo, mas Hector atribuiu-o à pressão de trabalhar para um homem como Alan.
- O doutor Alan está bastante atrasado. Não quer aproveitar para tratar de outro assunto que possa ter de resolver?
- Não há problema. Não tenho pressa. Posso esperar - disse-lhe Hector.
Victoria amontoou os dossiês em cima da sua secretária. Tinha um iPhone S4 na mão livre e pousou-o ao lado da pilha de dossiês quando o intercomunicador tocou.
- Peço desculpa, senhor Cross, mas parece que hoje tudo acontece ao mesmo tempo. - Levantou o auscultador e disse: - Sim, doutor Donnovan. Sim, de imediato. -
Pousou o auscultador. - Por favor, queira-me desculpar outra vez, senhor Cross.
Encaminhou-se para as salas interiores. Deixou o iPhone pousado ao lado dos dossiês. Hector reparou que o aparelho era idêntico ao seu. Algo lhe acudiu à mente
e, de repente, tudo pareceu encaixar no devido lugar. A resposta ao enigma estivera ali, mesmo à frente dos seus olhos. Não prestara atenção a Victoria, como se
ela não passasse de uma peça de mobília. Sentiu-se mortificado pelo facto de não se ter dado conta disso muito antes.
- Ouça, Victoria - disse ele enquanto ela se afastava.
- Acabo de me lembrar de uma coisa que preciso de fazer. De qualquer modo, também não era imperioso que eu falasse hoje com o doutor Donnovan. Por favor, cancele
a minha consulta. Volto a ligar-lhe na próxima semana para marcar outra.
- Oh, tem a certeza? Muito bem, mas lamento muito que tivesse de esperar, senhor Cross. - Apressou-se na direção da porta do consultório de Alan.
Enquanto a porta se fechava, Hector inclinou-se sobre a secretária e agarrou no iPhone da rapariga. Fez deslizar o seu próprio telemóvel da bolsa que levava ao
cinto e trocou-os. Só esperava que demorasse algum tempo até ela se dar conta daquela troca. Não o preocupava a possibilidade de poder deixar informações vitais
nas mãos da rapariga. Dave Imbiss tinha-o ensinado a manter o telemóvel inviolável. Saiu da clínica e desceu para o local onde estacionara e regressou ao nº 11,
onde encontrou os outros três membros da sua equipa na biblioteca.
- Não demoraste muito tempo. Não esperávamos que voltasse tão cedo - disse Dave Imbiss.
- Fui buscar-te um pequeno presente. Aqui tens. - Atirou-lhe para as mãos o iPhone de Victoria.
- Obrigadíssimo. - Dave apanhou o telemóvel num gesto ágil. - Mas já tenho um.
- Um como este não tens de certeza - garantiu-lhe Hector
- O que quero que faças é que o leves para a oficina e lhe saques todo e qualquer pedacinho de informação. Quero a lista completa dos números de contacto que encontrares.
Todas as mensagens recebidas e enviadas, de voz e SMS. Quero cópias de todos os vídeos gravados no cartão de memória. Quero que analises com uma atenção especial
tudo aquilo que datar desde a semana em que a Hazel morreu até ao dia de hoje.
- Onde arranjaste isto? - Dave examinou o iPhone com uma súbita atenção compenetrada, revirando-o nas mãos e sem nunca olhar para Hector enquanto lhe fazia perguntas.
- Pertence a alguém? Como é que lhe conseguiste deitar a mão?
- Roubei-o à rececionista lá na clínica do Alan Donnovan. O Alan era o ginecologista da Hazel. A rececionista chama-se Victoria Vusamazulu. É uma rapariga africana,
bonita e baixinha, e o nome dela em zulu é um grito de guerra político que significa "Despertar a Nação Zulu". Quanto à nação não tenho bem a certeza, mas, no respeitante
aos atributos físicos dela, não tenho dúvida de que conseguiria despertar uns quantos mortos. Provavelmente já se deu conta de que troquei o meu telemóvel pelo dela,
mas posso continuar a empatá-la até amanhã. Portanto, tens até amanhã para lhe sacares do telemóvel tudo o que conseguires. Para além do patrão dela, a Victoria
era a única pessoa que sabia que a Hazel ia a Londres no dia da emboscada.
Dave sorriu deleitado perante aquele desafio. - Não vai ser preciso tanto tempo. Esta pequena zulu em breve deixará de ter segredos para mim. Com licença, malta.
Hector resistiu à tentação de seguir Dave até à oficina na cave. Dave era um dos melhores no seu ramo, mas trabalharia melhor ainda sem que o acossassem com conselhos
não solicitados. Hector deixou-o ocupar-se da tarefa e foi para o seu estúdio.
Agatha tinha digitalizado toda a informação de Hazel desde os tempos em que começara a trabalhar como sua assistente pessoal. Deixara-lhe na escrivaninha um disco
externo que continha todo esse acervo: muitas centenas de gigabytes.
Agora que o rasto do assassino de Hazel esfriara em Meca, Hector estava determinado a voltar diretamente ao início da deslumbrante carreira de Hazel para tentar
identificar todos os rivais que ela antagonizara ao longo do seu percurso. Por muito que a tivesse amado, Hector em momento algum duvidara da capacidade de Hazel
para fazer inimigos. Hazel lutara com unhas e dentes para chegar ao topo e nunca recuara perante uma luta.
Quem passa toda uma vida a abalar montanhas, a revolver os oceanos e a desbravar selvas, como Hazel fez, acaba por espantar e afugentar algumas criaturas bem
assustadoras. Hector iniciou nova busca de uma dessas criaturas. A mais perversa e vingativa de todas; o inimigo que faria um grande tubarão branco parecer-se com
um Chihuahua desdentado.
Passadas apenas duas horas desde que começara a trabalhar, intercomunicador tocou. Era Agatha.
- Bom dia, senhor Cross. Tenho em linha a rececionista da clínica do doutor Donnovan. Tentei dizer-lhe que a altura não era oportuna, mas ela foi bastante insistente.
Posso passar-lhe a chamada?
- Obrigado, Agatha. Pode passar-ma. - Fez uma anotação mental para ter uma conversa séria com Agatha. Precisava urgentemente de uma assistente pessoal e ela seria
perfeita para esse cargo. Trabalhara para Hazel durante toda a sua vida e talvez agora pudesse transferir essa lealdade para ele. Um benefício secundário a desse
acordo era que não correria nenhum risco de um eventual envolvimento afetivo. Pôs esse pensamento de lado e atendeu a chamada: - Cross.
- Peço desculpa por o incomodar, senhor Cross. Daqui fala Vicky Vusamazulu. Parece que houve um engano. Reparei na sua primeira visita à clínica que o senhor
tem um iPhone S4 igualzinho ao meu...
- Sim, tenho - respondeu Hector, lamentando-se logo de seguida: - Oh, raios. Agora percebo o que deve ter acontecido. Não tenho conseguido ativar o meu telemóvel,
está sempre a recusar a minha palavra-passe. Estava junto à sua secretária esta manhã quando saí da clínica. Lembro-me que ia fazer uma chamada, mas depois mudei
de ideias e fui à casa de banho. Só aí é que me dei conta de que tinha deixado o meu telemóvel na sua secretária. Voltei para a receção. Você não estava lá, mas
vi um iPhone em cima da secretária. Pensei que era o meu e levei-o. As minhas sinceras desculpas, Vicky. Que estupidez a minha. Por acaso não tem aí consigo o meu
telemóvel, pois não?
- É por esse motivo que lhe estou a ligar, senhor. Tenho aqui o seu telemóvel. Sei que é o seu porque o senhor escreveu o número dentro da tampa de trás. O meu
tem muitas informações confidenciais. Posso ir a sua casa hoje depois do trabalho para trocar- os telemóveis?
- Vai ter de me desculpar, Victoria. Vou sair dentro de alguns minutos e só voltarei bastante tarde. Mas se, tal como diz, contém informações confidenciais, levarei
o seu telemóvel comigo. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia. Passo aí na clínica pela manhãzinha para trocarmos os telemóveis.
- Oh, meu Deus! Não consegue arranjar um tempinho hoje? é um grande contratempo para mim.
- Lamento, Victoria. Amanhã antes das dez, prometo-lhe.
- Desligou antes que a rapariga pudesse voltar a protestar.
Poucos minutos após as cinco da tarde, Dave Imbiss ligou-lhe através do intercomunicador.
- Desculpa. Demorou mais do que pensava. Essa jovem mazulu é uma pequena megera astuta. Pôs toda uma série de armadilhas no aparelho dela. Mas consegui sacar tudo
o que querias.
- Excelente trabalho. Conta-me.
- É melhor vires cá dar uma olhada e ouvires por ti mesmo. Vamos precisar de usar a sala de cinema. Tenho cerca de uma hora de vídeos para te mostrar. Antes de
vires, devias tomar um calmante ou até dois. Vais ficar impressionado com o que tenho para te mostrar.
- Estou aí dentro de cinco minutos. Liga ao Paddy e à Nastiya para se juntarem a nós neste espetáculo de gala.
Paddy e Nastiya estavam sentados no meio da segunda fila de assentos quando Hector entrou na sala de cinema. Dave estava ocupado com o equipamento eletrônico.
Ergueu a cabeça assim que Hector levantou a perna comprida para transpor a primeira fila e sentar-se no lugar ao lado de Nastiya.
- Lamento desapontar-vos, pessoal. Não vamos ter anúncios publicitários. Portanto, vou direto à atração principal - disse-lhes Dave. - Em primeiro lugar, algumas
conversas selecionadas. Um facto que a maior parte dos utilizadores de um iPhone desconhece é que nada fica perdido para sempre, por mais vezes que uma pessoa elimine
a informação, podemos sempre recuperá-la. A jovem Vusamazulu fez duas tentativas para eliminar esta conversa em particular, mas ei-la aqui de novo, gravada no dia
em que a Haze teve a última consulta com o Alan Donnovan. - Dave começou a reproduzir a gravação áudio. O primeiro som era o simples toque de chamada de um telemóvel
e, imediatamente a seguir, ouviu-se um clique quando a chamada foi atendida do outro lado da linha Fez-se uma pausa e depois falou uma voz feminina.
"Olá. És tu, Aleutian?"
A resposta foi imediata. "Já te disse para não mencionares nomes, sua cadela." A cadência era a do hip-hop americano. O tom era arrogante.
O leve arquejo de contrição da mulher era quase inaudível. Depois, a sua voz adotou um tom de súplica submissa: "Desculpa Já me tinha esquecido."
"Então não te esqueças de apagar depois o registo desta chamada quando terminarmos. E agora, conta-me! Ela já chegou?"
"Sim, está cá. Mas o marido já saiu. Disse ao doutor que voltava à uma e meia."
"Ótimo!", disse a voz masculina, e a chamada terminou. Dave desligou a gravação áudio. Todos ficaram em silêncio durante alguns momentos.
Depois, Hector disse: - Aleutian. Foi esse o nome que ela usou?
- Parece que sim. De qualquer modo, provavelmente é uma alcunha do submundo do crime, um nome de guerra. Não o nome que o tipo usa no passaporte, como deves imaginar.
- Volta a passar a gravação.
Dave puxou a conversa atrás e reproduziu-a de novo. Todos se inclinaram para a frente para ouvir. Quando a conversa terminou. Paddy concordou: - Aleutian. Definitivamente,
Aleutian. Portanto, pelo menos já temos um nome como ponto de partida.
- A data e a hora estão corretas. Deixei a Hazel na clínica do Donnovan e fui tratar de umas coisas na cidade - concordou Hector. - Que mais tens aí, Dave?
- A chamada seguinte foi às nove e quarenta e cinco dessa mesma noite - disse-lhes Dave. - Deste tal Aleutian a ligar à Victoria.
Reproduziu o telefonema. Ouviram-se quatro toques de chamada e depois a voz e a entoação inconfundíveis da rapariga.
"Olá. Fala a Victoria." "Vou aí buscar-te dentro de dez minutos. Espera por mim em baixo, à entrada da tabacaria. Vou num Volkswagen azul alugado."
"Estás atrasado. Tinhas dito às sete." "Pronto. Esquece. Posso arranjar outra gaja para hoje à noite. Não faltam ratas frescas por estas bandas."
"Não! Não era isso que eu queria dizer. Desculpa. Perdoa-me, por favor. Eu depois compenso-te. Prometo."
"Espero bem. Tou aqui a rebentar de tesão que nem imaginas. Victoria soltou uma risadinha. "És tão engraçado. Vem cá que eu alivio-te desse tesão todo, meu garanhão."
Hector interveio em voz baixa: - Na altura em que essa conversa erudita decorria, a Hazel estava em coma, com uma bala enfiada no cérebro e a poucas horas de morrer.
Paddy baixou a cabeça e remexeu-se inquieto. Nastiya agarrou na mão de Hector que estava pousada no assento entre ambos. Apertou-lha com força, mas continuou em
silêncio. Não havia nada que nenhum deles pudesse dizer para o confortar.
Dave tossicou e quebrou o silêncio. - Há mais quatro conversas entre os dois, mas é tudo no mesmo registo desbragado. Só ameaças e armanços de proezas sexuais da
parte dele e algumas recriminações dela. Mas não houve mais nenhuma chamada do tal Aleutian nestas últimas semanas. Tentei ligar para o número dele, mas está desligado.
- Ou ele lhe deu com os pés, ou então saiu do país há algumas semanas - aventou Hector.
- Largou-a simplesmente - disse Nastiya com grande determinação. - Os homens como esse Aleutian não costumam ficar mais que algumas semanas no mesmo sítio. Põem-se
ao fresco assim que conseguiram dar uma boa dentada no docinho de coco. - Virou-se para Paddy e franziu de forma sugestiva a sobrancelha perfeitamente delineada.
- Nada de piadas privadas aqui, por favor - advertiu-a Dave. - Mantenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto
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antenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto a chamadas telefónicas, é tudo, mas forneceram-nos algum material interessante. - Olhou para Hector. -
Se estiveres pronto, posso passar os vídeos.
- Podes prosseguir, Dave, por favor.
Dave diminuiu a intensidade das luzes e começou a reproduzir o primeiro vídeo que tinha copiado do iPhone. Ouviu-se imediatamente nos altifalantes uma cacofonia
de ruídos de fundo, vozes masculinas altas e estridentes gritos de riso femininos, música aos berros e o tilintar de garrafas e copos. No ecrã, as imagens eram confusas
e pouco nítidas enquanto o enquadramento da câmara oscilava de forma frenética do teto para o chão, detendo-se sobre uma mesa atulhada de garrafas de cerveja e copos
meio vazios e apresentando depois primeiros planos de pernas e pés. Depois estabilizou. A cena era obviamente o interior de um clube noturno sórdido. As mesas estavam
agrupadas em redor de uma minúscula pista de dança. A voz inconfundível de Victoria sobrepôs-se ao chinfrim.
"Toca a curtir, pessoal! Não se esqueçam que esta é a vossa audição para o Fator X." A lente focou-se num grupo de jovens sentados em redor de uma mesa atulhada
de bebidas e cinzeiros a transbordar de beatas. Alguns dos jovens lançaram olhares lúbricos na direção da câmara e ergueram os copos num brinde, outros tinham charros
enfiados em diversos ângulos nos cantos das bocas e sopravam baforadas de fumo, chegando um deles a enfiar o dedo pela garganta abaixo e a imitar sons de vómito.
A câmara focou-se numa atraente rapariga loira sentada no regaço de um rapaz na extremidade oposta da mesa e a voz de Victoria instruiu-a: "Vá lá, Angie. Faz
um truque de magia."
Angie enfiou os polegares na parte de cima do vestido e puxou-o até à cinta, expondo os seios grandes e brancos. Agarrou um em cada mão e apontou os mamilos para
a câmara. "Bangf Bang! Estás morto!", guinchou. A câmara estremeceu devido à risada geral que se seguiu e depois fixou-se no folião seguinte no círculo.
- Aqui vamos nós! - advertiu-os Dave Imbiss, parando o fotograma. Estavam a olhar para a imagem de um homem de pele escura. Hector calculou que teria pouco mais
de trinta anos. Tinha o cabelo empastado de gel, modelado na forma de um grande sol sobre a testa, e usava um blusão com as mangas enroladas acima dos cotovelos
e com o capuz lançado para trás. Os antebraços eram musculosos e tonificados, como se fizesse musculação num ginásio. Era bem-parecido, mas de um modo bruto, com
boca cruel e cínica. A sua expressão era premeditadamente interessada.
Dave deixou-os escrutinar a imagem durante mais algum tempo. - Creio que temos aqui o elo perdido do puzzle, o tipo que planeou e montou o golpe. Senhores e senhoras,
apresento-lhes o tal Aleutian.
Hector endireitou-se no assento e inclinou-se de imediato para frente, como um cão de caça cujas narinas acabassem de captar o cheiro da presa. - Temos mais gravações
desta beldade? - perguntou num tom mortiferamente glacial.
- Imensas. Imensas. A Victoria está de beiço caído pelo tipo. Parece que nunca fica satisfeita.
- Nem eu - murmurou Hector. - Quero-o a todo o custo. Continua, Dave.
O vídeo recomeçou e a voz de Victoria retomou os comentários.
Senhoras e senhores, homem mais estiloso do que isto é impossível. Apresento-lhes o senhor Estiloso em pessoa. Acena aos teus fãs. senhor Estiloso."
O Sr. Estiloso ergueu dois dedos em V e colocou o polegar entre ambos. Sem alterar a expressão que arvorava, enfiou o polegar na direção da lente, num gesto grosseiramente
obsceno. Victoria lançou um apupo e entoou: "Faz-me isso outra vez!".
O homem enquadrado pela lente reclinou-se para trás na cadeira e enlaçou as mãos por trás da nuca. Lançou uma piscadela à câmara. Dave voltou a congelar a imagem.
- Muito bem, malta, verifiquem só a mão esquerda dele - disse Dave, fazendo um zoom da mão. - É aquela a tatuagem vermelha?
- Sem tirar nem pôr, Dave. A tatuagem do Maalek. Mas temos a certeza de que este é mesmo o Aleutian? Ela não usou esse nome neste vídeo. Continua a passar a gravação.
Dave retomou a reprodução do vídeo, mas a câmara deixou de enquadrar o sujeito e Dave desculpou-se. - Não há mais nada neste vídeo. Mas não precisam de ficar
preocupados. Há muito mais em três dos outros vídeos, o suficiente para fazer vomitar um homem rijo.
- Vejamo-los então, por favor - ordenou Hector.
O vídeo seguinte era um plano amplo da pista de dança do clube noturno. A pessoa que estava a filmar postara-se certamente em cima de uma das mesas para conseguir
um tal ângulo elevado. Na orla mais próxima da pista de dança, Victoria Vusamazulu estava a dançar com o homem da tatuagem. Abanava as ancas, baloiçando a cabeça
de um lado para o outro, fazendo com que a comprida cabeleira postiça lhe caísse sobre a cara. O seu parceiro era bastante mais alto que ela. Tinha tirado o blusão
de capuz e a camisola de mangas cortadas que usava expunha-lhe a totalidade dos braços fortes e musculados. Hector conseguiu calcular-lhe a estatura comparando-o
com Victoria. Ela não lhe chegava sequer aos ombros.
Era alto, muito alto, e movia-se de forma ágil, com equilíbrio e coordenação. Era rápido nos movimentos de pés. Hector calculou que fosse um adversário perigoso.
De repente, o homem arrancou a cabeleira da cabeça de Victoria e rodeou-a, fustigando-lhe as costas e as nádegas com a cabeleira, como se ela fosse sua escrava.
A rapariga contorceu-se numa agonia fingida. O sujeito estendeu a mão para lhe desapertar o fecho que corria ao comprido das costas do vestido e abriu-o até à fenda
entre as nádegas. Ela agarrou a frente do vestido contra os seios, mas tinha as costas nuas e a pele escura reluzia de suor.
Os outros foliões rodearam-nos, acompanhando o ritmo da música e os seus movimentos primitivos com palmas, incitando-os com gritos estridentes e uivos de excitação.
O homem acercou-se por trás de Victoria, agarrou-lhe as ancas e puxou-a para si, golpeando-lhe as nádegas com o próprio sexo, numa paródia explícita de uma relação
anal. Ela lançava as nádegas contra ele com o mesmo vigor, correspondendo a cada uma das investidas dele e aguentando o assalto.
De repente, o ecrã escureceu e o ruído reduziu-se a um silêncio total. Dave ligou as luzes do teto.
- Desculpem lá - disse numa voz jovial. - Fim do vídeo. Nunca iremos saber como essa história acabou.
- Ainda bem. Nenhuma rapariga decente estaria segura na cama com um marido que tivesse visto uma coisa dessas - opinou Nastiya, dando uma cotovelada nas costelas
de Paddy.
- Se achaste aquilo um pouco excessivo, Nastiya, então é melhor saíres daqui antes que vos mostre o último vídeo - advertiu-a Dave.
Nastiya abanou a cabeça e chegou-se mais a Paddy. Agarrou-lhe o braço com força. - Sei que posso confiar neste homem para me proteger - disse. - É meu dever ficar
aqui. Um dia, talvez seja meu dever matar esse animal repugnante, esse Aleutian.
- Como podemos saber que este tipo é mesmo o Aleutian? - interveio Hector. - Vá lá, Dave, diz aí o nome, por favor.
- O seu desejo é uma ordem, chefe. O nome dele já vai surgir! - Desligou as luzes e passou o último vídeo.
Uma vez mais, assistiram a uma série de planos pouco nítidos e desfocados, do chão e do teto daquilo que era claramente o quarto de uma mulher, com uma colcha
cor-de-rosa na cama enorme e um toucador atulhado de artigos de higiene pessoal e frascos de perfume. Havia também uma coleção de animais de peluche dispostos na
única cadeira ao lado da cama. Depois a imagem estabilizou, como se a câmara tivesse sido colocada num tripé. O enquadramento centrou-se na cama. O homem da sequência
do clube noturno estava deitado de costas na cama, nu. Olhou para a lente, com a mesma expressão enigmática. Colocara uma das mãos atrás da cabeça e a tatuagem era
claramente visível. Com a outra mão, acariciava-se.
"Vá lá", disse ele à pessoa atrás da câmara. "Estás à espera de quê? Não me digas que tens medo aqui do meu Grandalhão, minha cadela."
Vicky Vusamazulu surgiu toda saracoteada no plano. Também estava nua. As reluzentes nádegas negras baloiçavam-lhe enquanto se aproximava do homem na cama. Alçou
uma das pernas por cima dele e montou-o.
Nenhum dos presentes na sala de cinema voltou a falar durante algum tempo. Victoria tornou a levantar-se mais duas vezes da cama e postou-se atrás da câmara para
alterar o ângulo e a focagem, de um plano de grande abertura para um primeiro plano muito próximo, e depois voltou a correr para a cama e lançou-se uma vez mais
à ação.
- Não acham estranho? - perguntou Hector por fim.
- O quê? - disse Paddy, sem tirar os olhos do ecrã.
- Não acham estranho como é aborrecido ver outras pessoas fazer isto, quando é uma enorme diversão sermos nós a fazê-lo?
Nastiya riu-se com deleite. - Adoro-te, Hector Cross! Consegues ser tão sensato e engraçado.
- Puxa à frente, por favor, Dave - insistiu Hector.
Dave encolheu os ombros. - Está bem, mas aviso-te desde já que vais perder uma carrada de material interessante.
Os movimentos do casal no ecrã tornaram-se tão bruscos e freneticamente acelerados como os de um filme a preto e branco de Charlie Chaplin da década de 1920.
O som era uma série de guinchos ininteligíveis.
Nastiya começou a rir, acabando por contagiar todos os outros. Dave Imbiss conseguiu por fim controlar suficientemente o riso para os advertir: - Muito bem, calem-se
todos, malta, por favor! Aqui vem o momento pelo qual todos esperávamos!
A ação abrandou para o ritmo em tempo real e Aleutian falou de forma bem audível: "Prepara-te, minha beleza! Aqui vem a mortífera serpente negra africana!"
"Oh, sim, Aleutian! Enfia-mo todo, Aleutian, meu cabrão obsceno!"
- E aqui têm! - disse Dave Imbiss num tom complacente.
- Peçam o nome e aqui o Imbiss dá-vos o nome, não uma, mas duas vezes. Isto é o que eu chamo um serviço impecável. - Estendeu a mão e desligou o vídeo.
Hector quebrou o silêncio que se seguiu. - Aquela rapariga não foi muito bem-educada. - Proferiu a sua opinião numa voz séria: - Repararam que no final ela nem
sequer chegou a dizer "por favor"? - Levantou-se e avançou para o estrado. Enfiou as mãos nos bolsos e virou-se para eles.
- Excelente trabalho, Dave. Nunca me deixas ficar mal. Neste preciso momento, acabas de tornar a Victoria Vusamazulu no assunto mais picante da cidade. É a única
pista que nos pode conduzir ao Aleutian. Precisamos de lhe manter o entusiasmo bem aceso. - Olhou para Nastiya. - Lamento, mas vai ser essa a tua tarefa, Nazzy.
- Eu? - Pareceu surpreendida. - Não me parece que a Victoria tenha dado mostras de quaisquer tendências lésbicas.
- Sabes tão bem quanto eu que uma mulher está muito mais aberta a uma abordagem amigável por parte de outra mulher do que de um homem. Ela não está à espera de um
tal engate. Quero que tu e a Vicky se tornem almas gémeas. Assim não perdemos de vista o tal Aleutian.
- Está bem. - Nastiya encolheu os ombros. - Que queres que eu faça?
Hector virou-se para Dave. - Dá-me o iPhone da rapariga, por favor.
Dave entregou-lho. Hector ligou-o e marcou um número. - Estou a ligar para o meu próprio telemóvel - explicou.
Assim que o toque de chamada soou, ligou o altifalante e fez sinal aos outros para se manterem em silêncio.
- Olá. Ligou para o telemóvel de Hector Cross. Fala Victoria Vusamazulu. - Aqui Hector Cross, Vicky. Ainda precisa que lhe entregue o seu iPhone esta noite em vez
de ser amanhã? Acho que posso tratar disso. - Oh, sim, por favor, senhor Cross - exclamou ela com entusiasmo. - Seria fantástico. Sinto-me totalmente perdida sem
ele.
- Muito bem. A minha secretária está acabar de terminar o expediente. Vou enviá-la num táxi ao seu encontro. Ela entrega-lho.
- Obrigada. Muito obrigada, senhor. - Calculo que já deva estar em casa, não? Qual é a sua morada? - Sim, estou no meu apartamento em Richmond. A morada é 47, Gardens
Lane e o código postal é TW9 5LA. Diga ao taxista que fica na esquina com Kew Gardens Road. Fica a cerca de trezentos metros ao fundo da estrada de quem vem da estação
de Kew Gardens.
- Muito bem. A minha secretária chama-se Natasha Voronc > É uma senhora russa de cabelo loiro. Estará aí consigo dentro de trinta ou quarenta minutos.
Desligou a chamada e entregou o telemóvel a Nastiya. - Podes ir, czarina. A Victoria está à tua espera. Demora o tempo que precisares. Nós tratamos de te guardar
o jantar. - Calou-se por momentos e depois prosseguiu: - Ouve uma coisa: para numa dessas lojas de bebidas a caminho e compra à Vicky uma garrafa de vinho decente.
Diz-lhe que é um presente da minha parte. Um grande pedido de desculpa por lhe ter levado o telemóvel. Talvez te convide a partilhares a garrafa com ela. Provavelmente
está sozinha agora que o Aleutian desapareceu de cena. Faz-te de muito amiga dela, tenta levá-la a confidenciar-te os seus segredos femininos. É mais do que certo
que vai querer queixar-se do Aleutian e dizer-te como ele é um grande cabrão. E tu podes-te queixar do Paddy e dizer-lhe que ele é um grande cabrão. Vocês as duas
vão-se divertir um bom bocado.
- Essa sugestão agrada-me - concedeu Nazzy.
36
Nastiya regressou da sua visita ao apartamento de Victoria uma hora atrasada para o jantar. Os três homens, de uniforme de gala e a beberem o seu segundo uísque,
esperavam-na na sala de estar. Levantaram-se assim que ela surgiu à entrada.
- E então, como correu, minha querida? - perguntou-lhe Paddy, antecipando-se aos outros.
- Deixem-me primeiro ir lá acima mudar de roupa. Não demoro mais de um minuto e já vos conto a história toda quando voltar.
Quando desceu as escadas, todos se aperceberam de que valera a pena esperar. Nastiya usava os seus diamantes e estava deslumbrante. Na qualidade de anfitrião,
Hector deu-lhe o braço e conduziu-a para a sala de jantar. O primeiro prato era solha-limão-do-pacífico grelhada, servida desespinhada e acompanhada de cogumelos
silvestres da Provença, regados com molho de açafrão.
A comida manteve-os em respeitoso silêncio durante alguns minutos, até que Nastiya suspirou deliciada e limpou a boca ao guardanapo antes de falar.
- Aquela Victoria é uma rapariga muito querida. Acho-a simpática. Claro que é muito ingénua e louca por homens, como qualquer rapariga saudável da sua idade.
Mas, na verdade, não é mal-intencionada. Depois de beber dois copos de vinho, convenceu-se de que sou a sua nova melhor amiga. Sente-se sozinha, como o Hector tinha
dito. Quer alguém com quem possa falar. Nunca mais me deixava ir embora. Ela pensa que esse tal Aleutian vai voltar da América para casar com ela.
- Então foi para aí que ele foi. Bate certo com o sotaque e a tatuagem. Ela sabe que ele esteve envolvido no homicídio da Hazel?
Nastiya foi firme e determinada na resposta. - Tenho a certeza que não. Claro que não podia insistir com ela sobre esse assunto. Mas, como sabia que eu trabalho
para o Hector, foi ela mesmo quem trouxe o assunto à baila. Estava a par do assassinato da Hazel, através das notícias que tinha lido na imprensa e ouvido na TV.
Mas nunca associou o episódio ao Aleutian. O Aleutian disse-lhe que é um manda-chuva no negócio do petróleo na Califórnia. Pediu-lhe para o ajudar a conseguir um
encontro com a Hazel, para tentar aliciar a Bannock Oil e a Hazel a participarem num negócio qualquer que ele tinha em mente. Pediu à Victoria para o informar quando
a Hazel saísse da clínica do doutor Donnovan nesse dia para simular um encontro acidental. Já vos disse que a Victoria é muite ingénua e um pouco estúpida. Mas simpatizo
com ela.
- Isso quer dizer, então, que já não vamos deitar-lhe a mão para a fazer dar à língua? - Paddy olhou para Hector. - Devo dizer que estou desapontado. Até podia
ser divertido.
Hector sorriu e respondeu: - De certeza que a Nastiya tem razão. Aquela rapariga é uma lorpa. Não é muito inteligente e não sabe de nada. Mas é possível que o
Aleutian regresse cá para voltar a saborear o pitéu que ela de tão bom grado oferece. Essa é praticamente a única utilidade que ela tem para ele agora, ou para nós.
Sabes se a Vicky tem o atual número de telefone dele ou qualquer outro modo de o contactar?
- Perguntei-lhe isso, mas só tem o número de telemóvel que sacámos do iPhone dela. Ela diz que ele nunca lhe atende as chamadas. Pensa que isso só pode dever-se
ao facto de ele não ter roaming no telemóvel lá nos Estados Unidos. Só sabe é que ele lhe prometeu que voltaria para ela e que iriam viver juntos. E acredita que
ele vai cumprir a palavra.
- Mantém-te em contacto com ela, por favor, Nazzy. Pode dar-se o caso de ele de facto voltar.
- E que fazemos até lá? - perguntou Dave Imbiss. - Chegámos a outro beco sem saída, não é?
Todos olharam para ele, mas Hector não respondeu de imediato. Deu um gole no seu copo de vinho e saboreou-o, descrevendo círculos com a língua. - Este Chablis é
perfeito para acompanhar a solha.
- Todos sabemos que és um grande conhecedor de vinhos, mas isso não responde propriamente à pergunta do Dave - frisou Nastiya. Hector foi salvo pela entrada de Stephen,
o seu mordomo, e virou-se para ele com um certo alívio. - Passa-se alguma coisa, Stephen?
- Peço desculpa por o incomodar, senhor. Mas está um cavalheiro à porta. Bem, para ser sincero, senhor, diria que é mais um jovem mal-arranjado do que um cavalheiro.
Tentei mandá-lo embora, mas foi muito insistente. Diz que vem da parte de alguém chamado Sam Mucker. Que o senhor sabe a quem ele se refere. Diz que se trata de
uma questão de vida ou morte; foram estas as palavras dele.
Hector ponderou por momentos. - Sam Mucker? Não faço a mínima ideia do que é que ele está a falar. Já passa das dez e estamos a meio do jantar. Por favor, Stephen,
diga amavelmente ao sujeito que se ponha ao fresco.
- Com todo o gosto, senhor Cross. - Stephen conteve um sorriso e dirigiu-se para a porta com passadas firmes e determinadas.
Assim que o mordomo fechou a porta, Hector levantou-se de um salto da cadeira à cabeceira da mesa. - C'os diabos! - exclamou. - O tipo estava a referir-se a Aazim
Muktar. Stephen, volte já aqui! A porta voltou a abrir-se e Stephen manteve-se especado à entrada. - Chamou, senhor?
- Sim. Mudança de planos. Por favor, acompanhe o cavalheiro à biblioteca e ofereça-lhe uma bebida. Faça de tudo para o tratar como um cavalheiro. Diga-lhe que já
vou. - Hector virou-se para Dave. - Não, jovem David, meu rapaz. Não me parece que tenhamos chegado a outro beco sem saída. Aliás, desconfio que a verdadeira diversão
pode estar prestes a começar. - Fez soar a campainha para chamar o criado e disse-lhe: - Peça à para me guardar o resto desta excelente refeição no rescaldeiro.
- Levantou-se e disse aos outros: - Não esperem por mim, talvez demore um pouco. - Saiu da sala de jantar e foi para a biblioteca.
Quantas menos pessoas vissem o agente de Aazim Muktar. melhor para todos.
37
O visitante estava especado de costas viradas para a lareira, a aquecer-se. Tinha uma Coca-Cola na mão e Hector percebeu de imediato por que razão Stephen não o
vira com bons olhos. Tinha o rosto por barbear e o cabelo emaranhado e oleoso. As calças de ganga estavam esfarrapadas e provavelmente nunca tinham sido lavadas.
O desenho dos lábios conferia-lhe ao rosto uma expressão carrancuda e os seus modos sugeriam que se tratava de um sujeito desprezível. Tudo nele anunciava que se
estava na presença de um refugo da vida, um dos falhados.
Hector acercou-se dele e estendeu-lhe a mão. - Olá, sou o Hector Cross.
O rapaz apertou-lhe a mão sem hesitação. Os olhos eram castanho-claros, amistosos e inteligentes, em total contraste com o resto da sua aparência. - Eu sei. Fiz
uma pesquisa sobre si no Google. Devo confessar que o senhor é um homem deveras impressionante. Chamo-me Yaf Said, mas costumava dar pelo nome de Rupert Marsh antes
de encontrar Alá. - A voz era agradável, mas firme.
- Então por que nome te devo tratar? - Escolha o senhor. - Yaf significa "amigo". Vou-te chamar assim, pode ser? - Claro, se assim o desejar, senhor. - Senta-te,
Yaf - convidou-o Hector, sentando-se numa das poltronas de couro.
- Estou bem aqui, junto à lareira, senhor - declinou Ya:
- Vim de moto e apanhei frio. Além do mais, prefiro estar de pé na presença de pessoas mais velhas e mais importantes.
Hector pestanejou, surpreendido. Este miúdo tem classe, pensou.
Yaf pareceu ler-lhe o pensamento. - Por favor, queira-me desculpar o cabelo e a barba por fazer, bem como o meu aspeto geri. Esta é a minha roupa de trabalho.
- Aazim Muktar disse-me que ajudas outros miúdos transviados a reencontrarem o caminho.
O rosto de Yaf iluminou-se ao ouvir o nome do mulá. - Aazim Muktar fez o mesmo por mim. Quando cheguei à mesquita dele, estava um farrapo, num estado lastimável.
Estava farto da vida, farto de mim, sempre drogado. Ele mostrou-me o caminho e fez-me mudar de vida. É um grande homem. Grande e santo. - Sorriu timidamente. - Ei!
Peço desculpa, senhor Cross. Até pareço um daqueles tipos nos anúncios publicitários da TV!
- Sei como te sentes. Também eu o admiro.
- Aazim Muktar disse-me que o senhor procura um homem Não me disse porquê e também não lhe vou perguntar a si.
- Bem, caso sirva de ajuda, a pessoa que procuro chama-se Aleutian - disse Hector.
Yaf sorriu. - Lá no submundo, os nomes pouco ou nada significam. Consegue-me descrever o aspeto dele, senhor?
- Tenho fotografias dele - confirmou Hector.
- Isso vai-me facilitar as coisas, senhor. Com as fotos, é canja. Posso vê-las, por favor?
- Vou buscá-las. Talvez demore algum tempo. - Hector levantou-se. - Quando foi a última vez que comeste, Yaf? Pareces -me muito magrinho.
- Nunca tenho muito tempo para comer.
- Bem, agora tens tempo. Vou dizer à cozinheira para te preparar umas sandes e uma taça de batatas fritas com ketchup.
- Obrigado, senhor. Parece-me ótimo. Mas, por favor, nada de carne. Sou vegetariano.
- E ovos e queijo?
- Gosto de ambos.
Cerca de uma hora depois, Dave já tinha imprimido uma dúzia fotogramas dos vídeos de Vicky e Hector levou-os para a biblioteca, onde Yaf já devorara uma travessa
de sandes de queijo, tomate pasta para barrar Marmite e se ocupava agora dos ovos cozidos e taça de batatas fritas. Levantou-se de um salto assim que Hector entrou
na biblioteca.
- Foram as melhores sandes que comi nos últimos quinze anos, altura em que a minha mãe morreu e fiquei a viver na rua.
Hector achava que ele não teria mais de 25 anos. Por conseguinte, desde os dez anos que levava uma vida de agruras. - E o teu pai, rapaz? - perguntou-lhe.
Yaf esboçou um sorriso triste. - Nunca o cheguei a conhecer. Acho até que nem a minha mãe sabia grande coisa acerca dele. Se calhar sou um daqueles tipos sortudos
que tem só uma mãe mas vinte e cinco putativos pais. Não sei.
Hector sorriu face àquele pequeno gracejo corajoso e entregou-lhe as imagens impressas. - Dá uma olhada e diz-me o que pensas. Mas faz-me um favor e senta-te, pode
ser? Estás-me a pôr nervoso, Yaf.
Yaf sentou-se na beira da poltrona à frente da de Hector e examinou cuidadosamente cada uma das imagens que Dave
- Estás a ver a tatuagem dele? - perguntou Hector. - Sim, é uma das marcas distintivas do gangue Maalek. Ele deve ser um deles. - Olhou por fim para Hector e disse:
- Lamento, senhor. Não conheço este tipo, mas tem ar de quem só traz problemas.
Reparou no desapontamento de Hector e apressou-se a continuar: - Mas, por favor, não se preocupe, senhor. Se ele se encontrar num raio de cem quilómetros para lá
dos limites de Londres, acabarei por o encontrar. Vou tratar de pôr muita gente na rua à procura dele. Pode-me dar um número de telefone para o contactar em caso
de urgência? Tipos como este movem-se muito rápido, como tubarões-tigre à caça.
- Se ele for avistado, podes-me ligar para este número. - Hector aproximou-se da secretária e anotou o número do seu iPhone num cartão em branco. - Podes-me ligar
a cobrar no destinatário, seja qual for a parte do mundo onde eu estiver.
- Entregou-lhe o cartão e acompanhou-o à porta da entrada, ficando depois a vê-lo enquanto montava a lambreta BW de 12 e cruzava os portões.
Se calhar nunca mais o vou voltar a ver, mas nunca se sabe.
38
Tentou afastar o rapaz da mente. No entanto, nos dias que se seguiram, Yaf não parava de se intrometer nos seus pensamentos, inclusive quando estava a tentar concentrar-se
na leitura da documentação de Hazel.
- Vivemos numa sociedade imoral quando os banqueiros recebem bónus de vários milhões de libras e rapazes honestos não conseguem arranjar trabalho e ficam a apodrecer
na rua até acabarem por cair numa vida de crime. Um dia acaba por rebentar tudo quando menos se espera - comentou ele a Paddy certo dia.
Isto fê-lo pensar em Catherine Cayla e naquilo que o mundo lhe reservava para o futuro. Apercebeu-se de que tinha imensas saudades da filha e que precisava desesperadamente
de voltar a vê-la. De modo que, alguns dias depois, apanhou um voo de regresso a Abu Zara, acompanhado de Paddy, Nastiya e Dave Imbiss.
39
- Temo-nos portado como uma boa menina, papá. Ganhámos quase meio quilo desde que o senhor partiu. - Bonnie colocou Catherine nos braços de Hector assim que ele
entrou no átrio da penthouse em Seascape Mansions. - Mas tivemos tantas saudades do nosso papá, não foi, bebé?
Hector não estava muito familiarizado com esta linguagem maternal e não percebeu bem quem sentia saudades de quem, mas esperava que não fosse aquilo que as palavras
de Bonnie pareciam transparecer.
Hector chegara mesmo a tempo para dar o biberão a Catherine e deitá-la depois no berço. Na manhã seguinte, colocou-a numa versão moderna de um marsúpio, uma espécie
de casulo de nylon fixo numa estrutura de alumínio, concebido de forma ergonómica para proteger e amimar um bebé. Fora Dave Imbiss quem lhe desencantara algures
este porta-bebés futurista. Se o prendesse ao peito, Hector poderia ver o rosto de Catherine enquanto corria. Ou podia prendê-lo nas costas, para que Catherine pudesse
olhar por cima do seu ombro.
Levou-a consigo para uma corrida de quinze quilómetros ao longo da marginal da praia. A bebé parecia apreciar o movimento baloiçante - pelo menos não emitiu nenhum
protesto audível; dormiu durante todo o percurso e só acordou quando regressou a casa, com um apetite digno de uma cria de leão. Tinha perdido um biberão, como Bonnie
anunciou ao mundo num tom estentórico de desaprovação.
Os dias sucederam-se numa rotina serena mas não desagradável. Paddy e Nastiya dispunham do seu próprio apartamento na Cidade de Abu Zara. Embora trabalhassem no
mesmo edifício, fora da sede da Cross Bow Security, por vezes passavam-se dias sem que se cruzassem. Contudo, Paddy telefonava a Hector todas as noites Para discutirem
possíveis desenvolvimentos; mas poucas novidades havia e não eram de grande relevância.
Pelo menos duas vezes por semana, Nastiya convidava Hector para jantar no apartamento onde vivia com Paddy ou num dos muitos restaurantes de luxo existentes na cidade.
Ao grupo juntava-se sempre um dos convidados de Nastiya: uma jovem mulher atraente e solteira. Era espantoso como ela conseguia desencantar tantas jovens. Certamente
passara a pente fino as tripulações de cabina de todas as companhias aéreas, os escritórios do pessoal administrativo das embaixadas britânica e americana e as principais
multinacionais a operarem na cidade. Mesmo quando Hector se esquivava com habilidade a estas ciladas óbvias, Nastiya nunca desistia de tentar. Tornou-se um jogo
amigável entre ambos. Paddy limitava-se a observar com um ar divertido.
Dave Imbiss passava muitas horas por dia na penthouse de Seascape Mansions a verificar e a aperfeiçoar as medidas de segurança que rodeavam Catherine Cayla, e a
certificar-se de que os seus homens se mantinham alerta e em plena forma física. A bebé nunca era deixada sozinha. Uma das três amas estava sempre a seu lado, dia
e noite. Havia sempre um guarda armado à porta do quarto da criança, bem como uma equipa da Cross Bow Security na sala dos monitores do sistema de televisão em circuito
fechado ao fundo do corredor, a vigiar todas as entradas para os apartamentos e o interior do quarto da criança.
Hector tomava o pequeno-almoço com Catherine todas as manhãs, às seis horas. Atacava o bacon e os ovos estrelados enquanto a bebé mamava do biberão. Depois levava-a
para a corrida habitual ao longo da marginal. Quando voltava à penthouse, entregava-a aos cuidados das amas e passava o resto da manhã a ler atentamente os comoventes
registos da vida de Hazel.
Para ele, os mais importantes e mais fascinantes eram os diários dela. Eram os únicos documentos de Hazel que Agatha não digitalizara. Hazel começara a escrevê-los
no seu 14º aniversário. Havia na coleção dela mais de vinte livrinhos de capas pretas idênticas. um para cada ano da sua vida desde o início da adolescência.
Os diários estavam escritos numa caligrafia miudinha e repletos de trechos em linguagem codificada por ela criada. Hector precisou de toda a sua imaginação e engenho
para decifrar alguns desses códigos. Hazel tinha registado cada detalhe da sua vida, fosse trivial ou apocalíptico. Hector estava fascinado. Nunca imaginara vir
a inteirar-se de tantas coisas acerca dela. Mas ali estavam as suas bazófias e confissões, escritas pelo próprio punho. Chegara mesmo a descrever, com deleite, a
perda da virgindade no seu 15º aniversário, no banco traseiro do velho Ford do seu treinador de ténis. Hector sentiu uma punhalada de ciúme.
O cabrão lascivo era quase trinta anos mais velho que a minha menina inocente. Deveria ter ido de cana por aquilo que lhe fez. Maldito pedófilo. Depois consolou-se
com o pensamento de que o maldito pedófilo provavelmente estaria agora gordo, careca e impotente; e com o facto de Hazel ter desfrutado dessa experiência. Continuou
a folhear os diários, saltando os anos intermédios até encontrar o dia em que ambos se conheceram.
Esse era um dos momentos cruciais da sua própria existência. Nunca haveria de esquecer um pormenor que fosse desse primeiro encontro. Ocorrera nas instalações da
Bannock Oil, ali no deserto de Abu Zara. Hector aguardara, juntamente com os outros manda-chuvas da Bannock Oil, pela chegada dela no meio de uma forte tempestade
de areia. O helicóptero surgira do meio das nuvens de areia castanho-escuras. Recordou-se que quando o aparelho aterrara e ela surgira à porta na fuselagem, fora
apanhado desprevenido pela descarga elétrica que lhe percorrera a coluna vertebral. Raios, ela era absolutamente magnífica.
Nesse primeiro dia, ela tratara-o com rispidez, o que o deixara furioso. Não estava habituado a ser tratado com desprezo. Odiado? Sim, mas nunca que o ignorassem
de forma tão descarada.
Agora, finalmente, podia ler os pensamentos dela nesse dia fatídico. Hazel tinha-o descrito da seguinte forma: "Todo ele pose, testosterona e músculo. Rezo a Deus
para que um dia me perdoe por achar este odioso simplório tão giro e tão sexy."
40
Seis semanas após a sua chegada a Abu Zara, Hector foi acordado pelo toque de chamada do seu iPhone. Rolou na cama, ligou o candeeiro da mesinha de cabeceira e olhou
para o despertador. Faltavam dez minutos para as quatro da madrugada. Pegou no telemóvel.
- Cross - disse. - Sou eu, o Yaf! Hector soergueu-se de imediato. - Diz-me coisas! - Ele está cá. Mas é melhor o senhor vir sem demora. Ele nunca para muito tempo
no mesmo sítio. Não há maneira de saber quando vai voltar a desaparecer.
- Que horas são aí em Londres? - Pouco passa da meia-noite - respondeu Yaf. Hector fez um cálculo rápido. - Estarei aí por volta das onze da manhã de Londres. Vai
à minha casa de manhã e espera-me lá. Vou dizer ao meu mordomo para te deixar entrar, e a minha chef vai-te preparar um banquete para o pequeno-almoço. - Desligou
e telefonou para o apartamento de Paddy. Atendeu-o a voz ensonada de Nastiya. - Quem mais pode ser senão o Hector Cross! - disse ela. - Adivinhaste. O Aleutian está
em Londres. Diz a esse pinga-amor deitado aí ao teu lado na cama para enfiar as calças. Diz-lhe para requisitar o jato G5 da Bannock Oil para uma partida imediata
e urgente rumo a Farnborough. Eles que arranquem os pilotos da cama se necessário for. Vamos apanhar aquele cabrão assassino.
Hector deixou Dave Imbiss a comandar os guardas da segurança de Catherine em Seascape Mansions. O G5 descolou com a restante equipa às 08h43 de Abu Zara e aterrou
em Farnborough cinco horas depois. O motorista de Hector avançou pela pista para os recolher. Pouco mais de uma hora depois, estacionaram na garagem subterrânea
do nº 11. Yaf Said aguardava na cozinha, onde travara amizade com a chef Cynthia. A mulher estava a fazê-lo ganhar peso, empanturrando-o com o seu famoso pudim de
chocolate com gelado. Yaf pousou a colher e apressou-se pelas escadas acima quando ouviu a voz de Hector.
Hector apresentou-o a Paddy e a Nastiya e convocou de imediato um conselho de guerra para a biblioteca. A pedido de Hector. Yaf relatou-lhes as linhas gerais do
que tinha acontecido durante a ausência deles.
- Ao longo das últimas duas semanas tenho recebido informações sobre o Aleutian, sobretudo de clubes noturnos na zona central de Londres. Mas sempre que seguia essas
pistas, chegava à conclusão de que não passavam de avistamentos falsos ou que o alvo já tinha desaparecido quando eu chegava ao local. Mas depois tive sorte num
lugar chamado Fusion Fire, um antro espampanante, cheio de luzes estroboscópicas e espelhos, montes de passadores e prostitutas sempre a rondar, mas a música é mesmo
marada. Consegui aproximar-me bastante do Aleutian no balcão do bar. Estava a beber com três outros tipos negros e consegui ver-lhe a tatuagem. Era o tipo que o
senhor procura, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas os amigos dele chamavam-lhe Óscar e não Aleutian.
- Quando foi isso? - perguntou Hector. - Foi numa sexta-feira, há duas semanas. Não lhe quis ligar logo, pois ele podia estar ali apenas de passagem. Esperei lá
por ele durante as quatro noites seguintes. Mas o tipo não voltou a aparecer. De modo que pus a minha malta de vigia em todos os clubes noturnos da zona. Acabámos
por o avistar em dois outros clubes ao longo da semana seguinte, e depois voltou ao Fusion Fire duas noites seguidas. Foi por isso que lhe liguei esta manhã. Dá-me
a impressão que ele anda sempre a saltar de sítio em sítio, mudando todos as noites de poiso. Não há nenhum padrão nas movimentações dele. Se fosse a si, punha alguém
a vigiar todos os clubes noturnos onde ele foi avistado recentemente. O tipo parece ser =a criatura de hábitos. Acho que é a melhor hipótese de o senhor conseguir
dar com ele.
- Faz sentido - concordou Hector. - Mas e quanto a ti, Yaf? Yaf pareceu constrangido e demorou algum tempo a ganhar coragem para falar. - Ajudei-o de bom grado a
tentar encontrar este tipo, mas não quero estar lá quando o senhor lhe deitar as mãos. Há muito tempo que renunciei a esse tipo de métodos violentos, quando Alá
me tomou sob a sua proteção. Sem ofensa, senhor Cross. Tem sido um grande prazer privar com um homem como o senhor, mas creio que agora devemos seguir caminhos diferentes.
- Obrigado uma vez mais, Yaf. Acho que é uma decisão sensata. Também foi um prazer para mim conhecer-te. Conseguiste reforçar a minha fé na geração mais nova. Se
te puder ajudar seja no que for, já sabes onde me encontrar. Entretanto, posso pagar-te pelo teu tempo e incómodo?
Yaf ergueu ambas as mãos, alarmado. - Não, por favor. Não fiz isto por dinheiro. Fi-lo por um homem bom e santo.
- Muito bem, Yaf. Mas a tua mesquita deve gerir alguma instituição de caridade para a qual eu possa contribuir.
- Bem, senhor, para lhe dizer a verdade, recebemos grande parte dos nossos fundos da Fundação Muçulmana para a Juventude - respondeu Yaf numa voz hesitante. - O
senhor pode fazer a sua doação online. Não precisa de dar o nome.
- Vou fazê-lo em teu nome - assegurou-lhe Hector. - Obrigado, senhor. Não preciso de lhe dizer isto, mas posso garantir-lhe que o dinheiro será muito bem gasto.
- Tirou uma tira de papel do bolso do blusão. - Tem aqui a lista de todos os clubes onde avistámos o Aleutian. Ele costuma aparecer sempre num deles por volta da
meia-noite, isto é, quando se digna aparecer, mas depois fica por lá até de madrugada. Espero que encontre aquilo que procura, senhor.
Hector acompanhou-o à porta da frente e disse-lhe: - Espero que a nossa amizade não acabe aqui, Yaf. Podes-me visitar sempre que passares aqui por perto. Se eu não
estiver cá, a Cynthia lá na cozinha terá todo o gosto em te oferecer uma chávena de café e algo para comer. Vou-lhe dizer que és sempre bem-vindo aqui.
- É muito amável da sua parte, senhor. Adeus e ma'a salamab. Deram um aperto de mão e depois Hector viu-o montar na lambreta e partir. Sabia que nunca mais voltaria
a vê-lo. Yaf era um jovem independente, demasiado orgulhoso para aparecer ali a mendigar.
Nota de Rodapé: Significa "adeus" em árabe, mas também "A paz esteja contigo/ consigo".
Fim da nota.
41
- Ora bem, os três clubes na lista do Yaf Said são o Fusion Fire, o Rabid Dog e o Portais of Paradise, todos na zona central londrina, desde o Soho até Elephant
e Castle. Não conheço nenhum destes antros, e vocês os dois? - Hector olhou primeiro para Nastiya.
- Não conheço, não faz nada o meu estilo - retorquiu ela numa voz afetada.
- E tu, Paddy? - Também não. Mas, a julgar pelos nomes, até parecem locais divertidos. - Eis como vamos tratar disto. Já verifiquei a localização dos três clubes
na Internet. Encontram-se espalhados ao longo de uma área bastante grande, a vários quilómetros de distância uns dos outros. Segundo o que o Yaf disse, não vale
a pena iniciar a busca antes da meia-noite. Teremos que fazer um turno noturno tardio. Se um de nós o identificar, deve chamar logo o resto da equipa. Tratamos de
manter o Aleutian sob vigilância e seguimo-lo quando sair do clube. Um de nós conduzirá o Q-Car. As ruas devem estar praticamente vazias a essa hora da manhã. Assim
que o apanharmos sozinho e sem ninguém por perto, espetamos-lhe a Hypnos.
A Hypnos era uma minúscula seringa hipodérmica que podia ser escondida na mão, ou na costura da manga de um casaco. Era feita de uma espécie de vinil indetetável
por raios X ou por qualquer outro tipo de dispositivo de deteção. O tubo cilíndrico era de cor verde. A agulha não metálica ficava a descoberto assim que se removia
a tampa protetora com o polegar; tinha apenas dois centímetros de comprimento e bastava perfurar a pele para que fossem injetados dois centímetros cúbicos de uma
potente droga que deixava a vítima quase instantaneamente paralisada. O nome Hypnos inspirava-se na deusa grega do sono.
Era impossível conseguir um fornecimento deste tipo de armas. a menos que, tal como Dave Imbiss, se tivesse contactos na Divisão de Guerra Química do exército americano.
- Depois, assim que o Aleutian perder os sentidos, enfiamo-lo no Q-car e trazemo-lo para aqui - continuou Hector enquanto delineava o plano. - A propósito, a cave
é insonorizada e tem uma divisão ao fundo onde costumo limpar o meu equipamento de pesca, mas dará uma boa sala de interrogatório. Teremos todo o equipamento apropriado
à mão. As paredes e o chão são em azulejo. fácil de lavar à mangueirada. Se a tortura da água não for suficiente. é possível que tenhamos de recorrer a meios menos
higiénicos até o Aleutian desembuchar e nos revelar o nome de quem o contratou. Depois de lhe tratarmos da saúde, enfiamos o que resta dele numa caixa de peixe hermética
e impermeável e exportamo-lo para Abu Zara no G5. Se escolhermos bem a faixa horária de descolagem. em princípio as autoridades aduaneiras não irão revistar o conteúdo
da caixa. Depois, o Dave Imbiss levará o corpo do Aleutian para a zona onde as equipas de exploração petrolífera estão a perfurar a nova concessão, no Zara Número
12. O Aleutian irá acabar no fundo do poço de perfuração, que por esta altura já terá atingido os cinco mil metros de profundidade, e depois reemergirá à superfície
misturado com a fina pasta de lodo triturado pela broca rotativa de ponta de diamante.
Dirigiu-lhes um sorriso feroz e prosseguiu: - Sei que é um plano de batalha um pouco rudimentar, mas também sei que vocês os dois são bastante bons a improvisar
conforme as circunstâncias mudam.
Verificou as horas no relógio de pulso e levantou-se. - Temos uma hora para trocar de roupa para o jantar. Sei que a chef nos preparou um prato especial, mas não
haverá vinho para acompanhar. Temos de estar bem lúcidos e despertos para a nossa tarefa noturna.
Após o jantar, é minha intenção dormir uma sesta de duas horas. Depois, voltamos a reunir-nos às onze. Vai-nos levar uma hora ou mais a chegarmos aos locais das
nossas posições. Acho que tu, Nastyia, deverias ir para o Portais of Paradise, por razões óbvias. E tu, Paddy, ocupas-te do Rabid Dog, por razões igualmente óbvias.
Eu fico de vigia ao Fusion Fire, apesar de não me ocorrer nenhuma razão óbvia para tal.
- Imagino que devem existir umas quantas brasas do teu perigoso passado que nos poderiam dar razões mais do que suficientes - insinuou Nastiya.
Hector subiu para o seu quarto de vestir e abriu a porta do compartimento secreto por trás da lareira. Pegou numa caixa pousada numa das prateleiras de cima, onde
estava guardada a sua pistola,
enfiada no coldre axilar. Enfiou um par de luvas cirúrgicas de borracha e limpou cuidadosamente a arma para remover as suas próprias impressões digitais. Depois
recarregou-a com as munições especiais que Dave lhe fornecera. Esfregou uma segunda vez a arma com o pano, só para ter a certeza de que ficava bem limpa. Calculara
os riscos e as vantagens de portar a arma nessa noite. Era um delito grave se as autoridades o encontrassem armado, mas
talvez o perigo fosse ainda maior se enfrentasse alguém do calibre de Aleutian completamente desarmado.
42
Deixaram Nastiya no Portais of Paradise alguns minutos depois da meia-noite. A entrada situava-se discretamente na ruela de umas antigas cavalariças. Havia uma pequena
multidão de jovens excitados. aglomerados em frente à porta. Dois seguranças corpulentos e de ar agressivo barravam-lhes a entrada para o clube, enquanto um porteiro
educado, em traje formal de smoking e gravata preta, fazia a seleção daqueles que considerava dignos de entrarem naquele edifício sagrado.
Hector estacionou o Q-Car à entrada da ruela e, juntamente com Paddy, observou enquanto Nastiya se dirigia para o clube.
O porteiro avistou Nastiya assim que ela entrou na ruela. Envergava um vestido justo de cor carmesim que se colava a todas as suas curvas e calçava saltos de agulha
de quinze centímetros que lhe deixavam os finos músculos dos gémeos sob tensão. A sua aparição silenciou o clamor da multidão de jovens à entrada do clube que suplicavam
que os deixassem entrar. Abriram alas e observaram em silêncio a sua passagem. O porteiro apressou-se ao encontro dela para a cumprimentar e deu-lhe o braço, com
um bajulador sorriso de boas-vindas. Acompanhou-a até ao interior e disse à rapariga da caixa registadora: - Esta senhora é convidada da casa. Arranja-lhe a melhor
mesa disponível.
Observando a cena sentado no banco traseiro do Q-car, Paddy O'Quinn deu voz à sua preocupação: - Só espero que ela fique bem. No meio daquela multidão estão alguns
tipos que até me dão a volta ao estômago.
Hector desatou às gargalhadas. - Só podes estar a brincar, Paddy. A única pessoa de quem sinto pena é do pobre coitado que tentar meter-se com a tua senhora.
Ligou o motor e conduziu cerca de três quilómetros até ao Rabid Dog. - Ora bem, Paddy, chegámos ao teu canil. Mantém-te morto da cintura para baixo e não te deixes
seduzir por nenhuma mulher. - Observou enquanto Paddy passava uma nota de dez libras ao porteiro e desaparecia através das cortinas que cobriam a entrada.
Hector pôs-se em marcha e conduziu cerca de quilómetro e meio até ao Fusion Fire. O clube noturno ocupava dois pisos. A fachada, virada para a estrada, era toda
ela de painéis de vidro, do chão ao teto. Podia ver através dos vidros que o interior estava profusamente iluminado por luzes estroboscópicas de uma miríade de cores,
montadas em torres giratórias. O teto estava revestido de mosaicos espelhados que refletiam as luzes ofuscantes e os vultos dos dançarinos na pista em baixo. As
pessoas dançavam numa multidão comprimida, como compactos cardumes de reluzentes peixes tropicais, agitando-se num frenesim selvagem ao ritmo retumbante da música.
Hector passou lentamente pela fachada, estacionou na esquina seguinte e voltou para a entrada do clube. Usava óculos escuros de aviador e um casaco de brocado rematado
nas ancas, provido de gola mandarim e com as mangas cortadas que Nastiya escolhera para ele. Tinham optado de forma deliberada por trajes extravagantes, para transparecerem
um ar excêntrico e amaneirado. Assim, ninguém pensaria que eram tropas de assalto e desataria a fugir com medo. Hector pagou cem libras por uma mesa VIP.
Sentou-se à mesa e observou o enorme espaço à sua volta. Reconheceu-o de imediato como o cenário de um dos vídeos com Aleutian que Vicky Vusamazulu gravara no iPhone
e sentiu-se mais alentado. Se Aleutian frequentara aquele local antes, havia uma forte probabilidade de ali voltar.
Num espaço de vinte minutos, deu por si a ser abordado sucessivamente por cinco raparigas diferentes que vinham oferecer-lhe toda a espécie de serviços, desde uma
mamada debaixo da mesa por cinquenta libras até uma noite inteira por quinhentas libras. Tudo propostas que ele declinou de modo educado.
Às cinco e vinte da madrugada, as multidões na pista de dança começaram a reduzir-se e ainda não havia sinal de alguém que se parecesse vagamente com Aleutian. Hector
resolveu sair do clube e conduziu o Q-car até ao Rabid Dog para ir buscar Paddy.
- Como é que correu, meu velho? - perguntou assim que Paddy se enfiou no banco a seu lado.
- Se tivesse fumado, snifado e engolido tudo aquilo que me ofereceram esta noite, estaria a voar mais alto do que a estrela da manhã ali em cima.
Seguiram para o Portais of Paradise e, quando Nastiya surgiu, parecia ter acabado de sair de um salão de beleza.
- Não tiveste sorte, rainha do meu coração? - perguntou-lhe Paddy numa voz ansiosa.
- Podia ter ganhado uma fortuna. Um velhinho muito querido, aí com uns noventa anos, ofereceu-me dez mil libras só para me olhar sem tocar.
- Devias ter aceitado - disse-lhe Paddy. Nastiya lançou-lhe um olhar de esguelha com os seus olhos de um azul tão glacial como o céu da tundra. Quando regressaram
ao nº 11, os três deitaram-se e dormiram até ao meio-dia.
A noite seguinte foi uma repetição da anterior. A única diferença era a clientela.
Na terceira noite, Hector entrou na confusão do Fusion Fire poucos minutos após a meia-noite. Era a noite de sábado e a pista estava completamente apinhada. O volume
da música entorpecia os sentidos. As enormes bolas espelhadas, suspensas do teto, moviam-se ao ritmo das batidas dos pés das pessoas que dançavam por baixo.
De modo a imiscuir-se no ambiente, Hector usava um bolero de cetim preto ao estilo espanhol, por cima de uma camisa branca aos folhos e uma gravata de cadarço preta.
As calças de toureiro cheias de lantejoulas colavam-se-lhe às coxas. Fora Nastiya quem, uma vez mais, lhe escolhera esse traje. Sentou-se à mesa habitual e uma rapariga
de minissaia, com um bonito rosto de traços miudinhos e lábios carnudos, que ele nunca tinha visto antes, sentou-se de repente no seu regaço.
- És tão lindo que quero casar contigo - disse-lhe. - És rico, não és? - Sou multimilionário - respondeu ele numa voz séria. - Oh, meu Deus! - exclamou ela, de fôlego
entrecortado. - Juro por Deus que acabaste de me fazer vir.
Hector achou-a, na verdade, bastante divertida. Riu-se e, quando olhou por cima do ombro dela, deparou do outro lado da pista com o rosto escuro e carrancudo de
que se lembrava tão bem dos vídeos de Victoria Vusamazulu.
Aleutian estava especado no topo das escadas que conduziam ao átrio. Estava acompanhado de uma rapariga que olhava para ele, mas cujo rosto Hector não conseguia
ver. Aleutian olhava-a com um ar condescendente. Embora a multidão continuasse a rodopiar à volta do par, a enorme corpulência de Aleutian fazia-o destacar-se acima
de todos os outros. Fora por essa razão que Hector o identificara de imediato. Olhou-o apenas durante alguns segundos, só para ter a certeza de que se tratava do
homem que procurava; mas, ainda assim, fora demasiado tempo.
Na selva, quando se olha fixamente um animal, é muito frequente este pressentir o olhar e reagir. Aleutian era exatamente isso, um predador selvagem no seu próprio
território. Os seus olhos apartaram-se do rosto da rapariga e fixaram-se nos de Hector. Reconheceu-o de imediato. Deu meia-volta e desceu as escadas à pressa. Hector
levantou-se de um salto e a rapariga tombou-lhe do regaço. Saltou por cima dela para a pista de dança e abriu caminho à força pelo meio das pessoas que dançavam,
até ao topo da escadaria por onde Aleutian desaparecera.
As escadas estavam quase tão apinhadas quanto a pista de dança. Quando Hector chegou à entrada do clube e irrompeu pela porta da rua, já não viu nenhum sinal dele.
Refreou o instinto cego de desatar a correr pelas ruas escuras para o procurar aleatoriamente.
Lembrou-se da rapariga com quem Aleutian estava. Talvez pudesse encontrá-la. Talvez ela pudesse indicar-lhe o lugar onde Aleutian se refugiara. Pôs de lado essa
ideia no mesmo instante em que lhe ocorreu. O Fusion Fire estava a abarrotar de beldades como ela. Nem sequer lhe vira o rosto. Nunca conseguiria identificá-la no
meio da multidão. De qualquer modo, provavelmente não passava de uma prostituta que Aleutian escolhera para o acompanhar naquela noite.
Como é que o Aleutian terá vindo para cá? De carro? De táxi? Nesse caso, há muito que já se foi. Não parava de pensar de forma furiosa. De metro? Sim, claro!
Sabia, com base na pesquisa que fizera na Internet, que a entrada da margem norte para a estação de Blackfriars ficava apenas a quatrocentos metros do local onde
se encontrava. Desatou num sprint. Correu até à primeira esquina e viu a entrada para a estação de metro ao fundo do quarteirão. A rua estava quase deserta àquela
hora. Havia apenas uns quantos folgazões tardios de regresso a casa. Um deles era Aleutian. Afastava-se de Hector a passo de corrida, em direção à estação de metro.
Quando Hector se lançou em perseguição, Aleutian alcançou a entrada da estação e desapareceu como um coelho que acabasse de se enfiar na toca. Hector seguiu-o pela
entrada. Desceu os degraus três a três, com os seus passos ecoando no túnel vazio. Alcançou a junção em forma de T no fundo. A sinalização no túnel à esquerda indicava
a direção de Richmond; a do túnel à direita, a direção de Upminster. Não tinha forma de saber por qual deles Aleutian seguira. Optou aleatoriamente pelo túnel da
direita e, assim que começou a avançar, ouviu o ruído de um metro na linha para Richmond. Deu meia-volta e correu nessa direção. Quando chegou à plataforma, olhou
com atenção. O metro já tinha parado e as portas estavam abertas. Havia uma pequena multidão de passageiros e folgazões resistentes a subir a bordo. Hector apercebeu-se
de imediato de que o seu palpite fora acertado: Aleutian abria caminho por entre os outros passageiros. Viu-o subir para uma das carruagens.
Hector galgou o último lanço de escadas, mas, a meio caminho da plataforma, as portas fecharam-se e o metro afastou-se. Enquanto as carruagens passavam por ele,
viu Aleutian especado a uma das janelas, a olhar para ele. Hector lançou a mão à pistola que levava no coldre axilar oculto. Mas depois conteve-se. O ângulo e a
distância eram muito arriscados. Aleutian estava rodeado de muito perto por outros passageiros. Não se atreveu a correr o risco de atingir um deles enquanto o metro
se afastava acelerado.
Aleutian sabia que estava a salvo. Sorriu na direção de Hector. Uma careta sardónica, carregada de ameaça. Hector sentiu a pele eriçar-se. Estava a olhar nos olhos
do assassino de Hazel. A intensidade das emoções era tal que as pernas lhe tremeram. Depois de a última carruagem desaparecer na boca do túnel, Hector demorou alguns
segundos a forçar-se a voltar a pensar com frieza.
Deu meia-volta e refez o caminho a passo de corrida, mas sabia que demoraria pelo menos dez minutos a chegar ao local onde estacionara o Q-car. O metro que transportava
Aleutian seguia a uma velocidade de cerca de sessenta e cinco quilómetros por hora. O avanço de Aleutian era demasiado grande para conseguir apanhá-lo, mesmo no
Q-car. Tinha de se antecipar e telefonar a Paddy ou a Nastiya para o intercetarem. Mas havia uma dúzia ou mais de paragens onde Aleutian poderia sair antes de o
metro chegar ao terminal em Richmond. Seria impossível cobri-las a todas.
Mas havia algo que estava a escapar-lhe. Sabia que alguma coisa estava a escapar-lhe enquanto subia a correr pelo túnel até ao nível da rua. Pensa!, disse a si mesmo.
Deixa-te guiar pela cabeça e não pelos tomates. Para onde é que o cabrão pode ter ido?
Irrompeu do túnel para a rua, e foi nesse instante que aquilo lhe acudiu à mente. Parou de imediato. Pegou no telemóvel e ligou a Nastiya. Os toques de chamada sucederam-se
de forma interminável, mas manteve o telemóvel colado ao ouvido enquanto corria à sua velocidade máxima.
A chave é a Vicky Vusamazulu. Sabia-o com uma clareza absoluta. Quase conseguia ver o Aleutian estabelecer essa ligação. Com o seu instinto de raposa, pressentiu
de imediato que tinha sido traído. Sabia que as probabilidades de eu dar com ele lá no Fusion Fire por mero acaso eram absolutamente ínfimas. Já sabe que alguém
me pôs no rasto dele. Sabe que a Vicky é a única pessoa que nos conhece aos dois. Era a única pessoa que sabia que ele frequentava o Fusion Fire. Não precisou de
muito para perceber que ela é a única pessoa que me poderia ter dado essa pista. As probabilidades de ir a caminho para se vingar da Victoria neste preciso momento
são de dez para um. Vá lá, Nazzy, querida. Atende o maldito telemóvel.
- Hector, onde estás? - atendeu-o Nastiya de repente. - Afugentei o Aleutian. Conseguiu escapar-me e fugiu. O meu palpite é que vai a caminho do apartamento da Vicky.
Lembras-te da morada dela, não lembras?
- Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica a cerca de trezentos metros da estação de metro de Kew Gardens. - A resposta de Nastiya foi rápida e precisa.
Era uma profissional.
- O Aleutian segue neste preciso instante a bordo de um metro que se dirige diretamente para Kew Gardens. Estás mais perto do que eu. Consegues chegar à casa da
Vicky muito antes de nós. Apanha um táxi. Eu e o Paddy cobrimos-te assim que pudermos. Mas sê rápida, Nazzy. A tua amiguinha Vicky é um alvo fácil e aquele cabrão
é um assassino. - A chamada foi cortada. Como sempre, Nastiya era uma mulher de poucas palavras.
Hector ligou a Paddy e falou com ele enquanto corria em direção ao Q-car. - Paddy, espera por mim à porta do Rabid Dog. Estarei aí dentro de vinte minutos, talvez
menos.
- Que se passa? - O Aleutian deu sinal de vida, mas cometi um erro de todo o tamanho. O tipo fugiu e anda a monte. Conto-te o resto quando chegar aí.
Quinze minutos depois, Paddy abriu rapidamente a porta do passageiro do Q-car e enfiou-se no banco antes de Hector sequer parar. Hector carregou a fundo no acelerador
e seguiu a toda a velocidade.
- Nº 47, Gardens Lane, TW9 5LA. É a morada da Vicky. Insere os dados no sistema de navegação por satélite, Paddy. Raios, tenho a certeza que é para onde o Aleutian
foi.
43
Os toques insistentes da campainha do apartamento acordaram Vicky Vusamazulu. Soergueu-se na cama muito ensonada. Tinha tomado um comprimido para dormir. Olhou para
o mostrador luminoso do despertador na mesinha de cabeceira. Eram quase duas da madrugada. Graças a Deus que a senhora Church é surda como uma porta. Vicky tentou
afastar o sono esfregando os olhos com os nós dos dedos. A Sra. Church era a sua senhoria. Vivia no piso por cima e Vicky sabia por experiência própria que ela desligava
o aparelho auditivo quando se deitava. Era uma bruxa velha, tão rígida e insuportável que Vicky era o único inquilino no prédio.
A campainha voltou a soar. Vicky ligou a luz, afastou os lençóis para trás, lançou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se. Vestia calções de pijama e um top
estampado com um brilhante padrão floral. Avançou trôpega pelo corredor até à porta ao fundo.
Verificou se as correntes de segurança estavam bem presas antes de se erguer nas pontas dos pés para espreitar pelo olho mágico. O visitante no exterior estava de
costas para ela.
- Quem é? - perguntou, irritada. O sujeito virou-se e Vicky reconheceu-o de imediato.
Arquejou, surpreendida e deleitada, e despertou por completo. Nem sequer sabia que Aleutian estava de volta a Londres.
- Abre a porta, cadela - disse ele.
- Aleutian! Oh, meu Deus. És mesmo tu? Pensava que nunca mais ias voltar. - Estava tão empolgada que não conseguia desprender as correntes de segurança. - Espera!
Não vás embora. É só um segundo. Espera, meu querido Aleutian.
Finalmente conseguiu abrir a porta e correu para ele para o abraçar, mas Aleutian empurrou-a para o lado e apressou-se a entrar no apartamento. Avançou pelo corredor
até ao quarto dela sem olhar para trás. Victoria fechou a porta mas não quis perder tempo a voltar a prender as correntes de segurança. Correu de imediato atrás
dele.
- Pensava que nunca mais ias voltar. Nunca devia ter duvidado de ti. Eu sabia que ias cumprir a tua palavra. Tive saudades tuas. Tive tantas saudades tuas. - Não
parava de palrar, tomada de emoção.
Ele tinha-se sentado na cama. Olhava-a com uma expressão estranha no rosto.
- Tens-te portado bem durante a minha ausência? - Oh, sim, sim. Fiquei em casa todas as noites à tua espera. Nunca olhei sequer para outros homens. Amo-te tanto!
- Estás-me a mentir - disse ele naquele seu tom suave e funesto que a deixava a tremer de desejo. - Acho que tens sido uma cadelinha malcomportada. Acho que vou
ter de te castigar.
Victoria conhecia tão bem este jogo que os seus mamilos endureceram sob o tecido fino do top do pijama.
- Tira o pijama! - ordenou-lhe. Ela despiu o top, amarfanhou-o numa bola e atirou-o para a cama, ao lado do lugar onde ele estava sentado. Depois fez deslizar os
calções pelas ancas e deixou-os cair em redor dos tornozelos. Chutou-os para longe e manteve-se nua à frente dele.
- Vais-me bater, Aleutian? - perguntou-lhe numa voz assustada, cobrindo o púbis com as mãos em concha.
- Afasta as mãos e vem cá. - Chamou-a com um gesto do dedo e ela colocou-se à sua frente. - Abre as pernas, cadela.
Ela afastou os pés. Aleutian inclinou-se para a frente e enfiou a mão entre as coxas dela. - Abre mais! - ordenou-lhe.
Victoria podia sentir o dedo dele a contorcer-se dentro de si e apoderou-se dela um desejo tremendo. Lançou as coxas para ele e sentiu-o tocar-lhe na boca do útero.
- Estás tão viscosa aí dentro como um balde cheio de enguias, sua cadela imunda. Mas percebes que tenho de te castigar, porque te portaste muito mal?
- Sim, percebo. - Mestre. Chama-me Mestre. Ou já te esqueceste? - Fez algo com o dedo que foi tão doloroso que a deixou a gemer. Era como se ele lhe tivesse rasgado
algo ali dentro. Abriu desmesuradamente os olhos devido à dor que sentia. Mas a dor era tão agradável que estava quase a atingir o primeiro orgasmo.
- Sim, compreendo, Mestre. Aleutian tirou o dedo e apontou-o à frente da cara dela. - Olha só o que fizeste, sua putinha imunda. Sujaste-me o meu lindo dedo limpinho
com essa tua rata imunda.
- Desculpa-me, Mestre. Não era minha intenção fazer isso. - Põe-te de joelhos - ordenou-lhe. Ela baixou-se à sua frente. Ele apontou-lhe o dedo. - Chupa-o até ficar
limpinho. - Vicky enfiou-o na boca. Aleutian forçou-lho pela garganta abaixo, tão fundo que os ombros dela estremeceram devido ao reflexo de vómito.
- Confessa. Tens-te portado muito mal na minha ausência, não tens?
Ela emitiu uns sons incoerentes de negação. O rosto inchava-lhe enquanto sufocava. Aleutian inclinou-se para trás e tirou o dedo da garganta dela. Vicky soluçou
de alívio e todo o seu corpo se convulsionou devido ao esforço para recuperar o fôlego. Olhou para ele com os olhos raiados de sangue e a escorrerem lágrimas.
Aleutian estendeu a mão que até então mantivera atrás das costas e Vicky apercebeu-se de que ele segurava numa navalha de ponta e mola. Viu-o carregar no botão de
libertação e a lâmina abrir-se com um estalido seco à sua frente. Tinha cerca de dezoito centímetros de comprimento e era reluzente como um raio de sol.
Isto era uma novidade. Ele nunca lhe tinha mostrado a navalha antes. Vicky tentou recuar ajoelhada, mas Aleutian agarrou no top do pijama dela pousado a seu lado
na cama e enrolou-lho à volta do pescoço, segurando-a depois como a um cachorro pela trela.
- Andaste a falar de mim a outras pessoas, não andaste, sua cadela?
- Não! - murmurou ela, abanando a cabeça num gesto veemente.
- Não me mintas, sua vaca! - Picou-lhe a face com a ponta da navalha. Vicky guinchou, de susto e dor. - Não me faças mais mal, por favor. Já não gosto destes jogos.
Já não quero brincar mais. Guarda a navalha, por favor, Aleutian.
- Isto não é nenhum jogo. Falaste de mim ao Hector Cross. sua cadela.
- Não, não falei nada. - No entanto, apesar da negação. ele viu um vestígio de culpa aflorar-lhe aos olhos. O rosto dela contorceu-se em terror.
- Falaste, sim. Disseste-lhe onde me podia encontrar. - Riu-se. - Por favor. Não estás a perceber. Ele não fez caso dos protestos e a sua voz adotou um tom afável
e tranquilizador. - Não fiques preocupada. Só tens de fazer o que te digo e tudo correrá bem. Agarra na orelha esquerda e estica-a para o lado o mais que puderes.
- Ela olhou-o, atónita e sem compreender.
- Faz o que te digo, Victoria. Fá-lo, se me amas de verdade - insistiu Aleutian. Ainda de olhos fixos nele, Vicky agarrou no lóbulo da orelha entre dois dedos e
esticou-o.
- Perfeito - disse ele. E, com um rápido golpe da lâmina prateada, cortou-lhe a orelha rente ao couro cabeludo.
Ela soltou um grito e depois olhou, horrorizada, a orelha decepada que segurava entre os dedos.
- Agora come-a. Enfia-a na boca e engole-a - disse-lhe baixinho.
O sangue da ferida pingava-lhe sobre o peito e escorria-lhe por entre os seios. Vicky não fez caso e continuou de olhos fixos na orelha cortada. De repente, Aleutian
picou-lhe o pescoço com a lâmina. Ela sobressaltou-se e olhou para ele.
- Abre a boca - disse, voltando a picá-la. Ela abriu a boca. - Agora enfia-a na boca e engole-a.
- Não! - disse ela. - Desculpa. Não era minha intenção fazer aquilo. Deixa-me explicar... Ele tocou-lhe na sobrancelha com a ponta da lâmina. - Come-a, senão arranco-te
os olhos, um de cada vez.
Vicky enfiou a orelha na boca. - Pronto. Não é assim tão difícil. Se calhar até sabe bastante bem, não sabe? - Os ombros dela voltaram a estremecer com convulsões.
- Não. Não faças isso. Engole tudo.
Determinada, Vicky fez um esforço para lhe obedecer. O seu rosto e a garganta contorceram-se. Engoliu finalmente. Estava a arquejar, mas balbuciou numa voz rouca:
- Já está. Engoli-a.
- Muito bem. Estou orgulhoso de ti. - Por favor, para, para com isto. Não me faças mais mal, por favor. - Chorava com amargura, continuando a abanar a cabeça de
um lado para o outro.
- Parar? - disse ele com uma surpresa fingida. - Mas se ainda agora começámos. Ainda há uma coisa que me queres contar, não há, Vicky? Queres dizer-me com quem andaste
a falar de mim, não é? - Nunca falei de ti a ninguém, juro pela alma da minha mãe. - Escorriam-lhe lágrimas pelo rosto e respirava em fortes arquejos acompanhados
de estremeções.
- Estás a mentir, Vicky. Vou ter de te obrigar a comer a outra orelha. - Forçou-a a ajoelhar-se, agarrou-lhe a outra orelha e esticou-a como se fosse um pedaço de
borracha. Encostou-lhe a lâmina e Vicky gritou.
Nastiya ouviu esse grito.
44
Nastiya apanhou o táxi à entrada do Portais of Paradise. Quatro raparigas polacas, todas elas risinhos e gritinhos, estavam a apear-se do veículo.
Nastiya empurrou uma das raparigas para o lado, enfiou-se no banco traseiro e disse ao taxista: - Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica na esquina
com Kew Gardens Road, cerca de trezentos metros depois da estação de metro de Kew Gardens.
- Sei onde fica, minha senhora - disse o taxista. - Dou-lhe mais cinquenta libras se conseguir pôr-me lá em menos de um quarto de hora.
- Aperte o cinto e ponha já de parte essa nota de cinquenta libras, minha senhora - disse ele. - Aqui vamos.
As ruas estavam quase desertas e o taxista conduziu a grande velocidade. Parou em Kew Gardens vários minutos antes de transcorrido o quarto de hora previsto. Nastiya
entregou-lhe duas notas de cinquenta libras através da divisória de vidro e disse-lhe: - Guarde o troco, merece-o. - Apeou-se do táxi de um salto e atravessou a
estrada a correr, em direção ao nº 47. Assim que cruzou o portão de acesso ao minúsculo jardim, ouviu Victoria gritar. Descalçou os sapatos de salto de agulha aos
pontapés e largou a bolsa coberta de lantejoulas. Prendeu a saia afunilada à volta da cinta e correu para a porta, ganhando velocidade. Lembrava-se, da sua visita
anterior, que a fechadura era velha e frágil. No entanto, também se recordava de duas robustas correntes de segurança, de modo que se lançou de pés juntos, desferindo
no último momento um enorme coice na porta como uma mula.
Para seu grande espanto, a fechadura cedeu de imediato e a porta esmagou-se contra a parede interior. Nastiya voou pela abertura, de pés esticados à sua frente,
para dentro do corredor. Rolou o corpo ao tocar no chão e levantou-se de imediato, desatando a correr praticamente sem perder o ímpeto. Lembrava-se da disposição
exata do pobre e exíguo apartamento. A sala de estar e a cozinha situavam-se à direita. Mas viu luz por baixo da porta do único quarto. Abriu-a com um pontapé e
esquivou-se para o lado, mantendo-se de corpo colado à parede lateral. Espreitou pela ombreira para dentro do quarto.
Uma carnificina total. Os lençóis cor-de-rosa da única cama existente estavam manchados de sangue. Havia sangue nas paredes e sangue a acumular-se numa poça sobre
os fofos tapetes brancos no centro do soalho.
Vicky estava de pé, virada para ela, mas Nastiya mal conseguiu reconhecê-la. Estava nua. As orelhas tinham sido decepadas. O sangue jorrava-lhe das feridas em carne
viva, entrando-lhe na boca e manchando-lhe os dentes de vermelho. Pingava-lhe do queixo e escorria-lhe pelo corpo em jorros. O quarto fedia a sangue e a vómito.
Nastiya reconheceu de imediato Aleutian dos vídeos. Estava especado atrás de Vicky. Sujeitava-a com um golpe de gravata, imobilizando-a por completo. Na outra mão
segurava uma navalha manchada de sangue, com a qual levara a cabo aquela chacina. Envolvia o corpo de Vicky com o braço e mantinha a ponta da comprida lâmina incrustada
de sangue ressequido contra o umbigo dela. Usando o corpo da rapariga como escudo, olhava com fúria para Nastiya por cima do ombro de Vicky.
- Ouve-me, Aleutian. Larga a Vicky e podes escapar ileso - disse-lhe Nastiya numa voz calma e firme.
- Não sei quem raios és, loiraça, mas estou a gostar do que vejo. Acho que tenho um plano melhor que o teu. Primeiro, vou terminar aquilo que comecei com esta vaca
aqui. A seguir, vou atrás de ti, e, quando te apanhar, vou-te dar a melhor foda da tua vida. Depois vou-te matar também, mas muito devagar. E agora, observa bem,
pois só vou fazer isto uma vez.
Passou a navalha com rapidez de um lado ao outro da barriga nua de Victoria, perfurando-lhe profundamente a pele, os músculos e a parede intestinal. Os intestinos
transbordaram pela abertura do ferimento. A navalha tinha-os cortado também e o seu conteúdo derramou-se. Depois mudou o ângulo da lâmina e espetou-a através do
esterno. Os olhos de Vicky arregalaram-se, enormes, como que fixos na eternidade, enquanto a lâmina lhe trespassava o coração. Escapou-lhe um último sopro da boca
aberta e tombou no braço de Aleutian enquanto morria. A própria Nastiya ficou momentaneamente petrificada com a brutalidade daquele ato.
Contudo, a sua preocupação principal já não era salvar a vida de Vicky, mas a lâmina na mão de Aleutian. A navalha dava-lhe o controlo da situação.
Percebera, pela forma como ele manejara a arma, que era um lutador muito hábil, provavelmente o mais perigoso que alguma vez defrontara. E ele tinha consciência
de quão destro era, exibindo uma autoconfiança absoluta. Estava a divertir-se. Tornava-se claro que o odor do sangue e o fedor dos intestinos rasgados que enchiam
o quarto o excitavam. Nastiya sabia que o tinha subestimado e corria agora um enorme perigo.
Estava desarmada, descalça e vestida com roupas que lhe restringiam os movimentos. A cama no centro do quarto exíguo tornava-o ainda mais minúsculo. O seu estilo
particular de luta exigia espaço para poder manobrar, recuar, fintar. Precisava, sobretudo, de espaço para se manter longe daquela navalha.
Aleutian chegara obviamente às mesmas conclusões e moveu-se com rapidez para lhe limitar ainda mais os movimentos. Continuando a agarrar o corpo de Vicky à sua frente
como um escudo, tentou encurralar Nastiya num dos cantos da divisão. Mas ela conseguiu afastar-se, esquivando-se pelo lado esquerdo, para longe da lâmina.
Antes que ele pudesse girar o escudo humano para a bloquear, Nastiya retomara a sua posição junto à entrada do quarto. As ombreiras de ambos os lados da porta protegiam-lhe
os flancos.
Voltou a encará-lo e pôs-se de cócoras, em posição de combate, de mãos erguidas e rígidas como lâminas de machado, cruzadas ao nível dos pulsos. - Uau! Andaste a
ver os filmes de Kung Fu do Jackie Chan, ó loiraça - troçou ele, erguendo Vicky até ficar com as pernas a baloiçar, antes de se lançar contra Nastiya. Estava a tentar
forçá-la a recuar para o corredor, onde teria mais facilidade em a atacar.
Nastiya viu ali a sua oportunidade: os pés dele eram visíveis por baixo das pernas baloiçantes de Vicky. Em vez de retroceder, correu para ele. Uma fração de segundo
antes de colidirem, lançou-se de pés esticados à sua frente, por baixo das pernas de Vicky, e desferiu o seu coice de mula preferido. Ambos os pés aterraram com
enorme força contra o tornozelo esquerdo de Aleutian, exatamente o ponto que ela pretendia atingir.
Ouviu o osso e a cartilagem da perna dele quebrarem com um estalido seco. Sentiu-se percorrida por uma onda de triunfo, pois tinha a certeza de que ele se estatelaria
no chão, e teria então a sua oportunidade para lhe tirar a navalha.
Aleutian grunhiu de dor, mas manteve-se de pé, para grande desalento dela. Nastiya fez um salto mortal à retaguarda e aterrou de pé, virando-se de imediato para
o enfrentar de novo. No entanto, antes que pudesse recuperar o equilíbrio por completo, ele usou Vicky como um aríete e lançou o corpo inerte contra Nastiya, com
tal força que a projetou para trás através da entrada. Embateu com violência na parede do corredor.
Aleutian avançou para ela. Coxeava apoiado no tornozelo ferido, mas, ainda assim, movia-se com uma rapidez surpreendente. Continuava a segurar no corpo mutilado
de Vicky à sua frente. Obrigou Nastiya a recuar contra a parede do corredor e desferiu-lhe uma navalhada contra o rosto, por cima do ombro de Vicky. Nastiya agarrou-lhe
no pulso, mas estava escorregadio devido ao sangue e ele conseguiu libertar a mão, sem largar a navalha. Nastiya estava encurralada contra a parede e ele não parava
de a atacar com o corpo de Vicky, restringindo-lhe os movimentos e impedindo-a de recuperar o equilíbrio. A cabeça de Vicky rolava livremente sobre os ombros. Tinha
os olhos vidrados e sem vida.
Aleutian voltou a tentar esfacelar-lhe a cara, mas Nastiya esquivou-se, baixando-se sob a lâmina, e perdeu-o de vista por um segundo. Ele largou o corpo de Vicky
e Nastiya perdeu esse escudo que lhe protegia a metade inferior do corpo. Com a rapidez de uma víbora, Aleutian tentou atingir-lhe a barriga. Nastiya contorceu-se
violentamente para o lado para fugir à investida. mas o corpo que jazia sobre os seus pés inibia-lhe os movimentos. Sentiu a picada do aço quando a lâmina lhe abriu
um comprido corte superficial na anca. Tentou transpor o corpo de Vicky de um salto e ganhar espaço antes que ele pudesse atacá-la outra vez, mas ficou com o tornozelo
preso naquela espécie de corda formada pelos intestinos de Vicky e tropeçou. Caiu sobre um dos joelhos e ergueu a mão para deter o golpe de navalha que seguramente
se abateria sobre si, mas Aleutian agarrou-a pelo pulso e arrastou-a de cara contra o soalho. Forçou um dos joelhos contra a nuca dela para a imobilizar enquanto
se apressava a reajustar a lâmina na mão. Depois obrigou-a a pôr-se de joelhos e ajoelhou-se por trás dela, sujeitando-a com um golpe de gravata com uma única mão.
Apertou-lhe a laringe com força suficiente para a impedir de gritar.
- Não és nada má a lutar, loiraça - elogiou-a. - Sabes usar bem o corpo numa luta. - Respirava pesadamente enquanto se ria. - E agora, vais-me poder mostrar como
és boa na velha e célebre foda à canzana.
Nesse preciso momento, a porta do apartamento foi arrancada das dobradiças e Hector e Paddy irromperam pelo corredor. Detiveram-se assim que depararam com aquela
cena.
Aleutian levantou-se, sem largar o pescoço de Nastiya. Enfrentou-os, usando o corpo dela como escudo. - Não se mexam - avisou-os. - Se tentarem aproximar-se, esta
tipa morre.
Segurava a navalha contra o pescoço de Nastiya, com a ponta da lâmina pressionada sob a orelha. Viu a pistola que Hector empunhava com ambas as mãos, tendo adotado
a clássica postura de cócoras dos atiradores: equilibrado sobre a parte dianteira dos pés. com a pistola apontada à testa de Aleutian.
Aleutian baixou a cabeça e escudou-se atrás do corpo de Nastiya de modo a oferecer um alvo mínimo. Começou a baloiçar a cabeça de um lado para o outro como uma cobra
para frustrar a pontaria de Hector.
- Seja bem-vindo, senhor Cross. É um enorme prazer voltar a vê-lo. Por favor, aceite as minhas condolências pela perda recente
sua encantadora mulher - disse. Foi como se um obturador se fechasse sobre os olhos de Hector
e a sua visão se incandescesse de vermelho com a intensidade da fúria. Quase perdeu o controlo.
A sua mente estava novamente a operar como um computador, calculando a distância e o ponto de mira. Os pontos de mira da pistola estavam configurados para disparar
quase quatro centímetros acima do enfiamento da arma, a uma distância de vinte e cinco metros. O alvo visado estava a uma distância de oito ou talvez nove metros.
Teria de compensar a trajetória de ascensão da bala.
Aleutian não parava de se mover, permitindo-lhe apenas vislumbres intermitentes da sua cabeça.
- Tu consegues abatê-lo, Heck - murmurou Paddy quando se acocorou atrás do ombro de Hector. As suas palavras foram quase inaudíveis.
Os lábios de Hector retesaram-se numa linha rígida; sabia que as hipóteses de lograr o tiro sem ferir Nastiya eram quase nulas.
- Podemos fazer um acordo, senhor Cross - disse Aleutian. - Sei que tem um carro lá fora. De outro modo, não teria conseguido chegar aqui tão depressa. Dê-me as
chaves e entrego-lhe esta rata loira. Parece-lhe uma troca justa?
As mãos de Hector não vacilaram. - Quem te contratou para matares a minha mulher? - perguntou-lhe.
- Não é esse o nosso acordo, senhor Cross. - É o único acordo possível, Aleutian. - Veja só o que fiz à sua amiguinha Victoria. Ficou sem as orelhas e sem as tripas.
Por favor, não me irrite.
Os olhos de Hector nem por um momento se desviaram na direção do corpo mutilado de Vicky. - Quero o nome - insistiu. - E eu quero continuar a viver. Nada de nomes.
- Posso esperar - disse Hector.
- Não creio - disse Aleutian. - Veja só isto. - Moveu a navalha por trás das costas de Nastiya e encostou a ponta ao trícípite exposto, trespassando-lhe depois lentamente
o braço com a lâmina comprida. O rosto de Nastiya contorceu-se de dor quando a ponta surgiu na parte frontal do bíceps.
- Estou bem, Hector - disse ela, mas a voz era rouca e os olhos denunciavam a sua agonia.
- Mas que valentona! - disse Aleutian, reconhecendo-lhe o estoicismo enquanto arrancava a lâmina. - A seguir é a perna - Espetou-lhe a navalha na coxa. Quando a
retirou, o sangue escuro brotou da ferida e pingou no soalho.
- Mata-o, Heck - urgiu Paddy. - A Hazel! - Com estas duas palavras, Hector justificou a sua relutância em disparar.
- Já não podes salvar a Hazel, mas podes salvar a Nazzy. Mata-o, por favor. - Paddy suplicava-lhe agora, e Hector nunca o tinha ouvido implorar antes. Mas Paddy
também nunca tinha sido obrigado a assistir, impotente, enquanto a mulher que adorava era cortada em pedaços.
Hector sabia que tinha de disparar. Também sabia que seria o tiro mais difícil que alguma vez disparara, e quais as consequências se falhasse.
No entanto, a pistola nas suas mãos era uma arma muito especial. Dave Imbiss tinha persuadido um mestre armeiro do exército a configurá-la segundo especificações
muito precisas. Primeiro, o armeiro obliterara os números de série, para eliminar qualquer registo escrito que associasse a pistola a Hector. Tinha polido a câmara
à mão, de modo a acomodar as balas na perfeição e evitar possíveis encravamentos. Inserira o cano numa máquina secreta da Divisão de Atiradores de Elite do Ministério
da Defesa dos Estados Unidos que tornara as estrias e os sulcos absolutamente perfeitos. Os projéteis também faziam parte de um lote especial. A balística era perfeita:
cada bala giraria através do cano e voaria em direção ao alvo numa trajetória idêntica, sem oscilações nem flutuações e com um desvio quase nulo. Por fim, a tosca
mira de ferro tinha sido substituída por uma ótica topo de gama. O resultado final era uma precisão refinada a milésimos de centímetro. Hector passara tantas horas
a praticar no campo de tiro que a pistola era quase uma extensão do seu próprio corpo.
Ademais, Aleutian era um animal selvagem encurralado e prestes a entrar em pânico. Já não estava a pensar como o assassino implacável que na verdade era. Estava
a cometer um pequeno erro. Começava a baloiçar a cabeça de forma ritmada, movendo-a de um lado para o outro com a cadência de um metrónomo. Aleutian estava a expor
a Hector um olho e cerca de quatro centímetros do lado direito da cabeça, a intervalos de dois segundos. Hector teria de fazer passar a bala a meros milímetros da
face de Nastiya.
Inspirou funda e lentamente e depois exalou com a mesma lentidão. Alinhou-se com o espaço contra o qual previa disparar. Exercia uma pressão tão leve com o dedo
sobre o gatilho que bastaria uma pluma para fazer disparar a arma. A sua concentração era tão intensa que tudo lhe pareceu abrandar e imobilizar-se num silêncio
total. A pistola disparou quase de moto-próprio. Hector teve a impressão de que uma força para lá da sua própria volição fizera o disparo. Viu um caracol de cabelo
loiro de Nastiya ser arrancado pela bala e a orelha estremecer assim que captou a turbulência causada
pela passagem do projétil, e depois viu o olho direito de Aleutian explodir numa rajada de massa gelatinosa pálida quando a bala o trespassou. A parte posterior
do crânio rebentou. A matéria cinzenta do cérebro esparrinhou a parede do corredor e Aleutian tombou pesadamente de costas. Os calcanhares tamborilaram em espasmos
sobre o soalho.
- Temos de pôr já torniquetes nas feridas dela, mas não toques em nada no quarto que possa deixar impressões digitais! - gritou Hector a Paddy enquanto se lançava
em frente. Nastiya deu um passo na direção dele e caiu assim que a perna ferida lhe cedeu sob o peso do corpo. Paddy amparou-a e deitou-a delicadamente no chão.
Hector avançou com rapidez para o local onde Aleutian estivera especado. Não precisava de se preocupar demasiado com possíveis impressões digitais nos cartuchos
usados. As únicas impressões que deixara foram nas partes externas da arma. Tirou do bolso um lenço de algodão e limpou meticulosamente a pistola, usando depois
o lenço como uma luva. Aproximou-se do local onde o corpo de Aleutian jazia de costas. Reparara na forma como ele empunhara a navalha e sabia que era destro. Ajoelhou-se
ao lado do corpo, pegou-lhe na mão direita inerte para lhe envolver os dedos à volta do cabo e pressionou-os contra o aço azulado. Depois fez o mesmo com a mão esquerda
de Aleutian sobre o ferrolho. Deteve-se por uns segundos para lhe examinar a tatuagem do Maalek no pulso e esboçou um esgar de fúria. Ajoelhado atrás de Aleutian,
com um dos braços envolvendo-lhe as axilas, pôs-se de pé lentamente enquanto lhe erguia o corpo.
- Baixa a cabeça, Paddy - advertiu. - Vou disparar mais um tiro. - Forçou o dedo inerte de Aleutian a premir o gatilho. A pistola disparou e a bala cravou-se na
parede do corredor, ao lado da porta da entrada. Depois largou o corpo de Aleutian e deixou-o tombar no chão sob o próprio peso.
Manteve-se ali especado por alguns segundos enquanto inspecionava a cena. Os ângulos estavam corretos. A mão direita de Aleutian estava agora coberta de pólvora
queimada. A equipa de especialistas forenses da polícia obteria um resultado positivo quando aplicasse o teste de parafina. O corpo de Aleutian tombara de forma
natural, com a navalha que usara contra Vicky caída sob ele. Era tudo muito convincente.
Afastou-se do corpo e acocorou-se ao lado de Paddy enquanto este se ocupava da perna de Nastiya. Paddy tinha arrancado um pedaço do cordão da cortina da janela na
parede ao fundo do corredor. Atara-o à volta da coxa de Nastiya, por cima da ferida, e apertava-o agora com força. O cordão enterrou-se gradualmente na carne e o
sangue que brotava da ferida começou a estancar. Hector usou o lenço como um torniquete no braço dela.
- Salvaste-lhe a vida. Não sei como te agradecer, Heck. - Paddy falou sem erguer a cabeça.
- Então não agradeças! - disse Hector. - Consigo fazer melhor do que o meu estúpido marido - disse Nastiya a Hector. - Assim que me conseguir pôr de pé, vou dar-te
uma beijoca enorme. - Estava muito pálida e a voz soava rouca, mas estava a sorrir.
- Vou ver se cumpres a palavra - advertiu-a ele. - Porque é que puseste o Aleutian a disparar um segundo tiro =esmo depois de morto? - perguntou Paddy.
- Para lhe deixar pólvora queimada nas mãos e as impressões na pistola - explicou Hector. - O que é que a polícia vai pensar quando encontrar esta enorme confusão
que fizemos? - perguntou Nastiya.
- Só nos resta esperar que pensem que o Aleutian matou a Vicky à navalhada na sequência de um arrufo de namorados, e que depois se matou, por remorso e medo das
consequências.
- E precisou de dois tiros para o fazer? - perguntou Paddy, incrédulo. - Só se tivesse uma pontaria mesmo muito má.
- Os suicidas costumam disparar primeiro um tiro para o ar para verificarem se a arma está funcional e ganharem coragem antes de dispararem o tiro mortal - explicou
Hector. - Acho que eliminámos todos os nossos rastos. Não deixámos nada aqui que possa conduzir a polícia a nós. Vamos mas é daqui pra fora.
Nastiya não emitiu nenhum som quando Paddy pegou nela e a carregou para fora do apartamento. Hector levantou-se e voltou para junto do local onde Vicky Vusamazulu
jazia. Mesmo para alguém como ele, habituado à morte em todas as suas versões mais hediondas, esta mutilação era doentia. Prestou-lhe alguns segundos de silêncio
respeitoso.
Era uma miúda parva. Mas não merecia acabar desta forma. Depois acercou-se de Aleutian e manteve-se especado sobre ele, de mãos enfiadas no bolso e olhos fixos na
cabeça despedaçada do assassino. O olho incólume parecia mirá-lo. Sentiu-se assaltado por ondas alternadas de raiva e desânimo. Raiva por aquilo que aquele homem
fizera a Hazel; desânimo pelo facto de a morte dele ter eliminado a única pista que poderia tê-lo conduzido ao covil da derradeira Besta.
Sabia agora que aquilo que o esperava era a verdadeira mãe de todos os becos sem saída. Virou costas e seguiu atrás de Paddy, em direção ao local onde deixara o
Q-car. A rua estava deserta.
Hector abriu a porta do condutor e enfiou-se atrás do volante. Paddy estava sentado no banco traseiro, abraçado a Nastiya, que continuava em silêncio e pálida. Hector
arrancou sem embalar o motor. Quando passaram pelos portões dos Jardins Botânicos. Hector voltou a falar.
- Bem, parece que tivemos sorte outra vez. Conseguimos escapar ilesos, à exceção da Nazzy. Estás a aguentar-te, czarina?
- Já estive pior, mas também já estive bem melhor - disse ela. - Para onde vamos?
- Vamos ver um homem que eu e o Paddy conhecemos bem - disse-lhe Hector enquanto estendia o iPhone por cima do ombro. - Toma lá o meu telemóvel, Paddy. Tens aí o
número do Doc Hogan na lista de contactos. Diz-lhe que estamos a caminho. Que dentro de hora e meia estamos lá.
Doc Hogan servira no Corpo Médico do Exército Real e tinha sido destacado para o regimento do SAE, o Serviço Aéreo Especial, no qual Hector prestara comissão. Quando
se aposentara instalara-se na quinta da família em Hampshire. No entanto, por trás da fachada de aristocrata rural, continuava a praticar medicina, embora de forma
oficiosa e em segredo. A sua especialidade era o tratamento de traumatismos. A sua reduzida e seleta lista de pacientes era composta por velhos amigos e camaradas
do exército que tinham sofrido contratempos menores como engravidar a mulher de outro homem ou serem esfaqueados, ou encontrarem-se descuidadamente na trajetória
de uma bala.
Paddy e Nastiya permaneceram durante dez dias como convidados de Doc Hogan, até ele lhes permitir apanharem o voo de regresso a Abu Zara no jato da Bannock Oil para
ela completar a convalescença.
As mortes de Aleutian e de Vicky Vusamazulu pouco interesse público despertaram. O incidente foi reportado como um ato de violência doméstica nas últimas páginas
de um boletim informativo local, mas nunca chegou aos canais noticiosos nem às emissões radiofónicas nacionais.
45
Agatha tinha aceitado a proposta de Hector de um emprego permanente e era agora a sua principal assistente pessoal, mas os seus poderes de persuasão tinham sido
postos à prova para a convencer a aceitar um aumento salarial.
"Não sei o que fazer com tanto dinheiro, senhor Cross." "Você é uma mulher inteligente, Agatha. Alguma ideia lhe ocorrerá", assegurara-lhe. "Mas vou precisar de
si em Abu Zara, para me ajudar com os negócios e com a Catherine Cayla. Talvez possamos regressar a Londres assim que o Fundo Fiduciário vender a casa de Belgravia
e arranjarmos outra residência."
Para além do facto de ela ser uma secretária muito dedicada e experiente, era também a maior perita mundial sobre o período da vida de Hazel antes de Hector casar
com ela. Dia após dia, Hector envolvia-a cada vez mais na pesquisa que estava a desenvolver sobre os registos acumulados por Hazel, para tentar identificar o inimigo
oculto no passado dela. Nesse sentido, os conselhos experientes de Agatha eram inestimáveis
Foi durante uma dessas longas conversas investigativas sobre a identidade do assassino que Agatha o lembrou da existência do enteado de Henry Bannock, o filho da
mulher que precedera Hazel nessa função. Chamava-se Carl e Henry a princípio acolhera-o de braços abertos na sua família. Providenciara-lhe a melhor educação e,
quando ele saiu da universidade, ofereceu-lhe um cargo muito bem remunerado na Bannock Oil. No entanto, a relação entre ambos rompera-se na sequência de um terrível
escândalo no seio da família que afetara Henry Bannock profundamente.
- Que escândalo foi esse, Agatha? - perguntou-lhe Hector. - Ouvi uns rumores quando comecei a trabalhar para a Bannock Oil. Mas nunca vim a saber de nenhum pormenor.
- Pouquíssimas pessoas sabiam. Foi muito antes do meu tempo. Mas só sei que o senhor Bannock tinha uma enorme vergonha de todo aquele sucedido. Nunca permitia que
ninguém falasse disso na casa dos Bannocks. Não havia nenhuma referência a isso nos seus registos pessoais; deve tê-los expurgado todos. Era como se aquilo nunca
tivesse acontecido. Ouvi dizer que o Carl Bannock foi libertado da prisão após cumprir uma sentença longa. Mas depois.. simplesmente desapareceu, até que o senhor
Bannock faleceu e a Hazel assumiu o cargo dele como diretora executiva. Depois, voltou a aparecer do nada e começou a importunar a Hazel. Não sei o que ele pretendia,
mas acho que estava a tentar chantageá-la. Acho que a obrigou a pagar-lhe uma enorme quantia de dinheiro. porque ele voltou a desaparecer de repente e nunca mais
ouvi falar dele. A Hazel chegou alguma vez a falar-lhe dele?
- Nunca. Nunca lhe perguntei e ela também nunca me falou dele. Eu sabia que havia um enorme segredo obscuro na família. mas nunca quis remexer em coisas antigas
e dolorosas associadas ao Henry Bannock, pois ela venerava-o - admitiu Hector. - Era como se esse sujeito, o Carl, nunca tivesse existido.
- De qualquer forma, não estou a ver como é que o Carl poderia estar implicado no homicídio da Hazel. Que ganharia ele ao matá-la, ou mandá-la matar? Já lhe tinha
conseguido sacar todo o dinheiro que podia.
- Também não consigo ver nenhum motivo, para além do simples desejo de vingança. Mas se a Hazel lhe tinha dado dinheiro para lhe comprar o silêncio, como você sugere,
por que razão voltaria ele após todos estes anos para a matar? Concordo que não faz sentido. Acho que devemos procurar o assassino dela noutro lugar qualquer. Mas
sem nunca nos esquecermos desse senhor Carl Bannock, embora o nome dele se encontre bem no fundo da lista de possíveis suspeitos.
46
Quando voltaram a instalar-se em Seascape Mansions, Hector e Agatha começaram a elaborar uma lista de possíveis vilãos, mas houvera tantas pessoas hostis na vida
de Hazel que a lista se alongou até atingir proporções que a tornavam impossível de gerir. Hector não podia viajar de um lado para o outro pelo globo para seguir
cada indício e eliminar da lista cada possível culpado. Por conseguinte, Agatha teve de procurar um conceituado detetive privado em cada um dos países por onde os
antigos inimigos de Hazel se encontravam atualmente dispersos. Hector contratou-os para efetuarem buscas nos seus países. Só quando o relatório de um desses detetives
contratados parecia relevante e promissor é que Hector viajava de jato para seguir o rasto de sangue pessoalmente.
Uma dessas viagens teve como destino a Colômbia, para investigar um famigerado barão da cocaína e do petróleo que outrora fizera negócios com a Bannock Oil, negócios
esses que tinham terminado em recriminações e raiva mútuas. Agatha recordava-se que o Senhor Bartolo Julio Alvarez chegara a proferir ameaças de morte e que se referia
em público a Hazel Bannock como uma Yanqui putain de bordel de merde. Para Hector, o sentido destas palavras era obscuro, mas Agatha explicou-lhe de bom grado que
significava algo como "uma senhora americana de virtude fácil que exerce o seu ofício numa casa de má reputação que foi erigida com excrementos."
- Que palavras pouco lisonjeiras - comentou Hector. - Acho que será melhor eu ir lá trocar uma palavrinha com ele.
Quando Hector chegou a Bogotá, descobriu que perdera, por uma semana, a oportunidade de assistir ao funeral do Señor Alvarez. Tinha sido despachado rumo à sua recompensa
celestial por seis tiros de uma submetralhadora Scorpion SA Vz. 61, disparados a uma distância de sessenta centímetros contra a parte posterior do crânio por um
guarda-costas da sua confiança que, segundo parecia, transferira recentemente a sua lealdade para o cabecilha de um cartel de cocaína rival.
Quando Hector regressou a Abu Zara, foi mais afortunado.
Nastiya já tinha recuperado o suficiente dos ferimentos para poder acompanhar Paddy ao aeroporto para recolher Hector.
- Nem imaginas o que aconteceu - disse-lhe Nastiya enquanto se abraçavam.
- Seja o que for, só pode ser coisa boa - respondeu Hector. - Estás a sorrir como uma idiota.
- A Catherine Cayla já sabe gatinhar! - Ela quê? - Já gatinha! Tu sabes, de mãos e joelhos no chão. Se continuar a este ritmo, estará apta a participar nos próximos
Jogos Olímpicos - disse Nastiya com orgulho.
- Parabéns, Heck! - Paddy riu-se. - Obrigado, Padraig. Pelos vistos, a minha filhinha é uma bebé prodígio. - Falou numa voz inchada de orgulho. - Tenho de ver isso
com os meus próprios olhos.
- O teu comité de receção espera ansiosamente pela tua chegada em Seascape Mansions. Aviso-te desde já que os preparativos foram bastante demorados - disse Paddy.
Subiram no elevador privado e, quando as portas se abriram, todo o pessoal doméstico estava alinhado no átrio, por baixo de uma rebuscada faixa pendurada de parede
a parede, com os seguintes dizeres numa brilhante tinta dourada: BEM-VINDO A CASA, PAPÁ! Ao fundo do átrio encontravam-se as fileiras dos empregados domésticos.
Os chefs envergavam impecáveis jaquetas brancas com os tradicionais chapéus altos. Os membros menos qualificados do pessoal doméstico vestiam uniformes lavados e
recém-engomados e as criadas usavam aventais brancos de folhos por cima das fardas azul-marinho. À frente deles perfilavam-se os operacionais de segurança nos seus
uniformes de gala, cintos de fivelas reluzentes e botas impecavelmente engraxadas. Na primeira fila estavam as três amas. Bonnie destacava-se no centro, segurando
Catherine Cayla-Bannock nos braços.
Catherine estava vestida com um babygro cor-de-rosa bordado e algumas melenas do seu macio cabelo loiro tinham sido unidas para segurar um enorme laço, também cor-de-rosa.
O grupo desatou a aplaudir assim que Hector saiu do elevador. Catherine girou a cabecita, olhando para todos com espanto, e depois os seus olhos fixaram-se em Hector
quando ele se aproximou. Hector reparou que os olhos dela tinham mudado de cor. Exibiam agora uma tonalidade azul mais carregada e mais brilhante. Eram os olhos
de Hazel. O seu olhar era constante e focado e Hector deu-se conta de que ela estava a vê-lo, possivelmente pela primeira vez. Hector parou à frente dela e a bebé
enfiou os pequenos polegares na boca, fixando-se nele com um olhar sério.
- És tão linda - disse-lhe. - És tão linda como a tua mãe.
- Estendeu os braços para ela e sorriu. - Posso pegar em ti, posso?
Sabia que ela ainda era demasiado pequena para se lembrar dele ou o reconhecer. Tinham-lhe dito que isso só aconteceria quando ela fizesse um ano. Mas continuou
a sorrir-lhe e a olhá-la nos olhos.
Viu os pensamentos dela aflorarem à superfície como belos peixinhos num fundo lago azul. De repente, ela imitou-lhe o sorriso e estendeu os bracinhos para ele, inclinando-se
para a frente nos braços de Bonnie e agitando-se com tal vigor que a ama quase a deixou cair. Pro diabo com os especialistas!, pensou ele com grande alegria. Ela
reconhece-me mesmo!
Pegou nela e Catherine sentou-se direita na curva do braço dele. Era leve e macia e cheirava a leite. Beijou-lhe o cocuruto e ela disse claramente: - Ba! Ba!
- Queremos dizer "papá" - traduziu Bonnie. - Temos estado a trabalhar nisto, mas é uma palavra muito difícil para nós.
Hector levou Catherine para o quarto de criança e as três amas seguiram-no em grupo. Deitou-a no centro do soalho e afastou-se para junto da porta.
- Muito bem, minha coisinha linda - disse-lhe. - Quero ver-te gatinhar. - Bateu as mãos. - Anda cá, Cathy. Anda aqui ao Ba-Ba, minha filhinha!
A bebé rolou até ficar de barriga, apoiou-se nas mãos e nos joelhos e lançou-se para ele num gatinhar veloz. Quando o alcançou. agarrou-se com ambas as mãos a uma
das pernas das calças dele e tentou levantar-se. Caiu para trás sobre o traseiro protegido pela fralda e as três amas irromperam em gritinhos excitados:
- Viram aquilo? - Ela tentou erguer-se nas duas perninhas! - Ela nunca fez isto antes! Era a hora de a alimentar e Hector fez a sua parte, dando-lhe colheradas de
papa de carne de frango e abóbora. A maior parte da papa acabava por lhe escorrer da boca para o queixo, sujando-lhe o babete e a parte da frente da camisa de Hector.
Enquanto ela engolia a última colherada, os seus olhos fecharam-se, o queixo tombou-lhe sobre o peito e adormeceu prontamente na cadeirinha.
Hector exercitou-se no ginásio durante duas horas enquanto Catherine dormia a sesta; depois calçou as sapatilhas de correr, pegou no marsúpio e foi buscar a bebé.
Quando Catherine viu o marsúpio, agitou as perninhas e emitiu sons de contentamento.
Hector correu ao longo da marginal quase deserta, seguido a uma distância discreta por dois dos melhores homens de Dave Imbiss. Hector cantarolou para a bebé e fez-lhe
caretas que a punham a rir. Catherine explorou a cara dele. Enfiava os dedos rechonchudos e rosados na boca dele para ver de onde vinham aqueles sons estranhos e
tentava imitá-los. Soprou bolinhas de saliva e deu gargalhadas.
A bebé mitigava-lhe a solidão. Já não lhe doía tanto quando pensava em Hazel.
Mas muito em breve teria de voltar a Londres.
47
Contra todas as expectativas, o agente imobiliário tinha encontrado um comprador para a casa de Belgravia. Em nome dos mandatários do Fundo Fiduciário, Ronnie Bunter
pedira a Hector que supervisionasse a transação. Por conseguinte, teria de estar presente quando a empresa de mudanças transportasse o conteúdo da enorme casa. O
comprador era um magnata indiano da indústria do aço. Ia oferecê-la a um dos seus filhos como prenda de casamento. Hector conseguiu vender-lhe a maior parte do mobiliário
da grandiosa mansão. Enviou para a Sotheby's as antiguidades e as obras de arte que Hazel acumulara, para serem vendidas em leilão, e sentiu um alívio quase físico
quando a última das furgonetas das mudanças, sobrecarregada, arrancou pela rampa da entrada.
O astuto agente imobiliário tinha uma lista de doze possíveis substitutos para o nº 11 de Belgravia. Levou Hector numa visita guiada. A terceira hipótese da lista
era uma encantadora casa de cavalariça em Mayfair. Tinha sido completamente renovada e a pintura ainda mal secara nas paredes. Incluía todas as divisões de uso comum,
quatro suítes espaçosas, garagem subterrânea com capacidade para três veículos e alojamento na cave para cinco empregados domésticos. Hector demorou quarenta e cinco
minutos a tomar a decisão de a comprar.
Enquanto assinava os documentos de aquisição do nº 4 de Lowndes Mews, em Mayfair, escolhera já um nome para a nova casa que partilharia com Catherine: "The Cross
Roads". A nova residência ocupava uma área de superfície cerca de vinte por cento superior à da mansão de Belgravia.
Contratou a sua habitual firma de designers de interiores e deu-lhes um prazo-limite de seis semanas para terem a propriedade completamente mobilada e pronta a habitar.
Começou a sentir, por fim, que tinha conseguido deixar o passado para trás e que estava pronto para recomeçar a viver a sua própria vida.
Nota de Rodapé: "The Cross Roads": trata-se, obviamente de uma referência ao apelido "Cross", e a expressão pode ser traduzida como "as estradas/ os caminhos dos
Cross", mas também como "as encruzilhadas".
Fim da Nota.48
O julgamento no principal tribunal criminal de Londres dos dois delinquentes que tinham incendiado e destruído Brandon Hall iria decorrer algumas semanas mais tarde.
Durou seis dias.
Entre os três, Nastiya, Paddy e Hector passaram dois desses dias no banco das testemunhas, e os seus depoimentos, juntamente com o de Paul Stowe, o couteiro-mor,
foram esmagadores.
O júri voltou das suas deliberações apenas duas horas e meia depois, com o veredito de "culpados de todas as acusações".
Quando a lista das condenações anteriores foi lida em voz alta, o juiz decidiu aplicar aos acusados a pena máxima prevista por lei. Condenou cada um deles a vinte
e dois anos de prisão e ordenou que cumprissem um mínimo de dezanove anos das suas penas.
Tinham tentado matar Catherine Cayla pelas chamas e Hector só se sentiu parcialmente aplacado pela severidade da sentença. Consolou-se com a ideia de que, dada a
abolição da pena de morte no Reino Unido, era a punição máxima que as brandas leis atuais permitiam.
49
Quando os três regressaram a Abu Zara no jato, Paul Stowe acompanhou-os a convite de Hector. Já não precisava de um couteiro-mor em Brandon Hall, mas, como Paul
era um elemento demasiado válido para o perder, Hector arranjou-lhe um novo emprego na Cross Bow Security.
Hector pôde dedicar-se a Catherine e a seguir o rasto de registos escritos que esperava que o conduzissem ao misterioso assassino.
No entanto, as dúvidas começavam a acumular-se nos recantos da sua mente. A lista de suspeitos estava a reduzir-se rapidamente à medida que recebia os relatórios
negativos dos seus agentes no terreno. Começou a ser assaltado por uma sensação de impotência e incapacidade, dois sentimentos aos quais não estava habituado.
Tentou combater estas mudanças de humor por via de pesado exercício físico e passando horas no campo de tiro. Também pôde contar com a distração de viajar para os
Estados Unidos para participar na assembleia geral anual da Bannock Oil, Inc., da qual continuava a ser um dos diretores.
Depois, os seus designers de interiores em Londres informaram-no de que tinham concluído a decoração da casa The Cross Roads em Lowndes Mews com apenas cinco dias
de atraso em relação ao prazo-limite que ele estipulara.
Foi com alívio que regressou ao bulício e à agitação de Londres.
50
O decorador de interiores e dois dos seus assistentes mostraram a Hector a casa The Cross Roads. Nenhum detalhe fora descurado. A paleta de cores dominante que Hector
escolhera era de azuis e amarelos claros, com tons de castanho para contrabalançar. Era um ambiente acolhedor, funcional e masculino.
A sua equipa de empregados domésticos, cuidadosamente selecionados entre o seu pessoal da casa de Belgravia e de Brandon Hall, já se instalara nos seus alojamentos.
Cynthia, a chef, estava na cozinha, ocupada com as suas panelas e tachos.
Dois novos automóveis de carroçarias imaculadas, um Bentley Continental e um Range Rover, estavam estacionados na garagem subterrânea.
O bar e a adega estavam abastecidos com os seus vinhos e licores preferidos.
No seu estúdio, a iluminação era agradável aos olhos e tinha o computador ligado à rede.
A suíte principal era uma obra de arte, com uma cama gigantesca, preparada com os seus edredões de seda favoritos. Havia uma reluzente casa de banho masculina de
azulejos brancos, contígua a uma casa de banho feminina de um rosa suave, equipada, evidentemente, com um bidé. Os seus fatos e camisas tinham sido passados a ferro
e estavam pendurados no principal quarto de vestir. Os seus sapatos estavam guardados nas prateleiras, engraxados na perfeição.
Do outro lado do corredor ficava a suíte de criança de Catherine Antes de se mudar, Hector chamara Dave Imbiss de Abu Zara com a sua caixa de engenhos eletrónicos.
Dave varreu a casa a pente fino, desde a cave até ao telhado do sótão, e anunciou que estava livre de escutas ou de quaisquer outros dispositivos de vigia.
Hector decidira que, de futuro, viveria entre The Cross Roads. em Londres, e Seascape Mansions, em Abu Zara, passando dez dias alternados em cada um desses lugares.
Desse modo, poderia deleitar-se tanto com a agitação da metrópole como com a tranquilidade do reino do deserto.
Na primeira noite que passou em The Cross Roads, convidou três dos seus velhos companheiros de armas dos tempos da sua comissão no Serviço Aéreo Especial, e as respetivas
mulheres, para jantarem com ele. Foi uma noite de ameno convívio e só caiu na cama bastante depois da meia-noite.
51
Na manhã seguinte, quando saía do duche, o seu telemóvel tocou. Secou a mão direita na toalha, sacudiu a água do cabelo molhado e agarrou no telemóvel pousado no
lavatório.
- Cross! - atendeu, contrariado. Ainda lhe doía um pouco a cabeça da diversão da noite anterior.
- Oh, espero não estar a incomodá-lo, senhor Cross - disse uma voz feminina.
- Jo? - perguntou ele numa voz hesitante. - Jo Stanley, não é? Ou deveria tratá-la por menina Stanley? - Sabia que era ela, claro. Há quase um ano que os acordes
musicais daquela voz lhe ecoavam suavemente nos remansos da memória.
- Jo soa-me melhor do que a sua segunda hipótese, Hector. - Que grande surpresa. Onde está? Não estará em Inglaterra por algum estranho acaso?
- Sim, estou em Londres. Cheguei ontem à noite, bastante tarde.
- Está no Ritz, como da outra vez? - Não, Santo Deus! - Hector sorriu ao ouvir aquela expressão. Era tão antiquada. - Não me posso dar ao luxo desse tipo de extravagância.
- Pode, sim, se depois enviar a conta ao Ronnie Bunter - sugeriu.
- Já não trabalho mais para o senhor Bunter - disse ela, apanhando-o de surpresa.
- Então para quem trabalha agora? - Para usar um eufemismo muito batido, neste momento estou em fase de transição profissional. - Voltou a surpreendê-lo.
- E o que a traz a Londres? - Vim vê-lo, Hector. - Não posso acreditar nisso. Porquê eu? - É complicado. Além do mais, há formas melhores e mais seguras de discutirmos
isto do que ao telemóvel.
- Na sua casa ou na minha? - perguntou ele, e ela voltou a rir-se. Era um som que agradava a Hector.
- Seria um atrevimento se lhe dissesse na sua? - Nunca chegaríamos a nenhum lado se nunca nos atrevêssemos. Onde a posso encontrar? Onde está hospedada?
- Num hotelzinho bastante simpático e com um nome também simpático, mesmo ao fundo de Chelsea Green.
- Qual é o nome? - Chama-se My Hotel. - Muito bem, sei qual é. Apanho-a aí na entrada principal dentro de quarenta e cinco minutos. Vou num... - Num Bentley prateado,
com a matrícula CRO 55, correto - Um palpite quase acertado, menina Stanley - riu-se. - Mas essa era a minha lata velha. A nova carripana é preta. Mas a matrícula
continua a ser a mesma.
- Santo Deus! Só os anjos conseguem perceber a fixação dos homens pelos carros.
52
Jo estava especada à entrada do hotel. Vestia calças de ganga e um anoraque ligeiro, de cor azul, por cima de uma camisola de gola alta de malha branca em cabo trançado,
e segurava uma pasta de couro. Tinha mudado de penteado e usava agora o cabelo preso num puxo e com franjas. Ficava-lhe ainda melhor, pois dava a impressão de lhe
alongar mais o pescoço, fazendo-o parecer-se com o de um cisne. Tinha-se esquecido de como ela era alta e realmente elegante, mesmo em calças de ganga.
Quando lhe abriu a porta do lugar do passageiro, Jo enfiou-se no banco e apertou o cinto antes de se virar para ele.
- Não preciso de lhe perguntar como tem passado. Está com muito bom aspeto, Hector.
- Obrigado. E a Jo também está com excelente aspeto. Bem-vinda a Londres.
- Como está a Catherine Cayla? - Agora tocou no meu ponto fraco. Podia falar dela o dia todo. A Catherine Cayla é para lá de maravilhosa.
- Esqueça as minudências e conte-me as coisas importantes. - Tem olhos azuis e já sabe gatinhar. Até consegue dizer papá, só que o pronuncia como "Ba Ba", o que
prova, para lá de qualquer dúvida, que ela é um prodígio.
- Acha que alguma vez terei a oportunidade de a conhecer? - Ora aí está uma ideia magnífica.
Depois de estacionarem no pátio no exterior de The Cross Roads, Hector pegou na pasta dela e acompanhou-a ao vestíbulo da entrada. Jo olhou à sua volta, para a ampla
escadaria circular e para as portas abertas da sala de estar.
- Que acolhedor - comentou num tom aprovador. - Muito acolhedor. Ótimo gosto, Hector. Aquilo ali é um Paul Gauguin autêntico? - Indicou a enorme pintura a óleo na
parede ao fundo da sala de estar. - Antes fosse! A Hazel mandou fazer cópias de toda a sua coleção de arte para poder guardar os originais num depósito seguro sem
precisar de pagar um seguro exorbitante. Deve-se lembrar de que os originais pertenciam todos ao Fundo Fiduciário. Conserve: esta cópia em memória da Hazel. - Ficou
surpreendido ao constatar a facilidade com que agora conseguia falar de Hazel, com prazer e não com dor.
Pousou a pasta dela e ajudou-a a tirar o anoraque. Especado ao lado dela, recordou-se do seu perfume quando se tinham conhecido: Chanel Nº 22 - perfeito para ela.
- Se lhe parecer bem, podemos trabalhar no meu estúdio. Suponho que viemos aqui para trabalhar e não para nos pormos a admirar as minhas falsas obras-primas, não
é?
Ela riu-se baixinho. - Supôs bem. - Gostou da forma como ele admitiu prontamente que alguns dos seus quadros eram cópias. Era a confirmação daquilo que já suspeitava
quando o conhecera: Hector era um homem direto e sincero, sem arrogância nem presunção. Um homem no qual uma mulher podia confiar, e do qual os homens maus faziam
bem em afastar-se.
Hector tomou-lhe o cotovelo para a ajudar a subir as escadas. O estúdio exibia uma atmosfera muito masculina. Mas ela nunca esperara uma coleção tão grande de livros.
O soalho estava coberto com tapetes persas de cores e padrões agradáveis. A escrivaninha de teca esculpida dominava a divisão espaçosa. Na parede do fundo estava
pendurado um retrato a óleo de Hazel, especada num campo de trigo dourado e segurando na mão um chapéu de palha de aba larga. Com a outra mão protegia os olhos do
sol e estava a rir. O cabelo era de um dourado mais escuro que o trigo e esvoaçava ao vento. Jo baixou o olhar; sentiu uma estranha emoção que não conseguia definir.
Não sabia se era inveja ou admiração, ou compaixão.
Hector pousou a pasta dela na comprida e antiga mesa de Biblioteca e deu uma palmadinha na poltrona de couro capitoné. - É o assento mais confortável aqui no estúdio.
- Obrigada - disse ela. Mas, em vez de se sentar de imediato, deambulou ao longo das estantes enquanto examinava a coleção dele. - Quer alguma coisa para beber ou
comer? - perguntou-lhe. - Estou mortinha por tomar uma chávena de café. - A morte não é para aqui chamada - disse, acercando-se da máquina de café Nespresso escondida
atrás de um antigo biombo chinês no canto. - Nunca deixo que sejam os outros a prepararem-me o café - explicou. - Nem sequer a minha chef Cynthia.
Jo sentou-se por fim na poltrona que Hector lhe indicara e ele colocou as chávenas em cima da mesa ao lado dela. Sentou-se na sua própria poltrona atrás da escrivaninha.
- Temos assuntos muito delicados a discutir. Podemos fazê-lo aqui em segurança? - perguntou ela baixinho.
- Não precisa de se preocupar, Jo. Pedi a uma pessoa da minha absoluta confiança que fizesse uma revista minuciosa a toda a casa.
- Peço desculpa por ter perguntado. Sei que você é um profissional, Hector. - Ele inclinou a cabeça num gesto de aceitação da desculpa e ela prosseguiu: - Vim durante
toda a viagem sobre o Atlântico a pensar na melhor forma de lhe explicar tudo isto. Decidi que a única maneira era começar pelo princípio.
- Parece-me ser a solução mais lógica - concordou. - É por isso mesmo que vou começar pelo fim. - Agora que penso nisso, também me parece muito lógico,
mas só para quem é mulher, claro.
Ela não fez caso do sarcasmo. A sua expressão começou a alterar-se. O entusiasmo e a desenvoltura esmoreceram. Os olhos encantadores encheram-se de sombras.
Hector desejou desesperadamente ajudá-la, mas apercebeu-se de que a melhor forma de o fazer era continuar em silêncio e ouvi-la. Ela falou por fim.
- O Ronald Bunter é um excelente advogado e um homem honesto e de princípios nobres. Mas, como principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock,
teve de enfrentar uma decisão terrível. Teve de decidir se deveria trair a sua ética profissional ou as vidas de inocentes confiados ao seu cuidado.
Calou-se e Hector percebeu, por um rasgo de intuição, que ela se vira confrontada com a mesma terrível decisão.
Ela suspirou, e foi um som pungente. Pousou a mão na pasta e disse: - Tenho aqui dentro uma cópia digital da escritura do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Roubei-a da firma de advogados à qual jurei fidelidade. O Ronald Bunter deu-me uma cópia das chaves e os códigos para eu poder entrar na casa-forte enquanto o edifício
estava deserto, e ajudou-me a não ser descoberta. Foi meu cúmplice. Só cometemos este ato depois de uma longa e profunda discussão e reflexão. Mas, no final, decidimos
que a justiça era mais importante que a estrita letra da lei. É algo quase inaceitável para um advogado. Ainda assim, quando terminei aquilo que me dispus a fazer,
senti que era meu dever, perante Deus e a minha própria consciência, demitir-me da firma cuja confiança tinha traído de forma tão lamentável.
Hector deu-se conta de que tinha estado a suster a respiração enquanto a ouvia. Soltou um suspiro longo e quase inaudível e disse: - Se pensa fazer isso por mim,
não posso permitir que o faça. É um sacrifício demasiado grande.
- Já o fiz - disse ela. - Agora já não posso voltar atrás. É demasiado tarde. Além do mais, foi a decisão mais correta. Por favor, não me tente convencer do contrário.
Encare isto como uma prenda para si e para a Catherine Cayla.
- Já que coloca as coisas nesses termos, não me resta outra opção senão aceitar. Obrigado, Jo. Verá que não somos nenhuns ingratos. - Eu sei que não. - Baixou o
olhar e fixou-o nas mãos enlaçadas no regaço. Quando voltou a olhar para ele, recuperara por completo o controlo das emoções.
- A escritura do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock redigiu é uma monstruosidade de trezentas páginas. Levaria uma eternidade a lê-la até ao fim, porque cairia
logo de sono a cada duas ou três páginas lidas.
Abriu a pasta e tirou duas pequenas pens. Sopesou-as na mão, como se estivesse relutante em lhas entregar.
- O que fiz foi preparar-lhe uma cópia digital da escritura original do Fundo Fiduciário. - Pousou uma das pens à frente dele na escrivaninha. - Depois, nesta segunda
pen, expus os antecedentes e a história que levaram à formação do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock criou, bem como a reação em cadeia que esse ato desencadeou
posteriormente. Com a cooperação total do Ronnie Bunter, acho que consegui organizar os factos numa espécie de ordem lógica e coerente e de leitura fácil. Suponho
que sempre existiu em mim uma forte ambição de um dia vir a ser escritora, porque dei por mim muito envolvida neste processo. - Sorriu de forma autodepreciativa.
- Seja como for, ofereço-lhe a minha primeira tentativa no campo da literatura. Não é nenhum romance, nem sequer uma novela, porque tudo aquilo que contém é factual.
Levantou-se e pousou a segunda pen ao lado da primeira à frente dele na escrivaninha. Hector agarrou nela e examinou-a com curiosidade. Jo voltou a sentar-se e observou-o.
Ele estendeu o braço sobre a escrivaninha e inseriu a pen no computador.
- Está em formato Word - disse Jo. - Está a abrir sem problemas - replicou ele. - Mas agora está a pedir uma palavra-passe.
- É sementeenvenenada7805 - disse ela. - Tudo em minúsculas e tudo junto.
- Já está. Aqui vamos. Está a abrir. - Leu em voz alta o título do cabeçalho do documento: - "Karl Pieter Kurtmeyer: A Semente Envenenada".
- Espero que ache o conteúdo mais interessante do que aquilo que o título dá a entender - disse Jo.
- Vou começar a ler já, mas parece-me que vai demorar umas horas, ou mesmo dias. Há alguma coisa que eu possa fazer para a entreter nesse entretanto? Gostaria de
ler um livro ou ver televisão, ou dar um passeio para ver as vistas ou ir às compras? Londres é uma cidade com muita diversão.
- Sinto-me exausta por causa do jetlag. - Ocultou o bocejo por trás da mão. - Não preguei olho durante aquela viagem horrível em classe turística. Já para não falar
da turbulência e da mulher obesa sentada ao meu lado que não parava de ressonar como uma leoa furiosa e transbordava do assento dela para o meu. Não consegui pregar
olho.
- Coitada! - Levantou-se. - Não se preocupe. O problema resolve-se facilmente. Siga-me. - Levou-a para a suíte de hóspedes.
Quando ela reparou na cama, sorriu. - Já vi campos de polo mais pequenos do que isto.
Ficou também impressionada com a casa de banho. Hector levou-a de volta para o quarto principal e disse-lhe: - Os roupões estão no guarda-roupa. Escolha o que quiser,
depois feche a porta e diga adeus a este mundo cruel durante o tempo que achar necessário.
Voltou para o estúdio. Sentou-se à frente do computador e começou a ler a primeira página de "A Semente Envenenada".
Aquelas que impusera aos homens, mulheres e crianças judeus no campo de concentração.
Marlene Imelda deu por si viúva na tenra idade dos vinte e um anos.
Quando o património de Heinrich foi avaliado para fins fiscais, descobriu-se que tinha outro vício secreto, bastante diferente do de chacinar judeus indefesos: fora
um apostador compulsivo. Contrariamente àquilo que a maior parte das pessoas de Dusseldórfia acreditava, Heinrich não era um homem abastado. Tinha dilapidado a sua
fortuna. Marlene Imelda e o filho de tenra idade ficaram quase na miséria.
No entanto, ela era jovem, bela e expedita. Sabia onde o dinheiro estava. Emigrou para os Estados Unidos da América e, poucos meses após a sua chegada, já tinha
arranjado emprego como secretária assistente de uma emergente companhia de exploração petrolífera sediada em Houston.
O fundador e proprietário da companhia era um homem chamado Henry Bannock. Era uma personagem bem-parecida, exuberante e impressionante. No aspeto, fazia lembrar
John Wayne, com um toque de Burt Lancaster. Na sua juventude, tinha pilotado caças de combate F-86 Sabre na Coreia e foram-lhe creditados oficialmente seis abates.
Mais tarde, fundara no Alasca a sua própria companhia de voos chárter, à qual chamara Bannock Air. Fretara muitos voos para as grandes companhias de exploração petrolífera
e, no decurso dessas atividades comerciais, conhecera muitos executivos de topo, os quais o iniciaram nos segredos do ofício e lhe facilitaram a entrada no mundo
da exploração petrolífera. Pouco depois, tinha adquirido várias concessões de perfuração. Um pouco antes de Marlene Imelda ter ido trabalhar para a Bannock Oil,
Henry tinha comprado o seu primeiro campo de petróleo na Encosta Norte do Alasca, de modo que já era um multimilionário.
Marlene tinha vinte e poucos anos e era ainda mais bela do que fora aos dezanove anos, quando conhecera Heinrich. Sabia como agradar a um homem, tanto na cama como
fora dela. E agradou desmesuradamente a Henry Bannock. O facto de ela já ter um filho jovem tornava-a ainda mais desejável aos seus olhos.
Karl Pieter Kurtmeyer herdara a beleza da mãe. Era até ainda mais bem-parecido do que ela. Tinha cabelo loiro espesso, queixo saliente e uma pequena dobra epicântica
nas pálpebras que lhe conferia um ar misterioso e pensativo. Esta imperfeição menor parecia realçar-lhe a perfeição dos outros traços faciais.
Karl era inteligente e eloquente. Mesmo naquela tenra idade, já falava espanhol, francês, alemão e inglês. As suas notas na escola eram invariavelmente excelentes.
Henry ficava impressionado com pessoas bem-parecidas que também eram inteligentes e dóceis. Karl tinha todos estes atributos, à semelhança da mãe.
Quando Henry Bannock casou com Marlene Imelda, adotou Karl formalmente e mudou-lhe o nome para Carl Peter Bannock, abandonando assim a grafia teutónica dos seus
nomes de batismo. Graças aos seus contactos, Henry conseguiu inscrever Carl na Escola Primária de St. Michael, uma das escolas privadas mais prestigiadas do Estado
do Texas. Carl brilhou aí. Foi sempre um dos três melhores alunos da turma e fazia parte das equipas de futebol americano e de basquetebol da escola.
Em casa, Marlene Imelda demonstrou que Henry não era infértil, como proclamavam os rumores dos seus muitos inimigos. Pouco depois do casamento, deu à luz uma menina
com três quilos e dezoito gramas. Tal como a mãe, Sacha Jean era uma beldade excecional. Também era uma criança doce e sensível, com dotes musicais. Começou a aprender
piano aos três anos, e aos sete já conseguia executar mesmo as composições mais tecnicamente exigentes do repertório clássico padrão, como o Concerto para Piano
nº 3 de Rachmaninov. Adorava o seu irmão Carl.
Sacha tinha quase nove anos de idade quando Carl a forçou a ter sexo com penetração completa. Andara a prepará-la para esse efeito ao longo dos seis meses anteriores,
convencendo-a a acariciar-lhe os genitais quando estavam sozinhos. Carl tinha treze anos e tivera um desenvolvimento sexual precoce. Ensinou Sacha a manusear-lhe
o pénis, segurando-o na mão e movendo-o para trás e para a frente até ele ejacular. Carl era paciente e amável com ela, dizendo-lhe o quanto a amava e que ela era
esperta e bonita e lhe agradava imenso. Na sua inocência, Sacha via naqueles jogos um precioso segredo entre os dois, e ela gostava imenso de segredos.
O local preferido de Carl para ter relações íntimas com ela eram os vestiários da piscina, nos jardins de cinco hectares da residência da família. A melhor altura
era quando o pai se ausentava em negócios no Alasca e a mãe se retirava para repousar após o almoço. Marlene adquirira o hábito de tomar três ou mais cocktails de
gim e lima à hora do almoço e os passos vacilavam-lhe quando se levantava da mesa e se retirava para o quarto. Era nessa altura que Carl levava Sacha para a piscina.
Da primeira vez que Carl ejaculou dentro da boca dela, Sacha foi completamente apanhada de surpresa. Ficou enojada com o sabor do esperma e chorou, dizendo-lhe que
já não queria brincar mais com ele. Carl deu-lhe um beijo e disse que não fazia mal se ela já não o amava, mas que ele continuava a amá-la. No entanto não se comportava
como se ainda a amasse. Nas semanas seguintes, mostrou-se muito distante e dizia-lhe coisas maldosas e odiosas. No final, foi ela própria quem acabou por sugerir
que deviam ir nadar juntos após o almoço. Não tardou a habituar-se ao sabor. Mas depois, às vezes ele forçava o pénis demasiado fundo na sua garganta e à noite ela
chorava durante o sono. A única coisa que importava era que o irmão voltara a amá-la.
Certa tarde, Carl obrigou-a a tirar as cuecas. Sentou-se no banco à frente dela e tocou-lhe nos genitais. Sacha fechou os olhos e tentou não estremecer e esquivar-se
quando ele lhe enfiou o dedo. No final, ele levantou-se e ejaculou em cima da barriga dela. Depois, disse-lhe que ela estava nojenta e que devia limpar-se e não
contar a ninguém. E levantou-se sem lhe dirigir mais nenhuma palavra.
Sacha não quis jantar nessa noite. A mãe deu-lhe duas colheres de óleo de rícino e não a deixou ir à escola no dia seguinte.
Três semanas antes da festa do seu nono aniversário, Carl entrou no quarto de Sacha quando a casa estava em silêncio. Tirou as calças do pijama e enfiou-se na cama
com ela. Quando a penetrou, foi tão doloroso que ela gritou, mas ninguém a ouviu.
Depois de ele voltar para o seu próprio quarto, Sacha descobriu que estava a sangrar. Sentou-se na sanita, a ouvir o sangue pingar na água. Sentia demasiada vergonha
de si mesma para chamar a mãe. De qualquer modo, sabia que a mãe estava trancada no quarto e que nunca lhe abriria a porta, por mais que ela batesse ou implorasse.
Pouco depois, a hemorragia parou e Sacha enfiou a camisa de noite entre as pernas. Avançou a coxear até ao fundo do corredor e tirou um lençol lavado do armário
da roupa de cama para substituir o que estava manchado de sangue. Depois, seguiu de modos furtivos para a cozinha vazia, onde enfiou o pijama e o lençol sujos num
saco do lixo que depois depositou no caixote do lixo.
No dia seguinte, verificou que toda a gente na escola a olhava fixamente. Costumava ser uma das melhores alunas a matemática, mas nesse dia não conseguiu encontrar
a solução para nenhuma das questões do teste. A professora chamou-a no final da aula e repreendeu-a pelo seu fraco desempenho.
"Que se passa contigo, Sacha?" Atirou a folha do teste para cima da secretária à sua frente. "Isto nem parece nada teu."
Sacha não foi capaz de responder. Voltou para casa e roubou uma das lâminas de barbear da casa de banho do pai. Foi para a sua própria casa de banho e cortou ambos
os pulsos. Uma das criadas viu o sangue escorrer por baixo da porta e correu aos gritos para a cozinha.
Os outros criados arrombaram a porta e depararam com ela. Chamaram uma ambulância. Os cortes que ela infligira nos pulsos não eram suficientemente fundos para porem
a sua vida em risco.
Marlene manteve-a em casa e não a deixou ir à escola durante três semanas. Quando Sacha regressou às aulas, disse à sua professora de música que nunca mais voltaria
a tocar piano. Recusou-se a participar no sarau musical que estava programado para a sexta-feira seguinte. Alguns dias mais tarde, cortou todo o cabelo com um par
de tesouras e esfacelou a cara com as unhas até fazer sangue, pois convencera-se de que tinha a pele coberta de pústulas de acne. Os seus traços faciais tornaram-se
macilentos e os seus modos, furtivos e nervosos. Os olhos pareciam assombrados. Deixara de ser bonita. Carl disse-lhe que era feia e que já não queria brincar mais
com ela.
Um mês depois, Sacha fugiu de casa. A polícia encontrou-a oito dias mais tarde, em Albuquerque, no Novo México, e levou-a para casa. Poucos meses depois, voltou
a fugir. Dessa vez, conseguiu chegar à Califórnia antes que a polícia a encontrasse.
Quando a obrigaram a voltar às aulas, ateou fogo às salas de música. As chamas destruíram toda essa ala da escola, com danos que ascenderam a vários milhões de dólares.
Após um prolongado e minucioso exame médico, Sacha foi enviada para o Hospital Psiquiátrico de Nine Elms, em Pasadena, onde iniciou um demorado e complicado programa
de tratamento e reabilitação. Nem uma única vez alguém suspeitou que ela tivesse sofrido qualquer tipo de abuso. Parecia que a própria Sacha expurgara por completo
esses incidentes da memória.
Começou a ganhar peso com rapidez. Num espaço de seis meses, o seu corpo ficou disforme e tornou-se clinicamente obesa. Usava sempre o cabelo cortado muito rente.
Os olhos tornaram-se mortiços e estupidificados e roía as unhas até ao sabugo, ao ponto de as extremidades dos dedos se deformarem e parecerem tocos. Chuchava no
polegar de modo quase contínuo. Tornou-se cada vez mais nervosa e muito agressiva. Atacava as enfermeiras e outros pacientes à mínima provocação. Mostrava, em particular
um antagonismo violento contra qualquer enfermeira que tentasse questioná-la acerca do seu relacionamento com a família. Sofria de insónias e começou a ter episódios
de sonambulismo.
Quando a família foi autorizada a visitá-la pela primeira vez desde que fora internada, Sacha mostrou-se soturna e fechada. Respondia às perguntas dos pais com grunhidos
animalescos e monossílabos resmoneados. Não reconheceu o irmão que outrora tanto amara.
- Não vais dizer olá ao Carl Peter, querida? - repreendeu-a a mãe num tom gentil. Sacha desviou os olhos.
- Mas ele é teu irmão, querida Sacha - insistiu Marlene. Sacha revelou uma pequena centelha de agitação. - Não tenho nenhum irmão - disse, usando uma frase completa
pela primeira vez, mas sem em momento algum levantar o olhar do chão. - Não quero ter nenhum irmão.
Henry Bannock levantou-se ao ouvir isto e disse à sua mulher: - Esperamos por ti no parque de estacionamento. Parece que eu e o Carl fazemos mais mal do que bem
ao virmos aqui. - Fez sinal a Carl com a cabeça. - Vamos lá, meu rapaz. Vamos embora daqui.
Henry abominava presenciar qualquer tipo de miséria e sofrimento, sobretudo quando se relacionavam pessoalmente com ele.
Limitava-se a fechar a mente a isso, dissociava-se dessas realidades e afastava-se. Nem ele nem Carl Peter voltariam a Nine Elms.
Marlene, por sua vez, nunca faltou a uma visita à filha. Todos os domingos de manhã, o motorista fazia o trajeto de cento e cinquenta quilómetros até Pasadena, onde
ela passava o resto do dia a tagarelar com a filha calada e retraída. Numa dessa visitas, levou uma cassete de concertos de piano de Rachmaninov para pôr a tocar
num gravador portátil, na esperança de que isso pudesse voltar a despertar-lhe os talentos musicais.
Aos primeiros compassos do primeiro andamento de abertura do Concerto n°. 3 em ré menor, Sacha levantou-se de um salto, agarrou no gravador e atirou-o contra a parede
com uma fúria louca. O aparelho despedaçou-se. Sacha lançou-se ao chão, encolheu-se na posição fetal, enfiou o polegar na boca e começou a bater ritmicamente a cabeça
contra o chão. Foi a última vez que Marlene tentou intervir no tratamento dela.
A partir desse incidente, limitou-se a ler poesia a Sacha ou a debitar-lhe um relato detalhado dos acontecimentos triviais da semana anterior. Sacha permanecia em
silêncio e completamente fechada sobre si própria. Fixava a parede, baloiçando-se para trás e para a frente na cadeira como se fosse um cavalo de baloiço.
Meses mais tarde, Marlene Imelda descobriu que estava novamente grávida. Aguardou até que o seu ginecologista lhe confirmasse o sexo da criança; depois, na visita
seguinte a Nine Elms, confidenciou a Sacha: - Sacha, minha querida. Tenho uma notícia maravilhosa para ti. Estou grávida e vais ter uma irmãzinha.
Sacha virou a cabeça e olhou Marlene nos olhos pela primeira vez durante essa visita. - Uma irmã? Vou ter uma irmã? De certeza que não é um rapaz? - perguntou numa
voz clara e com lucidez.
- Sim, querida. Uma irmãzinha para ti. Não é maravilhoso? - Sim! Quero muito ter uma irmã. Mas não quero ter um irmão. - Que nome achas que lhe devíamos pôr? Qual
é o nome de que gostas mais?
- Bryoni Lee! Adoro esse nome. - Conheces alguém com esse nome? - Havia uma rapariga na escola que era a minha melhor amiga. - Sorriu. - Mas o pai dela arranjou
um novo trabalho e mudaram-se para Chicago. - Estava animada e falava como uma criança normal da sua idade.
Semana após semana, continuaram a falar da bebé, e, semana após semana, Sacha fazia-lhe as mesmas perguntas, sempre pela mesma ordem. E ria-se com as respostas da
mãe.
Um dia, no final do oitavo mês de gestação, Sacha sentou-se ao lado da mãe durante toda a duração da visita e Marlene segurou-lhe a mão contra a barriga. Quando
a bebé se mexeu sob a sua palma pela primeira vez, Sacha soltou gritinhos de excitação, tão alto que a enfermeira de serviço entrou a correr na sala de visitas.
- Mas que é que se passa, Sacha? - perguntou. - A minha irmãzinha! Anda cá sentir como ela se mexe. Marlene levou Bryoni Lee a visitar Sacha pela primeira vez quando
ela tinha três meses de idade. Sacha teve permissão para pegar na irmãzinha e sentou-se com ela no colo durante toda a visita, arrulhando-lhe e rindo-se para ela
e fazendo perguntas à mãe sobre ela.
Após essa primeira visita com Bryoni, Marlene nunca faltou a nenhuma das visitas semanais e Sacha pôde acompanhar o crescimento de Bryoni. Os seus terapeutas reconheceram
o efeito benéfico que a bebé estava a exercer sobre ela e encorajaram ativamente esse relacionamento.
E assim os anos foram passando.
54
Bryoni Lee tornou-se uma criança adorável. Era franzina e delicada, com traços faciais miudinhos e cativantes olhos escuros. O rosto em forma de coração era vivaz
e expressivo. As pessoas sentiam-se naturalmente atraídas por ela e sorriam-lhe sempre que a viam. Tinha uma voz encantadora. Os pés pareciam ter sido concebidos
para dançar. No entanto, era uma criança determinada e segura de si.
Bryoni Lee destacava-se por natureza própria das demais crianças. À semelhança do pai, Henry Bannock, era uma líder e uma organizadora nata. Assumia sem esforço
o controlo em qualquer grupo de miúdos e mesmo os rapazes mais velhos submetiam-se prontamente à sua vontade.
Henry precisou de algum tempo para se habituar a ter em casa uma criança que não conseguia dominar por completo, até porque se tratava de uma descendente sua disposta
a fazer-lhe frente. Henry tinha uma opinião muito firme sobre as diferenças entre os géneros e sobre os papéis e relações entre pais e filhos e entre homens e mulheres.
A questão da igualdade não figurava na sua lista.
Bryoni Lee deleitava-o pelo facto de ser inteligente e uma criança exemplar, mas também o alarmava quando lhe dava uma resposta torta e discutia com ele. Henry era
acometido de ataques de fúria contra ela. Gritava-lhe e ameaçava-a com castigos corporais. Certa vez chegou mesmo a cumprir essa ameaça. Arrancou o cinto das calças
e bateu-lhe na parte de trás das pernas desnudas. Causou-lhe um vergão vermelho, mas ela manteve-se firme e recusou-se a chorar.
- Não devias fazer isso, papá - disse-lhe num tom sério. - Tu mesmo me disseste que um cavalheiro nunca bate numa senhora.
Henry tinha abatido caças comunistas na Coreia e pregara sustos de morte a operadores de sondas e outros operários matulões e durões que trabalhavam nas suas plataformas
petrolíferas, mas agora transigia perante uma rapariguinha de oito anos.
- Perdoa-me - disse-lhe enquanto enfiava o cinto nas presilhas das calças. - Tens razão. Não devia ter feito isso. Não voltarei a fazê-lo. Prometo-te. Mas tens de
aprender a prestar atenção ao que te digo, Bryoni Lee!
Por seu turno, passou a ouvir o que ela tinha para dizer, uma cortesia que raramente dispensara a qualquer outra mulher. E descobriu, para sua grande surpresa, que
muitas das vezes Bryoni Lee tinha razão no que dizia.
55
O ano do décimo aniversário de Bryoni Lee foi memorável na família Bannock. Em maio, Henry inaugurou o seu primeiro poço de petróleo ao largo da costa. A capitalização
bolsista da Bannock Oil alcançou os dez mil milhões de dólares. E comprou o seu próprio jato privado, um Gulfstream V, que ele próprio costumava pilotar. Nesse mesmo
mês, a família Bannock mudou-se para a sua nova residência em Forest Drive. Concebida por Andrew Moorcroft, da firma de arquitetos Moorcroft & Haye, erguia-se em
seis hectares de parques e continha oito suítes. Foi-lhe outorgado o Prémio de Melhor Casa pelo Instituto Americano de Arquitetos.
Carl Peter Bannock diplomou-se com distinção pela Universidade de Princeton e em junho começou a trabalhar na sede social da Bannock Oil, em Houston.
Em julho, Henry Bannock pediu ao seu velho amigo e advogado Ronnie Bunter para criar o Fundo Fiduciário da Família Henry
Bannock, a fim de proteger a sua família imediata de quaisquer danos e adversidades para o resto das suas vidas. Estudaram e analisaram penosamente o enunciado e
as cláusulas, até que, em agosto, Henry assinou por fim a escritura.
Ronald Bunter conservou o documento original na casa-forte da firma e Henry guardou a única cópia existente na sua própria casa-forte em Forest Drive.
Em agosto desse mesmo ano, os médicos do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms disseram a Henry e a Marlene que Sacha Jean nunca estaria em condições de viver fora
de uma instituição e que permaneceria internada para o resto da vida. Henry não fez nenhum comentário e Marlene trancou-se na sua nova e sumptuosa suíte com uma
garrafa de gim Bombay Sapphire.
Em setembro, Marlene Imelda Bannock iniciou um tratamento de desintoxicação de três meses numa clínica de reabilitação para alcoólicos, em Houston.
Em outubro, Henry Bannock divorciou-se de Marlene Imelda Bannock e obteve a custódia total de ambas as filhas: Sacha e Bryoni. Carl já era um adulto, de modo que
o seu nome nunca chegou a figurar nos papéis do divórcio. Quando Marlene completou o programa de reabilitação, foi viver sozinha para as ilhas Caimão, numa magnífica
propriedade junto à praia, onde era servida por uma vasta equipa de empregados domésticos. Todas essas benesses resultavam de uma das disposições que constavam do
acordo de divórcio.
Nos finais de outubro, a Direção de Aviação Civil recusou-se a renovar o brevete de piloto comercial de Henry Bannock, pois este não tinha passado no exame médico.
- Mas que diabos está você para aí a dizer? - perguntou Henry em fúria ao médico que estava a fazer o exame. - Acabei de comprar um Gulfstream por doze milhões de
dólares. Não me pode retirar o brevete agora. Estou tão fisicamente capaz como quando pilotava os jatos Sabre lá na Coreia.
- Com todo o respeito, permita-me recordar-lhe, senhor Bannock, que isso já foi há cerca de duas décadas. Desde então. o senhor tem-se matado a trabalhar como um
mouro. Quando foi a última vez que tirou férias?
- Que raios tem isso que ver com a renovação do meu brevete Não tenho tempo para gozar férias.
- É exatamente aí onde quero chegar, senhor. Diga-me, quantos Havanas já fumou desde a guerra da Coreia? Quantas garrafas de Jack Daniel's já emborcou? Faz exercício
físico?
- Está a ser insolente, meu rapaz. - O rosto de Henry ficou vermelho. - Isso é um assunto que só a mim diz respeito.
- Peço desculpa. No entanto, devo dizer-lhe que sofre de caso crónico de fibrilação auricular.
- Não me venha com essa conversa técnica. Que diabos está você para aí a fibrilar e a disparatar?
- Estou a tentar dizer-lhe que o seu coração anda a dançar de um lado para o outro como o Gene Kelly sob o efeito de esteroides. Mas isso é só meia missa. A sua
tensão arterial subiu até lá acima ao espaço como o Neil Armstrong. Se eu fosse seu médico, punha-o já a tomar Coumadin10, senhor Bannock. - Graças a Deus que você
não é o meu médico. Sei bem o que é essa coisa do Coumadin. Sei que é usado como veneno de rato e que o sabor não tem nada que ver com o Jack Daniel's. Portanto,
pode pegar nele e enfiá-lo pelo traseiro acima, doutor Menzies. - Henry levantou-se e saiu a passo largo do consultório.
Mesmo sem brevete, Henry continuou a pilotar o seu adorado Gulfstream. Dispunha de dois pilotos comerciais muito bem pagos que o substituíam aos comandos quando
necessário.
No entanto, às vezes acordava às primeiras horas da madrugada com o coração a palpitar e a bater irregularmente no peito. Recusou-se a consultar outro médico. Não
queria que lhe lessem em voz alta a própria sentença de morte.
Ciente da advertência de que os seus dias estavam contados, trabalhou ainda mais arduamente. A ideia de desistir dos Havanas e do seu Jack Daniel's era intolerável,
de modo que a tirou da cabeça.
Em novembro, Bryoni Lee ganhou um concurso estadual de matemática, vencendo alunos três ou quatro anos mais velhos do que ela, e os seus colegas de classe escolheram-na
como a aluna com mais probabilidades de vir a ser bem-sucedida na vida e de se tornar presidenta dos Estados Unidos da América. Com a mãe ausente, a própria Bryoni
assumiu os deveres de visitar a irmã mais velha.
Todos os domingos, Bonzo Barnes, o motorista e guarda-costas de Henry, levava-a a Nine Elms para passar o dia com Sacha. Bonzo era um ex-pugilista de pesos-pesados.
À semelhança da maior parte das pessoas, adorava a jovem Bryoni. Deixava-a sentar-se a seu lado à frente e tagarelavam, felizes, durante o percurso de ida e volta
até Pasadena.

Nota de Rodapé: Medicamento anticoagulante, usado para prevenir e tratar trombos e êmbolos, causadores, respetivamente, de tromboses e embolias.
Fim da Nota.
Em dezembro desse mesmo ano, enquanto o pai se ausentara para Abu Zara para renovar as concessões petrolíferas da Bannock Oil, Carl Peter Bannock conseguiu por fim
decifrar as palavras-passe e os códigos de acesso à casa-forte de Henry Bannock. Tinha descoberto um sítio no terraço da piscina de onde podia espiar sub-repticiamente
o estúdio do pai. Certa manhã de sábado, espiou, através das lentes de um potente par de binóculos Zeiss com ampliação de 10x, Henry sentado à secretária e viu-o
levantar o forro de seda da agenda de couro preto. Depois viu-o tirar de debaixo do forro um dos cartões de visita que tinha escondido aí.
No reverso do cartão via-se uma longa série de letras e números, escrita na caligrafia larga e firme de Henry. Viu o pai atravessar a divisão até à porta do cofre
pessoal. Depois viu-o consultar o que estava escrito no cartão e começar a rodar o disco da fechadura para trás e para a frente enquanto inseria a combinação e,
em seguida, viu-o girar a roda de bloqueio no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, abrindo depois a porta sólida e pesada.
Carl teve de esperar várias semanas até Henry partir de viagem. mas depois teve dez dias e dez noites para se dedicar ao seu plano.
Na primeira noite, após muitas tentativas frustradas, conseguiu dar conta das complicadas sequências de desativação do mecanismo de bloqueio e abrir a porta de aço
de acesso ao cofre.
Na noite seguinte, fotografou o interior do cofre e a disposição do conteúdo. Antes de se atrever a mexer no que quer que fosse. queria ter a certeza de conseguir
repor tudo exatamente na posição original. Sabia que o pai se aperceberia de imediato de qualquer alteração. Calçou luvas cirúrgicas de todas as vezes, para evitar
deixar impressões digitais em qualquer um dos itens do conteúdo do cofre, e prestava uma atenção minuciosa a todos os pormenores.
Na terceira noite, pôde começar a explorar o conteúdo do cofre. Os lingotes de ouro estavam empilhados numa área do chão onde o seu peso era suportado pelos alicerces
de aço e betão. Calculou que estivessem ali cerca de cinquenta ou sessenta milhões de dólares em ouro.
O comportamento de Henry sempre fora ditado por um peculiar misto de audácia temerária e cautela prudente. Aquele tesouro era o seu pequeno fundo de emergência.
Na seguinte fileira de prateleiras estavam as condecorações e as medalhas dos tempos de Henry na Força Aérea americana, bem como fotografias e recordações de significado
especial para ele. Nas prateleiras de aço por cima havia pastas de documentos e certificados de ações, obrigações, títulos de propriedade das numerosas propriedades
e concessões que Henry possuía em seu próprio nome. Os outros bens relevantes estavam em nome da Bannock Oil Corporation.
Na quarta prateleira a contar de cima, Carl encontrou aquilo que procurava realmente.
Já sabia da existência do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Enquanto ainda frequentava Princeton, tinha começado a intercetar os telefonemas do pai no quarto
e no estúdio. Tinha mesmo tentado aceder às linhas telefónicas privadas da sede da Bannock Oil, mas o cordão de segurança que protegia o Edifício Bannock era impenetrável.
Carl teve de se contentar em escutar na linha da principal suíte as numerosas conversas entre Henry e a sua ex-mulher e várias das suas amantes. Mas também fizera
transcrições dos telefonemas de Henry no estúdio no piso térreo, as quais incluíam várias conversas entre o pai e os seus parceiros de negócios e, mais importante
ainda, com os seus advogados.
Carl pudera, assim, acompanhar algumas das conversas entre Henry e Ronald Bunter, o principal advogado da família, enquanto elaboravam a escritura do Fundo Fiduciário.
Mas ficara apenas com uma vaga ideia do conteúdo exato e das cláusulas da escritura final.
E agora tinha descoberto a cópia que Henry possuía, um enorme tomo pousado a meio da quarta prateleira.
Mesmo assim, não se precipitou. Examinou minuciosamente o volume com uma lupa antes de o abrir. Marcou as páginas que Henry colara com minúsculas gotículas de cola.
Separou-as com enorme cuidado e voltou a colá-las assim que as leu.
Entre a página 30 e 31 encontrou o pelo que Henry aí colocara para detetar possíveis intrusos. Era um dos próprios pelos de Henry, crespo e encaracolado, que ele
arrancara de uma das suíças. Carl guardou-o num envelope branco e recolocou-o depois entre as páginas quando acabou de ler o documento.
Devido a todas estas precauções preliminares, restaram a Carl três noites seguidas para estudar a escritura do novo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock antes
de o pai regressar do Médio Oriente. Aquilo que leu conferiu-lhe uma exaltante sensação da sua própria supremacia. A escritura do Fundo Fiduciário outorgava-lhe
poderes quase divinos. Estava armado contra o mundo e escudado por milhares de milhões de dólares. Era invencível.
56
Sacha Jean regredira de forma gradual ao longo do tempo, até à idade mental equivalente à de uma criança de cinco ou seis anos. O seu mundo encolhera à medida que
o seu cérebro asfixiava sem estímulos e se encerrava. Já não reconhecia ninguém, à exceção das enfermeiras de meia-idade, que tinham sido particularmente amáveis
com ela, e da sua irmã Bryoni.
Quando a enfermeira que cuidava dela chegou à idade da reforma, o mundo de Sacha, já de si limitado, voltou a reduzir-se. Tornou-se então pateticamente dependente
de Bryoni.
Quando o clima o permitia, ambas passavam os domingos nos jardins de Nine Elms. Com o passar dos anos, os médicos foram-se apercebendo de que Bryoni era responsável
e não hesitavam em deixar Sacha entregue ao seu cuidado durante todo o dia da visita.
Sacha tinha agora vinte e poucos anos e era obesa. Era muito mais alta do que a irmã, mas Bryoni agia como uma mãe e levava-a pela mão para o local preferido dela
junto ao lago, onde faziam um piquenique e atiravam migalhas aos patos. Sacha já não conseguia concentrar-se o suficiente para ler sozinha, mas adorava cantigas
infantis. Bryoni trauteava-lhas. Jogavam à macaca, às imitações e às escondidas. Bryoni tinha uma paciência infinita. Dava de comer a Sacha o almoço que trouxera
de casa e limpava-lhe a cara e as mãos quando acabava de comer. Levava-a à casa de banho e ajudava-a a limpar-se e a ajeitar a roupa quando terminava.
Sacha adorava especialmente que lhe fizessem cócegas nas costas. Gostava de tirar a blusa e deitar-se de barriga em cima da manta para que Bryoni lhe fizesse cócegas.
Sempre que a irmã parava. punha-se a gritar: "Mais! Mais!"
Certo domingo, Bryoni estava a fazer-lhe cócegas quando Sacha disse numa voz bastante clara: - Se ele alguma vez te quiser tocar na pombinha, não o deixes.
Bryoni parou de repente de lhe fazer cócegas e pensou naquilo que a irmã acabara de dizer. "Pombinha" era a palavra infantil que ambas usavam para referir a vagina.
- O que é que disseste, Sash? - perguntou numa voz cuidadosa. - Quando?
- Agora mesmo. - Eu nunca disse nada - negou Sacha. - Disseste, sim. - Nunca disse. Nunca disse nada. - Sacha já estava a ficar agitada e nervosa. Bryoni conhecia
os sintomas. De seguida, iria encolher o corpo na posição fetal e começar a chuchar o polegar ou a bater com a cabeça no chão.
- Fui eu que me enganei, Sash. Claro que não disseste nada. Sacha descontraiu-se e começou a falar do seu cachorrinho. Queria o seu cãozinho de volta. No seu último
aniversário, a mãe dera-lhe um cachorrinho, mas Sacha adorava tanto o animal que o apertara com demasiada força e acabara por o asfixiar. Tiveram de lhe dizer que
o cão estava a dormir para conseguirem arrancar-lhe o cadáver das mãos. Pedia sempre a Bryoni para lho trazer de volta. Mas os médicos não permitiam que Sacha tivesse
outro animal de estimação.
O domingo seguinte foi um dia límpido e soalheiro e as duas fizeram um piquenique no local habitual, junto à borda do lago. Sacha não gostava que as coisas mudassem.
As mudanças deixavam-na nervosa e insegura. Quando acabaram de almoçar, Sacha pediu: - Faz-me cócegas nas costas.
- Quais são as palavras mágicas? - perguntou-lhe Bryoni. Sacha pensou, de testa franzida em concentração, mas acabou por desistir. - Esqueci-me de quais são. Diz-me
tu.
- Tens que dizer "por favor", não te lembras?
- Sim. Sim. É "por favor" - Sacha bateu as mãos de alegria.
- Por favor, Bryoni. Faz-me cócegas nas costas, por favor. - Tirou a blusa e estendeu-se sobre a manta. Pouco depois, Bryoni pensou que ela tinha adormecido, mas
de repente Sacha disse: - Se o deixares tocar-te na pombinha, ele enfia-te a coisa dura dele dentro e faz-te deitar sangue. Bryoni ficou petrificada. As palavras
chocaram-na, ao ponto de a fazerem sentir-se agoniada. No entanto, fingiu não ter ouvido e continuou a afagar as costas da irmã. Pouco depois, começou a trautear
uma canção infantil. Sacha tentou acompanhá-la, mas baralhou as palavras e ambas desataram às gargalhadas.
De seguida, Sacha disse: - Se ele te enfiar a coisa dele na tua pombinha, depois fica a doer muito e a deitar sangue. - Repetir as mesmas coisas vezes sem conta
era um truque que a sua mente danificada lhe pregava. - Está na hora de eu ir, Sash - disse Bryoni por fim. - Oh, não! Por favor, fica mais um pouquinho. Fico muito
assustada e triste quando tu vais embora e me deixas sozinha.
- Volto cá no próximo domingo. - Prometes? - Sim, prometo.
57
No domingo seguinte, Bryoni levou um gravador que tinha tomado de empréstimo do estúdio do pai.
Ambas caminharam de mãos dadas até à borda do lago. Bryoni levava a manta e o cesto de piquenique. Quando chegaram ao seu local favorito, Sacha estendeu a manta,
certificando-se de que não ficara com dobras nem pregas. Estender a manta era da sua responsabilidade e era muito conscienciosa e orgulhosa da sua capacidade de
a estender na perfeição. Enquanto a irmã concentrava toda a sua atenção na manta, Bryoni tirou o gravador do bolso das calças de ganga, ligou-o e guardou-o no bolso
sem que Sacha se apercebesse.
O dia seguiu o seu padrão habitual: atiraram migalhas aos patos e falaram do cachorrinho de Sacha, que estava com a sua mãe cadela no céu. Almoçaram e Bryoni levou
Sacha à casa de banho. Voltaram para junto do lago e deitaram-se na manta. Sacha pediu-lhe que lhe fizesse cócegas nas costas e Bryoni obrigou-a a pedir "por favorDepois,
enquanto lhe fazia cócegas, começou a trautear uma canção infantil, a qual desencadeou toda uma associação de ideias na mente estropiada de Sacha, como Bryoni esperava
que acontecesse.
De repente, Sacha disse: - Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar-me dentro da boca. Tinha um sabor horrível
Bryoni estremeceu, mas continuou a cantarolar baixinho. Dessa vez, Sacha parecia estar serena e continuou a divagar.
- Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito.
Voltou a calar-se e Bryoni continuou a trautear baixinho e num tom tranquilizador. De repente, Sacha soergueu-se e exclamou: - Já me lembro! Chamava-se Carl Peter
e era mesmo meu irmão. Mas depois ele foi embora. Todos eles foram embora. A minha mamã e o meu papá; todos eles foram embora e deixaram-me sozinha. A não ser tu,
Bryoni.
- Nunca te vou deixar, Sash. Ficaremos juntas para sempre, como as irmãs devem ficar. - Sacha acalmou-se e voltou a deitar-se de barriga para baixo. Bryoni recomeçou
a afagá-la e a cantar baixinho. De repente, Sacha falou alto, num tom de voz mais parecido com a idade que tinha realmente e não na voz da criança de cinco anos
em que se tornara.
- Sim, já me lembro que foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela
coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque
o Carl me tinha dito para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?
- Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas.
- Promete que nunca me vais deixar, Bryoni. - Prometo-te que nunca te vou deixar, minha querida Sash.
58
Nessa noite de domingo, quando Bryoni regressou a casa após a visita a Nine Elms, o novo Ford Mustang de Carl estava estacionado no caminho de acesso. Quando ela
entrou em casa, Carl descia a correr a escadaria principal. Estava de fato e gravata. Os sapatos brilhavam e o cabelo alisado reluzia de gel.
- Olá, Bree! - cumprimentou-a. - Como está a nossa irmã maluquinha? Ainda continua a brincar com as fadas?
- A Sacha está muito bem. É uma rapariga muito doce e encantadora. - Bryoni não conseguia olhar para o rosto do irmão, aquele rosto arrogante e presunçoso.
Carl depressa perdeu o interesse por saber novidades de Sacha. Só mencionara o nome dela para irritar Bryoni. Deteve-se à frente do espelho de corpo inteiro na base
das escadas e ajustou o nó da gravata. Depois tirou o pente do bolso e voltou a ajeitar cuidadosamente os poucos fios de cabelo que estavam fora do lugar. - Um grande
encontro esta noite. A miúda tem andado a suspirar por mim há já um mês ou mais. E hoje vai ser a noite de sorte dela. Que tal estou, Bree? - Virou-se para ela e
abriu os braços. - Tcharam! Tcharam! O sonho de qualquer mulher, hã?
Bryoni parou à frente dele e forçou-se a olhar-lhe o rosto. Muitas das suas amigas diziam que ele era o homem mais bonito que já tinham visto. Apercebeu-se de que
o odiava. Era um suíno sádico. doentio e pervertido.
- Sabes, Carl, é a primeira vez que reparo que o teu olho direito
é maior que o esquerdo - disse. Consternado, ele virou-se para o espelho. Bryoni desatou a correr pelas escadas acima em direção ao seu quarto. Sabia que ele iria
ficar angustiado durante semanas por causa do tamanho relativo dos seus olhos, e ficou contente.
Henry tinha-se ausentado da cidade. Viajara no seu novo jato para um qualquer pequeno e estranho país no Médio Oriente chamado Abu Zara e só regressaria dentro de
dois dias, aproximadamente. Estava sozinha naquela casa enorme. Ligou para a cozinha e perguntou a Cookie se podia comer com os outros empregados na sala de jantar
do pessoal doméstico, em vez de ficar sozinha na velha e enorme sala de jantar. Cookie ficou deliciada. Todos adoravam Bryoni.
- Fiz tarte de maçã especialmente para si, menina Bree. - És uma querida, Cookie. É a minha sobremesa preferida. Após o jantar, Bryoni trancou-se no estúdio contíguo
ao seu quarto e copiou para uma nova cassete a gravação que fizera em Nine Elms. Enquanto ouvia a voz doce e infantil de Sacha recitar tais perversões repugnantes,
recomeçou a sentir uma fúria extrema.
Deu por si a pensar na caçadeira de calibre 12 que o pai guardava no estúdio no piso térreo. Henry tinha-a ensinado a disparar aos pratos e ela tornara-se uma jovem
atiradora competente. Mas apercebeu-se, nesse momento, de que corria o risco de perder o bom senso e a razão. Obrigou-se a voltar ao plano original.
Quando acabou de copiar as afirmações de Sacha, trancou o gravador na pequena cómoda ao lado da cama e voltou a sentar-se à frente do computador para terminar os
trabalhos da escola para o dia seguinte. Desligou a luz um pouco antes das dez, mas só conseguiu adormecer era quase meia-noite. Depois acordou devido ao rugido
do motor do Mustang de Carl que subia o caminho de acesso. Ele conduzia sempre muito velozmente quando bebia. Bryoni verificou as horas: passavam dez minutos das
três da madrugada.
Na manhã seguinte, tomou o pequeno-almoço na cozinha com Cookie e depois Bonzo levou-a à escola antes de Carl sair do quarto.
No intervalo a meio da manhã, confiou a cópia da gravação das confissões de Sacha à guarda da sua melhor amiga, Alison Demper. Sabia que, se ela mesma guardasse
a gravação em Forest Drive, Carl acabaria por a encontrar.
- Tens de jurar pela tua vida e pelo que te é mais sagrado, e nunca contares a ninguém que te dei isto - disse a Alison, que ficou intrigada. Alison cuspiu no dedo
como era da praxe, fez o sinal da cruz sobre o coração e jurou pela sua vida.
Após as aulas, Bryoni alegou uma dor de cabeça e foi dispensada do curso extracurricular de arte. Foi diretamente para casa e esperou que Carl chegasse do seu trabalho
na sede da Bannock Oil. O irmão costumava parar no Troubadour Inn para beber uma cerveja com os amigos, mas nessa tarde regressou a casa no ruidoso Mustang um pouco
antes das sete.
Bryoni estava sentada na conversadeira do seu quarto. Debruçou-se sobre a janela e chamou-o enquanto ele saía do carro e fechava a porta. - Olá, Carl! Gostava de
falar contigo se tivesses uns minutinhos. Podes vir ao meu quarto, por favor?
- Vou já, mana. Ouviu-o subir as escadas e depois a batida na porta do seu quarto. - A porta está aberta - disse-lhe. Ele abriu-a e deteve-se à entrada. - Que se
passa, mana? Bryoni estava sentada na beira da cama, mas tinha arrastado a poltrona para o centro da divisão, para ele se sentar.
- Entra, Carl. Senta-te. Quero falar-te da Sacha. Ele fechou a porta e avançou para a poltrona. Sentou-se. apoiando uma das pernas sobre o braço da poltrona. - E
então. que se passa com a Sacha? Agora anda a ver homenzinhos verdes lá de Marte ou crê que se transformou finalmente num urso polar cor-de-rosa? - Riu-se da sua
própria piada.
- Ouve isto, por favor. - Mostrou-lhe o gravador. - Não me digas que é a tua música de rap preferida, acertei? Bryoni não conseguiu responder-lhe, pois odiava-o
com todas as suas forças. Ligou o gravador e pousou-o em cima da mesinha de cabeceira.
Fez-se silêncio enquanto o gravador rebobinava a fita e depois ouviu-se a voz de Sacha. Carl soube de imediato que era ela. Endireitou-se, tirou a perna de cima
do braço da poltrona e pousou ambos os pés no soalho.
"Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar dentro da minha boca. Tinha um sabor horrível", disse Sacha. Bryoni viu e irmão estremecer e fixar os olhos
na janela, como se procurasse uma via de fuga. Mas depois voltaram a recair sobre o gravador enquanto Sacha prosseguia.
"Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito."
Bryoni pegou no gravador e fez avançar a fita alguns segundos. Depois premiu o botão de reprodução e pousou de novo o gravador na mesinha. A voz de Sacha soava mais
firme e mais madura quando voltou a falar.
"...foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura
dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito
para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?"
"Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas."
Bryoni desligou o gravador e, no silêncio que se seguiu, perguntou em voz calma: - Achas que fizeste bem, Carl?
A boca dele movia-se, mas sem formular nenhuma palavra. Limpou a cara à manga do blusão e olhou depois para a mancha de suor no tecido fino.
Levantou-se de um salto, abruptamente, e agarrou no gravador pousado na mesinha e, no mesmo movimento contínuo, atirou-o contra a porta da casa de banho de Bryoni.
O aparelho desfez-se em pedaços. Carl atravessou a divisão com passos rápidos e decididos e esmagou os restos sob os sapatos.
As mãos tremiam-lhe e todo o seu corpo era sacudido por convulsões quando se virou para Bryoni.
- Aquela gaja! Aquela putazinha imunda! Tu mais a cabra da tua irmã inventaram isso tudo! Confessa: estás tão louca como ela. Vocês as duas têm é ciúmes de mim.
Estão a tentar desacreditar-me aos olhos do meu pai. Mas o meu pai adora-me.
- O teu pai era um criminoso de guerra nazi - disse Bryoni numa voz serena. - O teu pai era um homem chamado Kurtmeyer que matou pessoas nas câmaras de gás e tinha
uma rede de bordéis. És bem a semente podre do teu pai, Karl Kurtmeyer. - É mentira! Inventaste isso! És uma cadela mentirosa! - gritou-lhe. - Não inventei nada
- replicou Bryoni sem levantar a voz. - A nossa mãe contou-me tudo acerca do teu pai numa tarde em que se embebedou de gim.
- É mentira! O meu pai é Henry Bannock. Sou o seu único filho varão. Ele ama-me e sou o herdeiro dele. Tu e a putazinha imunda da tua irmã têm mas é ciúmes de mim.
Querem-lhe envenenar a cabeça contra mim. É por isso que estás a dizer todas essas mentiras horríveis sobre mim.
- Não estamos a pôr ninguém contra ti. Foste tu que maltrataste e humilhaste a tua própria irmã. Obrigaste-a a fazer coisas terríveis e nojentas e depois violaste-a
e puseste-a louca.
- Tudo mentiras! - gritou-lhe. - O meu pai nunca vai acreditar nas vossas mentiras. - Vai acreditar, vai, quando ouvir a gravação que fiz. - Bryoni levantou-se da
cama e confrontou-o com serenidade.
Carl girou sobre os calcanhares e correu para junto das peças desfeitas do gravador. Deixou-se cair de joelhos e começou a juntá-
-las, enfiando-as depois nos bolsos. - Já não há gravador - disse. - Foi-se. - Nunca existiu. Não passou tudo da fantasia de uma rapariga louca.
- Fiz uma cópia - disse Bryoni. Car levantou-se e avançou para ela com um ar ameaçador. - Onde está?
- Está num lugar onde nunca a vais conseguir encontrar.
- Dá-ma. - Nunca! - silvou Bryoni. Carl esbofeteou-a com força, fazendo-a desequilibrar-se e cair sobre a cama. Bryoni levantou-se, apoiada nos cotovelos; escorria-lhe
sangue da boca para o queixo. Rosnou-lhe através dos lábios ensanguentados, feroz como uma leoa ferida: - Nunca!
A visão do sangue luzidio inflamou-o. O sangue sempre tivera esse efeito nele. Precipitava-o para lá da fronteira da razão. Lançou-se sobre ela e imobilizou-lhe
os ombros contra a cama. Tinha mais do dobro da idade dela, e mais do dobro do peso. A sua força era esmagadora. Rasgou-lhe as roupas e grunhiu: - Vou-te ensinar
uma lição acerca do que é o respeito. A mesma lição que ensinei à louca da tua irmã.
Bryoni gritou, mas ele cerrou os dedos da mão esquerda à volta da garganta dela e apertou-lha com força, enquanto usava a outra mão para lhe baixar as cuecas e forçar
um dos joelhos entre as coxas dela. - Podes gritar quanto quiseres. Ninguém te vai ouvir. Ninguém te vai ajudar. Ninguém vai acreditar em ti. - A voz soava enrouquecida
de luxúria. - Tenho de te ensinar a ter respeito.
Desprendeu a fivela do cinto e abriu a braguilha com tal violência que um dos botões se soltou. Tinha-a agora sujeitada debaixo de si, pele nua contra pele nua.
A parte inferior do corpo infantil dela e a púbis estavam completamente desprovidas de pelos. A vagina de Bryoni era um fruto ainda por amadurecer: minúscula, apertada
e seca. Mas ele penetrou-a à força. Num paroxismo de dor, Bryoni enterrou-lhe os dentes no ombro. Carl insultou-a e libertou a mão que lhe apertava a garganta para
a obrigar a abrir a boca. Agora estavam ambos a sangrar. Bryoni lançou a cabeça para trás e gritou e uivou enquanto ele continuava a penetrá-la com violência.
Cookie, que estava na cozinha por baixo do quarto, ouviu os gritos dela e chamou Bonzo Barnes, o motorista, aos berros. Ambos subiram as escadas a correr e irromperam
pelo quarto de Bryoni no preciso momento em que todo o corpo de Carl se contorcia nos espasmos e gemidos do êxtase orgástico por cima do corpo franzino e seminu
de Bryoni.
Bonzo arrancou Carl de cima da irmã e lançou-o ao chão. - Que estás a fazer, pá? Ela não passa de uma criança! É a tua irmãzinha, pá! O que é que te passou pela
cabeça, homem? - gritou-lhe Bonzo. Agarrou em Carl pela garganta e sacudiu-o como se fosse um rato.
- Não lhe faças mal, Bonzo! - gritou-lhe Cookie. - A polícia ocupa-se dele. - Bonzo largou-o no chão e Carl soergueu-se.
- Não, não chamem a polícia - implorou em desespero. - O meu pai chega a casa amanhã. Ele vai tratar de tudo. Ele paga-te... - Fecha essa boca, seu porco. És pior
que um animal. Estou-te a avisar, pá - rosnou-lhe Bonzo.
Bryoni estava a chorar, desesperada de dor e em choque. Cookie agarrava-a contra o peito e sussurrou-lhe: - Pronto, acalma-te, minha menina. Ele já não te vai fazer
mais mal. Agora estás segura.
Estendeu o braço e levantou o auscultador do telefone em cima da mesinha de cabeceira e ligou para as emergências. A chamada foi atendida quase de imediato.
- Uma menina acabou de ser violada aqui. Está a sangrar muito. Apanhámos o pervertido que lhe fez isso. Mandem vir a polícia.
Os polícias de uniforme azul chegaram em duas viaturas de patrulha, menos de vinte minutos depois. Ouviram o que Cookie e Bonzo tinham para dizer e depois viraram-se
para Bryoni.
Bryoni levantou-se da cama onde Cookie a deitara. Virou-se para os agentes. Tinha as roupas rasgadas e manchadas de sangue. O rosto estava inchado e um dos olhos
ficara negro e meio fechado. Não parava de tremer.
Deu um passo para junto do sargento da polícia, mas um leve fio de sangue serpenteou por baixo da saia e escorreu pela coxa. Bryoni deixou escapar um gemido e agarrou
o baixo-ventre com as duas mãos. Dobrou-se lentamente e caiu de joelhos. Cookie levantou-a e abraçou-a contra o peito.
- Meu Santo Deus! - exclamou o sargento. - Enfiem as algemas nesse triste cabrão e levem-no para a esquadra.
Os seus homens agarraram Carl e torceram-lhe os braços atrás
das costas. - Calma lá, porra - protestou Carl. - Não é preciso tanta violência.
- Da mesma forma que não precisaste de usar tanta violência com aquela rapariguinha? - perguntou-lhe um dos agentes enquanto lhe fechava as algemas nos pulsos. Depois
olhou para o sargento. - O prisioneiro está a resistir à detenção, sargento. Será melhor enfiarmos-lhe também as correntes nas pernas, não vá dar-se o caso. O sargento
anuiu com a cabeça e depois virou-se para Cookie.
- Precisamos de levar esta criança ao hospital. Precisa de ser vista por um médico.
Cookie envolveu os ombros de Bryoni com um cobertor. Bonzo pegou nela e levou-a a correr para uma das viaturas da polícia.
59
Ronald Bunter telefonou a Henry Bannock que estava nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. A voz de Henry soava muito ensonada.
- Espero bem que me estejas a ligar por uma boa razão. São três da madrugada aqui.
- Desculpa-me, Henry, mas tenho notícias para te dar. Mas não é coisa boa - disse-lhe Ronald. - Na verdade, não podiam ser piores. Está aí alguém contigo?
- Claro que sim. Pensas que sou algum monge? - Ela não precisa de ouvir isto. - Espera um segundo. Vou sair do quarto. - Ouviu-se uma breve troca de palavras entre
Henry e a sua misteriosa companhia, houve uma pausa e depois Henry disse: - Pronto, Ronnie. Estou sentado na sanita e com a porta fechada. Conta lá.
- O Carl Peter foi preso. - Oh, não! Aquele pestinha - lamentou-se Henry. - O que foi desta vez? Excesso de velocidade? A conduzir embriagado?
- Quem dera que fosse isso, meu velho amigo. Infelizmente. é muito, muito pior.
- Vá lá, Ronnie! Deixa-te de rodeios! Desembucha lá! - Acusaram-no de vários delitos diferentes. Os mais graves são estupro, abuso de menor, agressão sexual agravada,
delito de agressão e ofensas corporais graves, maus-tratos, incesto e corrupção de menor. Ainda estão a investigar e a interrogar as testemunhas, mas avisaram-nos
que ainda poderia haver outras acusações, de agressão sexual agravada continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos. Alguns destes delitos são puníveis
com a pena de morte no Estado do Texas.
Seguiu-se um demorado silêncio, quebrado apenas pelo crepitar da estática. - Está lá? Está lá? Ainda estás aí, Henry? - Sim, continuo aqui. Estou a pensar. - A sua
voz soava desolada. - Dá-me alguns segundos, Ronnie. - Depois perguntou: - Quem são as vítimas que ele é acusado de violar?
- Lamento muito, Henry! Essa é a parte pior. É acusado de violar a Sacha e a Bryoni.
- Não posso crer! - disse Henry baixinho. - Só pode ser um engano. Não pode ser verdade. Não acredito nisso. A Bryoni é a minha menina.
Ronald quis dizer-lhe "A Sacha também é a tua menina", mas conteve-se. Não era sua intenção agravar o sofrimento do seu velho amigo.
- Vamos lutar contra isto, Ronnie. Vamos lutar contra isto com todas as nossas forças, estás a ouvir-me?
- Estou a ouvir-te, Henry. Mas pensa só nisto por um momento. Eles têm o testemunho das tuas duas filhas e de duas testemunhas oculares de confiança, têm amostras
do esperma do Carl Peter tiradas da vagina da Bryoni, misturado com o sangue dela. Têm fotografias das lesões corporais que ele lhe infligiu.
- Meu Deus! - exclamou Henry Bannock. - Que Deus e todos os santos me acudam!
Ronald quase conseguia ouvir os pilares do universo de Henry desmoronarem-se em cima dele. Julgou ouvi-lo chorar, mas não era possível. Chorar não. Henry nunca chorava.
- Achas que ele fez aquelas coisas, Ronald? - Sou advogado, não me cabe fazer julgamentos. - Mas achas que ele é culpado, não achas? Não me fales como meu advogado.
Fala comigo como o meu melhor amigo.
- Como teu advogado, não sei nem me importa. Como teu amigo, importa-me muito, e acho que o teu filho é culpado como tudo.
- Ele não é meu filho! - disse Henry. - Nunca foi meu filho. Tenho andado a enganar-me estes anos todos. É filho de um perverso cabrão nazi que a certa altura decidi
acolher sob a minha proteção. - Será melhor voltares para casa, Henry. Precisamos de ti aqui. As tuas duas meninas precisam muito de ti aqui.
- Vou partir de imediato! - disse Henry.
60
- Ouve bem o que te digo, Ronnie. - Henry inclinou-se sobre a escrivaninha e apontou o dedo a Ronald Bunter. - Quero aquele violador nazi cabrão riscado da lista
de beneficiários do meu Fundo Fiduciário, e não quero que o meu Fundo tenha de pagar os honorários dos advogados para o defenderem do crime de violar as minhas duas
filhas. Já falei com a Bryoni e mais culpado ele não podia ser. Quero-o ver pendurado na forca. Ronald girou na cadeira, uniu as pontas dos dedos e alçou o olhar
para o teto, como se procurasse ajuda e orientação lá no alto.
- Como bem sabes, já falámos disto muitas vezes, Henry. No entanto, vou responder em separado aos teus três desejos, pela mesma ordem que os expressaste. - Sentou-se
direito na poltrona, pousou os cotovelos na escrivaninha e olhou Henry diretamente nos olhos.
- Em primeiro lugar, foste tu que colocaste o Carl Bannock na lista de beneficiários e trataste de assegurar que ninguém o pudesse remover dessa lista. Ninguém o
pode fazer: nem eu, nem tu, nem o Supremo Tribunal de Washington. Estou de mãos atadas, e foste tu que mas ataste. Em segundo lugar, não queres que o Fundo Fiduciário
pague a defesa jurídica dele. Os mandatários, entre os quais eu próprio, não têm opção nessa matéria. Deixaste perfeitamente claro na escritura do Fundo Fiduciário,
que tu próprio assinaste, que somos obrigados a pagar todas as despesas para o proteger de quaisquer ações judiciais instauradas contra ele por qualquer pessoa ou
qualquer governo, seja pelo Departamento de Justiça ou pelo Departamento das Finanças. Está fora do nosso alcance. O Carl pode escolher a sua própria equipa de defesa
e o Fundo Fiduciário tem de pagar essas custas.
- Mas ele violou as minhas filhas - protestou Henry. - Nunca incluíste nenhuma exceção para essa eventualidade - frisou Ronald. - Por último, acabaste de expressar
o desejo de ver o Carl pendurado na forca. Isso nunca vai acontecer. O Estado do Texas aboliu a execução por enforcamento em 1924. O melhor que te posso oferecer
é uma injeção letal.
- Dou-me conta agora de que criar aquele Fundo Fiduciário foi o maior erro da minha doce vida.
- Volto a discordar de ti, Henry. O teu Fundo Fiduciário é um excelente instrumento. O sentimento que lhe subjaz é nobre. Assegura que à Marlene, à Sacha e à pequena
Bryoni, bem como a todos os seus próprios filhos e futuras esposas e respetiva prole, nunca faltará nada que o dinheiro possa comprar. És generoso e és um grande
homem, Henry Bannock.
- Aposto que dizes isso a todos os teus clientes.
61
O julgamento de Carl Peter Bannock prolongou-se por vinte e seis sessões judiciais.
As deliberações preliminares do júri de acusação ocuparam quatro dessas sessões, no final das quais foi apresentada uma acusação formal equivalente a uma acusação
de delito grave. O caso foi atribuído a um tribunal e o processo legal foi iniciado.
O juiz era Joshua Chamberlain, um homem na casa dos sessenta. Era um democrata empenhado e tinha a reputação de ser pedantesco e meticuloso. Durante quase vinte
anos como juiz, nenhum dos seus julgamentos fora alguma vez anulado no âmbito de um recurso, o que era em si mesmo um feito notável.
Em consonância com as suas crenças liberais, tinha condenado à morte menos de três por cento dos casos de pena capital que tinham comparecido perante si.
A procuradora do Ministério Público era Melody Strauss. Embora tivesse quase quarenta anos, já tinha defendido muitos casos extremamente complicados que lhe granjearam
uma reputação sólida. Foram-lhe atribuídos dois assistentes jurídicos.
A equipa da defesa compreendia cinco dos advogados mais caros do Estado do Texas. Tinham sido selecionados com grande cuidado pelos representantes do arguido. O
total dos seus honorários custavam ao Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock um montante que ascendia a um pouco mais de duzentos mil dólares por dia.
A primeira fase do processo consistia em escolher e ajuramentar os doze membros do júri de entre as cinquenta possibilidades apresentadas. Essa incumbência demorou
mais de uma semana, pois a defesa esforçou-se por excluir o maior número possível de mulheres. Usaram todas as dez recusas imotivadas para descartarem possíveis
jurados do sexo feminino e depois interrogaram persistentemente as restantes mulheres sobre a sua posição em relação à pena de morte, à provocação feminina e à instigação
à violação.
Melody Strauss enfrentou os elementos da equipa de defesa com grande determinação e rebateu-os com igual resolução. Esforçou-se por reter o maior número possível
de mulheres na lista final de jurados. Melody era perspicaz e persuasiva. Interrogou rigorosamente todos os candidatos masculinos para detetar quaisquer tendências
machistas. Reservou todas as suas recusas imotivadas para eliminar da lista apenas os candidatos masculinos que revelavam indícios dessas inclinações. No final,
conseguiu lograr um resultado equilibrado, com um número igual de homens e mulheres no júri.
Na décima sessão do julgamento, Melody Strauss apresentou o caso pela acusação e deparou com uma série de objeções por parte da defesa. Desde o início que contestaram
a capacidade de Sacha Jean Bannock depor, em razão da sua condição mental. Ambas as partes chamaram testemunhas-peritos. Melody Strauss chamou dois membros do pessoal
médico do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms que tinham tratado de Sacha ao longo de muitos anos. Ambas declararam que nos últimos tempos Sacha demonstrara uma melhoria
manifesta e contínua em termos de memória. Atribuíram esses progressos à influência da sua irmã mais nova, Bryoni Lee, e à catarse que experienciara depois de ter
recordado um acontecimento traumático, ou uma série deles, ocorrido na sua infância.
Submetidas a interrogatório, depuseram adicionalmente que os sintomas e a condição mental de Sacha eram um exemplo clássico dos efeitos de contínuos abusos sexuais
agravados na infância.
O perito chamado pela defesa era um professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Depôs que tinha examinado Sacha
e deu a sua opinião de que ela não era capaz de prestar depoimento sob juramento porque não compreendia o significado desse ato. Declarou ainda que qualquer testemunho
que ela pudesse prestar não seria minimamente fiável e que esse processo seria tão traumático para ela que corria um grande risco de vir a sofrer de danos mentais
permanentes em resultado dessa experiência. Melody solicitou ao juiz uma autorização especial para que Sacha pudesse depor nos aposentos dele, com a defesa e o júri
na sala contígua a assistirem e a ouvirem através do circuito televisivo fechado sem que Sacha se apercebesse dessas presenças. Após um aturado debate, o juiz Chamberlain
recusou o pedido.
Melody rogou então ao juiz autorização para fazer escutar ao júri a gravação que Bryoni fizera quando Sacha falara do seu relacionamento com o irmão Carl.
Este pedido desencadeou de novo uma onda de objeções por parte da defesa e o juiz Chamberlain voltou a recusar o pedido da acusação.
Restou a Melody uma última escolha decisiva. Poderia contrariar as probabilidades e chamar Sacha Jean ao banco das testemunhas, ou poderia retirar a acusação de
"agressão sexual agravada
continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos". E ir a julgamento unicamente com o depoimento de Bryoni Lee sobre a violação de que fora vítima.
Melody Strauss consultou Bryoni Lee Bannock para um aconselhamento final. Ambas tinham desenvolvido uma relação especial
durante o curto período de tempo desde que se tinham conhecido. Bryoni começara a gostar e a confiar em Melody, e esta ficara impressionada com a maturidade, coragem
e bom senso de Bryoni. Ficara sobretudo profundamente comovida com a sua lealdade e dedicação a Sacha, e com a sua compreensão intuitiva das razões subjacentes à
perturbação mental da irmã.
- Como reagirá a Sacha se eu a interrogar à frente de todas aquelas pessoas acerca daquilo que o Carl lhe fez? - perguntou a Bryoni. - Atira-se logo ao chão e encolhe-se
toda, e depois põe-se a chuchar o polegar e a bater com a cabeça no chão, e vai para um mundo dos sonhos só dela.
No dia seguinte, de forma a proteger Sacha, Melody Strauss retirou formalmente a acusação de "agressão sexual agravada continuada contra menor".
Instigada por este fracasso parcial, Melody apresentou, com um vigor renovado, as outras acusações contra Carl Bannock, com o objetivo de conseguir a pena máxima
possível.
Chamou Bryoni a depor. A defesa levantou uma nova onda de protestos: que Bryoni era uma criança imatura, que não compreenderia as questões que lhe seriam colocadas,
que era incapaz de fornecer um depoimento plausível e significativo.
O juiz Chamberlain anunciou uma suspensão de duas horas para ponderar as objeções. Falou a sós com Bryoni nos seus aposentos e, quando voltou para a sala de audiências,
disse ao júri: - Esta jovem menina demonstrou-me mais inteligência e maturidade do que muitas das pessoas de trinta e quarenta anos que já se apresentaram perante
mim neste tribunal. A objeção da defesa é recusada. A Menina Bryoni Lee Bannock pode ocupar o seu lugar no banco das testemunhas. Foi no banco das testemunhas que
John Martius, o principal advogado da defesa, se esforçou por lhe destruir a credibilidade.
Melody Strauss tinha preparado Bryoni para a provação e instruíra-a sobre como deveria comportar-se enquanto se encontrasse no banco das testemunhas, e que tipo
de perguntas poderiam fazer-lhe. "Dá respostas curtas e diretas", dissera ela. "Não deixes que te distraiam."
Durante o depoimento, Bryoni comportou-se como uma veterana. Respondeu de forma firme e educada a todas as perguntas.
- Quando foi a primeira vez que suspeitaste que a tua irmã tinha sido molestada sexualmente? - perguntou-lhe Melody.
- Quando ela me avisou para não deixar ninguém tocar-me nas partes íntimas, pois iriam magoar-me. Foi então que tive a certeza de que alguém lhe tinha feito isso
a ela.
- Objeção! Não passa de uma suposição! - John Martius tinha-se levantado de imediato.
- Objeção indeferida - disse o juiz Chamberlain. - Ela disse quem lhe tinha feito isso?
- De início não, mas quanto mais ela falava, mais se ia lembrando. Acho que ela estava a tentar esquecer as coisas feias que lhe tinham acontecido.
- E no final ela acabou por se recordar do nome? - Sim, minha senhora. Lembro-me das palavras exatas. Ela disse: "Agora lembro-me que foi o meu irmão Carl que foi
nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou.
Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito para não contar."
- Objeção! - uivou John Martius. - É testemunho em segunda mão de algo que ouviu dizer!
- Objeção indeferida - disse o juiz. - A testemunha está a descrever uma conversa na qual participou. O júri tomará em conta essa resposta.
Melody Strauss passou a abordar os acontecimentos depois de Bryoni ter confrontado Carl Bannock com as gravações que fizera de Sacha a descrever a série de agressões
de que fora vítima.
- Objeção! Não foi confirmada a proveniência das alegadas gravações e foram excluídas das provas - interpôs John Martius.
- Senhora Strauss? - disse o juiz, convidando-a a refutar. -- Meritíssimo, não estou a tentar apresentar as gravações como prova, estou a usá-las meramente como
uma referência temporal em relação aos acontecimentos dessa tarde.
- Objeção indeferida. Pode continuar, menina Bannock. Bryoni descreveu a agressão de Carl sobre a sua pessoa. - Exigiu que lhe dissesse o que tinha feito com a cópia
da gravação daquilo que a Sacha me tinha contado. Recusei-me a dizer-lhe. Depois bateu-me na cara e empurrou-me para cima da cama.
- Causou-te alguma lesão? - Fiquei com o olho esquerdo inchado e negro. Sangrava do nariz e tinha um dos lábios cortado, e foi por isso que fiquei com a boca cheia
de sangue.
Os membros femininos do júri arquejaram de surpresa, murmurando e trocando olhares horrorizados entre si.
Sentado na primeira fila na galeria do público, Henry Bannock olhou de semblante carregado e furibundo na direção do enteado, no banco dos acusados. Estivera ali
sentado durante todas as horas de cada dia do julgamento, na esperança de que a sua presença pudesse dar força e coragem a Bryoni durante a sua provação.
- Depois de ele te ter batido e de te ter empurrado para cima da cama, o que aconteceu depois, Bryoni? - perguntou-lhe Melody Strauss.
- O Carl disse-me que me ia ensinar o que era ter respeito, tal
como tinha feito à minha irmã Sacha.
- Quando dizes "Cari", estás a referir-te ao teu irmão, Carl Bannock, o arguido?
- Correto, minha senhora. John Martius apressou-se a intervir. - Objeção! Carl Bannock não é irmão da testemunha.
- Permita-me corrigir. - Melody Strauss foi igualmente rápida. - Eu deveria ter dito "meio-irmão". Essa relação também é abrangida na definição de incesto no Código
Penal do Estado do Texas. - Objeção! - Retiro esse comentário e reservo-o para a minha exposição final. - Melody voltou a virar-se para Bryoni. - E que fez depois
o arguido? - Pôs-se em cima de mim e abriu-me a roupa. - Tentaste resistir-lhe? - Fiz tudo para lhe resistir, mas ele era muito maior e mais forte que eu, minha
senhora, e estava atordoada do golpe que ele me tinha dado.
- Que aconteceu depois de ele te abrir a roupa? - Tirou o pénis para fora... Sentado à mesa da defesa, Carl Bannock tapou a cara com ambas as mãos e começou a chorar
alto. John Martius levantou-se de um salto.
- Meritíssimo, o meu cliente está assoberbado com estas acusações. Peço a sua compreensão e solicito uma pausa para que ele possa recompor-se.
- Senhor Martius, é por de mais evidente que o seu cliente é um indivíduo resistente e determinado. Tenho a certeza de que ele consegue aguentar um pouco mais. A
testemunha pode responder
pergunta. - Ele tirou o pénis para fora e meteu-o à força dentro de mim, na minha vagina. - Bryoni engoliu em seco e enxugou os olhos. - Doía-me tanto. Foi a pior
dor que já senti. Gritei e lutei, mas ele não parava de enfiar aquilo dentro de mim. Depois o Bonzo entrou lá e arrancou-o de cima de mim, mas a dor não parou e
reparei que estava a sangrar da vagina. A Cookie entrou lá e abraçou-me e disse-me que não precisava de ter medo e que o Carl nunca mais me voltaria a fazer mal.
Ela disse que não ia deixar ninguém voltar a fazer-me mal. - Bryoni afundou-se no banco e enterrou a cara nos braços, abalada por soluços entrecortados.
- Não tenho mais perguntas a fazer, Meritíssimo - disse Melody Strauss em voz baixa.
John Martius levantou-se de um salto. - Contrainterrogatório, Meritíssimo.
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã. Deve reservar o seu contrainterrogatório para essa altura, senhor Martius.
62
Henry Bannock, Ronnie Bunter e Bonzo Barnes já estavam à espera de Bryoni no exterior da sala de audiências quando ela saiu. Conduziram-na através da multidão de
repórteres e jornalistas amontoados no passeio e que lhe gritavam perguntas. Bryoni manteve-se de cabeça bem erguida e olhou diretamente à sua frente, mas tinha
o rosto pálido como cinza e os lábios tremiam-lhe. Ia agarrada ao braço do pai. Bonzo Barnes seguia à frente para lhes abrir caminho, e a sua corpulência e semblante
carrancudo abriram-lhes alas até à limusina que os esperava.
Nessa noite, Cookie levou o jantar num tabuleiro ao quarto de Bryoni e Henry Bannock sentou-se na beira da cama e falou-lhe enquanto ela comia. Disse-lhe que a amava
muito e que lamentava não ter sido capaz de a proteger a ela e a Sacha. Prometeu que nunca mais deixaria que nada de mal acontecesse às suas duas filhas. Fez-lhe
companhia e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer.
Às dez horas da manhã seguinte, Bryoni voltou a ocupar o banco das testemunhas. A sala de audiências estava a abarrotar e na secção da imprensa já só havia lugares
em pé. Bryoni tinha sido instruída por Melody Strauss e por Ronnie Bunter e ignorou-os por completo, fixando o olhar no pai, que estava na primeira fila na galeria
do público, e em Bonzo e Cookie, sentados três filas atrás.
John Martius levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e postou-se à frente de Bryoni.
- Compreendes que vou fazer-te algumas perguntas, Bryoni? - Sim, senhor. - Importas-te que te trate por tu? - Não, senhor. - Amas o teu irmão Carl? - Objeção! O
arguido não é irmão da testemunha - disse Melody, pagando-lhe na mesma moeda.
- Vou reformular a pergunta - concedeu Martius. - Amas o teu meio-irmão Carl?
- Talvez o amasse dantes, mas não desde que ele me violou a mim e à Sacha. Não o amo, não. - Um burburinho de aprovação varreu a sala de audiências perante estas
palavras. O juiz Chamberlain bateu com o martelo e disse numa voz severa: - Silêncio na sala, por favor.
- Alguma vez lhe pediste para te beijar? - Não, senhor. - Estás a dizer que nunca deste um beijo ao Carl? - Eu disse que nunca lhe pedi para me beijar, senhor. -
Alguma vez o beijaste? - Eu e o Carl só nos beijávamos na face para nos cumprimentarmos ou despedirmos, como toda a gente faz, senhor.
- Alguma vez pediste ao Carl para te beijar na boca, Bryoni? - Não, senhor. Porque faria eu isso? - Limita-te a responder às minhas perguntas, por favor, Bryoni.
Alguma vez enfiaste a língua na boca do Carl quando ele te beijou? - Objeção! A testemunha já depôs que nunca beijou o arguido na boca - interpôs Melody.
- Objeção deferida - disse o juiz Chamberlain. - A defesa retirará a pergunta.
- Pergunta retirada. - Martius inclinou levemente a cabeça na direção do juiz e voltou a concentrar-se em Bryoni. - Alguma vez entraste na casa de banho quando o
Carl estava a tomar duche, Bryoni? - Não, senhor. Tenho a minha própria casa de banho. Nunca fui à casa de banho do Carl.
- Alguma vez entraste no quarto do Carl quando sabias que ele estava a vestir-se?
- Não, senhor. Tenho o meu próprio quarto. Nunca fui ao quarto dele.
- Nunca? - Nunca, senhor. - E que me responderias se te dissesse que o Carl afirma que querias vê-lo tomar duche, e que certa vez foste ao quarto dele à noite e
te enfiaste na cama dele?
- Objeção! Essa pergunta já foi colocada e respondida! A testemunha já depôs que nunca foi à casa de banho do arguido.
- Objeção deferida. A defesa retirará a pergunta. - Retiro a pergunta, Meritíssimo. - Mas estava bastante satisfeito: tinha plantado uma semente de dúvida nas mentes
do júri. Consultou as suas próprias anotações por um momento e depois olhou para Bryoni.
- Alguma vez pediste ao teu meio-irmão Carl se gostaria de ver os teus peitos?
Melody Strauss pareceu prestes a objetar, mas permaneceu em silêncio e deixou Bryoni responder de forma espontânea e eloquente. - Não tenho peitos, senhor. Ainda
não me cresceram. - Pareceu ficar genuinamente perplexa quando dois dos jurados masculinos riram alto, mas era um riso gentil, sem o menor traço de escárnio. Dois
ou três dos jurados femininos franziram a cara, desaprovando a ligeireza dos seus colegas.
Henry Bannock reparou que Melody sustivera deliberadamente a sua objeção. Tinha sido uma decisão astuta. Só esperava que o júri punisse Martius por atormentar uma
criança, sobretudo uma menina tão linda.
Martius tinha corrido um grande risco ao introduzir o elemento da provocação feminina. Sabia que estava a perder a aposta e apressou-se a mudar de tática.
- Sabias que o teu pai tinha uma estima tão grande pelo teu meio-irmão Carl que o adotou formalmente como seu próprio filho, e que depois de o Carl ter se diplomado
com distinção por Princeton lhe ofereceu um trabalho muito bem pago e de grande responsabilidade na Bannock Oil Corporation?
- Sim, senhor, claro que sabia. Toda a gente sabia. - E isso levou-te a pensar que o teu pai amava mais o Carl do que te amava a ti? Ficaste com ciúmes dele? Foi
por causa disso que tu e a tua irmã Sacha resolveram inventar histórias maldosas acerca do Carl?
- O meu pai ama-me, senhor. - Olhou para Henry Bannock e sorriu. - Uma das razões pelas quais o meu pai me ama é que eu lhe disse sempre a verdade. Ele não me amaria
tanto se eu lhe mentisse.
Henry Bannock retribuiu-lhe o sorriso e anuiu com a cabeça, confirmando a declaração da filha. Os seus traços faciais marcados e obstinados suavizaram-se.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, Meritíssimo. - John Martius apercebeu-se de que tinha sido derrotado por uma criança e decidiu retirar-se com uma
certa dignidade.
-- Obrigado, menina Bryoni - disse o juiz Chamberlain. - Foi muito corajosa. Pode ir agora para junto do seu pai.
Henry Bannock veio ao encontro da filha e envolveu-lhe os ombros com o braço, num gesto protetor. Lançou um último olhar corrosivo ao filho adotivo e depois conduziu
Bryoni para fora da sala de audiências. Bryoni agarrou-se a ele e começou a chorar baixinho mas amargamente.
Melody Strauss chamou a sua testemunha seguinte, a Dra. Ruth MacMurray. Era a médica do corpo policial que tinha examinado Bryoni naquele fatídico fim de tarde.
Era uma mulher madura e de cabelos grisalhos, composta e de voz suave.
- Doutora MacMurray, examinou Bryoni Lee na passada tarde de quinze de agosto na sala de emergências no Hospital Universitário de Houston?
Sim. - Pode relatar a este tribunal as conclusões do seu exame nessa altura, doutora?
- A paciente era uma menina pré-pubescente. Apresentava lesões faciais superficiais, consistentes com golpe desferido com a mão. O olho esquerdo apresentava contusão
e inchaço. Também havia uma laceração do tecido mole da boca. Além disso, os dentes incisivo esquerdo e o primeiro pré-molar tinham-se soltado devido ao traumatismo.
- Havia mais alguma lesão corporal? - Sim. Havia extensas equimoses em ambos os antebraços e na garganta.
- O que é que essas equimoses poderiam indicar, doutora? - Poderiam indicar que a paciente fora provavelmente restringida à força pelos antebraços e que, ademais,
lhe tinham apertado a garganta, quer numa tentativa de estrangulação, quer para a impedir de gritar.
- Obrigada, doutora MacMurray. Encontrou mais alguma lesão?
- Os genitais da paciente apresentavam todos os sinais de penetração forçada por via de objeto grande e rígido.
- Seriam essas lesões consistentes com uma possível penetração forçada da paciente menor pelo pénis ereto de um adulto?
- Eram inteiramente consistentes com essa possibilidade. O hímen tinha sido rompido muito recentemente e continuava a sangrar. O períneo entre a vagina e o ânus
tinha sido rasgado e exigiu intervenção cirúrgica. Além disso, havia lacerações internas e rutura da parede vaginal inferior, o que também exigiu intervenção cirúrgica.
- Na sua opinião, eram essas lesões consistentes com a possibilidade de a paciente ter sido violada?
- Na minha opinião, tais lesões eram inteiramente consistentes com violação agravada e penetração forçada dos genitais.
- Chegou a colher amostras do fluido corporal que encontrou na vagina da paciente, doutora?
- Colhi trinta esfregaços vaginais da vagina rasgada. E amostras de sangue da roupa da paciente.
- Quais foram os resultados dos exames patológicos dessas amostras, doutora?
- No caso das amostras colhidas da roupa, foram encontrados dois grupos sanguíneos. Um era AB negativo e o outro O positivo.
- Correspondem ao grupo sanguíneo do arguido e da vítima, doutora? - O grupo sanguíneo de Carl Bannock é AB negativo, e o de Bryoni Bannock é O positivo.
- O tipo O é raro ou comum, doutora? - É o tipo mais comum. Cerca de quarenta por cento dos humanos têm sangue do tipo O.
- E o tipo AB negativo: é raro ou comum, doutora? - É o tipo de sangue mais raro de todos, só um por cento dos humanos o possui.
- Isso significa que existe uma probabilidade de quarenta para um de as amostras de sangue AB negativo pertencerem ao arguido Carl Bannock?
- Não sou corretora de apostas, minha senhora. Não lhe saberia dizer as probabilidades exatas. Direi, no entanto, que existe uma probabilidade muito mais elevada
de que as amostras de sangue AB negativo possam pertencer a Carl Bannock do que a qualquer outra pessoa à face da Terra.
- Obrigada, doutora. A minha pergunta seguinte, doutora, prende-se com as amostras dos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock. Quais foram os resultados
patológicos do exame desses esfregaços?
- Em todos os casos, sem exceção, foi detetada a presença de sangue e de fluido seminal.
- Qual era o tipo, ou tipos, de sangue, doutora? - Unicamente o tipo O positivo. - É o tipo sanguíneo de Bryoni Bannock, correto? - Correto, sim. - Havia mais algum
fluido corporal nos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock?
- Sim, também foi detetada a presença de fluido seminal. - Fluido seminal masculino? O patologista pôde estabelecer uma correspondência com as amostras colhidas
do arguido Carl Bannock?
- O fluido seminal colhido da vagina de Bryoni Bannock deu uma correspondência de oitenta a noventa por cento com as amostras fornecidas por Carl Bannock ao médico
do corpo policial.
- Como é que foi feita a análise comparativa dessas amostras. doutora? - Foram aplicadas três técnicas: o teste RSID, o teste PSA e o teste da fosfatase
- Obrigada, doutora. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe - disse Melody, olhando depois para John Martius na mesa da defesa. - A testemunha é sua.
- Não tenho questões a colocar - disse John Martius sem levantar os olhos do seu caderno de alegações.
O juiz Chamberlain olhou para o relógio da sala de audiências antes de instruir Melody. - Pode chamar, por favor, a sua próxima testemunha, senhora Strauss.
- A acusação chama a senhora Martha Honeycomb. Cookie levantou-se do seu lugar na galeria pública e avançou pela coxia até ao banco das testemunhas. Apesar dos conselhos
de Melody Strauss de que deveria usar roupas discretas, Cookie não resistira à tentação de usar o seu melhor traje e adornos para a ocasião. Usava um minúsculo chapéu
de palha colocado num ângulo desenvolto e um pequeno véu negro sobre um dos olhos. O vestido exibia um estampado de enormes girassóis cujo efeito lhe realçava o
volume do traseiro. Os sapatos brancos, de tacão muito alto. conferiam-lhe um andar um pouco vacilante.
Assim que ela se sentou no banco das testemunhas, Melody Strauss conduziu-a num breve relato da sua relação com a família Bannock.
- Há quanto tempo trabalha para o senhor Henry Bannock' - Desde que saí da escola, minha senhora. - Há quanto tempo conhece Bryoni Bannock, senhora Honeycomb?
Nota de Rodapé: " Teste RSID (Rapid Stain Identification) ou teste de Identificação Rápi-,ia de Mancha, usado frequentemente nos estudos forenses de amostras de
sémei:. Teste PSA (Prostate Specific Antigen) ou teste do A ntigénio Específico da Próstata análise da glicoproteína cuja função é liquefazer o coágulo seminal,
formado após a ejaculação, permitindo a movimentação dos espermatozoides. Fosfatas ácida: enzima cuja presença em grande quantidade é indicativa da presença dr esperma
(o conteúdo desta enzima é de 20 a 400 vezes maior no esperma 3: que em qualquer outro fluido humano).
Fim da Nota.
- Pode chamar-me Cookie, minha senhora. É como toda a gente me chama.
- Obrigada, Cookie. Há quanto tempo conhece Bryoni, Cookie? - Desde o dia em que ela nasceu. Era a coisinha mais linda de se ver. - E Carl, o irmão dela? Há quanto
tempo o conhece? Cookie rodou o seu enorme volume e lançou um olhar fulminante a Carl, sentado à mesa da defesa. - Desde o dia em que ele veio viver para a nossa
casa, e que dia mais triste e lamentável foi, se bem que nenhum de nós o soubesse nessa altura. Todos pensávamos que ele era um bom rapazinho.
- Senhora Procuradora, por favor diga à sua testemunha para se limitar a responder às perguntas.
- Ouviu o que o juiz disse, Cookie? - Peço desculpa, minha senhora. O senhor Bannock também diz que falo de mais.
O juiz Chamberlain tossicou e tapou a boca com a mão para conter tanto a tosse como o sorriso. Melody Strauss foi conduzindo Cookie ao longo dos acontecimentos,
até ao momento em que ela e Bonzo resgataram Bryoni do ataque de Carl e à posterior detenção dele pela polícia.
- Como sabia que o arguido tinha ido ao quarto da irmã no piso de cima? - Eu e o Bonzo tínhamo-lo ouvido subir a rampa de acesso naquele carrão vistoso que o pai
dele lhe tinha dado pelo aniversário. Depois ouvimos a Bryoni chamá-lo para ir ao quarto dela pois queria falar com ele.
- Que aconteceu depois, Cookie? - Ouvimos o jovem Carl subir as escadas a correr e depois a porta do quarto de Bryoni fechar. Ficou tudo muito silencioso durante
muito tempo. Depois, eu e o Bonzo ouvimos o Carl gritar como se estivesse desvairado da cabeça. Eu disse: "Bonzo, é melhor Irmos lá acima ver o que eles andam a
tramar." Mas o Bonzo disse: "Deixa lá, estão só a discutir, como sempre. É melhor deixá-los em paz. Vou polir o Cadillac para quando o senhor Bannock chegar a casa",
e lá foi ele pelas escadas abaixo.
- Portanto, Bonzo deixou-a sozinha na cozinha. E depois, que aconteceu, Cookie?
- Depois houve mais um pouco de silêncio, mas de repente a Menina Bryoni desatou a gritar como se alguém estivesse a cortar-lhe a garganta. Até o Bonzo a ouviu lá
em baixo na garagem. Mas eu gritei-lhe: "Bonzo, é melhor vires cá depressa! Parece-me que aconteceu alguma coisa grave lá em cima." Corremos pelas escadas acima
e o Bonzo atravessa direitinho aquela porta enorme como se fosse de papel. Eu entro a correr no quarto logo atrás dele e vejo o jovem Carl em cima da menina Bryoni
deitada na cama, e vejo-a a lutar com ele como uma louca e a gritar desalmada e ele sempre em cima dela a ter sexo com ela.
- Como sabia que ele estava a ter sexo com ela, Cookie? - Tive rapazes suficientes que mo fizeram a mim nos meus tempos para saber quando um deles está a fazer isso
a outra mulher. senhora Strauss.
- Por favor, continue a contar-nos o que aconteceu de seguida, Cookie. - Bom, o Bonzo ficou possesso como nunca o vi. Também ele adorava a menina Bryoni, como todos
nós. Pôs-se a gritar com o Carl: "O que lhe estás a fazer, pá? Ela é a tua irmãzinha, O que lhe estás a fazer?" e coisas desse género. Depois agarrou Carl e atirou-o
pelo ar. Foi então que vi o Carl com a parte da frente das calças toda aberta e com aquela coisa dele toda dura e espetada à frente, toda suja do sangue da minha
menina, e foi quando também a mim me deu ganas de o matar, mas disse ao Bonzo pra não lhe fazer mal, que deixasse a polícia ocupar-se dele. e devo dizer que a polícia
veio mesmo muito rápido e prendera o Carl, e depois o Bonzo levou a Bryoni pro carro da polícia, pois ela tinha muitas dores e não conseguia andar, e eles lá a levaram
então pro hospital.
- Obrigada, Cookie. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe. O juiz Chamberlain olhou na direção da mesa da defesa. - O advogado da defesa deseja contrainterrogar a
testemunha?
John Martius pareceu prestes a recusar, mas depois levantou-se lentamente.
- Senhora Honeycomb, diz que ouviu Bryoni convidar o arguido a ir ao quarto dela.
- Sim, senhor. Ouvi-a dizer-lhe para ir lá acima, mas não creio que ela quisesse brincar às escondidas com a salsicha daquele porco. Acho que ela ia pô-lo a ouvir
a gravação onde a Sacha dizia o que o Carl lhe tinha feito...
- Meritíssimo! A testemunha respondeu à minha pergunta confirmando que Bryoni Bannock tinha convidado o irmão a ir ao quarto dela. O resto do seu testemunho não
passa de suposições.
- Por favor, não especule, senhora Honeycomb. O júri não tomará em consideração o resto da resposta da testemunha.
- Obrigado, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha. - Martius voltou a sentar-se.
De seguida, Melody Strauss chamou Bonzo Barnes ao banco das testemunhas. Bonzo corroborou cada pormenor do depoimento de Cookie, embora não de forma tão eloquente
e sui generis como ela. fizera.
John Martius colocou uma única questão no contrainterrogatório. - Senhor Barnes, ouviu Bryoni Bannock convidar o irmão Carl a ir ao quarto dela? - Sim, senhor. Ouvi.
- Bryoni costumava receber o irmão Carl no quarto dela e à. porta fechada? - Se ela o fez, nunca a vi nem a ouvi fazer isso, senhor. - Mas não tem a certeza se ela
nunca chegou a estar sozinha com ele no seu quarto?
Bonzo ponderou profundamente na pergunta, com uma expressão sombria no rosto. - Não faz parte do meu trabalho estar de guarda à porta da menina Bryoni a toda a hora
do dia. - Por conseguinte, não sabe se Bryoni Bannock tinha por hábito receber os seus amigos no quarto e à porta fechada? - De uma coisa tenho a certeza, senhor.
Se apanhar qualquer rapaz no quarto dela a tentar fazer-lhe aquilo que o Carl lhe fez, parto-lhe o pescoço. - Obrigado, senhor Barnes. Não tenho mais perguntas para
esta testemunha, Meritíssimo.
Bonzo ergueu-se em toda a sua corpulência e lançou um olhar ameaçador a John Martius. - Sei bem o que me está a tentar fazer dizer, mas a única coisa que vai ouvir
de mim é que a nossa pequena Bryoni é uma boa menina. E parto o pescoço a qualquer um que se atreva a dizer o contrário dela.
- Obrigado, senhor Barnes. - John Martius apressou-se a afastar-se do alcance do braço comprido de Bonzo. - Pode sair do banco das testemunhas. Melody chamou a testemunha
seguinte. Era o sargento Roger Tarantus, do Departamento da Polícia de Houston. Começou por dizer que ele e a sua equipa tinham respondido a uma chamada de emergência
e se dirigiram ao nº 61 de Forest Drive, a residência de Henry Bannock e da sua família, no final da tarde em questão. Melody conduziu-o ao longo de uma descrição
detalhada daquilo com que deparara ao chegar ao local, bem como das ações que tomara. O depoimento do sargento Tarantus tendia a confirmar os depoimentos de todas
as outras testemunhas da acusação, nomeadamente Bryoni Bannock, Bonzo Barnes e Martha Honeycomb.
- Portanto, sargento Tarantus, com base naquilo que viu e ouviu no nº 61 de Forest Drive, prendeu Carl Bannock por violação e vários outros delitos e levou-o para
a esquadra da polícia em Houston, onde o encarcerou, correto?
- Está correto, minha senhora. A equipa da defesa prescindiu de contrainterrogar o sargento, e todas as restantes testemunhas chamadas pela acusação abonaram o bom
caráter de Bryoni Lee. Entre elas encontravam-se os professores de Bryoni e os psiquiatras de Nine Elms que tinham conhecido bem Bryoni ao longo dos tempos em que
ela visitara regularmente a sua irmã Sacha. Um após outro, descreveram Bryoni como uma aluna exemplar e uma criança inteligente, equilibrada e normal.
No contrainterrogatório, a defesa tentou induzir as testemunhas a concordarem que Bryoni tinha um interesse anormal pelo sexo oposto para uma criança da sua idade.
No entanto, essa insinuação foi energicamente contestada por todos eles.
No final, Melody pôde dizer ao juiz Chamberlain: - Não tenho mais perguntas. A acusação terminou a apresentação das provas.
- Estamos prontos para fazer a nossa exposição final ao júri, se estiver de acordo, Meritíssimo. - Obrigado, senhora Strauss. - O juiz virou-se para a mesa da defesa
e perguntou: - A defesa deseja chamar testemunhas em refutação, senhor Martius?
Um burburinho de expectativa apoderou-se da sala de audiências. Todos sabiam que a defesa tinha de chamar o arguido, Carl Peter Bannock, ao banco das testemunhas
para depor em própria defesa. Não o fazer equivaleria a uma admissão da sua culpa. Fazê-lo era um risco calculado.
John Martius levantou-se lentamente, quase com relutância. - A defesa chama o arguido, Carl Peter Bannock, Meritíssimo - disse. Ouviu-se um sonoro suspiro de alívio
e Melody Strauss esboçou um ténue sorriso de expectação, como uma leoa que captasse o odor de uma gazela.
Carl levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e, no silêncio palpável que pairava na sala de audiências, avançou para o banco das testemunhas com um ar profundamente
contrito. Manteve-se de pé no banco, com as mãos enlaçadas à frente e de cabeça curvada. A sua expressão era trágica.
- Pode sentar-se, Carl - disse John Martius. - Obrigado, senhor, mas prefiro ficar de pé - murmurou Carl como um homem destroçado.
- Por favor, diga-nos o que sente face a estas acusações. - Estou completamente devastado. Sinto que perdi a vontade de continuar a viver. Se este tribunal me condenar
à morte, de bom grado aceitarei a pena. - Carl ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da sala, na direção do seu pai adotivo, Henry Bannock, sentado na primeira
fila da galeria do público e virado para ele. - Sinto que desiludi o meu pai. Ele tinha grandes esperanças em mim e tentei estar à altura dessas expectativas, mas
falhei miseravelmente. - Começou a soluçar e enxugou os olhos com a manga. - Estou profundamente arrependido de qualquer mal ou dor que possa ter infligido às minhas
duas queridas irmãs. Sou tão culpado como elas por me terem levado a pecar. Perdoo-lhes e suplico-lhes que me perdoem também. Estou profundamente arrependido.
Henry Bannock bufou de indignação e desviou deliberadamente o olhar daquele espetáculo lamentável.
- É culpado das acusações apresentadas contra si, Carl Bannock? - perguntou John Martius.
- A minha única culpa foi ter sucumbido à tentação e à sedução feminina, ao pecado de Adão e aos embustes de Eva. - A frase era tão teatral e artificiosa que algumas
das pessoas que a ouviram se crisparam.
- Não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha, Meritíssimo. - John Martius sentou-se.
Melody Strauss acercou-se do arguido, como uma leoa a lançar-se de uma emboscada sobre a presa. - Está a insinuar, senhor Bannock, que foi deliberadamente induzido
pelas suas duas irmãs menores a cometer a violação?
- Sinto-me confuso e profundamente angustiado. Tudo isto tem sido um choque terrível para mim. A memória falha-me. Ouvi as acusações lançadas contra mim e creio
que deve haver alguma verdade nelas, mas não me recordo de quase nada disso, minha senhora.
- Como explica, então, que o seu esperma tenha sido encontrado na vagina da sua irmã de doze anos? Pretende fazer-nos crer que foi ela mesma que o colocou ali, senhor
Bannock?
- Deus é minha testemunha e só posso dizer que não sei. Não me lembro de nada disso, mas estou profundamente arrependido de qualquer mal que possa ter feito. - Recomeçou
a chorar.
- Está a insinuar que a sua irmã de doze anos infligiu aquelas equimoses e contusões no próprio corpo? Talvez tenha sido ela a rasgar as próprias partes íntimas
para depois o desgraçar a si, acha isso possível?
- Talvez tenha sido isso o que aconteceu, e, nesse caso, perdoo-lhe, como espero que ela me perdoe a mim.
- Crê o senhor que aqueles doze cidadãos honestos e respeitadores da lei que integram o júri são ingénuos e crédulos ao ponto de acreditarem na sua lengalenga? É
isso que crê?
- Não! Certamente que não acredito nisso. Mas duvido da minha própria memória.
- E quando foi que começou a sentir esse estranho ataque de amnésia, senhor? Foi quando se apercebeu de que ia pagar pelo sofrimento e humilhação que tão prontamente
infligiu às suas jovens irmãs? - Não me lembro. A sério que não me lembro. Melody lançou as mãos ao ar com grande indignação. Era demasiado astuta para insistir
num ponto que já demonstrara de forma tão convincente. Sabia que a defesa tinha pagado um preço alto ao permitir que o seu cliente expressasse o seu arrependimento
em audiência pública, e deu-se por satisfeita.
- Não tenho mais perguntas a fazer ao arguido, Meritíssimo. - Muito bem, senhoras e senhores. - O juiz Chamberlain olhou para o relógio na parede. - São quase quatro
horas. Vou dar a sessão encerrada por hoje e retomamos amanhã, às dez da manhã, para ouvir a exposição final da acusação.
63
A exposição final de Melody Strauss durou quase três horas. Apresentou os factos comprovados perante o júri, com a lógica e a convicção que lhe tinham granjeado
a reputação. O júri e todos os demais na sala de audiências escutaram em absoluto fascínio. A forma como apresentou o caso foi impecável.
John Martius, por seu turno, não tentou refutar as provas nem os testemunhos apresentados. Insistiu na teoria de que o seu cliente tinha sido vítima da sedução e
da cilada das suas duas irmãs. Expôs a teoria de que o motivo das raparigas era fazer Carl cair em desgraça aos olhos de Henry Bannock e substituí-lo nos afetos
paternos. A sua refutação demorou apenas quarenta e oito minutos.
O juiz Chamberlain recapitulou os debates para o júri. Disse-lhes para considerarem cuidadosamente se o arrependimento de Carl Bannock pelos crimes de que era acusado
era sincero ou se não passava de uma má encenação, e se as horríveis lesões de Bryoni Lee teriam sido autoinfligidas ou não.
- Aquelas lágrimas de arrependimento que vimos ontem nos olhos do arguido eram verdadeiras ou seriam talvez de natureza mais sáuria? - perguntou-lhes.
Imediatamente após o almoço, pediu ao júri que iniciasse as suas deliberações.
Henry levou Melody Strauss, Ronnie Bunter e Bryoni a almoçarem no Burger King local, ao fundo da rua. Bryoni e Melody partilharam um cheeseburger duplo. Agora que
a sua provação já estava quase terminada, Bryoni mostrava-se outra vez alegre como um pássaro, mas sem nunca largar a mão protetora do pai, chegando mesmo a sussurrar-lhe:
- O Carl vai ficar todo danado comigo se for para a prisão. Achas que ele virá atrás de mim quando o deixarem sair?
- O Carl vai ficar longe de nós por muito tempo. E vamos tratar de assegurar que nunca mais te possa fazer mal outra vez, meu tesouro.
Quando Henry pediu a conta, já passava das três. Ainda estava a pagar quando um funcionário do tribunal entrou apressado no restaurante.
- O júri já deliberou, senhor Bannock. Estão prestes a anunciar o veredito. Será melhor apressarem-se, senhor.
- Valha-me Deus! Demoraram bastante menos de três horas, o que é ou muito bom sinal ou muito mau sinal - opinou Ronnie Bunter. - Vamos lá embora daqui. - Henry agarrou
a mão de Bryoni e apressou-a ao longo da rua até ao edifício do tribunal. A sala de audiências estava a abarrotar e a secção da imprensa incluía repórteres de lugares
tão longínquos como a cidade de Nova Iorque e Anchorage, no Alasca.
64
Hector Cross havia dado ordens para não ser incomodado. Tinha transferido todas as chamadas do exterior para o gabinete de Agatha em Abu Zara. Estava tão profundamente
absorto no manuscrito de "A Semente Envenenada" que só dera conta das horas quando ouviu duas leves batidas discretas na porta do estúdio.
Foi bruscamente arrancado de um outro tempo e de um lugar distante para o momento presente. Estivera tão absorvido pelo relato de Jo Stanley que ficou um pouco desorientado
por alguns segundos. Olhou para a janela e reparou que o crepúsculo já tinha caído. O dia transcorrera com grande celeridade. Já não comia desde o pequeno-almoço
e subsistira à base de chávenas de café que ele mesmo preparara. E praticamente nem se dera ao trabalho de ir à casa de banho contígua ao estúdio.
Levantou-se da cadeira de um salto e avançou com rapidez para a porta. Abriu-a e ali estava ela, a sorrir-lhe. Vestia um dos roupões de veludo frisado branco e estava
descalça. Tinha o cabelo molhado, apanhado num puxo no cocuruto. O duche apagara-lhe os últimos vestígios de maquilhagem e a pele reluzia. Parecia tão jovem como
uma colegial. Dormira manifestamente bem, pois os olhos cintilavam. As íris verdes eram como a água do mar sob o sol tropical: verde-mar e serenas.
- Vamos ficar aqui a olhar um para o outro a noite inteira, ou vai-me convidar a entrar no seu covil?
- Perdoe-me. Quase me tinha esquecido de como é bela. - Viu-me há cerca de seis ou sete horas. - Já foi há tanto tempo? - Estava genuinamente surpreendido e verificou
as horas no relógio de pulso. - Tem razão. Tenho de aprender a não discutir consigo. - Deu-lhe a mão e convidou-a a entrar. - Peço que me desculpe por me ter esquecido
de si. Mas a culpa é toda sua, devo dizer-lhe. Hipnotizou-me com o seu talento literário. Deixou-me completamente preso ao rexto.
- Seu adulador fingido! - disse ela, mas dirigiu-lhe um sorriso de prazer genuíno.
- Sente-se, por favor. - Acompanhou-a até à poltrona de couro. Ela sentou-se, recolhendo as pernas sob o corpo. Depois esticou a ponta do roupão em redor delas quando
se apercebeu de que ele estava a olhar. Eram pernas encantadoras, reparou Hector. - Que fez durante este tempo todo em que estive tão ocupado que até me esqueci
de si?
- Dormi maravilhosamente durante três ou quatro horas. Depois aproveitei-me do seu ginásio. Encontrei um fato de treino lá no armário que ficou a servir-me depois
de enrolar as mangas e as pernas das calças. Mudei todas as configurações das suas máquinas de exercício, pelo que espero que me desculpe.
Hector abanou a cabeça e riu-se. - Fez muito bem. - Depois fiz uma sauna e lavei o cabelo. Usei todos os produtos femininos Hermes e Chanel que encontrei na casa
de banho dos hóspedes e fiquei contente ao reparar que nenhum deles tinha sido aberto por visitas anteriores.
- A Jo é a minha primeira hóspede. - Sou ingénua quanto baste para acreditar em si. Talvez porque assim quero crer.
- Juro pela minha alma! Mas já comeu? - Não tinha fome. Estava demasiado ocupada a explorar. - Oh, meu Deus! Ainda morre à fome e nunca me perdoarei por isso. Tem
duas opções. A Cynthia, a minha chef, é a melhor cozinheira de Londres, e possivelmente do universo inteiro. O Ivy Club só lhe fica atrás por um triz.
- Ambos temos estado enfiados o dia todo aqui dentro de casa. por mais encantadora que seja. Talvez fosse melhor irmos jantar fora - disse ela, mas ao mesmo tempo
afastou os olhos com recato.
Hector já a conhecia o suficiente para intuir aquilo a que ela pretendia aludir realmente: que era demasiado cedo para passar a noite em retiro íntimo com ele.
- Vamos então ao Ivy. É um ambiente bastante relaxado quanto ao código de vestuário. Mas se quiser mudar de roupa, posso passar pelo seu hotel.
- Obrigada, Hector. Acho que seria melhor. - Vou vestir algo mais apropriado enquanto volta a vestir-se. e depois espero por si no carro à entrada do hotel enquanto
troca de roupa. Ficou impressionado pelo facto de ela o manter à espera apenas vinte minutos, e por voltar envergando roupas discretas mas elegantes. - Perfeito!
- comentou ele enquanto lhe abria a porta do Bentley. - Está de arrasar.
- Essa expressão soa estranha a quem é do outro lado do Atlântico, mas vou encará-la como um elogio.
Deu-lhe o braço enquanto cruzavam a entrada que fazia lembrar a loja de uma florista e subiram no imponente elevador panorâmico. As jovens empregadas na receção
rodearam Hector de atenções enquanto recolhiam os casacos de ambos, e uma delas acompanhou-os num outro elevador até à sala de jantar.
- Por acaso é dono deste sítio? - sussurrou-lhe Jo. - Aonde quer que uma pessoa vá neste mundo perverso, uma gorjeta decente faz sempre milagres - disse.
- Suponho que também ajuda quando se tem um aspeto como o seu.
- Espero que não seja alérgica ao champanhe - disse et
enquanto se sentavam à mesa.
- Ponha-me à prova! - desafiou-o Jo. Depois de saborearem e aprovarem tanto o vinho como o primeiro prato, Jo fez a pergunta que tivera na ponta da língua desde
que saíram de The Cross Roads.
- E agora, diga-me: até que parte leu a minha história? - perguntou. - Cheguei à parte em que o Henry e a Bryoni estão à espera de ouvir o veredito do júri sobre
aquele cabrão merdoso do Carl Peter Bannock. Perdoe-me a linguagem, mas você fez-me odiá-lo.
- E tem toda a justificação para isso. Acho que o Carl Bannock é uma daquelas pessoas malignas até ao âmago e sem qualquer possibilidade de redenção.
- E onde está agora essa criatura monstruosa? - Leia o que escrevi, Hector. Não tente saber o fim da história antes de lá chegar. Se o fizer à minha maneira, compreenderá
muito melhor as personagens em jogo, e olhe que são muitas. Mas posso garantir-lhe que ainda não chegou à melhor parte, ou deveria dizer a pior parte?
- Muito bem, mas responda-me ao menos a mais uma pergunta que não para de me roer por dentro. A Hazel estava ao corrente disto? Se estava, nunca me falou de nada.
- A Hazel ainda não tinha aparecido em cena. Ainda estava a aprender a jogar ténis na África do Sul.
- Mas ela deve ter sabido disso quando casou com o Henry, não? - Duvido que o Henry alguma vez tenha contado os pormenores à Hazel. O Ronnie Bunter diz que o Henry
tinha uma vergonha tremenda do escândalo horrível que aquilo foi. Sentia-se terrivelmente culpado por não ter sido capaz de proteger as filhas. Mas também é possível
que a Hazel tivesse sabido e nunca lhe tenha contado a si. O que aconteceu foi tão trágico e sórdido que talvez a Hazel, tal como o Henry, se tivesse limitado a
fazer de conta que aquilo nunca tinha sucedido.
- O que foi feito da Bryoni Lee? Essa pequenita portou-se como uma heroína. Ia adorar conhecê-la, se isso for possível.
- Vai ter que esperar. Não lhe vou contar nada. Vai ter de ler até ao fim da história.
- Aviso-a desde já, minha senhora, que a paciência não é uma das minhas muitas virtudes. Quando quero uma coisa, quero-a logo.
- Há situações na vida em que mais vale esperar, pois a expectativa multiplica o prazer final - disse ela. - E ler histórias é uma dessas situações. - A sua expressão
era enigmática, apenas remotamente velada por uma nota de malícia.
- Tenho a certeza de que é um ótimo conselho. - Mal conseguiu conter um sorriso, mas logrou igualar o autodomínio dela. - Como é que conheceu o Ronnie Bunter? -
perguntou. mudando de assunto.
- Ele o meu pai andaram na mesma faculdade de Direito. Descendo de uma longa linhagem de advogados.
Jo aproveitou a deixa dele e conversaram demoradamente durante a excelente refeição, acabando por se conhecerem melhor um ao outro. No final, Hector levou-a a um
clube noturno privado chamado Annabel's. Jo nunca lá tinha ido, mas Hector foi recebido com grande alegria pelos empregados. Quando dançaram, descobriram que se
moviam bastante bem juntos. Depois a música mudou e tornou-se suave e romântica. Pareceu perfeitamente natural quando Hector a puxou mais para si e ela encostou
a cabeça ao peito dele. Hector levou-a de volta ao hotel e acompanhou-a até à entrada, onde ela lhe disse: - Boa noite, Hector. Gostei imenso desta noite. Liga-me
pela manhã, por favor? Ainda temos tantas coisas para falar. - Depois ofereceu-lhe a face para ele a beijar e desapareceu, volteando a saia.
65
Acordou ao nascer do sol na manhã seguinte, sentindo-se repousado e bem-disposto, com a sensação de que algo de bom estava prestes a acontecer-lhe. Deixou-se ficar
deitado durante alguns momentos, perguntando-se qual a razão de todo aquele entusiasmo. Foi então que tudo lhe acudiu à mente em catadupa. Riu-se com satisfação
e lançou as pernas sobre a beira da cama.
Antes de tomar um duche apressado, ligou para a cozinha e disse ao mordomo Stephen para lhe deixar o pequeno-almoço na escrivaninha no estúdio e não na sala de jantar.
Quando desceu as escadas a correr, já lavado e vestido, deparou com Stephen a sair do estúdio.
- Bom dia, Stephen. Tenho outro favor a pedir-lhe. - Stephen
seguiu-o para dentro do estúdio e escutou as suas instruções com uma expressão de incredulidade.
- Tem a certeza de que é isso mesmo que quer, senhor Cross? - perguntou quando Hector terminou.
- Diga-me, Stephen, quando foi a última vez que lhe pedi que fizesse algo que eu não queria que fizesse?
- Acho que isso nunca aconteceu, senhor. - Pois também não vai acontecer agora - assegurou-lhe Hector. - Vou tratar já disso, senhor Cross. - É bom poder contar
sempre consigo, Stephen. Hector sentou-se à escrivaninha e ligou o computador. Quando o ecrã se iluminou, pegou no telefone e ligou para o telemóvel de Jo, cujo
número ela lhe tinha dado na noite anterior. Enquanto esperava que ela atendesse, espetou o garfo num pedaço de manga madura e enfiou-o na boca.
Jo atendeu ao quarto toque. - Bom dia, Hector. Dormiu bem? - Caí dentro de um buraco negro fundo e acordei há meia hora. pronto para matar dragões.
- Ainda existem muitos deles por aí à solta. Mate um deles por mim. Ainda estou na cama, com uma chávena de café.
- Que preguiçosa! - repreendeu-a. - A vida é para ser vivida.
- A culpa é toda sua por me ter mantido acordada até altas horas da noite. Mas foi divertido, não foi? Devíamos repetir um dia destes. - Muito em breve! - concordou
ele. - Que tal hoje à noite. ou até mais cedo?
- Preciso de ver umas pessoas na cidade esta manhã. Tinha-o prometido ao Ronnie Bunter. Não tem nada que ver com "A Semente Envenenada". É um assunto completamente
diferente. Mas depois do almoço já estarei livre.
- Venha, então. Estarei à sua espera. - Continue com a sua leitura. Aviso-o desde já que depois lhe vou fazer perguntas.
- Também tenho umas quantas para si. Desligou e concentrou toda a sua atenção no ecrã do computador.
66
Henry Bannock, ladeado por Ronnie Bunter e Bryoni, acabava de se sentar na galeria do público na sala de audiências quando o juiz Chamberlain saiu pela porta dos
seus aposentos e o oficial de diligências pediu ordem na sala.
Os doze jurados, encabeçados pelo presidente, entraram em fila e ocuparam os seus lugares na tribuna do júri. Nenhum deles olhou na direção do lugar onde Carl Bannock
estava sentado à mesa da defesa. - É um bom sinal! - murmurou Ronnie a Henry. - Eles raramente olham para aqueles que condenaram.
- Os membros do júri já chegaram a um veredito? - perguntou o juiz Chamberlain.
- Sim, Meritíssimo - respondeu o presidente dos jurados. - Qual é o veredito? - Em relação à acusação de estupro, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação
de abuso de menor, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de agressão sexual agravada, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de delito
de agressão e ofensas corporais graves, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de perpetração de incesto, consideramos o arguido culpado. Em relação
à acusação de corrupção de menor, consideramos o arguido culpado.
- Seis condenações em seis acusações - sussurrou Ronnie Bunter. - Nota máxima para a Melody Strauss.
O juiz Chamberlain agradeceu e dispensou os membros do júri e depois conferenciou com os advogados da defesa e da acusação. Dirigiu-se finalmente à sala de audiências:
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã, altura em que pronunciarei a sentença do prisioneiro.
Nessa noite, Henry organizou um jantar de celebração em Forest Drive para vinte amigos íntimos e familiares mais próximos. Cookie serviu lombo de boi texano de primeira
qualidade. mal passado e a ressumar sucos, com dois nacos de carne ainda agarrados ao osso.
Henry abriu uma dúzia de garrafas Château Lafite Rothschild de 1995 para acompanhar a carne.
Ronnie inclinou-se sobre a mesa para apostar com Melody Strauss que Carl só iria apanhar dez anos na penitenciária estatal. pois o juiz Joshua Chamberlain tinha
fama de ser liberal. Melody apostou dez dólares numa pena de pelo menos quinze anos. No entanto, ambos estiveram de acordo que o Château Lafite era o melhor vinho
que já tinham provado.
Bryoni não conseguiu aguentar até à sobremesa, pois os olhos começaram a fechar-se e a cabeça tombou-lhe em cima da mesa. Henry levou-a para o quarto dela no piso
de cima e meteu-a na cama. Sentou-se na beira da cama e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer profundamente pela segunda vez, antes de voltar para junto dos seus
convidados. Assim que ele saiu do quarto, Cookie levou-lhe uma grande taça de gelado de chocolate pelas escadas das traseiras. Bryoni conseguiu arranjar reservas
suficientes de força para acordar e devorar a taça inteira.
Às oito horas da manhã seguinte, Bonzo Barnes levou Bryoni à escola. Henry queria que ela voltasse o mais cedo possível à sua rotina habitual. Arranjara-lhe aconselhamento
psicológico a longo prazo e falara demoradamente com o diretor da escola e a professora da turma de Bryoni. Henry estava satisfeito por ter feito tudo ao seu alcance
para a ajudar a ultrapassar o trauma e a reencontrar o equilíbrio na sua vida. Tinham-no advertido de que poderia ser um processo longo, mas Henry tinha fé na força
de caráter e na maturidade da filha.
Henry saiu em direção ao tribunal num estado de espírito irado e vingativo. Às dez horas exatas, o oficial de diligências pediu ordem no tribunal.
Henry Bannock sentou-se no seu lugar habitual, ao lado de Ronnie Bunter, na primeira fila da galeria do público.
Carl Peter Bannock foi trazido da secção de detenção e conduzido pela escadaria por dois guardas de uniforme. Vinha algemado e de pés acorrentados. Estava pálido,
com a barba por fazer e de cabelo desgrenhado. Viam-se-lhe sombras escuras sob os olhos raiados de sangue. Olhou, suplicante, na direção de Henry.
A expressão de Henry era fria e irada. Susteve o olhar de Carl durante um longo momento. Carl sorriu-lhe com hesitação e os lábios tremeram-lhe. Henry afastou deliberadamente
o olhar, numa rejeição total e final.
Os ombros de Carl descaíram e avançou de passo arrastado para o banco dos acusados, onde se virou para o juiz Chamberlain.
- Arguido em julgamento, ouviu o veredito do júri. Tem alguma coisa a dizer que possa atenuar a pena que lhe será pronunciada?
Carl olhou para as correntes nos tornozelos. - Estou profundamente arrependido da dor que causei ao meu pai e aos outros membros da minha família. Usarei de tudo
ao meu alcance para os tentar compensar.
- É tudo o que tem a dizer? - Sim, senhor juiz, estou profundamente arrependido. - O tribunal tomará em conta a sua contrição na atenuação da pena - declarou o juiz
Chamberlain, olhando depois para baixo para reorganizar os papéis à sua frente na secretária. Ergueu a cabeça.
- A sentença pronunciada por este tribunal é a seguinte: pela acusação de corrupção de menor, condeno-o a cinco anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de incesto, condeno-o a seis anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de delito de agressão e ofensas corporais graves, condeno-o a seis anos de
prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de agressão sexual agravada de menor, condeno-o a vinte anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de estupro, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de abuso de menor, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal.
Ordeno que as penas sejam aplicadas em simultâneo e que o senhor fique encarcerado por um período mínimo de quinze anos.
O juiz Chamberlain olhou expectante para John Martius, que se levantou.
- Meritíssimo, peço a sua permissão para interpor recurso no Supremo Tribunal contra a sentença.
- Permissão concedida - disse Joshua Chamberlain. - No entanto, o prisioneiro será transferido diretamente deste tribunal para o Centro de Ingresso de Presos de
Holloway, em Huntsville. e daí para a penitenciária que lhe foi destinada, para começar a cumprir de imediato a pena pronunciada por este tribunal.
Olhou na direção dos dois guardas. - Meus senhores, por favor - cumpram o vosso dever.
Cada um dos guardas agarrou num dos braços de Carl Bannock e conduziram-no até ao topo das escadas. As correntes nos tornozelos retiniram quando desceu os degraus
para a secção de detenção.
- O tribunal queira levantar-se - anunciou o oficial de diligências. Henry e Ronnie foram as últimas pessoas a sair da sala de audiências.
- Podia ter sido melhor - opinou Ronnie. - Esperava um mínimo de vinte e cinco anos de cadeia. Mas quinze anos terá que servir. Pelo menos, tudo terminou finalmente
e livraste-te da semente podre que te envenenou a família.
- Pergunto-me se terá terminado realmente - disse Henry num tom sombrio. - E se foi mesmo a última vez que eu e as minhas filhas vimos aquele animal pervertido.
67
A carrinha celular tinha estacionado no recinto de segurança, quase completamente encostada à porta das traseiras do edifício do tribunal. As portas traseiras foram
abertas para receber Carl Bannock. As laterais da viatura estavam pintadas com as letras DJPT-DIC: Departamento de Justiça Penal do Texas - Divisão dos Institutos
Correcionais. Carl foi levado para dentro da carrinha e prenderam-lhe as correntes dos tornozelos às argolas no chão entre as suas pernas. As portas foram fechadas
e trancadas e a viatura arrancou para fazer a viagem de mais de cem quilómetros até ao Centro de Ingresso de Presos, em Huntsviile.
O Centro de Ingresso de Presos de Holloway era um bloco quadrado de betão, com quatro pisos e pesadas barras de aço nas janelas. Era protegido por torres de vigia
e por um triplo anel de vedações de arame farpado. A carrinha foi submetida a minuciosas revistas de segurança em cada um dos três portões. Quando alcançou o edifício
principal, os guardas de Carl retiraram-lhe as correntes das pernas e escoltaram-no ao longo de uma série de portões de abertura eletrónica, até à área primária
de receção.
Os seus papéis foram verificados uma vez mais e o seu nome e restantes dados foram inseridos no registo. Depois, o sargento atrás da secretária assinou o documento
de entrega do prisioneiro. Dois novos guardas revezaram os outros dois que o tinham escoltado desde Houston. Carl foi conduzido através de outro portão acionado
por controlo remoto, para o interior da principal área de receção. Foram-lhe confiscados todos os seus objetos pessoais. nomeadamente o anel de sinete em ouro, a
carteira, o Rolex de oure e as roupas de civil. Tudo foi inventariado e guardado em sacos. Quando o guarda lhe deu o livro de registo para assinar, devolveu-lhe
uma nota de dez dólares que tirara da carteira dele.
- Porque me está a dar isto? - perguntou Carl. - És um agressor sexual. É para produtos de higiene básicos. - O que é que isso tem a ver com a minha condenação?
- Não vais tardar a descobrir. - O guarda dirigiu-lhe um sorriso maldoso.
Conduziu Carl à sala da barbearia, onde lhe raparam o cabelo O barbeiro recuou dois passos para admirar o seu trabalho. - Fabuloso! - opinou. - Os rapazolas sulistas
aqui de Holloway vão-te adorar, ó carinha laroca.
Os guardas levaram-no para a zona de duches para se lavar Depois, nu e molhado, foi levado ao armazém, onde lhe entregaram um uniforme através de um postigo. O uniforme
era composto por uma T-shirt e cuecas brancas, casaco e calças largas de lona branca, com cordão na cintura, e mocassins de lona branca.
Levaram-no através de outro portão eletrónico para uma Cela individual numa comprida fileira de celas e trancaram a porta. O mobiliário consistia numa latrina turca
e num beliche de madeira firmemente fixado ao chão e à parede lateral. Havia um único cobertor, mas nenhum colchão. Mais tarde, foi-lhe entregue o jantar através
do postigo: uma tigela de estufado aguado, com um grosso naco de pão dentro.
Cedo na manhã seguinte, foi levado da cela para a sala de interrogatório, onde três membros da direção do Centro de Ingresso esperavam sentados a uma mesa de aço.
Os três eram membros da Divisão dos Institutos Correcionais e envergavam uniforme.
- Carl Peter Bannock. Está correto? - perguntou o homem sentado no meio do trio, sem erguer a cabeça.
- Sim - respondeu Carl. - Sim, senhor! - corrigiu-o o interrogador. - Sim, senhor - repetiu Carl respeitosamente. - Pena de quinze anos, no mínimo. Está correto?
- Sim, senhor. - Agressor sexual e pedófilo. Está correto? - Sim, senhor - disse Carl por entre os dentes cerrados. - É melhor enviá-lo para o Centro Correcional
de Detenção a Longo Prazo de Holloway - disse outro dos membros do painel.
O membro de hierarquia superior sugeriu: - E se o enviássemos para o sexto nível, onde os outros reclusos de longa duração não lhe podem fazer nada? - O único lugar
onde aqueles rapazolas sulistas não lhe vão conseguir deitar a mão é lá no céu, e este lindinho nunca conseguirá chegar tão alto. - O terceiro membro do painel riu-se
à socapa e os outros riram por entre dentes.
Nessa tarde, outra carrinha celular do DJPT-DIC levou Carl cerca de trinta quilómetros mais para sul, para o interior da zona histórica da escravatura do algodão,
onde, no meio de numa paisagem árida e incaracterística, a penitenciária de Holloway se erguia sob a forma de um enorme monumento de betão cinzento, erigido à infâmia
da humanidade.
Ali, a segurança era ainda mais rigorosa do que no Centro de Ingresso. A carrinha demorou vinte minutos a passar pelo anel
composto pelas três vedações, até estacionar na entrada reservada à receção dos presos. Depois, mais vinte e cinco minutos de espera até tirarem as algemas e as
correntes a Carl e o transferirem do piso térreo para o seu destino final, no sexto e último nível do edifício.
Do elevador, foi conduzido ao longo de um corredor curto até uma porta onde se lia GABINETE DO SUPERVISOR DE NÍVEL. Um dos guardas bateu à porta e um berro abafado
respondeu-lhe do interior. Abriu a porta e fez sinal a Carl com a cabeça para entrar. O supervisor de nível estava sentado atrás da secretária. No crachá de plástico
preso à camisa lia-se LUCAS HELLER.
Lucas estava de botas pousadas no tampo da secretária e baloiçava a cadeira equilibrando-a nas duas pernas traseiras. Deixou a cadeira cair para a frente, com enorme
estrondo, até ficar apoiada nas quatro pernas, e levantou-se. Era alto, de ombros curvados e esguio. O cabelo ruivo já lhe rareava, mas o que restava dele caía-lhe
sobre a testa. As orelhas, enormes, eram desproporcionais
para o rosto comprido e pálido. Os olhos também eram pálidos e aquosos, mas a ponta do nariz era rosada e tinha as narinas húmidas devido à rinite. Os dois dentes
superiores da frente sobressaíam ao ponto de lhe conferirem um ar de coelho anémico.
Tinha um pingalim na mão direita. Contornou a secretária e girou com lentidão em redor de Carl nas suas pernas de cegonha. Fungou ruidosamente, com um som líquido,
enquanto estendia o braço e passava a ponta de couro do pingalim sobre as nádegas do preso. Carl sobressaltou-se e Lucas voltou a fungar, soltando risadinhas como
uma colegial.
- Bom - disse. - Muito bom. Vais encaixar bem aqui. - Piscou o olho a um dos guardas. - Vais encaixar mesmo muito bem, se me faço entender. - Sim! Entendi-o muito
bem, chefe. - O guarda desatou às gargalhadas.
Lucas voltou a colocar-se à frente de Carl e sentou-se na borda da secretária. - Já te deram os teus dez dólares para os produtos de higiene básicos, ó Bannock lindinho?
- Sim, chefe. - Dá-mos cá. - Lucas estendeu a mão e estalou os dedos. Carl enfiou a mão no bolso das calças de lona branca e tirou a nota amarrotada. Lucas arrancou-lha
da mão. Depois, voltou para trás da secretária e abriu uma das gavetas, de onde tirou uma garrafa plástica grande e a fez deslizar sobre o tampo na direção de Carl.
- Aí tens.
Carl pegou na garrafa e examinou o rótulo. - "Óleo essencial Macassar12 de primeira qualidade. Ideal para o cabelo" - leu em voz alta, com um ar perplexo.
- O que devo fazer com isto, chefe? - Já vais saber quando chegar a altura - assegurou-lhe Lucas. - Aconselho-te a mantê-la à mão. - Olhou para o guarda. - Tens
o recibo desta mercadoria?
Nota de Rodapé: Óleo de coco ou de palma, muito perfumado, assim designado por ter sido fabricado originalmente a partir de ingredientes comerciados no porto de
Makassar, na Indonésia.
Fim da Nota.
- Aqui mesmo, chefe. - O guarda pousou o livro de recibos à frente dele e Lucas escrevinhou a sua assinatura.
- Muito bem, rapazes. Tragam-no. - Conduziram Carl de volta pelo corredor e através de outra porta robusta, até ao interior de uma comprida galeria de aço cinzento
e betão de um cinzento mais escuro. O teto abobadado era de vidro blindado. Feixes retangulares de brilhante luz solar, repletos de partículas de poeira prateadas,
incidiam no chão. De cada um dos lados da galeria estendia-se uma comprida fila de celas de grades de aço. Vultos indistintos agarravam-se às grades ou mantinham-se
acocorados no interior, espreitando Carl enquanto era conduzido pelo guarda. Alguns deles gritaram-lhe as boas-vindas num tom sardónico e brindaram-no com piropos
e assobiadelas, rindo e enfiando as mãos entre as grades para lhe fazerem gestos obscenos.
Lucas parou à frente da última cela da fila e abriu a porta com a sua chave-mestra eletrónica.
- Bem-vindo à cela número 601. A Suíte Nupcial. - Lucas sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Assim que Carl entrou, a porta deslizou e fechou-se atrás dele. Lucas
e a escolta refizeram o mesmo trajeto pelo corredor, sem nunca olharem para trás.
Carl sentou-se no único beliche existente e olhou em redor da cela. Não era maior do que a sua cela no Centro de Ingresso. A única melhoria era o pequeno lavatório
de aço inoxidável ao lado da latrina turca e um banco à frente de uma pequena mesa. Cada peça de mobiliário estava presa às paredes para evitar ser usada como arma.
Este seria o seu lar pelo menos durante os seguintes quinze anos, um pensamento que o fez perder o ânimo.
Às seis da tarde, soou uma campainha e Carl, seguindo o exemplo dos outros reclusos, postou-se à porta da sua cela. Todas as portas das celas desse nível se abriram
em simultâneo e os presos saíram para a galeria.
Ao som das ordens gritadas pelos guardas armados na passarela de aço em cima, todos se viraram e seguiram em fila até ao refeitório na outra ponta da galeria. À
medida que cada recluso passava à frente do postigo da cozinha, era-lhe entregue um pequeno tabuleiro de plástico por um dos homens na cozinha. O jantar era uma
tigela de sopa, outra tigela de estufado de carne de carneiro e uma rodela de pão branco. Carl sentou-se a uma das mesas de aço nu, mas nenhum dos outros reclusos
se juntou a ele. Formavam grupos com outros presos da mesma origem étnica. Alguns deles estavam manifestamente a falar de Carl, mas, como ele não conseguiu ouvir
o que estavam a dizer, ignorou-os. Disse a si mesmo. com amargura, que teria muitos mais anos para encontrar o seu lugar naquela sociedade pervertida.
Tinham vinte minutos para comer e, após esse tempo, os guardas nas passarelas no alto ordenaram-lhes que voltassem para as suas celas.
O encerramento das celas era às sete e trinta. Carl deitou-se de costas no beliche, de pernas cruzadas e com as mãos atrás da nuca. Estava exausto. Tinha sido um
dia de preocupações e incertezas. Pelo menos o jantar fora comestível e ansiava que as lâmpadas de arco voltaico que iluminavam a cela fossem desligadas para a noite.
Mas tinham-no advertido de que isso nunca iria acontecer.
Começou a dar-se conta gradualmente de que as vozes dos presos nas celas à sua volta se reduziam a sussurros expectantes e a risos abafados. Soergueu-se e olhou
através das grades para a comprida galeria, mas a sua visão era limitada e não conseguiu descortinar nenhuma razão para a atmosfera carregada que parecia ter-se
apoderado dos outros reclusos no Nível Seis.
Depois, ergueu-se e lançou as pernas sobre a beira do beliche quando se apercebeu do estrépito de passos que se aproximavam ao longo da galeria. Lucas Heller, o
supervisor do nível, entrou no seu campo de visão. Empunhava o seu pingalim. Usava um chapéu regulamentar e um uniforme engomado.
- De pé, prisioneiro! - ordenou. Carl levantou-se do beliche. - Estás a gostar da tua primeira noite em Holloway, Bannock- - Tudo bem, chefe. - O jantar estava bom?
- Não tenho queixas, chefe.
- Estás aborrecido? - Nem por isso, chefe. - Então estás com azar, Bannock. Porque trouxe comigo alguns dos rapazes sulistas para te fazerem companhia. Alguns deles
já estão aqui há vinte anos ou mais e entediados de morte. Nenhum deles esteve com uma mulher nesse tempo todo, e andam todos pra'í com um bruto tesão, isso te garanto!
Carl retesou-se e sentiu a pele eriçar-se. Tinha ouvido as piadas e os rumores, mas quis acreditar que não eram verdadeiros e que isso nunca lhe aconteceria a ele.
Mas havia homens estranhos a amontoarem-se atrás de Lucas.
- Posso apresentar-te o senhor Johnny Congo? - Lucas pousou a mão no ombro do homem mais próximo dele. Lucas era alto, mas teve de esticar o braço à altura da cabeça
para poder fazê-lo. O homem parecia ser uma enorme montanha de antracite. A cabeça era redonda e lisa como uma bola de canhão. Usava apenas T-shirt e calções, de
modo que Carl pôde reparar que os membros dele eram como toros de madeira dura, negros como ébano, todo ele músculo rijo e osso, quase desprovido de qualquer sinal
de gordura. - O senhor Congo está a viver lá em baixo no corredor da morte enquanto o Supremo Tribunal considera o recurso que ele interpôs. Está connosco há oito
anos e é altamente respeitado aqui em Holloway, de modo que tem direitos de visita especiais. - Lucas ergueu a mão, de palma virada para cima, e Johnny Congo colocou
uma nota de vinte dólares nela. Lucas sorriu em agradecimento e premiu o botão de abertura da porta. A porta gradeada deslizou para o lado.
- Pode entrar, senhor Congo. Demore todo o tempo que quiser. Divirta-se.
Congo entrou na cela e os outros homens amontoaram-se junto à porta gradeada atrás dele, acotovelando-se uns aos outros para conseguirem as melhores posições e sorrindo
de expectativa.
- Tens aí o teu óleo Macassar, lindinho? - perguntou Congo a Carl. - Tens trinta segundos para te besuntares e te pores de joelhos, senão enrabo-te a seco.
Carl recuou para longe dele. Estava mudo de terror e começou a choramingar. - Não. Não, por favor, deixa-me em paz.
A cela era exígua e bastaram três passadas de gigante para Congo o encurralar no canto. Esticou a mão e agarrou no antebraço de Carl. Com um rápido girar do punho,
lançou-o de cara contra o beliche.
- Baixa as calças, lindinho. Dá-me cá o óleo. - Foi então que o próprio Congo viu a garrafa de óleo Macassar na prateleira por cima do lavatório, onde Carl a colocara.
Pegou nela e tirou a tampa. Voltou para junto do beliche. Carl enrolara o corpo numa bola, com os joelhos encostados ao queixo. Congo virou-o de cara contra o beliche,
enfiou um joelho entre as omoplatas de Carl e arrancou-lhe o cordão das calças. Segurou a garrafa no alto e despejou metade do conteúdo em cima das nádegas de Carl.
- Quer estejas pronto ou não, aqui vou eu! - disse Congo enquanto se punha em posição atrás de Carl.
- Não... - choramingou Carl, e depois gritou. Foi um som da mais profunda angústia. Cada um dos homens que aguardavam a sua vez pagaram a Lucas o preço da entrada,
como espectadores num jogo de futebol, e depois apinharam-se dentro da cela, atrás do par no beliche. As suas vozes eram roucas de desejo e excitação. Um deles entoou:
- Dá-lhe, Congo! Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe!
Os outros riram-se e retomaram o refrão. - Dá-lhe, Congo, dá-lhe! De repente, Congo arqueou as costas, lançou a cabeça para trás e soltou um urro como um touro no
cio. O homem atrás dele ajudou-o a sair e ocupou imediatamente o seu lugar. Carl voltou a gritar.
- Meu Deus, como ele canta tão doce - disse o terceiro homem na fila.
Na altura em que o quinto homem se aproximou dele, Carl já não gritava mais. Quando o último homem terminou, abanou a cabeça, desiludido, enquanto se afastava.
- Parece que já desmaiou e deixou-nos aqui pendurados, pá Congo estivera sentado no beliche ao lado de Carl. Levantou-se e disse: - Ná, ainda continua a respirar.
Se está a respirar.
então ainda aguenta mais um bocadinho de amor. - Pôs-se atrás de Carl uma vez mais.
O homem de confiança da enfermaria da prisão tinha sido convidado para a festa, tanto a título pessoal como profissional. Acercou-se no seu papel profissional e
verificou a pulsação de Carl sob o queixo, na artéria carótida.
- Este rapazola já teve o suficiente para esta noite. Ajudem-me a levá-lo lá para baixo e daqui a duas ou três semanas já estará pronto para mais diversão.
68
Ao amanhecer, Carl encontrava-se num estado crítico devido ao trauma e à perda de sangue. Foi chamado o médico da sede central. Ordenou que Carl fosse transferido
para as principais instalações médicas na Penitenciária Estatal de Huntsville.
No bloco operatório, aspiraram-lhe por sucção a cavidade abdominal inferior e quase lhe retiraram dois litros de sangue e esperma. Depois, o cirurgião suturou-lhe
os vasos sanguíneos rasgados. reparou-lhe cirurgicamente as lesões no quadrante inferior do cólon e administrou-lhe três litros de sangue por transfusão.
Durante a sua convalescença nas instalações médicas de Huntsville, Carl teve autorização para fazer chamadas e receber visitas. Telefonou para o Carson National
Bank em Houston e pediu ao seu gerente de conta para o visitar. Carl era um cliente importante e o gestor de conta anuiu de imediato.
Carl tinha trabalhado para o seu pai adotivo e para a Bannock Oil Corporation durante dois anos e dois meses antes da sua detenção. Henry estipulara-lhe um salário
inicial no belo montante de cento e dez mil dólares mensais. Henry acreditava firmemente no método de incentivos e punições. Também acreditava que o seu único filho
varão merecia ser tratado de forma principesca.
Para grande espanto e profunda satisfação de Henry, Carl revelara quase de imediato uma extraordinária perspicácia para os negócios que estava muito para além daquilo
que Henry esperaria de alguém com essa idade e inexperiência. No final do primeiro ano, Henry sentiu um enorme orgulho ao aperceber-se de que Carl era um génio financeiro,
cujos dotes naturais rivalizavam, e em alguns acasos até excediam, os seus. Carl viria a demonstrar uma assombrosa capacidade para farejar possíveis lucros, com
a mesma prontidão com que uma hiena esfomeada conseguia detetar uma carcaça em decomposição. O seu salário subiu exponencialmente à medida que os seus talentos se
desenvolviam e floresciam. No final do seu segundo ano na Bannock Oil, já tinha conquistado o seu lugar no conselho administrativo da companhia, e o montante total
do seu salário e honorários como diretor ascendia a duzentos e cinquenta mil dólares por mês. De acordo com as cláusulas estipuladas na escritura, o Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock estava obrigado a pagar-lhe por mês uma soma adicional três vezes superior ao montante dos seus ganhos pessoais. Em resultado da generosidade
do pai, mesmo depois de pagar meticulosamente os seus impostos, Carl tinha conseguido acumular um saldo de crédito muito superior a cinco milhões de dólares, de
modo que o gestor de conta acedera de imediato ao seu pedido.
Ao sexto dia, Carl já tinha recuperado suficientemente das lesões retais para poder ser transferido para a enfermaria do Centro de Holloway. Levou consigo o novo
livro de cheques que o gestor de conta lhe facultara. Da enfermaria, Carl conseguiu enviar uma mensagem a Lucas Heller através do enfermeiro de serviço. A mensagem
dizia que Lucas deveria falar com ele se desejava saber uma coisa que seria do seu grande benefício.
Lucas condescendeu em descer à enfermaria para ver Carl, principalmente pela oportunidade de poder troçar dele confinado à cama. De forma a manter a conversa aliciante,
e como sinal da sua boa-fé, Carl deu-lhe um cheque de cinco mil dólares ao portador pelo Carson National Bank. Lucas leu o montante com estupefação: raras vezes
tivera tanto dinheiro nas mãos de uma só vez, mas a experiência havia-o ensinado a não confiar em fadas madrinhas. Recusou-se a acreditar naquele golpe de sorte
até ter a oportunidade de ir apressadamente à cidade levantar o cheque na filial local do banco.
O caixa pagou-lhe sem levantar a mínima objeção. De cético tornou-se prontamente num crente. Regressou ao Centro de Holloway e voltou a visitar Carl. Nesta ocasião,
os seus modos eram profundamente deferentes e obsequiosos.
Carl ordenou-lhe então que veiculasse uma mensagem a Johnnv Congo no corredor da morte. Por essa altura, Carl já compreendera todas as estruturas de poder subjacentes
ao Centro de Hollowav. Ficara a saber que Johnny Congo exercia uma enorme influência em toda a prisão. À semelhança de uma grotesca aranha devoradora de carne humana,
mantinha-se no centro da sua teia e manipulava os fios, que se estendiam até ao gabinete do diretor do complexo prisional.
Ao longo dos anos, o diretor fora depositando uma enorme confiança em Congo para manter a ordem entre os reclusos. Se Johnny passasse a palavra de ordem para que
houvesse "paz e cooperação". então a administração do centro conseguia manter uma certa aparência de ordem no meio de um sistema que parecia especificamente concebido
para produzir o caos.
No entanto, se Johnny Congo dissesse "Motim!", rebentavam incêndios por todo o centro; os guardas eram esfaqueados nas oficinas, ou nas galerias, ou nas passarelas;
os reclusos assumiam o controlo dos refeitórios e do pátio da prisão. Partiam o mobiliário e demais acessórios. Assassinavam alguns dos seus companheiros para darem
vazão a velhos rancores ou em obediência às ordens de Johnny Congo. Atiravam objetos e gritavam insultos aos guardas. até que a Guarda Nacional fosse chamada com
equipamento antimotim completo. E, no rescaldo final, as classificações do desempenho do diretor caíam a pique.
Graças à sua cooperação com a administração, Johnny Congo tinha conquistado privilégios especiais. Assim que novos detidos chegavam ao centro, podia escolher os
mais bonitos entre eles. como Carl sentira pessoalmente na pele. Como a sua cela nunca era revistada, as suas reservas de droga e outros luxos nunca eram devassados.
Permitiam-lhe, inclusive, ter telemóvel na cela, de modo que podia comunicar com os seus contactos e parceiros de crime no mundo exterior. A sua pena de morte estava
obstruída algures no sistema; corriam rumores de que o governador do Texas tratara para que assim fosse. Os mais bem informados estavam a apostar que Johnny morreria
de velhice, sem qualquer ajuda do homem da injeção letal na câmara de execução de tijoleira branca.
Se alguém incorresse no desagrado de Johnny Congo, era apenas uma questão de dias até que a questão fosse resolvida à navalhada no pátio da prisão, ou às primeiras
horas da madrugada, na privacidade da própria cela do ofensor, que teria sido convenientemente deixada destrancada pelo Supervisor de Nível.
Corria o rumor de que a influência de Johnny Congo se estendia muito para lá dos muros da prisão. Acreditava-se que ele mantinha fortes laços com organizações criminosas
e gangues de todo o Texas e estados circundantes. Por um preço muito razoável, Johnny dispunha-se a corrigir problemas em cidades tão distantes como San Diego e
São Francisco.
Lucas Heller demorou quase uma semana a conseguir o encontro entre Carl e Johnny Congo, mas, no final, o gabinete do supervisor do corredor da morte foi colocado
à disposição e os dois reuniram-se às três da madrugada de um domingo, quando o resto do centro estava trancado para a noite. O Supervisor de Nível e quatro dos
seus guardas esperaram à porta, mas não interferiram.
Assim que Carl e Congo ficaram a sós, avaliaram-se um ao outro com desconfiança, como dois leões de juba negra de grupos rivais que se tivessem cruzado em território
disputado na savana africana. Por esta altura, Congo já percebera que Carl não era mais uma cara linda. Sabia que Carl era filho de Henry Bannock e conhecia o poder
e a riqueza da Bannock Oil Corporation.
- Querias falar comigo, lindinho? - Preciso da sua proteção, senhor Congo. - Carl não desperdiçou tempo. - Podes apostar esse teu lindo cuzinho que precisas mesmo,
pois em pouco tempo ia deixar de ser assim tão lindo e macio. Mas porque é que eu te deveria proteger?
- Posso pagar-lhe. - Sim, pá, talvez seja motivo suficiente para eu o fazer. Mas de quanto dinheiro estamos aqui a falar, rapaz?
- Diga-me o senhor. Congo pôs-se a catar o nariz enquanto ponderava a questão. Por fim, examinou a crosta de muco seco que retirara da narina esquerda
e sacudiu-a do dedo antes de anunciar o seu preço. - Cinco mil dólares a cada mês, em notas de um e cinco dólares, entregues aqui em Holloway. Não me servem de nada
lá fora. - Tinha estabelecido uma quantia escandalosamente exagerada, na esperança de que Carl regateasse.
- Que quantia mais ridícula, senhor Congo - disse Carl. Johnny Congo ficou ofendido e cerrou os punhos, que mais pareciam grossos presuntos negros. - Para um homem
do seu estatuto e posição elevada, estava a contar pagar-lhe dez ou até quinze mil dólares por mês.
Johnny Congo pestanejou e descerrou os punhos. Começou a sorrir de um modo paternal. - Estou-te a ouvir, lindinho, e estou a gostar do que ouço. Quinze mil parece-me
bastante bem.
- Tenho a certeza de que conseguirá arranjar uma forma de lhe entregarem o dinheiro desde o banco até ao local onde o quer ter. Diga-me só o que devo fazer e assim
farei. Ponho a minha mão no fogo, senhor. - Estendeu-lhe a mão. Congo estendeu a mão e, enquanto lha apertava, disse numa voz retumbante: - É mais do que a tua mão
o que está em jogo. rapaz. É toda a tua linda vidinha.
- Eu sei que sim, senhor Congo. Mas, se quer mesmo ganhar uma grande pipa de massa, devíamos fazer negócios juntos.
- Que tipo de negócios? - Congo quase se ria na cara dele. - Ora conta aí, lindinho.
Carl falou durante cerca de quarenta minutos e Congo manteve-se inclinado para a frente, ouvindo-o quase sem o interromper. No final, sorria de orelha a orelha e
os olhos brilhavam-lhe.
- Como sei que vais cumprir com o que dizes, rapaz? - perguntou-lhe por fim.
- Se eu não cumprir, então pode retirar-me a sua proteção senhor Congo.
Foi um encontro decisivo, do qual só poderia emergir uma aliança ímpia: um jovem génio de natureza retorcida a aliar os seus talentos aos estratagemas de um monstro
implacável que tinha poderes de vida e morte sobre os outros. Ambos eram psicopatas, completamente desprovidos de compaixão, escrúpulos ou remorsos.
Ao longo dos anos seguintes, os lucros dos seus vários empreendimentos, inicialmente concebidos por Carl e depois promovidos por Johnny Congo, eram primeiro lavados
e branqueados. Os amigos de Johnny no exterior voluntariavam-se com avidez para os auxiliar nesse processo. Depois de o dinheiro ter sido lavado, era pessoalmente
distribuído a Carl sob a forma de dividendos, e de honorários para o diretor da prisão, através de uma companhia nas ilhas Virgens Britânicas que Carl tinha criado
quando ainda estudava em Princeton. O valor das receitas finais era quadruplicado pelo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. No final, a enorme soma total era
dividida entre Carl e Johnny Congo e ocultado em contas bancárias numeradas em Hong Kong, Moscovo, Singapura e noutras cidades espalhadas pelo globo, onde nem mesmo
o poderoso braço da Administração Fiscal dos Estados Unidos conseguiria chegar.
De modo a facilitar a operação dos seus empreendimentos, tanto dentro como fora da prisão, Carl e Johnny depressa se viram na necessidade de incluir Marco Merkowski,
o diretor do Centro Correcional de Holloway, como sócio comanditário. Assim que o envolveram no seu primeiro esquema ilegal, Marco deu por si completamente às mãos
de Carl Bannock e de Johnny Congo.
69
Carl foi transferido do nível seis para a unidade do nível um. onde estavam alojados os condenados com regalias e outros reclusos de cadastro imaculado por motivo
de bom comportamento. A cela onde ficou instalado tinha o triplo do tamanho da sua cela anterior no nível seis. Dispunha de um televisor e do seu próprio telemóvel.
O telemóvel era um elemento essencial na gestão dos interesses comerciais da aliança. Por um feliz acaso, Carl deu por si a operar num mercado ferozmente em alta.
Todos os seus antigos contactos continuavam nos seus postos e os instintos do jovem Carl para o lucro mantinham-se infalíveis. Nos seus lentos dias na prisão, Carl
continuava a ter muito tempo para concentrar a sua mente fecunda a planear o futuro. Já se tinham passado mais de cinco anos desde a sua detenção. O seu cadastro
prisional não tinha máculas, graças aos bons ofícios do diretor Merkowski. A pena mínima inicial de quinze anos pronunciada pelo juiz Chamberlain tinha sido reduzida
em recurso para um mínimo de doze anos. Carl já quase cumprira metade dessa sentença. Ainda só tinha trinta anos, mas já era um multimilionário astuto e muito sabido,
desejoso de enfrentar o mundo nos seus próprios termos assim que saísse pelos portões do Centro Correcional de Holloway.
Graças aos múltiplos contactos de que ele e Johnny Congo dispunham no exterior, Carl mantinha-se sempre completamente informado acerca dos movimentos do pai e dos
passos de todos os outros beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Infelizmente para Carl e para as suas aspirações financeiras, o pai tinha conhecido uma tenista profissional, uma campeã trinta anos mais nova do que ele, consideravelmente
mais jovem do que o próprio Carl Bannock. Carl tinha visto fotografias dessa mulher. Chamava-se Hazel Nelson e era loira, atlética e encantadora. Apenas alguns meses
depois de se terem conhecido, o seu pai e Hazel casaram-se numa magnífica cerimónia na residência de Forest Drive, em Houston. Menos de um ano depois, Hazel deu
à luz uma menina à qual puseram o nome Cayla. O recorde de Henry de gerar apenas progénie do sexo feminino mantinha-se intacto. Na perspetiva de Carl, esta nova
e inoportuna aventura do seu pai viera adicionar mais dois nomes à lista de beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
A lista completa compreendia um total de sete pessoas, incluindo o próprio Carl: Henry Bannock e Hazel Bannock, juntamente com a sua filha Cayla; a mãe de Carl,
Marlene Imelda Bannock, que conservara o apelido do marido depois do divórcio; e as duas meias-irmãs de Carl, Sacha Jean e Bryoni Lee. Usando como base o valor de
mercado das ações da Bannock Oil Corporation na Bolsa de Valores de Nova Iorque, Carl estimou que o valor total do património atual do Fundo Fiduciário da Família
Henry Bannock rondasse os cento e onze mil milhões de dólares. A ideia de ter de partilhar mesmo essa quantia tão vasta com cinco ou seis outras pessoas causava-lhe
um ressentimento feroz.
A partir da sua cela, Carl seguia com enorme interesse pessoal o pedido legal que o pai submetera há muitos anos ao Supremo Tribunal de Washington DC para que Carl
Peter Bannock fosse excluído da lista de beneficiários do Fundo Fiduciário em razão de não ser parente de sangue do dador, e pelo facto de a sua condenação por uma
série de crimes graves o ter desqualificado. Quando os eminentes juízes do Supremo Tribunal rejeitaram por unanimidade o pedido de Henry Bannock, Carl soube então
que somente a morte poderia negar-lhe a sua parte dos fundos fiduciários.
Carl e Johnny Congo celebraram a notícia com uma pequena e discreta festa no corredor da morte, na qual participaram o diretor Merkowski e várias jovens acompanhantes
trazidas de Huntsville para a ocasião. Embora Carl e Johnny Congo se tivessem tornado amantes há muitos anos, ficaram bastante satisfeitos por partilharem o seu
leito conjugal com uma ou duas raparigas bonitas, ou mesmo rapazes quando os havia disponíveis.
A decisão do Supremo Tribunal a seu favor levou Carl a refletir seriamente sobre as muitas cláusulas notáveis que o seu pai estipulara na escritura do Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock.
Carl tinha desenvolvido uma excelente memória durante os seus anos de estudo e, embora nunca mais tivesse tido acesso a uma cópia da escritura original do Fundo
Fiduciário desde o dia em que conseguira abrir a caixa-forte do pai, fizera no entanto anotações detalhadas do seu conteúdo. Durante todo esse tempo houvera sempre
uma cláusula em particular que o pai incluíra na escritura que nunca deixara de o atormentar. A provisão postulava que quando restasse apenas um único beneficiário
vivo, os mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock deveriam liquidar o fundo, e todo o restante património deveria ser dividido igualmente entre uma
instituição de caridade favorecida por Henry e o único beneficiário vivo, fosse homem ou mulher.
Carl decidiu que chegara a altura de aproveitar ao máximo essa cláusula enquanto permanecia oculto da visibilidade pública nas profundezas do Centro Correcional
de Holloway, e enquanto as paredes de betão que o aprisionavam continuavam a funcionar como um escudo capaz de defletir possíveis suspeitas sobre ele e lhe forneciam
um álibi inabalável.
O próprio Henry era invulnerável, mas estava a envelhecer rapidamente. Ao ritmo a que ele vivia a vida, não duraria muitos mais anos. Através dos seus informadores,
Carl inteirara-se de que Henry já começava a dar sinais de esmorecer. Carl sabia que tinha um aliado no Anjo da Morte e estava preparado para esperar.
Hazel e a sua jovem filha Cayla estavam protegidas pelo pesado manto de majestade que Henry Bannock lançara sobre todos aqueles que o rodeavam de mais perto. Hazel
e Cayla ainda não estavam vulneráveis. Mas a sua hora chegaria assim que Henry ficasse fora do caminho.
O mesmo não se aplicava à sua mãe alcoólatra, Marlene Imelda, que ele desprezava; e também não se aplicava às suas meias-irmãs, por quem nutria um ódio profundo
e amargo. Eram diretamente responsáveis pela sua encarceração e pelos muitos anos desperdiçados da sua vida que era obrigado a passar atrás de barreiras de aço e
betão, na companhia de criaturas mais abjetas do que qualquer fera da selva. Carl ficara a saber que a condição mental da sua irmã mais velha Sacha, melhorara de
forma tão significativa desde que ele fora encarcerado que os seus médicos puderam finalmente dar-lhe alta do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms e entregá-la aos
cuidados da sua mãe. Sacha fora viver então com Marlene nas ilhas Caimão. A relação entre mãe e filha tinha florescido no âmbito dessa nova intimidade. Marlene não
ficou curada da sua dipsomania; no entanto, a tutela da sua primogénita dera-lhe o incentivo de que precisava para tentar tornar-se abstémia. Devotava agora todo
o seu amor e atenção a Sacha, e esta correspondia-lhe com enorme gratificação.
Quando Henry Bannock casou com Hazel Nelson e Cayla nasceu, Bryoni decidiu sair de Forest Drive e mudar-se para as ilhas Caimão para estar com a mãe e a irmã. Por
essa altura, Bryoni não era muito mais jovem do que a sua madrasta Hazel. As duas raparigas tinham personalidades muito fortes e competitivas e ambas disputavam
ferozmente a atenção de Henry Bannock. Tivessem sido outras as circunstâncias e talvez se houvessem tornado amigas, mas o nascimento da bebé Cayla fizera pender
a balança nitidamente a favor de Hazel. Era agora não só a nova patroa de Forest Drive, como também a mãe da filha mais nova de Henry. Henry estava perdido de amores
por Hazel e tratou de a encorajar quando ela começou a desenvolver um grande interesse pelos negócios da Bannock Oil Corporation. Pouco tempo depois, Henry atribuiu-lhe
o cargo na administração da companhia que Carl deixara vago após a sua condenação.
Hazel ocupou o seu lugar à mesa do conselho de administração, à direita de Henry. Ela era tudo para Henry Bannock: amante, esposa, mãe da sua filha, parceira nos
negócios e companheira íntima.
Bryoni, por seu lado, não tinha nenhum interesse particular pela Bannock Oil Corporation. Graças ao Fundo Fiduciário, dispunha de todo o dinheiro de que precisava,
e não era gananciosa. Possuía alguns dos outros talentos que Hazel possuía em abundância e que a tornavam tão valiosa e desejável aos olhos de Henry Bannock. Bryoni
não podia competir com ela a nenhum nível. De modo que partiu para a Grande Caimão nas Caraíbas, onde Marlene e Sacha a receberam com um entusiasmo comovente, e
onde ela pôde servir um propósito que era simultaneamente muito valorizado pelas duas pessoas que ela mais amava e que a realizava em pleno.
Na perspetiva de Carl, esse passo fora também muito favorável: três dos beneficiários do Fundo Fiduciário tinham sido removidos do escudo de proteção do pai e para
longe da jurisdição e tutela do governo dos Estados Unidos da América, para uma ilha isolada
onde estavam muito mais vulneráveis e acessíveis às atenções dos amigos de Johnny Congo.
Carl elaborou os seus planos com grande minúcia e atenção aos detalhes. Congo participou com entusiasmo nesse empreendimento. Dispunha de contactos nos cartéis de
cocaína nas Honduras e na Colômbia, os quais estavam sempre interessados em ganhar uns dólares extra em projetos secundários e mais mundanos.
O contacto de Johnny nas Honduras era um indivíduo chamado Sefior Alonso Almanza, cujo quartel-general se situava no porto de La Ceiba, onde operava duas velozes
lanchas de longo percurso. com doze metros de comprimento. Eram geralmente usadas para o contrabando de cocaína a coberto da noite, para o norte do México. Texas
ou Louisiana. No entanto, nesses últimos tempos a guarda costeira americana tinha-se tornado um pouco problemática, de modo que as suas potentes embarcações estavam
subaproveitadas
A distância entre La Ceiba e as ilhas Caimão era inferior a quinhentas milhas marítimas: um trajeto fácil e quase um passeio para as enormes e rápidas lanchas Chris-Craf
t.
- O Alonso é um bom tipo, de absoluta confiança. Não tenho remorsos em despachar alguém desta pra melhor se o preço for atrativo. Acho que não conseguíamos arranjar
ninguém mais indicado - disse Johnny Congo a Carl.
- Agrada-me a descrição que fazes dele, e os preços que ele pede são em conta. Mas e quanto ao reconhecimento inicial? Tens alguém lá na Grande Caimão que possa
fazer isso para nós?
- Não há problema, lindinho. - A alcunha, que começara por ser deliberadamente pejorativa, tornara-se agora num termo carinhoso entre os dois. - Há também um agente
imobiliário em George Town que chegou a fazer uns trabalhinhos pra mim. Nada melindroso. Basta dizer-lhe que queremos fazer uma oferta anónima por uma propriedade
na ilha e que precisamos duma descrição completa de tudo o que contém, incluindo o pessoal doméstico e ocupantes.
- Contacta-o então, Negrão. - Qualquer outra pessoa que chamasse isso a Johnny Congo na cara sofreria uma morte prematura e dolorosa. - Acima de tudo, precisamos
de obter informações sobre as medidas de segurança na propriedade. Se conheço bem o meu pai, e posso garantir-te que sim, devem ser apertadas. Vamos precisar de
saber em que quarto dorme a minha mãe e onde podemos encontrar as minhas duas irmãs. Quase apostava que os quartos delas são logo ao lado do da querida mamã.
O contacto de Johnny Congo na Grande Caimão era um inglês aposentado, chamado Trevor Jones, que decidira passar os seus dias de reforma numa ilha paradisíaca tropical.
No entanto, para seu grande desgosto, descobrira que o paraíso saía a um preço caro e que a sua pensão não dava para esticar tanto como esperara. De bom grado aceitara
aquela lucrativa missão proposta por Carl Bannock. Conseguiu obter, no gabinete de topografia do governo, uma cópia da planta da propriedade The Moorings, a residência
dos Bannocks junto à praia. Depois tratou de desencantar uma antiga criada de quarto da Sra. Marlene Bannock que tinha sido despedida das suas funções por ter roubado
um par de anéis de pérola da caixa de joias da Menina Sacha Bannock. Chamava-se Gladys e abandonara The Moorings com um rancor de todo o tamanho.
Juntos, Gladys e Trevor Jones examinaram atentamente a planta da casa. Ela mostrou-lhe em que quartos os três membros da família dormiam e onde se situava a sala
dos guardas de segurança. Conhecia as rotinas de patrulha dos guardas. Havia máquinas de marcar o ponto dispersas por vários locais da propriedade que mantinham
os guardas a cumprir um rigoroso horário de trabalho. Os turnos mudavam a horas muito precisas, de modo que os movimentos dos guardas eram previsíveis. Gladys também
lhe forneceu uma lista do pessoal doméstico. A maior parte dos empregados tirava folga ao domingo e só retomava as suas funções após o fim de semana.
Gladys conhecia a localização exata de cada um dos numerosos sensores de alarme espalhados pela propriedade. Obviamente que as palavras-passe tinham sido substituídas
depois de ela ter sido despedida, mas o seu companheiro continuava empregado em The Moorings como ajudante de cozinha e de bom grado lhe forneceu as novas palavras-passe.
A brecha através do recife de coral estava assinalada com balizas luminosas, bem como o canal de acesso ao ancoradouro à frente de The Moorings. Jones saiu no seu
pequeno barco de pesca a remos e procedeu a algumas medições furtivas, bem como a um ou dois outros preparativos. Durante a maré alta na primavera, o canal tinha
uns bons três metros de profundidade no ponto mais baixo. havendo, pois, água mais do que suficiente mesmo para uma das enormes lanchas Chris-Craft.
Todo este pacote de informações foi enviado a Johnny Congo. O custo total para Carl ficou abaixo dos quatro mil dólares, o que ele considerou um ótimo negócio.
As informações foram depois reencaminhadas para o Seior Alonso Almanza, em La Ceiba, juntamente com detalhadas instruções adicionais e um pagamento antecipado, por
transferência bancária, de setenta e cinco mil dólares, até à finalização do contrato no valor de duzentos e cinquenta mil dólares.
- Vou contar-te um pequeno segredo, Negrão. - Carl dirigiu um sorriso a Johnny Congo. - Quando tens dinheiro suficiente. podes fazer e ter tudo o que quiseres. Ninguém
te consegue dizer não.
- Nem mais, lindinho! Dá cá mais cinco! - Johnny ergueu a mão direita e bateram as palmas das mãos.
70
Vinte e oito dias mais tarde, a lancha Pluma de Mar do Sefior Almanza aproveitou a claridade da lua cheia para atravessar furtivamente a brecha no recife e entrar
na baía Old Man na costa norte da Grande Caimão. O casco estava pintado de preto mate, de modo que era quase invisível, mesmo com o luar. Zarpara de La Ceiba ao
meio-dia no dia anterior e a sua chegada ao destino tinha sido programada exatamente para as três menos um quarto da madrugada de domingo, a hora das bruxas, quando
apenas salteadores, lobisomens e piratas deveriam rondar a escuridão.
O Pluma de Mar transportava uma tripulação de onze elementos. Usavam fatos de treino pretos e capuzes escuros na cabeça, com fendas para os olhos e para a boca.
Prenderam a embarcação a uma das boias sinalizadoras do canal, a setenta metros da orla da praia onde se situava The Moorings. Trevor Jones tinha colocado um minúsculo
rádio na boia para se orientarem. Deixaram um tripulante a bordo para tomar conta da embarcação e lançaram à água um bote insuflável de motor fora de borda e movido
a bateria que os transportou em silêncio até à margem.
Alcançaram a praia às três horas em ponto, quando as patrulhas de segurança se tinham reunido na sala da guarda para a mudança de turno e para tomarem café. Dois
dos homens mascarados apressaram-se a desativar os sensores de alarme e a desimpedir o caminho para os companheiros que seguiam atrás. Quando o grupo de assalto
irrompeu pela sala da guarda, apanharam completamente de surpresa os quatro homens aí reunidos. Poucos minutos depois, já os tinham amordaçado e amarrado com fita
adesiva e desligaram o sistema de alarme no principal painel de controlo.
Depois precipitaram-se em redor da piscina e arrombaram a porta da casa com um pé-de-cabra. Sabiam exatamente para onde se dirigiam: atravessaram as salas de estar
e subiram a escadaria principal até às suítes. Dividiram-se em três grupos ao chegarem ao topo das escadas. Cada grupo avançou com rapidez para a suíte que lhe tinha
sido destinada. Invadiram as divisões enquanto os ocupantes ainda dormiam profundamente. Arrancaram-nos das camas e amarraram-lhes os punhos com fita adesiva. De
seguida, arrastaram-nos pela escadaria abaixo, em direção ao terraço da piscina, que estava discretamente resguardado por muros altos e por vegetação tropical, de
modo a permitir às mulheres Bannock tomarem banhos de sol nuas.
Um dos elementos do bando tirou uma câmara de filmar da mochila. Era um realizador de Guadalajara, no México, especializado em filmes pornográficos hardcore. Disse
num inglês sofrível às três prisioneiras que choravam aterrorizadas: - Chamo-me Amaranthus. É com prazer que vou fazer documentário sobre vocês. Por favor, não façam
caso de mim e tentem não olhar pra lente da minha câmara, a não ser que vos peça. - Recuou ligeiramente e apontou-lhes a câmara.
O líder do bando postou-se à frente delas. - Sou o Miguel. Vão fazer o que vos disser, senão vão-se arrepender. Nome? Nombre? - gritou-lhes, obrigando cada uma delas
a dizer o nome à vez, virada para a câmara de Amaranthus. Sacha Jean estava emudecida de terror. Bryoni falou pela irmã e disse o nome dela.
- É a minha irmã, Sacha Jean Bannock. Está doente. Por favor. não lhe façam mal.
Sacha caiu de joelhos e borrou as calças do pijama, num som explosivo. Miguel riu-se e deu-lhe um pontapé. - Vaca porcalhona! Levanta-te! - Voltou a pontapeá-la.
Bryoni estendeu as mãos atadas e ajudou Sacha a erguer-se.
O líder do bando virou-se para Marlene e tirou do bolso uma tira de papel. - Estas são as ordens que recebi. - Leu no seu carregado sotaque hispânico: - Marlene
Imelda Bannock. Vais ser executada. A tua morte será testemunhada pelas tuas filhas Sacha Jean e Bryoni Lee. A tua execução vai ser filmada para todas as partes
interessadas poderem ver. Depois, as tuas filhas serão encarceradas para o resto da vida num país estrangeiro.
As pernas de Sacha cederam novamente. Bryoni não conseguiu ampará-la e Sacha caiu contra a borda de mármore da piscina. Enrolou-se na posição fetal enquanto gemia
numa voz estrídula. Começou a bater com a testa na borda de mármore, com tal força que uma das sobrancelhas se rasgou, empapando-lhe os olhos de sangue. Bryoni ajoelhou-se
ao lado de Sacha e tentou impedi-la de se magoar mais.
Marlene gritava, desesperada, enquanto os três homens a arrastavam: - Sê valente, Sacha! Não chores, minha filhinha. Toma conta dela, Bryoni.
Arrastaram-na pelas escadas da piscina e enfiaram-na na água, que lhe dava pela cintura. Potentes holofotes submersos iluminavam o cenário para Amaranthus, que se
ajoelhou junto à borda da piscina para filmar tudo.
Dois membros da tripulação sujeitavam Marlene pelos braços. Olharam para Miguel na borda da piscina.
Miguel disse-lhes: - Bueno! Enfiem-na debaixo de água. Forçaram a cabeça de Marlene sob a superfície da água. Um terceiro homem agarrou-lhe os tornozelos e ergueu-lhos
bem alto. A metade superior do corpo de Marlene ficou completamente imersa. Esperneou de forma frenética e todo o seu corpo se arqueou em convulsões tão violentas
que os homens tiveram dificuldade em a imobilizar.
- Chega! - gritou Miguel. - Tirem-na pra fora por uns segundos. - Os homens ergueram-lhe a cabeça e Marlene engoliu uma golada de água enquanto se debatia por ar.
Depois, jorrou-lhe da boca aberta um misto de água e vómito que a sufocou quando tentou respirar.
- Bueno, já chega. Voltem a enfiar-lhe a cabeça. - Enfiaram-lhe a cabeça debaixo de água no momento em que ela arquejava por ar, acabando por engolir uma nova golada
de água em vez de ar.
Continuaram a submergir-lhe a cabeça a intervalos cada vez mais longos, enquanto Marlene se debatia cada vez mais debilmente. Postado atrás da câmara, Amaranthus
queria aproveitar a cena ao máximo. Era uma das especificações estipuladas por quem lhe dera as ordens, e Amaranthus compreendia que aquilo deveria ser fascinante
para eles. Dilacerada e dividida entre o seu amor pela irmã e pela mãe, Bryoni deixou Sacha e rastejou para junto de Miguel, tentando agarrar-se às pernas dele.
- É a minha mãe. Por favor, não lhe façam isso. Miguel afastou-a com um pontapé e disse aos três homens na piscina: - E agora terminamos. Mantenham a velha megera
debaixo de água.
Uma última e violenta rajada de bolhas assomou à superfície enquanto os pulmões de Marlene se esvaziavam por completo. Ofereceu cada vez menos resistência, até finalmente
parar de se debater. - Ha muerto? - perguntou um deles? - Está morta? - No, esperar un poco más - ordenou Miguel. Bryoni tinha conhecimentos suficientes de espanhol.
Voltou a rastejar para junto de Miguel e agarrou-se de novo à perna dele. - Por favor, seior. Tenha piedade, suplico-lhe.
Dessa vez, ele assestou-lhe um pontapé na boca e Bryoni caiu para trás. Levou as mãos aos lábios que sangravam. - Daqui a nada será a tua vez - disse ele num tom
trocista. - Mas primeiro temos de provar essa tua caminha e a da tua irmã loca. - Puxou a manga para trás para ver as horas no relógio. Depois falou aos homens na
piscina. - Bueno! Já deve bastar. Levantem-na pra vermos.
Um dos homens agarrou uma mão-cheia de cabelos de Marlene e ergueu-lhe o rosto acima da água. Tinha a pele cerosa e pálida. Os olhos arregalados e fixos no vazio.
Melenas de cabelo tombaram-lhe sobre o rosto como algas expostas numa rocha durante a maré vazante. Escorria-lhe água da boca aberta.
- Deixem-na ficar aí - ordenou Miguel. Os homens largaram-na e dirigiram-se para as escadas, deixando o corpo de Marlene a flutuar de rosto para baixo.
- Já estamos aqui há muito tempo. Está na hora de ir - disse-lhes Miguel. - Limpem aquela gaja. - Apontou para Sacha. - El jefe mata-nos se sujarmos o lindo barquinho
dele com bosta.
Arrancaram a Sacha o pijama sujo e atiraram-na nua para a piscina, ao lado do cadáver da mãe. Um deles curvou-se sobre Bryoni e cortou-lhe a fita adesiva que lhe
prendia os punhos.
- Mete-te ali na água com a porcalhona da tua irmã e lava-lhe a merda - ordenou-lhe em espanhol.
Bryoni enfiou-se na água e aproximou-se de Sacha; lavou-lhe o corpo e limpou-lhe o sangue do ferimento por cima do olho, e depois ajudou-a a subir as escadas da
piscina, envolvendo-lhe os ombros com um braço. Sacha não parava de chorar e de olhar para o cadáver de Marlene a flutuar. - Que se passa com a mamã? Porque é que
ela não quer falar comigo, Bryoni? - Sacha voltara a regredir ao estado de uma criança de cinco anos.


CONTINUA

30
Saíram da mesquita através do portão principal e viraram na estrada em direção ao complexo residencial muralhado que Tariq lhe tinha indicado mais cedo nesse
dia como sendo a casa de Aazim Muktar. Avançaram rapidamente, com uma precisão quase militar, num grupo compacto com Hector no meio. Quando alcançaram a entrada
do complexo, os portões foram abertos do interior e todos marcharam para um pátio pavimentado. No centro erguia-se uma enorme figueira-de-bengala com ramagens amplas.
À sua sombra estava sentado um pequeno grupo de mulheres de rosto velado e crianças de tenra idade. Observaram com interesse enquanto Hector era obrigado a marchar
até aos degraus que conduziam à varanda coberta de um bangaló de telhado plano.
Era um edifício modesto e despretensioso, não o tipo de lar que se poderia esperar de um alto clérigo ou de um importante funcionário do governo. A maior parte
dos membros da escolta de Hector deteve-se na base das escadas, mas dois deles flanquearam-no e agarraram-lhe os braços para o conduzirem pelas escadas até à varanda.
Hector afastou-lhes as mãos num gesto irritado e eles não insistiram. Subiu os degraus dois a dois e parou no topo. A porta à sua frente estava aberta e atravessou-a
com passadas largas e determinadas, parando à entrada enquanto os seus olhos se adaptavam ao interior obscurecido que contrastava com o sol brilhante do pátio.
A divisão era espaçosa mas esparsamente mobilada, ao estilo árabe. A mobília estava alinhada ao comprido das paredes, deixando o centro da divisão despojado e
desimpedido. Aazim Muktar era a única pessoa presente. Estava sentado de pernas cruzadas em cima de uma pilha de almofadas de veludo verde, à frente de uma mesa
baixa. Levantou-se num movimento ágil e fez uma vénia, tocando na testa, nos lábios e no coração. Depois endireitou o corpo e falou numa voz pausada.
- É muito bem-vindo à minha casa, senhor Cross. - É muito amável da sua parte convidar-me, xeque Tippoo Tip. - Hector retribuiu-lhe a vénia.
Aazim Muktar esboçou uma ligeira careta perante o tom irónico dele. - Talvez seja melhor falarmos de forma aberta e franca, senhor Cross. Não é minha intenção
retê-lo mais do que o estritamente necessário. - O seu inglês era perfeito, educado e culto como o de um aristocrata britânico.
- Não esperaria menos de si, mulá Aazim Muktar. - Queira sentar-se, por favor. - Indicou-lhe uma cadeira de espaldar alto que obviamente fora ali colocada para
o convidado. Hector avançou sem hesitação e sentou-se. Estava em séria desvantagem, de modo que era essencial manter uma expressão dura e uma determinação austera.
Aazim Muktar sentou-se nas almofadas, virado para ele. Ambos se olharam fixamente, até que o mulá quebrou o silêncio.
- Sabia que conheci a sua mulher há uns anos, numa receção na residência do embaixador americano em Londres? Hazel Bannock-Cross era uma dama muito bela e superior.
Gostava dela e admirava-a imenso.
Hector inspirou lenta e profundamente. Não queria que a voz tremesse devido à raiva que lhe inundava cada célula do corpo. Quando respondeu, fê-lo num tom baixo
e neutro. - Então porque é que a mandou matar? Os olhos de Aazim Muktar eram escuros e expressivos. As pestanas, compridas e quase femininas, pareciam incongruentes
no meio daqueles traços masculinos tão vincados. Os seus olhos encheram-se lentamente de sombras de dor e mágoa. Inclinou-se para Hector e, por um momento, pareceu
prestes a estender a mão e tocar-lhe, mas conteve-se. Voltou a sentar-se direito e susteve o olhar irado de Hector.
- Peço a Alá e ao seu Profeta que me ouçam quando lhe digo que isso não é verdade, caro senhor. Não estive envolvido de nenhuma forma no homicídio da sua mulher.
- E eu digo-lhe, caro senhor, que as palavras fluem com leviandade dos lábios daquele que negoceia em palavras.
- Haverá alguma forma de o convencer? - perguntou o mulá numa voz calma. - Choro a morte dela quase tanto quanto você.
- Não consigo imaginar nada que me possa convencer disso - disse Hector. - Não há mais ninguém que tivesse um motivo,
a não ser você. O credo da retaliação e da morte por vingança está profundamente imbuído na sua religião, na sua cultura e na sua psique.
- Isso não é verdade, senhor Cross. Há também a luz do perdão que nos conduz. Não prestou atenção à súplica que lhe dirigi pessoalmente a si na mesquita hoje?
Implorei-lhe que pusesse fim a este círculo vicioso de morte atrás de morte.
- Ouvi o que você pregou - replicou Hector -, mas não acreditei numa única palavra.
- Assim sendo, parece que só me resta mais um recurso. - Qual? Também me vai matar? - Não, meu senhor. Não matei a sua encantadora mulher nem o vou matar a si.
É convidado na minha casa. Encontra-se sob a minha proteção. Dá-me licença por uns momentos, senhor Cross?
Hector não respondeu e Aazim Muktar levantou-se e saiu. Hector levantou-se da cadeira de um salto e moveu-se rapidamente pela divisão. Os olhos dardejaram-lhe
de um lado para o outro à procura de uma via de fuga, de uma arma com que pudesse defender-se. Não encontrou nada, a não ser livros e pergaminhos, e, quando olhou
através da janela, reparou que o pátio estava cheio de seguidores de Aazim Muktar. Estava desesperadamente encurralado.
O mulá voltou poucos minutos depois. - Desculpe-me, senhor Cross, mas tive de tratar dos preparativos finais para o levar para fora da cidade. Talvez não saiba
que se trata de um delito muito grave para qualquer pessoa que não professa a fé islâmica entrar nos locais sagrados da Medina e de Meca. A pena é a morte por decapitação.
Tenho um carro e um motorista à espera junto aos portões do complexo para o levar ao aeroporto de Jidá. Fiz uma reserva em primeira classe num voo da Emirates de
Jidá para Abu Zara. que parte às dez desta noite. Assim que tiver levantado voo, os seus homens na Cross Bow Security serão avisados da sua chegada. No entanto,
deve partir já de Meca.
Hector fixou-o, atónito e totalmente incrédulo. Não acreditava que iam libertá-lo. Não passava de mais um ardil, sabia-o bem. Tentou ver para lá do olhar franco
e da expressão sincera do mulá.
- Por favor, senhor Cross. É uma questão de vida e morte Tem de partir já. Segui-lo-ei num veículo separado. Voltaremos a ter outra oportunidade de falar no aeroporto
de Jidá, numa sala VIP que reservei.
Hector inclinou um pouco a cabeça, fingindo aquiescência Sabia que o motorista o levaria para o deserto, onde deparam depois com um pelotão de execução composto
por fanáticos religiosos. Provavelmente já lhe tinham até escavado a sepultura.
Por mais desvantajosa que seja a posição em que este cabrão me colocou, tenho mais hipóteses de sobrevivência lá no deserto do que encurralado aqui dentro, concluiu.
- É muito generoso... - começou por dizer, mas Aazim Muktar interrompeu-o.
- Aqui está o seu bilhete de avião. - Entregou a Hector um envelope com o timbre da companhia Emirates estampado na aba. Hector abriu-o e verificou o nome no
bilhete. Era o mesmo nome falso que constava do passaporte de Abu Zara com o qual viajava Claro, o traidor Tariq dera-lhe essa informação.
Hector ergueu a cabeça. - Parece estar em ordem.
- Muito bem! E agora, parta sem demora. Voltarei a vê-lo em Jidá.
Segurou na porta aberta para ele passar, e Hector desceu as escadas a correr para o pátio. Um sedã Mercedes preto cruzou de imediato o portão, vindo da rua. Estacionou
à frente de Hector. Um motorista barbudo e de turbante negro saltou do assento do condutor e abriu-lhe a porta de trás. Assim que Hector se instalou no assento,
o motorista fechou a porta e voltou a enfiar-se atrás do volante. Os discípulos abriram alas para deixar passar o Mercedes que seguiu pelo portão do complexo para
a rua. Hector olhou para trás através da janela na traseira. Aazim Muktar estava especado na varanda do bangaló a vê-lo partir.
Hector passou todo o trajeto até ao aeroporto de Jidá num tumulto de indecisão. Teria sido fácil estender a mão por trás do assento do motorista, imobilizá-lo
com um golpe de gravata e partir-lhe o pescoço. Depois poderia usar o Mercedes para fugir até à fronteira com Abu Zara. No entanto, a fronteira ficava a mais de
mil e quinhentos quilómetros de distância e o ponteiro do combustível no painel de instrumentos indicava menos de metade do depósito cheio. Só dispunha de alguns
dólares no bolso, insuficientes para atestar o depósito. Talvez o motorista tivesse algum dinheiro, mas duvidava. O homem provavelmente tinha um cartão de abastecimento
de combustível ou algum outro tipo de cartão de débito. Sem dinheiro, nunca conseguiria escapar. E, claro, assim que o alarme soasse, a polícia saudita emitiria
um alerta geral para todos os agentes na estrada. Não conseguiria percorrer cem quilómetros, e muito menos mil, até o apanharem. Pôs de parte essa ideia.
Depois pensou em Aazim Muktar Tippoo Tip e sopesou as probabilidades de ele ser inocente ou culpado: poderia acreditar e confiar nele? Quando o ouvira pregar
na mesquita, quase se deixara convencer. Contudo, agora que tinha sido libertado, tinha a certeza de que só podia ser um ardil. Sabia que devia haver outra surpresa
chocante à sua espera.
Havia um telefone no apoio de braço do banco traseiro do Mercedes e Hector levantou o auscultador, encostando-o ao ouvido. Ouviu um sinal de linha. Abriu o envelope
que Aazim Muktar lhe tinha dado e procurou o número de telefone do balcão do check-in da companhia aérea Emirates no aeroporto de Jidá. Marcou-o e, ao terceiro toque,
uma mulher atendeu-o. Deu-lhe os pormenores do seu bilhete.
- Pode confirmar, por favor, se a minha reserva está correta? - Queira aguardar um momento, senhor. - Houve uma breve pausa e depois a mulher voltou a falar.
- Sim, senhor. Estamos à sua espera. O seu check-in já foi confirmado online. O seu voo vai partir à hora prevista, às vinte e duas.
Hector pousou o auscultador. Tudo parecia bater certo, até certo de mais. Aquilo que finalmente o decidiu foi pensar em Hazel. Por respeito à memória dela, deveria
confrontar Aazim Muktar e levar as coisas até ao fim, por mais riscos que isso envolvesse. Quase conseguia ouvir a voz dela. Tens de o fazer, meu querido. Tens de
o fazer, senão tu e eu nunca mais teremos paz.
De modo que se acomodou no banco traseiro e deixou o motorista conduzi-lo a Jidá.
31
No portão de embarque no terminal das Linhas Aéreas da United Arab Emirates no aeroporto de Jidá, um porteiro em vestes tradicionais abriu-lhe a porta do Mercedes
e, com respeito cerimonioso, acompanhou-o até à sala privada que tinha sido reservada pelo mulá. Assim que ficou sozinho, Hector tentou abrir a porta e descobriu
que estava destrancada. Entreabriu-a um pouco e espreitou através da nesga. Não viu nenhum guarda postado no exterior. Por essa altura, sentia-se mais intrigado
do que receoso. Fechou a porta e olhou em redor da sala de espera luxuosamente mobilada. Tinha a boca seca devido ao gosto râncido do perigo.
De bom grado voltava a ser virgem em troca de um uísque decente, pensou, mas claro que não havia nenhuma bebida alcoólica forte à vista naquele bastião islâmico.
Bebeu um copo de água Perrier, serviu-se de um outro e levou-o consigo para uma das poltronas. Enquanto se sentava, ouviu alguém bater à porta.
- Entre - disse, e Aazim Muktar entrou. Certamente seguira de perto o Mercedes que transportara Hector desde Meca. No entanto, Hector ficou atónito quando o mulá
entrou acompanhado de uma mulher coberta da cabeça aos pés. Chorava baixinho por trás do véu. Conduzia pela mão um rapazinho de tez escura, com cerca de seis ou
sete anos. Era um menino encantador, com caracóis negros e olhos escuros e grandes. Estava a chuchar no polegar, com um ar infeliz e perplexo. Aazim Muktar fez sinal
à mulher, a qual se apressou a afastar-se para um dos cantos da sala, onde se sentou no chão, abraçando a criança contra o peito. Hector reparou no brilho dos olhos
dela por trás da burca enquanto o observava, e depois apercebeu-se de que ela recomeçou a chorar. Aazim Muktar, com uma ordem ríspida, advertiu-a que se calasse
e depois sentou-se numa poltrona virada para Hector.
- Dentro de quarenta e cinco minutos vão anunciar o embarque para o seu voo - disse ele a Hector. - É todo o tempo de que disponho para o convencer de que não
tive nenhuma responsabilidade no assassinato da sua mulher. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe que estou a par de quase todos os detalhes do trágico confronto entre
a sua família e a minha. Houve muitas mortes de ambos os lados Compreendo que, tendo sido você um oficial do exército, em certas ocasiões se justificasse matar em
cumprimento do dever. Houve alturas em que você fez justiça pelas próprias mãos. - Calou-se e olhou bem no fundo dos olhos de Hector.
- Continue! - incitou-o Hector, sem deixar transparecer nenhuma emoção.
- Aceito o facto de o meu pai e a maior parte dos meus irmãos serem piratas, agindo em contravenção direta do Direito Internacional. Capturaram navios mercantes
no alto-mar e retiveram as tripulações em troca de um resgate. Dissociei-me, ainda muite jovem, desses crimes cometidos pela minha família e fui para Inglaterra
para estar o mais longe possível deles. Nunca considerei ter qualquer direito de retaliação contra si ou contra a sua família Já lhe contei que conheci a sua mulher
e que a admirava. Fiquei profundamente devastado quando soube que a tinham assassinado. Foi um ato contra todas as leis do homem e de Deus. No entanto, sabia que
após a morte dela você me iria perseguir para aplacar os pecados cometidos pelo meu clã.
- Sou todo ouvidos.
- Há muito que eu receava o dia do nosso encontro, mas preparei-me para isso.
- Tenho a certeza que sim - ripostou Hector, cuja expressão era agora sombria.
- Não à sua maneira, já que você é um guerreiro experiente, senhor Cross, e a sua maneira é a linguagem da espada.
- Diga-me então, mulá Tippoo Tip. Em que consiste a sua maneira?
- No caminho de Alá. A minha maneira de agir é o perdão mútuo. A minha maneira é Al-Qisas. Ofereço-lhe uma vida por outra vida. - Levantou-se e acercou-se do
pequeno volume de ibjeta humanidade amontoado no canto da sala. Agarrou a criança pela mão e fê-la parar à frente de Hector.
- Este é o meu filho. Tem seis anos. Chama-se Kurrum, que 'ignifica "felicidade". - O rapazinho voltou a enfiar o polegar na boca e olhou fixamente para Hector.
- É um menino bonito - acedeu Hector.
- É seu - disse Aazim Muktar em árabe, empurrando delicadamente a criança para a frente.
Consternado, Hector levantou-se da poltrona de um salto.
- Pelo amor de Deus, que pretende que faça com ele?
- Em nome de Alá, deve levá-lo e retê-lo como refém contra a minha boa-fé. Se encontrar provas irrefutáveis de que matei a sua mulher, deve matá-lo como é seu
direito, segundo a lei de Al-Qisas, e perdoar-lhe-ei.
A mulher gritou e arrojou-se no chão.
- É meu filho! É o meu único filho! Mate-me se tiver de o fazer, efêndi. Mas não mate o meu filho. - Rasgou o véu e esfacelou o rosto com as unhas compridas.
O sangue brotou dos arranhões profundos e escorreu-lhe do queixo. Rastejou até aos pés de Hector.
- Mate-me, mas poupe a vida ao meu filho, suplico-lhe.
- Cala-te, mulher. - O marido usou um tom amável. Pousou a mão no ombro dela e afastou-a para o fundo da sala. Depois voltou para junto de Hector. Das dobras
da túnica branca tirou uma carteira de couro e estendeu-lha.
- Está aqui toda a documentação de que precisa para poder levar o Kurrum consigo: o bilhete de avião dele, a sua certidão de nascimento, o passaporte e os documentos
que o nomeiam seu tutor legal. Qual é a sua decisão, senhor Cross?
Hector continuava absolutamente estupefacto. Aquilo era a última coisa que esperava. Olhou para a criança. Abanou a cabeça, como se para negar aquilo que estava
a acontecer. Estendeu a mão e acariciou a cabeça do rapaz, cujos caracóis crespos lhe assomavam sob os dedos. Kurrum não fez nenhum esforço para se esquivar ao contacto.
Ergueu a cabeça e olhou para Hector. Os olhos eram escuros e transpareciam uma sabedoria muito para além da sua idade. Falou baixinho: - O meu pai diz que devo ir
consigo, efêndi. O meu pai diz que agora sou um homem e que me devo portar como um homem. É essa a vontade de Alá.
Hector continuava sem palavras. Sentia a garganta seca e o sangue que lhe latejava nas têmporas ecoava-lhe no crânio como um tambor. Curvou-se para pegar na criança
e apoiou-a no flanco. Kurrum não se debateu. Hector tocou-lhe na face e depois virou-se para o pai do rapaz.
Conseguiu ver-lhe finalmente o âmago, e o que viu era bom Sabia por fim, sem lugar para dúvidas, que aquele homem não era a Besta que ele andava a perseguir.
Hector falou com a criança apoiada no seu flanco. - És meu refém, Kurrum. - A mãe do rapaz ouviu-o e lamentou-se. Hecto: não fez caso dela e continuou a falar
com a criança. - Sabes o que isso significa, Kurrum?
O menino abanou a cabeça e Hector prosseguiu: - Significa que és valente e bom, assim como o teu pai é valente e bom
- Pousou Kurrum no chão, virou-o para a mãe e deu-lhe um empurrão delicado. - Volta para junto da tua mãe, Kurrum, e cuida bem dela, pois agora és um homem como
o teu pai foi um homem antes de ti.
A mulher estendeu os braços e Kurrum correu ao seu encontro. Ela levantou-o do chão e avançou para a porta, mas deteve-se quando a alcançou e olhou para Hector
atrás de si, com lágrimas e sangue dos arranhões a escorrerem-lhe pelo rosto.
- Mestre... - começou ela por dizer, mas depois perdeu a voz.
- Vai! - ordenou-lhe Hector. - Leva o teu filho e que Alá te acompanhe. - Ela saiu e fechou a porta suavemente, deixando Hector e Aazim Muktar sozinhos na sala
espaçosa.
- Tem a certeza? - perguntou Aazim.
- Tanta certeza como alguma vez tive em relação a qualquer outra coisa na minha vida.
- Não tenho palavras que possam exprimir a minha gratidão. - Aazim fez uma vénia. - Ofereceu-me uma dádiva superior a tudo aquilo que eu jamais poderia imaginar.
Nunca lhe poderei retribuir.
- Já me pagou o que haveria a pagar. Só o simples facto de ter conhecido um homem santo como você enriqueceu a minha própria vida.
- Continuo em dívida para consigo. A vida do meu filho tem mais importância do que tudo o resto - disse-lhe Aazim com sinceridade. - Segundo sei, você chegou
a ver o homem que assassinou a sua mulher, o qual tinha a tatuagem característica de um certo gangue.
- Foi o Tariq Hakam que lhe contou isso! - A fúria de Hector voltou a inflamar-se. - Ele é um traidor. Traiu a minha amizade. Um dia vou matá-lo.
- Não, senhor Cross. Ele não é seu inimigo. - Hector abanou a cabeça com uma determinação intransigente, mas Aazim ergueu a mão para o impedir de continuar. -
Um dia irá compreender isso. Tariq Hakam pediu-me para lhe transmitir uma mensagem. Prometi-lhe que o faria. Posso comunicar-lhe o que ele me disse?
- Se assim o desejar.
- Ele disse que não havia nenhuma outra forma de o convencer de que estava a seguir o caminho errado na procura do inimigo. Disse que você e eu precisávamos de
nos compreender.
- Jamais o voltarei a aceitar como amigo, diga ele o que disser. Nunca poderei voltar a confiar nele.
- Tariq sabe isso.
- O que é que ele vai fazer agora?
- Está determinado a abandonar o caminho do guerreiro. A partir de agora, irá seguir o caminho que conduz a Alá.
- Com que então agora descobriu Deus e tornou-se um dos seus discípulos, é isso? Ainda bem para ele, o velho tratante.
- Velho tratante. Ele mencionou que você diria isso. - Aazim sorriu. - No entanto...
Calou-se, interrompido por uma voz feminina que ecoou através do sistema de sonorização: Última chamada para todos os passageiros do Voo EK 805 da Emir ates para
Abu Zara. Embarque na Porta A2 f. Os passageiros devem dirigir-se para a Porta A26 para procederem de imediato ao embarque.
- O nosso tempo juntos chegou ao fim, senhor Cross. Quando vivi em Londres, trabalhei com um homem que dedica a vida - ajudar a reabilitar rapazes muçulmanos
apanhados na malha dos gangues criminosos de rua a operar nas principais cidades do Reino Unido. Vou enviar-lhe uma mensagem para entrar em contacto consigo. Talvez
ele consiga ajudá-lo a localizar o homicida com a tatuagem Maalek. Talvez assim você possa identificar sem margem para dúvidas o seu inimigo oculto.
- Como vai fazer para que esse homem entre em contacto comigo, Aazim Tippoo Tip? Você não sabe onde vivo.
- Desde que Brandon Hall foi arrasado pelas chamas, você mudou-se para o número onze de Conrad Road, em Belgravia.
O seu principal endereço eletrônico é cross@crossbow.com, mai tem muitos outros. Estou correto, senhor Cross?
Hector inclinou a cabeça num gesto de aquiescência irónica.
- O Tariq contou-lhe tantas coisas sobre mim. Não me surpreenderia se você soubesse que número calço.
- Onze e meio, pelas medidas americanas - replicou Aazim sem sorrir, mas Hector riu-se alto.
- Adeus, Aazim Tippoo Tip. Nunca o esquecerei.
- Nem eu, senhor Hector Cross. Posso-lhe dar um aperto de mão?
Hector estendeu-lhe a mão e olharam-se nos olhos.
- Que Alá o acompanhe, senhor Hector Cross.
- Reze por mim, xeque Tippoo Tip. - Hector deu meia-volta e saiu sem olhar para trás, dirigindo-se para a Porta de Embarque A26.
32
Embora já passasse da meia-noite quando Hector chegou à pen- thouse de Seascape Mansions em Abu Zara, convocou de imediato um conselho de guerra para a sala de
cinema privada.
À medida que os elementos da equipa foram surgindo, cumprimentaram Hector com entusiasmo, mas depois olharam em redor à procura de Tariq Hakam. Hector não fez
nenhum esforço para lhes mitigar a curiosidade até todos estarem sentados nas filas de assentos, virados para ele no estrado.
- E então, onde está o Tariq? - Foi Nastiya quem fez a pergunta em nome de todos eles.
- É uma longa história - esquivou-se Hector.
- Está bem. Então trata de a encurtar - sugeriu Nastiya.
- Continua em Meca. - Ninguém se moveu. Ninguém falou. Hector viu-se forçado a prosseguir. Fez um relato conciso, despojado de pormenores e comentários. A tensão
na sala aumentou progressivamente enquanto falava. Contou-lhes tudo, exceto a despedida final no aeroporto de Jidá e a proposta de um refém por parte de Aazim. Quando
terminou, todos se fixaram nele num silêncio sombrio. Nastiya quebrou o feitiço daquele horror coletivo. Era a única pessoa na sala que não temia Hector Cross.
- Com que então o Tariq era o traidor durante este tempo todo. Traiu-te a ti e a nós todos. Porque é que não o mataste, Hector?
Hector tinha-se preparado para aquele interrogatório durante o voo de regresso de Meca. Bombardearam-no com perguntas e dúvidas durante quase mais trinta minutos.
Hector descreveu-lhes em detalhe o sermão de Aazim Muktar na mesquita, repetindo-o quase palavra por palavra.
- E acreditaste nele, não foi, Hector?
- Foi muito convincente. Mas não acreditei verdadeiramente nele. Pelo menos, não nessa altura. Só quando ele me ofereceu o filho de seis anos como refém. Nesse
momento acreditei nele. Despiu a alma perante mim e deu-me o seu filho. Soube então que ele estava do lado dos anjos. Tive a certeza de que ele não tinha planeado
o assassinato da Hazel.
- Se ele te propôs esse tal refém, Hector, então onde está o rapaz agora?
- Aceitei-o como refém, sim, mas depois entreguei-o à mãe dele.
- Estás maluco da cabeça, Hector Cross? - exclamou Nastiya.
- Há quem possa pensar isso. - Hector sorriu e continuou:
- Mas depois Aazim Muktar Tippoo Tip forneceu-me a prova definitiva da sua inocência.
- Que prova era essa, seu tonto?
- Embora me encontrasse completamente à mercê dele, deixou-me embarcar no avião para regressar incólume aqui a Abu Zara.
Paddy O'Quinn soltou uma risada sonora e deu uma palmadinha no joelho da sua mulher. - O Hector tem razão, minha querida. Não há prova mais convincente do que
essa. Agora, até eu acredito em Aazim Tippoo Tip.
A tensão na sala dissipou-se e todos trocaram acenos de cabeça e sorrisos de complacência. Mas Nastiya afastou a mão de Paddy do seu joelho e desafiou Hector
pela última vez. - Sendo tu o cavalheiro inglês que és, tenho a certeza de que até deste um aperto de mão a esse mulá assassino, assim como tenho a certeza de que
nem sequer vais matar o Tariq Hakam, estou correta?
- Não consigo esconder nada de ti, czarina. Sim, dei um aperto de mão a Aazim Tippoo Tip e não vi nenhum sangue nela. E sim, deixei que o Tariq Hakam fosse ao
encontro do seu Deus
- admitiu Hector, levantando-se. - Se queres que te diga a verdade, sinto-me melhor por ter feito essas duas coisas. E agora, preciso de algumas horas de sono. Voltamos
a encontrar-nos aqui pela manhã, a seguir ao pequeno-almoço, para refletirmos sobre a nossa situação.
- Posso dizer-te, de borla, qual é exatamente a tua situação, Hector Cross. Voltaste à estaca zero e podes considerar-te um verdadeiro sortudo por estares aqui.
- Nastiya tentou soar austera, mas havia uma leve centelha de tristeza nos seus olhos.
33
Hector segurava Catherine no colo enquanto lhe dava o biberão. A bebé emitia pequenos grunhidos de satisfação enquanto atacava a tetina com gosto, totalmente
alheia à plateia interessada que estava sentada nas filas ascendentes na sala de cinema.
- És o único homem que conheço que consegue maquinar caos e morte ao mesmo tempo que alimenta um bebé - comentou Paddy O'Quinn, mas Nastiya assestou-lhe de imediato
um soco no braço.
- Não percebes nada de bebés, marido. Observa o Hector e cala-me essa boca.
- Já chega, meus meninos. Parem lá de brigar e acalmem-se. Temos trabalho a fazer - admoestou-os Hector. - Ontem à noite não quis discutir com a Nastiya quando
ela disse que tínhamos voltado à estaca zero. Mas isso não é inteiramente verdade. Continuamos a dispor de uma ténue pista a partir da qual podemos trabalhar. Isto
foi-me sugerido pelo próprio Tariq Hakam. Dou-lhe todo o crédito por isso. Estávamos a discutir como é que a Besta montou a emboscada à Hazel e o Tariq fez-me uma
pergunta simples. Disse: "Como é que eles sabiam?"
Hector calou-se e deixou-os assimilar aquela informação. Depois repetiu: - Como é que a Besta sabia que a Hazel ia nesse dia a uma consulta no ginecologista em
Londres? - Todos se agitaram nos seus lugares e emitiram murmúrios de concordância.
- As únicas pessoas do nosso lado que sabiam eram a Hazel, e a Agatha, a assistente pessoal dela, que marcou a consulta. Trlefonei à Agatha ontem à noite e ela
jurou a pés juntos que não tinha contado a ninguém. Ficou muito perturbada por eu ter feito essa insinuação. Trabalhou durante quinze anos para a Hazel e é absolutamente
de confiança.
- O ginecologista da Hazel sabia - aventou Nastiya.
- Sim, tens razão. O doutor Donnovan sabia. Vou regressar a Londres esta tarde para falar com ele, mas vai ser um pouco embaraçoso insinuar que ele quebrou a
confidencialidade com a sua paciente. Quero que o Paddy e a Nastiya venham comigo, e, sim, Dave, já reparei nesse teu olhar ansioso. Também podes vir connosco. É
bem provável que venhamos a precisar de ti. - Dave Embiss sorriu de alívio. Hector prosseguiu: - Por agora, a Catherinne ficará em segurança aqui em Seascape, entregue
aos bons cuidados da Bonnie e da sua equipa de apoio. - Verificou as horas no relógio de pulso. - São nove e treze. Há um voo que parte às onze e trinta para o aeroporto
de Heathrow, em Londres. Se todos puserem esses cus a mexer, conseguimos lá chegar a tempo.
34
Os quatro jantaram nessa noite no nº 11. Sentado à cabeceira da mesa, Hector ergueu o copo na direção dos outros. - Acabo de me dar conta de que passaram exatamente
quatro meses desde que a Hazel me deixou. Parece-me que foi há muito menos tempo. Sempre que entro nalguma divisão desta casa, estou à espera de a ver. Gostava que
se juntassem a mim num brinde à sua paz eterna.
Horas mais tarde, quando Paddy e Nastiya subiram para a sua suíte, a russa sentou-se à frente do toucador enfiada num roupão de seda cor-de-rosa para escovar
o cabelo. Observou Paddy pelo espelho, deitado na cama a ler o jornal vespertino. - Sabes do que o Hector precisa? - perguntou-lhe.
- Diz lá - grunhiu ele enquanto virava a página.
- Precisa de uma boa mulher na cama dele para o ajudar a esquecer.
Paddy soergueu-se de repente, alarmado, amarfanhando inadvertidamente a folha do jornal. - Não te atrevas a sugerir-lhe isso' Ele mata-te, meu docinho de coco
russo desnaturado.
- Desnaturado não sei o que é. Docinho de coco sei o que é e é bom e delicioso. Se quiseres, posso-te dar a provar um bocadinho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Hector encontrou um lugar para estacionar em Harley Street e caminhou ao longo de meio quarteirão até à clínica de Alan Donnovan.
Subiu as escadas em vez de usar o elevador e, quando entrou na área da receção, encontrou-a vazia. Aguardou alguns segundos junto à secretária de atendimento, até
que a rececionista voltou do consultório de Alan com um conjunto de dossiês de pacientes.
- Lamento tê-lo feito esperar, senhor Cross.
- Não tem mal, Victoria. - A rapariga pareceu ficar um pouco perturbada ao vê-lo, mas Hector atribuiu-o à pressão de trabalhar para um homem como Alan.
- O doutor Alan está bastante atrasado. Não quer aproveitar para tratar de outro assunto que possa ter de resolver?
- Não há problema. Não tenho pressa. Posso esperar - disse-lhe Hector.
Victoria amontoou os dossiês em cima da sua secretária. Tinha um iPhone S4 na mão livre e pousou-o ao lado da pilha de dossiês quando o intercomunicador tocou.
- Peço desculpa, senhor Cross, mas parece que hoje tudo acontece ao mesmo tempo. - Levantou o auscultador e disse: - Sim, doutor Donnovan. Sim, de imediato. -
Pousou o auscultador. - Por favor, queira-me desculpar outra vez, senhor Cross.
Encaminhou-se para as salas interiores. Deixou o iPhone pousado ao lado dos dossiês. Hector reparou que o aparelho era idêntico ao seu. Algo lhe acudiu à mente
e, de repente, tudo pareceu encaixar no devido lugar. A resposta ao enigma estivera ali, mesmo à frente dos seus olhos. Não prestara atenção a Victoria, como se
ela não passasse de uma peça de mobília. Sentiu-se mortificado pelo facto de não se ter dado conta disso muito antes.
- Ouça, Victoria - disse ele enquanto ela se afastava.
- Acabo de me lembrar de uma coisa que preciso de fazer. De qualquer modo, também não era imperioso que eu falasse hoje com o doutor Donnovan. Por favor, cancele
a minha consulta. Volto a ligar-lhe na próxima semana para marcar outra.
- Oh, tem a certeza? Muito bem, mas lamento muito que tivesse de esperar, senhor Cross. - Apressou-se na direção da porta do consultório de Alan.
Enquanto a porta se fechava, Hector inclinou-se sobre a secretária e agarrou no iPhone da rapariga. Fez deslizar o seu próprio telemóvel da bolsa que levava ao
cinto e trocou-os. Só esperava que demorasse algum tempo até ela se dar conta daquela troca. Não o preocupava a possibilidade de poder deixar informações vitais
nas mãos da rapariga. Dave Imbiss tinha-o ensinado a manter o telemóvel inviolável. Saiu da clínica e desceu para o local onde estacionara e regressou ao nº 11,
onde encontrou os outros três membros da sua equipa na biblioteca.
- Não demoraste muito tempo. Não esperávamos que voltasse tão cedo - disse Dave Imbiss.
- Fui buscar-te um pequeno presente. Aqui tens. - Atirou-lhe para as mãos o iPhone de Victoria.
- Obrigadíssimo. - Dave apanhou o telemóvel num gesto ágil. - Mas já tenho um.
- Um como este não tens de certeza - garantiu-lhe Hector
- O que quero que faças é que o leves para a oficina e lhe saques todo e qualquer pedacinho de informação. Quero a lista completa dos números de contacto que encontrares.
Todas as mensagens recebidas e enviadas, de voz e SMS. Quero cópias de todos os vídeos gravados no cartão de memória. Quero que analises com uma atenção especial
tudo aquilo que datar desde a semana em que a Hazel morreu até ao dia de hoje.
- Onde arranjaste isto? - Dave examinou o iPhone com uma súbita atenção compenetrada, revirando-o nas mãos e sem nunca olhar para Hector enquanto lhe fazia perguntas.
- Pertence a alguém? Como é que lhe conseguiste deitar a mão?
- Roubei-o à rececionista lá na clínica do Alan Donnovan. O Alan era o ginecologista da Hazel. A rececionista chama-se Victoria Vusamazulu. É uma rapariga africana,
bonita e baixinha, e o nome dela em zulu é um grito de guerra político que significa "Despertar a Nação Zulu". Quanto à nação não tenho bem a certeza, mas, no respeitante
aos atributos físicos dela, não tenho dúvida de que conseguiria despertar uns quantos mortos. Provavelmente já se deu conta de que troquei o meu telemóvel pelo dela,
mas posso continuar a empatá-la até amanhã. Portanto, tens até amanhã para lhe sacares do telemóvel tudo o que conseguires. Para além do patrão dela, a Victoria
era a única pessoa que sabia que a Hazel ia a Londres no dia da emboscada.
Dave sorriu deleitado perante aquele desafio. - Não vai ser preciso tanto tempo. Esta pequena zulu em breve deixará de ter segredos para mim. Com licença, malta.
Hector resistiu à tentação de seguir Dave até à oficina na cave. Dave era um dos melhores no seu ramo, mas trabalharia melhor ainda sem que o acossassem com conselhos
não solicitados. Hector deixou-o ocupar-se da tarefa e foi para o seu estúdio.
Agatha tinha digitalizado toda a informação de Hazel desde os tempos em que começara a trabalhar como sua assistente pessoal. Deixara-lhe na escrivaninha um disco
externo que continha todo esse acervo: muitas centenas de gigabytes.
Agora que o rasto do assassino de Hazel esfriara em Meca, Hector estava determinado a voltar diretamente ao início da deslumbrante carreira de Hazel para tentar
identificar todos os rivais que ela antagonizara ao longo do seu percurso. Por muito que a tivesse amado, Hector em momento algum duvidara da capacidade de Hazel
para fazer inimigos. Hazel lutara com unhas e dentes para chegar ao topo e nunca recuara perante uma luta.
Quem passa toda uma vida a abalar montanhas, a revolver os oceanos e a desbravar selvas, como Hazel fez, acaba por espantar e afugentar algumas criaturas bem
assustadoras. Hector iniciou nova busca de uma dessas criaturas. A mais perversa e vingativa de todas; o inimigo que faria um grande tubarão branco parecer-se com
um Chihuahua desdentado.
Passadas apenas duas horas desde que começara a trabalhar, intercomunicador tocou. Era Agatha.
- Bom dia, senhor Cross. Tenho em linha a rececionista da clínica do doutor Donnovan. Tentei dizer-lhe que a altura não era oportuna, mas ela foi bastante insistente.
Posso passar-lhe a chamada?
- Obrigado, Agatha. Pode passar-ma. - Fez uma anotação mental para ter uma conversa séria com Agatha. Precisava urgentemente de uma assistente pessoal e ela seria
perfeita para esse cargo. Trabalhara para Hazel durante toda a sua vida e talvez agora pudesse transferir essa lealdade para ele. Um benefício secundário a desse
acordo era que não correria nenhum risco de um eventual envolvimento afetivo. Pôs esse pensamento de lado e atendeu a chamada: - Cross.
- Peço desculpa por o incomodar, senhor Cross. Daqui fala Vicky Vusamazulu. Parece que houve um engano. Reparei na sua primeira visita à clínica que o senhor
tem um iPhone S4 igualzinho ao meu...
- Sim, tenho - respondeu Hector, lamentando-se logo de seguida: - Oh, raios. Agora percebo o que deve ter acontecido. Não tenho conseguido ativar o meu telemóvel,
está sempre a recusar a minha palavra-passe. Estava junto à sua secretária esta manhã quando saí da clínica. Lembro-me que ia fazer uma chamada, mas depois mudei
de ideias e fui à casa de banho. Só aí é que me dei conta de que tinha deixado o meu telemóvel na sua secretária. Voltei para a receção. Você não estava lá, mas
vi um iPhone em cima da secretária. Pensei que era o meu e levei-o. As minhas sinceras desculpas, Vicky. Que estupidez a minha. Por acaso não tem aí consigo o meu
telemóvel, pois não?
- É por esse motivo que lhe estou a ligar, senhor. Tenho aqui o seu telemóvel. Sei que é o seu porque o senhor escreveu o número dentro da tampa de trás. O meu
tem muitas informações confidenciais. Posso ir a sua casa hoje depois do trabalho para trocar- os telemóveis?
- Vai ter de me desculpar, Victoria. Vou sair dentro de alguns minutos e só voltarei bastante tarde. Mas se, tal como diz, contém informações confidenciais, levarei
o seu telemóvel comigo. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia. Passo aí na clínica pela manhãzinha para trocarmos os telemóveis.
- Oh, meu Deus! Não consegue arranjar um tempinho hoje? é um grande contratempo para mim.
- Lamento, Victoria. Amanhã antes das dez, prometo-lhe.
- Desligou antes que a rapariga pudesse voltar a protestar.
Poucos minutos após as cinco da tarde, Dave Imbiss ligou-lhe através do intercomunicador.
- Desculpa. Demorou mais do que pensava. Essa jovem mazulu é uma pequena megera astuta. Pôs toda uma série de armadilhas no aparelho dela. Mas consegui sacar tudo
o que querias.
- Excelente trabalho. Conta-me.
- É melhor vires cá dar uma olhada e ouvires por ti mesmo. Vamos precisar de usar a sala de cinema. Tenho cerca de uma hora de vídeos para te mostrar. Antes de
vires, devias tomar um calmante ou até dois. Vais ficar impressionado com o que tenho para te mostrar.
- Estou aí dentro de cinco minutos. Liga ao Paddy e à Nastiya para se juntarem a nós neste espetáculo de gala.
Paddy e Nastiya estavam sentados no meio da segunda fila de assentos quando Hector entrou na sala de cinema. Dave estava ocupado com o equipamento eletrônico.
Ergueu a cabeça assim que Hector levantou a perna comprida para transpor a primeira fila e sentar-se no lugar ao lado de Nastiya.
- Lamento desapontar-vos, pessoal. Não vamos ter anúncios publicitários. Portanto, vou direto à atração principal - disse-lhes Dave. - Em primeiro lugar, algumas
conversas selecionadas. Um facto que a maior parte dos utilizadores de um iPhone desconhece é que nada fica perdido para sempre, por mais vezes que uma pessoa elimine
a informação, podemos sempre recuperá-la. A jovem Vusamazulu fez duas tentativas para eliminar esta conversa em particular, mas ei-la aqui de novo, gravada no dia
em que a Haze teve a última consulta com o Alan Donnovan. - Dave começou a reproduzir a gravação áudio. O primeiro som era o simples toque de chamada de um telemóvel
e, imediatamente a seguir, ouviu-se um clique quando a chamada foi atendida do outro lado da linha Fez-se uma pausa e depois falou uma voz feminina.
"Olá. És tu, Aleutian?"
A resposta foi imediata. "Já te disse para não mencionares nomes, sua cadela." A cadência era a do hip-hop americano. O tom era arrogante.
O leve arquejo de contrição da mulher era quase inaudível. Depois, a sua voz adotou um tom de súplica submissa: "Desculpa Já me tinha esquecido."
"Então não te esqueças de apagar depois o registo desta chamada quando terminarmos. E agora, conta-me! Ela já chegou?"
"Sim, está cá. Mas o marido já saiu. Disse ao doutor que voltava à uma e meia."
"Ótimo!", disse a voz masculina, e a chamada terminou. Dave desligou a gravação áudio. Todos ficaram em silêncio durante alguns momentos.
Depois, Hector disse: - Aleutian. Foi esse o nome que ela usou?
- Parece que sim. De qualquer modo, provavelmente é uma alcunha do submundo do crime, um nome de guerra. Não o nome que o tipo usa no passaporte, como deves imaginar.
- Volta a passar a gravação.
Dave puxou a conversa atrás e reproduziu-a de novo. Todos se inclinaram para a frente para ouvir. Quando a conversa terminou. Paddy concordou: - Aleutian. Definitivamente,
Aleutian. Portanto, pelo menos já temos um nome como ponto de partida.
- A data e a hora estão corretas. Deixei a Hazel na clínica do Donnovan e fui tratar de umas coisas na cidade - concordou Hector. - Que mais tens aí, Dave?
- A chamada seguinte foi às nove e quarenta e cinco dessa mesma noite - disse-lhes Dave. - Deste tal Aleutian a ligar à Victoria.
Reproduziu o telefonema. Ouviram-se quatro toques de chamada e depois a voz e a entoação inconfundíveis da rapariga.
"Olá. Fala a Victoria." "Vou aí buscar-te dentro de dez minutos. Espera por mim em baixo, à entrada da tabacaria. Vou num Volkswagen azul alugado."
"Estás atrasado. Tinhas dito às sete." "Pronto. Esquece. Posso arranjar outra gaja para hoje à noite. Não faltam ratas frescas por estas bandas."
"Não! Não era isso que eu queria dizer. Desculpa. Perdoa-me, por favor. Eu depois compenso-te. Prometo."
"Espero bem. Tou aqui a rebentar de tesão que nem imaginas. Victoria soltou uma risadinha. "És tão engraçado. Vem cá que eu alivio-te desse tesão todo, meu garanhão."
Hector interveio em voz baixa: - Na altura em que essa conversa erudita decorria, a Hazel estava em coma, com uma bala enfiada no cérebro e a poucas horas de morrer.
Paddy baixou a cabeça e remexeu-se inquieto. Nastiya agarrou na mão de Hector que estava pousada no assento entre ambos. Apertou-lha com força, mas continuou em
silêncio. Não havia nada que nenhum deles pudesse dizer para o confortar.
Dave tossicou e quebrou o silêncio. - Há mais quatro conversas entre os dois, mas é tudo no mesmo registo desbragado. Só ameaças e armanços de proezas sexuais da
parte dele e algumas recriminações dela. Mas não houve mais nenhuma chamada do tal Aleutian nestas últimas semanas. Tentei ligar para o número dele, mas está desligado.
- Ou ele lhe deu com os pés, ou então saiu do país há algumas semanas - aventou Hector.
- Largou-a simplesmente - disse Nastiya com grande determinação. - Os homens como esse Aleutian não costumam ficar mais que algumas semanas no mesmo sítio. Põem-se
ao fresco assim que conseguiram dar uma boa dentada no docinho de coco. - Virou-se para Paddy e franziu de forma sugestiva a sobrancelha perfeitamente delineada.
- Nada de piadas privadas aqui, por favor - advertiu-a Dave. - Mantenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto
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antenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto a chamadas telefónicas, é tudo, mas forneceram-nos algum material interessante. - Olhou para Hector. -
Se estiveres pronto, posso passar os vídeos.
- Podes prosseguir, Dave, por favor.
Dave diminuiu a intensidade das luzes e começou a reproduzir o primeiro vídeo que tinha copiado do iPhone. Ouviu-se imediatamente nos altifalantes uma cacofonia
de ruídos de fundo, vozes masculinas altas e estridentes gritos de riso femininos, música aos berros e o tilintar de garrafas e copos. No ecrã, as imagens eram confusas
e pouco nítidas enquanto o enquadramento da câmara oscilava de forma frenética do teto para o chão, detendo-se sobre uma mesa atulhada de garrafas de cerveja e copos
meio vazios e apresentando depois primeiros planos de pernas e pés. Depois estabilizou. A cena era obviamente o interior de um clube noturno sórdido. As mesas estavam
agrupadas em redor de uma minúscula pista de dança. A voz inconfundível de Victoria sobrepôs-se ao chinfrim.
"Toca a curtir, pessoal! Não se esqueçam que esta é a vossa audição para o Fator X." A lente focou-se num grupo de jovens sentados em redor de uma mesa atulhada
de bebidas e cinzeiros a transbordar de beatas. Alguns dos jovens lançaram olhares lúbricos na direção da câmara e ergueram os copos num brinde, outros tinham charros
enfiados em diversos ângulos nos cantos das bocas e sopravam baforadas de fumo, chegando um deles a enfiar o dedo pela garganta abaixo e a imitar sons de vómito.
A câmara focou-se numa atraente rapariga loira sentada no regaço de um rapaz na extremidade oposta da mesa e a voz de Victoria instruiu-a: "Vá lá, Angie. Faz
um truque de magia."
Angie enfiou os polegares na parte de cima do vestido e puxou-o até à cinta, expondo os seios grandes e brancos. Agarrou um em cada mão e apontou os mamilos para
a câmara. "Bangf Bang! Estás morto!", guinchou. A câmara estremeceu devido à risada geral que se seguiu e depois fixou-se no folião seguinte no círculo.
- Aqui vamos nós! - advertiu-os Dave Imbiss, parando o fotograma. Estavam a olhar para a imagem de um homem de pele escura. Hector calculou que teria pouco mais
de trinta anos. Tinha o cabelo empastado de gel, modelado na forma de um grande sol sobre a testa, e usava um blusão com as mangas enroladas acima dos cotovelos
e com o capuz lançado para trás. Os antebraços eram musculosos e tonificados, como se fizesse musculação num ginásio. Era bem-parecido, mas de um modo bruto, com
boca cruel e cínica. A sua expressão era premeditadamente interessada.
Dave deixou-os escrutinar a imagem durante mais algum tempo. - Creio que temos aqui o elo perdido do puzzle, o tipo que planeou e montou o golpe. Senhores e senhoras,
apresento-lhes o tal Aleutian.
Hector endireitou-se no assento e inclinou-se de imediato para frente, como um cão de caça cujas narinas acabassem de captar o cheiro da presa. - Temos mais gravações
desta beldade? - perguntou num tom mortiferamente glacial.
- Imensas. Imensas. A Victoria está de beiço caído pelo tipo. Parece que nunca fica satisfeita.
- Nem eu - murmurou Hector. - Quero-o a todo o custo. Continua, Dave.
O vídeo recomeçou e a voz de Victoria retomou os comentários.
Senhoras e senhores, homem mais estiloso do que isto é impossível. Apresento-lhes o senhor Estiloso em pessoa. Acena aos teus fãs. senhor Estiloso."
O Sr. Estiloso ergueu dois dedos em V e colocou o polegar entre ambos. Sem alterar a expressão que arvorava, enfiou o polegar na direção da lente, num gesto grosseiramente
obsceno. Victoria lançou um apupo e entoou: "Faz-me isso outra vez!".
O homem enquadrado pela lente reclinou-se para trás na cadeira e enlaçou as mãos por trás da nuca. Lançou uma piscadela à câmara. Dave voltou a congelar a imagem.
- Muito bem, malta, verifiquem só a mão esquerda dele - disse Dave, fazendo um zoom da mão. - É aquela a tatuagem vermelha?
- Sem tirar nem pôr, Dave. A tatuagem do Maalek. Mas temos a certeza de que este é mesmo o Aleutian? Ela não usou esse nome neste vídeo. Continua a passar a gravação.
Dave retomou a reprodução do vídeo, mas a câmara deixou de enquadrar o sujeito e Dave desculpou-se. - Não há mais nada neste vídeo. Mas não precisam de ficar
preocupados. Há muito mais em três dos outros vídeos, o suficiente para fazer vomitar um homem rijo.
- Vejamo-los então, por favor - ordenou Hector.
O vídeo seguinte era um plano amplo da pista de dança do clube noturno. A pessoa que estava a filmar postara-se certamente em cima de uma das mesas para conseguir
um tal ângulo elevado. Na orla mais próxima da pista de dança, Victoria Vusamazulu estava a dançar com o homem da tatuagem. Abanava as ancas, baloiçando a cabeça
de um lado para o outro, fazendo com que a comprida cabeleira postiça lhe caísse sobre a cara. O seu parceiro era bastante mais alto que ela. Tinha tirado o blusão
de capuz e a camisola de mangas cortadas que usava expunha-lhe a totalidade dos braços fortes e musculados. Hector conseguiu calcular-lhe a estatura comparando-o
com Victoria. Ela não lhe chegava sequer aos ombros.
Era alto, muito alto, e movia-se de forma ágil, com equilíbrio e coordenação. Era rápido nos movimentos de pés. Hector calculou que fosse um adversário perigoso.
De repente, o homem arrancou a cabeleira da cabeça de Victoria e rodeou-a, fustigando-lhe as costas e as nádegas com a cabeleira, como se ela fosse sua escrava.
A rapariga contorceu-se numa agonia fingida. O sujeito estendeu a mão para lhe desapertar o fecho que corria ao comprido das costas do vestido e abriu-o até à fenda
entre as nádegas. Ela agarrou a frente do vestido contra os seios, mas tinha as costas nuas e a pele escura reluzia de suor.
Os outros foliões rodearam-nos, acompanhando o ritmo da música e os seus movimentos primitivos com palmas, incitando-os com gritos estridentes e uivos de excitação.
O homem acercou-se por trás de Victoria, agarrou-lhe as ancas e puxou-a para si, golpeando-lhe as nádegas com o próprio sexo, numa paródia explícita de uma relação
anal. Ela lançava as nádegas contra ele com o mesmo vigor, correspondendo a cada uma das investidas dele e aguentando o assalto.
De repente, o ecrã escureceu e o ruído reduziu-se a um silêncio total. Dave ligou as luzes do teto.
- Desculpem lá - disse numa voz jovial. - Fim do vídeo. Nunca iremos saber como essa história acabou.
- Ainda bem. Nenhuma rapariga decente estaria segura na cama com um marido que tivesse visto uma coisa dessas - opinou Nastiya, dando uma cotovelada nas costelas
de Paddy.
- Se achaste aquilo um pouco excessivo, Nastiya, então é melhor saíres daqui antes que vos mostre o último vídeo - advertiu-a Dave.
Nastiya abanou a cabeça e chegou-se mais a Paddy. Agarrou-lhe o braço com força. - Sei que posso confiar neste homem para me proteger - disse. - É meu dever ficar
aqui. Um dia, talvez seja meu dever matar esse animal repugnante, esse Aleutian.
- Como podemos saber que este tipo é mesmo o Aleutian? - interveio Hector. - Vá lá, Dave, diz aí o nome, por favor.
- O seu desejo é uma ordem, chefe. O nome dele já vai surgir! - Desligou as luzes e passou o último vídeo.
Uma vez mais, assistiram a uma série de planos pouco nítidos e desfocados, do chão e do teto daquilo que era claramente o quarto de uma mulher, com uma colcha
cor-de-rosa na cama enorme e um toucador atulhado de artigos de higiene pessoal e frascos de perfume. Havia também uma coleção de animais de peluche dispostos na
única cadeira ao lado da cama. Depois a imagem estabilizou, como se a câmara tivesse sido colocada num tripé. O enquadramento centrou-se na cama. O homem da sequência
do clube noturno estava deitado de costas na cama, nu. Olhou para a lente, com a mesma expressão enigmática. Colocara uma das mãos atrás da cabeça e a tatuagem era
claramente visível. Com a outra mão, acariciava-se.
"Vá lá", disse ele à pessoa atrás da câmara. "Estás à espera de quê? Não me digas que tens medo aqui do meu Grandalhão, minha cadela."
Vicky Vusamazulu surgiu toda saracoteada no plano. Também estava nua. As reluzentes nádegas negras baloiçavam-lhe enquanto se aproximava do homem na cama. Alçou
uma das pernas por cima dele e montou-o.
Nenhum dos presentes na sala de cinema voltou a falar durante algum tempo. Victoria tornou a levantar-se mais duas vezes da cama e postou-se atrás da câmara para
alterar o ângulo e a focagem, de um plano de grande abertura para um primeiro plano muito próximo, e depois voltou a correr para a cama e lançou-se uma vez mais
à ação.
- Não acham estranho? - perguntou Hector por fim.
- O quê? - disse Paddy, sem tirar os olhos do ecrã.
- Não acham estranho como é aborrecido ver outras pessoas fazer isto, quando é uma enorme diversão sermos nós a fazê-lo?
Nastiya riu-se com deleite. - Adoro-te, Hector Cross! Consegues ser tão sensato e engraçado.
- Puxa à frente, por favor, Dave - insistiu Hector.
Dave encolheu os ombros. - Está bem, mas aviso-te desde já que vais perder uma carrada de material interessante.
Os movimentos do casal no ecrã tornaram-se tão bruscos e freneticamente acelerados como os de um filme a preto e branco de Charlie Chaplin da década de 1920.
O som era uma série de guinchos ininteligíveis.
Nastiya começou a rir, acabando por contagiar todos os outros. Dave Imbiss conseguiu por fim controlar suficientemente o riso para os advertir: - Muito bem, calem-se
todos, malta, por favor! Aqui vem o momento pelo qual todos esperávamos!
A ação abrandou para o ritmo em tempo real e Aleutian falou de forma bem audível: "Prepara-te, minha beleza! Aqui vem a mortífera serpente negra africana!"
"Oh, sim, Aleutian! Enfia-mo todo, Aleutian, meu cabrão obsceno!"
- E aqui têm! - disse Dave Imbiss num tom complacente.
- Peçam o nome e aqui o Imbiss dá-vos o nome, não uma, mas duas vezes. Isto é o que eu chamo um serviço impecável. - Estendeu a mão e desligou o vídeo.
Hector quebrou o silêncio que se seguiu. - Aquela rapariga não foi muito bem-educada. - Proferiu a sua opinião numa voz séria: - Repararam que no final ela nem
sequer chegou a dizer "por favor"? - Levantou-se e avançou para o estrado. Enfiou as mãos nos bolsos e virou-se para eles.
- Excelente trabalho, Dave. Nunca me deixas ficar mal. Neste preciso momento, acabas de tornar a Victoria Vusamazulu no assunto mais picante da cidade. É a única
pista que nos pode conduzir ao Aleutian. Precisamos de lhe manter o entusiasmo bem aceso. - Olhou para Nastiya. - Lamento, mas vai ser essa a tua tarefa, Nazzy.
- Eu? - Pareceu surpreendida. - Não me parece que a Victoria tenha dado mostras de quaisquer tendências lésbicas.
- Sabes tão bem quanto eu que uma mulher está muito mais aberta a uma abordagem amigável por parte de outra mulher do que de um homem. Ela não está à espera de um
tal engate. Quero que tu e a Vicky se tornem almas gémeas. Assim não perdemos de vista o tal Aleutian.
- Está bem. - Nastiya encolheu os ombros. - Que queres que eu faça?
Hector virou-se para Dave. - Dá-me o iPhone da rapariga, por favor.
Dave entregou-lho. Hector ligou-o e marcou um número. - Estou a ligar para o meu próprio telemóvel - explicou.
Assim que o toque de chamada soou, ligou o altifalante e fez sinal aos outros para se manterem em silêncio.
- Olá. Ligou para o telemóvel de Hector Cross. Fala Victoria Vusamazulu. - Aqui Hector Cross, Vicky. Ainda precisa que lhe entregue o seu iPhone esta noite em vez
de ser amanhã? Acho que posso tratar disso. - Oh, sim, por favor, senhor Cross - exclamou ela com entusiasmo. - Seria fantástico. Sinto-me totalmente perdida sem
ele.
- Muito bem. A minha secretária está acabar de terminar o expediente. Vou enviá-la num táxi ao seu encontro. Ela entrega-lho.
- Obrigada. Muito obrigada, senhor. - Calculo que já deva estar em casa, não? Qual é a sua morada? - Sim, estou no meu apartamento em Richmond. A morada é 47, Gardens
Lane e o código postal é TW9 5LA. Diga ao taxista que fica na esquina com Kew Gardens Road. Fica a cerca de trezentos metros ao fundo da estrada de quem vem da estação
de Kew Gardens.
- Muito bem. A minha secretária chama-se Natasha Voronc > É uma senhora russa de cabelo loiro. Estará aí consigo dentro de trinta ou quarenta minutos.
Desligou a chamada e entregou o telemóvel a Nastiya. - Podes ir, czarina. A Victoria está à tua espera. Demora o tempo que precisares. Nós tratamos de te guardar
o jantar. - Calou-se por momentos e depois prosseguiu: - Ouve uma coisa: para numa dessas lojas de bebidas a caminho e compra à Vicky uma garrafa de vinho decente.
Diz-lhe que é um presente da minha parte. Um grande pedido de desculpa por lhe ter levado o telemóvel. Talvez te convide a partilhares a garrafa com ela. Provavelmente
está sozinha agora que o Aleutian desapareceu de cena. Faz-te de muito amiga dela, tenta levá-la a confidenciar-te os seus segredos femininos. É mais do que certo
que vai querer queixar-se do Aleutian e dizer-te como ele é um grande cabrão. E tu podes-te queixar do Paddy e dizer-lhe que ele é um grande cabrão. Vocês as duas
vão-se divertir um bom bocado.
- Essa sugestão agrada-me - concedeu Nazzy.
36
Nastiya regressou da sua visita ao apartamento de Victoria uma hora atrasada para o jantar. Os três homens, de uniforme de gala e a beberem o seu segundo uísque,
esperavam-na na sala de estar. Levantaram-se assim que ela surgiu à entrada.
- E então, como correu, minha querida? - perguntou-lhe Paddy, antecipando-se aos outros.
- Deixem-me primeiro ir lá acima mudar de roupa. Não demoro mais de um minuto e já vos conto a história toda quando voltar.
Quando desceu as escadas, todos se aperceberam de que valera a pena esperar. Nastiya usava os seus diamantes e estava deslumbrante. Na qualidade de anfitrião,
Hector deu-lhe o braço e conduziu-a para a sala de jantar. O primeiro prato era solha-limão-do-pacífico grelhada, servida desespinhada e acompanhada de cogumelos
silvestres da Provença, regados com molho de açafrão.
A comida manteve-os em respeitoso silêncio durante alguns minutos, até que Nastiya suspirou deliciada e limpou a boca ao guardanapo antes de falar.
- Aquela Victoria é uma rapariga muito querida. Acho-a simpática. Claro que é muito ingénua e louca por homens, como qualquer rapariga saudável da sua idade.
Mas, na verdade, não é mal-intencionada. Depois de beber dois copos de vinho, convenceu-se de que sou a sua nova melhor amiga. Sente-se sozinha, como o Hector tinha
dito. Quer alguém com quem possa falar. Nunca mais me deixava ir embora. Ela pensa que esse tal Aleutian vai voltar da América para casar com ela.
- Então foi para aí que ele foi. Bate certo com o sotaque e a tatuagem. Ela sabe que ele esteve envolvido no homicídio da Hazel?
Nastiya foi firme e determinada na resposta. - Tenho a certeza que não. Claro que não podia insistir com ela sobre esse assunto. Mas, como sabia que eu trabalho
para o Hector, foi ela mesmo quem trouxe o assunto à baila. Estava a par do assassinato da Hazel, através das notícias que tinha lido na imprensa e ouvido na TV.
Mas nunca associou o episódio ao Aleutian. O Aleutian disse-lhe que é um manda-chuva no negócio do petróleo na Califórnia. Pediu-lhe para o ajudar a conseguir um
encontro com a Hazel, para tentar aliciar a Bannock Oil e a Hazel a participarem num negócio qualquer que ele tinha em mente. Pediu à Victoria para o informar quando
a Hazel saísse da clínica do doutor Donnovan nesse dia para simular um encontro acidental. Já vos disse que a Victoria é muite ingénua e um pouco estúpida. Mas simpatizo
com ela.
- Isso quer dizer, então, que já não vamos deitar-lhe a mão para a fazer dar à língua? - Paddy olhou para Hector. - Devo dizer que estou desapontado. Até podia
ser divertido.
Hector sorriu e respondeu: - De certeza que a Nastiya tem razão. Aquela rapariga é uma lorpa. Não é muito inteligente e não sabe de nada. Mas é possível que o
Aleutian regresse cá para voltar a saborear o pitéu que ela de tão bom grado oferece. Essa é praticamente a única utilidade que ela tem para ele agora, ou para nós.
Sabes se a Vicky tem o atual número de telefone dele ou qualquer outro modo de o contactar?
- Perguntei-lhe isso, mas só tem o número de telemóvel que sacámos do iPhone dela. Ela diz que ele nunca lhe atende as chamadas. Pensa que isso só pode dever-se
ao facto de ele não ter roaming no telemóvel lá nos Estados Unidos. Só sabe é que ele lhe prometeu que voltaria para ela e que iriam viver juntos. E acredita que
ele vai cumprir a palavra.
- Mantém-te em contacto com ela, por favor, Nazzy. Pode dar-se o caso de ele de facto voltar.
- E que fazemos até lá? - perguntou Dave Imbiss. - Chegámos a outro beco sem saída, não é?
Todos olharam para ele, mas Hector não respondeu de imediato. Deu um gole no seu copo de vinho e saboreou-o, descrevendo círculos com a língua. - Este Chablis é
perfeito para acompanhar a solha.
- Todos sabemos que és um grande conhecedor de vinhos, mas isso não responde propriamente à pergunta do Dave - frisou Nastiya. Hector foi salvo pela entrada de Stephen,
o seu mordomo, e virou-se para ele com um certo alívio. - Passa-se alguma coisa, Stephen?
- Peço desculpa por o incomodar, senhor. Mas está um cavalheiro à porta. Bem, para ser sincero, senhor, diria que é mais um jovem mal-arranjado do que um cavalheiro.
Tentei mandá-lo embora, mas foi muito insistente. Diz que vem da parte de alguém chamado Sam Mucker. Que o senhor sabe a quem ele se refere. Diz que se trata de
uma questão de vida ou morte; foram estas as palavras dele.
Hector ponderou por momentos. - Sam Mucker? Não faço a mínima ideia do que é que ele está a falar. Já passa das dez e estamos a meio do jantar. Por favor, Stephen,
diga amavelmente ao sujeito que se ponha ao fresco.
- Com todo o gosto, senhor Cross. - Stephen conteve um sorriso e dirigiu-se para a porta com passadas firmes e determinadas.
Assim que o mordomo fechou a porta, Hector levantou-se de um salto da cadeira à cabeceira da mesa. - C'os diabos! - exclamou. - O tipo estava a referir-se a Aazim
Muktar. Stephen, volte já aqui! A porta voltou a abrir-se e Stephen manteve-se especado à entrada. - Chamou, senhor?
- Sim. Mudança de planos. Por favor, acompanhe o cavalheiro à biblioteca e ofereça-lhe uma bebida. Faça de tudo para o tratar como um cavalheiro. Diga-lhe que já
vou. - Hector virou-se para Dave. - Não, jovem David, meu rapaz. Não me parece que tenhamos chegado a outro beco sem saída. Aliás, desconfio que a verdadeira diversão
pode estar prestes a começar. - Fez soar a campainha para chamar o criado e disse-lhe: - Peça à para me guardar o resto desta excelente refeição no rescaldeiro.
- Levantou-se e disse aos outros: - Não esperem por mim, talvez demore um pouco. - Saiu da sala de jantar e foi para a biblioteca.
Quantas menos pessoas vissem o agente de Aazim Muktar. melhor para todos.
37
O visitante estava especado de costas viradas para a lareira, a aquecer-se. Tinha uma Coca-Cola na mão e Hector percebeu de imediato por que razão Stephen não o
vira com bons olhos. Tinha o rosto por barbear e o cabelo emaranhado e oleoso. As calças de ganga estavam esfarrapadas e provavelmente nunca tinham sido lavadas.
O desenho dos lábios conferia-lhe ao rosto uma expressão carrancuda e os seus modos sugeriam que se tratava de um sujeito desprezível. Tudo nele anunciava que se
estava na presença de um refugo da vida, um dos falhados.
Hector acercou-se dele e estendeu-lhe a mão. - Olá, sou o Hector Cross.
O rapaz apertou-lhe a mão sem hesitação. Os olhos eram castanho-claros, amistosos e inteligentes, em total contraste com o resto da sua aparência. - Eu sei. Fiz
uma pesquisa sobre si no Google. Devo confessar que o senhor é um homem deveras impressionante. Chamo-me Yaf Said, mas costumava dar pelo nome de Rupert Marsh antes
de encontrar Alá. - A voz era agradável, mas firme.
- Então por que nome te devo tratar? - Escolha o senhor. - Yaf significa "amigo". Vou-te chamar assim, pode ser? - Claro, se assim o desejar, senhor. - Senta-te,
Yaf - convidou-o Hector, sentando-se numa das poltronas de couro.
- Estou bem aqui, junto à lareira, senhor - declinou Ya:
- Vim de moto e apanhei frio. Além do mais, prefiro estar de pé na presença de pessoas mais velhas e mais importantes.
Hector pestanejou, surpreendido. Este miúdo tem classe, pensou.
Yaf pareceu ler-lhe o pensamento. - Por favor, queira-me desculpar o cabelo e a barba por fazer, bem como o meu aspeto geri. Esta é a minha roupa de trabalho.
- Aazim Muktar disse-me que ajudas outros miúdos transviados a reencontrarem o caminho.
O rosto de Yaf iluminou-se ao ouvir o nome do mulá. - Aazim Muktar fez o mesmo por mim. Quando cheguei à mesquita dele, estava um farrapo, num estado lastimável.
Estava farto da vida, farto de mim, sempre drogado. Ele mostrou-me o caminho e fez-me mudar de vida. É um grande homem. Grande e santo. - Sorriu timidamente. - Ei!
Peço desculpa, senhor Cross. Até pareço um daqueles tipos nos anúncios publicitários da TV!
- Sei como te sentes. Também eu o admiro.
- Aazim Muktar disse-me que o senhor procura um homem Não me disse porquê e também não lhe vou perguntar a si.
- Bem, caso sirva de ajuda, a pessoa que procuro chama-se Aleutian - disse Hector.
Yaf sorriu. - Lá no submundo, os nomes pouco ou nada significam. Consegue-me descrever o aspeto dele, senhor?
- Tenho fotografias dele - confirmou Hector.
- Isso vai-me facilitar as coisas, senhor. Com as fotos, é canja. Posso vê-las, por favor?
- Vou buscá-las. Talvez demore algum tempo. - Hector levantou-se. - Quando foi a última vez que comeste, Yaf? Pareces -me muito magrinho.
- Nunca tenho muito tempo para comer.
- Bem, agora tens tempo. Vou dizer à cozinheira para te preparar umas sandes e uma taça de batatas fritas com ketchup.
- Obrigado, senhor. Parece-me ótimo. Mas, por favor, nada de carne. Sou vegetariano.
- E ovos e queijo?
- Gosto de ambos.
Cerca de uma hora depois, Dave já tinha imprimido uma dúzia fotogramas dos vídeos de Vicky e Hector levou-os para a biblioteca, onde Yaf já devorara uma travessa
de sandes de queijo, tomate pasta para barrar Marmite e se ocupava agora dos ovos cozidos e taça de batatas fritas. Levantou-se de um salto assim que Hector entrou
na biblioteca.
- Foram as melhores sandes que comi nos últimos quinze anos, altura em que a minha mãe morreu e fiquei a viver na rua.
Hector achava que ele não teria mais de 25 anos. Por conseguinte, desde os dez anos que levava uma vida de agruras. - E o teu pai, rapaz? - perguntou-lhe.
Yaf esboçou um sorriso triste. - Nunca o cheguei a conhecer. Acho até que nem a minha mãe sabia grande coisa acerca dele. Se calhar sou um daqueles tipos sortudos
que tem só uma mãe mas vinte e cinco putativos pais. Não sei.
Hector sorriu face àquele pequeno gracejo corajoso e entregou-lhe as imagens impressas. - Dá uma olhada e diz-me o que pensas. Mas faz-me um favor e senta-te, pode
ser? Estás-me a pôr nervoso, Yaf.
Yaf sentou-se na beira da poltrona à frente da de Hector e examinou cuidadosamente cada uma das imagens que Dave
- Estás a ver a tatuagem dele? - perguntou Hector. - Sim, é uma das marcas distintivas do gangue Maalek. Ele deve ser um deles. - Olhou por fim para Hector e disse:
- Lamento, senhor. Não conheço este tipo, mas tem ar de quem só traz problemas.
Reparou no desapontamento de Hector e apressou-se a continuar: - Mas, por favor, não se preocupe, senhor. Se ele se encontrar num raio de cem quilómetros para lá
dos limites de Londres, acabarei por o encontrar. Vou tratar de pôr muita gente na rua à procura dele. Pode-me dar um número de telefone para o contactar em caso
de urgência? Tipos como este movem-se muito rápido, como tubarões-tigre à caça.
- Se ele for avistado, podes-me ligar para este número. - Hector aproximou-se da secretária e anotou o número do seu iPhone num cartão em branco. - Podes-me ligar
a cobrar no destinatário, seja qual for a parte do mundo onde eu estiver.
- Entregou-lhe o cartão e acompanhou-o à porta da entrada, ficando depois a vê-lo enquanto montava a lambreta BW de 12 e cruzava os portões.
Se calhar nunca mais o vou voltar a ver, mas nunca se sabe.
38
Tentou afastar o rapaz da mente. No entanto, nos dias que se seguiram, Yaf não parava de se intrometer nos seus pensamentos, inclusive quando estava a tentar concentrar-se
na leitura da documentação de Hazel.
- Vivemos numa sociedade imoral quando os banqueiros recebem bónus de vários milhões de libras e rapazes honestos não conseguem arranjar trabalho e ficam a apodrecer
na rua até acabarem por cair numa vida de crime. Um dia acaba por rebentar tudo quando menos se espera - comentou ele a Paddy certo dia.
Isto fê-lo pensar em Catherine Cayla e naquilo que o mundo lhe reservava para o futuro. Apercebeu-se de que tinha imensas saudades da filha e que precisava desesperadamente
de voltar a vê-la. De modo que, alguns dias depois, apanhou um voo de regresso a Abu Zara, acompanhado de Paddy, Nastiya e Dave Imbiss.
39
- Temo-nos portado como uma boa menina, papá. Ganhámos quase meio quilo desde que o senhor partiu. - Bonnie colocou Catherine nos braços de Hector assim que ele
entrou no átrio da penthouse em Seascape Mansions. - Mas tivemos tantas saudades do nosso papá, não foi, bebé?
Hector não estava muito familiarizado com esta linguagem maternal e não percebeu bem quem sentia saudades de quem, mas esperava que não fosse aquilo que as palavras
de Bonnie pareciam transparecer.
Hector chegara mesmo a tempo para dar o biberão a Catherine e deitá-la depois no berço. Na manhã seguinte, colocou-a numa versão moderna de um marsúpio, uma espécie
de casulo de nylon fixo numa estrutura de alumínio, concebido de forma ergonómica para proteger e amimar um bebé. Fora Dave Imbiss quem lhe desencantara algures
este porta-bebés futurista. Se o prendesse ao peito, Hector poderia ver o rosto de Catherine enquanto corria. Ou podia prendê-lo nas costas, para que Catherine pudesse
olhar por cima do seu ombro.
Levou-a consigo para uma corrida de quinze quilómetros ao longo da marginal da praia. A bebé parecia apreciar o movimento baloiçante - pelo menos não emitiu nenhum
protesto audível; dormiu durante todo o percurso e só acordou quando regressou a casa, com um apetite digno de uma cria de leão. Tinha perdido um biberão, como Bonnie
anunciou ao mundo num tom estentórico de desaprovação.
Os dias sucederam-se numa rotina serena mas não desagradável. Paddy e Nastiya dispunham do seu próprio apartamento na Cidade de Abu Zara. Embora trabalhassem no
mesmo edifício, fora da sede da Cross Bow Security, por vezes passavam-se dias sem que se cruzassem. Contudo, Paddy telefonava a Hector todas as noites Para discutirem
possíveis desenvolvimentos; mas poucas novidades havia e não eram de grande relevância.
Pelo menos duas vezes por semana, Nastiya convidava Hector para jantar no apartamento onde vivia com Paddy ou num dos muitos restaurantes de luxo existentes na cidade.
Ao grupo juntava-se sempre um dos convidados de Nastiya: uma jovem mulher atraente e solteira. Era espantoso como ela conseguia desencantar tantas jovens. Certamente
passara a pente fino as tripulações de cabina de todas as companhias aéreas, os escritórios do pessoal administrativo das embaixadas britânica e americana e as principais
multinacionais a operarem na cidade. Mesmo quando Hector se esquivava com habilidade a estas ciladas óbvias, Nastiya nunca desistia de tentar. Tornou-se um jogo
amigável entre ambos. Paddy limitava-se a observar com um ar divertido.
Dave Imbiss passava muitas horas por dia na penthouse de Seascape Mansions a verificar e a aperfeiçoar as medidas de segurança que rodeavam Catherine Cayla, e a
certificar-se de que os seus homens se mantinham alerta e em plena forma física. A bebé nunca era deixada sozinha. Uma das três amas estava sempre a seu lado, dia
e noite. Havia sempre um guarda armado à porta do quarto da criança, bem como uma equipa da Cross Bow Security na sala dos monitores do sistema de televisão em circuito
fechado ao fundo do corredor, a vigiar todas as entradas para os apartamentos e o interior do quarto da criança.
Hector tomava o pequeno-almoço com Catherine todas as manhãs, às seis horas. Atacava o bacon e os ovos estrelados enquanto a bebé mamava do biberão. Depois levava-a
para a corrida habitual ao longo da marginal. Quando voltava à penthouse, entregava-a aos cuidados das amas e passava o resto da manhã a ler atentamente os comoventes
registos da vida de Hazel.
Para ele, os mais importantes e mais fascinantes eram os diários dela. Eram os únicos documentos de Hazel que Agatha não digitalizara. Hazel começara a escrevê-los
no seu 14º aniversário. Havia na coleção dela mais de vinte livrinhos de capas pretas idênticas. um para cada ano da sua vida desde o início da adolescência.
Os diários estavam escritos numa caligrafia miudinha e repletos de trechos em linguagem codificada por ela criada. Hector precisou de toda a sua imaginação e engenho
para decifrar alguns desses códigos. Hazel tinha registado cada detalhe da sua vida, fosse trivial ou apocalíptico. Hector estava fascinado. Nunca imaginara vir
a inteirar-se de tantas coisas acerca dela. Mas ali estavam as suas bazófias e confissões, escritas pelo próprio punho. Chegara mesmo a descrever, com deleite, a
perda da virgindade no seu 15º aniversário, no banco traseiro do velho Ford do seu treinador de ténis. Hector sentiu uma punhalada de ciúme.
O cabrão lascivo era quase trinta anos mais velho que a minha menina inocente. Deveria ter ido de cana por aquilo que lhe fez. Maldito pedófilo. Depois consolou-se
com o pensamento de que o maldito pedófilo provavelmente estaria agora gordo, careca e impotente; e com o facto de Hazel ter desfrutado dessa experiência. Continuou
a folhear os diários, saltando os anos intermédios até encontrar o dia em que ambos se conheceram.
Esse era um dos momentos cruciais da sua própria existência. Nunca haveria de esquecer um pormenor que fosse desse primeiro encontro. Ocorrera nas instalações da
Bannock Oil, ali no deserto de Abu Zara. Hector aguardara, juntamente com os outros manda-chuvas da Bannock Oil, pela chegada dela no meio de uma forte tempestade
de areia. O helicóptero surgira do meio das nuvens de areia castanho-escuras. Recordou-se que quando o aparelho aterrara e ela surgira à porta na fuselagem, fora
apanhado desprevenido pela descarga elétrica que lhe percorrera a coluna vertebral. Raios, ela era absolutamente magnífica.
Nesse primeiro dia, ela tratara-o com rispidez, o que o deixara furioso. Não estava habituado a ser tratado com desprezo. Odiado? Sim, mas nunca que o ignorassem
de forma tão descarada.
Agora, finalmente, podia ler os pensamentos dela nesse dia fatídico. Hazel tinha-o descrito da seguinte forma: "Todo ele pose, testosterona e músculo. Rezo a Deus
para que um dia me perdoe por achar este odioso simplório tão giro e tão sexy."
40
Seis semanas após a sua chegada a Abu Zara, Hector foi acordado pelo toque de chamada do seu iPhone. Rolou na cama, ligou o candeeiro da mesinha de cabeceira e olhou
para o despertador. Faltavam dez minutos para as quatro da madrugada. Pegou no telemóvel.
- Cross - disse. - Sou eu, o Yaf! Hector soergueu-se de imediato. - Diz-me coisas! - Ele está cá. Mas é melhor o senhor vir sem demora. Ele nunca para muito tempo
no mesmo sítio. Não há maneira de saber quando vai voltar a desaparecer.
- Que horas são aí em Londres? - Pouco passa da meia-noite - respondeu Yaf. Hector fez um cálculo rápido. - Estarei aí por volta das onze da manhã de Londres. Vai
à minha casa de manhã e espera-me lá. Vou dizer ao meu mordomo para te deixar entrar, e a minha chef vai-te preparar um banquete para o pequeno-almoço. - Desligou
e telefonou para o apartamento de Paddy. Atendeu-o a voz ensonada de Nastiya. - Quem mais pode ser senão o Hector Cross! - disse ela. - Adivinhaste. O Aleutian está
em Londres. Diz a esse pinga-amor deitado aí ao teu lado na cama para enfiar as calças. Diz-lhe para requisitar o jato G5 da Bannock Oil para uma partida imediata
e urgente rumo a Farnborough. Eles que arranquem os pilotos da cama se necessário for. Vamos apanhar aquele cabrão assassino.
Hector deixou Dave Imbiss a comandar os guardas da segurança de Catherine em Seascape Mansions. O G5 descolou com a restante equipa às 08h43 de Abu Zara e aterrou
em Farnborough cinco horas depois. O motorista de Hector avançou pela pista para os recolher. Pouco mais de uma hora depois, estacionaram na garagem subterrânea
do nº 11. Yaf Said aguardava na cozinha, onde travara amizade com a chef Cynthia. A mulher estava a fazê-lo ganhar peso, empanturrando-o com o seu famoso pudim de
chocolate com gelado. Yaf pousou a colher e apressou-se pelas escadas acima quando ouviu a voz de Hector.
Hector apresentou-o a Paddy e a Nastiya e convocou de imediato um conselho de guerra para a biblioteca. A pedido de Hector. Yaf relatou-lhes as linhas gerais do
que tinha acontecido durante a ausência deles.
- Ao longo das últimas duas semanas tenho recebido informações sobre o Aleutian, sobretudo de clubes noturnos na zona central de Londres. Mas sempre que seguia essas
pistas, chegava à conclusão de que não passavam de avistamentos falsos ou que o alvo já tinha desaparecido quando eu chegava ao local. Mas depois tive sorte num
lugar chamado Fusion Fire, um antro espampanante, cheio de luzes estroboscópicas e espelhos, montes de passadores e prostitutas sempre a rondar, mas a música é mesmo
marada. Consegui aproximar-me bastante do Aleutian no balcão do bar. Estava a beber com três outros tipos negros e consegui ver-lhe a tatuagem. Era o tipo que o
senhor procura, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas os amigos dele chamavam-lhe Óscar e não Aleutian.
- Quando foi isso? - perguntou Hector. - Foi numa sexta-feira, há duas semanas. Não lhe quis ligar logo, pois ele podia estar ali apenas de passagem. Esperei lá
por ele durante as quatro noites seguintes. Mas o tipo não voltou a aparecer. De modo que pus a minha malta de vigia em todos os clubes noturnos da zona. Acabámos
por o avistar em dois outros clubes ao longo da semana seguinte, e depois voltou ao Fusion Fire duas noites seguidas. Foi por isso que lhe liguei esta manhã. Dá-me
a impressão que ele anda sempre a saltar de sítio em sítio, mudando todos as noites de poiso. Não há nenhum padrão nas movimentações dele. Se fosse a si, punha alguém
a vigiar todos os clubes noturnos onde ele foi avistado recentemente. O tipo parece ser =a criatura de hábitos. Acho que é a melhor hipótese de o senhor conseguir
dar com ele.
- Faz sentido - concordou Hector. - Mas e quanto a ti, Yaf? Yaf pareceu constrangido e demorou algum tempo a ganhar coragem para falar. - Ajudei-o de bom grado a
tentar encontrar este tipo, mas não quero estar lá quando o senhor lhe deitar as mãos. Há muito tempo que renunciei a esse tipo de métodos violentos, quando Alá
me tomou sob a sua proteção. Sem ofensa, senhor Cross. Tem sido um grande prazer privar com um homem como o senhor, mas creio que agora devemos seguir caminhos diferentes.
- Obrigado uma vez mais, Yaf. Acho que é uma decisão sensata. Também foi um prazer para mim conhecer-te. Conseguiste reforçar a minha fé na geração mais nova. Se
te puder ajudar seja no que for, já sabes onde me encontrar. Entretanto, posso pagar-te pelo teu tempo e incómodo?
Yaf ergueu ambas as mãos, alarmado. - Não, por favor. Não fiz isto por dinheiro. Fi-lo por um homem bom e santo.
- Muito bem, Yaf. Mas a tua mesquita deve gerir alguma instituição de caridade para a qual eu possa contribuir.
- Bem, senhor, para lhe dizer a verdade, recebemos grande parte dos nossos fundos da Fundação Muçulmana para a Juventude - respondeu Yaf numa voz hesitante. - O
senhor pode fazer a sua doação online. Não precisa de dar o nome.
- Vou fazê-lo em teu nome - assegurou-lhe Hector. - Obrigado, senhor. Não preciso de lhe dizer isto, mas posso garantir-lhe que o dinheiro será muito bem gasto.
- Tirou uma tira de papel do bolso do blusão. - Tem aqui a lista de todos os clubes onde avistámos o Aleutian. Ele costuma aparecer sempre num deles por volta da
meia-noite, isto é, quando se digna aparecer, mas depois fica por lá até de madrugada. Espero que encontre aquilo que procura, senhor.
Hector acompanhou-o à porta da frente e disse-lhe: - Espero que a nossa amizade não acabe aqui, Yaf. Podes-me visitar sempre que passares aqui por perto. Se eu não
estiver cá, a Cynthia lá na cozinha terá todo o gosto em te oferecer uma chávena de café e algo para comer. Vou-lhe dizer que és sempre bem-vindo aqui.
- É muito amável da sua parte, senhor. Adeus e ma'a salamab. Deram um aperto de mão e depois Hector viu-o montar na lambreta e partir. Sabia que nunca mais voltaria
a vê-lo. Yaf era um jovem independente, demasiado orgulhoso para aparecer ali a mendigar.
Nota de Rodapé: Significa "adeus" em árabe, mas também "A paz esteja contigo/ consigo".
Fim da nota.
41
- Ora bem, os três clubes na lista do Yaf Said são o Fusion Fire, o Rabid Dog e o Portais of Paradise, todos na zona central londrina, desde o Soho até Elephant
e Castle. Não conheço nenhum destes antros, e vocês os dois? - Hector olhou primeiro para Nastiya.
- Não conheço, não faz nada o meu estilo - retorquiu ela numa voz afetada.
- E tu, Paddy? - Também não. Mas, a julgar pelos nomes, até parecem locais divertidos. - Eis como vamos tratar disto. Já verifiquei a localização dos três clubes
na Internet. Encontram-se espalhados ao longo de uma área bastante grande, a vários quilómetros de distância uns dos outros. Segundo o que o Yaf disse, não vale
a pena iniciar a busca antes da meia-noite. Teremos que fazer um turno noturno tardio. Se um de nós o identificar, deve chamar logo o resto da equipa. Tratamos de
manter o Aleutian sob vigilância e seguimo-lo quando sair do clube. Um de nós conduzirá o Q-Car. As ruas devem estar praticamente vazias a essa hora da manhã. Assim
que o apanharmos sozinho e sem ninguém por perto, espetamos-lhe a Hypnos.
A Hypnos era uma minúscula seringa hipodérmica que podia ser escondida na mão, ou na costura da manga de um casaco. Era feita de uma espécie de vinil indetetável
por raios X ou por qualquer outro tipo de dispositivo de deteção. O tubo cilíndrico era de cor verde. A agulha não metálica ficava a descoberto assim que se removia
a tampa protetora com o polegar; tinha apenas dois centímetros de comprimento e bastava perfurar a pele para que fossem injetados dois centímetros cúbicos de uma
potente droga que deixava a vítima quase instantaneamente paralisada. O nome Hypnos inspirava-se na deusa grega do sono.
Era impossível conseguir um fornecimento deste tipo de armas. a menos que, tal como Dave Imbiss, se tivesse contactos na Divisão de Guerra Química do exército americano.
- Depois, assim que o Aleutian perder os sentidos, enfiamo-lo no Q-car e trazemo-lo para aqui - continuou Hector enquanto delineava o plano. - A propósito, a cave
é insonorizada e tem uma divisão ao fundo onde costumo limpar o meu equipamento de pesca, mas dará uma boa sala de interrogatório. Teremos todo o equipamento apropriado
à mão. As paredes e o chão são em azulejo. fácil de lavar à mangueirada. Se a tortura da água não for suficiente. é possível que tenhamos de recorrer a meios menos
higiénicos até o Aleutian desembuchar e nos revelar o nome de quem o contratou. Depois de lhe tratarmos da saúde, enfiamos o que resta dele numa caixa de peixe hermética
e impermeável e exportamo-lo para Abu Zara no G5. Se escolhermos bem a faixa horária de descolagem. em princípio as autoridades aduaneiras não irão revistar o conteúdo
da caixa. Depois, o Dave Imbiss levará o corpo do Aleutian para a zona onde as equipas de exploração petrolífera estão a perfurar a nova concessão, no Zara Número
12. O Aleutian irá acabar no fundo do poço de perfuração, que por esta altura já terá atingido os cinco mil metros de profundidade, e depois reemergirá à superfície
misturado com a fina pasta de lodo triturado pela broca rotativa de ponta de diamante.
Dirigiu-lhes um sorriso feroz e prosseguiu: - Sei que é um plano de batalha um pouco rudimentar, mas também sei que vocês os dois são bastante bons a improvisar
conforme as circunstâncias mudam.
Verificou as horas no relógio de pulso e levantou-se. - Temos uma hora para trocar de roupa para o jantar. Sei que a chef nos preparou um prato especial, mas não
haverá vinho para acompanhar. Temos de estar bem lúcidos e despertos para a nossa tarefa noturna.
Após o jantar, é minha intenção dormir uma sesta de duas horas. Depois, voltamos a reunir-nos às onze. Vai-nos levar uma hora ou mais a chegarmos aos locais das
nossas posições. Acho que tu, Nastyia, deverias ir para o Portais of Paradise, por razões óbvias. E tu, Paddy, ocupas-te do Rabid Dog, por razões igualmente óbvias.
Eu fico de vigia ao Fusion Fire, apesar de não me ocorrer nenhuma razão óbvia para tal.
- Imagino que devem existir umas quantas brasas do teu perigoso passado que nos poderiam dar razões mais do que suficientes - insinuou Nastiya.
Hector subiu para o seu quarto de vestir e abriu a porta do compartimento secreto por trás da lareira. Pegou numa caixa pousada numa das prateleiras de cima, onde
estava guardada a sua pistola,
enfiada no coldre axilar. Enfiou um par de luvas cirúrgicas de borracha e limpou cuidadosamente a arma para remover as suas próprias impressões digitais. Depois
recarregou-a com as munições especiais que Dave lhe fornecera. Esfregou uma segunda vez a arma com o pano, só para ter a certeza de que ficava bem limpa. Calculara
os riscos e as vantagens de portar a arma nessa noite. Era um delito grave se as autoridades o encontrassem armado, mas
talvez o perigo fosse ainda maior se enfrentasse alguém do calibre de Aleutian completamente desarmado.
42
Deixaram Nastiya no Portais of Paradise alguns minutos depois da meia-noite. A entrada situava-se discretamente na ruela de umas antigas cavalariças. Havia uma pequena
multidão de jovens excitados. aglomerados em frente à porta. Dois seguranças corpulentos e de ar agressivo barravam-lhes a entrada para o clube, enquanto um porteiro
educado, em traje formal de smoking e gravata preta, fazia a seleção daqueles que considerava dignos de entrarem naquele edifício sagrado.
Hector estacionou o Q-Car à entrada da ruela e, juntamente com Paddy, observou enquanto Nastiya se dirigia para o clube.
O porteiro avistou Nastiya assim que ela entrou na ruela. Envergava um vestido justo de cor carmesim que se colava a todas as suas curvas e calçava saltos de agulha
de quinze centímetros que lhe deixavam os finos músculos dos gémeos sob tensão. A sua aparição silenciou o clamor da multidão de jovens à entrada do clube que suplicavam
que os deixassem entrar. Abriram alas e observaram em silêncio a sua passagem. O porteiro apressou-se ao encontro dela para a cumprimentar e deu-lhe o braço, com
um bajulador sorriso de boas-vindas. Acompanhou-a até ao interior e disse à rapariga da caixa registadora: - Esta senhora é convidada da casa. Arranja-lhe a melhor
mesa disponível.
Observando a cena sentado no banco traseiro do Q-car, Paddy O'Quinn deu voz à sua preocupação: - Só espero que ela fique bem. No meio daquela multidão estão alguns
tipos que até me dão a volta ao estômago.
Hector desatou às gargalhadas. - Só podes estar a brincar, Paddy. A única pessoa de quem sinto pena é do pobre coitado que tentar meter-se com a tua senhora.
Ligou o motor e conduziu cerca de três quilómetros até ao Rabid Dog. - Ora bem, Paddy, chegámos ao teu canil. Mantém-te morto da cintura para baixo e não te deixes
seduzir por nenhuma mulher. - Observou enquanto Paddy passava uma nota de dez libras ao porteiro e desaparecia através das cortinas que cobriam a entrada.
Hector pôs-se em marcha e conduziu cerca de quilómetro e meio até ao Fusion Fire. O clube noturno ocupava dois pisos. A fachada, virada para a estrada, era toda
ela de painéis de vidro, do chão ao teto. Podia ver através dos vidros que o interior estava profusamente iluminado por luzes estroboscópicas de uma miríade de cores,
montadas em torres giratórias. O teto estava revestido de mosaicos espelhados que refletiam as luzes ofuscantes e os vultos dos dançarinos na pista em baixo. As
pessoas dançavam numa multidão comprimida, como compactos cardumes de reluzentes peixes tropicais, agitando-se num frenesim selvagem ao ritmo retumbante da música.
Hector passou lentamente pela fachada, estacionou na esquina seguinte e voltou para a entrada do clube. Usava óculos escuros de aviador e um casaco de brocado rematado
nas ancas, provido de gola mandarim e com as mangas cortadas que Nastiya escolhera para ele. Tinham optado de forma deliberada por trajes extravagantes, para transparecerem
um ar excêntrico e amaneirado. Assim, ninguém pensaria que eram tropas de assalto e desataria a fugir com medo. Hector pagou cem libras por uma mesa VIP.
Sentou-se à mesa e observou o enorme espaço à sua volta. Reconheceu-o de imediato como o cenário de um dos vídeos com Aleutian que Vicky Vusamazulu gravara no iPhone
e sentiu-se mais alentado. Se Aleutian frequentara aquele local antes, havia uma forte probabilidade de ali voltar.
Num espaço de vinte minutos, deu por si a ser abordado sucessivamente por cinco raparigas diferentes que vinham oferecer-lhe toda a espécie de serviços, desde uma
mamada debaixo da mesa por cinquenta libras até uma noite inteira por quinhentas libras. Tudo propostas que ele declinou de modo educado.
Às cinco e vinte da madrugada, as multidões na pista de dança começaram a reduzir-se e ainda não havia sinal de alguém que se parecesse vagamente com Aleutian. Hector
resolveu sair do clube e conduziu o Q-car até ao Rabid Dog para ir buscar Paddy.
- Como é que correu, meu velho? - perguntou assim que Paddy se enfiou no banco a seu lado.
- Se tivesse fumado, snifado e engolido tudo aquilo que me ofereceram esta noite, estaria a voar mais alto do que a estrela da manhã ali em cima.
Seguiram para o Portais of Paradise e, quando Nastiya surgiu, parecia ter acabado de sair de um salão de beleza.
- Não tiveste sorte, rainha do meu coração? - perguntou-lhe Paddy numa voz ansiosa.
- Podia ter ganhado uma fortuna. Um velhinho muito querido, aí com uns noventa anos, ofereceu-me dez mil libras só para me olhar sem tocar.
- Devias ter aceitado - disse-lhe Paddy. Nastiya lançou-lhe um olhar de esguelha com os seus olhos de um azul tão glacial como o céu da tundra. Quando regressaram
ao nº 11, os três deitaram-se e dormiram até ao meio-dia.
A noite seguinte foi uma repetição da anterior. A única diferença era a clientela.
Na terceira noite, Hector entrou na confusão do Fusion Fire poucos minutos após a meia-noite. Era a noite de sábado e a pista estava completamente apinhada. O volume
da música entorpecia os sentidos. As enormes bolas espelhadas, suspensas do teto, moviam-se ao ritmo das batidas dos pés das pessoas que dançavam por baixo.
De modo a imiscuir-se no ambiente, Hector usava um bolero de cetim preto ao estilo espanhol, por cima de uma camisa branca aos folhos e uma gravata de cadarço preta.
As calças de toureiro cheias de lantejoulas colavam-se-lhe às coxas. Fora Nastiya quem, uma vez mais, lhe escolhera esse traje. Sentou-se à mesa habitual e uma rapariga
de minissaia, com um bonito rosto de traços miudinhos e lábios carnudos, que ele nunca tinha visto antes, sentou-se de repente no seu regaço.
- És tão lindo que quero casar contigo - disse-lhe. - És rico, não és? - Sou multimilionário - respondeu ele numa voz séria. - Oh, meu Deus! - exclamou ela, de fôlego
entrecortado. - Juro por Deus que acabaste de me fazer vir.
Hector achou-a, na verdade, bastante divertida. Riu-se e, quando olhou por cima do ombro dela, deparou do outro lado da pista com o rosto escuro e carrancudo de
que se lembrava tão bem dos vídeos de Victoria Vusamazulu.
Aleutian estava especado no topo das escadas que conduziam ao átrio. Estava acompanhado de uma rapariga que olhava para ele, mas cujo rosto Hector não conseguia
ver. Aleutian olhava-a com um ar condescendente. Embora a multidão continuasse a rodopiar à volta do par, a enorme corpulência de Aleutian fazia-o destacar-se acima
de todos os outros. Fora por essa razão que Hector o identificara de imediato. Olhou-o apenas durante alguns segundos, só para ter a certeza de que se tratava do
homem que procurava; mas, ainda assim, fora demasiado tempo.
Na selva, quando se olha fixamente um animal, é muito frequente este pressentir o olhar e reagir. Aleutian era exatamente isso, um predador selvagem no seu próprio
território. Os seus olhos apartaram-se do rosto da rapariga e fixaram-se nos de Hector. Reconheceu-o de imediato. Deu meia-volta e desceu as escadas à pressa. Hector
levantou-se de um salto e a rapariga tombou-lhe do regaço. Saltou por cima dela para a pista de dança e abriu caminho à força pelo meio das pessoas que dançavam,
até ao topo da escadaria por onde Aleutian desaparecera.
As escadas estavam quase tão apinhadas quanto a pista de dança. Quando Hector chegou à entrada do clube e irrompeu pela porta da rua, já não viu nenhum sinal dele.
Refreou o instinto cego de desatar a correr pelas ruas escuras para o procurar aleatoriamente.
Lembrou-se da rapariga com quem Aleutian estava. Talvez pudesse encontrá-la. Talvez ela pudesse indicar-lhe o lugar onde Aleutian se refugiara. Pôs de lado essa
ideia no mesmo instante em que lhe ocorreu. O Fusion Fire estava a abarrotar de beldades como ela. Nem sequer lhe vira o rosto. Nunca conseguiria identificá-la no
meio da multidão. De qualquer modo, provavelmente não passava de uma prostituta que Aleutian escolhera para o acompanhar naquela noite.
Como é que o Aleutian terá vindo para cá? De carro? De táxi? Nesse caso, há muito que já se foi. Não parava de pensar de forma furiosa. De metro? Sim, claro!
Sabia, com base na pesquisa que fizera na Internet, que a entrada da margem norte para a estação de Blackfriars ficava apenas a quatrocentos metros do local onde
se encontrava. Desatou num sprint. Correu até à primeira esquina e viu a entrada para a estação de metro ao fundo do quarteirão. A rua estava quase deserta àquela
hora. Havia apenas uns quantos folgazões tardios de regresso a casa. Um deles era Aleutian. Afastava-se de Hector a passo de corrida, em direção à estação de metro.
Quando Hector se lançou em perseguição, Aleutian alcançou a entrada da estação e desapareceu como um coelho que acabasse de se enfiar na toca. Hector seguiu-o pela
entrada. Desceu os degraus três a três, com os seus passos ecoando no túnel vazio. Alcançou a junção em forma de T no fundo. A sinalização no túnel à esquerda indicava
a direção de Richmond; a do túnel à direita, a direção de Upminster. Não tinha forma de saber por qual deles Aleutian seguira. Optou aleatoriamente pelo túnel da
direita e, assim que começou a avançar, ouviu o ruído de um metro na linha para Richmond. Deu meia-volta e correu nessa direção. Quando chegou à plataforma, olhou
com atenção. O metro já tinha parado e as portas estavam abertas. Havia uma pequena multidão de passageiros e folgazões resistentes a subir a bordo. Hector apercebeu-se
de imediato de que o seu palpite fora acertado: Aleutian abria caminho por entre os outros passageiros. Viu-o subir para uma das carruagens.
Hector galgou o último lanço de escadas, mas, a meio caminho da plataforma, as portas fecharam-se e o metro afastou-se. Enquanto as carruagens passavam por ele,
viu Aleutian especado a uma das janelas, a olhar para ele. Hector lançou a mão à pistola que levava no coldre axilar oculto. Mas depois conteve-se. O ângulo e a
distância eram muito arriscados. Aleutian estava rodeado de muito perto por outros passageiros. Não se atreveu a correr o risco de atingir um deles enquanto o metro
se afastava acelerado.
Aleutian sabia que estava a salvo. Sorriu na direção de Hector. Uma careta sardónica, carregada de ameaça. Hector sentiu a pele eriçar-se. Estava a olhar nos olhos
do assassino de Hazel. A intensidade das emoções era tal que as pernas lhe tremeram. Depois de a última carruagem desaparecer na boca do túnel, Hector demorou alguns
segundos a forçar-se a voltar a pensar com frieza.
Deu meia-volta e refez o caminho a passo de corrida, mas sabia que demoraria pelo menos dez minutos a chegar ao local onde estacionara o Q-car. O metro que transportava
Aleutian seguia a uma velocidade de cerca de sessenta e cinco quilómetros por hora. O avanço de Aleutian era demasiado grande para conseguir apanhá-lo, mesmo no
Q-car. Tinha de se antecipar e telefonar a Paddy ou a Nastiya para o intercetarem. Mas havia uma dúzia ou mais de paragens onde Aleutian poderia sair antes de o
metro chegar ao terminal em Richmond. Seria impossível cobri-las a todas.
Mas havia algo que estava a escapar-lhe. Sabia que alguma coisa estava a escapar-lhe enquanto subia a correr pelo túnel até ao nível da rua. Pensa!, disse a si mesmo.
Deixa-te guiar pela cabeça e não pelos tomates. Para onde é que o cabrão pode ter ido?
Irrompeu do túnel para a rua, e foi nesse instante que aquilo lhe acudiu à mente. Parou de imediato. Pegou no telemóvel e ligou a Nastiya. Os toques de chamada sucederam-se
de forma interminável, mas manteve o telemóvel colado ao ouvido enquanto corria à sua velocidade máxima.
A chave é a Vicky Vusamazulu. Sabia-o com uma clareza absoluta. Quase conseguia ver o Aleutian estabelecer essa ligação. Com o seu instinto de raposa, pressentiu
de imediato que tinha sido traído. Sabia que as probabilidades de eu dar com ele lá no Fusion Fire por mero acaso eram absolutamente ínfimas. Já sabe que alguém
me pôs no rasto dele. Sabe que a Vicky é a única pessoa que nos conhece aos dois. Era a única pessoa que sabia que ele frequentava o Fusion Fire. Não precisou de
muito para perceber que ela é a única pessoa que me poderia ter dado essa pista. As probabilidades de ir a caminho para se vingar da Victoria neste preciso momento
são de dez para um. Vá lá, Nazzy, querida. Atende o maldito telemóvel.
- Hector, onde estás? - atendeu-o Nastiya de repente. - Afugentei o Aleutian. Conseguiu escapar-me e fugiu. O meu palpite é que vai a caminho do apartamento da Vicky.
Lembras-te da morada dela, não lembras?
- Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica a cerca de trezentos metros da estação de metro de Kew Gardens. - A resposta de Nastiya foi rápida e precisa.
Era uma profissional.
- O Aleutian segue neste preciso instante a bordo de um metro que se dirige diretamente para Kew Gardens. Estás mais perto do que eu. Consegues chegar à casa da
Vicky muito antes de nós. Apanha um táxi. Eu e o Paddy cobrimos-te assim que pudermos. Mas sê rápida, Nazzy. A tua amiguinha Vicky é um alvo fácil e aquele cabrão
é um assassino. - A chamada foi cortada. Como sempre, Nastiya era uma mulher de poucas palavras.
Hector ligou a Paddy e falou com ele enquanto corria em direção ao Q-car. - Paddy, espera por mim à porta do Rabid Dog. Estarei aí dentro de vinte minutos, talvez
menos.
- Que se passa? - O Aleutian deu sinal de vida, mas cometi um erro de todo o tamanho. O tipo fugiu e anda a monte. Conto-te o resto quando chegar aí.
Quinze minutos depois, Paddy abriu rapidamente a porta do passageiro do Q-car e enfiou-se no banco antes de Hector sequer parar. Hector carregou a fundo no acelerador
e seguiu a toda a velocidade.
- Nº 47, Gardens Lane, TW9 5LA. É a morada da Vicky. Insere os dados no sistema de navegação por satélite, Paddy. Raios, tenho a certeza que é para onde o Aleutian
foi.
43
Os toques insistentes da campainha do apartamento acordaram Vicky Vusamazulu. Soergueu-se na cama muito ensonada. Tinha tomado um comprimido para dormir. Olhou para
o mostrador luminoso do despertador na mesinha de cabeceira. Eram quase duas da madrugada. Graças a Deus que a senhora Church é surda como uma porta. Vicky tentou
afastar o sono esfregando os olhos com os nós dos dedos. A Sra. Church era a sua senhoria. Vivia no piso por cima e Vicky sabia por experiência própria que ela desligava
o aparelho auditivo quando se deitava. Era uma bruxa velha, tão rígida e insuportável que Vicky era o único inquilino no prédio.
A campainha voltou a soar. Vicky ligou a luz, afastou os lençóis para trás, lançou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se. Vestia calções de pijama e um top
estampado com um brilhante padrão floral. Avançou trôpega pelo corredor até à porta ao fundo.
Verificou se as correntes de segurança estavam bem presas antes de se erguer nas pontas dos pés para espreitar pelo olho mágico. O visitante no exterior estava de
costas para ela.
- Quem é? - perguntou, irritada. O sujeito virou-se e Vicky reconheceu-o de imediato.
Arquejou, surpreendida e deleitada, e despertou por completo. Nem sequer sabia que Aleutian estava de volta a Londres.
- Abre a porta, cadela - disse ele.
- Aleutian! Oh, meu Deus. És mesmo tu? Pensava que nunca mais ias voltar. - Estava tão empolgada que não conseguia desprender as correntes de segurança. - Espera!
Não vás embora. É só um segundo. Espera, meu querido Aleutian.
Finalmente conseguiu abrir a porta e correu para ele para o abraçar, mas Aleutian empurrou-a para o lado e apressou-se a entrar no apartamento. Avançou pelo corredor
até ao quarto dela sem olhar para trás. Victoria fechou a porta mas não quis perder tempo a voltar a prender as correntes de segurança. Correu de imediato atrás
dele.
- Pensava que nunca mais ias voltar. Nunca devia ter duvidado de ti. Eu sabia que ias cumprir a tua palavra. Tive saudades tuas. Tive tantas saudades tuas. - Não
parava de palrar, tomada de emoção.
Ele tinha-se sentado na cama. Olhava-a com uma expressão estranha no rosto.
- Tens-te portado bem durante a minha ausência? - Oh, sim, sim. Fiquei em casa todas as noites à tua espera. Nunca olhei sequer para outros homens. Amo-te tanto!
- Estás-me a mentir - disse ele naquele seu tom suave e funesto que a deixava a tremer de desejo. - Acho que tens sido uma cadelinha malcomportada. Acho que vou
ter de te castigar.
Victoria conhecia tão bem este jogo que os seus mamilos endureceram sob o tecido fino do top do pijama.
- Tira o pijama! - ordenou-lhe. Ela despiu o top, amarfanhou-o numa bola e atirou-o para a cama, ao lado do lugar onde ele estava sentado. Depois fez deslizar os
calções pelas ancas e deixou-os cair em redor dos tornozelos. Chutou-os para longe e manteve-se nua à frente dele.
- Vais-me bater, Aleutian? - perguntou-lhe numa voz assustada, cobrindo o púbis com as mãos em concha.
- Afasta as mãos e vem cá. - Chamou-a com um gesto do dedo e ela colocou-se à sua frente. - Abre as pernas, cadela.
Ela afastou os pés. Aleutian inclinou-se para a frente e enfiou a mão entre as coxas dela. - Abre mais! - ordenou-lhe.
Victoria podia sentir o dedo dele a contorcer-se dentro de si e apoderou-se dela um desejo tremendo. Lançou as coxas para ele e sentiu-o tocar-lhe na boca do útero.
- Estás tão viscosa aí dentro como um balde cheio de enguias, sua cadela imunda. Mas percebes que tenho de te castigar, porque te portaste muito mal?
- Sim, percebo. - Mestre. Chama-me Mestre. Ou já te esqueceste? - Fez algo com o dedo que foi tão doloroso que a deixou a gemer. Era como se ele lhe tivesse rasgado
algo ali dentro. Abriu desmesuradamente os olhos devido à dor que sentia. Mas a dor era tão agradável que estava quase a atingir o primeiro orgasmo.
- Sim, compreendo, Mestre. Aleutian tirou o dedo e apontou-o à frente da cara dela. - Olha só o que fizeste, sua putinha imunda. Sujaste-me o meu lindo dedo limpinho
com essa tua rata imunda.
- Desculpa-me, Mestre. Não era minha intenção fazer isso. - Põe-te de joelhos - ordenou-lhe. Ela baixou-se à sua frente. Ele apontou-lhe o dedo. - Chupa-o até ficar
limpinho. - Vicky enfiou-o na boca. Aleutian forçou-lho pela garganta abaixo, tão fundo que os ombros dela estremeceram devido ao reflexo de vómito.
- Confessa. Tens-te portado muito mal na minha ausência, não tens?
Ela emitiu uns sons incoerentes de negação. O rosto inchava-lhe enquanto sufocava. Aleutian inclinou-se para trás e tirou o dedo da garganta dela. Vicky soluçou
de alívio e todo o seu corpo se convulsionou devido ao esforço para recuperar o fôlego. Olhou para ele com os olhos raiados de sangue e a escorrerem lágrimas.
Aleutian estendeu a mão que até então mantivera atrás das costas e Vicky apercebeu-se de que ele segurava numa navalha de ponta e mola. Viu-o carregar no botão de
libertação e a lâmina abrir-se com um estalido seco à sua frente. Tinha cerca de dezoito centímetros de comprimento e era reluzente como um raio de sol.
Isto era uma novidade. Ele nunca lhe tinha mostrado a navalha antes. Vicky tentou recuar ajoelhada, mas Aleutian agarrou no top do pijama dela pousado a seu lado
na cama e enrolou-lho à volta do pescoço, segurando-a depois como a um cachorro pela trela.
- Andaste a falar de mim a outras pessoas, não andaste, sua cadela?
- Não! - murmurou ela, abanando a cabeça num gesto veemente.
- Não me mintas, sua vaca! - Picou-lhe a face com a ponta da navalha. Vicky guinchou, de susto e dor. - Não me faças mais mal, por favor. Já não gosto destes jogos.
Já não quero brincar mais. Guarda a navalha, por favor, Aleutian.
- Isto não é nenhum jogo. Falaste de mim ao Hector Cross. sua cadela.
- Não, não falei nada. - No entanto, apesar da negação. ele viu um vestígio de culpa aflorar-lhe aos olhos. O rosto dela contorceu-se em terror.
- Falaste, sim. Disseste-lhe onde me podia encontrar. - Riu-se. - Por favor. Não estás a perceber. Ele não fez caso dos protestos e a sua voz adotou um tom afável
e tranquilizador. - Não fiques preocupada. Só tens de fazer o que te digo e tudo correrá bem. Agarra na orelha esquerda e estica-a para o lado o mais que puderes.
- Ela olhou-o, atónita e sem compreender.
- Faz o que te digo, Victoria. Fá-lo, se me amas de verdade - insistiu Aleutian. Ainda de olhos fixos nele, Vicky agarrou no lóbulo da orelha entre dois dedos e
esticou-o.
- Perfeito - disse ele. E, com um rápido golpe da lâmina prateada, cortou-lhe a orelha rente ao couro cabeludo.
Ela soltou um grito e depois olhou, horrorizada, a orelha decepada que segurava entre os dedos.
- Agora come-a. Enfia-a na boca e engole-a - disse-lhe baixinho.
O sangue da ferida pingava-lhe sobre o peito e escorria-lhe por entre os seios. Vicky não fez caso e continuou de olhos fixos na orelha cortada. De repente, Aleutian
picou-lhe o pescoço com a lâmina. Ela sobressaltou-se e olhou para ele.
- Abre a boca - disse, voltando a picá-la. Ela abriu a boca. - Agora enfia-a na boca e engole-a.
- Não! - disse ela. - Desculpa. Não era minha intenção fazer aquilo. Deixa-me explicar... Ele tocou-lhe na sobrancelha com a ponta da lâmina. - Come-a, senão arranco-te
os olhos, um de cada vez.
Vicky enfiou a orelha na boca. - Pronto. Não é assim tão difícil. Se calhar até sabe bastante bem, não sabe? - Os ombros dela voltaram a estremecer com convulsões.
- Não. Não faças isso. Engole tudo.
Determinada, Vicky fez um esforço para lhe obedecer. O seu rosto e a garganta contorceram-se. Engoliu finalmente. Estava a arquejar, mas balbuciou numa voz rouca:
- Já está. Engoli-a.
- Muito bem. Estou orgulhoso de ti. - Por favor, para, para com isto. Não me faças mais mal, por favor. - Chorava com amargura, continuando a abanar a cabeça de
um lado para o outro.
- Parar? - disse ele com uma surpresa fingida. - Mas se ainda agora começámos. Ainda há uma coisa que me queres contar, não há, Vicky? Queres dizer-me com quem andaste
a falar de mim, não é? - Nunca falei de ti a ninguém, juro pela alma da minha mãe. - Escorriam-lhe lágrimas pelo rosto e respirava em fortes arquejos acompanhados
de estremeções.
- Estás a mentir, Vicky. Vou ter de te obrigar a comer a outra orelha. - Forçou-a a ajoelhar-se, agarrou-lhe a outra orelha e esticou-a como se fosse um pedaço de
borracha. Encostou-lhe a lâmina e Vicky gritou.
Nastiya ouviu esse grito.
44
Nastiya apanhou o táxi à entrada do Portais of Paradise. Quatro raparigas polacas, todas elas risinhos e gritinhos, estavam a apear-se do veículo.
Nastiya empurrou uma das raparigas para o lado, enfiou-se no banco traseiro e disse ao taxista: - Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica na esquina
com Kew Gardens Road, cerca de trezentos metros depois da estação de metro de Kew Gardens.
- Sei onde fica, minha senhora - disse o taxista. - Dou-lhe mais cinquenta libras se conseguir pôr-me lá em menos de um quarto de hora.
- Aperte o cinto e ponha já de parte essa nota de cinquenta libras, minha senhora - disse ele. - Aqui vamos.
As ruas estavam quase desertas e o taxista conduziu a grande velocidade. Parou em Kew Gardens vários minutos antes de transcorrido o quarto de hora previsto. Nastiya
entregou-lhe duas notas de cinquenta libras através da divisória de vidro e disse-lhe: - Guarde o troco, merece-o. - Apeou-se do táxi de um salto e atravessou a
estrada a correr, em direção ao nº 47. Assim que cruzou o portão de acesso ao minúsculo jardim, ouviu Victoria gritar. Descalçou os sapatos de salto de agulha aos
pontapés e largou a bolsa coberta de lantejoulas. Prendeu a saia afunilada à volta da cinta e correu para a porta, ganhando velocidade. Lembrava-se, da sua visita
anterior, que a fechadura era velha e frágil. No entanto, também se recordava de duas robustas correntes de segurança, de modo que se lançou de pés juntos, desferindo
no último momento um enorme coice na porta como uma mula.
Para seu grande espanto, a fechadura cedeu de imediato e a porta esmagou-se contra a parede interior. Nastiya voou pela abertura, de pés esticados à sua frente,
para dentro do corredor. Rolou o corpo ao tocar no chão e levantou-se de imediato, desatando a correr praticamente sem perder o ímpeto. Lembrava-se da disposição
exata do pobre e exíguo apartamento. A sala de estar e a cozinha situavam-se à direita. Mas viu luz por baixo da porta do único quarto. Abriu-a com um pontapé e
esquivou-se para o lado, mantendo-se de corpo colado à parede lateral. Espreitou pela ombreira para dentro do quarto.
Uma carnificina total. Os lençóis cor-de-rosa da única cama existente estavam manchados de sangue. Havia sangue nas paredes e sangue a acumular-se numa poça sobre
os fofos tapetes brancos no centro do soalho.
Vicky estava de pé, virada para ela, mas Nastiya mal conseguiu reconhecê-la. Estava nua. As orelhas tinham sido decepadas. O sangue jorrava-lhe das feridas em carne
viva, entrando-lhe na boca e manchando-lhe os dentes de vermelho. Pingava-lhe do queixo e escorria-lhe pelo corpo em jorros. O quarto fedia a sangue e a vómito.
Nastiya reconheceu de imediato Aleutian dos vídeos. Estava especado atrás de Vicky. Sujeitava-a com um golpe de gravata, imobilizando-a por completo. Na outra mão
segurava uma navalha manchada de sangue, com a qual levara a cabo aquela chacina. Envolvia o corpo de Vicky com o braço e mantinha a ponta da comprida lâmina incrustada
de sangue ressequido contra o umbigo dela. Usando o corpo da rapariga como escudo, olhava com fúria para Nastiya por cima do ombro de Vicky.
- Ouve-me, Aleutian. Larga a Vicky e podes escapar ileso - disse-lhe Nastiya numa voz calma e firme.
- Não sei quem raios és, loiraça, mas estou a gostar do que vejo. Acho que tenho um plano melhor que o teu. Primeiro, vou terminar aquilo que comecei com esta vaca
aqui. A seguir, vou atrás de ti, e, quando te apanhar, vou-te dar a melhor foda da tua vida. Depois vou-te matar também, mas muito devagar. E agora, observa bem,
pois só vou fazer isto uma vez.
Passou a navalha com rapidez de um lado ao outro da barriga nua de Victoria, perfurando-lhe profundamente a pele, os músculos e a parede intestinal. Os intestinos
transbordaram pela abertura do ferimento. A navalha tinha-os cortado também e o seu conteúdo derramou-se. Depois mudou o ângulo da lâmina e espetou-a através do
esterno. Os olhos de Vicky arregalaram-se, enormes, como que fixos na eternidade, enquanto a lâmina lhe trespassava o coração. Escapou-lhe um último sopro da boca
aberta e tombou no braço de Aleutian enquanto morria. A própria Nastiya ficou momentaneamente petrificada com a brutalidade daquele ato.
Contudo, a sua preocupação principal já não era salvar a vida de Vicky, mas a lâmina na mão de Aleutian. A navalha dava-lhe o controlo da situação.
Percebera, pela forma como ele manejara a arma, que era um lutador muito hábil, provavelmente o mais perigoso que alguma vez defrontara. E ele tinha consciência
de quão destro era, exibindo uma autoconfiança absoluta. Estava a divertir-se. Tornava-se claro que o odor do sangue e o fedor dos intestinos rasgados que enchiam
o quarto o excitavam. Nastiya sabia que o tinha subestimado e corria agora um enorme perigo.
Estava desarmada, descalça e vestida com roupas que lhe restringiam os movimentos. A cama no centro do quarto exíguo tornava-o ainda mais minúsculo. O seu estilo
particular de luta exigia espaço para poder manobrar, recuar, fintar. Precisava, sobretudo, de espaço para se manter longe daquela navalha.
Aleutian chegara obviamente às mesmas conclusões e moveu-se com rapidez para lhe limitar ainda mais os movimentos. Continuando a agarrar o corpo de Vicky à sua frente
como um escudo, tentou encurralar Nastiya num dos cantos da divisão. Mas ela conseguiu afastar-se, esquivando-se pelo lado esquerdo, para longe da lâmina.
Antes que ele pudesse girar o escudo humano para a bloquear, Nastiya retomara a sua posição junto à entrada do quarto. As ombreiras de ambos os lados da porta protegiam-lhe
os flancos.
Voltou a encará-lo e pôs-se de cócoras, em posição de combate, de mãos erguidas e rígidas como lâminas de machado, cruzadas ao nível dos pulsos. - Uau! Andaste a
ver os filmes de Kung Fu do Jackie Chan, ó loiraça - troçou ele, erguendo Vicky até ficar com as pernas a baloiçar, antes de se lançar contra Nastiya. Estava a tentar
forçá-la a recuar para o corredor, onde teria mais facilidade em a atacar.
Nastiya viu ali a sua oportunidade: os pés dele eram visíveis por baixo das pernas baloiçantes de Vicky. Em vez de retroceder, correu para ele. Uma fração de segundo
antes de colidirem, lançou-se de pés esticados à sua frente, por baixo das pernas de Vicky, e desferiu o seu coice de mula preferido. Ambos os pés aterraram com
enorme força contra o tornozelo esquerdo de Aleutian, exatamente o ponto que ela pretendia atingir.
Ouviu o osso e a cartilagem da perna dele quebrarem com um estalido seco. Sentiu-se percorrida por uma onda de triunfo, pois tinha a certeza de que ele se estatelaria
no chão, e teria então a sua oportunidade para lhe tirar a navalha.
Aleutian grunhiu de dor, mas manteve-se de pé, para grande desalento dela. Nastiya fez um salto mortal à retaguarda e aterrou de pé, virando-se de imediato para
o enfrentar de novo. No entanto, antes que pudesse recuperar o equilíbrio por completo, ele usou Vicky como um aríete e lançou o corpo inerte contra Nastiya, com
tal força que a projetou para trás através da entrada. Embateu com violência na parede do corredor.
Aleutian avançou para ela. Coxeava apoiado no tornozelo ferido, mas, ainda assim, movia-se com uma rapidez surpreendente. Continuava a segurar no corpo mutilado
de Vicky à sua frente. Obrigou Nastiya a recuar contra a parede do corredor e desferiu-lhe uma navalhada contra o rosto, por cima do ombro de Vicky. Nastiya agarrou-lhe
no pulso, mas estava escorregadio devido ao sangue e ele conseguiu libertar a mão, sem largar a navalha. Nastiya estava encurralada contra a parede e ele não parava
de a atacar com o corpo de Vicky, restringindo-lhe os movimentos e impedindo-a de recuperar o equilíbrio. A cabeça de Vicky rolava livremente sobre os ombros. Tinha
os olhos vidrados e sem vida.
Aleutian voltou a tentar esfacelar-lhe a cara, mas Nastiya esquivou-se, baixando-se sob a lâmina, e perdeu-o de vista por um segundo. Ele largou o corpo de Vicky
e Nastiya perdeu esse escudo que lhe protegia a metade inferior do corpo. Com a rapidez de uma víbora, Aleutian tentou atingir-lhe a barriga. Nastiya contorceu-se
violentamente para o lado para fugir à investida. mas o corpo que jazia sobre os seus pés inibia-lhe os movimentos. Sentiu a picada do aço quando a lâmina lhe abriu
um comprido corte superficial na anca. Tentou transpor o corpo de Vicky de um salto e ganhar espaço antes que ele pudesse atacá-la outra vez, mas ficou com o tornozelo
preso naquela espécie de corda formada pelos intestinos de Vicky e tropeçou. Caiu sobre um dos joelhos e ergueu a mão para deter o golpe de navalha que seguramente
se abateria sobre si, mas Aleutian agarrou-a pelo pulso e arrastou-a de cara contra o soalho. Forçou um dos joelhos contra a nuca dela para a imobilizar enquanto
se apressava a reajustar a lâmina na mão. Depois obrigou-a a pôr-se de joelhos e ajoelhou-se por trás dela, sujeitando-a com um golpe de gravata com uma única mão.
Apertou-lhe a laringe com força suficiente para a impedir de gritar.
- Não és nada má a lutar, loiraça - elogiou-a. - Sabes usar bem o corpo numa luta. - Respirava pesadamente enquanto se ria. - E agora, vais-me poder mostrar como
és boa na velha e célebre foda à canzana.
Nesse preciso momento, a porta do apartamento foi arrancada das dobradiças e Hector e Paddy irromperam pelo corredor. Detiveram-se assim que depararam com aquela
cena.
Aleutian levantou-se, sem largar o pescoço de Nastiya. Enfrentou-os, usando o corpo dela como escudo. - Não se mexam - avisou-os. - Se tentarem aproximar-se, esta
tipa morre.
Segurava a navalha contra o pescoço de Nastiya, com a ponta da lâmina pressionada sob a orelha. Viu a pistola que Hector empunhava com ambas as mãos, tendo adotado
a clássica postura de cócoras dos atiradores: equilibrado sobre a parte dianteira dos pés. com a pistola apontada à testa de Aleutian.
Aleutian baixou a cabeça e escudou-se atrás do corpo de Nastiya de modo a oferecer um alvo mínimo. Começou a baloiçar a cabeça de um lado para o outro como uma cobra
para frustrar a pontaria de Hector.
- Seja bem-vindo, senhor Cross. É um enorme prazer voltar a vê-lo. Por favor, aceite as minhas condolências pela perda recente
sua encantadora mulher - disse. Foi como se um obturador se fechasse sobre os olhos de Hector
e a sua visão se incandescesse de vermelho com a intensidade da fúria. Quase perdeu o controlo.
A sua mente estava novamente a operar como um computador, calculando a distância e o ponto de mira. Os pontos de mira da pistola estavam configurados para disparar
quase quatro centímetros acima do enfiamento da arma, a uma distância de vinte e cinco metros. O alvo visado estava a uma distância de oito ou talvez nove metros.
Teria de compensar a trajetória de ascensão da bala.
Aleutian não parava de se mover, permitindo-lhe apenas vislumbres intermitentes da sua cabeça.
- Tu consegues abatê-lo, Heck - murmurou Paddy quando se acocorou atrás do ombro de Hector. As suas palavras foram quase inaudíveis.
Os lábios de Hector retesaram-se numa linha rígida; sabia que as hipóteses de lograr o tiro sem ferir Nastiya eram quase nulas.
- Podemos fazer um acordo, senhor Cross - disse Aleutian. - Sei que tem um carro lá fora. De outro modo, não teria conseguido chegar aqui tão depressa. Dê-me as
chaves e entrego-lhe esta rata loira. Parece-lhe uma troca justa?
As mãos de Hector não vacilaram. - Quem te contratou para matares a minha mulher? - perguntou-lhe.
- Não é esse o nosso acordo, senhor Cross. - É o único acordo possível, Aleutian. - Veja só o que fiz à sua amiguinha Victoria. Ficou sem as orelhas e sem as tripas.
Por favor, não me irrite.
Os olhos de Hector nem por um momento se desviaram na direção do corpo mutilado de Vicky. - Quero o nome - insistiu. - E eu quero continuar a viver. Nada de nomes.
- Posso esperar - disse Hector.
- Não creio - disse Aleutian. - Veja só isto. - Moveu a navalha por trás das costas de Nastiya e encostou a ponta ao trícípite exposto, trespassando-lhe depois lentamente
o braço com a lâmina comprida. O rosto de Nastiya contorceu-se de dor quando a ponta surgiu na parte frontal do bíceps.
- Estou bem, Hector - disse ela, mas a voz era rouca e os olhos denunciavam a sua agonia.
- Mas que valentona! - disse Aleutian, reconhecendo-lhe o estoicismo enquanto arrancava a lâmina. - A seguir é a perna - Espetou-lhe a navalha na coxa. Quando a
retirou, o sangue escuro brotou da ferida e pingou no soalho.
- Mata-o, Heck - urgiu Paddy. - A Hazel! - Com estas duas palavras, Hector justificou a sua relutância em disparar.
- Já não podes salvar a Hazel, mas podes salvar a Nazzy. Mata-o, por favor. - Paddy suplicava-lhe agora, e Hector nunca o tinha ouvido implorar antes. Mas Paddy
também nunca tinha sido obrigado a assistir, impotente, enquanto a mulher que adorava era cortada em pedaços.
Hector sabia que tinha de disparar. Também sabia que seria o tiro mais difícil que alguma vez disparara, e quais as consequências se falhasse.
No entanto, a pistola nas suas mãos era uma arma muito especial. Dave Imbiss tinha persuadido um mestre armeiro do exército a configurá-la segundo especificações
muito precisas. Primeiro, o armeiro obliterara os números de série, para eliminar qualquer registo escrito que associasse a pistola a Hector. Tinha polido a câmara
à mão, de modo a acomodar as balas na perfeição e evitar possíveis encravamentos. Inserira o cano numa máquina secreta da Divisão de Atiradores de Elite do Ministério
da Defesa dos Estados Unidos que tornara as estrias e os sulcos absolutamente perfeitos. Os projéteis também faziam parte de um lote especial. A balística era perfeita:
cada bala giraria através do cano e voaria em direção ao alvo numa trajetória idêntica, sem oscilações nem flutuações e com um desvio quase nulo. Por fim, a tosca
mira de ferro tinha sido substituída por uma ótica topo de gama. O resultado final era uma precisão refinada a milésimos de centímetro. Hector passara tantas horas
a praticar no campo de tiro que a pistola era quase uma extensão do seu próprio corpo.
Ademais, Aleutian era um animal selvagem encurralado e prestes a entrar em pânico. Já não estava a pensar como o assassino implacável que na verdade era. Estava
a cometer um pequeno erro. Começava a baloiçar a cabeça de forma ritmada, movendo-a de um lado para o outro com a cadência de um metrónomo. Aleutian estava a expor
a Hector um olho e cerca de quatro centímetros do lado direito da cabeça, a intervalos de dois segundos. Hector teria de fazer passar a bala a meros milímetros da
face de Nastiya.
Inspirou funda e lentamente e depois exalou com a mesma lentidão. Alinhou-se com o espaço contra o qual previa disparar. Exercia uma pressão tão leve com o dedo
sobre o gatilho que bastaria uma pluma para fazer disparar a arma. A sua concentração era tão intensa que tudo lhe pareceu abrandar e imobilizar-se num silêncio
total. A pistola disparou quase de moto-próprio. Hector teve a impressão de que uma força para lá da sua própria volição fizera o disparo. Viu um caracol de cabelo
loiro de Nastiya ser arrancado pela bala e a orelha estremecer assim que captou a turbulência causada
pela passagem do projétil, e depois viu o olho direito de Aleutian explodir numa rajada de massa gelatinosa pálida quando a bala o trespassou. A parte posterior
do crânio rebentou. A matéria cinzenta do cérebro esparrinhou a parede do corredor e Aleutian tombou pesadamente de costas. Os calcanhares tamborilaram em espasmos
sobre o soalho.
- Temos de pôr já torniquetes nas feridas dela, mas não toques em nada no quarto que possa deixar impressões digitais! - gritou Hector a Paddy enquanto se lançava
em frente. Nastiya deu um passo na direção dele e caiu assim que a perna ferida lhe cedeu sob o peso do corpo. Paddy amparou-a e deitou-a delicadamente no chão.
Hector avançou com rapidez para o local onde Aleutian estivera especado. Não precisava de se preocupar demasiado com possíveis impressões digitais nos cartuchos
usados. As únicas impressões que deixara foram nas partes externas da arma. Tirou do bolso um lenço de algodão e limpou meticulosamente a pistola, usando depois
o lenço como uma luva. Aproximou-se do local onde o corpo de Aleutian jazia de costas. Reparara na forma como ele empunhara a navalha e sabia que era destro. Ajoelhou-se
ao lado do corpo, pegou-lhe na mão direita inerte para lhe envolver os dedos à volta do cabo e pressionou-os contra o aço azulado. Depois fez o mesmo com a mão esquerda
de Aleutian sobre o ferrolho. Deteve-se por uns segundos para lhe examinar a tatuagem do Maalek no pulso e esboçou um esgar de fúria. Ajoelhado atrás de Aleutian,
com um dos braços envolvendo-lhe as axilas, pôs-se de pé lentamente enquanto lhe erguia o corpo.
- Baixa a cabeça, Paddy - advertiu. - Vou disparar mais um tiro. - Forçou o dedo inerte de Aleutian a premir o gatilho. A pistola disparou e a bala cravou-se na
parede do corredor, ao lado da porta da entrada. Depois largou o corpo de Aleutian e deixou-o tombar no chão sob o próprio peso.
Manteve-se ali especado por alguns segundos enquanto inspecionava a cena. Os ângulos estavam corretos. A mão direita de Aleutian estava agora coberta de pólvora
queimada. A equipa de especialistas forenses da polícia obteria um resultado positivo quando aplicasse o teste de parafina. O corpo de Aleutian tombara de forma
natural, com a navalha que usara contra Vicky caída sob ele. Era tudo muito convincente.
Afastou-se do corpo e acocorou-se ao lado de Paddy enquanto este se ocupava da perna de Nastiya. Paddy tinha arrancado um pedaço do cordão da cortina da janela na
parede ao fundo do corredor. Atara-o à volta da coxa de Nastiya, por cima da ferida, e apertava-o agora com força. O cordão enterrou-se gradualmente na carne e o
sangue que brotava da ferida começou a estancar. Hector usou o lenço como um torniquete no braço dela.
- Salvaste-lhe a vida. Não sei como te agradecer, Heck. - Paddy falou sem erguer a cabeça.
- Então não agradeças! - disse Hector. - Consigo fazer melhor do que o meu estúpido marido - disse Nastiya a Hector. - Assim que me conseguir pôr de pé, vou dar-te
uma beijoca enorme. - Estava muito pálida e a voz soava rouca, mas estava a sorrir.
- Vou ver se cumpres a palavra - advertiu-a ele. - Porque é que puseste o Aleutian a disparar um segundo tiro =esmo depois de morto? - perguntou Paddy.
- Para lhe deixar pólvora queimada nas mãos e as impressões na pistola - explicou Hector. - O que é que a polícia vai pensar quando encontrar esta enorme confusão
que fizemos? - perguntou Nastiya.
- Só nos resta esperar que pensem que o Aleutian matou a Vicky à navalhada na sequência de um arrufo de namorados, e que depois se matou, por remorso e medo das
consequências.
- E precisou de dois tiros para o fazer? - perguntou Paddy, incrédulo. - Só se tivesse uma pontaria mesmo muito má.
- Os suicidas costumam disparar primeiro um tiro para o ar para verificarem se a arma está funcional e ganharem coragem antes de dispararem o tiro mortal - explicou
Hector. - Acho que eliminámos todos os nossos rastos. Não deixámos nada aqui que possa conduzir a polícia a nós. Vamos mas é daqui pra fora.
Nastiya não emitiu nenhum som quando Paddy pegou nela e a carregou para fora do apartamento. Hector levantou-se e voltou para junto do local onde Vicky Vusamazulu
jazia. Mesmo para alguém como ele, habituado à morte em todas as suas versões mais hediondas, esta mutilação era doentia. Prestou-lhe alguns segundos de silêncio
respeitoso.
Era uma miúda parva. Mas não merecia acabar desta forma. Depois acercou-se de Aleutian e manteve-se especado sobre ele, de mãos enfiadas no bolso e olhos fixos na
cabeça despedaçada do assassino. O olho incólume parecia mirá-lo. Sentiu-se assaltado por ondas alternadas de raiva e desânimo. Raiva por aquilo que aquele homem
fizera a Hazel; desânimo pelo facto de a morte dele ter eliminado a única pista que poderia tê-lo conduzido ao covil da derradeira Besta.
Sabia agora que aquilo que o esperava era a verdadeira mãe de todos os becos sem saída. Virou costas e seguiu atrás de Paddy, em direção ao local onde deixara o
Q-car. A rua estava deserta.
Hector abriu a porta do condutor e enfiou-se atrás do volante. Paddy estava sentado no banco traseiro, abraçado a Nastiya, que continuava em silêncio e pálida. Hector
arrancou sem embalar o motor. Quando passaram pelos portões dos Jardins Botânicos. Hector voltou a falar.
- Bem, parece que tivemos sorte outra vez. Conseguimos escapar ilesos, à exceção da Nazzy. Estás a aguentar-te, czarina?
- Já estive pior, mas também já estive bem melhor - disse ela. - Para onde vamos?
- Vamos ver um homem que eu e o Paddy conhecemos bem - disse-lhe Hector enquanto estendia o iPhone por cima do ombro. - Toma lá o meu telemóvel, Paddy. Tens aí o
número do Doc Hogan na lista de contactos. Diz-lhe que estamos a caminho. Que dentro de hora e meia estamos lá.
Doc Hogan servira no Corpo Médico do Exército Real e tinha sido destacado para o regimento do SAE, o Serviço Aéreo Especial, no qual Hector prestara comissão. Quando
se aposentara instalara-se na quinta da família em Hampshire. No entanto, por trás da fachada de aristocrata rural, continuava a praticar medicina, embora de forma
oficiosa e em segredo. A sua especialidade era o tratamento de traumatismos. A sua reduzida e seleta lista de pacientes era composta por velhos amigos e camaradas
do exército que tinham sofrido contratempos menores como engravidar a mulher de outro homem ou serem esfaqueados, ou encontrarem-se descuidadamente na trajetória
de uma bala.
Paddy e Nastiya permaneceram durante dez dias como convidados de Doc Hogan, até ele lhes permitir apanharem o voo de regresso a Abu Zara no jato da Bannock Oil para
ela completar a convalescença.
As mortes de Aleutian e de Vicky Vusamazulu pouco interesse público despertaram. O incidente foi reportado como um ato de violência doméstica nas últimas páginas
de um boletim informativo local, mas nunca chegou aos canais noticiosos nem às emissões radiofónicas nacionais.
45
Agatha tinha aceitado a proposta de Hector de um emprego permanente e era agora a sua principal assistente pessoal, mas os seus poderes de persuasão tinham sido
postos à prova para a convencer a aceitar um aumento salarial.
"Não sei o que fazer com tanto dinheiro, senhor Cross." "Você é uma mulher inteligente, Agatha. Alguma ideia lhe ocorrerá", assegurara-lhe. "Mas vou precisar de
si em Abu Zara, para me ajudar com os negócios e com a Catherine Cayla. Talvez possamos regressar a Londres assim que o Fundo Fiduciário vender a casa de Belgravia
e arranjarmos outra residência."
Para além do facto de ela ser uma secretária muito dedicada e experiente, era também a maior perita mundial sobre o período da vida de Hazel antes de Hector casar
com ela. Dia após dia, Hector envolvia-a cada vez mais na pesquisa que estava a desenvolver sobre os registos acumulados por Hazel, para tentar identificar o inimigo
oculto no passado dela. Nesse sentido, os conselhos experientes de Agatha eram inestimáveis
Foi durante uma dessas longas conversas investigativas sobre a identidade do assassino que Agatha o lembrou da existência do enteado de Henry Bannock, o filho da
mulher que precedera Hazel nessa função. Chamava-se Carl e Henry a princípio acolhera-o de braços abertos na sua família. Providenciara-lhe a melhor educação e,
quando ele saiu da universidade, ofereceu-lhe um cargo muito bem remunerado na Bannock Oil. No entanto, a relação entre ambos rompera-se na sequência de um terrível
escândalo no seio da família que afetara Henry Bannock profundamente.
- Que escândalo foi esse, Agatha? - perguntou-lhe Hector. - Ouvi uns rumores quando comecei a trabalhar para a Bannock Oil. Mas nunca vim a saber de nenhum pormenor.
- Pouquíssimas pessoas sabiam. Foi muito antes do meu tempo. Mas só sei que o senhor Bannock tinha uma enorme vergonha de todo aquele sucedido. Nunca permitia que
ninguém falasse disso na casa dos Bannocks. Não havia nenhuma referência a isso nos seus registos pessoais; deve tê-los expurgado todos. Era como se aquilo nunca
tivesse acontecido. Ouvi dizer que o Carl Bannock foi libertado da prisão após cumprir uma sentença longa. Mas depois.. simplesmente desapareceu, até que o senhor
Bannock faleceu e a Hazel assumiu o cargo dele como diretora executiva. Depois, voltou a aparecer do nada e começou a importunar a Hazel. Não sei o que ele pretendia,
mas acho que estava a tentar chantageá-la. Acho que a obrigou a pagar-lhe uma enorme quantia de dinheiro. porque ele voltou a desaparecer de repente e nunca mais
ouvi falar dele. A Hazel chegou alguma vez a falar-lhe dele?
- Nunca. Nunca lhe perguntei e ela também nunca me falou dele. Eu sabia que havia um enorme segredo obscuro na família. mas nunca quis remexer em coisas antigas
e dolorosas associadas ao Henry Bannock, pois ela venerava-o - admitiu Hector. - Era como se esse sujeito, o Carl, nunca tivesse existido.
- De qualquer forma, não estou a ver como é que o Carl poderia estar implicado no homicídio da Hazel. Que ganharia ele ao matá-la, ou mandá-la matar? Já lhe tinha
conseguido sacar todo o dinheiro que podia.
- Também não consigo ver nenhum motivo, para além do simples desejo de vingança. Mas se a Hazel lhe tinha dado dinheiro para lhe comprar o silêncio, como você sugere,
por que razão voltaria ele após todos estes anos para a matar? Concordo que não faz sentido. Acho que devemos procurar o assassino dela noutro lugar qualquer. Mas
sem nunca nos esquecermos desse senhor Carl Bannock, embora o nome dele se encontre bem no fundo da lista de possíveis suspeitos.
46
Quando voltaram a instalar-se em Seascape Mansions, Hector e Agatha começaram a elaborar uma lista de possíveis vilãos, mas houvera tantas pessoas hostis na vida
de Hazel que a lista se alongou até atingir proporções que a tornavam impossível de gerir. Hector não podia viajar de um lado para o outro pelo globo para seguir
cada indício e eliminar da lista cada possível culpado. Por conseguinte, Agatha teve de procurar um conceituado detetive privado em cada um dos países por onde os
antigos inimigos de Hazel se encontravam atualmente dispersos. Hector contratou-os para efetuarem buscas nos seus países. Só quando o relatório de um desses detetives
contratados parecia relevante e promissor é que Hector viajava de jato para seguir o rasto de sangue pessoalmente.
Uma dessas viagens teve como destino a Colômbia, para investigar um famigerado barão da cocaína e do petróleo que outrora fizera negócios com a Bannock Oil, negócios
esses que tinham terminado em recriminações e raiva mútuas. Agatha recordava-se que o Senhor Bartolo Julio Alvarez chegara a proferir ameaças de morte e que se referia
em público a Hazel Bannock como uma Yanqui putain de bordel de merde. Para Hector, o sentido destas palavras era obscuro, mas Agatha explicou-lhe de bom grado que
significava algo como "uma senhora americana de virtude fácil que exerce o seu ofício numa casa de má reputação que foi erigida com excrementos."
- Que palavras pouco lisonjeiras - comentou Hector. - Acho que será melhor eu ir lá trocar uma palavrinha com ele.
Quando Hector chegou a Bogotá, descobriu que perdera, por uma semana, a oportunidade de assistir ao funeral do Señor Alvarez. Tinha sido despachado rumo à sua recompensa
celestial por seis tiros de uma submetralhadora Scorpion SA Vz. 61, disparados a uma distância de sessenta centímetros contra a parte posterior do crânio por um
guarda-costas da sua confiança que, segundo parecia, transferira recentemente a sua lealdade para o cabecilha de um cartel de cocaína rival.
Quando Hector regressou a Abu Zara, foi mais afortunado.
Nastiya já tinha recuperado o suficiente dos ferimentos para poder acompanhar Paddy ao aeroporto para recolher Hector.
- Nem imaginas o que aconteceu - disse-lhe Nastiya enquanto se abraçavam.
- Seja o que for, só pode ser coisa boa - respondeu Hector. - Estás a sorrir como uma idiota.
- A Catherine Cayla já sabe gatinhar! - Ela quê? - Já gatinha! Tu sabes, de mãos e joelhos no chão. Se continuar a este ritmo, estará apta a participar nos próximos
Jogos Olímpicos - disse Nastiya com orgulho.
- Parabéns, Heck! - Paddy riu-se. - Obrigado, Padraig. Pelos vistos, a minha filhinha é uma bebé prodígio. - Falou numa voz inchada de orgulho. - Tenho de ver isso
com os meus próprios olhos.
- O teu comité de receção espera ansiosamente pela tua chegada em Seascape Mansions. Aviso-te desde já que os preparativos foram bastante demorados - disse Paddy.
Subiram no elevador privado e, quando as portas se abriram, todo o pessoal doméstico estava alinhado no átrio, por baixo de uma rebuscada faixa pendurada de parede
a parede, com os seguintes dizeres numa brilhante tinta dourada: BEM-VINDO A CASA, PAPÁ! Ao fundo do átrio encontravam-se as fileiras dos empregados domésticos.
Os chefs envergavam impecáveis jaquetas brancas com os tradicionais chapéus altos. Os membros menos qualificados do pessoal doméstico vestiam uniformes lavados e
recém-engomados e as criadas usavam aventais brancos de folhos por cima das fardas azul-marinho. À frente deles perfilavam-se os operacionais de segurança nos seus
uniformes de gala, cintos de fivelas reluzentes e botas impecavelmente engraxadas. Na primeira fila estavam as três amas. Bonnie destacava-se no centro, segurando
Catherine Cayla-Bannock nos braços.
Catherine estava vestida com um babygro cor-de-rosa bordado e algumas melenas do seu macio cabelo loiro tinham sido unidas para segurar um enorme laço, também cor-de-rosa.
O grupo desatou a aplaudir assim que Hector saiu do elevador. Catherine girou a cabecita, olhando para todos com espanto, e depois os seus olhos fixaram-se em Hector
quando ele se aproximou. Hector reparou que os olhos dela tinham mudado de cor. Exibiam agora uma tonalidade azul mais carregada e mais brilhante. Eram os olhos
de Hazel. O seu olhar era constante e focado e Hector deu-se conta de que ela estava a vê-lo, possivelmente pela primeira vez. Hector parou à frente dela e a bebé
enfiou os pequenos polegares na boca, fixando-se nele com um olhar sério.
- És tão linda - disse-lhe. - És tão linda como a tua mãe.
- Estendeu os braços para ela e sorriu. - Posso pegar em ti, posso?
Sabia que ela ainda era demasiado pequena para se lembrar dele ou o reconhecer. Tinham-lhe dito que isso só aconteceria quando ela fizesse um ano. Mas continuou
a sorrir-lhe e a olhá-la nos olhos.
Viu os pensamentos dela aflorarem à superfície como belos peixinhos num fundo lago azul. De repente, ela imitou-lhe o sorriso e estendeu os bracinhos para ele, inclinando-se
para a frente nos braços de Bonnie e agitando-se com tal vigor que a ama quase a deixou cair. Pro diabo com os especialistas!, pensou ele com grande alegria. Ela
reconhece-me mesmo!
Pegou nela e Catherine sentou-se direita na curva do braço dele. Era leve e macia e cheirava a leite. Beijou-lhe o cocuruto e ela disse claramente: - Ba! Ba!
- Queremos dizer "papá" - traduziu Bonnie. - Temos estado a trabalhar nisto, mas é uma palavra muito difícil para nós.
Hector levou Catherine para o quarto de criança e as três amas seguiram-no em grupo. Deitou-a no centro do soalho e afastou-se para junto da porta.
- Muito bem, minha coisinha linda - disse-lhe. - Quero ver-te gatinhar. - Bateu as mãos. - Anda cá, Cathy. Anda aqui ao Ba-Ba, minha filhinha!
A bebé rolou até ficar de barriga, apoiou-se nas mãos e nos joelhos e lançou-se para ele num gatinhar veloz. Quando o alcançou. agarrou-se com ambas as mãos a uma
das pernas das calças dele e tentou levantar-se. Caiu para trás sobre o traseiro protegido pela fralda e as três amas irromperam em gritinhos excitados:
- Viram aquilo? - Ela tentou erguer-se nas duas perninhas! - Ela nunca fez isto antes! Era a hora de a alimentar e Hector fez a sua parte, dando-lhe colheradas de
papa de carne de frango e abóbora. A maior parte da papa acabava por lhe escorrer da boca para o queixo, sujando-lhe o babete e a parte da frente da camisa de Hector.
Enquanto ela engolia a última colherada, os seus olhos fecharam-se, o queixo tombou-lhe sobre o peito e adormeceu prontamente na cadeirinha.
Hector exercitou-se no ginásio durante duas horas enquanto Catherine dormia a sesta; depois calçou as sapatilhas de correr, pegou no marsúpio e foi buscar a bebé.
Quando Catherine viu o marsúpio, agitou as perninhas e emitiu sons de contentamento.
Hector correu ao longo da marginal quase deserta, seguido a uma distância discreta por dois dos melhores homens de Dave Imbiss. Hector cantarolou para a bebé e fez-lhe
caretas que a punham a rir. Catherine explorou a cara dele. Enfiava os dedos rechonchudos e rosados na boca dele para ver de onde vinham aqueles sons estranhos e
tentava imitá-los. Soprou bolinhas de saliva e deu gargalhadas.
A bebé mitigava-lhe a solidão. Já não lhe doía tanto quando pensava em Hazel.
Mas muito em breve teria de voltar a Londres.
47
Contra todas as expectativas, o agente imobiliário tinha encontrado um comprador para a casa de Belgravia. Em nome dos mandatários do Fundo Fiduciário, Ronnie Bunter
pedira a Hector que supervisionasse a transação. Por conseguinte, teria de estar presente quando a empresa de mudanças transportasse o conteúdo da enorme casa. O
comprador era um magnata indiano da indústria do aço. Ia oferecê-la a um dos seus filhos como prenda de casamento. Hector conseguiu vender-lhe a maior parte do mobiliário
da grandiosa mansão. Enviou para a Sotheby's as antiguidades e as obras de arte que Hazel acumulara, para serem vendidas em leilão, e sentiu um alívio quase físico
quando a última das furgonetas das mudanças, sobrecarregada, arrancou pela rampa da entrada.
O astuto agente imobiliário tinha uma lista de doze possíveis substitutos para o nº 11 de Belgravia. Levou Hector numa visita guiada. A terceira hipótese da lista
era uma encantadora casa de cavalariça em Mayfair. Tinha sido completamente renovada e a pintura ainda mal secara nas paredes. Incluía todas as divisões de uso comum,
quatro suítes espaçosas, garagem subterrânea com capacidade para três veículos e alojamento na cave para cinco empregados domésticos. Hector demorou quarenta e cinco
minutos a tomar a decisão de a comprar.
Enquanto assinava os documentos de aquisição do nº 4 de Lowndes Mews, em Mayfair, escolhera já um nome para a nova casa que partilharia com Catherine: "The Cross
Roads". A nova residência ocupava uma área de superfície cerca de vinte por cento superior à da mansão de Belgravia.
Contratou a sua habitual firma de designers de interiores e deu-lhes um prazo-limite de seis semanas para terem a propriedade completamente mobilada e pronta a habitar.
Começou a sentir, por fim, que tinha conseguido deixar o passado para trás e que estava pronto para recomeçar a viver a sua própria vida.
Nota de Rodapé: "The Cross Roads": trata-se, obviamente de uma referência ao apelido "Cross", e a expressão pode ser traduzida como "as estradas/ os caminhos dos
Cross", mas também como "as encruzilhadas".
Fim da Nota.48
O julgamento no principal tribunal criminal de Londres dos dois delinquentes que tinham incendiado e destruído Brandon Hall iria decorrer algumas semanas mais tarde.
Durou seis dias.
Entre os três, Nastiya, Paddy e Hector passaram dois desses dias no banco das testemunhas, e os seus depoimentos, juntamente com o de Paul Stowe, o couteiro-mor,
foram esmagadores.
O júri voltou das suas deliberações apenas duas horas e meia depois, com o veredito de "culpados de todas as acusações".
Quando a lista das condenações anteriores foi lida em voz alta, o juiz decidiu aplicar aos acusados a pena máxima prevista por lei. Condenou cada um deles a vinte
e dois anos de prisão e ordenou que cumprissem um mínimo de dezanove anos das suas penas.
Tinham tentado matar Catherine Cayla pelas chamas e Hector só se sentiu parcialmente aplacado pela severidade da sentença. Consolou-se com a ideia de que, dada a
abolição da pena de morte no Reino Unido, era a punição máxima que as brandas leis atuais permitiam.
49
Quando os três regressaram a Abu Zara no jato, Paul Stowe acompanhou-os a convite de Hector. Já não precisava de um couteiro-mor em Brandon Hall, mas, como Paul
era um elemento demasiado válido para o perder, Hector arranjou-lhe um novo emprego na Cross Bow Security.
Hector pôde dedicar-se a Catherine e a seguir o rasto de registos escritos que esperava que o conduzissem ao misterioso assassino.
No entanto, as dúvidas começavam a acumular-se nos recantos da sua mente. A lista de suspeitos estava a reduzir-se rapidamente à medida que recebia os relatórios
negativos dos seus agentes no terreno. Começou a ser assaltado por uma sensação de impotência e incapacidade, dois sentimentos aos quais não estava habituado.
Tentou combater estas mudanças de humor por via de pesado exercício físico e passando horas no campo de tiro. Também pôde contar com a distração de viajar para os
Estados Unidos para participar na assembleia geral anual da Bannock Oil, Inc., da qual continuava a ser um dos diretores.
Depois, os seus designers de interiores em Londres informaram-no de que tinham concluído a decoração da casa The Cross Roads em Lowndes Mews com apenas cinco dias
de atraso em relação ao prazo-limite que ele estipulara.
Foi com alívio que regressou ao bulício e à agitação de Londres.
50
O decorador de interiores e dois dos seus assistentes mostraram a Hector a casa The Cross Roads. Nenhum detalhe fora descurado. A paleta de cores dominante que Hector
escolhera era de azuis e amarelos claros, com tons de castanho para contrabalançar. Era um ambiente acolhedor, funcional e masculino.
A sua equipa de empregados domésticos, cuidadosamente selecionados entre o seu pessoal da casa de Belgravia e de Brandon Hall, já se instalara nos seus alojamentos.
Cynthia, a chef, estava na cozinha, ocupada com as suas panelas e tachos.
Dois novos automóveis de carroçarias imaculadas, um Bentley Continental e um Range Rover, estavam estacionados na garagem subterrânea.
O bar e a adega estavam abastecidos com os seus vinhos e licores preferidos.
No seu estúdio, a iluminação era agradável aos olhos e tinha o computador ligado à rede.
A suíte principal era uma obra de arte, com uma cama gigantesca, preparada com os seus edredões de seda favoritos. Havia uma reluzente casa de banho masculina de
azulejos brancos, contígua a uma casa de banho feminina de um rosa suave, equipada, evidentemente, com um bidé. Os seus fatos e camisas tinham sido passados a ferro
e estavam pendurados no principal quarto de vestir. Os seus sapatos estavam guardados nas prateleiras, engraxados na perfeição.
Do outro lado do corredor ficava a suíte de criança de Catherine Antes de se mudar, Hector chamara Dave Imbiss de Abu Zara com a sua caixa de engenhos eletrónicos.
Dave varreu a casa a pente fino, desde a cave até ao telhado do sótão, e anunciou que estava livre de escutas ou de quaisquer outros dispositivos de vigia.
Hector decidira que, de futuro, viveria entre The Cross Roads. em Londres, e Seascape Mansions, em Abu Zara, passando dez dias alternados em cada um desses lugares.
Desse modo, poderia deleitar-se tanto com a agitação da metrópole como com a tranquilidade do reino do deserto.
Na primeira noite que passou em The Cross Roads, convidou três dos seus velhos companheiros de armas dos tempos da sua comissão no Serviço Aéreo Especial, e as respetivas
mulheres, para jantarem com ele. Foi uma noite de ameno convívio e só caiu na cama bastante depois da meia-noite.
51
Na manhã seguinte, quando saía do duche, o seu telemóvel tocou. Secou a mão direita na toalha, sacudiu a água do cabelo molhado e agarrou no telemóvel pousado no
lavatório.
- Cross! - atendeu, contrariado. Ainda lhe doía um pouco a cabeça da diversão da noite anterior.
- Oh, espero não estar a incomodá-lo, senhor Cross - disse uma voz feminina.
- Jo? - perguntou ele numa voz hesitante. - Jo Stanley, não é? Ou deveria tratá-la por menina Stanley? - Sabia que era ela, claro. Há quase um ano que os acordes
musicais daquela voz lhe ecoavam suavemente nos remansos da memória.
- Jo soa-me melhor do que a sua segunda hipótese, Hector. - Que grande surpresa. Onde está? Não estará em Inglaterra por algum estranho acaso?
- Sim, estou em Londres. Cheguei ontem à noite, bastante tarde.
- Está no Ritz, como da outra vez? - Não, Santo Deus! - Hector sorriu ao ouvir aquela expressão. Era tão antiquada. - Não me posso dar ao luxo desse tipo de extravagância.
- Pode, sim, se depois enviar a conta ao Ronnie Bunter - sugeriu.
- Já não trabalho mais para o senhor Bunter - disse ela, apanhando-o de surpresa.
- Então para quem trabalha agora? - Para usar um eufemismo muito batido, neste momento estou em fase de transição profissional. - Voltou a surpreendê-lo.
- E o que a traz a Londres? - Vim vê-lo, Hector. - Não posso acreditar nisso. Porquê eu? - É complicado. Além do mais, há formas melhores e mais seguras de discutirmos
isto do que ao telemóvel.
- Na sua casa ou na minha? - perguntou ele, e ela voltou a rir-se. Era um som que agradava a Hector.
- Seria um atrevimento se lhe dissesse na sua? - Nunca chegaríamos a nenhum lado se nunca nos atrevêssemos. Onde a posso encontrar? Onde está hospedada?
- Num hotelzinho bastante simpático e com um nome também simpático, mesmo ao fundo de Chelsea Green.
- Qual é o nome? - Chama-se My Hotel. - Muito bem, sei qual é. Apanho-a aí na entrada principal dentro de quarenta e cinco minutos. Vou num... - Num Bentley prateado,
com a matrícula CRO 55, correto - Um palpite quase acertado, menina Stanley - riu-se. - Mas essa era a minha lata velha. A nova carripana é preta. Mas a matrícula
continua a ser a mesma.
- Santo Deus! Só os anjos conseguem perceber a fixação dos homens pelos carros.
52
Jo estava especada à entrada do hotel. Vestia calças de ganga e um anoraque ligeiro, de cor azul, por cima de uma camisola de gola alta de malha branca em cabo trançado,
e segurava uma pasta de couro. Tinha mudado de penteado e usava agora o cabelo preso num puxo e com franjas. Ficava-lhe ainda melhor, pois dava a impressão de lhe
alongar mais o pescoço, fazendo-o parecer-se com o de um cisne. Tinha-se esquecido de como ela era alta e realmente elegante, mesmo em calças de ganga.
Quando lhe abriu a porta do lugar do passageiro, Jo enfiou-se no banco e apertou o cinto antes de se virar para ele.
- Não preciso de lhe perguntar como tem passado. Está com muito bom aspeto, Hector.
- Obrigado. E a Jo também está com excelente aspeto. Bem-vinda a Londres.
- Como está a Catherine Cayla? - Agora tocou no meu ponto fraco. Podia falar dela o dia todo. A Catherine Cayla é para lá de maravilhosa.
- Esqueça as minudências e conte-me as coisas importantes. - Tem olhos azuis e já sabe gatinhar. Até consegue dizer papá, só que o pronuncia como "Ba Ba", o que
prova, para lá de qualquer dúvida, que ela é um prodígio.
- Acha que alguma vez terei a oportunidade de a conhecer? - Ora aí está uma ideia magnífica.
Depois de estacionarem no pátio no exterior de The Cross Roads, Hector pegou na pasta dela e acompanhou-a ao vestíbulo da entrada. Jo olhou à sua volta, para a ampla
escadaria circular e para as portas abertas da sala de estar.
- Que acolhedor - comentou num tom aprovador. - Muito acolhedor. Ótimo gosto, Hector. Aquilo ali é um Paul Gauguin autêntico? - Indicou a enorme pintura a óleo na
parede ao fundo da sala de estar. - Antes fosse! A Hazel mandou fazer cópias de toda a sua coleção de arte para poder guardar os originais num depósito seguro sem
precisar de pagar um seguro exorbitante. Deve-se lembrar de que os originais pertenciam todos ao Fundo Fiduciário. Conserve: esta cópia em memória da Hazel. - Ficou
surpreendido ao constatar a facilidade com que agora conseguia falar de Hazel, com prazer e não com dor.
Pousou a pasta dela e ajudou-a a tirar o anoraque. Especado ao lado dela, recordou-se do seu perfume quando se tinham conhecido: Chanel Nº 22 - perfeito para ela.
- Se lhe parecer bem, podemos trabalhar no meu estúdio. Suponho que viemos aqui para trabalhar e não para nos pormos a admirar as minhas falsas obras-primas, não
é?
Ela riu-se baixinho. - Supôs bem. - Gostou da forma como ele admitiu prontamente que alguns dos seus quadros eram cópias. Era a confirmação daquilo que já suspeitava
quando o conhecera: Hector era um homem direto e sincero, sem arrogância nem presunção. Um homem no qual uma mulher podia confiar, e do qual os homens maus faziam
bem em afastar-se.
Hector tomou-lhe o cotovelo para a ajudar a subir as escadas. O estúdio exibia uma atmosfera muito masculina. Mas ela nunca esperara uma coleção tão grande de livros.
O soalho estava coberto com tapetes persas de cores e padrões agradáveis. A escrivaninha de teca esculpida dominava a divisão espaçosa. Na parede do fundo estava
pendurado um retrato a óleo de Hazel, especada num campo de trigo dourado e segurando na mão um chapéu de palha de aba larga. Com a outra mão protegia os olhos do
sol e estava a rir. O cabelo era de um dourado mais escuro que o trigo e esvoaçava ao vento. Jo baixou o olhar; sentiu uma estranha emoção que não conseguia definir.
Não sabia se era inveja ou admiração, ou compaixão.
Hector pousou a pasta dela na comprida e antiga mesa de Biblioteca e deu uma palmadinha na poltrona de couro capitoné. - É o assento mais confortável aqui no estúdio.
- Obrigada - disse ela. Mas, em vez de se sentar de imediato, deambulou ao longo das estantes enquanto examinava a coleção dele. - Quer alguma coisa para beber ou
comer? - perguntou-lhe. - Estou mortinha por tomar uma chávena de café. - A morte não é para aqui chamada - disse, acercando-se da máquina de café Nespresso escondida
atrás de um antigo biombo chinês no canto. - Nunca deixo que sejam os outros a prepararem-me o café - explicou. - Nem sequer a minha chef Cynthia.
Jo sentou-se por fim na poltrona que Hector lhe indicara e ele colocou as chávenas em cima da mesa ao lado dela. Sentou-se na sua própria poltrona atrás da escrivaninha.
- Temos assuntos muito delicados a discutir. Podemos fazê-lo aqui em segurança? - perguntou ela baixinho.
- Não precisa de se preocupar, Jo. Pedi a uma pessoa da minha absoluta confiança que fizesse uma revista minuciosa a toda a casa.
- Peço desculpa por ter perguntado. Sei que você é um profissional, Hector. - Ele inclinou a cabeça num gesto de aceitação da desculpa e ela prosseguiu: - Vim durante
toda a viagem sobre o Atlântico a pensar na melhor forma de lhe explicar tudo isto. Decidi que a única maneira era começar pelo princípio.
- Parece-me ser a solução mais lógica - concordou. - É por isso mesmo que vou começar pelo fim. - Agora que penso nisso, também me parece muito lógico,
mas só para quem é mulher, claro.
Ela não fez caso do sarcasmo. A sua expressão começou a alterar-se. O entusiasmo e a desenvoltura esmoreceram. Os olhos encantadores encheram-se de sombras.
Hector desejou desesperadamente ajudá-la, mas apercebeu-se de que a melhor forma de o fazer era continuar em silêncio e ouvi-la. Ela falou por fim.
- O Ronald Bunter é um excelente advogado e um homem honesto e de princípios nobres. Mas, como principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock,
teve de enfrentar uma decisão terrível. Teve de decidir se deveria trair a sua ética profissional ou as vidas de inocentes confiados ao seu cuidado.
Calou-se e Hector percebeu, por um rasgo de intuição, que ela se vira confrontada com a mesma terrível decisão.
Ela suspirou, e foi um som pungente. Pousou a mão na pasta e disse: - Tenho aqui dentro uma cópia digital da escritura do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Roubei-a da firma de advogados à qual jurei fidelidade. O Ronald Bunter deu-me uma cópia das chaves e os códigos para eu poder entrar na casa-forte enquanto o edifício
estava deserto, e ajudou-me a não ser descoberta. Foi meu cúmplice. Só cometemos este ato depois de uma longa e profunda discussão e reflexão. Mas, no final, decidimos
que a justiça era mais importante que a estrita letra da lei. É algo quase inaceitável para um advogado. Ainda assim, quando terminei aquilo que me dispus a fazer,
senti que era meu dever, perante Deus e a minha própria consciência, demitir-me da firma cuja confiança tinha traído de forma tão lamentável.
Hector deu-se conta de que tinha estado a suster a respiração enquanto a ouvia. Soltou um suspiro longo e quase inaudível e disse: - Se pensa fazer isso por mim,
não posso permitir que o faça. É um sacrifício demasiado grande.
- Já o fiz - disse ela. - Agora já não posso voltar atrás. É demasiado tarde. Além do mais, foi a decisão mais correta. Por favor, não me tente convencer do contrário.
Encare isto como uma prenda para si e para a Catherine Cayla.
- Já que coloca as coisas nesses termos, não me resta outra opção senão aceitar. Obrigado, Jo. Verá que não somos nenhuns ingratos. - Eu sei que não. - Baixou o
olhar e fixou-o nas mãos enlaçadas no regaço. Quando voltou a olhar para ele, recuperara por completo o controlo das emoções.
- A escritura do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock redigiu é uma monstruosidade de trezentas páginas. Levaria uma eternidade a lê-la até ao fim, porque cairia
logo de sono a cada duas ou três páginas lidas.
Abriu a pasta e tirou duas pequenas pens. Sopesou-as na mão, como se estivesse relutante em lhas entregar.
- O que fiz foi preparar-lhe uma cópia digital da escritura original do Fundo Fiduciário. - Pousou uma das pens à frente dele na escrivaninha. - Depois, nesta segunda
pen, expus os antecedentes e a história que levaram à formação do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock criou, bem como a reação em cadeia que esse ato desencadeou
posteriormente. Com a cooperação total do Ronnie Bunter, acho que consegui organizar os factos numa espécie de ordem lógica e coerente e de leitura fácil. Suponho
que sempre existiu em mim uma forte ambição de um dia vir a ser escritora, porque dei por mim muito envolvida neste processo. - Sorriu de forma autodepreciativa.
- Seja como for, ofereço-lhe a minha primeira tentativa no campo da literatura. Não é nenhum romance, nem sequer uma novela, porque tudo aquilo que contém é factual.
Levantou-se e pousou a segunda pen ao lado da primeira à frente dele na escrivaninha. Hector agarrou nela e examinou-a com curiosidade. Jo voltou a sentar-se e observou-o.
Ele estendeu o braço sobre a escrivaninha e inseriu a pen no computador.
- Está em formato Word - disse Jo. - Está a abrir sem problemas - replicou ele. - Mas agora está a pedir uma palavra-passe.
- É sementeenvenenada7805 - disse ela. - Tudo em minúsculas e tudo junto.
- Já está. Aqui vamos. Está a abrir. - Leu em voz alta o título do cabeçalho do documento: - "Karl Pieter Kurtmeyer: A Semente Envenenada".
- Espero que ache o conteúdo mais interessante do que aquilo que o título dá a entender - disse Jo.
- Vou começar a ler já, mas parece-me que vai demorar umas horas, ou mesmo dias. Há alguma coisa que eu possa fazer para a entreter nesse entretanto? Gostaria de
ler um livro ou ver televisão, ou dar um passeio para ver as vistas ou ir às compras? Londres é uma cidade com muita diversão.
- Sinto-me exausta por causa do jetlag. - Ocultou o bocejo por trás da mão. - Não preguei olho durante aquela viagem horrível em classe turística. Já para não falar
da turbulência e da mulher obesa sentada ao meu lado que não parava de ressonar como uma leoa furiosa e transbordava do assento dela para o meu. Não consegui pregar
olho.
- Coitada! - Levantou-se. - Não se preocupe. O problema resolve-se facilmente. Siga-me. - Levou-a para a suíte de hóspedes.
Quando ela reparou na cama, sorriu. - Já vi campos de polo mais pequenos do que isto.
Ficou também impressionada com a casa de banho. Hector levou-a de volta para o quarto principal e disse-lhe: - Os roupões estão no guarda-roupa. Escolha o que quiser,
depois feche a porta e diga adeus a este mundo cruel durante o tempo que achar necessário.
Voltou para o estúdio. Sentou-se à frente do computador e começou a ler a primeira página de "A Semente Envenenada".
Aquelas que impusera aos homens, mulheres e crianças judeus no campo de concentração.
Marlene Imelda deu por si viúva na tenra idade dos vinte e um anos.
Quando o património de Heinrich foi avaliado para fins fiscais, descobriu-se que tinha outro vício secreto, bastante diferente do de chacinar judeus indefesos: fora
um apostador compulsivo. Contrariamente àquilo que a maior parte das pessoas de Dusseldórfia acreditava, Heinrich não era um homem abastado. Tinha dilapidado a sua
fortuna. Marlene Imelda e o filho de tenra idade ficaram quase na miséria.
No entanto, ela era jovem, bela e expedita. Sabia onde o dinheiro estava. Emigrou para os Estados Unidos da América e, poucos meses após a sua chegada, já tinha
arranjado emprego como secretária assistente de uma emergente companhia de exploração petrolífera sediada em Houston.
O fundador e proprietário da companhia era um homem chamado Henry Bannock. Era uma personagem bem-parecida, exuberante e impressionante. No aspeto, fazia lembrar
John Wayne, com um toque de Burt Lancaster. Na sua juventude, tinha pilotado caças de combate F-86 Sabre na Coreia e foram-lhe creditados oficialmente seis abates.
Mais tarde, fundara no Alasca a sua própria companhia de voos chárter, à qual chamara Bannock Air. Fretara muitos voos para as grandes companhias de exploração petrolífera
e, no decurso dessas atividades comerciais, conhecera muitos executivos de topo, os quais o iniciaram nos segredos do ofício e lhe facilitaram a entrada no mundo
da exploração petrolífera. Pouco depois, tinha adquirido várias concessões de perfuração. Um pouco antes de Marlene Imelda ter ido trabalhar para a Bannock Oil,
Henry tinha comprado o seu primeiro campo de petróleo na Encosta Norte do Alasca, de modo que já era um multimilionário.
Marlene tinha vinte e poucos anos e era ainda mais bela do que fora aos dezanove anos, quando conhecera Heinrich. Sabia como agradar a um homem, tanto na cama como
fora dela. E agradou desmesuradamente a Henry Bannock. O facto de ela já ter um filho jovem tornava-a ainda mais desejável aos seus olhos.
Karl Pieter Kurtmeyer herdara a beleza da mãe. Era até ainda mais bem-parecido do que ela. Tinha cabelo loiro espesso, queixo saliente e uma pequena dobra epicântica
nas pálpebras que lhe conferia um ar misterioso e pensativo. Esta imperfeição menor parecia realçar-lhe a perfeição dos outros traços faciais.
Karl era inteligente e eloquente. Mesmo naquela tenra idade, já falava espanhol, francês, alemão e inglês. As suas notas na escola eram invariavelmente excelentes.
Henry ficava impressionado com pessoas bem-parecidas que também eram inteligentes e dóceis. Karl tinha todos estes atributos, à semelhança da mãe.
Quando Henry Bannock casou com Marlene Imelda, adotou Karl formalmente e mudou-lhe o nome para Carl Peter Bannock, abandonando assim a grafia teutónica dos seus
nomes de batismo. Graças aos seus contactos, Henry conseguiu inscrever Carl na Escola Primária de St. Michael, uma das escolas privadas mais prestigiadas do Estado
do Texas. Carl brilhou aí. Foi sempre um dos três melhores alunos da turma e fazia parte das equipas de futebol americano e de basquetebol da escola.
Em casa, Marlene Imelda demonstrou que Henry não era infértil, como proclamavam os rumores dos seus muitos inimigos. Pouco depois do casamento, deu à luz uma menina
com três quilos e dezoito gramas. Tal como a mãe, Sacha Jean era uma beldade excecional. Também era uma criança doce e sensível, com dotes musicais. Começou a aprender
piano aos três anos, e aos sete já conseguia executar mesmo as composições mais tecnicamente exigentes do repertório clássico padrão, como o Concerto para Piano
nº 3 de Rachmaninov. Adorava o seu irmão Carl.
Sacha tinha quase nove anos de idade quando Carl a forçou a ter sexo com penetração completa. Andara a prepará-la para esse efeito ao longo dos seis meses anteriores,
convencendo-a a acariciar-lhe os genitais quando estavam sozinhos. Carl tinha treze anos e tivera um desenvolvimento sexual precoce. Ensinou Sacha a manusear-lhe
o pénis, segurando-o na mão e movendo-o para trás e para a frente até ele ejacular. Carl era paciente e amável com ela, dizendo-lhe o quanto a amava e que ela era
esperta e bonita e lhe agradava imenso. Na sua inocência, Sacha via naqueles jogos um precioso segredo entre os dois, e ela gostava imenso de segredos.
O local preferido de Carl para ter relações íntimas com ela eram os vestiários da piscina, nos jardins de cinco hectares da residência da família. A melhor altura
era quando o pai se ausentava em negócios no Alasca e a mãe se retirava para repousar após o almoço. Marlene adquirira o hábito de tomar três ou mais cocktails de
gim e lima à hora do almoço e os passos vacilavam-lhe quando se levantava da mesa e se retirava para o quarto. Era nessa altura que Carl levava Sacha para a piscina.
Da primeira vez que Carl ejaculou dentro da boca dela, Sacha foi completamente apanhada de surpresa. Ficou enojada com o sabor do esperma e chorou, dizendo-lhe que
já não queria brincar mais com ele. Carl deu-lhe um beijo e disse que não fazia mal se ela já não o amava, mas que ele continuava a amá-la. No entanto não se comportava
como se ainda a amasse. Nas semanas seguintes, mostrou-se muito distante e dizia-lhe coisas maldosas e odiosas. No final, foi ela própria quem acabou por sugerir
que deviam ir nadar juntos após o almoço. Não tardou a habituar-se ao sabor. Mas depois, às vezes ele forçava o pénis demasiado fundo na sua garganta e à noite ela
chorava durante o sono. A única coisa que importava era que o irmão voltara a amá-la.
Certa tarde, Carl obrigou-a a tirar as cuecas. Sentou-se no banco à frente dela e tocou-lhe nos genitais. Sacha fechou os olhos e tentou não estremecer e esquivar-se
quando ele lhe enfiou o dedo. No final, ele levantou-se e ejaculou em cima da barriga dela. Depois, disse-lhe que ela estava nojenta e que devia limpar-se e não
contar a ninguém. E levantou-se sem lhe dirigir mais nenhuma palavra.
Sacha não quis jantar nessa noite. A mãe deu-lhe duas colheres de óleo de rícino e não a deixou ir à escola no dia seguinte.
Três semanas antes da festa do seu nono aniversário, Carl entrou no quarto de Sacha quando a casa estava em silêncio. Tirou as calças do pijama e enfiou-se na cama
com ela. Quando a penetrou, foi tão doloroso que ela gritou, mas ninguém a ouviu.
Depois de ele voltar para o seu próprio quarto, Sacha descobriu que estava a sangrar. Sentou-se na sanita, a ouvir o sangue pingar na água. Sentia demasiada vergonha
de si mesma para chamar a mãe. De qualquer modo, sabia que a mãe estava trancada no quarto e que nunca lhe abriria a porta, por mais que ela batesse ou implorasse.
Pouco depois, a hemorragia parou e Sacha enfiou a camisa de noite entre as pernas. Avançou a coxear até ao fundo do corredor e tirou um lençol lavado do armário
da roupa de cama para substituir o que estava manchado de sangue. Depois, seguiu de modos furtivos para a cozinha vazia, onde enfiou o pijama e o lençol sujos num
saco do lixo que depois depositou no caixote do lixo.
No dia seguinte, verificou que toda a gente na escola a olhava fixamente. Costumava ser uma das melhores alunas a matemática, mas nesse dia não conseguiu encontrar
a solução para nenhuma das questões do teste. A professora chamou-a no final da aula e repreendeu-a pelo seu fraco desempenho.
"Que se passa contigo, Sacha?" Atirou a folha do teste para cima da secretária à sua frente. "Isto nem parece nada teu."
Sacha não foi capaz de responder. Voltou para casa e roubou uma das lâminas de barbear da casa de banho do pai. Foi para a sua própria casa de banho e cortou ambos
os pulsos. Uma das criadas viu o sangue escorrer por baixo da porta e correu aos gritos para a cozinha.
Os outros criados arrombaram a porta e depararam com ela. Chamaram uma ambulância. Os cortes que ela infligira nos pulsos não eram suficientemente fundos para porem
a sua vida em risco.
Marlene manteve-a em casa e não a deixou ir à escola durante três semanas. Quando Sacha regressou às aulas, disse à sua professora de música que nunca mais voltaria
a tocar piano. Recusou-se a participar no sarau musical que estava programado para a sexta-feira seguinte. Alguns dias mais tarde, cortou todo o cabelo com um par
de tesouras e esfacelou a cara com as unhas até fazer sangue, pois convencera-se de que tinha a pele coberta de pústulas de acne. Os seus traços faciais tornaram-se
macilentos e os seus modos, furtivos e nervosos. Os olhos pareciam assombrados. Deixara de ser bonita. Carl disse-lhe que era feia e que já não queria brincar mais
com ela.
Um mês depois, Sacha fugiu de casa. A polícia encontrou-a oito dias mais tarde, em Albuquerque, no Novo México, e levou-a para casa. Poucos meses depois, voltou
a fugir. Dessa vez, conseguiu chegar à Califórnia antes que a polícia a encontrasse.
Quando a obrigaram a voltar às aulas, ateou fogo às salas de música. As chamas destruíram toda essa ala da escola, com danos que ascenderam a vários milhões de dólares.
Após um prolongado e minucioso exame médico, Sacha foi enviada para o Hospital Psiquiátrico de Nine Elms, em Pasadena, onde iniciou um demorado e complicado programa
de tratamento e reabilitação. Nem uma única vez alguém suspeitou que ela tivesse sofrido qualquer tipo de abuso. Parecia que a própria Sacha expurgara por completo
esses incidentes da memória.
Começou a ganhar peso com rapidez. Num espaço de seis meses, o seu corpo ficou disforme e tornou-se clinicamente obesa. Usava sempre o cabelo cortado muito rente.
Os olhos tornaram-se mortiços e estupidificados e roía as unhas até ao sabugo, ao ponto de as extremidades dos dedos se deformarem e parecerem tocos. Chuchava no
polegar de modo quase contínuo. Tornou-se cada vez mais nervosa e muito agressiva. Atacava as enfermeiras e outros pacientes à mínima provocação. Mostrava, em particular
um antagonismo violento contra qualquer enfermeira que tentasse questioná-la acerca do seu relacionamento com a família. Sofria de insónias e começou a ter episódios
de sonambulismo.
Quando a família foi autorizada a visitá-la pela primeira vez desde que fora internada, Sacha mostrou-se soturna e fechada. Respondia às perguntas dos pais com grunhidos
animalescos e monossílabos resmoneados. Não reconheceu o irmão que outrora tanto amara.
- Não vais dizer olá ao Carl Peter, querida? - repreendeu-a a mãe num tom gentil. Sacha desviou os olhos.
- Mas ele é teu irmão, querida Sacha - insistiu Marlene. Sacha revelou uma pequena centelha de agitação. - Não tenho nenhum irmão - disse, usando uma frase completa
pela primeira vez, mas sem em momento algum levantar o olhar do chão. - Não quero ter nenhum irmão.
Henry Bannock levantou-se ao ouvir isto e disse à sua mulher: - Esperamos por ti no parque de estacionamento. Parece que eu e o Carl fazemos mais mal do que bem
ao virmos aqui. - Fez sinal a Carl com a cabeça. - Vamos lá, meu rapaz. Vamos embora daqui.
Henry abominava presenciar qualquer tipo de miséria e sofrimento, sobretudo quando se relacionavam pessoalmente com ele.
Limitava-se a fechar a mente a isso, dissociava-se dessas realidades e afastava-se. Nem ele nem Carl Peter voltariam a Nine Elms.
Marlene, por sua vez, nunca faltou a uma visita à filha. Todos os domingos de manhã, o motorista fazia o trajeto de cento e cinquenta quilómetros até Pasadena, onde
ela passava o resto do dia a tagarelar com a filha calada e retraída. Numa dessa visitas, levou uma cassete de concertos de piano de Rachmaninov para pôr a tocar
num gravador portátil, na esperança de que isso pudesse voltar a despertar-lhe os talentos musicais.
Aos primeiros compassos do primeiro andamento de abertura do Concerto n°. 3 em ré menor, Sacha levantou-se de um salto, agarrou no gravador e atirou-o contra a parede
com uma fúria louca. O aparelho despedaçou-se. Sacha lançou-se ao chão, encolheu-se na posição fetal, enfiou o polegar na boca e começou a bater ritmicamente a cabeça
contra o chão. Foi a última vez que Marlene tentou intervir no tratamento dela.
A partir desse incidente, limitou-se a ler poesia a Sacha ou a debitar-lhe um relato detalhado dos acontecimentos triviais da semana anterior. Sacha permanecia em
silêncio e completamente fechada sobre si própria. Fixava a parede, baloiçando-se para trás e para a frente na cadeira como se fosse um cavalo de baloiço.
Meses mais tarde, Marlene Imelda descobriu que estava novamente grávida. Aguardou até que o seu ginecologista lhe confirmasse o sexo da criança; depois, na visita
seguinte a Nine Elms, confidenciou a Sacha: - Sacha, minha querida. Tenho uma notícia maravilhosa para ti. Estou grávida e vais ter uma irmãzinha.
Sacha virou a cabeça e olhou Marlene nos olhos pela primeira vez durante essa visita. - Uma irmã? Vou ter uma irmã? De certeza que não é um rapaz? - perguntou numa
voz clara e com lucidez.
- Sim, querida. Uma irmãzinha para ti. Não é maravilhoso? - Sim! Quero muito ter uma irmã. Mas não quero ter um irmão. - Que nome achas que lhe devíamos pôr? Qual
é o nome de que gostas mais?
- Bryoni Lee! Adoro esse nome. - Conheces alguém com esse nome? - Havia uma rapariga na escola que era a minha melhor amiga. - Sorriu. - Mas o pai dela arranjou
um novo trabalho e mudaram-se para Chicago. - Estava animada e falava como uma criança normal da sua idade.
Semana após semana, continuaram a falar da bebé, e, semana após semana, Sacha fazia-lhe as mesmas perguntas, sempre pela mesma ordem. E ria-se com as respostas da
mãe.
Um dia, no final do oitavo mês de gestação, Sacha sentou-se ao lado da mãe durante toda a duração da visita e Marlene segurou-lhe a mão contra a barriga. Quando
a bebé se mexeu sob a sua palma pela primeira vez, Sacha soltou gritinhos de excitação, tão alto que a enfermeira de serviço entrou a correr na sala de visitas.
- Mas que é que se passa, Sacha? - perguntou. - A minha irmãzinha! Anda cá sentir como ela se mexe. Marlene levou Bryoni Lee a visitar Sacha pela primeira vez quando
ela tinha três meses de idade. Sacha teve permissão para pegar na irmãzinha e sentou-se com ela no colo durante toda a visita, arrulhando-lhe e rindo-se para ela
e fazendo perguntas à mãe sobre ela.
Após essa primeira visita com Bryoni, Marlene nunca faltou a nenhuma das visitas semanais e Sacha pôde acompanhar o crescimento de Bryoni. Os seus terapeutas reconheceram
o efeito benéfico que a bebé estava a exercer sobre ela e encorajaram ativamente esse relacionamento.
E assim os anos foram passando.
54
Bryoni Lee tornou-se uma criança adorável. Era franzina e delicada, com traços faciais miudinhos e cativantes olhos escuros. O rosto em forma de coração era vivaz
e expressivo. As pessoas sentiam-se naturalmente atraídas por ela e sorriam-lhe sempre que a viam. Tinha uma voz encantadora. Os pés pareciam ter sido concebidos
para dançar. No entanto, era uma criança determinada e segura de si.
Bryoni Lee destacava-se por natureza própria das demais crianças. À semelhança do pai, Henry Bannock, era uma líder e uma organizadora nata. Assumia sem esforço
o controlo em qualquer grupo de miúdos e mesmo os rapazes mais velhos submetiam-se prontamente à sua vontade.
Henry precisou de algum tempo para se habituar a ter em casa uma criança que não conseguia dominar por completo, até porque se tratava de uma descendente sua disposta
a fazer-lhe frente. Henry tinha uma opinião muito firme sobre as diferenças entre os géneros e sobre os papéis e relações entre pais e filhos e entre homens e mulheres.
A questão da igualdade não figurava na sua lista.
Bryoni Lee deleitava-o pelo facto de ser inteligente e uma criança exemplar, mas também o alarmava quando lhe dava uma resposta torta e discutia com ele. Henry era
acometido de ataques de fúria contra ela. Gritava-lhe e ameaçava-a com castigos corporais. Certa vez chegou mesmo a cumprir essa ameaça. Arrancou o cinto das calças
e bateu-lhe na parte de trás das pernas desnudas. Causou-lhe um vergão vermelho, mas ela manteve-se firme e recusou-se a chorar.
- Não devias fazer isso, papá - disse-lhe num tom sério. - Tu mesmo me disseste que um cavalheiro nunca bate numa senhora.
Henry tinha abatido caças comunistas na Coreia e pregara sustos de morte a operadores de sondas e outros operários matulões e durões que trabalhavam nas suas plataformas
petrolíferas, mas agora transigia perante uma rapariguinha de oito anos.
- Perdoa-me - disse-lhe enquanto enfiava o cinto nas presilhas das calças. - Tens razão. Não devia ter feito isso. Não voltarei a fazê-lo. Prometo-te. Mas tens de
aprender a prestar atenção ao que te digo, Bryoni Lee!
Por seu turno, passou a ouvir o que ela tinha para dizer, uma cortesia que raramente dispensara a qualquer outra mulher. E descobriu, para sua grande surpresa, que
muitas das vezes Bryoni Lee tinha razão no que dizia.
55
O ano do décimo aniversário de Bryoni Lee foi memorável na família Bannock. Em maio, Henry inaugurou o seu primeiro poço de petróleo ao largo da costa. A capitalização
bolsista da Bannock Oil alcançou os dez mil milhões de dólares. E comprou o seu próprio jato privado, um Gulfstream V, que ele próprio costumava pilotar. Nesse mesmo
mês, a família Bannock mudou-se para a sua nova residência em Forest Drive. Concebida por Andrew Moorcroft, da firma de arquitetos Moorcroft & Haye, erguia-se em
seis hectares de parques e continha oito suítes. Foi-lhe outorgado o Prémio de Melhor Casa pelo Instituto Americano de Arquitetos.
Carl Peter Bannock diplomou-se com distinção pela Universidade de Princeton e em junho começou a trabalhar na sede social da Bannock Oil, em Houston.
Em julho, Henry Bannock pediu ao seu velho amigo e advogado Ronnie Bunter para criar o Fundo Fiduciário da Família Henry
Bannock, a fim de proteger a sua família imediata de quaisquer danos e adversidades para o resto das suas vidas. Estudaram e analisaram penosamente o enunciado e
as cláusulas, até que, em agosto, Henry assinou por fim a escritura.
Ronald Bunter conservou o documento original na casa-forte da firma e Henry guardou a única cópia existente na sua própria casa-forte em Forest Drive.
Em agosto desse mesmo ano, os médicos do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms disseram a Henry e a Marlene que Sacha Jean nunca estaria em condições de viver fora
de uma instituição e que permaneceria internada para o resto da vida. Henry não fez nenhum comentário e Marlene trancou-se na sua nova e sumptuosa suíte com uma
garrafa de gim Bombay Sapphire.
Em setembro, Marlene Imelda Bannock iniciou um tratamento de desintoxicação de três meses numa clínica de reabilitação para alcoólicos, em Houston.
Em outubro, Henry Bannock divorciou-se de Marlene Imelda Bannock e obteve a custódia total de ambas as filhas: Sacha e Bryoni. Carl já era um adulto, de modo que
o seu nome nunca chegou a figurar nos papéis do divórcio. Quando Marlene completou o programa de reabilitação, foi viver sozinha para as ilhas Caimão, numa magnífica
propriedade junto à praia, onde era servida por uma vasta equipa de empregados domésticos. Todas essas benesses resultavam de uma das disposições que constavam do
acordo de divórcio.
Nos finais de outubro, a Direção de Aviação Civil recusou-se a renovar o brevete de piloto comercial de Henry Bannock, pois este não tinha passado no exame médico.
- Mas que diabos está você para aí a dizer? - perguntou Henry em fúria ao médico que estava a fazer o exame. - Acabei de comprar um Gulfstream por doze milhões de
dólares. Não me pode retirar o brevete agora. Estou tão fisicamente capaz como quando pilotava os jatos Sabre lá na Coreia.
- Com todo o respeito, permita-me recordar-lhe, senhor Bannock, que isso já foi há cerca de duas décadas. Desde então. o senhor tem-se matado a trabalhar como um
mouro. Quando foi a última vez que tirou férias?
- Que raios tem isso que ver com a renovação do meu brevete Não tenho tempo para gozar férias.
- É exatamente aí onde quero chegar, senhor. Diga-me, quantos Havanas já fumou desde a guerra da Coreia? Quantas garrafas de Jack Daniel's já emborcou? Faz exercício
físico?
- Está a ser insolente, meu rapaz. - O rosto de Henry ficou vermelho. - Isso é um assunto que só a mim diz respeito.
- Peço desculpa. No entanto, devo dizer-lhe que sofre de caso crónico de fibrilação auricular.
- Não me venha com essa conversa técnica. Que diabos está você para aí a fibrilar e a disparatar?
- Estou a tentar dizer-lhe que o seu coração anda a dançar de um lado para o outro como o Gene Kelly sob o efeito de esteroides. Mas isso é só meia missa. A sua
tensão arterial subiu até lá acima ao espaço como o Neil Armstrong. Se eu fosse seu médico, punha-o já a tomar Coumadin10, senhor Bannock. - Graças a Deus que você
não é o meu médico. Sei bem o que é essa coisa do Coumadin. Sei que é usado como veneno de rato e que o sabor não tem nada que ver com o Jack Daniel's. Portanto,
pode pegar nele e enfiá-lo pelo traseiro acima, doutor Menzies. - Henry levantou-se e saiu a passo largo do consultório.
Mesmo sem brevete, Henry continuou a pilotar o seu adorado Gulfstream. Dispunha de dois pilotos comerciais muito bem pagos que o substituíam aos comandos quando
necessário.
No entanto, às vezes acordava às primeiras horas da madrugada com o coração a palpitar e a bater irregularmente no peito. Recusou-se a consultar outro médico. Não
queria que lhe lessem em voz alta a própria sentença de morte.
Ciente da advertência de que os seus dias estavam contados, trabalhou ainda mais arduamente. A ideia de desistir dos Havanas e do seu Jack Daniel's era intolerável,
de modo que a tirou da cabeça.
Em novembro, Bryoni Lee ganhou um concurso estadual de matemática, vencendo alunos três ou quatro anos mais velhos do que ela, e os seus colegas de classe escolheram-na
como a aluna com mais probabilidades de vir a ser bem-sucedida na vida e de se tornar presidenta dos Estados Unidos da América. Com a mãe ausente, a própria Bryoni
assumiu os deveres de visitar a irmã mais velha.
Todos os domingos, Bonzo Barnes, o motorista e guarda-costas de Henry, levava-a a Nine Elms para passar o dia com Sacha. Bonzo era um ex-pugilista de pesos-pesados.
À semelhança da maior parte das pessoas, adorava a jovem Bryoni. Deixava-a sentar-se a seu lado à frente e tagarelavam, felizes, durante o percurso de ida e volta
até Pasadena.

Nota de Rodapé: Medicamento anticoagulante, usado para prevenir e tratar trombos e êmbolos, causadores, respetivamente, de tromboses e embolias.
Fim da Nota.
Em dezembro desse mesmo ano, enquanto o pai se ausentara para Abu Zara para renovar as concessões petrolíferas da Bannock Oil, Carl Peter Bannock conseguiu por fim
decifrar as palavras-passe e os códigos de acesso à casa-forte de Henry Bannock. Tinha descoberto um sítio no terraço da piscina de onde podia espiar sub-repticiamente
o estúdio do pai. Certa manhã de sábado, espiou, através das lentes de um potente par de binóculos Zeiss com ampliação de 10x, Henry sentado à secretária e viu-o
levantar o forro de seda da agenda de couro preto. Depois viu-o tirar de debaixo do forro um dos cartões de visita que tinha escondido aí.
No reverso do cartão via-se uma longa série de letras e números, escrita na caligrafia larga e firme de Henry. Viu o pai atravessar a divisão até à porta do cofre
pessoal. Depois viu-o consultar o que estava escrito no cartão e começar a rodar o disco da fechadura para trás e para a frente enquanto inseria a combinação e,
em seguida, viu-o girar a roda de bloqueio no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, abrindo depois a porta sólida e pesada.
Carl teve de esperar várias semanas até Henry partir de viagem. mas depois teve dez dias e dez noites para se dedicar ao seu plano.
Na primeira noite, após muitas tentativas frustradas, conseguiu dar conta das complicadas sequências de desativação do mecanismo de bloqueio e abrir a porta de aço
de acesso ao cofre.
Na noite seguinte, fotografou o interior do cofre e a disposição do conteúdo. Antes de se atrever a mexer no que quer que fosse. queria ter a certeza de conseguir
repor tudo exatamente na posição original. Sabia que o pai se aperceberia de imediato de qualquer alteração. Calçou luvas cirúrgicas de todas as vezes, para evitar
deixar impressões digitais em qualquer um dos itens do conteúdo do cofre, e prestava uma atenção minuciosa a todos os pormenores.
Na terceira noite, pôde começar a explorar o conteúdo do cofre. Os lingotes de ouro estavam empilhados numa área do chão onde o seu peso era suportado pelos alicerces
de aço e betão. Calculou que estivessem ali cerca de cinquenta ou sessenta milhões de dólares em ouro.
O comportamento de Henry sempre fora ditado por um peculiar misto de audácia temerária e cautela prudente. Aquele tesouro era o seu pequeno fundo de emergência.
Na seguinte fileira de prateleiras estavam as condecorações e as medalhas dos tempos de Henry na Força Aérea americana, bem como fotografias e recordações de significado
especial para ele. Nas prateleiras de aço por cima havia pastas de documentos e certificados de ações, obrigações, títulos de propriedade das numerosas propriedades
e concessões que Henry possuía em seu próprio nome. Os outros bens relevantes estavam em nome da Bannock Oil Corporation.
Na quarta prateleira a contar de cima, Carl encontrou aquilo que procurava realmente.
Já sabia da existência do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Enquanto ainda frequentava Princeton, tinha começado a intercetar os telefonemas do pai no quarto
e no estúdio. Tinha mesmo tentado aceder às linhas telefónicas privadas da sede da Bannock Oil, mas o cordão de segurança que protegia o Edifício Bannock era impenetrável.
Carl teve de se contentar em escutar na linha da principal suíte as numerosas conversas entre Henry e a sua ex-mulher e várias das suas amantes. Mas também fizera
transcrições dos telefonemas de Henry no estúdio no piso térreo, as quais incluíam várias conversas entre o pai e os seus parceiros de negócios e, mais importante
ainda, com os seus advogados.
Carl pudera, assim, acompanhar algumas das conversas entre Henry e Ronald Bunter, o principal advogado da família, enquanto elaboravam a escritura do Fundo Fiduciário.
Mas ficara apenas com uma vaga ideia do conteúdo exato e das cláusulas da escritura final.
E agora tinha descoberto a cópia que Henry possuía, um enorme tomo pousado a meio da quarta prateleira.
Mesmo assim, não se precipitou. Examinou minuciosamente o volume com uma lupa antes de o abrir. Marcou as páginas que Henry colara com minúsculas gotículas de cola.
Separou-as com enorme cuidado e voltou a colá-las assim que as leu.
Entre a página 30 e 31 encontrou o pelo que Henry aí colocara para detetar possíveis intrusos. Era um dos próprios pelos de Henry, crespo e encaracolado, que ele
arrancara de uma das suíças. Carl guardou-o num envelope branco e recolocou-o depois entre as páginas quando acabou de ler o documento.
Devido a todas estas precauções preliminares, restaram a Carl três noites seguidas para estudar a escritura do novo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock antes
de o pai regressar do Médio Oriente. Aquilo que leu conferiu-lhe uma exaltante sensação da sua própria supremacia. A escritura do Fundo Fiduciário outorgava-lhe
poderes quase divinos. Estava armado contra o mundo e escudado por milhares de milhões de dólares. Era invencível.
56
Sacha Jean regredira de forma gradual ao longo do tempo, até à idade mental equivalente à de uma criança de cinco ou seis anos. O seu mundo encolhera à medida que
o seu cérebro asfixiava sem estímulos e se encerrava. Já não reconhecia ninguém, à exceção das enfermeiras de meia-idade, que tinham sido particularmente amáveis
com ela, e da sua irmã Bryoni.
Quando a enfermeira que cuidava dela chegou à idade da reforma, o mundo de Sacha, já de si limitado, voltou a reduzir-se. Tornou-se então pateticamente dependente
de Bryoni.
Quando o clima o permitia, ambas passavam os domingos nos jardins de Nine Elms. Com o passar dos anos, os médicos foram-se apercebendo de que Bryoni era responsável
e não hesitavam em deixar Sacha entregue ao seu cuidado durante todo o dia da visita.
Sacha tinha agora vinte e poucos anos e era obesa. Era muito mais alta do que a irmã, mas Bryoni agia como uma mãe e levava-a pela mão para o local preferido dela
junto ao lago, onde faziam um piquenique e atiravam migalhas aos patos. Sacha já não conseguia concentrar-se o suficiente para ler sozinha, mas adorava cantigas
infantis. Bryoni trauteava-lhas. Jogavam à macaca, às imitações e às escondidas. Bryoni tinha uma paciência infinita. Dava de comer a Sacha o almoço que trouxera
de casa e limpava-lhe a cara e as mãos quando acabava de comer. Levava-a à casa de banho e ajudava-a a limpar-se e a ajeitar a roupa quando terminava.
Sacha adorava especialmente que lhe fizessem cócegas nas costas. Gostava de tirar a blusa e deitar-se de barriga em cima da manta para que Bryoni lhe fizesse cócegas.
Sempre que a irmã parava. punha-se a gritar: "Mais! Mais!"
Certo domingo, Bryoni estava a fazer-lhe cócegas quando Sacha disse numa voz bastante clara: - Se ele alguma vez te quiser tocar na pombinha, não o deixes.
Bryoni parou de repente de lhe fazer cócegas e pensou naquilo que a irmã acabara de dizer. "Pombinha" era a palavra infantil que ambas usavam para referir a vagina.
- O que é que disseste, Sash? - perguntou numa voz cuidadosa. - Quando?
- Agora mesmo. - Eu nunca disse nada - negou Sacha. - Disseste, sim. - Nunca disse. Nunca disse nada. - Sacha já estava a ficar agitada e nervosa. Bryoni conhecia
os sintomas. De seguida, iria encolher o corpo na posição fetal e começar a chuchar o polegar ou a bater com a cabeça no chão.
- Fui eu que me enganei, Sash. Claro que não disseste nada. Sacha descontraiu-se e começou a falar do seu cachorrinho. Queria o seu cãozinho de volta. No seu último
aniversário, a mãe dera-lhe um cachorrinho, mas Sacha adorava tanto o animal que o apertara com demasiada força e acabara por o asfixiar. Tiveram de lhe dizer que
o cão estava a dormir para conseguirem arrancar-lhe o cadáver das mãos. Pedia sempre a Bryoni para lho trazer de volta. Mas os médicos não permitiam que Sacha tivesse
outro animal de estimação.
O domingo seguinte foi um dia límpido e soalheiro e as duas fizeram um piquenique no local habitual, junto à borda do lago. Sacha não gostava que as coisas mudassem.
As mudanças deixavam-na nervosa e insegura. Quando acabaram de almoçar, Sacha pediu: - Faz-me cócegas nas costas.
- Quais são as palavras mágicas? - perguntou-lhe Bryoni. Sacha pensou, de testa franzida em concentração, mas acabou por desistir. - Esqueci-me de quais são. Diz-me
tu.
- Tens que dizer "por favor", não te lembras?
- Sim. Sim. É "por favor" - Sacha bateu as mãos de alegria.
- Por favor, Bryoni. Faz-me cócegas nas costas, por favor. - Tirou a blusa e estendeu-se sobre a manta. Pouco depois, Bryoni pensou que ela tinha adormecido, mas
de repente Sacha disse: - Se o deixares tocar-te na pombinha, ele enfia-te a coisa dura dele dentro e faz-te deitar sangue. Bryoni ficou petrificada. As palavras
chocaram-na, ao ponto de a fazerem sentir-se agoniada. No entanto, fingiu não ter ouvido e continuou a afagar as costas da irmã. Pouco depois, começou a trautear
uma canção infantil. Sacha tentou acompanhá-la, mas baralhou as palavras e ambas desataram às gargalhadas.
De seguida, Sacha disse: - Se ele te enfiar a coisa dele na tua pombinha, depois fica a doer muito e a deitar sangue. - Repetir as mesmas coisas vezes sem conta
era um truque que a sua mente danificada lhe pregava. - Está na hora de eu ir, Sash - disse Bryoni por fim. - Oh, não! Por favor, fica mais um pouquinho. Fico muito
assustada e triste quando tu vais embora e me deixas sozinha.
- Volto cá no próximo domingo. - Prometes? - Sim, prometo.
57
No domingo seguinte, Bryoni levou um gravador que tinha tomado de empréstimo do estúdio do pai.
Ambas caminharam de mãos dadas até à borda do lago. Bryoni levava a manta e o cesto de piquenique. Quando chegaram ao seu local favorito, Sacha estendeu a manta,
certificando-se de que não ficara com dobras nem pregas. Estender a manta era da sua responsabilidade e era muito conscienciosa e orgulhosa da sua capacidade de
a estender na perfeição. Enquanto a irmã concentrava toda a sua atenção na manta, Bryoni tirou o gravador do bolso das calças de ganga, ligou-o e guardou-o no bolso
sem que Sacha se apercebesse.
O dia seguiu o seu padrão habitual: atiraram migalhas aos patos e falaram do cachorrinho de Sacha, que estava com a sua mãe cadela no céu. Almoçaram e Bryoni levou
Sacha à casa de banho. Voltaram para junto do lago e deitaram-se na manta. Sacha pediu-lhe que lhe fizesse cócegas nas costas e Bryoni obrigou-a a pedir "por favorDepois,
enquanto lhe fazia cócegas, começou a trautear uma canção infantil, a qual desencadeou toda uma associação de ideias na mente estropiada de Sacha, como Bryoni esperava
que acontecesse.
De repente, Sacha disse: - Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar-me dentro da boca. Tinha um sabor horrível
Bryoni estremeceu, mas continuou a cantarolar baixinho. Dessa vez, Sacha parecia estar serena e continuou a divagar.
- Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito.
Voltou a calar-se e Bryoni continuou a trautear baixinho e num tom tranquilizador. De repente, Sacha soergueu-se e exclamou: - Já me lembro! Chamava-se Carl Peter
e era mesmo meu irmão. Mas depois ele foi embora. Todos eles foram embora. A minha mamã e o meu papá; todos eles foram embora e deixaram-me sozinha. A não ser tu,
Bryoni.
- Nunca te vou deixar, Sash. Ficaremos juntas para sempre, como as irmãs devem ficar. - Sacha acalmou-se e voltou a deitar-se de barriga para baixo. Bryoni recomeçou
a afagá-la e a cantar baixinho. De repente, Sacha falou alto, num tom de voz mais parecido com a idade que tinha realmente e não na voz da criança de cinco anos
em que se tornara.
- Sim, já me lembro que foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela
coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque
o Carl me tinha dito para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?
- Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas.
- Promete que nunca me vais deixar, Bryoni. - Prometo-te que nunca te vou deixar, minha querida Sash.
58
Nessa noite de domingo, quando Bryoni regressou a casa após a visita a Nine Elms, o novo Ford Mustang de Carl estava estacionado no caminho de acesso. Quando ela
entrou em casa, Carl descia a correr a escadaria principal. Estava de fato e gravata. Os sapatos brilhavam e o cabelo alisado reluzia de gel.
- Olá, Bree! - cumprimentou-a. - Como está a nossa irmã maluquinha? Ainda continua a brincar com as fadas?
- A Sacha está muito bem. É uma rapariga muito doce e encantadora. - Bryoni não conseguia olhar para o rosto do irmão, aquele rosto arrogante e presunçoso.
Carl depressa perdeu o interesse por saber novidades de Sacha. Só mencionara o nome dela para irritar Bryoni. Deteve-se à frente do espelho de corpo inteiro na base
das escadas e ajustou o nó da gravata. Depois tirou o pente do bolso e voltou a ajeitar cuidadosamente os poucos fios de cabelo que estavam fora do lugar. - Um grande
encontro esta noite. A miúda tem andado a suspirar por mim há já um mês ou mais. E hoje vai ser a noite de sorte dela. Que tal estou, Bree? - Virou-se para ela e
abriu os braços. - Tcharam! Tcharam! O sonho de qualquer mulher, hã?
Bryoni parou à frente dele e forçou-se a olhar-lhe o rosto. Muitas das suas amigas diziam que ele era o homem mais bonito que já tinham visto. Apercebeu-se de que
o odiava. Era um suíno sádico. doentio e pervertido.
- Sabes, Carl, é a primeira vez que reparo que o teu olho direito
é maior que o esquerdo - disse. Consternado, ele virou-se para o espelho. Bryoni desatou a correr pelas escadas acima em direção ao seu quarto. Sabia que ele iria
ficar angustiado durante semanas por causa do tamanho relativo dos seus olhos, e ficou contente.
Henry tinha-se ausentado da cidade. Viajara no seu novo jato para um qualquer pequeno e estranho país no Médio Oriente chamado Abu Zara e só regressaria dentro de
dois dias, aproximadamente. Estava sozinha naquela casa enorme. Ligou para a cozinha e perguntou a Cookie se podia comer com os outros empregados na sala de jantar
do pessoal doméstico, em vez de ficar sozinha na velha e enorme sala de jantar. Cookie ficou deliciada. Todos adoravam Bryoni.
- Fiz tarte de maçã especialmente para si, menina Bree. - És uma querida, Cookie. É a minha sobremesa preferida. Após o jantar, Bryoni trancou-se no estúdio contíguo
ao seu quarto e copiou para uma nova cassete a gravação que fizera em Nine Elms. Enquanto ouvia a voz doce e infantil de Sacha recitar tais perversões repugnantes,
recomeçou a sentir uma fúria extrema.
Deu por si a pensar na caçadeira de calibre 12 que o pai guardava no estúdio no piso térreo. Henry tinha-a ensinado a disparar aos pratos e ela tornara-se uma jovem
atiradora competente. Mas apercebeu-se, nesse momento, de que corria o risco de perder o bom senso e a razão. Obrigou-se a voltar ao plano original.
Quando acabou de copiar as afirmações de Sacha, trancou o gravador na pequena cómoda ao lado da cama e voltou a sentar-se à frente do computador para terminar os
trabalhos da escola para o dia seguinte. Desligou a luz um pouco antes das dez, mas só conseguiu adormecer era quase meia-noite. Depois acordou devido ao rugido
do motor do Mustang de Carl que subia o caminho de acesso. Ele conduzia sempre muito velozmente quando bebia. Bryoni verificou as horas: passavam dez minutos das
três da madrugada.
Na manhã seguinte, tomou o pequeno-almoço na cozinha com Cookie e depois Bonzo levou-a à escola antes de Carl sair do quarto.
No intervalo a meio da manhã, confiou a cópia da gravação das confissões de Sacha à guarda da sua melhor amiga, Alison Demper. Sabia que, se ela mesma guardasse
a gravação em Forest Drive, Carl acabaria por a encontrar.
- Tens de jurar pela tua vida e pelo que te é mais sagrado, e nunca contares a ninguém que te dei isto - disse a Alison, que ficou intrigada. Alison cuspiu no dedo
como era da praxe, fez o sinal da cruz sobre o coração e jurou pela sua vida.
Após as aulas, Bryoni alegou uma dor de cabeça e foi dispensada do curso extracurricular de arte. Foi diretamente para casa e esperou que Carl chegasse do seu trabalho
na sede da Bannock Oil. O irmão costumava parar no Troubadour Inn para beber uma cerveja com os amigos, mas nessa tarde regressou a casa no ruidoso Mustang um pouco
antes das sete.
Bryoni estava sentada na conversadeira do seu quarto. Debruçou-se sobre a janela e chamou-o enquanto ele saía do carro e fechava a porta. - Olá, Carl! Gostava de
falar contigo se tivesses uns minutinhos. Podes vir ao meu quarto, por favor?
- Vou já, mana. Ouviu-o subir as escadas e depois a batida na porta do seu quarto. - A porta está aberta - disse-lhe. Ele abriu-a e deteve-se à entrada. - Que se
passa, mana? Bryoni estava sentada na beira da cama, mas tinha arrastado a poltrona para o centro da divisão, para ele se sentar.
- Entra, Carl. Senta-te. Quero falar-te da Sacha. Ele fechou a porta e avançou para a poltrona. Sentou-se. apoiando uma das pernas sobre o braço da poltrona. - E
então. que se passa com a Sacha? Agora anda a ver homenzinhos verdes lá de Marte ou crê que se transformou finalmente num urso polar cor-de-rosa? - Riu-se da sua
própria piada.
- Ouve isto, por favor. - Mostrou-lhe o gravador. - Não me digas que é a tua música de rap preferida, acertei? Bryoni não conseguiu responder-lhe, pois odiava-o
com todas as suas forças. Ligou o gravador e pousou-o em cima da mesinha de cabeceira.
Fez-se silêncio enquanto o gravador rebobinava a fita e depois ouviu-se a voz de Sacha. Carl soube de imediato que era ela. Endireitou-se, tirou a perna de cima
do braço da poltrona e pousou ambos os pés no soalho.
"Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar dentro da minha boca. Tinha um sabor horrível", disse Sacha. Bryoni viu e irmão estremecer e fixar os olhos
na janela, como se procurasse uma via de fuga. Mas depois voltaram a recair sobre o gravador enquanto Sacha prosseguia.
"Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito."
Bryoni pegou no gravador e fez avançar a fita alguns segundos. Depois premiu o botão de reprodução e pousou de novo o gravador na mesinha. A voz de Sacha soava mais
firme e mais madura quando voltou a falar.
"...foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura
dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito
para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?"
"Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas."
Bryoni desligou o gravador e, no silêncio que se seguiu, perguntou em voz calma: - Achas que fizeste bem, Carl?
A boca dele movia-se, mas sem formular nenhuma palavra. Limpou a cara à manga do blusão e olhou depois para a mancha de suor no tecido fino.
Levantou-se de um salto, abruptamente, e agarrou no gravador pousado na mesinha e, no mesmo movimento contínuo, atirou-o contra a porta da casa de banho de Bryoni.
O aparelho desfez-se em pedaços. Carl atravessou a divisão com passos rápidos e decididos e esmagou os restos sob os sapatos.
As mãos tremiam-lhe e todo o seu corpo era sacudido por convulsões quando se virou para Bryoni.
- Aquela gaja! Aquela putazinha imunda! Tu mais a cabra da tua irmã inventaram isso tudo! Confessa: estás tão louca como ela. Vocês as duas têm é ciúmes de mim.
Estão a tentar desacreditar-me aos olhos do meu pai. Mas o meu pai adora-me.
- O teu pai era um criminoso de guerra nazi - disse Bryoni numa voz serena. - O teu pai era um homem chamado Kurtmeyer que matou pessoas nas câmaras de gás e tinha
uma rede de bordéis. És bem a semente podre do teu pai, Karl Kurtmeyer. - É mentira! Inventaste isso! És uma cadela mentirosa! - gritou-lhe. - Não inventei nada
- replicou Bryoni sem levantar a voz. - A nossa mãe contou-me tudo acerca do teu pai numa tarde em que se embebedou de gim.
- É mentira! O meu pai é Henry Bannock. Sou o seu único filho varão. Ele ama-me e sou o herdeiro dele. Tu e a putazinha imunda da tua irmã têm mas é ciúmes de mim.
Querem-lhe envenenar a cabeça contra mim. É por isso que estás a dizer todas essas mentiras horríveis sobre mim.
- Não estamos a pôr ninguém contra ti. Foste tu que maltrataste e humilhaste a tua própria irmã. Obrigaste-a a fazer coisas terríveis e nojentas e depois violaste-a
e puseste-a louca.
- Tudo mentiras! - gritou-lhe. - O meu pai nunca vai acreditar nas vossas mentiras. - Vai acreditar, vai, quando ouvir a gravação que fiz. - Bryoni levantou-se da
cama e confrontou-o com serenidade.
Carl girou sobre os calcanhares e correu para junto das peças desfeitas do gravador. Deixou-se cair de joelhos e começou a juntá-
-las, enfiando-as depois nos bolsos. - Já não há gravador - disse. - Foi-se. - Nunca existiu. Não passou tudo da fantasia de uma rapariga louca.
- Fiz uma cópia - disse Bryoni. Car levantou-se e avançou para ela com um ar ameaçador. - Onde está?
- Está num lugar onde nunca a vais conseguir encontrar.
- Dá-ma. - Nunca! - silvou Bryoni. Carl esbofeteou-a com força, fazendo-a desequilibrar-se e cair sobre a cama. Bryoni levantou-se, apoiada nos cotovelos; escorria-lhe
sangue da boca para o queixo. Rosnou-lhe através dos lábios ensanguentados, feroz como uma leoa ferida: - Nunca!
A visão do sangue luzidio inflamou-o. O sangue sempre tivera esse efeito nele. Precipitava-o para lá da fronteira da razão. Lançou-se sobre ela e imobilizou-lhe
os ombros contra a cama. Tinha mais do dobro da idade dela, e mais do dobro do peso. A sua força era esmagadora. Rasgou-lhe as roupas e grunhiu: - Vou-te ensinar
uma lição acerca do que é o respeito. A mesma lição que ensinei à louca da tua irmã.
Bryoni gritou, mas ele cerrou os dedos da mão esquerda à volta da garganta dela e apertou-lha com força, enquanto usava a outra mão para lhe baixar as cuecas e forçar
um dos joelhos entre as coxas dela. - Podes gritar quanto quiseres. Ninguém te vai ouvir. Ninguém te vai ajudar. Ninguém vai acreditar em ti. - A voz soava enrouquecida
de luxúria. - Tenho de te ensinar a ter respeito.
Desprendeu a fivela do cinto e abriu a braguilha com tal violência que um dos botões se soltou. Tinha-a agora sujeitada debaixo de si, pele nua contra pele nua.
A parte inferior do corpo infantil dela e a púbis estavam completamente desprovidas de pelos. A vagina de Bryoni era um fruto ainda por amadurecer: minúscula, apertada
e seca. Mas ele penetrou-a à força. Num paroxismo de dor, Bryoni enterrou-lhe os dentes no ombro. Carl insultou-a e libertou a mão que lhe apertava a garganta para
a obrigar a abrir a boca. Agora estavam ambos a sangrar. Bryoni lançou a cabeça para trás e gritou e uivou enquanto ele continuava a penetrá-la com violência.
Cookie, que estava na cozinha por baixo do quarto, ouviu os gritos dela e chamou Bonzo Barnes, o motorista, aos berros. Ambos subiram as escadas a correr e irromperam
pelo quarto de Bryoni no preciso momento em que todo o corpo de Carl se contorcia nos espasmos e gemidos do êxtase orgástico por cima do corpo franzino e seminu
de Bryoni.
Bonzo arrancou Carl de cima da irmã e lançou-o ao chão. - Que estás a fazer, pá? Ela não passa de uma criança! É a tua irmãzinha, pá! O que é que te passou pela
cabeça, homem? - gritou-lhe Bonzo. Agarrou em Carl pela garganta e sacudiu-o como se fosse um rato.
- Não lhe faças mal, Bonzo! - gritou-lhe Cookie. - A polícia ocupa-se dele. - Bonzo largou-o no chão e Carl soergueu-se.
- Não, não chamem a polícia - implorou em desespero. - O meu pai chega a casa amanhã. Ele vai tratar de tudo. Ele paga-te... - Fecha essa boca, seu porco. És pior
que um animal. Estou-te a avisar, pá - rosnou-lhe Bonzo.
Bryoni estava a chorar, desesperada de dor e em choque. Cookie agarrava-a contra o peito e sussurrou-lhe: - Pronto, acalma-te, minha menina. Ele já não te vai fazer
mais mal. Agora estás segura.
Estendeu o braço e levantou o auscultador do telefone em cima da mesinha de cabeceira e ligou para as emergências. A chamada foi atendida quase de imediato.
- Uma menina acabou de ser violada aqui. Está a sangrar muito. Apanhámos o pervertido que lhe fez isso. Mandem vir a polícia.
Os polícias de uniforme azul chegaram em duas viaturas de patrulha, menos de vinte minutos depois. Ouviram o que Cookie e Bonzo tinham para dizer e depois viraram-se
para Bryoni.
Bryoni levantou-se da cama onde Cookie a deitara. Virou-se para os agentes. Tinha as roupas rasgadas e manchadas de sangue. O rosto estava inchado e um dos olhos
ficara negro e meio fechado. Não parava de tremer.
Deu um passo para junto do sargento da polícia, mas um leve fio de sangue serpenteou por baixo da saia e escorreu pela coxa. Bryoni deixou escapar um gemido e agarrou
o baixo-ventre com as duas mãos. Dobrou-se lentamente e caiu de joelhos. Cookie levantou-a e abraçou-a contra o peito.
- Meu Santo Deus! - exclamou o sargento. - Enfiem as algemas nesse triste cabrão e levem-no para a esquadra.
Os seus homens agarraram Carl e torceram-lhe os braços atrás
das costas. - Calma lá, porra - protestou Carl. - Não é preciso tanta violência.
- Da mesma forma que não precisaste de usar tanta violência com aquela rapariguinha? - perguntou-lhe um dos agentes enquanto lhe fechava as algemas nos pulsos. Depois
olhou para o sargento. - O prisioneiro está a resistir à detenção, sargento. Será melhor enfiarmos-lhe também as correntes nas pernas, não vá dar-se o caso. O sargento
anuiu com a cabeça e depois virou-se para Cookie.
- Precisamos de levar esta criança ao hospital. Precisa de ser vista por um médico.
Cookie envolveu os ombros de Bryoni com um cobertor. Bonzo pegou nela e levou-a a correr para uma das viaturas da polícia.
59
Ronald Bunter telefonou a Henry Bannock que estava nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. A voz de Henry soava muito ensonada.
- Espero bem que me estejas a ligar por uma boa razão. São três da madrugada aqui.
- Desculpa-me, Henry, mas tenho notícias para te dar. Mas não é coisa boa - disse-lhe Ronald. - Na verdade, não podiam ser piores. Está aí alguém contigo?
- Claro que sim. Pensas que sou algum monge? - Ela não precisa de ouvir isto. - Espera um segundo. Vou sair do quarto. - Ouviu-se uma breve troca de palavras entre
Henry e a sua misteriosa companhia, houve uma pausa e depois Henry disse: - Pronto, Ronnie. Estou sentado na sanita e com a porta fechada. Conta lá.
- O Carl Peter foi preso. - Oh, não! Aquele pestinha - lamentou-se Henry. - O que foi desta vez? Excesso de velocidade? A conduzir embriagado?
- Quem dera que fosse isso, meu velho amigo. Infelizmente. é muito, muito pior.
- Vá lá, Ronnie! Deixa-te de rodeios! Desembucha lá! - Acusaram-no de vários delitos diferentes. Os mais graves são estupro, abuso de menor, agressão sexual agravada,
delito de agressão e ofensas corporais graves, maus-tratos, incesto e corrupção de menor. Ainda estão a investigar e a interrogar as testemunhas, mas avisaram-nos
que ainda poderia haver outras acusações, de agressão sexual agravada continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos. Alguns destes delitos são puníveis
com a pena de morte no Estado do Texas.
Seguiu-se um demorado silêncio, quebrado apenas pelo crepitar da estática. - Está lá? Está lá? Ainda estás aí, Henry? - Sim, continuo aqui. Estou a pensar. - A sua
voz soava desolada. - Dá-me alguns segundos, Ronnie. - Depois perguntou: - Quem são as vítimas que ele é acusado de violar?
- Lamento muito, Henry! Essa é a parte pior. É acusado de violar a Sacha e a Bryoni.
- Não posso crer! - disse Henry baixinho. - Só pode ser um engano. Não pode ser verdade. Não acredito nisso. A Bryoni é a minha menina.
Ronald quis dizer-lhe "A Sacha também é a tua menina", mas conteve-se. Não era sua intenção agravar o sofrimento do seu velho amigo.
- Vamos lutar contra isto, Ronnie. Vamos lutar contra isto com todas as nossas forças, estás a ouvir-me?
- Estou a ouvir-te, Henry. Mas pensa só nisto por um momento. Eles têm o testemunho das tuas duas filhas e de duas testemunhas oculares de confiança, têm amostras
do esperma do Carl Peter tiradas da vagina da Bryoni, misturado com o sangue dela. Têm fotografias das lesões corporais que ele lhe infligiu.
- Meu Deus! - exclamou Henry Bannock. - Que Deus e todos os santos me acudam!
Ronald quase conseguia ouvir os pilares do universo de Henry desmoronarem-se em cima dele. Julgou ouvi-lo chorar, mas não era possível. Chorar não. Henry nunca chorava.
- Achas que ele fez aquelas coisas, Ronald? - Sou advogado, não me cabe fazer julgamentos. - Mas achas que ele é culpado, não achas? Não me fales como meu advogado.
Fala comigo como o meu melhor amigo.
- Como teu advogado, não sei nem me importa. Como teu amigo, importa-me muito, e acho que o teu filho é culpado como tudo.
- Ele não é meu filho! - disse Henry. - Nunca foi meu filho. Tenho andado a enganar-me estes anos todos. É filho de um perverso cabrão nazi que a certa altura decidi
acolher sob a minha proteção. - Será melhor voltares para casa, Henry. Precisamos de ti aqui. As tuas duas meninas precisam muito de ti aqui.
- Vou partir de imediato! - disse Henry.
60
- Ouve bem o que te digo, Ronnie. - Henry inclinou-se sobre a escrivaninha e apontou o dedo a Ronald Bunter. - Quero aquele violador nazi cabrão riscado da lista
de beneficiários do meu Fundo Fiduciário, e não quero que o meu Fundo tenha de pagar os honorários dos advogados para o defenderem do crime de violar as minhas duas
filhas. Já falei com a Bryoni e mais culpado ele não podia ser. Quero-o ver pendurado na forca. Ronald girou na cadeira, uniu as pontas dos dedos e alçou o olhar
para o teto, como se procurasse ajuda e orientação lá no alto.
- Como bem sabes, já falámos disto muitas vezes, Henry. No entanto, vou responder em separado aos teus três desejos, pela mesma ordem que os expressaste. - Sentou-se
direito na poltrona, pousou os cotovelos na escrivaninha e olhou Henry diretamente nos olhos.
- Em primeiro lugar, foste tu que colocaste o Carl Bannock na lista de beneficiários e trataste de assegurar que ninguém o pudesse remover dessa lista. Ninguém o
pode fazer: nem eu, nem tu, nem o Supremo Tribunal de Washington. Estou de mãos atadas, e foste tu que mas ataste. Em segundo lugar, não queres que o Fundo Fiduciário
pague a defesa jurídica dele. Os mandatários, entre os quais eu próprio, não têm opção nessa matéria. Deixaste perfeitamente claro na escritura do Fundo Fiduciário,
que tu próprio assinaste, que somos obrigados a pagar todas as despesas para o proteger de quaisquer ações judiciais instauradas contra ele por qualquer pessoa ou
qualquer governo, seja pelo Departamento de Justiça ou pelo Departamento das Finanças. Está fora do nosso alcance. O Carl pode escolher a sua própria equipa de defesa
e o Fundo Fiduciário tem de pagar essas custas.
- Mas ele violou as minhas filhas - protestou Henry. - Nunca incluíste nenhuma exceção para essa eventualidade - frisou Ronald. - Por último, acabaste de expressar
o desejo de ver o Carl pendurado na forca. Isso nunca vai acontecer. O Estado do Texas aboliu a execução por enforcamento em 1924. O melhor que te posso oferecer
é uma injeção letal.
- Dou-me conta agora de que criar aquele Fundo Fiduciário foi o maior erro da minha doce vida.
- Volto a discordar de ti, Henry. O teu Fundo Fiduciário é um excelente instrumento. O sentimento que lhe subjaz é nobre. Assegura que à Marlene, à Sacha e à pequena
Bryoni, bem como a todos os seus próprios filhos e futuras esposas e respetiva prole, nunca faltará nada que o dinheiro possa comprar. És generoso e és um grande
homem, Henry Bannock.
- Aposto que dizes isso a todos os teus clientes.
61
O julgamento de Carl Peter Bannock prolongou-se por vinte e seis sessões judiciais.
As deliberações preliminares do júri de acusação ocuparam quatro dessas sessões, no final das quais foi apresentada uma acusação formal equivalente a uma acusação
de delito grave. O caso foi atribuído a um tribunal e o processo legal foi iniciado.
O juiz era Joshua Chamberlain, um homem na casa dos sessenta. Era um democrata empenhado e tinha a reputação de ser pedantesco e meticuloso. Durante quase vinte
anos como juiz, nenhum dos seus julgamentos fora alguma vez anulado no âmbito de um recurso, o que era em si mesmo um feito notável.
Em consonância com as suas crenças liberais, tinha condenado à morte menos de três por cento dos casos de pena capital que tinham comparecido perante si.
A procuradora do Ministério Público era Melody Strauss. Embora tivesse quase quarenta anos, já tinha defendido muitos casos extremamente complicados que lhe granjearam
uma reputação sólida. Foram-lhe atribuídos dois assistentes jurídicos.
A equipa da defesa compreendia cinco dos advogados mais caros do Estado do Texas. Tinham sido selecionados com grande cuidado pelos representantes do arguido. O
total dos seus honorários custavam ao Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock um montante que ascendia a um pouco mais de duzentos mil dólares por dia.
A primeira fase do processo consistia em escolher e ajuramentar os doze membros do júri de entre as cinquenta possibilidades apresentadas. Essa incumbência demorou
mais de uma semana, pois a defesa esforçou-se por excluir o maior número possível de mulheres. Usaram todas as dez recusas imotivadas para descartarem possíveis
jurados do sexo feminino e depois interrogaram persistentemente as restantes mulheres sobre a sua posição em relação à pena de morte, à provocação feminina e à instigação
à violação.
Melody Strauss enfrentou os elementos da equipa de defesa com grande determinação e rebateu-os com igual resolução. Esforçou-se por reter o maior número possível
de mulheres na lista final de jurados. Melody era perspicaz e persuasiva. Interrogou rigorosamente todos os candidatos masculinos para detetar quaisquer tendências
machistas. Reservou todas as suas recusas imotivadas para eliminar da lista apenas os candidatos masculinos que revelavam indícios dessas inclinações. No final,
conseguiu lograr um resultado equilibrado, com um número igual de homens e mulheres no júri.
Na décima sessão do julgamento, Melody Strauss apresentou o caso pela acusação e deparou com uma série de objeções por parte da defesa. Desde o início que contestaram
a capacidade de Sacha Jean Bannock depor, em razão da sua condição mental. Ambas as partes chamaram testemunhas-peritos. Melody Strauss chamou dois membros do pessoal
médico do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms que tinham tratado de Sacha ao longo de muitos anos. Ambas declararam que nos últimos tempos Sacha demonstrara uma melhoria
manifesta e contínua em termos de memória. Atribuíram esses progressos à influência da sua irmã mais nova, Bryoni Lee, e à catarse que experienciara depois de ter
recordado um acontecimento traumático, ou uma série deles, ocorrido na sua infância.
Submetidas a interrogatório, depuseram adicionalmente que os sintomas e a condição mental de Sacha eram um exemplo clássico dos efeitos de contínuos abusos sexuais
agravados na infância.
O perito chamado pela defesa era um professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Depôs que tinha examinado Sacha
e deu a sua opinião de que ela não era capaz de prestar depoimento sob juramento porque não compreendia o significado desse ato. Declarou ainda que qualquer testemunho
que ela pudesse prestar não seria minimamente fiável e que esse processo seria tão traumático para ela que corria um grande risco de vir a sofrer de danos mentais
permanentes em resultado dessa experiência. Melody solicitou ao juiz uma autorização especial para que Sacha pudesse depor nos aposentos dele, com a defesa e o júri
na sala contígua a assistirem e a ouvirem através do circuito televisivo fechado sem que Sacha se apercebesse dessas presenças. Após um aturado debate, o juiz Chamberlain
recusou o pedido.
Melody rogou então ao juiz autorização para fazer escutar ao júri a gravação que Bryoni fizera quando Sacha falara do seu relacionamento com o irmão Carl.
Este pedido desencadeou de novo uma onda de objeções por parte da defesa e o juiz Chamberlain voltou a recusar o pedido da acusação.
Restou a Melody uma última escolha decisiva. Poderia contrariar as probabilidades e chamar Sacha Jean ao banco das testemunhas, ou poderia retirar a acusação de
"agressão sexual agravada
continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos". E ir a julgamento unicamente com o depoimento de Bryoni Lee sobre a violação de que fora vítima.
Melody Strauss consultou Bryoni Lee Bannock para um aconselhamento final. Ambas tinham desenvolvido uma relação especial
durante o curto período de tempo desde que se tinham conhecido. Bryoni começara a gostar e a confiar em Melody, e esta ficara impressionada com a maturidade, coragem
e bom senso de Bryoni. Ficara sobretudo profundamente comovida com a sua lealdade e dedicação a Sacha, e com a sua compreensão intuitiva das razões subjacentes à
perturbação mental da irmã.
- Como reagirá a Sacha se eu a interrogar à frente de todas aquelas pessoas acerca daquilo que o Carl lhe fez? - perguntou a Bryoni. - Atira-se logo ao chão e encolhe-se
toda, e depois põe-se a chuchar o polegar e a bater com a cabeça no chão, e vai para um mundo dos sonhos só dela.
No dia seguinte, de forma a proteger Sacha, Melody Strauss retirou formalmente a acusação de "agressão sexual agravada continuada contra menor".
Instigada por este fracasso parcial, Melody apresentou, com um vigor renovado, as outras acusações contra Carl Bannock, com o objetivo de conseguir a pena máxima
possível.
Chamou Bryoni a depor. A defesa levantou uma nova onda de protestos: que Bryoni era uma criança imatura, que não compreenderia as questões que lhe seriam colocadas,
que era incapaz de fornecer um depoimento plausível e significativo.
O juiz Chamberlain anunciou uma suspensão de duas horas para ponderar as objeções. Falou a sós com Bryoni nos seus aposentos e, quando voltou para a sala de audiências,
disse ao júri: - Esta jovem menina demonstrou-me mais inteligência e maturidade do que muitas das pessoas de trinta e quarenta anos que já se apresentaram perante
mim neste tribunal. A objeção da defesa é recusada. A Menina Bryoni Lee Bannock pode ocupar o seu lugar no banco das testemunhas. Foi no banco das testemunhas que
John Martius, o principal advogado da defesa, se esforçou por lhe destruir a credibilidade.
Melody Strauss tinha preparado Bryoni para a provação e instruíra-a sobre como deveria comportar-se enquanto se encontrasse no banco das testemunhas, e que tipo
de perguntas poderiam fazer-lhe. "Dá respostas curtas e diretas", dissera ela. "Não deixes que te distraiam."
Durante o depoimento, Bryoni comportou-se como uma veterana. Respondeu de forma firme e educada a todas as perguntas.
- Quando foi a primeira vez que suspeitaste que a tua irmã tinha sido molestada sexualmente? - perguntou-lhe Melody.
- Quando ela me avisou para não deixar ninguém tocar-me nas partes íntimas, pois iriam magoar-me. Foi então que tive a certeza de que alguém lhe tinha feito isso
a ela.
- Objeção! Não passa de uma suposição! - John Martius tinha-se levantado de imediato.
- Objeção indeferida - disse o juiz Chamberlain. - Ela disse quem lhe tinha feito isso?
- De início não, mas quanto mais ela falava, mais se ia lembrando. Acho que ela estava a tentar esquecer as coisas feias que lhe tinham acontecido.
- E no final ela acabou por se recordar do nome? - Sim, minha senhora. Lembro-me das palavras exatas. Ela disse: "Agora lembro-me que foi o meu irmão Carl que foi
nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou.
Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito para não contar."
- Objeção! - uivou John Martius. - É testemunho em segunda mão de algo que ouviu dizer!
- Objeção indeferida - disse o juiz. - A testemunha está a descrever uma conversa na qual participou. O júri tomará em conta essa resposta.
Melody Strauss passou a abordar os acontecimentos depois de Bryoni ter confrontado Carl Bannock com as gravações que fizera de Sacha a descrever a série de agressões
de que fora vítima.
- Objeção! Não foi confirmada a proveniência das alegadas gravações e foram excluídas das provas - interpôs John Martius.
- Senhora Strauss? - disse o juiz, convidando-a a refutar. -- Meritíssimo, não estou a tentar apresentar as gravações como prova, estou a usá-las meramente como
uma referência temporal em relação aos acontecimentos dessa tarde.
- Objeção indeferida. Pode continuar, menina Bannock. Bryoni descreveu a agressão de Carl sobre a sua pessoa. - Exigiu que lhe dissesse o que tinha feito com a cópia
da gravação daquilo que a Sacha me tinha contado. Recusei-me a dizer-lhe. Depois bateu-me na cara e empurrou-me para cima da cama.
- Causou-te alguma lesão? - Fiquei com o olho esquerdo inchado e negro. Sangrava do nariz e tinha um dos lábios cortado, e foi por isso que fiquei com a boca cheia
de sangue.
Os membros femininos do júri arquejaram de surpresa, murmurando e trocando olhares horrorizados entre si.
Sentado na primeira fila na galeria do público, Henry Bannock olhou de semblante carregado e furibundo na direção do enteado, no banco dos acusados. Estivera ali
sentado durante todas as horas de cada dia do julgamento, na esperança de que a sua presença pudesse dar força e coragem a Bryoni durante a sua provação.
- Depois de ele te ter batido e de te ter empurrado para cima da cama, o que aconteceu depois, Bryoni? - perguntou-lhe Melody Strauss.
- O Carl disse-me que me ia ensinar o que era ter respeito, tal
como tinha feito à minha irmã Sacha.
- Quando dizes "Cari", estás a referir-te ao teu irmão, Carl Bannock, o arguido?
- Correto, minha senhora. John Martius apressou-se a intervir. - Objeção! Carl Bannock não é irmão da testemunha.
- Permita-me corrigir. - Melody Strauss foi igualmente rápida. - Eu deveria ter dito "meio-irmão". Essa relação também é abrangida na definição de incesto no Código
Penal do Estado do Texas. - Objeção! - Retiro esse comentário e reservo-o para a minha exposição final. - Melody voltou a virar-se para Bryoni. - E que fez depois
o arguido? - Pôs-se em cima de mim e abriu-me a roupa. - Tentaste resistir-lhe? - Fiz tudo para lhe resistir, mas ele era muito maior e mais forte que eu, minha
senhora, e estava atordoada do golpe que ele me tinha dado.
- Que aconteceu depois de ele te abrir a roupa? - Tirou o pénis para fora... Sentado à mesa da defesa, Carl Bannock tapou a cara com ambas as mãos e começou a chorar
alto. John Martius levantou-se de um salto.
- Meritíssimo, o meu cliente está assoberbado com estas acusações. Peço a sua compreensão e solicito uma pausa para que ele possa recompor-se.
- Senhor Martius, é por de mais evidente que o seu cliente é um indivíduo resistente e determinado. Tenho a certeza de que ele consegue aguentar um pouco mais. A
testemunha pode responder
pergunta. - Ele tirou o pénis para fora e meteu-o à força dentro de mim, na minha vagina. - Bryoni engoliu em seco e enxugou os olhos. - Doía-me tanto. Foi a pior
dor que já senti. Gritei e lutei, mas ele não parava de enfiar aquilo dentro de mim. Depois o Bonzo entrou lá e arrancou-o de cima de mim, mas a dor não parou e
reparei que estava a sangrar da vagina. A Cookie entrou lá e abraçou-me e disse-me que não precisava de ter medo e que o Carl nunca mais me voltaria a fazer mal.
Ela disse que não ia deixar ninguém voltar a fazer-me mal. - Bryoni afundou-se no banco e enterrou a cara nos braços, abalada por soluços entrecortados.
- Não tenho mais perguntas a fazer, Meritíssimo - disse Melody Strauss em voz baixa.
John Martius levantou-se de um salto. - Contrainterrogatório, Meritíssimo.
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã. Deve reservar o seu contrainterrogatório para essa altura, senhor Martius.
62
Henry Bannock, Ronnie Bunter e Bonzo Barnes já estavam à espera de Bryoni no exterior da sala de audiências quando ela saiu. Conduziram-na através da multidão de
repórteres e jornalistas amontoados no passeio e que lhe gritavam perguntas. Bryoni manteve-se de cabeça bem erguida e olhou diretamente à sua frente, mas tinha
o rosto pálido como cinza e os lábios tremiam-lhe. Ia agarrada ao braço do pai. Bonzo Barnes seguia à frente para lhes abrir caminho, e a sua corpulência e semblante
carrancudo abriram-lhes alas até à limusina que os esperava.
Nessa noite, Cookie levou o jantar num tabuleiro ao quarto de Bryoni e Henry Bannock sentou-se na beira da cama e falou-lhe enquanto ela comia. Disse-lhe que a amava
muito e que lamentava não ter sido capaz de a proteger a ela e a Sacha. Prometeu que nunca mais deixaria que nada de mal acontecesse às suas duas filhas. Fez-lhe
companhia e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer.
Às dez horas da manhã seguinte, Bryoni voltou a ocupar o banco das testemunhas. A sala de audiências estava a abarrotar e na secção da imprensa já só havia lugares
em pé. Bryoni tinha sido instruída por Melody Strauss e por Ronnie Bunter e ignorou-os por completo, fixando o olhar no pai, que estava na primeira fila na galeria
do público, e em Bonzo e Cookie, sentados três filas atrás.
John Martius levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e postou-se à frente de Bryoni.
- Compreendes que vou fazer-te algumas perguntas, Bryoni? - Sim, senhor. - Importas-te que te trate por tu? - Não, senhor. - Amas o teu irmão Carl? - Objeção! O
arguido não é irmão da testemunha - disse Melody, pagando-lhe na mesma moeda.
- Vou reformular a pergunta - concedeu Martius. - Amas o teu meio-irmão Carl?
- Talvez o amasse dantes, mas não desde que ele me violou a mim e à Sacha. Não o amo, não. - Um burburinho de aprovação varreu a sala de audiências perante estas
palavras. O juiz Chamberlain bateu com o martelo e disse numa voz severa: - Silêncio na sala, por favor.
- Alguma vez lhe pediste para te beijar? - Não, senhor. - Estás a dizer que nunca deste um beijo ao Carl? - Eu disse que nunca lhe pedi para me beijar, senhor. -
Alguma vez o beijaste? - Eu e o Carl só nos beijávamos na face para nos cumprimentarmos ou despedirmos, como toda a gente faz, senhor.
- Alguma vez pediste ao Carl para te beijar na boca, Bryoni? - Não, senhor. Porque faria eu isso? - Limita-te a responder às minhas perguntas, por favor, Bryoni.
Alguma vez enfiaste a língua na boca do Carl quando ele te beijou? - Objeção! A testemunha já depôs que nunca beijou o arguido na boca - interpôs Melody.
- Objeção deferida - disse o juiz Chamberlain. - A defesa retirará a pergunta.
- Pergunta retirada. - Martius inclinou levemente a cabeça na direção do juiz e voltou a concentrar-se em Bryoni. - Alguma vez entraste na casa de banho quando o
Carl estava a tomar duche, Bryoni? - Não, senhor. Tenho a minha própria casa de banho. Nunca fui à casa de banho do Carl.
- Alguma vez entraste no quarto do Carl quando sabias que ele estava a vestir-se?
- Não, senhor. Tenho o meu próprio quarto. Nunca fui ao quarto dele.
- Nunca? - Nunca, senhor. - E que me responderias se te dissesse que o Carl afirma que querias vê-lo tomar duche, e que certa vez foste ao quarto dele à noite e
te enfiaste na cama dele?
- Objeção! Essa pergunta já foi colocada e respondida! A testemunha já depôs que nunca foi à casa de banho do arguido.
- Objeção deferida. A defesa retirará a pergunta. - Retiro a pergunta, Meritíssimo. - Mas estava bastante satisfeito: tinha plantado uma semente de dúvida nas mentes
do júri. Consultou as suas próprias anotações por um momento e depois olhou para Bryoni.
- Alguma vez pediste ao teu meio-irmão Carl se gostaria de ver os teus peitos?
Melody Strauss pareceu prestes a objetar, mas permaneceu em silêncio e deixou Bryoni responder de forma espontânea e eloquente. - Não tenho peitos, senhor. Ainda
não me cresceram. - Pareceu ficar genuinamente perplexa quando dois dos jurados masculinos riram alto, mas era um riso gentil, sem o menor traço de escárnio. Dois
ou três dos jurados femininos franziram a cara, desaprovando a ligeireza dos seus colegas.
Henry Bannock reparou que Melody sustivera deliberadamente a sua objeção. Tinha sido uma decisão astuta. Só esperava que o júri punisse Martius por atormentar uma
criança, sobretudo uma menina tão linda.
Martius tinha corrido um grande risco ao introduzir o elemento da provocação feminina. Sabia que estava a perder a aposta e apressou-se a mudar de tática.
- Sabias que o teu pai tinha uma estima tão grande pelo teu meio-irmão Carl que o adotou formalmente como seu próprio filho, e que depois de o Carl ter se diplomado
com distinção por Princeton lhe ofereceu um trabalho muito bem pago e de grande responsabilidade na Bannock Oil Corporation?
- Sim, senhor, claro que sabia. Toda a gente sabia. - E isso levou-te a pensar que o teu pai amava mais o Carl do que te amava a ti? Ficaste com ciúmes dele? Foi
por causa disso que tu e a tua irmã Sacha resolveram inventar histórias maldosas acerca do Carl?
- O meu pai ama-me, senhor. - Olhou para Henry Bannock e sorriu. - Uma das razões pelas quais o meu pai me ama é que eu lhe disse sempre a verdade. Ele não me amaria
tanto se eu lhe mentisse.
Henry Bannock retribuiu-lhe o sorriso e anuiu com a cabeça, confirmando a declaração da filha. Os seus traços faciais marcados e obstinados suavizaram-se.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, Meritíssimo. - John Martius apercebeu-se de que tinha sido derrotado por uma criança e decidiu retirar-se com uma
certa dignidade.
-- Obrigado, menina Bryoni - disse o juiz Chamberlain. - Foi muito corajosa. Pode ir agora para junto do seu pai.
Henry Bannock veio ao encontro da filha e envolveu-lhe os ombros com o braço, num gesto protetor. Lançou um último olhar corrosivo ao filho adotivo e depois conduziu
Bryoni para fora da sala de audiências. Bryoni agarrou-se a ele e começou a chorar baixinho mas amargamente.
Melody Strauss chamou a sua testemunha seguinte, a Dra. Ruth MacMurray. Era a médica do corpo policial que tinha examinado Bryoni naquele fatídico fim de tarde.
Era uma mulher madura e de cabelos grisalhos, composta e de voz suave.
- Doutora MacMurray, examinou Bryoni Lee na passada tarde de quinze de agosto na sala de emergências no Hospital Universitário de Houston?
Sim. - Pode relatar a este tribunal as conclusões do seu exame nessa altura, doutora?
- A paciente era uma menina pré-pubescente. Apresentava lesões faciais superficiais, consistentes com golpe desferido com a mão. O olho esquerdo apresentava contusão
e inchaço. Também havia uma laceração do tecido mole da boca. Além disso, os dentes incisivo esquerdo e o primeiro pré-molar tinham-se soltado devido ao traumatismo.
- Havia mais alguma lesão corporal? - Sim. Havia extensas equimoses em ambos os antebraços e na garganta.
- O que é que essas equimoses poderiam indicar, doutora? - Poderiam indicar que a paciente fora provavelmente restringida à força pelos antebraços e que, ademais,
lhe tinham apertado a garganta, quer numa tentativa de estrangulação, quer para a impedir de gritar.
- Obrigada, doutora MacMurray. Encontrou mais alguma lesão?
- Os genitais da paciente apresentavam todos os sinais de penetração forçada por via de objeto grande e rígido.
- Seriam essas lesões consistentes com uma possível penetração forçada da paciente menor pelo pénis ereto de um adulto?
- Eram inteiramente consistentes com essa possibilidade. O hímen tinha sido rompido muito recentemente e continuava a sangrar. O períneo entre a vagina e o ânus
tinha sido rasgado e exigiu intervenção cirúrgica. Além disso, havia lacerações internas e rutura da parede vaginal inferior, o que também exigiu intervenção cirúrgica.
- Na sua opinião, eram essas lesões consistentes com a possibilidade de a paciente ter sido violada?
- Na minha opinião, tais lesões eram inteiramente consistentes com violação agravada e penetração forçada dos genitais.
- Chegou a colher amostras do fluido corporal que encontrou na vagina da paciente, doutora?
- Colhi trinta esfregaços vaginais da vagina rasgada. E amostras de sangue da roupa da paciente.
- Quais foram os resultados dos exames patológicos dessas amostras, doutora?
- No caso das amostras colhidas da roupa, foram encontrados dois grupos sanguíneos. Um era AB negativo e o outro O positivo.
- Correspondem ao grupo sanguíneo do arguido e da vítima, doutora? - O grupo sanguíneo de Carl Bannock é AB negativo, e o de Bryoni Bannock é O positivo.
- O tipo O é raro ou comum, doutora? - É o tipo mais comum. Cerca de quarenta por cento dos humanos têm sangue do tipo O.
- E o tipo AB negativo: é raro ou comum, doutora? - É o tipo de sangue mais raro de todos, só um por cento dos humanos o possui.
- Isso significa que existe uma probabilidade de quarenta para um de as amostras de sangue AB negativo pertencerem ao arguido Carl Bannock?
- Não sou corretora de apostas, minha senhora. Não lhe saberia dizer as probabilidades exatas. Direi, no entanto, que existe uma probabilidade muito mais elevada
de que as amostras de sangue AB negativo possam pertencer a Carl Bannock do que a qualquer outra pessoa à face da Terra.
- Obrigada, doutora. A minha pergunta seguinte, doutora, prende-se com as amostras dos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock. Quais foram os resultados
patológicos do exame desses esfregaços?
- Em todos os casos, sem exceção, foi detetada a presença de sangue e de fluido seminal.
- Qual era o tipo, ou tipos, de sangue, doutora? - Unicamente o tipo O positivo. - É o tipo sanguíneo de Bryoni Bannock, correto? - Correto, sim. - Havia mais algum
fluido corporal nos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock?
- Sim, também foi detetada a presença de fluido seminal. - Fluido seminal masculino? O patologista pôde estabelecer uma correspondência com as amostras colhidas
do arguido Carl Bannock?
- O fluido seminal colhido da vagina de Bryoni Bannock deu uma correspondência de oitenta a noventa por cento com as amostras fornecidas por Carl Bannock ao médico
do corpo policial.
- Como é que foi feita a análise comparativa dessas amostras. doutora? - Foram aplicadas três técnicas: o teste RSID, o teste PSA e o teste da fosfatase
- Obrigada, doutora. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe - disse Melody, olhando depois para John Martius na mesa da defesa. - A testemunha é sua.
- Não tenho questões a colocar - disse John Martius sem levantar os olhos do seu caderno de alegações.
O juiz Chamberlain olhou para o relógio da sala de audiências antes de instruir Melody. - Pode chamar, por favor, a sua próxima testemunha, senhora Strauss.
- A acusação chama a senhora Martha Honeycomb. Cookie levantou-se do seu lugar na galeria pública e avançou pela coxia até ao banco das testemunhas. Apesar dos conselhos
de Melody Strauss de que deveria usar roupas discretas, Cookie não resistira à tentação de usar o seu melhor traje e adornos para a ocasião. Usava um minúsculo chapéu
de palha colocado num ângulo desenvolto e um pequeno véu negro sobre um dos olhos. O vestido exibia um estampado de enormes girassóis cujo efeito lhe realçava o
volume do traseiro. Os sapatos brancos, de tacão muito alto. conferiam-lhe um andar um pouco vacilante.
Assim que ela se sentou no banco das testemunhas, Melody Strauss conduziu-a num breve relato da sua relação com a família Bannock.
- Há quanto tempo trabalha para o senhor Henry Bannock' - Desde que saí da escola, minha senhora. - Há quanto tempo conhece Bryoni Bannock, senhora Honeycomb?
Nota de Rodapé: " Teste RSID (Rapid Stain Identification) ou teste de Identificação Rápi-,ia de Mancha, usado frequentemente nos estudos forenses de amostras de
sémei:. Teste PSA (Prostate Specific Antigen) ou teste do A ntigénio Específico da Próstata análise da glicoproteína cuja função é liquefazer o coágulo seminal,
formado após a ejaculação, permitindo a movimentação dos espermatozoides. Fosfatas ácida: enzima cuja presença em grande quantidade é indicativa da presença dr esperma
(o conteúdo desta enzima é de 20 a 400 vezes maior no esperma 3: que em qualquer outro fluido humano).
Fim da Nota.
- Pode chamar-me Cookie, minha senhora. É como toda a gente me chama.
- Obrigada, Cookie. Há quanto tempo conhece Bryoni, Cookie? - Desde o dia em que ela nasceu. Era a coisinha mais linda de se ver. - E Carl, o irmão dela? Há quanto
tempo o conhece? Cookie rodou o seu enorme volume e lançou um olhar fulminante a Carl, sentado à mesa da defesa. - Desde o dia em que ele veio viver para a nossa
casa, e que dia mais triste e lamentável foi, se bem que nenhum de nós o soubesse nessa altura. Todos pensávamos que ele era um bom rapazinho.
- Senhora Procuradora, por favor diga à sua testemunha para se limitar a responder às perguntas.
- Ouviu o que o juiz disse, Cookie? - Peço desculpa, minha senhora. O senhor Bannock também diz que falo de mais.
O juiz Chamberlain tossicou e tapou a boca com a mão para conter tanto a tosse como o sorriso. Melody Strauss foi conduzindo Cookie ao longo dos acontecimentos,
até ao momento em que ela e Bonzo resgataram Bryoni do ataque de Carl e à posterior detenção dele pela polícia.
- Como sabia que o arguido tinha ido ao quarto da irmã no piso de cima? - Eu e o Bonzo tínhamo-lo ouvido subir a rampa de acesso naquele carrão vistoso que o pai
dele lhe tinha dado pelo aniversário. Depois ouvimos a Bryoni chamá-lo para ir ao quarto dela pois queria falar com ele.
- Que aconteceu depois, Cookie? - Ouvimos o jovem Carl subir as escadas a correr e depois a porta do quarto de Bryoni fechar. Ficou tudo muito silencioso durante
muito tempo. Depois, eu e o Bonzo ouvimos o Carl gritar como se estivesse desvairado da cabeça. Eu disse: "Bonzo, é melhor Irmos lá acima ver o que eles andam a
tramar." Mas o Bonzo disse: "Deixa lá, estão só a discutir, como sempre. É melhor deixá-los em paz. Vou polir o Cadillac para quando o senhor Bannock chegar a casa",
e lá foi ele pelas escadas abaixo.
- Portanto, Bonzo deixou-a sozinha na cozinha. E depois, que aconteceu, Cookie?
- Depois houve mais um pouco de silêncio, mas de repente a Menina Bryoni desatou a gritar como se alguém estivesse a cortar-lhe a garganta. Até o Bonzo a ouviu lá
em baixo na garagem. Mas eu gritei-lhe: "Bonzo, é melhor vires cá depressa! Parece-me que aconteceu alguma coisa grave lá em cima." Corremos pelas escadas acima
e o Bonzo atravessa direitinho aquela porta enorme como se fosse de papel. Eu entro a correr no quarto logo atrás dele e vejo o jovem Carl em cima da menina Bryoni
deitada na cama, e vejo-a a lutar com ele como uma louca e a gritar desalmada e ele sempre em cima dela a ter sexo com ela.
- Como sabia que ele estava a ter sexo com ela, Cookie? - Tive rapazes suficientes que mo fizeram a mim nos meus tempos para saber quando um deles está a fazer isso
a outra mulher. senhora Strauss.
- Por favor, continue a contar-nos o que aconteceu de seguida, Cookie. - Bom, o Bonzo ficou possesso como nunca o vi. Também ele adorava a menina Bryoni, como todos
nós. Pôs-se a gritar com o Carl: "O que lhe estás a fazer, pá? Ela é a tua irmãzinha, O que lhe estás a fazer?" e coisas desse género. Depois agarrou Carl e atirou-o
pelo ar. Foi então que vi o Carl com a parte da frente das calças toda aberta e com aquela coisa dele toda dura e espetada à frente, toda suja do sangue da minha
menina, e foi quando também a mim me deu ganas de o matar, mas disse ao Bonzo pra não lhe fazer mal, que deixasse a polícia ocupar-se dele. e devo dizer que a polícia
veio mesmo muito rápido e prendera o Carl, e depois o Bonzo levou a Bryoni pro carro da polícia, pois ela tinha muitas dores e não conseguia andar, e eles lá a levaram
então pro hospital.
- Obrigada, Cookie. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe. O juiz Chamberlain olhou na direção da mesa da defesa. - O advogado da defesa deseja contrainterrogar a
testemunha?
John Martius pareceu prestes a recusar, mas depois levantou-se lentamente.
- Senhora Honeycomb, diz que ouviu Bryoni convidar o arguido a ir ao quarto dela.
- Sim, senhor. Ouvi-a dizer-lhe para ir lá acima, mas não creio que ela quisesse brincar às escondidas com a salsicha daquele porco. Acho que ela ia pô-lo a ouvir
a gravação onde a Sacha dizia o que o Carl lhe tinha feito...
- Meritíssimo! A testemunha respondeu à minha pergunta confirmando que Bryoni Bannock tinha convidado o irmão a ir ao quarto dela. O resto do seu testemunho não
passa de suposições.
- Por favor, não especule, senhora Honeycomb. O júri não tomará em consideração o resto da resposta da testemunha.
- Obrigado, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha. - Martius voltou a sentar-se.
De seguida, Melody Strauss chamou Bonzo Barnes ao banco das testemunhas. Bonzo corroborou cada pormenor do depoimento de Cookie, embora não de forma tão eloquente
e sui generis como ela. fizera.
John Martius colocou uma única questão no contrainterrogatório. - Senhor Barnes, ouviu Bryoni Bannock convidar o irmão Carl a ir ao quarto dela? - Sim, senhor. Ouvi.
- Bryoni costumava receber o irmão Carl no quarto dela e à. porta fechada? - Se ela o fez, nunca a vi nem a ouvi fazer isso, senhor. - Mas não tem a certeza se ela
nunca chegou a estar sozinha com ele no seu quarto?
Bonzo ponderou profundamente na pergunta, com uma expressão sombria no rosto. - Não faz parte do meu trabalho estar de guarda à porta da menina Bryoni a toda a hora
do dia. - Por conseguinte, não sabe se Bryoni Bannock tinha por hábito receber os seus amigos no quarto e à porta fechada? - De uma coisa tenho a certeza, senhor.
Se apanhar qualquer rapaz no quarto dela a tentar fazer-lhe aquilo que o Carl lhe fez, parto-lhe o pescoço. - Obrigado, senhor Barnes. Não tenho mais perguntas para
esta testemunha, Meritíssimo.
Bonzo ergueu-se em toda a sua corpulência e lançou um olhar ameaçador a John Martius. - Sei bem o que me está a tentar fazer dizer, mas a única coisa que vai ouvir
de mim é que a nossa pequena Bryoni é uma boa menina. E parto o pescoço a qualquer um que se atreva a dizer o contrário dela.
- Obrigado, senhor Barnes. - John Martius apressou-se a afastar-se do alcance do braço comprido de Bonzo. - Pode sair do banco das testemunhas. Melody chamou a testemunha
seguinte. Era o sargento Roger Tarantus, do Departamento da Polícia de Houston. Começou por dizer que ele e a sua equipa tinham respondido a uma chamada de emergência
e se dirigiram ao nº 61 de Forest Drive, a residência de Henry Bannock e da sua família, no final da tarde em questão. Melody conduziu-o ao longo de uma descrição
detalhada daquilo com que deparara ao chegar ao local, bem como das ações que tomara. O depoimento do sargento Tarantus tendia a confirmar os depoimentos de todas
as outras testemunhas da acusação, nomeadamente Bryoni Bannock, Bonzo Barnes e Martha Honeycomb.
- Portanto, sargento Tarantus, com base naquilo que viu e ouviu no nº 61 de Forest Drive, prendeu Carl Bannock por violação e vários outros delitos e levou-o para
a esquadra da polícia em Houston, onde o encarcerou, correto?
- Está correto, minha senhora. A equipa da defesa prescindiu de contrainterrogar o sargento, e todas as restantes testemunhas chamadas pela acusação abonaram o bom
caráter de Bryoni Lee. Entre elas encontravam-se os professores de Bryoni e os psiquiatras de Nine Elms que tinham conhecido bem Bryoni ao longo dos tempos em que
ela visitara regularmente a sua irmã Sacha. Um após outro, descreveram Bryoni como uma aluna exemplar e uma criança inteligente, equilibrada e normal.
No contrainterrogatório, a defesa tentou induzir as testemunhas a concordarem que Bryoni tinha um interesse anormal pelo sexo oposto para uma criança da sua idade.
No entanto, essa insinuação foi energicamente contestada por todos eles.
No final, Melody pôde dizer ao juiz Chamberlain: - Não tenho mais perguntas. A acusação terminou a apresentação das provas.
- Estamos prontos para fazer a nossa exposição final ao júri, se estiver de acordo, Meritíssimo. - Obrigado, senhora Strauss. - O juiz virou-se para a mesa da defesa
e perguntou: - A defesa deseja chamar testemunhas em refutação, senhor Martius?
Um burburinho de expectativa apoderou-se da sala de audiências. Todos sabiam que a defesa tinha de chamar o arguido, Carl Peter Bannock, ao banco das testemunhas
para depor em própria defesa. Não o fazer equivaleria a uma admissão da sua culpa. Fazê-lo era um risco calculado.
John Martius levantou-se lentamente, quase com relutância. - A defesa chama o arguido, Carl Peter Bannock, Meritíssimo - disse. Ouviu-se um sonoro suspiro de alívio
e Melody Strauss esboçou um ténue sorriso de expectação, como uma leoa que captasse o odor de uma gazela.
Carl levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e, no silêncio palpável que pairava na sala de audiências, avançou para o banco das testemunhas com um ar profundamente
contrito. Manteve-se de pé no banco, com as mãos enlaçadas à frente e de cabeça curvada. A sua expressão era trágica.
- Pode sentar-se, Carl - disse John Martius. - Obrigado, senhor, mas prefiro ficar de pé - murmurou Carl como um homem destroçado.
- Por favor, diga-nos o que sente face a estas acusações. - Estou completamente devastado. Sinto que perdi a vontade de continuar a viver. Se este tribunal me condenar
à morte, de bom grado aceitarei a pena. - Carl ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da sala, na direção do seu pai adotivo, Henry Bannock, sentado na primeira
fila da galeria do público e virado para ele. - Sinto que desiludi o meu pai. Ele tinha grandes esperanças em mim e tentei estar à altura dessas expectativas, mas
falhei miseravelmente. - Começou a soluçar e enxugou os olhos com a manga. - Estou profundamente arrependido de qualquer mal ou dor que possa ter infligido às minhas
duas queridas irmãs. Sou tão culpado como elas por me terem levado a pecar. Perdoo-lhes e suplico-lhes que me perdoem também. Estou profundamente arrependido.
Henry Bannock bufou de indignação e desviou deliberadamente o olhar daquele espetáculo lamentável.
- É culpado das acusações apresentadas contra si, Carl Bannock? - perguntou John Martius.
- A minha única culpa foi ter sucumbido à tentação e à sedução feminina, ao pecado de Adão e aos embustes de Eva. - A frase era tão teatral e artificiosa que algumas
das pessoas que a ouviram se crisparam.
- Não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha, Meritíssimo. - John Martius sentou-se.
Melody Strauss acercou-se do arguido, como uma leoa a lançar-se de uma emboscada sobre a presa. - Está a insinuar, senhor Bannock, que foi deliberadamente induzido
pelas suas duas irmãs menores a cometer a violação?
- Sinto-me confuso e profundamente angustiado. Tudo isto tem sido um choque terrível para mim. A memória falha-me. Ouvi as acusações lançadas contra mim e creio
que deve haver alguma verdade nelas, mas não me recordo de quase nada disso, minha senhora.
- Como explica, então, que o seu esperma tenha sido encontrado na vagina da sua irmã de doze anos? Pretende fazer-nos crer que foi ela mesma que o colocou ali, senhor
Bannock?
- Deus é minha testemunha e só posso dizer que não sei. Não me lembro de nada disso, mas estou profundamente arrependido de qualquer mal que possa ter feito. - Recomeçou
a chorar.
- Está a insinuar que a sua irmã de doze anos infligiu aquelas equimoses e contusões no próprio corpo? Talvez tenha sido ela a rasgar as próprias partes íntimas
para depois o desgraçar a si, acha isso possível?
- Talvez tenha sido isso o que aconteceu, e, nesse caso, perdoo-lhe, como espero que ela me perdoe a mim.
- Crê o senhor que aqueles doze cidadãos honestos e respeitadores da lei que integram o júri são ingénuos e crédulos ao ponto de acreditarem na sua lengalenga? É
isso que crê?
- Não! Certamente que não acredito nisso. Mas duvido da minha própria memória.
- E quando foi que começou a sentir esse estranho ataque de amnésia, senhor? Foi quando se apercebeu de que ia pagar pelo sofrimento e humilhação que tão prontamente
infligiu às suas jovens irmãs? - Não me lembro. A sério que não me lembro. Melody lançou as mãos ao ar com grande indignação. Era demasiado astuta para insistir
num ponto que já demonstrara de forma tão convincente. Sabia que a defesa tinha pagado um preço alto ao permitir que o seu cliente expressasse o seu arrependimento
em audiência pública, e deu-se por satisfeita.
- Não tenho mais perguntas a fazer ao arguido, Meritíssimo. - Muito bem, senhoras e senhores. - O juiz Chamberlain olhou para o relógio na parede. - São quase quatro
horas. Vou dar a sessão encerrada por hoje e retomamos amanhã, às dez da manhã, para ouvir a exposição final da acusação.
63
A exposição final de Melody Strauss durou quase três horas. Apresentou os factos comprovados perante o júri, com a lógica e a convicção que lhe tinham granjeado
a reputação. O júri e todos os demais na sala de audiências escutaram em absoluto fascínio. A forma como apresentou o caso foi impecável.
John Martius, por seu turno, não tentou refutar as provas nem os testemunhos apresentados. Insistiu na teoria de que o seu cliente tinha sido vítima da sedução e
da cilada das suas duas irmãs. Expôs a teoria de que o motivo das raparigas era fazer Carl cair em desgraça aos olhos de Henry Bannock e substituí-lo nos afetos
paternos. A sua refutação demorou apenas quarenta e oito minutos.
O juiz Chamberlain recapitulou os debates para o júri. Disse-lhes para considerarem cuidadosamente se o arrependimento de Carl Bannock pelos crimes de que era acusado
era sincero ou se não passava de uma má encenação, e se as horríveis lesões de Bryoni Lee teriam sido autoinfligidas ou não.
- Aquelas lágrimas de arrependimento que vimos ontem nos olhos do arguido eram verdadeiras ou seriam talvez de natureza mais sáuria? - perguntou-lhes.
Imediatamente após o almoço, pediu ao júri que iniciasse as suas deliberações.
Henry levou Melody Strauss, Ronnie Bunter e Bryoni a almoçarem no Burger King local, ao fundo da rua. Bryoni e Melody partilharam um cheeseburger duplo. Agora que
a sua provação já estava quase terminada, Bryoni mostrava-se outra vez alegre como um pássaro, mas sem nunca largar a mão protetora do pai, chegando mesmo a sussurrar-lhe:
- O Carl vai ficar todo danado comigo se for para a prisão. Achas que ele virá atrás de mim quando o deixarem sair?
- O Carl vai ficar longe de nós por muito tempo. E vamos tratar de assegurar que nunca mais te possa fazer mal outra vez, meu tesouro.
Quando Henry pediu a conta, já passava das três. Ainda estava a pagar quando um funcionário do tribunal entrou apressado no restaurante.
- O júri já deliberou, senhor Bannock. Estão prestes a anunciar o veredito. Será melhor apressarem-se, senhor.
- Valha-me Deus! Demoraram bastante menos de três horas, o que é ou muito bom sinal ou muito mau sinal - opinou Ronnie Bunter. - Vamos lá embora daqui. - Henry agarrou
a mão de Bryoni e apressou-a ao longo da rua até ao edifício do tribunal. A sala de audiências estava a abarrotar e a secção da imprensa incluía repórteres de lugares
tão longínquos como a cidade de Nova Iorque e Anchorage, no Alasca.
64
Hector Cross havia dado ordens para não ser incomodado. Tinha transferido todas as chamadas do exterior para o gabinete de Agatha em Abu Zara. Estava tão profundamente
absorto no manuscrito de "A Semente Envenenada" que só dera conta das horas quando ouviu duas leves batidas discretas na porta do estúdio.
Foi bruscamente arrancado de um outro tempo e de um lugar distante para o momento presente. Estivera tão absorvido pelo relato de Jo Stanley que ficou um pouco desorientado
por alguns segundos. Olhou para a janela e reparou que o crepúsculo já tinha caído. O dia transcorrera com grande celeridade. Já não comia desde o pequeno-almoço
e subsistira à base de chávenas de café que ele mesmo preparara. E praticamente nem se dera ao trabalho de ir à casa de banho contígua ao estúdio.
Levantou-se da cadeira de um salto e avançou com rapidez para a porta. Abriu-a e ali estava ela, a sorrir-lhe. Vestia um dos roupões de veludo frisado branco e estava
descalça. Tinha o cabelo molhado, apanhado num puxo no cocuruto. O duche apagara-lhe os últimos vestígios de maquilhagem e a pele reluzia. Parecia tão jovem como
uma colegial. Dormira manifestamente bem, pois os olhos cintilavam. As íris verdes eram como a água do mar sob o sol tropical: verde-mar e serenas.
- Vamos ficar aqui a olhar um para o outro a noite inteira, ou vai-me convidar a entrar no seu covil?
- Perdoe-me. Quase me tinha esquecido de como é bela. - Viu-me há cerca de seis ou sete horas. - Já foi há tanto tempo? - Estava genuinamente surpreendido e verificou
as horas no relógio de pulso. - Tem razão. Tenho de aprender a não discutir consigo. - Deu-lhe a mão e convidou-a a entrar. - Peço que me desculpe por me ter esquecido
de si. Mas a culpa é toda sua, devo dizer-lhe. Hipnotizou-me com o seu talento literário. Deixou-me completamente preso ao rexto.
- Seu adulador fingido! - disse ela, mas dirigiu-lhe um sorriso de prazer genuíno.
- Sente-se, por favor. - Acompanhou-a até à poltrona de couro. Ela sentou-se, recolhendo as pernas sob o corpo. Depois esticou a ponta do roupão em redor delas quando
se apercebeu de que ele estava a olhar. Eram pernas encantadoras, reparou Hector. - Que fez durante este tempo todo em que estive tão ocupado que até me esqueci
de si?
- Dormi maravilhosamente durante três ou quatro horas. Depois aproveitei-me do seu ginásio. Encontrei um fato de treino lá no armário que ficou a servir-me depois
de enrolar as mangas e as pernas das calças. Mudei todas as configurações das suas máquinas de exercício, pelo que espero que me desculpe.
Hector abanou a cabeça e riu-se. - Fez muito bem. - Depois fiz uma sauna e lavei o cabelo. Usei todos os produtos femininos Hermes e Chanel que encontrei na casa
de banho dos hóspedes e fiquei contente ao reparar que nenhum deles tinha sido aberto por visitas anteriores.
- A Jo é a minha primeira hóspede. - Sou ingénua quanto baste para acreditar em si. Talvez porque assim quero crer.
- Juro pela minha alma! Mas já comeu? - Não tinha fome. Estava demasiado ocupada a explorar. - Oh, meu Deus! Ainda morre à fome e nunca me perdoarei por isso. Tem
duas opções. A Cynthia, a minha chef, é a melhor cozinheira de Londres, e possivelmente do universo inteiro. O Ivy Club só lhe fica atrás por um triz.
- Ambos temos estado enfiados o dia todo aqui dentro de casa. por mais encantadora que seja. Talvez fosse melhor irmos jantar fora - disse ela, mas ao mesmo tempo
afastou os olhos com recato.
Hector já a conhecia o suficiente para intuir aquilo a que ela pretendia aludir realmente: que era demasiado cedo para passar a noite em retiro íntimo com ele.
- Vamos então ao Ivy. É um ambiente bastante relaxado quanto ao código de vestuário. Mas se quiser mudar de roupa, posso passar pelo seu hotel.
- Obrigada, Hector. Acho que seria melhor. - Vou vestir algo mais apropriado enquanto volta a vestir-se. e depois espero por si no carro à entrada do hotel enquanto
troca de roupa. Ficou impressionado pelo facto de ela o manter à espera apenas vinte minutos, e por voltar envergando roupas discretas mas elegantes. - Perfeito!
- comentou ele enquanto lhe abria a porta do Bentley. - Está de arrasar.
- Essa expressão soa estranha a quem é do outro lado do Atlântico, mas vou encará-la como um elogio.
Deu-lhe o braço enquanto cruzavam a entrada que fazia lembrar a loja de uma florista e subiram no imponente elevador panorâmico. As jovens empregadas na receção
rodearam Hector de atenções enquanto recolhiam os casacos de ambos, e uma delas acompanhou-os num outro elevador até à sala de jantar.
- Por acaso é dono deste sítio? - sussurrou-lhe Jo. - Aonde quer que uma pessoa vá neste mundo perverso, uma gorjeta decente faz sempre milagres - disse.
- Suponho que também ajuda quando se tem um aspeto como o seu.
- Espero que não seja alérgica ao champanhe - disse et
enquanto se sentavam à mesa.
- Ponha-me à prova! - desafiou-o Jo. Depois de saborearem e aprovarem tanto o vinho como o primeiro prato, Jo fez a pergunta que tivera na ponta da língua desde
que saíram de The Cross Roads.
- E agora, diga-me: até que parte leu a minha história? - perguntou. - Cheguei à parte em que o Henry e a Bryoni estão à espera de ouvir o veredito do júri sobre
aquele cabrão merdoso do Carl Peter Bannock. Perdoe-me a linguagem, mas você fez-me odiá-lo.
- E tem toda a justificação para isso. Acho que o Carl Bannock é uma daquelas pessoas malignas até ao âmago e sem qualquer possibilidade de redenção.
- E onde está agora essa criatura monstruosa? - Leia o que escrevi, Hector. Não tente saber o fim da história antes de lá chegar. Se o fizer à minha maneira, compreenderá
muito melhor as personagens em jogo, e olhe que são muitas. Mas posso garantir-lhe que ainda não chegou à melhor parte, ou deveria dizer a pior parte?
- Muito bem, mas responda-me ao menos a mais uma pergunta que não para de me roer por dentro. A Hazel estava ao corrente disto? Se estava, nunca me falou de nada.
- A Hazel ainda não tinha aparecido em cena. Ainda estava a aprender a jogar ténis na África do Sul.
- Mas ela deve ter sabido disso quando casou com o Henry, não? - Duvido que o Henry alguma vez tenha contado os pormenores à Hazel. O Ronnie Bunter diz que o Henry
tinha uma vergonha tremenda do escândalo horrível que aquilo foi. Sentia-se terrivelmente culpado por não ter sido capaz de proteger as filhas. Mas também é possível
que a Hazel tivesse sabido e nunca lhe tenha contado a si. O que aconteceu foi tão trágico e sórdido que talvez a Hazel, tal como o Henry, se tivesse limitado a
fazer de conta que aquilo nunca tinha sucedido.
- O que foi feito da Bryoni Lee? Essa pequenita portou-se como uma heroína. Ia adorar conhecê-la, se isso for possível.
- Vai ter que esperar. Não lhe vou contar nada. Vai ter de ler até ao fim da história.
- Aviso-a desde já, minha senhora, que a paciência não é uma das minhas muitas virtudes. Quando quero uma coisa, quero-a logo.
- Há situações na vida em que mais vale esperar, pois a expectativa multiplica o prazer final - disse ela. - E ler histórias é uma dessas situações. - A sua expressão
era enigmática, apenas remotamente velada por uma nota de malícia.
- Tenho a certeza de que é um ótimo conselho. - Mal conseguiu conter um sorriso, mas logrou igualar o autodomínio dela. - Como é que conheceu o Ronnie Bunter? -
perguntou. mudando de assunto.
- Ele o meu pai andaram na mesma faculdade de Direito. Descendo de uma longa linhagem de advogados.
Jo aproveitou a deixa dele e conversaram demoradamente durante a excelente refeição, acabando por se conhecerem melhor um ao outro. No final, Hector levou-a a um
clube noturno privado chamado Annabel's. Jo nunca lá tinha ido, mas Hector foi recebido com grande alegria pelos empregados. Quando dançaram, descobriram que se
moviam bastante bem juntos. Depois a música mudou e tornou-se suave e romântica. Pareceu perfeitamente natural quando Hector a puxou mais para si e ela encostou
a cabeça ao peito dele. Hector levou-a de volta ao hotel e acompanhou-a até à entrada, onde ela lhe disse: - Boa noite, Hector. Gostei imenso desta noite. Liga-me
pela manhã, por favor? Ainda temos tantas coisas para falar. - Depois ofereceu-lhe a face para ele a beijar e desapareceu, volteando a saia.
65
Acordou ao nascer do sol na manhã seguinte, sentindo-se repousado e bem-disposto, com a sensação de que algo de bom estava prestes a acontecer-lhe. Deixou-se ficar
deitado durante alguns momentos, perguntando-se qual a razão de todo aquele entusiasmo. Foi então que tudo lhe acudiu à mente em catadupa. Riu-se com satisfação
e lançou as pernas sobre a beira da cama.
Antes de tomar um duche apressado, ligou para a cozinha e disse ao mordomo Stephen para lhe deixar o pequeno-almoço na escrivaninha no estúdio e não na sala de jantar.
Quando desceu as escadas a correr, já lavado e vestido, deparou com Stephen a sair do estúdio.
- Bom dia, Stephen. Tenho outro favor a pedir-lhe. - Stephen
seguiu-o para dentro do estúdio e escutou as suas instruções com uma expressão de incredulidade.
- Tem a certeza de que é isso mesmo que quer, senhor Cross? - perguntou quando Hector terminou.
- Diga-me, Stephen, quando foi a última vez que lhe pedi que fizesse algo que eu não queria que fizesse?
- Acho que isso nunca aconteceu, senhor. - Pois também não vai acontecer agora - assegurou-lhe Hector. - Vou tratar já disso, senhor Cross. - É bom poder contar
sempre consigo, Stephen. Hector sentou-se à escrivaninha e ligou o computador. Quando o ecrã se iluminou, pegou no telefone e ligou para o telemóvel de Jo, cujo
número ela lhe tinha dado na noite anterior. Enquanto esperava que ela atendesse, espetou o garfo num pedaço de manga madura e enfiou-o na boca.
Jo atendeu ao quarto toque. - Bom dia, Hector. Dormiu bem? - Caí dentro de um buraco negro fundo e acordei há meia hora. pronto para matar dragões.
- Ainda existem muitos deles por aí à solta. Mate um deles por mim. Ainda estou na cama, com uma chávena de café.
- Que preguiçosa! - repreendeu-a. - A vida é para ser vivida.
- A culpa é toda sua por me ter mantido acordada até altas horas da noite. Mas foi divertido, não foi? Devíamos repetir um dia destes. - Muito em breve! - concordou
ele. - Que tal hoje à noite. ou até mais cedo?
- Preciso de ver umas pessoas na cidade esta manhã. Tinha-o prometido ao Ronnie Bunter. Não tem nada que ver com "A Semente Envenenada". É um assunto completamente
diferente. Mas depois do almoço já estarei livre.
- Venha, então. Estarei à sua espera. - Continue com a sua leitura. Aviso-o desde já que depois lhe vou fazer perguntas.
- Também tenho umas quantas para si. Desligou e concentrou toda a sua atenção no ecrã do computador.
66
Henry Bannock, ladeado por Ronnie Bunter e Bryoni, acabava de se sentar na galeria do público na sala de audiências quando o juiz Chamberlain saiu pela porta dos
seus aposentos e o oficial de diligências pediu ordem na sala.
Os doze jurados, encabeçados pelo presidente, entraram em fila e ocuparam os seus lugares na tribuna do júri. Nenhum deles olhou na direção do lugar onde Carl Bannock
estava sentado à mesa da defesa. - É um bom sinal! - murmurou Ronnie a Henry. - Eles raramente olham para aqueles que condenaram.
- Os membros do júri já chegaram a um veredito? - perguntou o juiz Chamberlain.
- Sim, Meritíssimo - respondeu o presidente dos jurados. - Qual é o veredito? - Em relação à acusação de estupro, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação
de abuso de menor, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de agressão sexual agravada, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de delito
de agressão e ofensas corporais graves, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de perpetração de incesto, consideramos o arguido culpado. Em relação
à acusação de corrupção de menor, consideramos o arguido culpado.
- Seis condenações em seis acusações - sussurrou Ronnie Bunter. - Nota máxima para a Melody Strauss.
O juiz Chamberlain agradeceu e dispensou os membros do júri e depois conferenciou com os advogados da defesa e da acusação. Dirigiu-se finalmente à sala de audiências:
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã, altura em que pronunciarei a sentença do prisioneiro.
Nessa noite, Henry organizou um jantar de celebração em Forest Drive para vinte amigos íntimos e familiares mais próximos. Cookie serviu lombo de boi texano de primeira
qualidade. mal passado e a ressumar sucos, com dois nacos de carne ainda agarrados ao osso.
Henry abriu uma dúzia de garrafas Château Lafite Rothschild de 1995 para acompanhar a carne.
Ronnie inclinou-se sobre a mesa para apostar com Melody Strauss que Carl só iria apanhar dez anos na penitenciária estatal. pois o juiz Joshua Chamberlain tinha
fama de ser liberal. Melody apostou dez dólares numa pena de pelo menos quinze anos. No entanto, ambos estiveram de acordo que o Château Lafite era o melhor vinho
que já tinham provado.
Bryoni não conseguiu aguentar até à sobremesa, pois os olhos começaram a fechar-se e a cabeça tombou-lhe em cima da mesa. Henry levou-a para o quarto dela no piso
de cima e meteu-a na cama. Sentou-se na beira da cama e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer profundamente pela segunda vez, antes de voltar para junto dos seus
convidados. Assim que ele saiu do quarto, Cookie levou-lhe uma grande taça de gelado de chocolate pelas escadas das traseiras. Bryoni conseguiu arranjar reservas
suficientes de força para acordar e devorar a taça inteira.
Às oito horas da manhã seguinte, Bonzo Barnes levou Bryoni à escola. Henry queria que ela voltasse o mais cedo possível à sua rotina habitual. Arranjara-lhe aconselhamento
psicológico a longo prazo e falara demoradamente com o diretor da escola e a professora da turma de Bryoni. Henry estava satisfeito por ter feito tudo ao seu alcance
para a ajudar a ultrapassar o trauma e a reencontrar o equilíbrio na sua vida. Tinham-no advertido de que poderia ser um processo longo, mas Henry tinha fé na força
de caráter e na maturidade da filha.
Henry saiu em direção ao tribunal num estado de espírito irado e vingativo. Às dez horas exatas, o oficial de diligências pediu ordem no tribunal.
Henry Bannock sentou-se no seu lugar habitual, ao lado de Ronnie Bunter, na primeira fila da galeria do público.
Carl Peter Bannock foi trazido da secção de detenção e conduzido pela escadaria por dois guardas de uniforme. Vinha algemado e de pés acorrentados. Estava pálido,
com a barba por fazer e de cabelo desgrenhado. Viam-se-lhe sombras escuras sob os olhos raiados de sangue. Olhou, suplicante, na direção de Henry.
A expressão de Henry era fria e irada. Susteve o olhar de Carl durante um longo momento. Carl sorriu-lhe com hesitação e os lábios tremeram-lhe. Henry afastou deliberadamente
o olhar, numa rejeição total e final.
Os ombros de Carl descaíram e avançou de passo arrastado para o banco dos acusados, onde se virou para o juiz Chamberlain.
- Arguido em julgamento, ouviu o veredito do júri. Tem alguma coisa a dizer que possa atenuar a pena que lhe será pronunciada?
Carl olhou para as correntes nos tornozelos. - Estou profundamente arrependido da dor que causei ao meu pai e aos outros membros da minha família. Usarei de tudo
ao meu alcance para os tentar compensar.
- É tudo o que tem a dizer? - Sim, senhor juiz, estou profundamente arrependido. - O tribunal tomará em conta a sua contrição na atenuação da pena - declarou o juiz
Chamberlain, olhando depois para baixo para reorganizar os papéis à sua frente na secretária. Ergueu a cabeça.
- A sentença pronunciada por este tribunal é a seguinte: pela acusação de corrupção de menor, condeno-o a cinco anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de incesto, condeno-o a seis anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de delito de agressão e ofensas corporais graves, condeno-o a seis anos de
prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de agressão sexual agravada de menor, condeno-o a vinte anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de estupro, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de abuso de menor, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal.
Ordeno que as penas sejam aplicadas em simultâneo e que o senhor fique encarcerado por um período mínimo de quinze anos.
O juiz Chamberlain olhou expectante para John Martius, que se levantou.
- Meritíssimo, peço a sua permissão para interpor recurso no Supremo Tribunal contra a sentença.
- Permissão concedida - disse Joshua Chamberlain. - No entanto, o prisioneiro será transferido diretamente deste tribunal para o Centro de Ingresso de Presos de
Holloway, em Huntsville. e daí para a penitenciária que lhe foi destinada, para começar a cumprir de imediato a pena pronunciada por este tribunal.
Olhou na direção dos dois guardas. - Meus senhores, por favor - cumpram o vosso dever.
Cada um dos guardas agarrou num dos braços de Carl Bannock e conduziram-no até ao topo das escadas. As correntes nos tornozelos retiniram quando desceu os degraus
para a secção de detenção.
- O tribunal queira levantar-se - anunciou o oficial de diligências. Henry e Ronnie foram as últimas pessoas a sair da sala de audiências.
- Podia ter sido melhor - opinou Ronnie. - Esperava um mínimo de vinte e cinco anos de cadeia. Mas quinze anos terá que servir. Pelo menos, tudo terminou finalmente
e livraste-te da semente podre que te envenenou a família.
- Pergunto-me se terá terminado realmente - disse Henry num tom sombrio. - E se foi mesmo a última vez que eu e as minhas filhas vimos aquele animal pervertido.
67
A carrinha celular tinha estacionado no recinto de segurança, quase completamente encostada à porta das traseiras do edifício do tribunal. As portas traseiras foram
abertas para receber Carl Bannock. As laterais da viatura estavam pintadas com as letras DJPT-DIC: Departamento de Justiça Penal do Texas - Divisão dos Institutos
Correcionais. Carl foi levado para dentro da carrinha e prenderam-lhe as correntes dos tornozelos às argolas no chão entre as suas pernas. As portas foram fechadas
e trancadas e a viatura arrancou para fazer a viagem de mais de cem quilómetros até ao Centro de Ingresso de Presos, em Huntsviile.
O Centro de Ingresso de Presos de Holloway era um bloco quadrado de betão, com quatro pisos e pesadas barras de aço nas janelas. Era protegido por torres de vigia
e por um triplo anel de vedações de arame farpado. A carrinha foi submetida a minuciosas revistas de segurança em cada um dos três portões. Quando alcançou o edifício
principal, os guardas de Carl retiraram-lhe as correntes das pernas e escoltaram-no ao longo de uma série de portões de abertura eletrónica, até à área primária
de receção.
Os seus papéis foram verificados uma vez mais e o seu nome e restantes dados foram inseridos no registo. Depois, o sargento atrás da secretária assinou o documento
de entrega do prisioneiro. Dois novos guardas revezaram os outros dois que o tinham escoltado desde Houston. Carl foi conduzido através de outro portão acionado
por controlo remoto, para o interior da principal área de receção. Foram-lhe confiscados todos os seus objetos pessoais. nomeadamente o anel de sinete em ouro, a
carteira, o Rolex de oure e as roupas de civil. Tudo foi inventariado e guardado em sacos. Quando o guarda lhe deu o livro de registo para assinar, devolveu-lhe
uma nota de dez dólares que tirara da carteira dele.
- Porque me está a dar isto? - perguntou Carl. - És um agressor sexual. É para produtos de higiene básicos. - O que é que isso tem a ver com a minha condenação?
- Não vais tardar a descobrir. - O guarda dirigiu-lhe um sorriso maldoso.
Conduziu Carl à sala da barbearia, onde lhe raparam o cabelo O barbeiro recuou dois passos para admirar o seu trabalho. - Fabuloso! - opinou. - Os rapazolas sulistas
aqui de Holloway vão-te adorar, ó carinha laroca.
Os guardas levaram-no para a zona de duches para se lavar Depois, nu e molhado, foi levado ao armazém, onde lhe entregaram um uniforme através de um postigo. O uniforme
era composto por uma T-shirt e cuecas brancas, casaco e calças largas de lona branca, com cordão na cintura, e mocassins de lona branca.
Levaram-no através de outro portão eletrónico para uma Cela individual numa comprida fileira de celas e trancaram a porta. O mobiliário consistia numa latrina turca
e num beliche de madeira firmemente fixado ao chão e à parede lateral. Havia um único cobertor, mas nenhum colchão. Mais tarde, foi-lhe entregue o jantar através
do postigo: uma tigela de estufado aguado, com um grosso naco de pão dentro.
Cedo na manhã seguinte, foi levado da cela para a sala de interrogatório, onde três membros da direção do Centro de Ingresso esperavam sentados a uma mesa de aço.
Os três eram membros da Divisão dos Institutos Correcionais e envergavam uniforme.
- Carl Peter Bannock. Está correto? - perguntou o homem sentado no meio do trio, sem erguer a cabeça.
- Sim - respondeu Carl. - Sim, senhor! - corrigiu-o o interrogador. - Sim, senhor - repetiu Carl respeitosamente. - Pena de quinze anos, no mínimo. Está correto?
- Sim, senhor. - Agressor sexual e pedófilo. Está correto? - Sim, senhor - disse Carl por entre os dentes cerrados. - É melhor enviá-lo para o Centro Correcional
de Detenção a Longo Prazo de Holloway - disse outro dos membros do painel.
O membro de hierarquia superior sugeriu: - E se o enviássemos para o sexto nível, onde os outros reclusos de longa duração não lhe podem fazer nada? - O único lugar
onde aqueles rapazolas sulistas não lhe vão conseguir deitar a mão é lá no céu, e este lindinho nunca conseguirá chegar tão alto. - O terceiro membro do painel riu-se
à socapa e os outros riram por entre dentes.
Nessa tarde, outra carrinha celular do DJPT-DIC levou Carl cerca de trinta quilómetros mais para sul, para o interior da zona histórica da escravatura do algodão,
onde, no meio de numa paisagem árida e incaracterística, a penitenciária de Holloway se erguia sob a forma de um enorme monumento de betão cinzento, erigido à infâmia
da humanidade.
Ali, a segurança era ainda mais rigorosa do que no Centro de Ingresso. A carrinha demorou vinte minutos a passar pelo anel
composto pelas três vedações, até estacionar na entrada reservada à receção dos presos. Depois, mais vinte e cinco minutos de espera até tirarem as algemas e as
correntes a Carl e o transferirem do piso térreo para o seu destino final, no sexto e último nível do edifício.
Do elevador, foi conduzido ao longo de um corredor curto até uma porta onde se lia GABINETE DO SUPERVISOR DE NÍVEL. Um dos guardas bateu à porta e um berro abafado
respondeu-lhe do interior. Abriu a porta e fez sinal a Carl com a cabeça para entrar. O supervisor de nível estava sentado atrás da secretária. No crachá de plástico
preso à camisa lia-se LUCAS HELLER.
Lucas estava de botas pousadas no tampo da secretária e baloiçava a cadeira equilibrando-a nas duas pernas traseiras. Deixou a cadeira cair para a frente, com enorme
estrondo, até ficar apoiada nas quatro pernas, e levantou-se. Era alto, de ombros curvados e esguio. O cabelo ruivo já lhe rareava, mas o que restava dele caía-lhe
sobre a testa. As orelhas, enormes, eram desproporcionais
para o rosto comprido e pálido. Os olhos também eram pálidos e aquosos, mas a ponta do nariz era rosada e tinha as narinas húmidas devido à rinite. Os dois dentes
superiores da frente sobressaíam ao ponto de lhe conferirem um ar de coelho anémico.
Tinha um pingalim na mão direita. Contornou a secretária e girou com lentidão em redor de Carl nas suas pernas de cegonha. Fungou ruidosamente, com um som líquido,
enquanto estendia o braço e passava a ponta de couro do pingalim sobre as nádegas do preso. Carl sobressaltou-se e Lucas voltou a fungar, soltando risadinhas como
uma colegial.
- Bom - disse. - Muito bom. Vais encaixar bem aqui. - Piscou o olho a um dos guardas. - Vais encaixar mesmo muito bem, se me faço entender. - Sim! Entendi-o muito
bem, chefe. - O guarda desatou às gargalhadas.
Lucas voltou a colocar-se à frente de Carl e sentou-se na borda da secretária. - Já te deram os teus dez dólares para os produtos de higiene básicos, ó Bannock lindinho?
- Sim, chefe. - Dá-mos cá. - Lucas estendeu a mão e estalou os dedos. Carl enfiou a mão no bolso das calças de lona branca e tirou a nota amarrotada. Lucas arrancou-lha
da mão. Depois, voltou para trás da secretária e abriu uma das gavetas, de onde tirou uma garrafa plástica grande e a fez deslizar sobre o tampo na direção de Carl.
- Aí tens.
Carl pegou na garrafa e examinou o rótulo. - "Óleo essencial Macassar12 de primeira qualidade. Ideal para o cabelo" - leu em voz alta, com um ar perplexo.
- O que devo fazer com isto, chefe? - Já vais saber quando chegar a altura - assegurou-lhe Lucas. - Aconselho-te a mantê-la à mão. - Olhou para o guarda. - Tens
o recibo desta mercadoria?
Nota de Rodapé: Óleo de coco ou de palma, muito perfumado, assim designado por ter sido fabricado originalmente a partir de ingredientes comerciados no porto de
Makassar, na Indonésia.
Fim da Nota.
- Aqui mesmo, chefe. - O guarda pousou o livro de recibos à frente dele e Lucas escrevinhou a sua assinatura.
- Muito bem, rapazes. Tragam-no. - Conduziram Carl de volta pelo corredor e através de outra porta robusta, até ao interior de uma comprida galeria de aço cinzento
e betão de um cinzento mais escuro. O teto abobadado era de vidro blindado. Feixes retangulares de brilhante luz solar, repletos de partículas de poeira prateadas,
incidiam no chão. De cada um dos lados da galeria estendia-se uma comprida fila de celas de grades de aço. Vultos indistintos agarravam-se às grades ou mantinham-se
acocorados no interior, espreitando Carl enquanto era conduzido pelo guarda. Alguns deles gritaram-lhe as boas-vindas num tom sardónico e brindaram-no com piropos
e assobiadelas, rindo e enfiando as mãos entre as grades para lhe fazerem gestos obscenos.
Lucas parou à frente da última cela da fila e abriu a porta com a sua chave-mestra eletrónica.
- Bem-vindo à cela número 601. A Suíte Nupcial. - Lucas sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Assim que Carl entrou, a porta deslizou e fechou-se atrás dele. Lucas
e a escolta refizeram o mesmo trajeto pelo corredor, sem nunca olharem para trás.
Carl sentou-se no único beliche existente e olhou em redor da cela. Não era maior do que a sua cela no Centro de Ingresso. A única melhoria era o pequeno lavatório
de aço inoxidável ao lado da latrina turca e um banco à frente de uma pequena mesa. Cada peça de mobiliário estava presa às paredes para evitar ser usada como arma.
Este seria o seu lar pelo menos durante os seguintes quinze anos, um pensamento que o fez perder o ânimo.
Às seis da tarde, soou uma campainha e Carl, seguindo o exemplo dos outros reclusos, postou-se à porta da sua cela. Todas as portas das celas desse nível se abriram
em simultâneo e os presos saíram para a galeria.
Ao som das ordens gritadas pelos guardas armados na passarela de aço em cima, todos se viraram e seguiram em fila até ao refeitório na outra ponta da galeria. À
medida que cada recluso passava à frente do postigo da cozinha, era-lhe entregue um pequeno tabuleiro de plástico por um dos homens na cozinha. O jantar era uma
tigela de sopa, outra tigela de estufado de carne de carneiro e uma rodela de pão branco. Carl sentou-se a uma das mesas de aço nu, mas nenhum dos outros reclusos
se juntou a ele. Formavam grupos com outros presos da mesma origem étnica. Alguns deles estavam manifestamente a falar de Carl, mas, como ele não conseguiu ouvir
o que estavam a dizer, ignorou-os. Disse a si mesmo. com amargura, que teria muitos mais anos para encontrar o seu lugar naquela sociedade pervertida.
Tinham vinte minutos para comer e, após esse tempo, os guardas nas passarelas no alto ordenaram-lhes que voltassem para as suas celas.
O encerramento das celas era às sete e trinta. Carl deitou-se de costas no beliche, de pernas cruzadas e com as mãos atrás da nuca. Estava exausto. Tinha sido um
dia de preocupações e incertezas. Pelo menos o jantar fora comestível e ansiava que as lâmpadas de arco voltaico que iluminavam a cela fossem desligadas para a noite.
Mas tinham-no advertido de que isso nunca iria acontecer.
Começou a dar-se conta gradualmente de que as vozes dos presos nas celas à sua volta se reduziam a sussurros expectantes e a risos abafados. Soergueu-se e olhou
através das grades para a comprida galeria, mas a sua visão era limitada e não conseguiu descortinar nenhuma razão para a atmosfera carregada que parecia ter-se
apoderado dos outros reclusos no Nível Seis.
Depois, ergueu-se e lançou as pernas sobre a beira do beliche quando se apercebeu do estrépito de passos que se aproximavam ao longo da galeria. Lucas Heller, o
supervisor do nível, entrou no seu campo de visão. Empunhava o seu pingalim. Usava um chapéu regulamentar e um uniforme engomado.
- De pé, prisioneiro! - ordenou. Carl levantou-se do beliche. - Estás a gostar da tua primeira noite em Holloway, Bannock- - Tudo bem, chefe. - O jantar estava bom?
- Não tenho queixas, chefe.
- Estás aborrecido? - Nem por isso, chefe. - Então estás com azar, Bannock. Porque trouxe comigo alguns dos rapazes sulistas para te fazerem companhia. Alguns deles
já estão aqui há vinte anos ou mais e entediados de morte. Nenhum deles esteve com uma mulher nesse tempo todo, e andam todos pra'í com um bruto tesão, isso te garanto!
Carl retesou-se e sentiu a pele eriçar-se. Tinha ouvido as piadas e os rumores, mas quis acreditar que não eram verdadeiros e que isso nunca lhe aconteceria a ele.
Mas havia homens estranhos a amontoarem-se atrás de Lucas.
- Posso apresentar-te o senhor Johnny Congo? - Lucas pousou a mão no ombro do homem mais próximo dele. Lucas era alto, mas teve de esticar o braço à altura da cabeça
para poder fazê-lo. O homem parecia ser uma enorme montanha de antracite. A cabeça era redonda e lisa como uma bola de canhão. Usava apenas T-shirt e calções, de
modo que Carl pôde reparar que os membros dele eram como toros de madeira dura, negros como ébano, todo ele músculo rijo e osso, quase desprovido de qualquer sinal
de gordura. - O senhor Congo está a viver lá em baixo no corredor da morte enquanto o Supremo Tribunal considera o recurso que ele interpôs. Está connosco há oito
anos e é altamente respeitado aqui em Holloway, de modo que tem direitos de visita especiais. - Lucas ergueu a mão, de palma virada para cima, e Johnny Congo colocou
uma nota de vinte dólares nela. Lucas sorriu em agradecimento e premiu o botão de abertura da porta. A porta gradeada deslizou para o lado.
- Pode entrar, senhor Congo. Demore todo o tempo que quiser. Divirta-se.
Congo entrou na cela e os outros homens amontoaram-se junto à porta gradeada atrás dele, acotovelando-se uns aos outros para conseguirem as melhores posições e sorrindo
de expectativa.
- Tens aí o teu óleo Macassar, lindinho? - perguntou Congo a Carl. - Tens trinta segundos para te besuntares e te pores de joelhos, senão enrabo-te a seco.
Carl recuou para longe dele. Estava mudo de terror e começou a choramingar. - Não. Não, por favor, deixa-me em paz.
A cela era exígua e bastaram três passadas de gigante para Congo o encurralar no canto. Esticou a mão e agarrou no antebraço de Carl. Com um rápido girar do punho,
lançou-o de cara contra o beliche.
- Baixa as calças, lindinho. Dá-me cá o óleo. - Foi então que o próprio Congo viu a garrafa de óleo Macassar na prateleira por cima do lavatório, onde Carl a colocara.
Pegou nela e tirou a tampa. Voltou para junto do beliche. Carl enrolara o corpo numa bola, com os joelhos encostados ao queixo. Congo virou-o de cara contra o beliche,
enfiou um joelho entre as omoplatas de Carl e arrancou-lhe o cordão das calças. Segurou a garrafa no alto e despejou metade do conteúdo em cima das nádegas de Carl.
- Quer estejas pronto ou não, aqui vou eu! - disse Congo enquanto se punha em posição atrás de Carl.
- Não... - choramingou Carl, e depois gritou. Foi um som da mais profunda angústia. Cada um dos homens que aguardavam a sua vez pagaram a Lucas o preço da entrada,
como espectadores num jogo de futebol, e depois apinharam-se dentro da cela, atrás do par no beliche. As suas vozes eram roucas de desejo e excitação. Um deles entoou:
- Dá-lhe, Congo! Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe!
Os outros riram-se e retomaram o refrão. - Dá-lhe, Congo, dá-lhe! De repente, Congo arqueou as costas, lançou a cabeça para trás e soltou um urro como um touro no
cio. O homem atrás dele ajudou-o a sair e ocupou imediatamente o seu lugar. Carl voltou a gritar.
- Meu Deus, como ele canta tão doce - disse o terceiro homem na fila.
Na altura em que o quinto homem se aproximou dele, Carl já não gritava mais. Quando o último homem terminou, abanou a cabeça, desiludido, enquanto se afastava.
- Parece que já desmaiou e deixou-nos aqui pendurados, pá Congo estivera sentado no beliche ao lado de Carl. Levantou-se e disse: - Ná, ainda continua a respirar.
Se está a respirar.
então ainda aguenta mais um bocadinho de amor. - Pôs-se atrás de Carl uma vez mais.
O homem de confiança da enfermaria da prisão tinha sido convidado para a festa, tanto a título pessoal como profissional. Acercou-se no seu papel profissional e
verificou a pulsação de Carl sob o queixo, na artéria carótida.
- Este rapazola já teve o suficiente para esta noite. Ajudem-me a levá-lo lá para baixo e daqui a duas ou três semanas já estará pronto para mais diversão.
68
Ao amanhecer, Carl encontrava-se num estado crítico devido ao trauma e à perda de sangue. Foi chamado o médico da sede central. Ordenou que Carl fosse transferido
para as principais instalações médicas na Penitenciária Estatal de Huntsville.
No bloco operatório, aspiraram-lhe por sucção a cavidade abdominal inferior e quase lhe retiraram dois litros de sangue e esperma. Depois, o cirurgião suturou-lhe
os vasos sanguíneos rasgados. reparou-lhe cirurgicamente as lesões no quadrante inferior do cólon e administrou-lhe três litros de sangue por transfusão.
Durante a sua convalescença nas instalações médicas de Huntsville, Carl teve autorização para fazer chamadas e receber visitas. Telefonou para o Carson National
Bank em Houston e pediu ao seu gerente de conta para o visitar. Carl era um cliente importante e o gestor de conta anuiu de imediato.
Carl tinha trabalhado para o seu pai adotivo e para a Bannock Oil Corporation durante dois anos e dois meses antes da sua detenção. Henry estipulara-lhe um salário
inicial no belo montante de cento e dez mil dólares mensais. Henry acreditava firmemente no método de incentivos e punições. Também acreditava que o seu único filho
varão merecia ser tratado de forma principesca.
Para grande espanto e profunda satisfação de Henry, Carl revelara quase de imediato uma extraordinária perspicácia para os negócios que estava muito para além daquilo
que Henry esperaria de alguém com essa idade e inexperiência. No final do primeiro ano, Henry sentiu um enorme orgulho ao aperceber-se de que Carl era um génio financeiro,
cujos dotes naturais rivalizavam, e em alguns acasos até excediam, os seus. Carl viria a demonstrar uma assombrosa capacidade para farejar possíveis lucros, com
a mesma prontidão com que uma hiena esfomeada conseguia detetar uma carcaça em decomposição. O seu salário subiu exponencialmente à medida que os seus talentos se
desenvolviam e floresciam. No final do seu segundo ano na Bannock Oil, já tinha conquistado o seu lugar no conselho administrativo da companhia, e o montante total
do seu salário e honorários como diretor ascendia a duzentos e cinquenta mil dólares por mês. De acordo com as cláusulas estipuladas na escritura, o Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock estava obrigado a pagar-lhe por mês uma soma adicional três vezes superior ao montante dos seus ganhos pessoais. Em resultado da generosidade
do pai, mesmo depois de pagar meticulosamente os seus impostos, Carl tinha conseguido acumular um saldo de crédito muito superior a cinco milhões de dólares, de
modo que o gestor de conta acedera de imediato ao seu pedido.
Ao sexto dia, Carl já tinha recuperado suficientemente das lesões retais para poder ser transferido para a enfermaria do Centro de Holloway. Levou consigo o novo
livro de cheques que o gestor de conta lhe facultara. Da enfermaria, Carl conseguiu enviar uma mensagem a Lucas Heller através do enfermeiro de serviço. A mensagem
dizia que Lucas deveria falar com ele se desejava saber uma coisa que seria do seu grande benefício.
Lucas condescendeu em descer à enfermaria para ver Carl, principalmente pela oportunidade de poder troçar dele confinado à cama. De forma a manter a conversa aliciante,
e como sinal da sua boa-fé, Carl deu-lhe um cheque de cinco mil dólares ao portador pelo Carson National Bank. Lucas leu o montante com estupefação: raras vezes
tivera tanto dinheiro nas mãos de uma só vez, mas a experiência havia-o ensinado a não confiar em fadas madrinhas. Recusou-se a acreditar naquele golpe de sorte
até ter a oportunidade de ir apressadamente à cidade levantar o cheque na filial local do banco.
O caixa pagou-lhe sem levantar a mínima objeção. De cético tornou-se prontamente num crente. Regressou ao Centro de Holloway e voltou a visitar Carl. Nesta ocasião,
os seus modos eram profundamente deferentes e obsequiosos.
Carl ordenou-lhe então que veiculasse uma mensagem a Johnnv Congo no corredor da morte. Por essa altura, Carl já compreendera todas as estruturas de poder subjacentes
ao Centro de Hollowav. Ficara a saber que Johnny Congo exercia uma enorme influência em toda a prisão. À semelhança de uma grotesca aranha devoradora de carne humana,
mantinha-se no centro da sua teia e manipulava os fios, que se estendiam até ao gabinete do diretor do complexo prisional.
Ao longo dos anos, o diretor fora depositando uma enorme confiança em Congo para manter a ordem entre os reclusos. Se Johnny passasse a palavra de ordem para que
houvesse "paz e cooperação". então a administração do centro conseguia manter uma certa aparência de ordem no meio de um sistema que parecia especificamente concebido
para produzir o caos.
No entanto, se Johnny Congo dissesse "Motim!", rebentavam incêndios por todo o centro; os guardas eram esfaqueados nas oficinas, ou nas galerias, ou nas passarelas;
os reclusos assumiam o controlo dos refeitórios e do pátio da prisão. Partiam o mobiliário e demais acessórios. Assassinavam alguns dos seus companheiros para darem
vazão a velhos rancores ou em obediência às ordens de Johnny Congo. Atiravam objetos e gritavam insultos aos guardas. até que a Guarda Nacional fosse chamada com
equipamento antimotim completo. E, no rescaldo final, as classificações do desempenho do diretor caíam a pique.
Graças à sua cooperação com a administração, Johnny Congo tinha conquistado privilégios especiais. Assim que novos detidos chegavam ao centro, podia escolher os
mais bonitos entre eles. como Carl sentira pessoalmente na pele. Como a sua cela nunca era revistada, as suas reservas de droga e outros luxos nunca eram devassados.
Permitiam-lhe, inclusive, ter telemóvel na cela, de modo que podia comunicar com os seus contactos e parceiros de crime no mundo exterior. A sua pena de morte estava
obstruída algures no sistema; corriam rumores de que o governador do Texas tratara para que assim fosse. Os mais bem informados estavam a apostar que Johnny morreria
de velhice, sem qualquer ajuda do homem da injeção letal na câmara de execução de tijoleira branca.
Se alguém incorresse no desagrado de Johnny Congo, era apenas uma questão de dias até que a questão fosse resolvida à navalhada no pátio da prisão, ou às primeiras
horas da madrugada, na privacidade da própria cela do ofensor, que teria sido convenientemente deixada destrancada pelo Supervisor de Nível.
Corria o rumor de que a influência de Johnny Congo se estendia muito para lá dos muros da prisão. Acreditava-se que ele mantinha fortes laços com organizações criminosas
e gangues de todo o Texas e estados circundantes. Por um preço muito razoável, Johnny dispunha-se a corrigir problemas em cidades tão distantes como San Diego e
São Francisco.
Lucas Heller demorou quase uma semana a conseguir o encontro entre Carl e Johnny Congo, mas, no final, o gabinete do supervisor do corredor da morte foi colocado
à disposição e os dois reuniram-se às três da madrugada de um domingo, quando o resto do centro estava trancado para a noite. O Supervisor de Nível e quatro dos
seus guardas esperaram à porta, mas não interferiram.
Assim que Carl e Congo ficaram a sós, avaliaram-se um ao outro com desconfiança, como dois leões de juba negra de grupos rivais que se tivessem cruzado em território
disputado na savana africana. Por esta altura, Congo já percebera que Carl não era mais uma cara linda. Sabia que Carl era filho de Henry Bannock e conhecia o poder
e a riqueza da Bannock Oil Corporation.
- Querias falar comigo, lindinho? - Preciso da sua proteção, senhor Congo. - Carl não desperdiçou tempo. - Podes apostar esse teu lindo cuzinho que precisas mesmo,
pois em pouco tempo ia deixar de ser assim tão lindo e macio. Mas porque é que eu te deveria proteger?
- Posso pagar-lhe. - Sim, pá, talvez seja motivo suficiente para eu o fazer. Mas de quanto dinheiro estamos aqui a falar, rapaz?
- Diga-me o senhor. Congo pôs-se a catar o nariz enquanto ponderava a questão. Por fim, examinou a crosta de muco seco que retirara da narina esquerda
e sacudiu-a do dedo antes de anunciar o seu preço. - Cinco mil dólares a cada mês, em notas de um e cinco dólares, entregues aqui em Holloway. Não me servem de nada
lá fora. - Tinha estabelecido uma quantia escandalosamente exagerada, na esperança de que Carl regateasse.
- Que quantia mais ridícula, senhor Congo - disse Carl. Johnny Congo ficou ofendido e cerrou os punhos, que mais pareciam grossos presuntos negros. - Para um homem
do seu estatuto e posição elevada, estava a contar pagar-lhe dez ou até quinze mil dólares por mês.
Johnny Congo pestanejou e descerrou os punhos. Começou a sorrir de um modo paternal. - Estou-te a ouvir, lindinho, e estou a gostar do que ouço. Quinze mil parece-me
bastante bem.
- Tenho a certeza de que conseguirá arranjar uma forma de lhe entregarem o dinheiro desde o banco até ao local onde o quer ter. Diga-me só o que devo fazer e assim
farei. Ponho a minha mão no fogo, senhor. - Estendeu-lhe a mão. Congo estendeu a mão e, enquanto lha apertava, disse numa voz retumbante: - É mais do que a tua mão
o que está em jogo. rapaz. É toda a tua linda vidinha.
- Eu sei que sim, senhor Congo. Mas, se quer mesmo ganhar uma grande pipa de massa, devíamos fazer negócios juntos.
- Que tipo de negócios? - Congo quase se ria na cara dele. - Ora conta aí, lindinho.
Carl falou durante cerca de quarenta minutos e Congo manteve-se inclinado para a frente, ouvindo-o quase sem o interromper. No final, sorria de orelha a orelha e
os olhos brilhavam-lhe.
- Como sei que vais cumprir com o que dizes, rapaz? - perguntou-lhe por fim.
- Se eu não cumprir, então pode retirar-me a sua proteção senhor Congo.
Foi um encontro decisivo, do qual só poderia emergir uma aliança ímpia: um jovem génio de natureza retorcida a aliar os seus talentos aos estratagemas de um monstro
implacável que tinha poderes de vida e morte sobre os outros. Ambos eram psicopatas, completamente desprovidos de compaixão, escrúpulos ou remorsos.
Ao longo dos anos seguintes, os lucros dos seus vários empreendimentos, inicialmente concebidos por Carl e depois promovidos por Johnny Congo, eram primeiro lavados
e branqueados. Os amigos de Johnny no exterior voluntariavam-se com avidez para os auxiliar nesse processo. Depois de o dinheiro ter sido lavado, era pessoalmente
distribuído a Carl sob a forma de dividendos, e de honorários para o diretor da prisão, através de uma companhia nas ilhas Virgens Britânicas que Carl tinha criado
quando ainda estudava em Princeton. O valor das receitas finais era quadruplicado pelo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. No final, a enorme soma total era
dividida entre Carl e Johnny Congo e ocultado em contas bancárias numeradas em Hong Kong, Moscovo, Singapura e noutras cidades espalhadas pelo globo, onde nem mesmo
o poderoso braço da Administração Fiscal dos Estados Unidos conseguiria chegar.
De modo a facilitar a operação dos seus empreendimentos, tanto dentro como fora da prisão, Carl e Johnny depressa se viram na necessidade de incluir Marco Merkowski,
o diretor do Centro Correcional de Holloway, como sócio comanditário. Assim que o envolveram no seu primeiro esquema ilegal, Marco deu por si completamente às mãos
de Carl Bannock e de Johnny Congo.
69
Carl foi transferido do nível seis para a unidade do nível um. onde estavam alojados os condenados com regalias e outros reclusos de cadastro imaculado por motivo
de bom comportamento. A cela onde ficou instalado tinha o triplo do tamanho da sua cela anterior no nível seis. Dispunha de um televisor e do seu próprio telemóvel.
O telemóvel era um elemento essencial na gestão dos interesses comerciais da aliança. Por um feliz acaso, Carl deu por si a operar num mercado ferozmente em alta.
Todos os seus antigos contactos continuavam nos seus postos e os instintos do jovem Carl para o lucro mantinham-se infalíveis. Nos seus lentos dias na prisão, Carl
continuava a ter muito tempo para concentrar a sua mente fecunda a planear o futuro. Já se tinham passado mais de cinco anos desde a sua detenção. O seu cadastro
prisional não tinha máculas, graças aos bons ofícios do diretor Merkowski. A pena mínima inicial de quinze anos pronunciada pelo juiz Chamberlain tinha sido reduzida
em recurso para um mínimo de doze anos. Carl já quase cumprira metade dessa sentença. Ainda só tinha trinta anos, mas já era um multimilionário astuto e muito sabido,
desejoso de enfrentar o mundo nos seus próprios termos assim que saísse pelos portões do Centro Correcional de Holloway.
Graças aos múltiplos contactos de que ele e Johnny Congo dispunham no exterior, Carl mantinha-se sempre completamente informado acerca dos movimentos do pai e dos
passos de todos os outros beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Infelizmente para Carl e para as suas aspirações financeiras, o pai tinha conhecido uma tenista profissional, uma campeã trinta anos mais nova do que ele, consideravelmente
mais jovem do que o próprio Carl Bannock. Carl tinha visto fotografias dessa mulher. Chamava-se Hazel Nelson e era loira, atlética e encantadora. Apenas alguns meses
depois de se terem conhecido, o seu pai e Hazel casaram-se numa magnífica cerimónia na residência de Forest Drive, em Houston. Menos de um ano depois, Hazel deu
à luz uma menina à qual puseram o nome Cayla. O recorde de Henry de gerar apenas progénie do sexo feminino mantinha-se intacto. Na perspetiva de Carl, esta nova
e inoportuna aventura do seu pai viera adicionar mais dois nomes à lista de beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
A lista completa compreendia um total de sete pessoas, incluindo o próprio Carl: Henry Bannock e Hazel Bannock, juntamente com a sua filha Cayla; a mãe de Carl,
Marlene Imelda Bannock, que conservara o apelido do marido depois do divórcio; e as duas meias-irmãs de Carl, Sacha Jean e Bryoni Lee. Usando como base o valor de
mercado das ações da Bannock Oil Corporation na Bolsa de Valores de Nova Iorque, Carl estimou que o valor total do património atual do Fundo Fiduciário da Família
Henry Bannock rondasse os cento e onze mil milhões de dólares. A ideia de ter de partilhar mesmo essa quantia tão vasta com cinco ou seis outras pessoas causava-lhe
um ressentimento feroz.
A partir da sua cela, Carl seguia com enorme interesse pessoal o pedido legal que o pai submetera há muitos anos ao Supremo Tribunal de Washington DC para que Carl
Peter Bannock fosse excluído da lista de beneficiários do Fundo Fiduciário em razão de não ser parente de sangue do dador, e pelo facto de a sua condenação por uma
série de crimes graves o ter desqualificado. Quando os eminentes juízes do Supremo Tribunal rejeitaram por unanimidade o pedido de Henry Bannock, Carl soube então
que somente a morte poderia negar-lhe a sua parte dos fundos fiduciários.
Carl e Johnny Congo celebraram a notícia com uma pequena e discreta festa no corredor da morte, na qual participaram o diretor Merkowski e várias jovens acompanhantes
trazidas de Huntsville para a ocasião. Embora Carl e Johnny Congo se tivessem tornado amantes há muitos anos, ficaram bastante satisfeitos por partilharem o seu
leito conjugal com uma ou duas raparigas bonitas, ou mesmo rapazes quando os havia disponíveis.
A decisão do Supremo Tribunal a seu favor levou Carl a refletir seriamente sobre as muitas cláusulas notáveis que o seu pai estipulara na escritura do Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock.
Carl tinha desenvolvido uma excelente memória durante os seus anos de estudo e, embora nunca mais tivesse tido acesso a uma cópia da escritura original do Fundo
Fiduciário desde o dia em que conseguira abrir a caixa-forte do pai, fizera no entanto anotações detalhadas do seu conteúdo. Durante todo esse tempo houvera sempre
uma cláusula em particular que o pai incluíra na escritura que nunca deixara de o atormentar. A provisão postulava que quando restasse apenas um único beneficiário
vivo, os mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock deveriam liquidar o fundo, e todo o restante património deveria ser dividido igualmente entre uma
instituição de caridade favorecida por Henry e o único beneficiário vivo, fosse homem ou mulher.
Carl decidiu que chegara a altura de aproveitar ao máximo essa cláusula enquanto permanecia oculto da visibilidade pública nas profundezas do Centro Correcional
de Holloway, e enquanto as paredes de betão que o aprisionavam continuavam a funcionar como um escudo capaz de defletir possíveis suspeitas sobre ele e lhe forneciam
um álibi inabalável.
O próprio Henry era invulnerável, mas estava a envelhecer rapidamente. Ao ritmo a que ele vivia a vida, não duraria muitos mais anos. Através dos seus informadores,
Carl inteirara-se de que Henry já começava a dar sinais de esmorecer. Carl sabia que tinha um aliado no Anjo da Morte e estava preparado para esperar.
Hazel e a sua jovem filha Cayla estavam protegidas pelo pesado manto de majestade que Henry Bannock lançara sobre todos aqueles que o rodeavam de mais perto. Hazel
e Cayla ainda não estavam vulneráveis. Mas a sua hora chegaria assim que Henry ficasse fora do caminho.
O mesmo não se aplicava à sua mãe alcoólatra, Marlene Imelda, que ele desprezava; e também não se aplicava às suas meias-irmãs, por quem nutria um ódio profundo
e amargo. Eram diretamente responsáveis pela sua encarceração e pelos muitos anos desperdiçados da sua vida que era obrigado a passar atrás de barreiras de aço e
betão, na companhia de criaturas mais abjetas do que qualquer fera da selva. Carl ficara a saber que a condição mental da sua irmã mais velha Sacha, melhorara de
forma tão significativa desde que ele fora encarcerado que os seus médicos puderam finalmente dar-lhe alta do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms e entregá-la aos
cuidados da sua mãe. Sacha fora viver então com Marlene nas ilhas Caimão. A relação entre mãe e filha tinha florescido no âmbito dessa nova intimidade. Marlene não
ficou curada da sua dipsomania; no entanto, a tutela da sua primogénita dera-lhe o incentivo de que precisava para tentar tornar-se abstémia. Devotava agora todo
o seu amor e atenção a Sacha, e esta correspondia-lhe com enorme gratificação.
Quando Henry Bannock casou com Hazel Nelson e Cayla nasceu, Bryoni decidiu sair de Forest Drive e mudar-se para as ilhas Caimão para estar com a mãe e a irmã. Por
essa altura, Bryoni não era muito mais jovem do que a sua madrasta Hazel. As duas raparigas tinham personalidades muito fortes e competitivas e ambas disputavam
ferozmente a atenção de Henry Bannock. Tivessem sido outras as circunstâncias e talvez se houvessem tornado amigas, mas o nascimento da bebé Cayla fizera pender
a balança nitidamente a favor de Hazel. Era agora não só a nova patroa de Forest Drive, como também a mãe da filha mais nova de Henry. Henry estava perdido de amores
por Hazel e tratou de a encorajar quando ela começou a desenvolver um grande interesse pelos negócios da Bannock Oil Corporation. Pouco tempo depois, Henry atribuiu-lhe
o cargo na administração da companhia que Carl deixara vago após a sua condenação.
Hazel ocupou o seu lugar à mesa do conselho de administração, à direita de Henry. Ela era tudo para Henry Bannock: amante, esposa, mãe da sua filha, parceira nos
negócios e companheira íntima.
Bryoni, por seu lado, não tinha nenhum interesse particular pela Bannock Oil Corporation. Graças ao Fundo Fiduciário, dispunha de todo o dinheiro de que precisava,
e não era gananciosa. Possuía alguns dos outros talentos que Hazel possuía em abundância e que a tornavam tão valiosa e desejável aos olhos de Henry Bannock. Bryoni
não podia competir com ela a nenhum nível. De modo que partiu para a Grande Caimão nas Caraíbas, onde Marlene e Sacha a receberam com um entusiasmo comovente, e
onde ela pôde servir um propósito que era simultaneamente muito valorizado pelas duas pessoas que ela mais amava e que a realizava em pleno.
Na perspetiva de Carl, esse passo fora também muito favorável: três dos beneficiários do Fundo Fiduciário tinham sido removidos do escudo de proteção do pai e para
longe da jurisdição e tutela do governo dos Estados Unidos da América, para uma ilha isolada
onde estavam muito mais vulneráveis e acessíveis às atenções dos amigos de Johnny Congo.
Carl elaborou os seus planos com grande minúcia e atenção aos detalhes. Congo participou com entusiasmo nesse empreendimento. Dispunha de contactos nos cartéis de
cocaína nas Honduras e na Colômbia, os quais estavam sempre interessados em ganhar uns dólares extra em projetos secundários e mais mundanos.
O contacto de Johnny nas Honduras era um indivíduo chamado Sefior Alonso Almanza, cujo quartel-general se situava no porto de La Ceiba, onde operava duas velozes
lanchas de longo percurso. com doze metros de comprimento. Eram geralmente usadas para o contrabando de cocaína a coberto da noite, para o norte do México. Texas
ou Louisiana. No entanto, nesses últimos tempos a guarda costeira americana tinha-se tornado um pouco problemática, de modo que as suas potentes embarcações estavam
subaproveitadas
A distância entre La Ceiba e as ilhas Caimão era inferior a quinhentas milhas marítimas: um trajeto fácil e quase um passeio para as enormes e rápidas lanchas Chris-Craf
t.
- O Alonso é um bom tipo, de absoluta confiança. Não tenho remorsos em despachar alguém desta pra melhor se o preço for atrativo. Acho que não conseguíamos arranjar
ninguém mais indicado - disse Johnny Congo a Carl.
- Agrada-me a descrição que fazes dele, e os preços que ele pede são em conta. Mas e quanto ao reconhecimento inicial? Tens alguém lá na Grande Caimão que possa
fazer isso para nós?
- Não há problema, lindinho. - A alcunha, que começara por ser deliberadamente pejorativa, tornara-se agora num termo carinhoso entre os dois. - Há também um agente
imobiliário em George Town que chegou a fazer uns trabalhinhos pra mim. Nada melindroso. Basta dizer-lhe que queremos fazer uma oferta anónima por uma propriedade
na ilha e que precisamos duma descrição completa de tudo o que contém, incluindo o pessoal doméstico e ocupantes.
- Contacta-o então, Negrão. - Qualquer outra pessoa que chamasse isso a Johnny Congo na cara sofreria uma morte prematura e dolorosa. - Acima de tudo, precisamos
de obter informações sobre as medidas de segurança na propriedade. Se conheço bem o meu pai, e posso garantir-te que sim, devem ser apertadas. Vamos precisar de
saber em que quarto dorme a minha mãe e onde podemos encontrar as minhas duas irmãs. Quase apostava que os quartos delas são logo ao lado do da querida mamã.
O contacto de Johnny Congo na Grande Caimão era um inglês aposentado, chamado Trevor Jones, que decidira passar os seus dias de reforma numa ilha paradisíaca tropical.
No entanto, para seu grande desgosto, descobrira que o paraíso saía a um preço caro e que a sua pensão não dava para esticar tanto como esperara. De bom grado aceitara
aquela lucrativa missão proposta por Carl Bannock. Conseguiu obter, no gabinete de topografia do governo, uma cópia da planta da propriedade The Moorings, a residência
dos Bannocks junto à praia. Depois tratou de desencantar uma antiga criada de quarto da Sra. Marlene Bannock que tinha sido despedida das suas funções por ter roubado
um par de anéis de pérola da caixa de joias da Menina Sacha Bannock. Chamava-se Gladys e abandonara The Moorings com um rancor de todo o tamanho.
Juntos, Gladys e Trevor Jones examinaram atentamente a planta da casa. Ela mostrou-lhe em que quartos os três membros da família dormiam e onde se situava a sala
dos guardas de segurança. Conhecia as rotinas de patrulha dos guardas. Havia máquinas de marcar o ponto dispersas por vários locais da propriedade que mantinham
os guardas a cumprir um rigoroso horário de trabalho. Os turnos mudavam a horas muito precisas, de modo que os movimentos dos guardas eram previsíveis. Gladys também
lhe forneceu uma lista do pessoal doméstico. A maior parte dos empregados tirava folga ao domingo e só retomava as suas funções após o fim de semana.
Gladys conhecia a localização exata de cada um dos numerosos sensores de alarme espalhados pela propriedade. Obviamente que as palavras-passe tinham sido substituídas
depois de ela ter sido despedida, mas o seu companheiro continuava empregado em The Moorings como ajudante de cozinha e de bom grado lhe forneceu as novas palavras-passe.
A brecha através do recife de coral estava assinalada com balizas luminosas, bem como o canal de acesso ao ancoradouro à frente de The Moorings. Jones saiu no seu
pequeno barco de pesca a remos e procedeu a algumas medições furtivas, bem como a um ou dois outros preparativos. Durante a maré alta na primavera, o canal tinha
uns bons três metros de profundidade no ponto mais baixo. havendo, pois, água mais do que suficiente mesmo para uma das enormes lanchas Chris-Craft.
Todo este pacote de informações foi enviado a Johnny Congo. O custo total para Carl ficou abaixo dos quatro mil dólares, o que ele considerou um ótimo negócio.
As informações foram depois reencaminhadas para o Seior Alonso Almanza, em La Ceiba, juntamente com detalhadas instruções adicionais e um pagamento antecipado, por
transferência bancária, de setenta e cinco mil dólares, até à finalização do contrato no valor de duzentos e cinquenta mil dólares.
- Vou contar-te um pequeno segredo, Negrão. - Carl dirigiu um sorriso a Johnny Congo. - Quando tens dinheiro suficiente. podes fazer e ter tudo o que quiseres. Ninguém
te consegue dizer não.
- Nem mais, lindinho! Dá cá mais cinco! - Johnny ergueu a mão direita e bateram as palmas das mãos.
70
Vinte e oito dias mais tarde, a lancha Pluma de Mar do Sefior Almanza aproveitou a claridade da lua cheia para atravessar furtivamente a brecha no recife e entrar
na baía Old Man na costa norte da Grande Caimão. O casco estava pintado de preto mate, de modo que era quase invisível, mesmo com o luar. Zarpara de La Ceiba ao
meio-dia no dia anterior e a sua chegada ao destino tinha sido programada exatamente para as três menos um quarto da madrugada de domingo, a hora das bruxas, quando
apenas salteadores, lobisomens e piratas deveriam rondar a escuridão.
O Pluma de Mar transportava uma tripulação de onze elementos. Usavam fatos de treino pretos e capuzes escuros na cabeça, com fendas para os olhos e para a boca.
Prenderam a embarcação a uma das boias sinalizadoras do canal, a setenta metros da orla da praia onde se situava The Moorings. Trevor Jones tinha colocado um minúsculo
rádio na boia para se orientarem. Deixaram um tripulante a bordo para tomar conta da embarcação e lançaram à água um bote insuflável de motor fora de borda e movido
a bateria que os transportou em silêncio até à margem.
Alcançaram a praia às três horas em ponto, quando as patrulhas de segurança se tinham reunido na sala da guarda para a mudança de turno e para tomarem café. Dois
dos homens mascarados apressaram-se a desativar os sensores de alarme e a desimpedir o caminho para os companheiros que seguiam atrás. Quando o grupo de assalto
irrompeu pela sala da guarda, apanharam completamente de surpresa os quatro homens aí reunidos. Poucos minutos depois, já os tinham amordaçado e amarrado com fita
adesiva e desligaram o sistema de alarme no principal painel de controlo.
Depois precipitaram-se em redor da piscina e arrombaram a porta da casa com um pé-de-cabra. Sabiam exatamente para onde se dirigiam: atravessaram as salas de estar
e subiram a escadaria principal até às suítes. Dividiram-se em três grupos ao chegarem ao topo das escadas. Cada grupo avançou com rapidez para a suíte que lhe tinha
sido destinada. Invadiram as divisões enquanto os ocupantes ainda dormiam profundamente. Arrancaram-nos das camas e amarraram-lhes os punhos com fita adesiva. De
seguida, arrastaram-nos pela escadaria abaixo, em direção ao terraço da piscina, que estava discretamente resguardado por muros altos e por vegetação tropical, de
modo a permitir às mulheres Bannock tomarem banhos de sol nuas.
Um dos elementos do bando tirou uma câmara de filmar da mochila. Era um realizador de Guadalajara, no México, especializado em filmes pornográficos hardcore. Disse
num inglês sofrível às três prisioneiras que choravam aterrorizadas: - Chamo-me Amaranthus. É com prazer que vou fazer documentário sobre vocês. Por favor, não façam
caso de mim e tentem não olhar pra lente da minha câmara, a não ser que vos peça. - Recuou ligeiramente e apontou-lhes a câmara.
O líder do bando postou-se à frente delas. - Sou o Miguel. Vão fazer o que vos disser, senão vão-se arrepender. Nome? Nombre? - gritou-lhes, obrigando cada uma delas
a dizer o nome à vez, virada para a câmara de Amaranthus. Sacha Jean estava emudecida de terror. Bryoni falou pela irmã e disse o nome dela.
- É a minha irmã, Sacha Jean Bannock. Está doente. Por favor. não lhe façam mal.
Sacha caiu de joelhos e borrou as calças do pijama, num som explosivo. Miguel riu-se e deu-lhe um pontapé. - Vaca porcalhona! Levanta-te! - Voltou a pontapeá-la.
Bryoni estendeu as mãos atadas e ajudou Sacha a erguer-se.
O líder do bando virou-se para Marlene e tirou do bolso uma tira de papel. - Estas são as ordens que recebi. - Leu no seu carregado sotaque hispânico: - Marlene
Imelda Bannock. Vais ser executada. A tua morte será testemunhada pelas tuas filhas Sacha Jean e Bryoni Lee. A tua execução vai ser filmada para todas as partes
interessadas poderem ver. Depois, as tuas filhas serão encarceradas para o resto da vida num país estrangeiro.
As pernas de Sacha cederam novamente. Bryoni não conseguiu ampará-la e Sacha caiu contra a borda de mármore da piscina. Enrolou-se na posição fetal enquanto gemia
numa voz estrídula. Começou a bater com a testa na borda de mármore, com tal força que uma das sobrancelhas se rasgou, empapando-lhe os olhos de sangue. Bryoni ajoelhou-se
ao lado de Sacha e tentou impedi-la de se magoar mais.
Marlene gritava, desesperada, enquanto os três homens a arrastavam: - Sê valente, Sacha! Não chores, minha filhinha. Toma conta dela, Bryoni.
Arrastaram-na pelas escadas da piscina e enfiaram-na na água, que lhe dava pela cintura. Potentes holofotes submersos iluminavam o cenário para Amaranthus, que se
ajoelhou junto à borda da piscina para filmar tudo.
Dois membros da tripulação sujeitavam Marlene pelos braços. Olharam para Miguel na borda da piscina.
Miguel disse-lhes: - Bueno! Enfiem-na debaixo de água. Forçaram a cabeça de Marlene sob a superfície da água. Um terceiro homem agarrou-lhe os tornozelos e ergueu-lhos
bem alto. A metade superior do corpo de Marlene ficou completamente imersa. Esperneou de forma frenética e todo o seu corpo se arqueou em convulsões tão violentas
que os homens tiveram dificuldade em a imobilizar.
- Chega! - gritou Miguel. - Tirem-na pra fora por uns segundos. - Os homens ergueram-lhe a cabeça e Marlene engoliu uma golada de água enquanto se debatia por ar.
Depois, jorrou-lhe da boca aberta um misto de água e vómito que a sufocou quando tentou respirar.
- Bueno, já chega. Voltem a enfiar-lhe a cabeça. - Enfiaram-lhe a cabeça debaixo de água no momento em que ela arquejava por ar, acabando por engolir uma nova golada
de água em vez de ar.
Continuaram a submergir-lhe a cabeça a intervalos cada vez mais longos, enquanto Marlene se debatia cada vez mais debilmente. Postado atrás da câmara, Amaranthus
queria aproveitar a cena ao máximo. Era uma das especificações estipuladas por quem lhe dera as ordens, e Amaranthus compreendia que aquilo deveria ser fascinante
para eles. Dilacerada e dividida entre o seu amor pela irmã e pela mãe, Bryoni deixou Sacha e rastejou para junto de Miguel, tentando agarrar-se às pernas dele.
- É a minha mãe. Por favor, não lhe façam isso. Miguel afastou-a com um pontapé e disse aos três homens na piscina: - E agora terminamos. Mantenham a velha megera
debaixo de água.
Uma última e violenta rajada de bolhas assomou à superfície enquanto os pulmões de Marlene se esvaziavam por completo. Ofereceu cada vez menos resistência, até finalmente
parar de se debater. - Ha muerto? - perguntou um deles? - Está morta? - No, esperar un poco más - ordenou Miguel. Bryoni tinha conhecimentos suficientes de espanhol.
Voltou a rastejar para junto de Miguel e agarrou-se de novo à perna dele. - Por favor, seior. Tenha piedade, suplico-lhe.
Dessa vez, ele assestou-lhe um pontapé na boca e Bryoni caiu para trás. Levou as mãos aos lábios que sangravam. - Daqui a nada será a tua vez - disse ele num tom
trocista. - Mas primeiro temos de provar essa tua caminha e a da tua irmã loca. - Puxou a manga para trás para ver as horas no relógio. Depois falou aos homens na
piscina. - Bueno! Já deve bastar. Levantem-na pra vermos.
Um dos homens agarrou uma mão-cheia de cabelos de Marlene e ergueu-lhe o rosto acima da água. Tinha a pele cerosa e pálida. Os olhos arregalados e fixos no vazio.
Melenas de cabelo tombaram-lhe sobre o rosto como algas expostas numa rocha durante a maré vazante. Escorria-lhe água da boca aberta.
- Deixem-na ficar aí - ordenou Miguel. Os homens largaram-na e dirigiram-se para as escadas, deixando o corpo de Marlene a flutuar de rosto para baixo.
- Já estamos aqui há muito tempo. Está na hora de ir - disse-lhes Miguel. - Limpem aquela gaja. - Apontou para Sacha. - El jefe mata-nos se sujarmos o lindo barquinho
dele com bosta.
Arrancaram a Sacha o pijama sujo e atiraram-na nua para a piscina, ao lado do cadáver da mãe. Um deles curvou-se sobre Bryoni e cortou-lhe a fita adesiva que lhe
prendia os punhos.
- Mete-te ali na água com a porcalhona da tua irmã e lava-lhe a merda - ordenou-lhe em espanhol.
Bryoni enfiou-se na água e aproximou-se de Sacha; lavou-lhe o corpo e limpou-lhe o sangue do ferimento por cima do olho, e depois ajudou-a a subir as escadas da
piscina, envolvendo-lhe os ombros com um braço. Sacha não parava de chorar e de olhar para o cadáver de Marlene a flutuar. - Que se passa com a mamã? Porque é que
ela não quer falar comigo, Bryoni? - Sacha voltara a regredir ao estado de uma criança de cinco anos.


CONTINUA

30
Saíram da mesquita através do portão principal e viraram na estrada em direção ao complexo residencial muralhado que Tariq lhe tinha indicado mais cedo nesse
dia como sendo a casa de Aazim Muktar. Avançaram rapidamente, com uma precisão quase militar, num grupo compacto com Hector no meio. Quando alcançaram a entrada
do complexo, os portões foram abertos do interior e todos marcharam para um pátio pavimentado. No centro erguia-se uma enorme figueira-de-bengala com ramagens amplas.
À sua sombra estava sentado um pequeno grupo de mulheres de rosto velado e crianças de tenra idade. Observaram com interesse enquanto Hector era obrigado a marchar
até aos degraus que conduziam à varanda coberta de um bangaló de telhado plano.
Era um edifício modesto e despretensioso, não o tipo de lar que se poderia esperar de um alto clérigo ou de um importante funcionário do governo. A maior parte
dos membros da escolta de Hector deteve-se na base das escadas, mas dois deles flanquearam-no e agarraram-lhe os braços para o conduzirem pelas escadas até à varanda.
Hector afastou-lhes as mãos num gesto irritado e eles não insistiram. Subiu os degraus dois a dois e parou no topo. A porta à sua frente estava aberta e atravessou-a
com passadas largas e determinadas, parando à entrada enquanto os seus olhos se adaptavam ao interior obscurecido que contrastava com o sol brilhante do pátio.
A divisão era espaçosa mas esparsamente mobilada, ao estilo árabe. A mobília estava alinhada ao comprido das paredes, deixando o centro da divisão despojado e
desimpedido. Aazim Muktar era a única pessoa presente. Estava sentado de pernas cruzadas em cima de uma pilha de almofadas de veludo verde, à frente de uma mesa
baixa. Levantou-se num movimento ágil e fez uma vénia, tocando na testa, nos lábios e no coração. Depois endireitou o corpo e falou numa voz pausada.
- É muito bem-vindo à minha casa, senhor Cross. - É muito amável da sua parte convidar-me, xeque Tippoo Tip. - Hector retribuiu-lhe a vénia.
Aazim Muktar esboçou uma ligeira careta perante o tom irónico dele. - Talvez seja melhor falarmos de forma aberta e franca, senhor Cross. Não é minha intenção
retê-lo mais do que o estritamente necessário. - O seu inglês era perfeito, educado e culto como o de um aristocrata britânico.
- Não esperaria menos de si, mulá Aazim Muktar. - Queira sentar-se, por favor. - Indicou-lhe uma cadeira de espaldar alto que obviamente fora ali colocada para
o convidado. Hector avançou sem hesitação e sentou-se. Estava em séria desvantagem, de modo que era essencial manter uma expressão dura e uma determinação austera.
Aazim Muktar sentou-se nas almofadas, virado para ele. Ambos se olharam fixamente, até que o mulá quebrou o silêncio.
- Sabia que conheci a sua mulher há uns anos, numa receção na residência do embaixador americano em Londres? Hazel Bannock-Cross era uma dama muito bela e superior.
Gostava dela e admirava-a imenso.
Hector inspirou lenta e profundamente. Não queria que a voz tremesse devido à raiva que lhe inundava cada célula do corpo. Quando respondeu, fê-lo num tom baixo
e neutro. - Então porque é que a mandou matar? Os olhos de Aazim Muktar eram escuros e expressivos. As pestanas, compridas e quase femininas, pareciam incongruentes
no meio daqueles traços masculinos tão vincados. Os seus olhos encheram-se lentamente de sombras de dor e mágoa. Inclinou-se para Hector e, por um momento, pareceu
prestes a estender a mão e tocar-lhe, mas conteve-se. Voltou a sentar-se direito e susteve o olhar irado de Hector.
- Peço a Alá e ao seu Profeta que me ouçam quando lhe digo que isso não é verdade, caro senhor. Não estive envolvido de nenhuma forma no homicídio da sua mulher.
- E eu digo-lhe, caro senhor, que as palavras fluem com leviandade dos lábios daquele que negoceia em palavras.
- Haverá alguma forma de o convencer? - perguntou o mulá numa voz calma. - Choro a morte dela quase tanto quanto você.
- Não consigo imaginar nada que me possa convencer disso - disse Hector. - Não há mais ninguém que tivesse um motivo,
a não ser você. O credo da retaliação e da morte por vingança está profundamente imbuído na sua religião, na sua cultura e na sua psique.
- Isso não é verdade, senhor Cross. Há também a luz do perdão que nos conduz. Não prestou atenção à súplica que lhe dirigi pessoalmente a si na mesquita hoje?
Implorei-lhe que pusesse fim a este círculo vicioso de morte atrás de morte.
- Ouvi o que você pregou - replicou Hector -, mas não acreditei numa única palavra.
- Assim sendo, parece que só me resta mais um recurso. - Qual? Também me vai matar? - Não, meu senhor. Não matei a sua encantadora mulher nem o vou matar a si.
É convidado na minha casa. Encontra-se sob a minha proteção. Dá-me licença por uns momentos, senhor Cross?
Hector não respondeu e Aazim Muktar levantou-se e saiu. Hector levantou-se da cadeira de um salto e moveu-se rapidamente pela divisão. Os olhos dardejaram-lhe
de um lado para o outro à procura de uma via de fuga, de uma arma com que pudesse defender-se. Não encontrou nada, a não ser livros e pergaminhos, e, quando olhou
através da janela, reparou que o pátio estava cheio de seguidores de Aazim Muktar. Estava desesperadamente encurralado.
O mulá voltou poucos minutos depois. - Desculpe-me, senhor Cross, mas tive de tratar dos preparativos finais para o levar para fora da cidade. Talvez não saiba
que se trata de um delito muito grave para qualquer pessoa que não professa a fé islâmica entrar nos locais sagrados da Medina e de Meca. A pena é a morte por decapitação.
Tenho um carro e um motorista à espera junto aos portões do complexo para o levar ao aeroporto de Jidá. Fiz uma reserva em primeira classe num voo da Emirates de
Jidá para Abu Zara. que parte às dez desta noite. Assim que tiver levantado voo, os seus homens na Cross Bow Security serão avisados da sua chegada. No entanto,
deve partir já de Meca.
Hector fixou-o, atónito e totalmente incrédulo. Não acreditava que iam libertá-lo. Não passava de mais um ardil, sabia-o bem. Tentou ver para lá do olhar franco
e da expressão sincera do mulá.
- Por favor, senhor Cross. É uma questão de vida e morte Tem de partir já. Segui-lo-ei num veículo separado. Voltaremos a ter outra oportunidade de falar no aeroporto
de Jidá, numa sala VIP que reservei.
Hector inclinou um pouco a cabeça, fingindo aquiescência Sabia que o motorista o levaria para o deserto, onde deparam depois com um pelotão de execução composto
por fanáticos religiosos. Provavelmente já lhe tinham até escavado a sepultura.
Por mais desvantajosa que seja a posição em que este cabrão me colocou, tenho mais hipóteses de sobrevivência lá no deserto do que encurralado aqui dentro, concluiu.
- É muito generoso... - começou por dizer, mas Aazim Muktar interrompeu-o.
- Aqui está o seu bilhete de avião. - Entregou a Hector um envelope com o timbre da companhia Emirates estampado na aba. Hector abriu-o e verificou o nome no
bilhete. Era o mesmo nome falso que constava do passaporte de Abu Zara com o qual viajava Claro, o traidor Tariq dera-lhe essa informação.
Hector ergueu a cabeça. - Parece estar em ordem.
- Muito bem! E agora, parta sem demora. Voltarei a vê-lo em Jidá.
Segurou na porta aberta para ele passar, e Hector desceu as escadas a correr para o pátio. Um sedã Mercedes preto cruzou de imediato o portão, vindo da rua. Estacionou
à frente de Hector. Um motorista barbudo e de turbante negro saltou do assento do condutor e abriu-lhe a porta de trás. Assim que Hector se instalou no assento,
o motorista fechou a porta e voltou a enfiar-se atrás do volante. Os discípulos abriram alas para deixar passar o Mercedes que seguiu pelo portão do complexo para
a rua. Hector olhou para trás através da janela na traseira. Aazim Muktar estava especado na varanda do bangaló a vê-lo partir.
Hector passou todo o trajeto até ao aeroporto de Jidá num tumulto de indecisão. Teria sido fácil estender a mão por trás do assento do motorista, imobilizá-lo
com um golpe de gravata e partir-lhe o pescoço. Depois poderia usar o Mercedes para fugir até à fronteira com Abu Zara. No entanto, a fronteira ficava a mais de
mil e quinhentos quilómetros de distância e o ponteiro do combustível no painel de instrumentos indicava menos de metade do depósito cheio. Só dispunha de alguns
dólares no bolso, insuficientes para atestar o depósito. Talvez o motorista tivesse algum dinheiro, mas duvidava. O homem provavelmente tinha um cartão de abastecimento
de combustível ou algum outro tipo de cartão de débito. Sem dinheiro, nunca conseguiria escapar. E, claro, assim que o alarme soasse, a polícia saudita emitiria
um alerta geral para todos os agentes na estrada. Não conseguiria percorrer cem quilómetros, e muito menos mil, até o apanharem. Pôs de parte essa ideia.
Depois pensou em Aazim Muktar Tippoo Tip e sopesou as probabilidades de ele ser inocente ou culpado: poderia acreditar e confiar nele? Quando o ouvira pregar
na mesquita, quase se deixara convencer. Contudo, agora que tinha sido libertado, tinha a certeza de que só podia ser um ardil. Sabia que devia haver outra surpresa
chocante à sua espera.
Havia um telefone no apoio de braço do banco traseiro do Mercedes e Hector levantou o auscultador, encostando-o ao ouvido. Ouviu um sinal de linha. Abriu o envelope
que Aazim Muktar lhe tinha dado e procurou o número de telefone do balcão do check-in da companhia aérea Emirates no aeroporto de Jidá. Marcou-o e, ao terceiro toque,
uma mulher atendeu-o. Deu-lhe os pormenores do seu bilhete.
- Pode confirmar, por favor, se a minha reserva está correta? - Queira aguardar um momento, senhor. - Houve uma breve pausa e depois a mulher voltou a falar.
- Sim, senhor. Estamos à sua espera. O seu check-in já foi confirmado online. O seu voo vai partir à hora prevista, às vinte e duas.
Hector pousou o auscultador. Tudo parecia bater certo, até certo de mais. Aquilo que finalmente o decidiu foi pensar em Hazel. Por respeito à memória dela, deveria
confrontar Aazim Muktar e levar as coisas até ao fim, por mais riscos que isso envolvesse. Quase conseguia ouvir a voz dela. Tens de o fazer, meu querido. Tens de
o fazer, senão tu e eu nunca mais teremos paz.
De modo que se acomodou no banco traseiro e deixou o motorista conduzi-lo a Jidá.
31
No portão de embarque no terminal das Linhas Aéreas da United Arab Emirates no aeroporto de Jidá, um porteiro em vestes tradicionais abriu-lhe a porta do Mercedes
e, com respeito cerimonioso, acompanhou-o até à sala privada que tinha sido reservada pelo mulá. Assim que ficou sozinho, Hector tentou abrir a porta e descobriu
que estava destrancada. Entreabriu-a um pouco e espreitou através da nesga. Não viu nenhum guarda postado no exterior. Por essa altura, sentia-se mais intrigado
do que receoso. Fechou a porta e olhou em redor da sala de espera luxuosamente mobilada. Tinha a boca seca devido ao gosto râncido do perigo.
De bom grado voltava a ser virgem em troca de um uísque decente, pensou, mas claro que não havia nenhuma bebida alcoólica forte à vista naquele bastião islâmico.
Bebeu um copo de água Perrier, serviu-se de um outro e levou-o consigo para uma das poltronas. Enquanto se sentava, ouviu alguém bater à porta.
- Entre - disse, e Aazim Muktar entrou. Certamente seguira de perto o Mercedes que transportara Hector desde Meca. No entanto, Hector ficou atónito quando o mulá
entrou acompanhado de uma mulher coberta da cabeça aos pés. Chorava baixinho por trás do véu. Conduzia pela mão um rapazinho de tez escura, com cerca de seis ou
sete anos. Era um menino encantador, com caracóis negros e olhos escuros e grandes. Estava a chuchar no polegar, com um ar infeliz e perplexo. Aazim Muktar fez sinal
à mulher, a qual se apressou a afastar-se para um dos cantos da sala, onde se sentou no chão, abraçando a criança contra o peito. Hector reparou no brilho dos olhos
dela por trás da burca enquanto o observava, e depois apercebeu-se de que ela recomeçou a chorar. Aazim Muktar, com uma ordem ríspida, advertiu-a que se calasse
e depois sentou-se numa poltrona virada para Hector.
- Dentro de quarenta e cinco minutos vão anunciar o embarque para o seu voo - disse ele a Hector. - É todo o tempo de que disponho para o convencer de que não
tive nenhuma responsabilidade no assassinato da sua mulher. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe que estou a par de quase todos os detalhes do trágico confronto entre
a sua família e a minha. Houve muitas mortes de ambos os lados Compreendo que, tendo sido você um oficial do exército, em certas ocasiões se justificasse matar em
cumprimento do dever. Houve alturas em que você fez justiça pelas próprias mãos. - Calou-se e olhou bem no fundo dos olhos de Hector.
- Continue! - incitou-o Hector, sem deixar transparecer nenhuma emoção.
- Aceito o facto de o meu pai e a maior parte dos meus irmãos serem piratas, agindo em contravenção direta do Direito Internacional. Capturaram navios mercantes
no alto-mar e retiveram as tripulações em troca de um resgate. Dissociei-me, ainda muite jovem, desses crimes cometidos pela minha família e fui para Inglaterra
para estar o mais longe possível deles. Nunca considerei ter qualquer direito de retaliação contra si ou contra a sua família Já lhe contei que conheci a sua mulher
e que a admirava. Fiquei profundamente devastado quando soube que a tinham assassinado. Foi um ato contra todas as leis do homem e de Deus. No entanto, sabia que
após a morte dela você me iria perseguir para aplacar os pecados cometidos pelo meu clã.
- Sou todo ouvidos.
- Há muito que eu receava o dia do nosso encontro, mas preparei-me para isso.
- Tenho a certeza que sim - ripostou Hector, cuja expressão era agora sombria.
- Não à sua maneira, já que você é um guerreiro experiente, senhor Cross, e a sua maneira é a linguagem da espada.
- Diga-me então, mulá Tippoo Tip. Em que consiste a sua maneira?
- No caminho de Alá. A minha maneira de agir é o perdão mútuo. A minha maneira é Al-Qisas. Ofereço-lhe uma vida por outra vida. - Levantou-se e acercou-se do
pequeno volume de ibjeta humanidade amontoado no canto da sala. Agarrou a criança pela mão e fê-la parar à frente de Hector.
- Este é o meu filho. Tem seis anos. Chama-se Kurrum, que 'ignifica "felicidade". - O rapazinho voltou a enfiar o polegar na boca e olhou fixamente para Hector.
- É um menino bonito - acedeu Hector.
- É seu - disse Aazim Muktar em árabe, empurrando delicadamente a criança para a frente.
Consternado, Hector levantou-se da poltrona de um salto.
- Pelo amor de Deus, que pretende que faça com ele?
- Em nome de Alá, deve levá-lo e retê-lo como refém contra a minha boa-fé. Se encontrar provas irrefutáveis de que matei a sua mulher, deve matá-lo como é seu
direito, segundo a lei de Al-Qisas, e perdoar-lhe-ei.
A mulher gritou e arrojou-se no chão.
- É meu filho! É o meu único filho! Mate-me se tiver de o fazer, efêndi. Mas não mate o meu filho. - Rasgou o véu e esfacelou o rosto com as unhas compridas.
O sangue brotou dos arranhões profundos e escorreu-lhe do queixo. Rastejou até aos pés de Hector.
- Mate-me, mas poupe a vida ao meu filho, suplico-lhe.
- Cala-te, mulher. - O marido usou um tom amável. Pousou a mão no ombro dela e afastou-a para o fundo da sala. Depois voltou para junto de Hector. Das dobras
da túnica branca tirou uma carteira de couro e estendeu-lha.
- Está aqui toda a documentação de que precisa para poder levar o Kurrum consigo: o bilhete de avião dele, a sua certidão de nascimento, o passaporte e os documentos
que o nomeiam seu tutor legal. Qual é a sua decisão, senhor Cross?
Hector continuava absolutamente estupefacto. Aquilo era a última coisa que esperava. Olhou para a criança. Abanou a cabeça, como se para negar aquilo que estava
a acontecer. Estendeu a mão e acariciou a cabeça do rapaz, cujos caracóis crespos lhe assomavam sob os dedos. Kurrum não fez nenhum esforço para se esquivar ao contacto.
Ergueu a cabeça e olhou para Hector. Os olhos eram escuros e transpareciam uma sabedoria muito para além da sua idade. Falou baixinho: - O meu pai diz que devo ir
consigo, efêndi. O meu pai diz que agora sou um homem e que me devo portar como um homem. É essa a vontade de Alá.
Hector continuava sem palavras. Sentia a garganta seca e o sangue que lhe latejava nas têmporas ecoava-lhe no crânio como um tambor. Curvou-se para pegar na criança
e apoiou-a no flanco. Kurrum não se debateu. Hector tocou-lhe na face e depois virou-se para o pai do rapaz.
Conseguiu ver-lhe finalmente o âmago, e o que viu era bom Sabia por fim, sem lugar para dúvidas, que aquele homem não era a Besta que ele andava a perseguir.
Hector falou com a criança apoiada no seu flanco. - És meu refém, Kurrum. - A mãe do rapaz ouviu-o e lamentou-se. Hecto: não fez caso dela e continuou a falar
com a criança. - Sabes o que isso significa, Kurrum?
O menino abanou a cabeça e Hector prosseguiu: - Significa que és valente e bom, assim como o teu pai é valente e bom
- Pousou Kurrum no chão, virou-o para a mãe e deu-lhe um empurrão delicado. - Volta para junto da tua mãe, Kurrum, e cuida bem dela, pois agora és um homem como
o teu pai foi um homem antes de ti.
A mulher estendeu os braços e Kurrum correu ao seu encontro. Ela levantou-o do chão e avançou para a porta, mas deteve-se quando a alcançou e olhou para Hector
atrás de si, com lágrimas e sangue dos arranhões a escorrerem-lhe pelo rosto.
- Mestre... - começou ela por dizer, mas depois perdeu a voz.
- Vai! - ordenou-lhe Hector. - Leva o teu filho e que Alá te acompanhe. - Ela saiu e fechou a porta suavemente, deixando Hector e Aazim Muktar sozinhos na sala
espaçosa.
- Tem a certeza? - perguntou Aazim.
- Tanta certeza como alguma vez tive em relação a qualquer outra coisa na minha vida.
- Não tenho palavras que possam exprimir a minha gratidão. - Aazim fez uma vénia. - Ofereceu-me uma dádiva superior a tudo aquilo que eu jamais poderia imaginar.
Nunca lhe poderei retribuir.
- Já me pagou o que haveria a pagar. Só o simples facto de ter conhecido um homem santo como você enriqueceu a minha própria vida.
- Continuo em dívida para consigo. A vida do meu filho tem mais importância do que tudo o resto - disse-lhe Aazim com sinceridade. - Segundo sei, você chegou
a ver o homem que assassinou a sua mulher, o qual tinha a tatuagem característica de um certo gangue.
- Foi o Tariq Hakam que lhe contou isso! - A fúria de Hector voltou a inflamar-se. - Ele é um traidor. Traiu a minha amizade. Um dia vou matá-lo.
- Não, senhor Cross. Ele não é seu inimigo. - Hector abanou a cabeça com uma determinação intransigente, mas Aazim ergueu a mão para o impedir de continuar. -
Um dia irá compreender isso. Tariq Hakam pediu-me para lhe transmitir uma mensagem. Prometi-lhe que o faria. Posso comunicar-lhe o que ele me disse?
- Se assim o desejar.
- Ele disse que não havia nenhuma outra forma de o convencer de que estava a seguir o caminho errado na procura do inimigo. Disse que você e eu precisávamos de
nos compreender.
- Jamais o voltarei a aceitar como amigo, diga ele o que disser. Nunca poderei voltar a confiar nele.
- Tariq sabe isso.
- O que é que ele vai fazer agora?
- Está determinado a abandonar o caminho do guerreiro. A partir de agora, irá seguir o caminho que conduz a Alá.
- Com que então agora descobriu Deus e tornou-se um dos seus discípulos, é isso? Ainda bem para ele, o velho tratante.
- Velho tratante. Ele mencionou que você diria isso. - Aazim sorriu. - No entanto...
Calou-se, interrompido por uma voz feminina que ecoou através do sistema de sonorização: Última chamada para todos os passageiros do Voo EK 805 da Emir ates para
Abu Zara. Embarque na Porta A2 f. Os passageiros devem dirigir-se para a Porta A26 para procederem de imediato ao embarque.
- O nosso tempo juntos chegou ao fim, senhor Cross. Quando vivi em Londres, trabalhei com um homem que dedica a vida - ajudar a reabilitar rapazes muçulmanos
apanhados na malha dos gangues criminosos de rua a operar nas principais cidades do Reino Unido. Vou enviar-lhe uma mensagem para entrar em contacto consigo. Talvez
ele consiga ajudá-lo a localizar o homicida com a tatuagem Maalek. Talvez assim você possa identificar sem margem para dúvidas o seu inimigo oculto.
- Como vai fazer para que esse homem entre em contacto comigo, Aazim Tippoo Tip? Você não sabe onde vivo.
- Desde que Brandon Hall foi arrasado pelas chamas, você mudou-se para o número onze de Conrad Road, em Belgravia.
O seu principal endereço eletrônico é cross@crossbow.com, mai tem muitos outros. Estou correto, senhor Cross?
Hector inclinou a cabeça num gesto de aquiescência irónica.
- O Tariq contou-lhe tantas coisas sobre mim. Não me surpreenderia se você soubesse que número calço.
- Onze e meio, pelas medidas americanas - replicou Aazim sem sorrir, mas Hector riu-se alto.
- Adeus, Aazim Tippoo Tip. Nunca o esquecerei.
- Nem eu, senhor Hector Cross. Posso-lhe dar um aperto de mão?
Hector estendeu-lhe a mão e olharam-se nos olhos.
- Que Alá o acompanhe, senhor Hector Cross.
- Reze por mim, xeque Tippoo Tip. - Hector deu meia-volta e saiu sem olhar para trás, dirigindo-se para a Porta de Embarque A26.
32
Embora já passasse da meia-noite quando Hector chegou à pen- thouse de Seascape Mansions em Abu Zara, convocou de imediato um conselho de guerra para a sala de
cinema privada.
À medida que os elementos da equipa foram surgindo, cumprimentaram Hector com entusiasmo, mas depois olharam em redor à procura de Tariq Hakam. Hector não fez
nenhum esforço para lhes mitigar a curiosidade até todos estarem sentados nas filas de assentos, virados para ele no estrado.
- E então, onde está o Tariq? - Foi Nastiya quem fez a pergunta em nome de todos eles.
- É uma longa história - esquivou-se Hector.
- Está bem. Então trata de a encurtar - sugeriu Nastiya.
- Continua em Meca. - Ninguém se moveu. Ninguém falou. Hector viu-se forçado a prosseguir. Fez um relato conciso, despojado de pormenores e comentários. A tensão
na sala aumentou progressivamente enquanto falava. Contou-lhes tudo, exceto a despedida final no aeroporto de Jidá e a proposta de um refém por parte de Aazim. Quando
terminou, todos se fixaram nele num silêncio sombrio. Nastiya quebrou o feitiço daquele horror coletivo. Era a única pessoa na sala que não temia Hector Cross.
- Com que então o Tariq era o traidor durante este tempo todo. Traiu-te a ti e a nós todos. Porque é que não o mataste, Hector?
Hector tinha-se preparado para aquele interrogatório durante o voo de regresso de Meca. Bombardearam-no com perguntas e dúvidas durante quase mais trinta minutos.
Hector descreveu-lhes em detalhe o sermão de Aazim Muktar na mesquita, repetindo-o quase palavra por palavra.
- E acreditaste nele, não foi, Hector?
- Foi muito convincente. Mas não acreditei verdadeiramente nele. Pelo menos, não nessa altura. Só quando ele me ofereceu o filho de seis anos como refém. Nesse
momento acreditei nele. Despiu a alma perante mim e deu-me o seu filho. Soube então que ele estava do lado dos anjos. Tive a certeza de que ele não tinha planeado
o assassinato da Hazel.
- Se ele te propôs esse tal refém, Hector, então onde está o rapaz agora?
- Aceitei-o como refém, sim, mas depois entreguei-o à mãe dele.
- Estás maluco da cabeça, Hector Cross? - exclamou Nastiya.
- Há quem possa pensar isso. - Hector sorriu e continuou:
- Mas depois Aazim Muktar Tippoo Tip forneceu-me a prova definitiva da sua inocência.
- Que prova era essa, seu tonto?
- Embora me encontrasse completamente à mercê dele, deixou-me embarcar no avião para regressar incólume aqui a Abu Zara.
Paddy O'Quinn soltou uma risada sonora e deu uma palmadinha no joelho da sua mulher. - O Hector tem razão, minha querida. Não há prova mais convincente do que
essa. Agora, até eu acredito em Aazim Tippoo Tip.
A tensão na sala dissipou-se e todos trocaram acenos de cabeça e sorrisos de complacência. Mas Nastiya afastou a mão de Paddy do seu joelho e desafiou Hector
pela última vez. - Sendo tu o cavalheiro inglês que és, tenho a certeza de que até deste um aperto de mão a esse mulá assassino, assim como tenho a certeza de que
nem sequer vais matar o Tariq Hakam, estou correta?
- Não consigo esconder nada de ti, czarina. Sim, dei um aperto de mão a Aazim Tippoo Tip e não vi nenhum sangue nela. E sim, deixei que o Tariq Hakam fosse ao
encontro do seu Deus
- admitiu Hector, levantando-se. - Se queres que te diga a verdade, sinto-me melhor por ter feito essas duas coisas. E agora, preciso de algumas horas de sono. Voltamos
a encontrar-nos aqui pela manhã, a seguir ao pequeno-almoço, para refletirmos sobre a nossa situação.
- Posso dizer-te, de borla, qual é exatamente a tua situação, Hector Cross. Voltaste à estaca zero e podes considerar-te um verdadeiro sortudo por estares aqui.
- Nastiya tentou soar austera, mas havia uma leve centelha de tristeza nos seus olhos.
33
Hector segurava Catherine no colo enquanto lhe dava o biberão. A bebé emitia pequenos grunhidos de satisfação enquanto atacava a tetina com gosto, totalmente
alheia à plateia interessada que estava sentada nas filas ascendentes na sala de cinema.
- És o único homem que conheço que consegue maquinar caos e morte ao mesmo tempo que alimenta um bebé - comentou Paddy O'Quinn, mas Nastiya assestou-lhe de imediato
um soco no braço.
- Não percebes nada de bebés, marido. Observa o Hector e cala-me essa boca.
- Já chega, meus meninos. Parem lá de brigar e acalmem-se. Temos trabalho a fazer - admoestou-os Hector. - Ontem à noite não quis discutir com a Nastiya quando
ela disse que tínhamos voltado à estaca zero. Mas isso não é inteiramente verdade. Continuamos a dispor de uma ténue pista a partir da qual podemos trabalhar. Isto
foi-me sugerido pelo próprio Tariq Hakam. Dou-lhe todo o crédito por isso. Estávamos a discutir como é que a Besta montou a emboscada à Hazel e o Tariq fez-me uma
pergunta simples. Disse: "Como é que eles sabiam?"
Hector calou-se e deixou-os assimilar aquela informação. Depois repetiu: - Como é que a Besta sabia que a Hazel ia nesse dia a uma consulta no ginecologista em
Londres? - Todos se agitaram nos seus lugares e emitiram murmúrios de concordância.
- As únicas pessoas do nosso lado que sabiam eram a Hazel, e a Agatha, a assistente pessoal dela, que marcou a consulta. Trlefonei à Agatha ontem à noite e ela
jurou a pés juntos que não tinha contado a ninguém. Ficou muito perturbada por eu ter feito essa insinuação. Trabalhou durante quinze anos para a Hazel e é absolutamente
de confiança.
- O ginecologista da Hazel sabia - aventou Nastiya.
- Sim, tens razão. O doutor Donnovan sabia. Vou regressar a Londres esta tarde para falar com ele, mas vai ser um pouco embaraçoso insinuar que ele quebrou a
confidencialidade com a sua paciente. Quero que o Paddy e a Nastiya venham comigo, e, sim, Dave, já reparei nesse teu olhar ansioso. Também podes vir connosco. É
bem provável que venhamos a precisar de ti. - Dave Embiss sorriu de alívio. Hector prosseguiu: - Por agora, a Catherinne ficará em segurança aqui em Seascape, entregue
aos bons cuidados da Bonnie e da sua equipa de apoio. - Verificou as horas no relógio de pulso. - São nove e treze. Há um voo que parte às onze e trinta para o aeroporto
de Heathrow, em Londres. Se todos puserem esses cus a mexer, conseguimos lá chegar a tempo.
34
Os quatro jantaram nessa noite no nº 11. Sentado à cabeceira da mesa, Hector ergueu o copo na direção dos outros. - Acabo de me dar conta de que passaram exatamente
quatro meses desde que a Hazel me deixou. Parece-me que foi há muito menos tempo. Sempre que entro nalguma divisão desta casa, estou à espera de a ver. Gostava que
se juntassem a mim num brinde à sua paz eterna.
Horas mais tarde, quando Paddy e Nastiya subiram para a sua suíte, a russa sentou-se à frente do toucador enfiada num roupão de seda cor-de-rosa para escovar
o cabelo. Observou Paddy pelo espelho, deitado na cama a ler o jornal vespertino. - Sabes do que o Hector precisa? - perguntou-lhe.
- Diz lá - grunhiu ele enquanto virava a página.
- Precisa de uma boa mulher na cama dele para o ajudar a esquecer.
Paddy soergueu-se de repente, alarmado, amarfanhando inadvertidamente a folha do jornal. - Não te atrevas a sugerir-lhe isso' Ele mata-te, meu docinho de coco
russo desnaturado.
- Desnaturado não sei o que é. Docinho de coco sei o que é e é bom e delicioso. Se quiseres, posso-te dar a provar um bocadinho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Hector encontrou um lugar para estacionar em Harley Street e caminhou ao longo de meio quarteirão até à clínica de Alan Donnovan.
Subiu as escadas em vez de usar o elevador e, quando entrou na área da receção, encontrou-a vazia. Aguardou alguns segundos junto à secretária de atendimento, até
que a rececionista voltou do consultório de Alan com um conjunto de dossiês de pacientes.
- Lamento tê-lo feito esperar, senhor Cross.
- Não tem mal, Victoria. - A rapariga pareceu ficar um pouco perturbada ao vê-lo, mas Hector atribuiu-o à pressão de trabalhar para um homem como Alan.
- O doutor Alan está bastante atrasado. Não quer aproveitar para tratar de outro assunto que possa ter de resolver?
- Não há problema. Não tenho pressa. Posso esperar - disse-lhe Hector.
Victoria amontoou os dossiês em cima da sua secretária. Tinha um iPhone S4 na mão livre e pousou-o ao lado da pilha de dossiês quando o intercomunicador tocou.
- Peço desculpa, senhor Cross, mas parece que hoje tudo acontece ao mesmo tempo. - Levantou o auscultador e disse: - Sim, doutor Donnovan. Sim, de imediato. -
Pousou o auscultador. - Por favor, queira-me desculpar outra vez, senhor Cross.
Encaminhou-se para as salas interiores. Deixou o iPhone pousado ao lado dos dossiês. Hector reparou que o aparelho era idêntico ao seu. Algo lhe acudiu à mente
e, de repente, tudo pareceu encaixar no devido lugar. A resposta ao enigma estivera ali, mesmo à frente dos seus olhos. Não prestara atenção a Victoria, como se
ela não passasse de uma peça de mobília. Sentiu-se mortificado pelo facto de não se ter dado conta disso muito antes.
- Ouça, Victoria - disse ele enquanto ela se afastava.
- Acabo de me lembrar de uma coisa que preciso de fazer. De qualquer modo, também não era imperioso que eu falasse hoje com o doutor Donnovan. Por favor, cancele
a minha consulta. Volto a ligar-lhe na próxima semana para marcar outra.
- Oh, tem a certeza? Muito bem, mas lamento muito que tivesse de esperar, senhor Cross. - Apressou-se na direção da porta do consultório de Alan.
Enquanto a porta se fechava, Hector inclinou-se sobre a secretária e agarrou no iPhone da rapariga. Fez deslizar o seu próprio telemóvel da bolsa que levava ao
cinto e trocou-os. Só esperava que demorasse algum tempo até ela se dar conta daquela troca. Não o preocupava a possibilidade de poder deixar informações vitais
nas mãos da rapariga. Dave Imbiss tinha-o ensinado a manter o telemóvel inviolável. Saiu da clínica e desceu para o local onde estacionara e regressou ao nº 11,
onde encontrou os outros três membros da sua equipa na biblioteca.
- Não demoraste muito tempo. Não esperávamos que voltasse tão cedo - disse Dave Imbiss.
- Fui buscar-te um pequeno presente. Aqui tens. - Atirou-lhe para as mãos o iPhone de Victoria.
- Obrigadíssimo. - Dave apanhou o telemóvel num gesto ágil. - Mas já tenho um.
- Um como este não tens de certeza - garantiu-lhe Hector
- O que quero que faças é que o leves para a oficina e lhe saques todo e qualquer pedacinho de informação. Quero a lista completa dos números de contacto que encontrares.
Todas as mensagens recebidas e enviadas, de voz e SMS. Quero cópias de todos os vídeos gravados no cartão de memória. Quero que analises com uma atenção especial
tudo aquilo que datar desde a semana em que a Hazel morreu até ao dia de hoje.
- Onde arranjaste isto? - Dave examinou o iPhone com uma súbita atenção compenetrada, revirando-o nas mãos e sem nunca olhar para Hector enquanto lhe fazia perguntas.
- Pertence a alguém? Como é que lhe conseguiste deitar a mão?
- Roubei-o à rececionista lá na clínica do Alan Donnovan. O Alan era o ginecologista da Hazel. A rececionista chama-se Victoria Vusamazulu. É uma rapariga africana,
bonita e baixinha, e o nome dela em zulu é um grito de guerra político que significa "Despertar a Nação Zulu". Quanto à nação não tenho bem a certeza, mas, no respeitante
aos atributos físicos dela, não tenho dúvida de que conseguiria despertar uns quantos mortos. Provavelmente já se deu conta de que troquei o meu telemóvel pelo dela,
mas posso continuar a empatá-la até amanhã. Portanto, tens até amanhã para lhe sacares do telemóvel tudo o que conseguires. Para além do patrão dela, a Victoria
era a única pessoa que sabia que a Hazel ia a Londres no dia da emboscada.
Dave sorriu deleitado perante aquele desafio. - Não vai ser preciso tanto tempo. Esta pequena zulu em breve deixará de ter segredos para mim. Com licença, malta.
Hector resistiu à tentação de seguir Dave até à oficina na cave. Dave era um dos melhores no seu ramo, mas trabalharia melhor ainda sem que o acossassem com conselhos
não solicitados. Hector deixou-o ocupar-se da tarefa e foi para o seu estúdio.
Agatha tinha digitalizado toda a informação de Hazel desde os tempos em que começara a trabalhar como sua assistente pessoal. Deixara-lhe na escrivaninha um disco
externo que continha todo esse acervo: muitas centenas de gigabytes.
Agora que o rasto do assassino de Hazel esfriara em Meca, Hector estava determinado a voltar diretamente ao início da deslumbrante carreira de Hazel para tentar
identificar todos os rivais que ela antagonizara ao longo do seu percurso. Por muito que a tivesse amado, Hector em momento algum duvidara da capacidade de Hazel
para fazer inimigos. Hazel lutara com unhas e dentes para chegar ao topo e nunca recuara perante uma luta.
Quem passa toda uma vida a abalar montanhas, a revolver os oceanos e a desbravar selvas, como Hazel fez, acaba por espantar e afugentar algumas criaturas bem
assustadoras. Hector iniciou nova busca de uma dessas criaturas. A mais perversa e vingativa de todas; o inimigo que faria um grande tubarão branco parecer-se com
um Chihuahua desdentado.
Passadas apenas duas horas desde que começara a trabalhar, intercomunicador tocou. Era Agatha.
- Bom dia, senhor Cross. Tenho em linha a rececionista da clínica do doutor Donnovan. Tentei dizer-lhe que a altura não era oportuna, mas ela foi bastante insistente.
Posso passar-lhe a chamada?
- Obrigado, Agatha. Pode passar-ma. - Fez uma anotação mental para ter uma conversa séria com Agatha. Precisava urgentemente de uma assistente pessoal e ela seria
perfeita para esse cargo. Trabalhara para Hazel durante toda a sua vida e talvez agora pudesse transferir essa lealdade para ele. Um benefício secundário a desse
acordo era que não correria nenhum risco de um eventual envolvimento afetivo. Pôs esse pensamento de lado e atendeu a chamada: - Cross.
- Peço desculpa por o incomodar, senhor Cross. Daqui fala Vicky Vusamazulu. Parece que houve um engano. Reparei na sua primeira visita à clínica que o senhor
tem um iPhone S4 igualzinho ao meu...
- Sim, tenho - respondeu Hector, lamentando-se logo de seguida: - Oh, raios. Agora percebo o que deve ter acontecido. Não tenho conseguido ativar o meu telemóvel,
está sempre a recusar a minha palavra-passe. Estava junto à sua secretária esta manhã quando saí da clínica. Lembro-me que ia fazer uma chamada, mas depois mudei
de ideias e fui à casa de banho. Só aí é que me dei conta de que tinha deixado o meu telemóvel na sua secretária. Voltei para a receção. Você não estava lá, mas
vi um iPhone em cima da secretária. Pensei que era o meu e levei-o. As minhas sinceras desculpas, Vicky. Que estupidez a minha. Por acaso não tem aí consigo o meu
telemóvel, pois não?
- É por esse motivo que lhe estou a ligar, senhor. Tenho aqui o seu telemóvel. Sei que é o seu porque o senhor escreveu o número dentro da tampa de trás. O meu
tem muitas informações confidenciais. Posso ir a sua casa hoje depois do trabalho para trocar- os telemóveis?
- Vai ter de me desculpar, Victoria. Vou sair dentro de alguns minutos e só voltarei bastante tarde. Mas se, tal como diz, contém informações confidenciais, levarei
o seu telemóvel comigo. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia. Passo aí na clínica pela manhãzinha para trocarmos os telemóveis.
- Oh, meu Deus! Não consegue arranjar um tempinho hoje? é um grande contratempo para mim.
- Lamento, Victoria. Amanhã antes das dez, prometo-lhe.
- Desligou antes que a rapariga pudesse voltar a protestar.
Poucos minutos após as cinco da tarde, Dave Imbiss ligou-lhe através do intercomunicador.
- Desculpa. Demorou mais do que pensava. Essa jovem mazulu é uma pequena megera astuta. Pôs toda uma série de armadilhas no aparelho dela. Mas consegui sacar tudo
o que querias.
- Excelente trabalho. Conta-me.
- É melhor vires cá dar uma olhada e ouvires por ti mesmo. Vamos precisar de usar a sala de cinema. Tenho cerca de uma hora de vídeos para te mostrar. Antes de
vires, devias tomar um calmante ou até dois. Vais ficar impressionado com o que tenho para te mostrar.
- Estou aí dentro de cinco minutos. Liga ao Paddy e à Nastiya para se juntarem a nós neste espetáculo de gala.
Paddy e Nastiya estavam sentados no meio da segunda fila de assentos quando Hector entrou na sala de cinema. Dave estava ocupado com o equipamento eletrônico.
Ergueu a cabeça assim que Hector levantou a perna comprida para transpor a primeira fila e sentar-se no lugar ao lado de Nastiya.
- Lamento desapontar-vos, pessoal. Não vamos ter anúncios publicitários. Portanto, vou direto à atração principal - disse-lhes Dave. - Em primeiro lugar, algumas
conversas selecionadas. Um facto que a maior parte dos utilizadores de um iPhone desconhece é que nada fica perdido para sempre, por mais vezes que uma pessoa elimine
a informação, podemos sempre recuperá-la. A jovem Vusamazulu fez duas tentativas para eliminar esta conversa em particular, mas ei-la aqui de novo, gravada no dia
em que a Haze teve a última consulta com o Alan Donnovan. - Dave começou a reproduzir a gravação áudio. O primeiro som era o simples toque de chamada de um telemóvel
e, imediatamente a seguir, ouviu-se um clique quando a chamada foi atendida do outro lado da linha Fez-se uma pausa e depois falou uma voz feminina.
"Olá. És tu, Aleutian?"
A resposta foi imediata. "Já te disse para não mencionares nomes, sua cadela." A cadência era a do hip-hop americano. O tom era arrogante.
O leve arquejo de contrição da mulher era quase inaudível. Depois, a sua voz adotou um tom de súplica submissa: "Desculpa Já me tinha esquecido."
"Então não te esqueças de apagar depois o registo desta chamada quando terminarmos. E agora, conta-me! Ela já chegou?"
"Sim, está cá. Mas o marido já saiu. Disse ao doutor que voltava à uma e meia."
"Ótimo!", disse a voz masculina, e a chamada terminou. Dave desligou a gravação áudio. Todos ficaram em silêncio durante alguns momentos.
Depois, Hector disse: - Aleutian. Foi esse o nome que ela usou?
- Parece que sim. De qualquer modo, provavelmente é uma alcunha do submundo do crime, um nome de guerra. Não o nome que o tipo usa no passaporte, como deves imaginar.
- Volta a passar a gravação.
Dave puxou a conversa atrás e reproduziu-a de novo. Todos se inclinaram para a frente para ouvir. Quando a conversa terminou. Paddy concordou: - Aleutian. Definitivamente,
Aleutian. Portanto, pelo menos já temos um nome como ponto de partida.
- A data e a hora estão corretas. Deixei a Hazel na clínica do Donnovan e fui tratar de umas coisas na cidade - concordou Hector. - Que mais tens aí, Dave?
- A chamada seguinte foi às nove e quarenta e cinco dessa mesma noite - disse-lhes Dave. - Deste tal Aleutian a ligar à Victoria.
Reproduziu o telefonema. Ouviram-se quatro toques de chamada e depois a voz e a entoação inconfundíveis da rapariga.
"Olá. Fala a Victoria." "Vou aí buscar-te dentro de dez minutos. Espera por mim em baixo, à entrada da tabacaria. Vou num Volkswagen azul alugado."
"Estás atrasado. Tinhas dito às sete." "Pronto. Esquece. Posso arranjar outra gaja para hoje à noite. Não faltam ratas frescas por estas bandas."
"Não! Não era isso que eu queria dizer. Desculpa. Perdoa-me, por favor. Eu depois compenso-te. Prometo."
"Espero bem. Tou aqui a rebentar de tesão que nem imaginas. Victoria soltou uma risadinha. "És tão engraçado. Vem cá que eu alivio-te desse tesão todo, meu garanhão."
Hector interveio em voz baixa: - Na altura em que essa conversa erudita decorria, a Hazel estava em coma, com uma bala enfiada no cérebro e a poucas horas de morrer.
Paddy baixou a cabeça e remexeu-se inquieto. Nastiya agarrou na mão de Hector que estava pousada no assento entre ambos. Apertou-lha com força, mas continuou em
silêncio. Não havia nada que nenhum deles pudesse dizer para o confortar.
Dave tossicou e quebrou o silêncio. - Há mais quatro conversas entre os dois, mas é tudo no mesmo registo desbragado. Só ameaças e armanços de proezas sexuais da
parte dele e algumas recriminações dela. Mas não houve mais nenhuma chamada do tal Aleutian nestas últimas semanas. Tentei ligar para o número dele, mas está desligado.
- Ou ele lhe deu com os pés, ou então saiu do país há algumas semanas - aventou Hector.
- Largou-a simplesmente - disse Nastiya com grande determinação. - Os homens como esse Aleutian não costumam ficar mais que algumas semanas no mesmo sítio. Põem-se
ao fresco assim que conseguiram dar uma boa dentada no docinho de coco. - Virou-se para Paddy e franziu de forma sugestiva a sobrancelha perfeitamente delineada.
- Nada de piadas privadas aqui, por favor - advertiu-a Dave. - Mantenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto
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antenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto a chamadas telefónicas, é tudo, mas forneceram-nos algum material interessante. - Olhou para Hector. -
Se estiveres pronto, posso passar os vídeos.
- Podes prosseguir, Dave, por favor.
Dave diminuiu a intensidade das luzes e começou a reproduzir o primeiro vídeo que tinha copiado do iPhone. Ouviu-se imediatamente nos altifalantes uma cacofonia
de ruídos de fundo, vozes masculinas altas e estridentes gritos de riso femininos, música aos berros e o tilintar de garrafas e copos. No ecrã, as imagens eram confusas
e pouco nítidas enquanto o enquadramento da câmara oscilava de forma frenética do teto para o chão, detendo-se sobre uma mesa atulhada de garrafas de cerveja e copos
meio vazios e apresentando depois primeiros planos de pernas e pés. Depois estabilizou. A cena era obviamente o interior de um clube noturno sórdido. As mesas estavam
agrupadas em redor de uma minúscula pista de dança. A voz inconfundível de Victoria sobrepôs-se ao chinfrim.
"Toca a curtir, pessoal! Não se esqueçam que esta é a vossa audição para o Fator X." A lente focou-se num grupo de jovens sentados em redor de uma mesa atulhada
de bebidas e cinzeiros a transbordar de beatas. Alguns dos jovens lançaram olhares lúbricos na direção da câmara e ergueram os copos num brinde, outros tinham charros
enfiados em diversos ângulos nos cantos das bocas e sopravam baforadas de fumo, chegando um deles a enfiar o dedo pela garganta abaixo e a imitar sons de vómito.
A câmara focou-se numa atraente rapariga loira sentada no regaço de um rapaz na extremidade oposta da mesa e a voz de Victoria instruiu-a: "Vá lá, Angie. Faz
um truque de magia."
Angie enfiou os polegares na parte de cima do vestido e puxou-o até à cinta, expondo os seios grandes e brancos. Agarrou um em cada mão e apontou os mamilos para
a câmara. "Bangf Bang! Estás morto!", guinchou. A câmara estremeceu devido à risada geral que se seguiu e depois fixou-se no folião seguinte no círculo.
- Aqui vamos nós! - advertiu-os Dave Imbiss, parando o fotograma. Estavam a olhar para a imagem de um homem de pele escura. Hector calculou que teria pouco mais
de trinta anos. Tinha o cabelo empastado de gel, modelado na forma de um grande sol sobre a testa, e usava um blusão com as mangas enroladas acima dos cotovelos
e com o capuz lançado para trás. Os antebraços eram musculosos e tonificados, como se fizesse musculação num ginásio. Era bem-parecido, mas de um modo bruto, com
boca cruel e cínica. A sua expressão era premeditadamente interessada.
Dave deixou-os escrutinar a imagem durante mais algum tempo. - Creio que temos aqui o elo perdido do puzzle, o tipo que planeou e montou o golpe. Senhores e senhoras,
apresento-lhes o tal Aleutian.
Hector endireitou-se no assento e inclinou-se de imediato para frente, como um cão de caça cujas narinas acabassem de captar o cheiro da presa. - Temos mais gravações
desta beldade? - perguntou num tom mortiferamente glacial.
- Imensas. Imensas. A Victoria está de beiço caído pelo tipo. Parece que nunca fica satisfeita.
- Nem eu - murmurou Hector. - Quero-o a todo o custo. Continua, Dave.
O vídeo recomeçou e a voz de Victoria retomou os comentários.
Senhoras e senhores, homem mais estiloso do que isto é impossível. Apresento-lhes o senhor Estiloso em pessoa. Acena aos teus fãs. senhor Estiloso."
O Sr. Estiloso ergueu dois dedos em V e colocou o polegar entre ambos. Sem alterar a expressão que arvorava, enfiou o polegar na direção da lente, num gesto grosseiramente
obsceno. Victoria lançou um apupo e entoou: "Faz-me isso outra vez!".
O homem enquadrado pela lente reclinou-se para trás na cadeira e enlaçou as mãos por trás da nuca. Lançou uma piscadela à câmara. Dave voltou a congelar a imagem.
- Muito bem, malta, verifiquem só a mão esquerda dele - disse Dave, fazendo um zoom da mão. - É aquela a tatuagem vermelha?
- Sem tirar nem pôr, Dave. A tatuagem do Maalek. Mas temos a certeza de que este é mesmo o Aleutian? Ela não usou esse nome neste vídeo. Continua a passar a gravação.
Dave retomou a reprodução do vídeo, mas a câmara deixou de enquadrar o sujeito e Dave desculpou-se. - Não há mais nada neste vídeo. Mas não precisam de ficar
preocupados. Há muito mais em três dos outros vídeos, o suficiente para fazer vomitar um homem rijo.
- Vejamo-los então, por favor - ordenou Hector.
O vídeo seguinte era um plano amplo da pista de dança do clube noturno. A pessoa que estava a filmar postara-se certamente em cima de uma das mesas para conseguir
um tal ângulo elevado. Na orla mais próxima da pista de dança, Victoria Vusamazulu estava a dançar com o homem da tatuagem. Abanava as ancas, baloiçando a cabeça
de um lado para o outro, fazendo com que a comprida cabeleira postiça lhe caísse sobre a cara. O seu parceiro era bastante mais alto que ela. Tinha tirado o blusão
de capuz e a camisola de mangas cortadas que usava expunha-lhe a totalidade dos braços fortes e musculados. Hector conseguiu calcular-lhe a estatura comparando-o
com Victoria. Ela não lhe chegava sequer aos ombros.
Era alto, muito alto, e movia-se de forma ágil, com equilíbrio e coordenação. Era rápido nos movimentos de pés. Hector calculou que fosse um adversário perigoso.
De repente, o homem arrancou a cabeleira da cabeça de Victoria e rodeou-a, fustigando-lhe as costas e as nádegas com a cabeleira, como se ela fosse sua escrava.
A rapariga contorceu-se numa agonia fingida. O sujeito estendeu a mão para lhe desapertar o fecho que corria ao comprido das costas do vestido e abriu-o até à fenda
entre as nádegas. Ela agarrou a frente do vestido contra os seios, mas tinha as costas nuas e a pele escura reluzia de suor.
Os outros foliões rodearam-nos, acompanhando o ritmo da música e os seus movimentos primitivos com palmas, incitando-os com gritos estridentes e uivos de excitação.
O homem acercou-se por trás de Victoria, agarrou-lhe as ancas e puxou-a para si, golpeando-lhe as nádegas com o próprio sexo, numa paródia explícita de uma relação
anal. Ela lançava as nádegas contra ele com o mesmo vigor, correspondendo a cada uma das investidas dele e aguentando o assalto.
De repente, o ecrã escureceu e o ruído reduziu-se a um silêncio total. Dave ligou as luzes do teto.
- Desculpem lá - disse numa voz jovial. - Fim do vídeo. Nunca iremos saber como essa história acabou.
- Ainda bem. Nenhuma rapariga decente estaria segura na cama com um marido que tivesse visto uma coisa dessas - opinou Nastiya, dando uma cotovelada nas costelas
de Paddy.
- Se achaste aquilo um pouco excessivo, Nastiya, então é melhor saíres daqui antes que vos mostre o último vídeo - advertiu-a Dave.
Nastiya abanou a cabeça e chegou-se mais a Paddy. Agarrou-lhe o braço com força. - Sei que posso confiar neste homem para me proteger - disse. - É meu dever ficar
aqui. Um dia, talvez seja meu dever matar esse animal repugnante, esse Aleutian.
- Como podemos saber que este tipo é mesmo o Aleutian? - interveio Hector. - Vá lá, Dave, diz aí o nome, por favor.
- O seu desejo é uma ordem, chefe. O nome dele já vai surgir! - Desligou as luzes e passou o último vídeo.
Uma vez mais, assistiram a uma série de planos pouco nítidos e desfocados, do chão e do teto daquilo que era claramente o quarto de uma mulher, com uma colcha
cor-de-rosa na cama enorme e um toucador atulhado de artigos de higiene pessoal e frascos de perfume. Havia também uma coleção de animais de peluche dispostos na
única cadeira ao lado da cama. Depois a imagem estabilizou, como se a câmara tivesse sido colocada num tripé. O enquadramento centrou-se na cama. O homem da sequência
do clube noturno estava deitado de costas na cama, nu. Olhou para a lente, com a mesma expressão enigmática. Colocara uma das mãos atrás da cabeça e a tatuagem era
claramente visível. Com a outra mão, acariciava-se.
"Vá lá", disse ele à pessoa atrás da câmara. "Estás à espera de quê? Não me digas que tens medo aqui do meu Grandalhão, minha cadela."
Vicky Vusamazulu surgiu toda saracoteada no plano. Também estava nua. As reluzentes nádegas negras baloiçavam-lhe enquanto se aproximava do homem na cama. Alçou
uma das pernas por cima dele e montou-o.
Nenhum dos presentes na sala de cinema voltou a falar durante algum tempo. Victoria tornou a levantar-se mais duas vezes da cama e postou-se atrás da câmara para
alterar o ângulo e a focagem, de um plano de grande abertura para um primeiro plano muito próximo, e depois voltou a correr para a cama e lançou-se uma vez mais
à ação.
- Não acham estranho? - perguntou Hector por fim.
- O quê? - disse Paddy, sem tirar os olhos do ecrã.
- Não acham estranho como é aborrecido ver outras pessoas fazer isto, quando é uma enorme diversão sermos nós a fazê-lo?
Nastiya riu-se com deleite. - Adoro-te, Hector Cross! Consegues ser tão sensato e engraçado.
- Puxa à frente, por favor, Dave - insistiu Hector.
Dave encolheu os ombros. - Está bem, mas aviso-te desde já que vais perder uma carrada de material interessante.
Os movimentos do casal no ecrã tornaram-se tão bruscos e freneticamente acelerados como os de um filme a preto e branco de Charlie Chaplin da década de 1920.
O som era uma série de guinchos ininteligíveis.
Nastiya começou a rir, acabando por contagiar todos os outros. Dave Imbiss conseguiu por fim controlar suficientemente o riso para os advertir: - Muito bem, calem-se
todos, malta, por favor! Aqui vem o momento pelo qual todos esperávamos!
A ação abrandou para o ritmo em tempo real e Aleutian falou de forma bem audível: "Prepara-te, minha beleza! Aqui vem a mortífera serpente negra africana!"
"Oh, sim, Aleutian! Enfia-mo todo, Aleutian, meu cabrão obsceno!"
- E aqui têm! - disse Dave Imbiss num tom complacente.
- Peçam o nome e aqui o Imbiss dá-vos o nome, não uma, mas duas vezes. Isto é o que eu chamo um serviço impecável. - Estendeu a mão e desligou o vídeo.
Hector quebrou o silêncio que se seguiu. - Aquela rapariga não foi muito bem-educada. - Proferiu a sua opinião numa voz séria: - Repararam que no final ela nem
sequer chegou a dizer "por favor"? - Levantou-se e avançou para o estrado. Enfiou as mãos nos bolsos e virou-se para eles.
- Excelente trabalho, Dave. Nunca me deixas ficar mal. Neste preciso momento, acabas de tornar a Victoria Vusamazulu no assunto mais picante da cidade. É a única
pista que nos pode conduzir ao Aleutian. Precisamos de lhe manter o entusiasmo bem aceso. - Olhou para Nastiya. - Lamento, mas vai ser essa a tua tarefa, Nazzy.
- Eu? - Pareceu surpreendida. - Não me parece que a Victoria tenha dado mostras de quaisquer tendências lésbicas.
- Sabes tão bem quanto eu que uma mulher está muito mais aberta a uma abordagem amigável por parte de outra mulher do que de um homem. Ela não está à espera de um
tal engate. Quero que tu e a Vicky se tornem almas gémeas. Assim não perdemos de vista o tal Aleutian.
- Está bem. - Nastiya encolheu os ombros. - Que queres que eu faça?
Hector virou-se para Dave. - Dá-me o iPhone da rapariga, por favor.
Dave entregou-lho. Hector ligou-o e marcou um número. - Estou a ligar para o meu próprio telemóvel - explicou.
Assim que o toque de chamada soou, ligou o altifalante e fez sinal aos outros para se manterem em silêncio.
- Olá. Ligou para o telemóvel de Hector Cross. Fala Victoria Vusamazulu. - Aqui Hector Cross, Vicky. Ainda precisa que lhe entregue o seu iPhone esta noite em vez
de ser amanhã? Acho que posso tratar disso. - Oh, sim, por favor, senhor Cross - exclamou ela com entusiasmo. - Seria fantástico. Sinto-me totalmente perdida sem
ele.
- Muito bem. A minha secretária está acabar de terminar o expediente. Vou enviá-la num táxi ao seu encontro. Ela entrega-lho.
- Obrigada. Muito obrigada, senhor. - Calculo que já deva estar em casa, não? Qual é a sua morada? - Sim, estou no meu apartamento em Richmond. A morada é 47, Gardens
Lane e o código postal é TW9 5LA. Diga ao taxista que fica na esquina com Kew Gardens Road. Fica a cerca de trezentos metros ao fundo da estrada de quem vem da estação
de Kew Gardens.
- Muito bem. A minha secretária chama-se Natasha Voronc > É uma senhora russa de cabelo loiro. Estará aí consigo dentro de trinta ou quarenta minutos.
Desligou a chamada e entregou o telemóvel a Nastiya. - Podes ir, czarina. A Victoria está à tua espera. Demora o tempo que precisares. Nós tratamos de te guardar
o jantar. - Calou-se por momentos e depois prosseguiu: - Ouve uma coisa: para numa dessas lojas de bebidas a caminho e compra à Vicky uma garrafa de vinho decente.
Diz-lhe que é um presente da minha parte. Um grande pedido de desculpa por lhe ter levado o telemóvel. Talvez te convide a partilhares a garrafa com ela. Provavelmente
está sozinha agora que o Aleutian desapareceu de cena. Faz-te de muito amiga dela, tenta levá-la a confidenciar-te os seus segredos femininos. É mais do que certo
que vai querer queixar-se do Aleutian e dizer-te como ele é um grande cabrão. E tu podes-te queixar do Paddy e dizer-lhe que ele é um grande cabrão. Vocês as duas
vão-se divertir um bom bocado.
- Essa sugestão agrada-me - concedeu Nazzy.
36
Nastiya regressou da sua visita ao apartamento de Victoria uma hora atrasada para o jantar. Os três homens, de uniforme de gala e a beberem o seu segundo uísque,
esperavam-na na sala de estar. Levantaram-se assim que ela surgiu à entrada.
- E então, como correu, minha querida? - perguntou-lhe Paddy, antecipando-se aos outros.
- Deixem-me primeiro ir lá acima mudar de roupa. Não demoro mais de um minuto e já vos conto a história toda quando voltar.
Quando desceu as escadas, todos se aperceberam de que valera a pena esperar. Nastiya usava os seus diamantes e estava deslumbrante. Na qualidade de anfitrião,
Hector deu-lhe o braço e conduziu-a para a sala de jantar. O primeiro prato era solha-limão-do-pacífico grelhada, servida desespinhada e acompanhada de cogumelos
silvestres da Provença, regados com molho de açafrão.
A comida manteve-os em respeitoso silêncio durante alguns minutos, até que Nastiya suspirou deliciada e limpou a boca ao guardanapo antes de falar.
- Aquela Victoria é uma rapariga muito querida. Acho-a simpática. Claro que é muito ingénua e louca por homens, como qualquer rapariga saudável da sua idade.
Mas, na verdade, não é mal-intencionada. Depois de beber dois copos de vinho, convenceu-se de que sou a sua nova melhor amiga. Sente-se sozinha, como o Hector tinha
dito. Quer alguém com quem possa falar. Nunca mais me deixava ir embora. Ela pensa que esse tal Aleutian vai voltar da América para casar com ela.
- Então foi para aí que ele foi. Bate certo com o sotaque e a tatuagem. Ela sabe que ele esteve envolvido no homicídio da Hazel?
Nastiya foi firme e determinada na resposta. - Tenho a certeza que não. Claro que não podia insistir com ela sobre esse assunto. Mas, como sabia que eu trabalho
para o Hector, foi ela mesmo quem trouxe o assunto à baila. Estava a par do assassinato da Hazel, através das notícias que tinha lido na imprensa e ouvido na TV.
Mas nunca associou o episódio ao Aleutian. O Aleutian disse-lhe que é um manda-chuva no negócio do petróleo na Califórnia. Pediu-lhe para o ajudar a conseguir um
encontro com a Hazel, para tentar aliciar a Bannock Oil e a Hazel a participarem num negócio qualquer que ele tinha em mente. Pediu à Victoria para o informar quando
a Hazel saísse da clínica do doutor Donnovan nesse dia para simular um encontro acidental. Já vos disse que a Victoria é muite ingénua e um pouco estúpida. Mas simpatizo
com ela.
- Isso quer dizer, então, que já não vamos deitar-lhe a mão para a fazer dar à língua? - Paddy olhou para Hector. - Devo dizer que estou desapontado. Até podia
ser divertido.
Hector sorriu e respondeu: - De certeza que a Nastiya tem razão. Aquela rapariga é uma lorpa. Não é muito inteligente e não sabe de nada. Mas é possível que o
Aleutian regresse cá para voltar a saborear o pitéu que ela de tão bom grado oferece. Essa é praticamente a única utilidade que ela tem para ele agora, ou para nós.
Sabes se a Vicky tem o atual número de telefone dele ou qualquer outro modo de o contactar?
- Perguntei-lhe isso, mas só tem o número de telemóvel que sacámos do iPhone dela. Ela diz que ele nunca lhe atende as chamadas. Pensa que isso só pode dever-se
ao facto de ele não ter roaming no telemóvel lá nos Estados Unidos. Só sabe é que ele lhe prometeu que voltaria para ela e que iriam viver juntos. E acredita que
ele vai cumprir a palavra.
- Mantém-te em contacto com ela, por favor, Nazzy. Pode dar-se o caso de ele de facto voltar.
- E que fazemos até lá? - perguntou Dave Imbiss. - Chegámos a outro beco sem saída, não é?
Todos olharam para ele, mas Hector não respondeu de imediato. Deu um gole no seu copo de vinho e saboreou-o, descrevendo círculos com a língua. - Este Chablis é
perfeito para acompanhar a solha.
- Todos sabemos que és um grande conhecedor de vinhos, mas isso não responde propriamente à pergunta do Dave - frisou Nastiya. Hector foi salvo pela entrada de Stephen,
o seu mordomo, e virou-se para ele com um certo alívio. - Passa-se alguma coisa, Stephen?
- Peço desculpa por o incomodar, senhor. Mas está um cavalheiro à porta. Bem, para ser sincero, senhor, diria que é mais um jovem mal-arranjado do que um cavalheiro.
Tentei mandá-lo embora, mas foi muito insistente. Diz que vem da parte de alguém chamado Sam Mucker. Que o senhor sabe a quem ele se refere. Diz que se trata de
uma questão de vida ou morte; foram estas as palavras dele.
Hector ponderou por momentos. - Sam Mucker? Não faço a mínima ideia do que é que ele está a falar. Já passa das dez e estamos a meio do jantar. Por favor, Stephen,
diga amavelmente ao sujeito que se ponha ao fresco.
- Com todo o gosto, senhor Cross. - Stephen conteve um sorriso e dirigiu-se para a porta com passadas firmes e determinadas.
Assim que o mordomo fechou a porta, Hector levantou-se de um salto da cadeira à cabeceira da mesa. - C'os diabos! - exclamou. - O tipo estava a referir-se a Aazim
Muktar. Stephen, volte já aqui! A porta voltou a abrir-se e Stephen manteve-se especado à entrada. - Chamou, senhor?
- Sim. Mudança de planos. Por favor, acompanhe o cavalheiro à biblioteca e ofereça-lhe uma bebida. Faça de tudo para o tratar como um cavalheiro. Diga-lhe que já
vou. - Hector virou-se para Dave. - Não, jovem David, meu rapaz. Não me parece que tenhamos chegado a outro beco sem saída. Aliás, desconfio que a verdadeira diversão
pode estar prestes a começar. - Fez soar a campainha para chamar o criado e disse-lhe: - Peça à para me guardar o resto desta excelente refeição no rescaldeiro.
- Levantou-se e disse aos outros: - Não esperem por mim, talvez demore um pouco. - Saiu da sala de jantar e foi para a biblioteca.
Quantas menos pessoas vissem o agente de Aazim Muktar. melhor para todos.
37
O visitante estava especado de costas viradas para a lareira, a aquecer-se. Tinha uma Coca-Cola na mão e Hector percebeu de imediato por que razão Stephen não o
vira com bons olhos. Tinha o rosto por barbear e o cabelo emaranhado e oleoso. As calças de ganga estavam esfarrapadas e provavelmente nunca tinham sido lavadas.
O desenho dos lábios conferia-lhe ao rosto uma expressão carrancuda e os seus modos sugeriam que se tratava de um sujeito desprezível. Tudo nele anunciava que se
estava na presença de um refugo da vida, um dos falhados.
Hector acercou-se dele e estendeu-lhe a mão. - Olá, sou o Hector Cross.
O rapaz apertou-lhe a mão sem hesitação. Os olhos eram castanho-claros, amistosos e inteligentes, em total contraste com o resto da sua aparência. - Eu sei. Fiz
uma pesquisa sobre si no Google. Devo confessar que o senhor é um homem deveras impressionante. Chamo-me Yaf Said, mas costumava dar pelo nome de Rupert Marsh antes
de encontrar Alá. - A voz era agradável, mas firme.
- Então por que nome te devo tratar? - Escolha o senhor. - Yaf significa "amigo". Vou-te chamar assim, pode ser? - Claro, se assim o desejar, senhor. - Senta-te,
Yaf - convidou-o Hector, sentando-se numa das poltronas de couro.
- Estou bem aqui, junto à lareira, senhor - declinou Ya:
- Vim de moto e apanhei frio. Além do mais, prefiro estar de pé na presença de pessoas mais velhas e mais importantes.
Hector pestanejou, surpreendido. Este miúdo tem classe, pensou.
Yaf pareceu ler-lhe o pensamento. - Por favor, queira-me desculpar o cabelo e a barba por fazer, bem como o meu aspeto geri. Esta é a minha roupa de trabalho.
- Aazim Muktar disse-me que ajudas outros miúdos transviados a reencontrarem o caminho.
O rosto de Yaf iluminou-se ao ouvir o nome do mulá. - Aazim Muktar fez o mesmo por mim. Quando cheguei à mesquita dele, estava um farrapo, num estado lastimável.
Estava farto da vida, farto de mim, sempre drogado. Ele mostrou-me o caminho e fez-me mudar de vida. É um grande homem. Grande e santo. - Sorriu timidamente. - Ei!
Peço desculpa, senhor Cross. Até pareço um daqueles tipos nos anúncios publicitários da TV!
- Sei como te sentes. Também eu o admiro.
- Aazim Muktar disse-me que o senhor procura um homem Não me disse porquê e também não lhe vou perguntar a si.
- Bem, caso sirva de ajuda, a pessoa que procuro chama-se Aleutian - disse Hector.
Yaf sorriu. - Lá no submundo, os nomes pouco ou nada significam. Consegue-me descrever o aspeto dele, senhor?
- Tenho fotografias dele - confirmou Hector.
- Isso vai-me facilitar as coisas, senhor. Com as fotos, é canja. Posso vê-las, por favor?
- Vou buscá-las. Talvez demore algum tempo. - Hector levantou-se. - Quando foi a última vez que comeste, Yaf? Pareces -me muito magrinho.
- Nunca tenho muito tempo para comer.
- Bem, agora tens tempo. Vou dizer à cozinheira para te preparar umas sandes e uma taça de batatas fritas com ketchup.
- Obrigado, senhor. Parece-me ótimo. Mas, por favor, nada de carne. Sou vegetariano.
- E ovos e queijo?
- Gosto de ambos.
Cerca de uma hora depois, Dave já tinha imprimido uma dúzia fotogramas dos vídeos de Vicky e Hector levou-os para a biblioteca, onde Yaf já devorara uma travessa
de sandes de queijo, tomate pasta para barrar Marmite e se ocupava agora dos ovos cozidos e taça de batatas fritas. Levantou-se de um salto assim que Hector entrou
na biblioteca.
- Foram as melhores sandes que comi nos últimos quinze anos, altura em que a minha mãe morreu e fiquei a viver na rua.
Hector achava que ele não teria mais de 25 anos. Por conseguinte, desde os dez anos que levava uma vida de agruras. - E o teu pai, rapaz? - perguntou-lhe.
Yaf esboçou um sorriso triste. - Nunca o cheguei a conhecer. Acho até que nem a minha mãe sabia grande coisa acerca dele. Se calhar sou um daqueles tipos sortudos
que tem só uma mãe mas vinte e cinco putativos pais. Não sei.
Hector sorriu face àquele pequeno gracejo corajoso e entregou-lhe as imagens impressas. - Dá uma olhada e diz-me o que pensas. Mas faz-me um favor e senta-te, pode
ser? Estás-me a pôr nervoso, Yaf.
Yaf sentou-se na beira da poltrona à frente da de Hector e examinou cuidadosamente cada uma das imagens que Dave
- Estás a ver a tatuagem dele? - perguntou Hector. - Sim, é uma das marcas distintivas do gangue Maalek. Ele deve ser um deles. - Olhou por fim para Hector e disse:
- Lamento, senhor. Não conheço este tipo, mas tem ar de quem só traz problemas.
Reparou no desapontamento de Hector e apressou-se a continuar: - Mas, por favor, não se preocupe, senhor. Se ele se encontrar num raio de cem quilómetros para lá
dos limites de Londres, acabarei por o encontrar. Vou tratar de pôr muita gente na rua à procura dele. Pode-me dar um número de telefone para o contactar em caso
de urgência? Tipos como este movem-se muito rápido, como tubarões-tigre à caça.
- Se ele for avistado, podes-me ligar para este número. - Hector aproximou-se da secretária e anotou o número do seu iPhone num cartão em branco. - Podes-me ligar
a cobrar no destinatário, seja qual for a parte do mundo onde eu estiver.
- Entregou-lhe o cartão e acompanhou-o à porta da entrada, ficando depois a vê-lo enquanto montava a lambreta BW de 12 e cruzava os portões.
Se calhar nunca mais o vou voltar a ver, mas nunca se sabe.
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Tentou afastar o rapaz da mente. No entanto, nos dias que se seguiram, Yaf não parava de se intrometer nos seus pensamentos, inclusive quando estava a tentar concentrar-se
na leitura da documentação de Hazel.
- Vivemos numa sociedade imoral quando os banqueiros recebem bónus de vários milhões de libras e rapazes honestos não conseguem arranjar trabalho e ficam a apodrecer
na rua até acabarem por cair numa vida de crime. Um dia acaba por rebentar tudo quando menos se espera - comentou ele a Paddy certo dia.
Isto fê-lo pensar em Catherine Cayla e naquilo que o mundo lhe reservava para o futuro. Apercebeu-se de que tinha imensas saudades da filha e que precisava desesperadamente
de voltar a vê-la. De modo que, alguns dias depois, apanhou um voo de regresso a Abu Zara, acompanhado de Paddy, Nastiya e Dave Imbiss.
39
- Temo-nos portado como uma boa menina, papá. Ganhámos quase meio quilo desde que o senhor partiu. - Bonnie colocou Catherine nos braços de Hector assim que ele
entrou no átrio da penthouse em Seascape Mansions. - Mas tivemos tantas saudades do nosso papá, não foi, bebé?
Hector não estava muito familiarizado com esta linguagem maternal e não percebeu bem quem sentia saudades de quem, mas esperava que não fosse aquilo que as palavras
de Bonnie pareciam transparecer.
Hector chegara mesmo a tempo para dar o biberão a Catherine e deitá-la depois no berço. Na manhã seguinte, colocou-a numa versão moderna de um marsúpio, uma espécie
de casulo de nylon fixo numa estrutura de alumínio, concebido de forma ergonómica para proteger e amimar um bebé. Fora Dave Imbiss quem lhe desencantara algures
este porta-bebés futurista. Se o prendesse ao peito, Hector poderia ver o rosto de Catherine enquanto corria. Ou podia prendê-lo nas costas, para que Catherine pudesse
olhar por cima do seu ombro.
Levou-a consigo para uma corrida de quinze quilómetros ao longo da marginal da praia. A bebé parecia apreciar o movimento baloiçante - pelo menos não emitiu nenhum
protesto audível; dormiu durante todo o percurso e só acordou quando regressou a casa, com um apetite digno de uma cria de leão. Tinha perdido um biberão, como Bonnie
anunciou ao mundo num tom estentórico de desaprovação.
Os dias sucederam-se numa rotina serena mas não desagradável. Paddy e Nastiya dispunham do seu próprio apartamento na Cidade de Abu Zara. Embora trabalhassem no
mesmo edifício, fora da sede da Cross Bow Security, por vezes passavam-se dias sem que se cruzassem. Contudo, Paddy telefonava a Hector todas as noites Para discutirem
possíveis desenvolvimentos; mas poucas novidades havia e não eram de grande relevância.
Pelo menos duas vezes por semana, Nastiya convidava Hector para jantar no apartamento onde vivia com Paddy ou num dos muitos restaurantes de luxo existentes na cidade.
Ao grupo juntava-se sempre um dos convidados de Nastiya: uma jovem mulher atraente e solteira. Era espantoso como ela conseguia desencantar tantas jovens. Certamente
passara a pente fino as tripulações de cabina de todas as companhias aéreas, os escritórios do pessoal administrativo das embaixadas britânica e americana e as principais
multinacionais a operarem na cidade. Mesmo quando Hector se esquivava com habilidade a estas ciladas óbvias, Nastiya nunca desistia de tentar. Tornou-se um jogo
amigável entre ambos. Paddy limitava-se a observar com um ar divertido.
Dave Imbiss passava muitas horas por dia na penthouse de Seascape Mansions a verificar e a aperfeiçoar as medidas de segurança que rodeavam Catherine Cayla, e a
certificar-se de que os seus homens se mantinham alerta e em plena forma física. A bebé nunca era deixada sozinha. Uma das três amas estava sempre a seu lado, dia
e noite. Havia sempre um guarda armado à porta do quarto da criança, bem como uma equipa da Cross Bow Security na sala dos monitores do sistema de televisão em circuito
fechado ao fundo do corredor, a vigiar todas as entradas para os apartamentos e o interior do quarto da criança.
Hector tomava o pequeno-almoço com Catherine todas as manhãs, às seis horas. Atacava o bacon e os ovos estrelados enquanto a bebé mamava do biberão. Depois levava-a
para a corrida habitual ao longo da marginal. Quando voltava à penthouse, entregava-a aos cuidados das amas e passava o resto da manhã a ler atentamente os comoventes
registos da vida de Hazel.
Para ele, os mais importantes e mais fascinantes eram os diários dela. Eram os únicos documentos de Hazel que Agatha não digitalizara. Hazel começara a escrevê-los
no seu 14º aniversário. Havia na coleção dela mais de vinte livrinhos de capas pretas idênticas. um para cada ano da sua vida desde o início da adolescência.
Os diários estavam escritos numa caligrafia miudinha e repletos de trechos em linguagem codificada por ela criada. Hector precisou de toda a sua imaginação e engenho
para decifrar alguns desses códigos. Hazel tinha registado cada detalhe da sua vida, fosse trivial ou apocalíptico. Hector estava fascinado. Nunca imaginara vir
a inteirar-se de tantas coisas acerca dela. Mas ali estavam as suas bazófias e confissões, escritas pelo próprio punho. Chegara mesmo a descrever, com deleite, a
perda da virgindade no seu 15º aniversário, no banco traseiro do velho Ford do seu treinador de ténis. Hector sentiu uma punhalada de ciúme.
O cabrão lascivo era quase trinta anos mais velho que a minha menina inocente. Deveria ter ido de cana por aquilo que lhe fez. Maldito pedófilo. Depois consolou-se
com o pensamento de que o maldito pedófilo provavelmente estaria agora gordo, careca e impotente; e com o facto de Hazel ter desfrutado dessa experiência. Continuou
a folhear os diários, saltando os anos intermédios até encontrar o dia em que ambos se conheceram.
Esse era um dos momentos cruciais da sua própria existência. Nunca haveria de esquecer um pormenor que fosse desse primeiro encontro. Ocorrera nas instalações da
Bannock Oil, ali no deserto de Abu Zara. Hector aguardara, juntamente com os outros manda-chuvas da Bannock Oil, pela chegada dela no meio de uma forte tempestade
de areia. O helicóptero surgira do meio das nuvens de areia castanho-escuras. Recordou-se que quando o aparelho aterrara e ela surgira à porta na fuselagem, fora
apanhado desprevenido pela descarga elétrica que lhe percorrera a coluna vertebral. Raios, ela era absolutamente magnífica.
Nesse primeiro dia, ela tratara-o com rispidez, o que o deixara furioso. Não estava habituado a ser tratado com desprezo. Odiado? Sim, mas nunca que o ignorassem
de forma tão descarada.
Agora, finalmente, podia ler os pensamentos dela nesse dia fatídico. Hazel tinha-o descrito da seguinte forma: "Todo ele pose, testosterona e músculo. Rezo a Deus
para que um dia me perdoe por achar este odioso simplório tão giro e tão sexy."
40
Seis semanas após a sua chegada a Abu Zara, Hector foi acordado pelo toque de chamada do seu iPhone. Rolou na cama, ligou o candeeiro da mesinha de cabeceira e olhou
para o despertador. Faltavam dez minutos para as quatro da madrugada. Pegou no telemóvel.
- Cross - disse. - Sou eu, o Yaf! Hector soergueu-se de imediato. - Diz-me coisas! - Ele está cá. Mas é melhor o senhor vir sem demora. Ele nunca para muito tempo
no mesmo sítio. Não há maneira de saber quando vai voltar a desaparecer.
- Que horas são aí em Londres? - Pouco passa da meia-noite - respondeu Yaf. Hector fez um cálculo rápido. - Estarei aí por volta das onze da manhã de Londres. Vai
à minha casa de manhã e espera-me lá. Vou dizer ao meu mordomo para te deixar entrar, e a minha chef vai-te preparar um banquete para o pequeno-almoço. - Desligou
e telefonou para o apartamento de Paddy. Atendeu-o a voz ensonada de Nastiya. - Quem mais pode ser senão o Hector Cross! - disse ela. - Adivinhaste. O Aleutian está
em Londres. Diz a esse pinga-amor deitado aí ao teu lado na cama para enfiar as calças. Diz-lhe para requisitar o jato G5 da Bannock Oil para uma partida imediata
e urgente rumo a Farnborough. Eles que arranquem os pilotos da cama se necessário for. Vamos apanhar aquele cabrão assassino.
Hector deixou Dave Imbiss a comandar os guardas da segurança de Catherine em Seascape Mansions. O G5 descolou com a restante equipa às 08h43 de Abu Zara e aterrou
em Farnborough cinco horas depois. O motorista de Hector avançou pela pista para os recolher. Pouco mais de uma hora depois, estacionaram na garagem subterrânea
do nº 11. Yaf Said aguardava na cozinha, onde travara amizade com a chef Cynthia. A mulher estava a fazê-lo ganhar peso, empanturrando-o com o seu famoso pudim de
chocolate com gelado. Yaf pousou a colher e apressou-se pelas escadas acima quando ouviu a voz de Hector.
Hector apresentou-o a Paddy e a Nastiya e convocou de imediato um conselho de guerra para a biblioteca. A pedido de Hector. Yaf relatou-lhes as linhas gerais do
que tinha acontecido durante a ausência deles.
- Ao longo das últimas duas semanas tenho recebido informações sobre o Aleutian, sobretudo de clubes noturnos na zona central de Londres. Mas sempre que seguia essas
pistas, chegava à conclusão de que não passavam de avistamentos falsos ou que o alvo já tinha desaparecido quando eu chegava ao local. Mas depois tive sorte num
lugar chamado Fusion Fire, um antro espampanante, cheio de luzes estroboscópicas e espelhos, montes de passadores e prostitutas sempre a rondar, mas a música é mesmo
marada. Consegui aproximar-me bastante do Aleutian no balcão do bar. Estava a beber com três outros tipos negros e consegui ver-lhe a tatuagem. Era o tipo que o
senhor procura, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas os amigos dele chamavam-lhe Óscar e não Aleutian.
- Quando foi isso? - perguntou Hector. - Foi numa sexta-feira, há duas semanas. Não lhe quis ligar logo, pois ele podia estar ali apenas de passagem. Esperei lá
por ele durante as quatro noites seguintes. Mas o tipo não voltou a aparecer. De modo que pus a minha malta de vigia em todos os clubes noturnos da zona. Acabámos
por o avistar em dois outros clubes ao longo da semana seguinte, e depois voltou ao Fusion Fire duas noites seguidas. Foi por isso que lhe liguei esta manhã. Dá-me
a impressão que ele anda sempre a saltar de sítio em sítio, mudando todos as noites de poiso. Não há nenhum padrão nas movimentações dele. Se fosse a si, punha alguém
a vigiar todos os clubes noturnos onde ele foi avistado recentemente. O tipo parece ser =a criatura de hábitos. Acho que é a melhor hipótese de o senhor conseguir
dar com ele.
- Faz sentido - concordou Hector. - Mas e quanto a ti, Yaf? Yaf pareceu constrangido e demorou algum tempo a ganhar coragem para falar. - Ajudei-o de bom grado a
tentar encontrar este tipo, mas não quero estar lá quando o senhor lhe deitar as mãos. Há muito tempo que renunciei a esse tipo de métodos violentos, quando Alá
me tomou sob a sua proteção. Sem ofensa, senhor Cross. Tem sido um grande prazer privar com um homem como o senhor, mas creio que agora devemos seguir caminhos diferentes.
- Obrigado uma vez mais, Yaf. Acho que é uma decisão sensata. Também foi um prazer para mim conhecer-te. Conseguiste reforçar a minha fé na geração mais nova. Se
te puder ajudar seja no que for, já sabes onde me encontrar. Entretanto, posso pagar-te pelo teu tempo e incómodo?
Yaf ergueu ambas as mãos, alarmado. - Não, por favor. Não fiz isto por dinheiro. Fi-lo por um homem bom e santo.
- Muito bem, Yaf. Mas a tua mesquita deve gerir alguma instituição de caridade para a qual eu possa contribuir.
- Bem, senhor, para lhe dizer a verdade, recebemos grande parte dos nossos fundos da Fundação Muçulmana para a Juventude - respondeu Yaf numa voz hesitante. - O
senhor pode fazer a sua doação online. Não precisa de dar o nome.
- Vou fazê-lo em teu nome - assegurou-lhe Hector. - Obrigado, senhor. Não preciso de lhe dizer isto, mas posso garantir-lhe que o dinheiro será muito bem gasto.
- Tirou uma tira de papel do bolso do blusão. - Tem aqui a lista de todos os clubes onde avistámos o Aleutian. Ele costuma aparecer sempre num deles por volta da
meia-noite, isto é, quando se digna aparecer, mas depois fica por lá até de madrugada. Espero que encontre aquilo que procura, senhor.
Hector acompanhou-o à porta da frente e disse-lhe: - Espero que a nossa amizade não acabe aqui, Yaf. Podes-me visitar sempre que passares aqui por perto. Se eu não
estiver cá, a Cynthia lá na cozinha terá todo o gosto em te oferecer uma chávena de café e algo para comer. Vou-lhe dizer que és sempre bem-vindo aqui.
- É muito amável da sua parte, senhor. Adeus e ma'a salamab. Deram um aperto de mão e depois Hector viu-o montar na lambreta e partir. Sabia que nunca mais voltaria
a vê-lo. Yaf era um jovem independente, demasiado orgulhoso para aparecer ali a mendigar.
Nota de Rodapé: Significa "adeus" em árabe, mas também "A paz esteja contigo/ consigo".
Fim da nota.
41
- Ora bem, os três clubes na lista do Yaf Said são o Fusion Fire, o Rabid Dog e o Portais of Paradise, todos na zona central londrina, desde o Soho até Elephant
e Castle. Não conheço nenhum destes antros, e vocês os dois? - Hector olhou primeiro para Nastiya.
- Não conheço, não faz nada o meu estilo - retorquiu ela numa voz afetada.
- E tu, Paddy? - Também não. Mas, a julgar pelos nomes, até parecem locais divertidos. - Eis como vamos tratar disto. Já verifiquei a localização dos três clubes
na Internet. Encontram-se espalhados ao longo de uma área bastante grande, a vários quilómetros de distância uns dos outros. Segundo o que o Yaf disse, não vale
a pena iniciar a busca antes da meia-noite. Teremos que fazer um turno noturno tardio. Se um de nós o identificar, deve chamar logo o resto da equipa. Tratamos de
manter o Aleutian sob vigilância e seguimo-lo quando sair do clube. Um de nós conduzirá o Q-Car. As ruas devem estar praticamente vazias a essa hora da manhã. Assim
que o apanharmos sozinho e sem ninguém por perto, espetamos-lhe a Hypnos.
A Hypnos era uma minúscula seringa hipodérmica que podia ser escondida na mão, ou na costura da manga de um casaco. Era feita de uma espécie de vinil indetetável
por raios X ou por qualquer outro tipo de dispositivo de deteção. O tubo cilíndrico era de cor verde. A agulha não metálica ficava a descoberto assim que se removia
a tampa protetora com o polegar; tinha apenas dois centímetros de comprimento e bastava perfurar a pele para que fossem injetados dois centímetros cúbicos de uma
potente droga que deixava a vítima quase instantaneamente paralisada. O nome Hypnos inspirava-se na deusa grega do sono.
Era impossível conseguir um fornecimento deste tipo de armas. a menos que, tal como Dave Imbiss, se tivesse contactos na Divisão de Guerra Química do exército americano.
- Depois, assim que o Aleutian perder os sentidos, enfiamo-lo no Q-car e trazemo-lo para aqui - continuou Hector enquanto delineava o plano. - A propósito, a cave
é insonorizada e tem uma divisão ao fundo onde costumo limpar o meu equipamento de pesca, mas dará uma boa sala de interrogatório. Teremos todo o equipamento apropriado
à mão. As paredes e o chão são em azulejo. fácil de lavar à mangueirada. Se a tortura da água não for suficiente. é possível que tenhamos de recorrer a meios menos
higiénicos até o Aleutian desembuchar e nos revelar o nome de quem o contratou. Depois de lhe tratarmos da saúde, enfiamos o que resta dele numa caixa de peixe hermética
e impermeável e exportamo-lo para Abu Zara no G5. Se escolhermos bem a faixa horária de descolagem. em princípio as autoridades aduaneiras não irão revistar o conteúdo
da caixa. Depois, o Dave Imbiss levará o corpo do Aleutian para a zona onde as equipas de exploração petrolífera estão a perfurar a nova concessão, no Zara Número
12. O Aleutian irá acabar no fundo do poço de perfuração, que por esta altura já terá atingido os cinco mil metros de profundidade, e depois reemergirá à superfície
misturado com a fina pasta de lodo triturado pela broca rotativa de ponta de diamante.
Dirigiu-lhes um sorriso feroz e prosseguiu: - Sei que é um plano de batalha um pouco rudimentar, mas também sei que vocês os dois são bastante bons a improvisar
conforme as circunstâncias mudam.
Verificou as horas no relógio de pulso e levantou-se. - Temos uma hora para trocar de roupa para o jantar. Sei que a chef nos preparou um prato especial, mas não
haverá vinho para acompanhar. Temos de estar bem lúcidos e despertos para a nossa tarefa noturna.
Após o jantar, é minha intenção dormir uma sesta de duas horas. Depois, voltamos a reunir-nos às onze. Vai-nos levar uma hora ou mais a chegarmos aos locais das
nossas posições. Acho que tu, Nastyia, deverias ir para o Portais of Paradise, por razões óbvias. E tu, Paddy, ocupas-te do Rabid Dog, por razões igualmente óbvias.
Eu fico de vigia ao Fusion Fire, apesar de não me ocorrer nenhuma razão óbvia para tal.
- Imagino que devem existir umas quantas brasas do teu perigoso passado que nos poderiam dar razões mais do que suficientes - insinuou Nastiya.
Hector subiu para o seu quarto de vestir e abriu a porta do compartimento secreto por trás da lareira. Pegou numa caixa pousada numa das prateleiras de cima, onde
estava guardada a sua pistola,
enfiada no coldre axilar. Enfiou um par de luvas cirúrgicas de borracha e limpou cuidadosamente a arma para remover as suas próprias impressões digitais. Depois
recarregou-a com as munições especiais que Dave lhe fornecera. Esfregou uma segunda vez a arma com o pano, só para ter a certeza de que ficava bem limpa. Calculara
os riscos e as vantagens de portar a arma nessa noite. Era um delito grave se as autoridades o encontrassem armado, mas
talvez o perigo fosse ainda maior se enfrentasse alguém do calibre de Aleutian completamente desarmado.
42
Deixaram Nastiya no Portais of Paradise alguns minutos depois da meia-noite. A entrada situava-se discretamente na ruela de umas antigas cavalariças. Havia uma pequena
multidão de jovens excitados. aglomerados em frente à porta. Dois seguranças corpulentos e de ar agressivo barravam-lhes a entrada para o clube, enquanto um porteiro
educado, em traje formal de smoking e gravata preta, fazia a seleção daqueles que considerava dignos de entrarem naquele edifício sagrado.
Hector estacionou o Q-Car à entrada da ruela e, juntamente com Paddy, observou enquanto Nastiya se dirigia para o clube.
O porteiro avistou Nastiya assim que ela entrou na ruela. Envergava um vestido justo de cor carmesim que se colava a todas as suas curvas e calçava saltos de agulha
de quinze centímetros que lhe deixavam os finos músculos dos gémeos sob tensão. A sua aparição silenciou o clamor da multidão de jovens à entrada do clube que suplicavam
que os deixassem entrar. Abriram alas e observaram em silêncio a sua passagem. O porteiro apressou-se ao encontro dela para a cumprimentar e deu-lhe o braço, com
um bajulador sorriso de boas-vindas. Acompanhou-a até ao interior e disse à rapariga da caixa registadora: - Esta senhora é convidada da casa. Arranja-lhe a melhor
mesa disponível.
Observando a cena sentado no banco traseiro do Q-car, Paddy O'Quinn deu voz à sua preocupação: - Só espero que ela fique bem. No meio daquela multidão estão alguns
tipos que até me dão a volta ao estômago.
Hector desatou às gargalhadas. - Só podes estar a brincar, Paddy. A única pessoa de quem sinto pena é do pobre coitado que tentar meter-se com a tua senhora.
Ligou o motor e conduziu cerca de três quilómetros até ao Rabid Dog. - Ora bem, Paddy, chegámos ao teu canil. Mantém-te morto da cintura para baixo e não te deixes
seduzir por nenhuma mulher. - Observou enquanto Paddy passava uma nota de dez libras ao porteiro e desaparecia através das cortinas que cobriam a entrada.
Hector pôs-se em marcha e conduziu cerca de quilómetro e meio até ao Fusion Fire. O clube noturno ocupava dois pisos. A fachada, virada para a estrada, era toda
ela de painéis de vidro, do chão ao teto. Podia ver através dos vidros que o interior estava profusamente iluminado por luzes estroboscópicas de uma miríade de cores,
montadas em torres giratórias. O teto estava revestido de mosaicos espelhados que refletiam as luzes ofuscantes e os vultos dos dançarinos na pista em baixo. As
pessoas dançavam numa multidão comprimida, como compactos cardumes de reluzentes peixes tropicais, agitando-se num frenesim selvagem ao ritmo retumbante da música.
Hector passou lentamente pela fachada, estacionou na esquina seguinte e voltou para a entrada do clube. Usava óculos escuros de aviador e um casaco de brocado rematado
nas ancas, provido de gola mandarim e com as mangas cortadas que Nastiya escolhera para ele. Tinham optado de forma deliberada por trajes extravagantes, para transparecerem
um ar excêntrico e amaneirado. Assim, ninguém pensaria que eram tropas de assalto e desataria a fugir com medo. Hector pagou cem libras por uma mesa VIP.
Sentou-se à mesa e observou o enorme espaço à sua volta. Reconheceu-o de imediato como o cenário de um dos vídeos com Aleutian que Vicky Vusamazulu gravara no iPhone
e sentiu-se mais alentado. Se Aleutian frequentara aquele local antes, havia uma forte probabilidade de ali voltar.
Num espaço de vinte minutos, deu por si a ser abordado sucessivamente por cinco raparigas diferentes que vinham oferecer-lhe toda a espécie de serviços, desde uma
mamada debaixo da mesa por cinquenta libras até uma noite inteira por quinhentas libras. Tudo propostas que ele declinou de modo educado.
Às cinco e vinte da madrugada, as multidões na pista de dança começaram a reduzir-se e ainda não havia sinal de alguém que se parecesse vagamente com Aleutian. Hector
resolveu sair do clube e conduziu o Q-car até ao Rabid Dog para ir buscar Paddy.
- Como é que correu, meu velho? - perguntou assim que Paddy se enfiou no banco a seu lado.
- Se tivesse fumado, snifado e engolido tudo aquilo que me ofereceram esta noite, estaria a voar mais alto do que a estrela da manhã ali em cima.
Seguiram para o Portais of Paradise e, quando Nastiya surgiu, parecia ter acabado de sair de um salão de beleza.
- Não tiveste sorte, rainha do meu coração? - perguntou-lhe Paddy numa voz ansiosa.
- Podia ter ganhado uma fortuna. Um velhinho muito querido, aí com uns noventa anos, ofereceu-me dez mil libras só para me olhar sem tocar.
- Devias ter aceitado - disse-lhe Paddy. Nastiya lançou-lhe um olhar de esguelha com os seus olhos de um azul tão glacial como o céu da tundra. Quando regressaram
ao nº 11, os três deitaram-se e dormiram até ao meio-dia.
A noite seguinte foi uma repetição da anterior. A única diferença era a clientela.
Na terceira noite, Hector entrou na confusão do Fusion Fire poucos minutos após a meia-noite. Era a noite de sábado e a pista estava completamente apinhada. O volume
da música entorpecia os sentidos. As enormes bolas espelhadas, suspensas do teto, moviam-se ao ritmo das batidas dos pés das pessoas que dançavam por baixo.
De modo a imiscuir-se no ambiente, Hector usava um bolero de cetim preto ao estilo espanhol, por cima de uma camisa branca aos folhos e uma gravata de cadarço preta.
As calças de toureiro cheias de lantejoulas colavam-se-lhe às coxas. Fora Nastiya quem, uma vez mais, lhe escolhera esse traje. Sentou-se à mesa habitual e uma rapariga
de minissaia, com um bonito rosto de traços miudinhos e lábios carnudos, que ele nunca tinha visto antes, sentou-se de repente no seu regaço.
- És tão lindo que quero casar contigo - disse-lhe. - És rico, não és? - Sou multimilionário - respondeu ele numa voz séria. - Oh, meu Deus! - exclamou ela, de fôlego
entrecortado. - Juro por Deus que acabaste de me fazer vir.
Hector achou-a, na verdade, bastante divertida. Riu-se e, quando olhou por cima do ombro dela, deparou do outro lado da pista com o rosto escuro e carrancudo de
que se lembrava tão bem dos vídeos de Victoria Vusamazulu.
Aleutian estava especado no topo das escadas que conduziam ao átrio. Estava acompanhado de uma rapariga que olhava para ele, mas cujo rosto Hector não conseguia
ver. Aleutian olhava-a com um ar condescendente. Embora a multidão continuasse a rodopiar à volta do par, a enorme corpulência de Aleutian fazia-o destacar-se acima
de todos os outros. Fora por essa razão que Hector o identificara de imediato. Olhou-o apenas durante alguns segundos, só para ter a certeza de que se tratava do
homem que procurava; mas, ainda assim, fora demasiado tempo.
Na selva, quando se olha fixamente um animal, é muito frequente este pressentir o olhar e reagir. Aleutian era exatamente isso, um predador selvagem no seu próprio
território. Os seus olhos apartaram-se do rosto da rapariga e fixaram-se nos de Hector. Reconheceu-o de imediato. Deu meia-volta e desceu as escadas à pressa. Hector
levantou-se de um salto e a rapariga tombou-lhe do regaço. Saltou por cima dela para a pista de dança e abriu caminho à força pelo meio das pessoas que dançavam,
até ao topo da escadaria por onde Aleutian desaparecera.
As escadas estavam quase tão apinhadas quanto a pista de dança. Quando Hector chegou à entrada do clube e irrompeu pela porta da rua, já não viu nenhum sinal dele.
Refreou o instinto cego de desatar a correr pelas ruas escuras para o procurar aleatoriamente.
Lembrou-se da rapariga com quem Aleutian estava. Talvez pudesse encontrá-la. Talvez ela pudesse indicar-lhe o lugar onde Aleutian se refugiara. Pôs de lado essa
ideia no mesmo instante em que lhe ocorreu. O Fusion Fire estava a abarrotar de beldades como ela. Nem sequer lhe vira o rosto. Nunca conseguiria identificá-la no
meio da multidão. De qualquer modo, provavelmente não passava de uma prostituta que Aleutian escolhera para o acompanhar naquela noite.
Como é que o Aleutian terá vindo para cá? De carro? De táxi? Nesse caso, há muito que já se foi. Não parava de pensar de forma furiosa. De metro? Sim, claro!
Sabia, com base na pesquisa que fizera na Internet, que a entrada da margem norte para a estação de Blackfriars ficava apenas a quatrocentos metros do local onde
se encontrava. Desatou num sprint. Correu até à primeira esquina e viu a entrada para a estação de metro ao fundo do quarteirão. A rua estava quase deserta àquela
hora. Havia apenas uns quantos folgazões tardios de regresso a casa. Um deles era Aleutian. Afastava-se de Hector a passo de corrida, em direção à estação de metro.
Quando Hector se lançou em perseguição, Aleutian alcançou a entrada da estação e desapareceu como um coelho que acabasse de se enfiar na toca. Hector seguiu-o pela
entrada. Desceu os degraus três a três, com os seus passos ecoando no túnel vazio. Alcançou a junção em forma de T no fundo. A sinalização no túnel à esquerda indicava
a direção de Richmond; a do túnel à direita, a direção de Upminster. Não tinha forma de saber por qual deles Aleutian seguira. Optou aleatoriamente pelo túnel da
direita e, assim que começou a avançar, ouviu o ruído de um metro na linha para Richmond. Deu meia-volta e correu nessa direção. Quando chegou à plataforma, olhou
com atenção. O metro já tinha parado e as portas estavam abertas. Havia uma pequena multidão de passageiros e folgazões resistentes a subir a bordo. Hector apercebeu-se
de imediato de que o seu palpite fora acertado: Aleutian abria caminho por entre os outros passageiros. Viu-o subir para uma das carruagens.
Hector galgou o último lanço de escadas, mas, a meio caminho da plataforma, as portas fecharam-se e o metro afastou-se. Enquanto as carruagens passavam por ele,
viu Aleutian especado a uma das janelas, a olhar para ele. Hector lançou a mão à pistola que levava no coldre axilar oculto. Mas depois conteve-se. O ângulo e a
distância eram muito arriscados. Aleutian estava rodeado de muito perto por outros passageiros. Não se atreveu a correr o risco de atingir um deles enquanto o metro
se afastava acelerado.
Aleutian sabia que estava a salvo. Sorriu na direção de Hector. Uma careta sardónica, carregada de ameaça. Hector sentiu a pele eriçar-se. Estava a olhar nos olhos
do assassino de Hazel. A intensidade das emoções era tal que as pernas lhe tremeram. Depois de a última carruagem desaparecer na boca do túnel, Hector demorou alguns
segundos a forçar-se a voltar a pensar com frieza.
Deu meia-volta e refez o caminho a passo de corrida, mas sabia que demoraria pelo menos dez minutos a chegar ao local onde estacionara o Q-car. O metro que transportava
Aleutian seguia a uma velocidade de cerca de sessenta e cinco quilómetros por hora. O avanço de Aleutian era demasiado grande para conseguir apanhá-lo, mesmo no
Q-car. Tinha de se antecipar e telefonar a Paddy ou a Nastiya para o intercetarem. Mas havia uma dúzia ou mais de paragens onde Aleutian poderia sair antes de o
metro chegar ao terminal em Richmond. Seria impossível cobri-las a todas.
Mas havia algo que estava a escapar-lhe. Sabia que alguma coisa estava a escapar-lhe enquanto subia a correr pelo túnel até ao nível da rua. Pensa!, disse a si mesmo.
Deixa-te guiar pela cabeça e não pelos tomates. Para onde é que o cabrão pode ter ido?
Irrompeu do túnel para a rua, e foi nesse instante que aquilo lhe acudiu à mente. Parou de imediato. Pegou no telemóvel e ligou a Nastiya. Os toques de chamada sucederam-se
de forma interminável, mas manteve o telemóvel colado ao ouvido enquanto corria à sua velocidade máxima.
A chave é a Vicky Vusamazulu. Sabia-o com uma clareza absoluta. Quase conseguia ver o Aleutian estabelecer essa ligação. Com o seu instinto de raposa, pressentiu
de imediato que tinha sido traído. Sabia que as probabilidades de eu dar com ele lá no Fusion Fire por mero acaso eram absolutamente ínfimas. Já sabe que alguém
me pôs no rasto dele. Sabe que a Vicky é a única pessoa que nos conhece aos dois. Era a única pessoa que sabia que ele frequentava o Fusion Fire. Não precisou de
muito para perceber que ela é a única pessoa que me poderia ter dado essa pista. As probabilidades de ir a caminho para se vingar da Victoria neste preciso momento
são de dez para um. Vá lá, Nazzy, querida. Atende o maldito telemóvel.
- Hector, onde estás? - atendeu-o Nastiya de repente. - Afugentei o Aleutian. Conseguiu escapar-me e fugiu. O meu palpite é que vai a caminho do apartamento da Vicky.
Lembras-te da morada dela, não lembras?
- Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica a cerca de trezentos metros da estação de metro de Kew Gardens. - A resposta de Nastiya foi rápida e precisa.
Era uma profissional.
- O Aleutian segue neste preciso instante a bordo de um metro que se dirige diretamente para Kew Gardens. Estás mais perto do que eu. Consegues chegar à casa da
Vicky muito antes de nós. Apanha um táxi. Eu e o Paddy cobrimos-te assim que pudermos. Mas sê rápida, Nazzy. A tua amiguinha Vicky é um alvo fácil e aquele cabrão
é um assassino. - A chamada foi cortada. Como sempre, Nastiya era uma mulher de poucas palavras.
Hector ligou a Paddy e falou com ele enquanto corria em direção ao Q-car. - Paddy, espera por mim à porta do Rabid Dog. Estarei aí dentro de vinte minutos, talvez
menos.
- Que se passa? - O Aleutian deu sinal de vida, mas cometi um erro de todo o tamanho. O tipo fugiu e anda a monte. Conto-te o resto quando chegar aí.
Quinze minutos depois, Paddy abriu rapidamente a porta do passageiro do Q-car e enfiou-se no banco antes de Hector sequer parar. Hector carregou a fundo no acelerador
e seguiu a toda a velocidade.
- Nº 47, Gardens Lane, TW9 5LA. É a morada da Vicky. Insere os dados no sistema de navegação por satélite, Paddy. Raios, tenho a certeza que é para onde o Aleutian
foi.
43
Os toques insistentes da campainha do apartamento acordaram Vicky Vusamazulu. Soergueu-se na cama muito ensonada. Tinha tomado um comprimido para dormir. Olhou para
o mostrador luminoso do despertador na mesinha de cabeceira. Eram quase duas da madrugada. Graças a Deus que a senhora Church é surda como uma porta. Vicky tentou
afastar o sono esfregando os olhos com os nós dos dedos. A Sra. Church era a sua senhoria. Vivia no piso por cima e Vicky sabia por experiência própria que ela desligava
o aparelho auditivo quando se deitava. Era uma bruxa velha, tão rígida e insuportável que Vicky era o único inquilino no prédio.
A campainha voltou a soar. Vicky ligou a luz, afastou os lençóis para trás, lançou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se. Vestia calções de pijama e um top
estampado com um brilhante padrão floral. Avançou trôpega pelo corredor até à porta ao fundo.
Verificou se as correntes de segurança estavam bem presas antes de se erguer nas pontas dos pés para espreitar pelo olho mágico. O visitante no exterior estava de
costas para ela.
- Quem é? - perguntou, irritada. O sujeito virou-se e Vicky reconheceu-o de imediato.
Arquejou, surpreendida e deleitada, e despertou por completo. Nem sequer sabia que Aleutian estava de volta a Londres.
- Abre a porta, cadela - disse ele.
- Aleutian! Oh, meu Deus. És mesmo tu? Pensava que nunca mais ias voltar. - Estava tão empolgada que não conseguia desprender as correntes de segurança. - Espera!
Não vás embora. É só um segundo. Espera, meu querido Aleutian.
Finalmente conseguiu abrir a porta e correu para ele para o abraçar, mas Aleutian empurrou-a para o lado e apressou-se a entrar no apartamento. Avançou pelo corredor
até ao quarto dela sem olhar para trás. Victoria fechou a porta mas não quis perder tempo a voltar a prender as correntes de segurança. Correu de imediato atrás
dele.
- Pensava que nunca mais ias voltar. Nunca devia ter duvidado de ti. Eu sabia que ias cumprir a tua palavra. Tive saudades tuas. Tive tantas saudades tuas. - Não
parava de palrar, tomada de emoção.
Ele tinha-se sentado na cama. Olhava-a com uma expressão estranha no rosto.
- Tens-te portado bem durante a minha ausência? - Oh, sim, sim. Fiquei em casa todas as noites à tua espera. Nunca olhei sequer para outros homens. Amo-te tanto!
- Estás-me a mentir - disse ele naquele seu tom suave e funesto que a deixava a tremer de desejo. - Acho que tens sido uma cadelinha malcomportada. Acho que vou
ter de te castigar.
Victoria conhecia tão bem este jogo que os seus mamilos endureceram sob o tecido fino do top do pijama.
- Tira o pijama! - ordenou-lhe. Ela despiu o top, amarfanhou-o numa bola e atirou-o para a cama, ao lado do lugar onde ele estava sentado. Depois fez deslizar os
calções pelas ancas e deixou-os cair em redor dos tornozelos. Chutou-os para longe e manteve-se nua à frente dele.
- Vais-me bater, Aleutian? - perguntou-lhe numa voz assustada, cobrindo o púbis com as mãos em concha.
- Afasta as mãos e vem cá. - Chamou-a com um gesto do dedo e ela colocou-se à sua frente. - Abre as pernas, cadela.
Ela afastou os pés. Aleutian inclinou-se para a frente e enfiou a mão entre as coxas dela. - Abre mais! - ordenou-lhe.
Victoria podia sentir o dedo dele a contorcer-se dentro de si e apoderou-se dela um desejo tremendo. Lançou as coxas para ele e sentiu-o tocar-lhe na boca do útero.
- Estás tão viscosa aí dentro como um balde cheio de enguias, sua cadela imunda. Mas percebes que tenho de te castigar, porque te portaste muito mal?
- Sim, percebo. - Mestre. Chama-me Mestre. Ou já te esqueceste? - Fez algo com o dedo que foi tão doloroso que a deixou a gemer. Era como se ele lhe tivesse rasgado
algo ali dentro. Abriu desmesuradamente os olhos devido à dor que sentia. Mas a dor era tão agradável que estava quase a atingir o primeiro orgasmo.
- Sim, compreendo, Mestre. Aleutian tirou o dedo e apontou-o à frente da cara dela. - Olha só o que fizeste, sua putinha imunda. Sujaste-me o meu lindo dedo limpinho
com essa tua rata imunda.
- Desculpa-me, Mestre. Não era minha intenção fazer isso. - Põe-te de joelhos - ordenou-lhe. Ela baixou-se à sua frente. Ele apontou-lhe o dedo. - Chupa-o até ficar
limpinho. - Vicky enfiou-o na boca. Aleutian forçou-lho pela garganta abaixo, tão fundo que os ombros dela estremeceram devido ao reflexo de vómito.
- Confessa. Tens-te portado muito mal na minha ausência, não tens?
Ela emitiu uns sons incoerentes de negação. O rosto inchava-lhe enquanto sufocava. Aleutian inclinou-se para trás e tirou o dedo da garganta dela. Vicky soluçou
de alívio e todo o seu corpo se convulsionou devido ao esforço para recuperar o fôlego. Olhou para ele com os olhos raiados de sangue e a escorrerem lágrimas.
Aleutian estendeu a mão que até então mantivera atrás das costas e Vicky apercebeu-se de que ele segurava numa navalha de ponta e mola. Viu-o carregar no botão de
libertação e a lâmina abrir-se com um estalido seco à sua frente. Tinha cerca de dezoito centímetros de comprimento e era reluzente como um raio de sol.
Isto era uma novidade. Ele nunca lhe tinha mostrado a navalha antes. Vicky tentou recuar ajoelhada, mas Aleutian agarrou no top do pijama dela pousado a seu lado
na cama e enrolou-lho à volta do pescoço, segurando-a depois como a um cachorro pela trela.
- Andaste a falar de mim a outras pessoas, não andaste, sua cadela?
- Não! - murmurou ela, abanando a cabeça num gesto veemente.
- Não me mintas, sua vaca! - Picou-lhe a face com a ponta da navalha. Vicky guinchou, de susto e dor. - Não me faças mais mal, por favor. Já não gosto destes jogos.
Já não quero brincar mais. Guarda a navalha, por favor, Aleutian.
- Isto não é nenhum jogo. Falaste de mim ao Hector Cross. sua cadela.
- Não, não falei nada. - No entanto, apesar da negação. ele viu um vestígio de culpa aflorar-lhe aos olhos. O rosto dela contorceu-se em terror.
- Falaste, sim. Disseste-lhe onde me podia encontrar. - Riu-se. - Por favor. Não estás a perceber. Ele não fez caso dos protestos e a sua voz adotou um tom afável
e tranquilizador. - Não fiques preocupada. Só tens de fazer o que te digo e tudo correrá bem. Agarra na orelha esquerda e estica-a para o lado o mais que puderes.
- Ela olhou-o, atónita e sem compreender.
- Faz o que te digo, Victoria. Fá-lo, se me amas de verdade - insistiu Aleutian. Ainda de olhos fixos nele, Vicky agarrou no lóbulo da orelha entre dois dedos e
esticou-o.
- Perfeito - disse ele. E, com um rápido golpe da lâmina prateada, cortou-lhe a orelha rente ao couro cabeludo.
Ela soltou um grito e depois olhou, horrorizada, a orelha decepada que segurava entre os dedos.
- Agora come-a. Enfia-a na boca e engole-a - disse-lhe baixinho.
O sangue da ferida pingava-lhe sobre o peito e escorria-lhe por entre os seios. Vicky não fez caso e continuou de olhos fixos na orelha cortada. De repente, Aleutian
picou-lhe o pescoço com a lâmina. Ela sobressaltou-se e olhou para ele.
- Abre a boca - disse, voltando a picá-la. Ela abriu a boca. - Agora enfia-a na boca e engole-a.
- Não! - disse ela. - Desculpa. Não era minha intenção fazer aquilo. Deixa-me explicar... Ele tocou-lhe na sobrancelha com a ponta da lâmina. - Come-a, senão arranco-te
os olhos, um de cada vez.
Vicky enfiou a orelha na boca. - Pronto. Não é assim tão difícil. Se calhar até sabe bastante bem, não sabe? - Os ombros dela voltaram a estremecer com convulsões.
- Não. Não faças isso. Engole tudo.
Determinada, Vicky fez um esforço para lhe obedecer. O seu rosto e a garganta contorceram-se. Engoliu finalmente. Estava a arquejar, mas balbuciou numa voz rouca:
- Já está. Engoli-a.
- Muito bem. Estou orgulhoso de ti. - Por favor, para, para com isto. Não me faças mais mal, por favor. - Chorava com amargura, continuando a abanar a cabeça de
um lado para o outro.
- Parar? - disse ele com uma surpresa fingida. - Mas se ainda agora começámos. Ainda há uma coisa que me queres contar, não há, Vicky? Queres dizer-me com quem andaste
a falar de mim, não é? - Nunca falei de ti a ninguém, juro pela alma da minha mãe. - Escorriam-lhe lágrimas pelo rosto e respirava em fortes arquejos acompanhados
de estremeções.
- Estás a mentir, Vicky. Vou ter de te obrigar a comer a outra orelha. - Forçou-a a ajoelhar-se, agarrou-lhe a outra orelha e esticou-a como se fosse um pedaço de
borracha. Encostou-lhe a lâmina e Vicky gritou.
Nastiya ouviu esse grito.
44
Nastiya apanhou o táxi à entrada do Portais of Paradise. Quatro raparigas polacas, todas elas risinhos e gritinhos, estavam a apear-se do veículo.
Nastiya empurrou uma das raparigas para o lado, enfiou-se no banco traseiro e disse ao taxista: - Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica na esquina
com Kew Gardens Road, cerca de trezentos metros depois da estação de metro de Kew Gardens.
- Sei onde fica, minha senhora - disse o taxista. - Dou-lhe mais cinquenta libras se conseguir pôr-me lá em menos de um quarto de hora.
- Aperte o cinto e ponha já de parte essa nota de cinquenta libras, minha senhora - disse ele. - Aqui vamos.
As ruas estavam quase desertas e o taxista conduziu a grande velocidade. Parou em Kew Gardens vários minutos antes de transcorrido o quarto de hora previsto. Nastiya
entregou-lhe duas notas de cinquenta libras através da divisória de vidro e disse-lhe: - Guarde o troco, merece-o. - Apeou-se do táxi de um salto e atravessou a
estrada a correr, em direção ao nº 47. Assim que cruzou o portão de acesso ao minúsculo jardim, ouviu Victoria gritar. Descalçou os sapatos de salto de agulha aos
pontapés e largou a bolsa coberta de lantejoulas. Prendeu a saia afunilada à volta da cinta e correu para a porta, ganhando velocidade. Lembrava-se, da sua visita
anterior, que a fechadura era velha e frágil. No entanto, também se recordava de duas robustas correntes de segurança, de modo que se lançou de pés juntos, desferindo
no último momento um enorme coice na porta como uma mula.
Para seu grande espanto, a fechadura cedeu de imediato e a porta esmagou-se contra a parede interior. Nastiya voou pela abertura, de pés esticados à sua frente,
para dentro do corredor. Rolou o corpo ao tocar no chão e levantou-se de imediato, desatando a correr praticamente sem perder o ímpeto. Lembrava-se da disposição
exata do pobre e exíguo apartamento. A sala de estar e a cozinha situavam-se à direita. Mas viu luz por baixo da porta do único quarto. Abriu-a com um pontapé e
esquivou-se para o lado, mantendo-se de corpo colado à parede lateral. Espreitou pela ombreira para dentro do quarto.
Uma carnificina total. Os lençóis cor-de-rosa da única cama existente estavam manchados de sangue. Havia sangue nas paredes e sangue a acumular-se numa poça sobre
os fofos tapetes brancos no centro do soalho.
Vicky estava de pé, virada para ela, mas Nastiya mal conseguiu reconhecê-la. Estava nua. As orelhas tinham sido decepadas. O sangue jorrava-lhe das feridas em carne
viva, entrando-lhe na boca e manchando-lhe os dentes de vermelho. Pingava-lhe do queixo e escorria-lhe pelo corpo em jorros. O quarto fedia a sangue e a vómito.
Nastiya reconheceu de imediato Aleutian dos vídeos. Estava especado atrás de Vicky. Sujeitava-a com um golpe de gravata, imobilizando-a por completo. Na outra mão
segurava uma navalha manchada de sangue, com a qual levara a cabo aquela chacina. Envolvia o corpo de Vicky com o braço e mantinha a ponta da comprida lâmina incrustada
de sangue ressequido contra o umbigo dela. Usando o corpo da rapariga como escudo, olhava com fúria para Nastiya por cima do ombro de Vicky.
- Ouve-me, Aleutian. Larga a Vicky e podes escapar ileso - disse-lhe Nastiya numa voz calma e firme.
- Não sei quem raios és, loiraça, mas estou a gostar do que vejo. Acho que tenho um plano melhor que o teu. Primeiro, vou terminar aquilo que comecei com esta vaca
aqui. A seguir, vou atrás de ti, e, quando te apanhar, vou-te dar a melhor foda da tua vida. Depois vou-te matar também, mas muito devagar. E agora, observa bem,
pois só vou fazer isto uma vez.
Passou a navalha com rapidez de um lado ao outro da barriga nua de Victoria, perfurando-lhe profundamente a pele, os músculos e a parede intestinal. Os intestinos
transbordaram pela abertura do ferimento. A navalha tinha-os cortado também e o seu conteúdo derramou-se. Depois mudou o ângulo da lâmina e espetou-a através do
esterno. Os olhos de Vicky arregalaram-se, enormes, como que fixos na eternidade, enquanto a lâmina lhe trespassava o coração. Escapou-lhe um último sopro da boca
aberta e tombou no braço de Aleutian enquanto morria. A própria Nastiya ficou momentaneamente petrificada com a brutalidade daquele ato.
Contudo, a sua preocupação principal já não era salvar a vida de Vicky, mas a lâmina na mão de Aleutian. A navalha dava-lhe o controlo da situação.
Percebera, pela forma como ele manejara a arma, que era um lutador muito hábil, provavelmente o mais perigoso que alguma vez defrontara. E ele tinha consciência
de quão destro era, exibindo uma autoconfiança absoluta. Estava a divertir-se. Tornava-se claro que o odor do sangue e o fedor dos intestinos rasgados que enchiam
o quarto o excitavam. Nastiya sabia que o tinha subestimado e corria agora um enorme perigo.
Estava desarmada, descalça e vestida com roupas que lhe restringiam os movimentos. A cama no centro do quarto exíguo tornava-o ainda mais minúsculo. O seu estilo
particular de luta exigia espaço para poder manobrar, recuar, fintar. Precisava, sobretudo, de espaço para se manter longe daquela navalha.
Aleutian chegara obviamente às mesmas conclusões e moveu-se com rapidez para lhe limitar ainda mais os movimentos. Continuando a agarrar o corpo de Vicky à sua frente
como um escudo, tentou encurralar Nastiya num dos cantos da divisão. Mas ela conseguiu afastar-se, esquivando-se pelo lado esquerdo, para longe da lâmina.
Antes que ele pudesse girar o escudo humano para a bloquear, Nastiya retomara a sua posição junto à entrada do quarto. As ombreiras de ambos os lados da porta protegiam-lhe
os flancos.
Voltou a encará-lo e pôs-se de cócoras, em posição de combate, de mãos erguidas e rígidas como lâminas de machado, cruzadas ao nível dos pulsos. - Uau! Andaste a
ver os filmes de Kung Fu do Jackie Chan, ó loiraça - troçou ele, erguendo Vicky até ficar com as pernas a baloiçar, antes de se lançar contra Nastiya. Estava a tentar
forçá-la a recuar para o corredor, onde teria mais facilidade em a atacar.
Nastiya viu ali a sua oportunidade: os pés dele eram visíveis por baixo das pernas baloiçantes de Vicky. Em vez de retroceder, correu para ele. Uma fração de segundo
antes de colidirem, lançou-se de pés esticados à sua frente, por baixo das pernas de Vicky, e desferiu o seu coice de mula preferido. Ambos os pés aterraram com
enorme força contra o tornozelo esquerdo de Aleutian, exatamente o ponto que ela pretendia atingir.
Ouviu o osso e a cartilagem da perna dele quebrarem com um estalido seco. Sentiu-se percorrida por uma onda de triunfo, pois tinha a certeza de que ele se estatelaria
no chão, e teria então a sua oportunidade para lhe tirar a navalha.
Aleutian grunhiu de dor, mas manteve-se de pé, para grande desalento dela. Nastiya fez um salto mortal à retaguarda e aterrou de pé, virando-se de imediato para
o enfrentar de novo. No entanto, antes que pudesse recuperar o equilíbrio por completo, ele usou Vicky como um aríete e lançou o corpo inerte contra Nastiya, com
tal força que a projetou para trás através da entrada. Embateu com violência na parede do corredor.
Aleutian avançou para ela. Coxeava apoiado no tornozelo ferido, mas, ainda assim, movia-se com uma rapidez surpreendente. Continuava a segurar no corpo mutilado
de Vicky à sua frente. Obrigou Nastiya a recuar contra a parede do corredor e desferiu-lhe uma navalhada contra o rosto, por cima do ombro de Vicky. Nastiya agarrou-lhe
no pulso, mas estava escorregadio devido ao sangue e ele conseguiu libertar a mão, sem largar a navalha. Nastiya estava encurralada contra a parede e ele não parava
de a atacar com o corpo de Vicky, restringindo-lhe os movimentos e impedindo-a de recuperar o equilíbrio. A cabeça de Vicky rolava livremente sobre os ombros. Tinha
os olhos vidrados e sem vida.
Aleutian voltou a tentar esfacelar-lhe a cara, mas Nastiya esquivou-se, baixando-se sob a lâmina, e perdeu-o de vista por um segundo. Ele largou o corpo de Vicky
e Nastiya perdeu esse escudo que lhe protegia a metade inferior do corpo. Com a rapidez de uma víbora, Aleutian tentou atingir-lhe a barriga. Nastiya contorceu-se
violentamente para o lado para fugir à investida. mas o corpo que jazia sobre os seus pés inibia-lhe os movimentos. Sentiu a picada do aço quando a lâmina lhe abriu
um comprido corte superficial na anca. Tentou transpor o corpo de Vicky de um salto e ganhar espaço antes que ele pudesse atacá-la outra vez, mas ficou com o tornozelo
preso naquela espécie de corda formada pelos intestinos de Vicky e tropeçou. Caiu sobre um dos joelhos e ergueu a mão para deter o golpe de navalha que seguramente
se abateria sobre si, mas Aleutian agarrou-a pelo pulso e arrastou-a de cara contra o soalho. Forçou um dos joelhos contra a nuca dela para a imobilizar enquanto
se apressava a reajustar a lâmina na mão. Depois obrigou-a a pôr-se de joelhos e ajoelhou-se por trás dela, sujeitando-a com um golpe de gravata com uma única mão.
Apertou-lhe a laringe com força suficiente para a impedir de gritar.
- Não és nada má a lutar, loiraça - elogiou-a. - Sabes usar bem o corpo numa luta. - Respirava pesadamente enquanto se ria. - E agora, vais-me poder mostrar como
és boa na velha e célebre foda à canzana.
Nesse preciso momento, a porta do apartamento foi arrancada das dobradiças e Hector e Paddy irromperam pelo corredor. Detiveram-se assim que depararam com aquela
cena.
Aleutian levantou-se, sem largar o pescoço de Nastiya. Enfrentou-os, usando o corpo dela como escudo. - Não se mexam - avisou-os. - Se tentarem aproximar-se, esta
tipa morre.
Segurava a navalha contra o pescoço de Nastiya, com a ponta da lâmina pressionada sob a orelha. Viu a pistola que Hector empunhava com ambas as mãos, tendo adotado
a clássica postura de cócoras dos atiradores: equilibrado sobre a parte dianteira dos pés. com a pistola apontada à testa de Aleutian.
Aleutian baixou a cabeça e escudou-se atrás do corpo de Nastiya de modo a oferecer um alvo mínimo. Começou a baloiçar a cabeça de um lado para o outro como uma cobra
para frustrar a pontaria de Hector.
- Seja bem-vindo, senhor Cross. É um enorme prazer voltar a vê-lo. Por favor, aceite as minhas condolências pela perda recente
sua encantadora mulher - disse. Foi como se um obturador se fechasse sobre os olhos de Hector
e a sua visão se incandescesse de vermelho com a intensidade da fúria. Quase perdeu o controlo.
A sua mente estava novamente a operar como um computador, calculando a distância e o ponto de mira. Os pontos de mira da pistola estavam configurados para disparar
quase quatro centímetros acima do enfiamento da arma, a uma distância de vinte e cinco metros. O alvo visado estava a uma distância de oito ou talvez nove metros.
Teria de compensar a trajetória de ascensão da bala.
Aleutian não parava de se mover, permitindo-lhe apenas vislumbres intermitentes da sua cabeça.
- Tu consegues abatê-lo, Heck - murmurou Paddy quando se acocorou atrás do ombro de Hector. As suas palavras foram quase inaudíveis.
Os lábios de Hector retesaram-se numa linha rígida; sabia que as hipóteses de lograr o tiro sem ferir Nastiya eram quase nulas.
- Podemos fazer um acordo, senhor Cross - disse Aleutian. - Sei que tem um carro lá fora. De outro modo, não teria conseguido chegar aqui tão depressa. Dê-me as
chaves e entrego-lhe esta rata loira. Parece-lhe uma troca justa?
As mãos de Hector não vacilaram. - Quem te contratou para matares a minha mulher? - perguntou-lhe.
- Não é esse o nosso acordo, senhor Cross. - É o único acordo possível, Aleutian. - Veja só o que fiz à sua amiguinha Victoria. Ficou sem as orelhas e sem as tripas.
Por favor, não me irrite.
Os olhos de Hector nem por um momento se desviaram na direção do corpo mutilado de Vicky. - Quero o nome - insistiu. - E eu quero continuar a viver. Nada de nomes.
- Posso esperar - disse Hector.
- Não creio - disse Aleutian. - Veja só isto. - Moveu a navalha por trás das costas de Nastiya e encostou a ponta ao trícípite exposto, trespassando-lhe depois lentamente
o braço com a lâmina comprida. O rosto de Nastiya contorceu-se de dor quando a ponta surgiu na parte frontal do bíceps.
- Estou bem, Hector - disse ela, mas a voz era rouca e os olhos denunciavam a sua agonia.
- Mas que valentona! - disse Aleutian, reconhecendo-lhe o estoicismo enquanto arrancava a lâmina. - A seguir é a perna - Espetou-lhe a navalha na coxa. Quando a
retirou, o sangue escuro brotou da ferida e pingou no soalho.
- Mata-o, Heck - urgiu Paddy. - A Hazel! - Com estas duas palavras, Hector justificou a sua relutância em disparar.
- Já não podes salvar a Hazel, mas podes salvar a Nazzy. Mata-o, por favor. - Paddy suplicava-lhe agora, e Hector nunca o tinha ouvido implorar antes. Mas Paddy
também nunca tinha sido obrigado a assistir, impotente, enquanto a mulher que adorava era cortada em pedaços.
Hector sabia que tinha de disparar. Também sabia que seria o tiro mais difícil que alguma vez disparara, e quais as consequências se falhasse.
No entanto, a pistola nas suas mãos era uma arma muito especial. Dave Imbiss tinha persuadido um mestre armeiro do exército a configurá-la segundo especificações
muito precisas. Primeiro, o armeiro obliterara os números de série, para eliminar qualquer registo escrito que associasse a pistola a Hector. Tinha polido a câmara
à mão, de modo a acomodar as balas na perfeição e evitar possíveis encravamentos. Inserira o cano numa máquina secreta da Divisão de Atiradores de Elite do Ministério
da Defesa dos Estados Unidos que tornara as estrias e os sulcos absolutamente perfeitos. Os projéteis também faziam parte de um lote especial. A balística era perfeita:
cada bala giraria através do cano e voaria em direção ao alvo numa trajetória idêntica, sem oscilações nem flutuações e com um desvio quase nulo. Por fim, a tosca
mira de ferro tinha sido substituída por uma ótica topo de gama. O resultado final era uma precisão refinada a milésimos de centímetro. Hector passara tantas horas
a praticar no campo de tiro que a pistola era quase uma extensão do seu próprio corpo.
Ademais, Aleutian era um animal selvagem encurralado e prestes a entrar em pânico. Já não estava a pensar como o assassino implacável que na verdade era. Estava
a cometer um pequeno erro. Começava a baloiçar a cabeça de forma ritmada, movendo-a de um lado para o outro com a cadência de um metrónomo. Aleutian estava a expor
a Hector um olho e cerca de quatro centímetros do lado direito da cabeça, a intervalos de dois segundos. Hector teria de fazer passar a bala a meros milímetros da
face de Nastiya.
Inspirou funda e lentamente e depois exalou com a mesma lentidão. Alinhou-se com o espaço contra o qual previa disparar. Exercia uma pressão tão leve com o dedo
sobre o gatilho que bastaria uma pluma para fazer disparar a arma. A sua concentração era tão intensa que tudo lhe pareceu abrandar e imobilizar-se num silêncio
total. A pistola disparou quase de moto-próprio. Hector teve a impressão de que uma força para lá da sua própria volição fizera o disparo. Viu um caracol de cabelo
loiro de Nastiya ser arrancado pela bala e a orelha estremecer assim que captou a turbulência causada
pela passagem do projétil, e depois viu o olho direito de Aleutian explodir numa rajada de massa gelatinosa pálida quando a bala o trespassou. A parte posterior
do crânio rebentou. A matéria cinzenta do cérebro esparrinhou a parede do corredor e Aleutian tombou pesadamente de costas. Os calcanhares tamborilaram em espasmos
sobre o soalho.
- Temos de pôr já torniquetes nas feridas dela, mas não toques em nada no quarto que possa deixar impressões digitais! - gritou Hector a Paddy enquanto se lançava
em frente. Nastiya deu um passo na direção dele e caiu assim que a perna ferida lhe cedeu sob o peso do corpo. Paddy amparou-a e deitou-a delicadamente no chão.
Hector avançou com rapidez para o local onde Aleutian estivera especado. Não precisava de se preocupar demasiado com possíveis impressões digitais nos cartuchos
usados. As únicas impressões que deixara foram nas partes externas da arma. Tirou do bolso um lenço de algodão e limpou meticulosamente a pistola, usando depois
o lenço como uma luva. Aproximou-se do local onde o corpo de Aleutian jazia de costas. Reparara na forma como ele empunhara a navalha e sabia que era destro. Ajoelhou-se
ao lado do corpo, pegou-lhe na mão direita inerte para lhe envolver os dedos à volta do cabo e pressionou-os contra o aço azulado. Depois fez o mesmo com a mão esquerda
de Aleutian sobre o ferrolho. Deteve-se por uns segundos para lhe examinar a tatuagem do Maalek no pulso e esboçou um esgar de fúria. Ajoelhado atrás de Aleutian,
com um dos braços envolvendo-lhe as axilas, pôs-se de pé lentamente enquanto lhe erguia o corpo.
- Baixa a cabeça, Paddy - advertiu. - Vou disparar mais um tiro. - Forçou o dedo inerte de Aleutian a premir o gatilho. A pistola disparou e a bala cravou-se na
parede do corredor, ao lado da porta da entrada. Depois largou o corpo de Aleutian e deixou-o tombar no chão sob o próprio peso.
Manteve-se ali especado por alguns segundos enquanto inspecionava a cena. Os ângulos estavam corretos. A mão direita de Aleutian estava agora coberta de pólvora
queimada. A equipa de especialistas forenses da polícia obteria um resultado positivo quando aplicasse o teste de parafina. O corpo de Aleutian tombara de forma
natural, com a navalha que usara contra Vicky caída sob ele. Era tudo muito convincente.
Afastou-se do corpo e acocorou-se ao lado de Paddy enquanto este se ocupava da perna de Nastiya. Paddy tinha arrancado um pedaço do cordão da cortina da janela na
parede ao fundo do corredor. Atara-o à volta da coxa de Nastiya, por cima da ferida, e apertava-o agora com força. O cordão enterrou-se gradualmente na carne e o
sangue que brotava da ferida começou a estancar. Hector usou o lenço como um torniquete no braço dela.
- Salvaste-lhe a vida. Não sei como te agradecer, Heck. - Paddy falou sem erguer a cabeça.
- Então não agradeças! - disse Hector. - Consigo fazer melhor do que o meu estúpido marido - disse Nastiya a Hector. - Assim que me conseguir pôr de pé, vou dar-te
uma beijoca enorme. - Estava muito pálida e a voz soava rouca, mas estava a sorrir.
- Vou ver se cumpres a palavra - advertiu-a ele. - Porque é que puseste o Aleutian a disparar um segundo tiro =esmo depois de morto? - perguntou Paddy.
- Para lhe deixar pólvora queimada nas mãos e as impressões na pistola - explicou Hector. - O que é que a polícia vai pensar quando encontrar esta enorme confusão
que fizemos? - perguntou Nastiya.
- Só nos resta esperar que pensem que o Aleutian matou a Vicky à navalhada na sequência de um arrufo de namorados, e que depois se matou, por remorso e medo das
consequências.
- E precisou de dois tiros para o fazer? - perguntou Paddy, incrédulo. - Só se tivesse uma pontaria mesmo muito má.
- Os suicidas costumam disparar primeiro um tiro para o ar para verificarem se a arma está funcional e ganharem coragem antes de dispararem o tiro mortal - explicou
Hector. - Acho que eliminámos todos os nossos rastos. Não deixámos nada aqui que possa conduzir a polícia a nós. Vamos mas é daqui pra fora.
Nastiya não emitiu nenhum som quando Paddy pegou nela e a carregou para fora do apartamento. Hector levantou-se e voltou para junto do local onde Vicky Vusamazulu
jazia. Mesmo para alguém como ele, habituado à morte em todas as suas versões mais hediondas, esta mutilação era doentia. Prestou-lhe alguns segundos de silêncio
respeitoso.
Era uma miúda parva. Mas não merecia acabar desta forma. Depois acercou-se de Aleutian e manteve-se especado sobre ele, de mãos enfiadas no bolso e olhos fixos na
cabeça despedaçada do assassino. O olho incólume parecia mirá-lo. Sentiu-se assaltado por ondas alternadas de raiva e desânimo. Raiva por aquilo que aquele homem
fizera a Hazel; desânimo pelo facto de a morte dele ter eliminado a única pista que poderia tê-lo conduzido ao covil da derradeira Besta.
Sabia agora que aquilo que o esperava era a verdadeira mãe de todos os becos sem saída. Virou costas e seguiu atrás de Paddy, em direção ao local onde deixara o
Q-car. A rua estava deserta.
Hector abriu a porta do condutor e enfiou-se atrás do volante. Paddy estava sentado no banco traseiro, abraçado a Nastiya, que continuava em silêncio e pálida. Hector
arrancou sem embalar o motor. Quando passaram pelos portões dos Jardins Botânicos. Hector voltou a falar.
- Bem, parece que tivemos sorte outra vez. Conseguimos escapar ilesos, à exceção da Nazzy. Estás a aguentar-te, czarina?
- Já estive pior, mas também já estive bem melhor - disse ela. - Para onde vamos?
- Vamos ver um homem que eu e o Paddy conhecemos bem - disse-lhe Hector enquanto estendia o iPhone por cima do ombro. - Toma lá o meu telemóvel, Paddy. Tens aí o
número do Doc Hogan na lista de contactos. Diz-lhe que estamos a caminho. Que dentro de hora e meia estamos lá.
Doc Hogan servira no Corpo Médico do Exército Real e tinha sido destacado para o regimento do SAE, o Serviço Aéreo Especial, no qual Hector prestara comissão. Quando
se aposentara instalara-se na quinta da família em Hampshire. No entanto, por trás da fachada de aristocrata rural, continuava a praticar medicina, embora de forma
oficiosa e em segredo. A sua especialidade era o tratamento de traumatismos. A sua reduzida e seleta lista de pacientes era composta por velhos amigos e camaradas
do exército que tinham sofrido contratempos menores como engravidar a mulher de outro homem ou serem esfaqueados, ou encontrarem-se descuidadamente na trajetória
de uma bala.
Paddy e Nastiya permaneceram durante dez dias como convidados de Doc Hogan, até ele lhes permitir apanharem o voo de regresso a Abu Zara no jato da Bannock Oil para
ela completar a convalescença.
As mortes de Aleutian e de Vicky Vusamazulu pouco interesse público despertaram. O incidente foi reportado como um ato de violência doméstica nas últimas páginas
de um boletim informativo local, mas nunca chegou aos canais noticiosos nem às emissões radiofónicas nacionais.
45
Agatha tinha aceitado a proposta de Hector de um emprego permanente e era agora a sua principal assistente pessoal, mas os seus poderes de persuasão tinham sido
postos à prova para a convencer a aceitar um aumento salarial.
"Não sei o que fazer com tanto dinheiro, senhor Cross." "Você é uma mulher inteligente, Agatha. Alguma ideia lhe ocorrerá", assegurara-lhe. "Mas vou precisar de
si em Abu Zara, para me ajudar com os negócios e com a Catherine Cayla. Talvez possamos regressar a Londres assim que o Fundo Fiduciário vender a casa de Belgravia
e arranjarmos outra residência."
Para além do facto de ela ser uma secretária muito dedicada e experiente, era também a maior perita mundial sobre o período da vida de Hazel antes de Hector casar
com ela. Dia após dia, Hector envolvia-a cada vez mais na pesquisa que estava a desenvolver sobre os registos acumulados por Hazel, para tentar identificar o inimigo
oculto no passado dela. Nesse sentido, os conselhos experientes de Agatha eram inestimáveis
Foi durante uma dessas longas conversas investigativas sobre a identidade do assassino que Agatha o lembrou da existência do enteado de Henry Bannock, o filho da
mulher que precedera Hazel nessa função. Chamava-se Carl e Henry a princípio acolhera-o de braços abertos na sua família. Providenciara-lhe a melhor educação e,
quando ele saiu da universidade, ofereceu-lhe um cargo muito bem remunerado na Bannock Oil. No entanto, a relação entre ambos rompera-se na sequência de um terrível
escândalo no seio da família que afetara Henry Bannock profundamente.
- Que escândalo foi esse, Agatha? - perguntou-lhe Hector. - Ouvi uns rumores quando comecei a trabalhar para a Bannock Oil. Mas nunca vim a saber de nenhum pormenor.
- Pouquíssimas pessoas sabiam. Foi muito antes do meu tempo. Mas só sei que o senhor Bannock tinha uma enorme vergonha de todo aquele sucedido. Nunca permitia que
ninguém falasse disso na casa dos Bannocks. Não havia nenhuma referência a isso nos seus registos pessoais; deve tê-los expurgado todos. Era como se aquilo nunca
tivesse acontecido. Ouvi dizer que o Carl Bannock foi libertado da prisão após cumprir uma sentença longa. Mas depois.. simplesmente desapareceu, até que o senhor
Bannock faleceu e a Hazel assumiu o cargo dele como diretora executiva. Depois, voltou a aparecer do nada e começou a importunar a Hazel. Não sei o que ele pretendia,
mas acho que estava a tentar chantageá-la. Acho que a obrigou a pagar-lhe uma enorme quantia de dinheiro. porque ele voltou a desaparecer de repente e nunca mais
ouvi falar dele. A Hazel chegou alguma vez a falar-lhe dele?
- Nunca. Nunca lhe perguntei e ela também nunca me falou dele. Eu sabia que havia um enorme segredo obscuro na família. mas nunca quis remexer em coisas antigas
e dolorosas associadas ao Henry Bannock, pois ela venerava-o - admitiu Hector. - Era como se esse sujeito, o Carl, nunca tivesse existido.
- De qualquer forma, não estou a ver como é que o Carl poderia estar implicado no homicídio da Hazel. Que ganharia ele ao matá-la, ou mandá-la matar? Já lhe tinha
conseguido sacar todo o dinheiro que podia.
- Também não consigo ver nenhum motivo, para além do simples desejo de vingança. Mas se a Hazel lhe tinha dado dinheiro para lhe comprar o silêncio, como você sugere,
por que razão voltaria ele após todos estes anos para a matar? Concordo que não faz sentido. Acho que devemos procurar o assassino dela noutro lugar qualquer. Mas
sem nunca nos esquecermos desse senhor Carl Bannock, embora o nome dele se encontre bem no fundo da lista de possíveis suspeitos.
46
Quando voltaram a instalar-se em Seascape Mansions, Hector e Agatha começaram a elaborar uma lista de possíveis vilãos, mas houvera tantas pessoas hostis na vida
de Hazel que a lista se alongou até atingir proporções que a tornavam impossível de gerir. Hector não podia viajar de um lado para o outro pelo globo para seguir
cada indício e eliminar da lista cada possível culpado. Por conseguinte, Agatha teve de procurar um conceituado detetive privado em cada um dos países por onde os
antigos inimigos de Hazel se encontravam atualmente dispersos. Hector contratou-os para efetuarem buscas nos seus países. Só quando o relatório de um desses detetives
contratados parecia relevante e promissor é que Hector viajava de jato para seguir o rasto de sangue pessoalmente.
Uma dessas viagens teve como destino a Colômbia, para investigar um famigerado barão da cocaína e do petróleo que outrora fizera negócios com a Bannock Oil, negócios
esses que tinham terminado em recriminações e raiva mútuas. Agatha recordava-se que o Senhor Bartolo Julio Alvarez chegara a proferir ameaças de morte e que se referia
em público a Hazel Bannock como uma Yanqui putain de bordel de merde. Para Hector, o sentido destas palavras era obscuro, mas Agatha explicou-lhe de bom grado que
significava algo como "uma senhora americana de virtude fácil que exerce o seu ofício numa casa de má reputação que foi erigida com excrementos."
- Que palavras pouco lisonjeiras - comentou Hector. - Acho que será melhor eu ir lá trocar uma palavrinha com ele.
Quando Hector chegou a Bogotá, descobriu que perdera, por uma semana, a oportunidade de assistir ao funeral do Señor Alvarez. Tinha sido despachado rumo à sua recompensa
celestial por seis tiros de uma submetralhadora Scorpion SA Vz. 61, disparados a uma distância de sessenta centímetros contra a parte posterior do crânio por um
guarda-costas da sua confiança que, segundo parecia, transferira recentemente a sua lealdade para o cabecilha de um cartel de cocaína rival.
Quando Hector regressou a Abu Zara, foi mais afortunado.
Nastiya já tinha recuperado o suficiente dos ferimentos para poder acompanhar Paddy ao aeroporto para recolher Hector.
- Nem imaginas o que aconteceu - disse-lhe Nastiya enquanto se abraçavam.
- Seja o que for, só pode ser coisa boa - respondeu Hector. - Estás a sorrir como uma idiota.
- A Catherine Cayla já sabe gatinhar! - Ela quê? - Já gatinha! Tu sabes, de mãos e joelhos no chão. Se continuar a este ritmo, estará apta a participar nos próximos
Jogos Olímpicos - disse Nastiya com orgulho.
- Parabéns, Heck! - Paddy riu-se. - Obrigado, Padraig. Pelos vistos, a minha filhinha é uma bebé prodígio. - Falou numa voz inchada de orgulho. - Tenho de ver isso
com os meus próprios olhos.
- O teu comité de receção espera ansiosamente pela tua chegada em Seascape Mansions. Aviso-te desde já que os preparativos foram bastante demorados - disse Paddy.
Subiram no elevador privado e, quando as portas se abriram, todo o pessoal doméstico estava alinhado no átrio, por baixo de uma rebuscada faixa pendurada de parede
a parede, com os seguintes dizeres numa brilhante tinta dourada: BEM-VINDO A CASA, PAPÁ! Ao fundo do átrio encontravam-se as fileiras dos empregados domésticos.
Os chefs envergavam impecáveis jaquetas brancas com os tradicionais chapéus altos. Os membros menos qualificados do pessoal doméstico vestiam uniformes lavados e
recém-engomados e as criadas usavam aventais brancos de folhos por cima das fardas azul-marinho. À frente deles perfilavam-se os operacionais de segurança nos seus
uniformes de gala, cintos de fivelas reluzentes e botas impecavelmente engraxadas. Na primeira fila estavam as três amas. Bonnie destacava-se no centro, segurando
Catherine Cayla-Bannock nos braços.
Catherine estava vestida com um babygro cor-de-rosa bordado e algumas melenas do seu macio cabelo loiro tinham sido unidas para segurar um enorme laço, também cor-de-rosa.
O grupo desatou a aplaudir assim que Hector saiu do elevador. Catherine girou a cabecita, olhando para todos com espanto, e depois os seus olhos fixaram-se em Hector
quando ele se aproximou. Hector reparou que os olhos dela tinham mudado de cor. Exibiam agora uma tonalidade azul mais carregada e mais brilhante. Eram os olhos
de Hazel. O seu olhar era constante e focado e Hector deu-se conta de que ela estava a vê-lo, possivelmente pela primeira vez. Hector parou à frente dela e a bebé
enfiou os pequenos polegares na boca, fixando-se nele com um olhar sério.
- És tão linda - disse-lhe. - És tão linda como a tua mãe.
- Estendeu os braços para ela e sorriu. - Posso pegar em ti, posso?
Sabia que ela ainda era demasiado pequena para se lembrar dele ou o reconhecer. Tinham-lhe dito que isso só aconteceria quando ela fizesse um ano. Mas continuou
a sorrir-lhe e a olhá-la nos olhos.
Viu os pensamentos dela aflorarem à superfície como belos peixinhos num fundo lago azul. De repente, ela imitou-lhe o sorriso e estendeu os bracinhos para ele, inclinando-se
para a frente nos braços de Bonnie e agitando-se com tal vigor que a ama quase a deixou cair. Pro diabo com os especialistas!, pensou ele com grande alegria. Ela
reconhece-me mesmo!
Pegou nela e Catherine sentou-se direita na curva do braço dele. Era leve e macia e cheirava a leite. Beijou-lhe o cocuruto e ela disse claramente: - Ba! Ba!
- Queremos dizer "papá" - traduziu Bonnie. - Temos estado a trabalhar nisto, mas é uma palavra muito difícil para nós.
Hector levou Catherine para o quarto de criança e as três amas seguiram-no em grupo. Deitou-a no centro do soalho e afastou-se para junto da porta.
- Muito bem, minha coisinha linda - disse-lhe. - Quero ver-te gatinhar. - Bateu as mãos. - Anda cá, Cathy. Anda aqui ao Ba-Ba, minha filhinha!
A bebé rolou até ficar de barriga, apoiou-se nas mãos e nos joelhos e lançou-se para ele num gatinhar veloz. Quando o alcançou. agarrou-se com ambas as mãos a uma
das pernas das calças dele e tentou levantar-se. Caiu para trás sobre o traseiro protegido pela fralda e as três amas irromperam em gritinhos excitados:
- Viram aquilo? - Ela tentou erguer-se nas duas perninhas! - Ela nunca fez isto antes! Era a hora de a alimentar e Hector fez a sua parte, dando-lhe colheradas de
papa de carne de frango e abóbora. A maior parte da papa acabava por lhe escorrer da boca para o queixo, sujando-lhe o babete e a parte da frente da camisa de Hector.
Enquanto ela engolia a última colherada, os seus olhos fecharam-se, o queixo tombou-lhe sobre o peito e adormeceu prontamente na cadeirinha.
Hector exercitou-se no ginásio durante duas horas enquanto Catherine dormia a sesta; depois calçou as sapatilhas de correr, pegou no marsúpio e foi buscar a bebé.
Quando Catherine viu o marsúpio, agitou as perninhas e emitiu sons de contentamento.
Hector correu ao longo da marginal quase deserta, seguido a uma distância discreta por dois dos melhores homens de Dave Imbiss. Hector cantarolou para a bebé e fez-lhe
caretas que a punham a rir. Catherine explorou a cara dele. Enfiava os dedos rechonchudos e rosados na boca dele para ver de onde vinham aqueles sons estranhos e
tentava imitá-los. Soprou bolinhas de saliva e deu gargalhadas.
A bebé mitigava-lhe a solidão. Já não lhe doía tanto quando pensava em Hazel.
Mas muito em breve teria de voltar a Londres.
47
Contra todas as expectativas, o agente imobiliário tinha encontrado um comprador para a casa de Belgravia. Em nome dos mandatários do Fundo Fiduciário, Ronnie Bunter
pedira a Hector que supervisionasse a transação. Por conseguinte, teria de estar presente quando a empresa de mudanças transportasse o conteúdo da enorme casa. O
comprador era um magnata indiano da indústria do aço. Ia oferecê-la a um dos seus filhos como prenda de casamento. Hector conseguiu vender-lhe a maior parte do mobiliário
da grandiosa mansão. Enviou para a Sotheby's as antiguidades e as obras de arte que Hazel acumulara, para serem vendidas em leilão, e sentiu um alívio quase físico
quando a última das furgonetas das mudanças, sobrecarregada, arrancou pela rampa da entrada.
O astuto agente imobiliário tinha uma lista de doze possíveis substitutos para o nº 11 de Belgravia. Levou Hector numa visita guiada. A terceira hipótese da lista
era uma encantadora casa de cavalariça em Mayfair. Tinha sido completamente renovada e a pintura ainda mal secara nas paredes. Incluía todas as divisões de uso comum,
quatro suítes espaçosas, garagem subterrânea com capacidade para três veículos e alojamento na cave para cinco empregados domésticos. Hector demorou quarenta e cinco
minutos a tomar a decisão de a comprar.
Enquanto assinava os documentos de aquisição do nº 4 de Lowndes Mews, em Mayfair, escolhera já um nome para a nova casa que partilharia com Catherine: "The Cross
Roads". A nova residência ocupava uma área de superfície cerca de vinte por cento superior à da mansão de Belgravia.
Contratou a sua habitual firma de designers de interiores e deu-lhes um prazo-limite de seis semanas para terem a propriedade completamente mobilada e pronta a habitar.
Começou a sentir, por fim, que tinha conseguido deixar o passado para trás e que estava pronto para recomeçar a viver a sua própria vida.
Nota de Rodapé: "The Cross Roads": trata-se, obviamente de uma referência ao apelido "Cross", e a expressão pode ser traduzida como "as estradas/ os caminhos dos
Cross", mas também como "as encruzilhadas".
Fim da Nota.48
O julgamento no principal tribunal criminal de Londres dos dois delinquentes que tinham incendiado e destruído Brandon Hall iria decorrer algumas semanas mais tarde.
Durou seis dias.
Entre os três, Nastiya, Paddy e Hector passaram dois desses dias no banco das testemunhas, e os seus depoimentos, juntamente com o de Paul Stowe, o couteiro-mor,
foram esmagadores.
O júri voltou das suas deliberações apenas duas horas e meia depois, com o veredito de "culpados de todas as acusações".
Quando a lista das condenações anteriores foi lida em voz alta, o juiz decidiu aplicar aos acusados a pena máxima prevista por lei. Condenou cada um deles a vinte
e dois anos de prisão e ordenou que cumprissem um mínimo de dezanove anos das suas penas.
Tinham tentado matar Catherine Cayla pelas chamas e Hector só se sentiu parcialmente aplacado pela severidade da sentença. Consolou-se com a ideia de que, dada a
abolição da pena de morte no Reino Unido, era a punição máxima que as brandas leis atuais permitiam.
49
Quando os três regressaram a Abu Zara no jato, Paul Stowe acompanhou-os a convite de Hector. Já não precisava de um couteiro-mor em Brandon Hall, mas, como Paul
era um elemento demasiado válido para o perder, Hector arranjou-lhe um novo emprego na Cross Bow Security.
Hector pôde dedicar-se a Catherine e a seguir o rasto de registos escritos que esperava que o conduzissem ao misterioso assassino.
No entanto, as dúvidas começavam a acumular-se nos recantos da sua mente. A lista de suspeitos estava a reduzir-se rapidamente à medida que recebia os relatórios
negativos dos seus agentes no terreno. Começou a ser assaltado por uma sensação de impotência e incapacidade, dois sentimentos aos quais não estava habituado.
Tentou combater estas mudanças de humor por via de pesado exercício físico e passando horas no campo de tiro. Também pôde contar com a distração de viajar para os
Estados Unidos para participar na assembleia geral anual da Bannock Oil, Inc., da qual continuava a ser um dos diretores.
Depois, os seus designers de interiores em Londres informaram-no de que tinham concluído a decoração da casa The Cross Roads em Lowndes Mews com apenas cinco dias
de atraso em relação ao prazo-limite que ele estipulara.
Foi com alívio que regressou ao bulício e à agitação de Londres.
50
O decorador de interiores e dois dos seus assistentes mostraram a Hector a casa The Cross Roads. Nenhum detalhe fora descurado. A paleta de cores dominante que Hector
escolhera era de azuis e amarelos claros, com tons de castanho para contrabalançar. Era um ambiente acolhedor, funcional e masculino.
A sua equipa de empregados domésticos, cuidadosamente selecionados entre o seu pessoal da casa de Belgravia e de Brandon Hall, já se instalara nos seus alojamentos.
Cynthia, a chef, estava na cozinha, ocupada com as suas panelas e tachos.
Dois novos automóveis de carroçarias imaculadas, um Bentley Continental e um Range Rover, estavam estacionados na garagem subterrânea.
O bar e a adega estavam abastecidos com os seus vinhos e licores preferidos.
No seu estúdio, a iluminação era agradável aos olhos e tinha o computador ligado à rede.
A suíte principal era uma obra de arte, com uma cama gigantesca, preparada com os seus edredões de seda favoritos. Havia uma reluzente casa de banho masculina de
azulejos brancos, contígua a uma casa de banho feminina de um rosa suave, equipada, evidentemente, com um bidé. Os seus fatos e camisas tinham sido passados a ferro
e estavam pendurados no principal quarto de vestir. Os seus sapatos estavam guardados nas prateleiras, engraxados na perfeição.
Do outro lado do corredor ficava a suíte de criança de Catherine Antes de se mudar, Hector chamara Dave Imbiss de Abu Zara com a sua caixa de engenhos eletrónicos.
Dave varreu a casa a pente fino, desde a cave até ao telhado do sótão, e anunciou que estava livre de escutas ou de quaisquer outros dispositivos de vigia.
Hector decidira que, de futuro, viveria entre The Cross Roads. em Londres, e Seascape Mansions, em Abu Zara, passando dez dias alternados em cada um desses lugares.
Desse modo, poderia deleitar-se tanto com a agitação da metrópole como com a tranquilidade do reino do deserto.
Na primeira noite que passou em The Cross Roads, convidou três dos seus velhos companheiros de armas dos tempos da sua comissão no Serviço Aéreo Especial, e as respetivas
mulheres, para jantarem com ele. Foi uma noite de ameno convívio e só caiu na cama bastante depois da meia-noite.
51
Na manhã seguinte, quando saía do duche, o seu telemóvel tocou. Secou a mão direita na toalha, sacudiu a água do cabelo molhado e agarrou no telemóvel pousado no
lavatório.
- Cross! - atendeu, contrariado. Ainda lhe doía um pouco a cabeça da diversão da noite anterior.
- Oh, espero não estar a incomodá-lo, senhor Cross - disse uma voz feminina.
- Jo? - perguntou ele numa voz hesitante. - Jo Stanley, não é? Ou deveria tratá-la por menina Stanley? - Sabia que era ela, claro. Há quase um ano que os acordes
musicais daquela voz lhe ecoavam suavemente nos remansos da memória.
- Jo soa-me melhor do que a sua segunda hipótese, Hector. - Que grande surpresa. Onde está? Não estará em Inglaterra por algum estranho acaso?
- Sim, estou em Londres. Cheguei ontem à noite, bastante tarde.
- Está no Ritz, como da outra vez? - Não, Santo Deus! - Hector sorriu ao ouvir aquela expressão. Era tão antiquada. - Não me posso dar ao luxo desse tipo de extravagância.
- Pode, sim, se depois enviar a conta ao Ronnie Bunter - sugeriu.
- Já não trabalho mais para o senhor Bunter - disse ela, apanhando-o de surpresa.
- Então para quem trabalha agora? - Para usar um eufemismo muito batido, neste momento estou em fase de transição profissional. - Voltou a surpreendê-lo.
- E o que a traz a Londres? - Vim vê-lo, Hector. - Não posso acreditar nisso. Porquê eu? - É complicado. Além do mais, há formas melhores e mais seguras de discutirmos
isto do que ao telemóvel.
- Na sua casa ou na minha? - perguntou ele, e ela voltou a rir-se. Era um som que agradava a Hector.
- Seria um atrevimento se lhe dissesse na sua? - Nunca chegaríamos a nenhum lado se nunca nos atrevêssemos. Onde a posso encontrar? Onde está hospedada?
- Num hotelzinho bastante simpático e com um nome também simpático, mesmo ao fundo de Chelsea Green.
- Qual é o nome? - Chama-se My Hotel. - Muito bem, sei qual é. Apanho-a aí na entrada principal dentro de quarenta e cinco minutos. Vou num... - Num Bentley prateado,
com a matrícula CRO 55, correto - Um palpite quase acertado, menina Stanley - riu-se. - Mas essa era a minha lata velha. A nova carripana é preta. Mas a matrícula
continua a ser a mesma.
- Santo Deus! Só os anjos conseguem perceber a fixação dos homens pelos carros.
52
Jo estava especada à entrada do hotel. Vestia calças de ganga e um anoraque ligeiro, de cor azul, por cima de uma camisola de gola alta de malha branca em cabo trançado,
e segurava uma pasta de couro. Tinha mudado de penteado e usava agora o cabelo preso num puxo e com franjas. Ficava-lhe ainda melhor, pois dava a impressão de lhe
alongar mais o pescoço, fazendo-o parecer-se com o de um cisne. Tinha-se esquecido de como ela era alta e realmente elegante, mesmo em calças de ganga.
Quando lhe abriu a porta do lugar do passageiro, Jo enfiou-se no banco e apertou o cinto antes de se virar para ele.
- Não preciso de lhe perguntar como tem passado. Está com muito bom aspeto, Hector.
- Obrigado. E a Jo também está com excelente aspeto. Bem-vinda a Londres.
- Como está a Catherine Cayla? - Agora tocou no meu ponto fraco. Podia falar dela o dia todo. A Catherine Cayla é para lá de maravilhosa.
- Esqueça as minudências e conte-me as coisas importantes. - Tem olhos azuis e já sabe gatinhar. Até consegue dizer papá, só que o pronuncia como "Ba Ba", o que
prova, para lá de qualquer dúvida, que ela é um prodígio.
- Acha que alguma vez terei a oportunidade de a conhecer? - Ora aí está uma ideia magnífica.
Depois de estacionarem no pátio no exterior de The Cross Roads, Hector pegou na pasta dela e acompanhou-a ao vestíbulo da entrada. Jo olhou à sua volta, para a ampla
escadaria circular e para as portas abertas da sala de estar.
- Que acolhedor - comentou num tom aprovador. - Muito acolhedor. Ótimo gosto, Hector. Aquilo ali é um Paul Gauguin autêntico? - Indicou a enorme pintura a óleo na
parede ao fundo da sala de estar. - Antes fosse! A Hazel mandou fazer cópias de toda a sua coleção de arte para poder guardar os originais num depósito seguro sem
precisar de pagar um seguro exorbitante. Deve-se lembrar de que os originais pertenciam todos ao Fundo Fiduciário. Conserve: esta cópia em memória da Hazel. - Ficou
surpreendido ao constatar a facilidade com que agora conseguia falar de Hazel, com prazer e não com dor.
Pousou a pasta dela e ajudou-a a tirar o anoraque. Especado ao lado dela, recordou-se do seu perfume quando se tinham conhecido: Chanel Nº 22 - perfeito para ela.
- Se lhe parecer bem, podemos trabalhar no meu estúdio. Suponho que viemos aqui para trabalhar e não para nos pormos a admirar as minhas falsas obras-primas, não
é?
Ela riu-se baixinho. - Supôs bem. - Gostou da forma como ele admitiu prontamente que alguns dos seus quadros eram cópias. Era a confirmação daquilo que já suspeitava
quando o conhecera: Hector era um homem direto e sincero, sem arrogância nem presunção. Um homem no qual uma mulher podia confiar, e do qual os homens maus faziam
bem em afastar-se.
Hector tomou-lhe o cotovelo para a ajudar a subir as escadas. O estúdio exibia uma atmosfera muito masculina. Mas ela nunca esperara uma coleção tão grande de livros.
O soalho estava coberto com tapetes persas de cores e padrões agradáveis. A escrivaninha de teca esculpida dominava a divisão espaçosa. Na parede do fundo estava
pendurado um retrato a óleo de Hazel, especada num campo de trigo dourado e segurando na mão um chapéu de palha de aba larga. Com a outra mão protegia os olhos do
sol e estava a rir. O cabelo era de um dourado mais escuro que o trigo e esvoaçava ao vento. Jo baixou o olhar; sentiu uma estranha emoção que não conseguia definir.
Não sabia se era inveja ou admiração, ou compaixão.
Hector pousou a pasta dela na comprida e antiga mesa de Biblioteca e deu uma palmadinha na poltrona de couro capitoné. - É o assento mais confortável aqui no estúdio.
- Obrigada - disse ela. Mas, em vez de se sentar de imediato, deambulou ao longo das estantes enquanto examinava a coleção dele. - Quer alguma coisa para beber ou
comer? - perguntou-lhe. - Estou mortinha por tomar uma chávena de café. - A morte não é para aqui chamada - disse, acercando-se da máquina de café Nespresso escondida
atrás de um antigo biombo chinês no canto. - Nunca deixo que sejam os outros a prepararem-me o café - explicou. - Nem sequer a minha chef Cynthia.
Jo sentou-se por fim na poltrona que Hector lhe indicara e ele colocou as chávenas em cima da mesa ao lado dela. Sentou-se na sua própria poltrona atrás da escrivaninha.
- Temos assuntos muito delicados a discutir. Podemos fazê-lo aqui em segurança? - perguntou ela baixinho.
- Não precisa de se preocupar, Jo. Pedi a uma pessoa da minha absoluta confiança que fizesse uma revista minuciosa a toda a casa.
- Peço desculpa por ter perguntado. Sei que você é um profissional, Hector. - Ele inclinou a cabeça num gesto de aceitação da desculpa e ela prosseguiu: - Vim durante
toda a viagem sobre o Atlântico a pensar na melhor forma de lhe explicar tudo isto. Decidi que a única maneira era começar pelo princípio.
- Parece-me ser a solução mais lógica - concordou. - É por isso mesmo que vou começar pelo fim. - Agora que penso nisso, também me parece muito lógico,
mas só para quem é mulher, claro.
Ela não fez caso do sarcasmo. A sua expressão começou a alterar-se. O entusiasmo e a desenvoltura esmoreceram. Os olhos encantadores encheram-se de sombras.
Hector desejou desesperadamente ajudá-la, mas apercebeu-se de que a melhor forma de o fazer era continuar em silêncio e ouvi-la. Ela falou por fim.
- O Ronald Bunter é um excelente advogado e um homem honesto e de princípios nobres. Mas, como principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock,
teve de enfrentar uma decisão terrível. Teve de decidir se deveria trair a sua ética profissional ou as vidas de inocentes confiados ao seu cuidado.
Calou-se e Hector percebeu, por um rasgo de intuição, que ela se vira confrontada com a mesma terrível decisão.
Ela suspirou, e foi um som pungente. Pousou a mão na pasta e disse: - Tenho aqui dentro uma cópia digital da escritura do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Roubei-a da firma de advogados à qual jurei fidelidade. O Ronald Bunter deu-me uma cópia das chaves e os códigos para eu poder entrar na casa-forte enquanto o edifício
estava deserto, e ajudou-me a não ser descoberta. Foi meu cúmplice. Só cometemos este ato depois de uma longa e profunda discussão e reflexão. Mas, no final, decidimos
que a justiça era mais importante que a estrita letra da lei. É algo quase inaceitável para um advogado. Ainda assim, quando terminei aquilo que me dispus a fazer,
senti que era meu dever, perante Deus e a minha própria consciência, demitir-me da firma cuja confiança tinha traído de forma tão lamentável.
Hector deu-se conta de que tinha estado a suster a respiração enquanto a ouvia. Soltou um suspiro longo e quase inaudível e disse: - Se pensa fazer isso por mim,
não posso permitir que o faça. É um sacrifício demasiado grande.
- Já o fiz - disse ela. - Agora já não posso voltar atrás. É demasiado tarde. Além do mais, foi a decisão mais correta. Por favor, não me tente convencer do contrário.
Encare isto como uma prenda para si e para a Catherine Cayla.
- Já que coloca as coisas nesses termos, não me resta outra opção senão aceitar. Obrigado, Jo. Verá que não somos nenhuns ingratos. - Eu sei que não. - Baixou o
olhar e fixou-o nas mãos enlaçadas no regaço. Quando voltou a olhar para ele, recuperara por completo o controlo das emoções.
- A escritura do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock redigiu é uma monstruosidade de trezentas páginas. Levaria uma eternidade a lê-la até ao fim, porque cairia
logo de sono a cada duas ou três páginas lidas.
Abriu a pasta e tirou duas pequenas pens. Sopesou-as na mão, como se estivesse relutante em lhas entregar.
- O que fiz foi preparar-lhe uma cópia digital da escritura original do Fundo Fiduciário. - Pousou uma das pens à frente dele na escrivaninha. - Depois, nesta segunda
pen, expus os antecedentes e a história que levaram à formação do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock criou, bem como a reação em cadeia que esse ato desencadeou
posteriormente. Com a cooperação total do Ronnie Bunter, acho que consegui organizar os factos numa espécie de ordem lógica e coerente e de leitura fácil. Suponho
que sempre existiu em mim uma forte ambição de um dia vir a ser escritora, porque dei por mim muito envolvida neste processo. - Sorriu de forma autodepreciativa.
- Seja como for, ofereço-lhe a minha primeira tentativa no campo da literatura. Não é nenhum romance, nem sequer uma novela, porque tudo aquilo que contém é factual.
Levantou-se e pousou a segunda pen ao lado da primeira à frente dele na escrivaninha. Hector agarrou nela e examinou-a com curiosidade. Jo voltou a sentar-se e observou-o.
Ele estendeu o braço sobre a escrivaninha e inseriu a pen no computador.
- Está em formato Word - disse Jo. - Está a abrir sem problemas - replicou ele. - Mas agora está a pedir uma palavra-passe.
- É sementeenvenenada7805 - disse ela. - Tudo em minúsculas e tudo junto.
- Já está. Aqui vamos. Está a abrir. - Leu em voz alta o título do cabeçalho do documento: - "Karl Pieter Kurtmeyer: A Semente Envenenada".
- Espero que ache o conteúdo mais interessante do que aquilo que o título dá a entender - disse Jo.
- Vou começar a ler já, mas parece-me que vai demorar umas horas, ou mesmo dias. Há alguma coisa que eu possa fazer para a entreter nesse entretanto? Gostaria de
ler um livro ou ver televisão, ou dar um passeio para ver as vistas ou ir às compras? Londres é uma cidade com muita diversão.
- Sinto-me exausta por causa do jetlag. - Ocultou o bocejo por trás da mão. - Não preguei olho durante aquela viagem horrível em classe turística. Já para não falar
da turbulência e da mulher obesa sentada ao meu lado que não parava de ressonar como uma leoa furiosa e transbordava do assento dela para o meu. Não consegui pregar
olho.
- Coitada! - Levantou-se. - Não se preocupe. O problema resolve-se facilmente. Siga-me. - Levou-a para a suíte de hóspedes.
Quando ela reparou na cama, sorriu. - Já vi campos de polo mais pequenos do que isto.
Ficou também impressionada com a casa de banho. Hector levou-a de volta para o quarto principal e disse-lhe: - Os roupões estão no guarda-roupa. Escolha o que quiser,
depois feche a porta e diga adeus a este mundo cruel durante o tempo que achar necessário.
Voltou para o estúdio. Sentou-se à frente do computador e começou a ler a primeira página de "A Semente Envenenada".
Aquelas que impusera aos homens, mulheres e crianças judeus no campo de concentração.
Marlene Imelda deu por si viúva na tenra idade dos vinte e um anos.
Quando o património de Heinrich foi avaliado para fins fiscais, descobriu-se que tinha outro vício secreto, bastante diferente do de chacinar judeus indefesos: fora
um apostador compulsivo. Contrariamente àquilo que a maior parte das pessoas de Dusseldórfia acreditava, Heinrich não era um homem abastado. Tinha dilapidado a sua
fortuna. Marlene Imelda e o filho de tenra idade ficaram quase na miséria.
No entanto, ela era jovem, bela e expedita. Sabia onde o dinheiro estava. Emigrou para os Estados Unidos da América e, poucos meses após a sua chegada, já tinha
arranjado emprego como secretária assistente de uma emergente companhia de exploração petrolífera sediada em Houston.
O fundador e proprietário da companhia era um homem chamado Henry Bannock. Era uma personagem bem-parecida, exuberante e impressionante. No aspeto, fazia lembrar
John Wayne, com um toque de Burt Lancaster. Na sua juventude, tinha pilotado caças de combate F-86 Sabre na Coreia e foram-lhe creditados oficialmente seis abates.
Mais tarde, fundara no Alasca a sua própria companhia de voos chárter, à qual chamara Bannock Air. Fretara muitos voos para as grandes companhias de exploração petrolífera
e, no decurso dessas atividades comerciais, conhecera muitos executivos de topo, os quais o iniciaram nos segredos do ofício e lhe facilitaram a entrada no mundo
da exploração petrolífera. Pouco depois, tinha adquirido várias concessões de perfuração. Um pouco antes de Marlene Imelda ter ido trabalhar para a Bannock Oil,
Henry tinha comprado o seu primeiro campo de petróleo na Encosta Norte do Alasca, de modo que já era um multimilionário.
Marlene tinha vinte e poucos anos e era ainda mais bela do que fora aos dezanove anos, quando conhecera Heinrich. Sabia como agradar a um homem, tanto na cama como
fora dela. E agradou desmesuradamente a Henry Bannock. O facto de ela já ter um filho jovem tornava-a ainda mais desejável aos seus olhos.
Karl Pieter Kurtmeyer herdara a beleza da mãe. Era até ainda mais bem-parecido do que ela. Tinha cabelo loiro espesso, queixo saliente e uma pequena dobra epicântica
nas pálpebras que lhe conferia um ar misterioso e pensativo. Esta imperfeição menor parecia realçar-lhe a perfeição dos outros traços faciais.
Karl era inteligente e eloquente. Mesmo naquela tenra idade, já falava espanhol, francês, alemão e inglês. As suas notas na escola eram invariavelmente excelentes.
Henry ficava impressionado com pessoas bem-parecidas que também eram inteligentes e dóceis. Karl tinha todos estes atributos, à semelhança da mãe.
Quando Henry Bannock casou com Marlene Imelda, adotou Karl formalmente e mudou-lhe o nome para Carl Peter Bannock, abandonando assim a grafia teutónica dos seus
nomes de batismo. Graças aos seus contactos, Henry conseguiu inscrever Carl na Escola Primária de St. Michael, uma das escolas privadas mais prestigiadas do Estado
do Texas. Carl brilhou aí. Foi sempre um dos três melhores alunos da turma e fazia parte das equipas de futebol americano e de basquetebol da escola.
Em casa, Marlene Imelda demonstrou que Henry não era infértil, como proclamavam os rumores dos seus muitos inimigos. Pouco depois do casamento, deu à luz uma menina
com três quilos e dezoito gramas. Tal como a mãe, Sacha Jean era uma beldade excecional. Também era uma criança doce e sensível, com dotes musicais. Começou a aprender
piano aos três anos, e aos sete já conseguia executar mesmo as composições mais tecnicamente exigentes do repertório clássico padrão, como o Concerto para Piano
nº 3 de Rachmaninov. Adorava o seu irmão Carl.
Sacha tinha quase nove anos de idade quando Carl a forçou a ter sexo com penetração completa. Andara a prepará-la para esse efeito ao longo dos seis meses anteriores,
convencendo-a a acariciar-lhe os genitais quando estavam sozinhos. Carl tinha treze anos e tivera um desenvolvimento sexual precoce. Ensinou Sacha a manusear-lhe
o pénis, segurando-o na mão e movendo-o para trás e para a frente até ele ejacular. Carl era paciente e amável com ela, dizendo-lhe o quanto a amava e que ela era
esperta e bonita e lhe agradava imenso. Na sua inocência, Sacha via naqueles jogos um precioso segredo entre os dois, e ela gostava imenso de segredos.
O local preferido de Carl para ter relações íntimas com ela eram os vestiários da piscina, nos jardins de cinco hectares da residência da família. A melhor altura
era quando o pai se ausentava em negócios no Alasca e a mãe se retirava para repousar após o almoço. Marlene adquirira o hábito de tomar três ou mais cocktails de
gim e lima à hora do almoço e os passos vacilavam-lhe quando se levantava da mesa e se retirava para o quarto. Era nessa altura que Carl levava Sacha para a piscina.
Da primeira vez que Carl ejaculou dentro da boca dela, Sacha foi completamente apanhada de surpresa. Ficou enojada com o sabor do esperma e chorou, dizendo-lhe que
já não queria brincar mais com ele. Carl deu-lhe um beijo e disse que não fazia mal se ela já não o amava, mas que ele continuava a amá-la. No entanto não se comportava
como se ainda a amasse. Nas semanas seguintes, mostrou-se muito distante e dizia-lhe coisas maldosas e odiosas. No final, foi ela própria quem acabou por sugerir
que deviam ir nadar juntos após o almoço. Não tardou a habituar-se ao sabor. Mas depois, às vezes ele forçava o pénis demasiado fundo na sua garganta e à noite ela
chorava durante o sono. A única coisa que importava era que o irmão voltara a amá-la.
Certa tarde, Carl obrigou-a a tirar as cuecas. Sentou-se no banco à frente dela e tocou-lhe nos genitais. Sacha fechou os olhos e tentou não estremecer e esquivar-se
quando ele lhe enfiou o dedo. No final, ele levantou-se e ejaculou em cima da barriga dela. Depois, disse-lhe que ela estava nojenta e que devia limpar-se e não
contar a ninguém. E levantou-se sem lhe dirigir mais nenhuma palavra.
Sacha não quis jantar nessa noite. A mãe deu-lhe duas colheres de óleo de rícino e não a deixou ir à escola no dia seguinte.
Três semanas antes da festa do seu nono aniversário, Carl entrou no quarto de Sacha quando a casa estava em silêncio. Tirou as calças do pijama e enfiou-se na cama
com ela. Quando a penetrou, foi tão doloroso que ela gritou, mas ninguém a ouviu.
Depois de ele voltar para o seu próprio quarto, Sacha descobriu que estava a sangrar. Sentou-se na sanita, a ouvir o sangue pingar na água. Sentia demasiada vergonha
de si mesma para chamar a mãe. De qualquer modo, sabia que a mãe estava trancada no quarto e que nunca lhe abriria a porta, por mais que ela batesse ou implorasse.
Pouco depois, a hemorragia parou e Sacha enfiou a camisa de noite entre as pernas. Avançou a coxear até ao fundo do corredor e tirou um lençol lavado do armário
da roupa de cama para substituir o que estava manchado de sangue. Depois, seguiu de modos furtivos para a cozinha vazia, onde enfiou o pijama e o lençol sujos num
saco do lixo que depois depositou no caixote do lixo.
No dia seguinte, verificou que toda a gente na escola a olhava fixamente. Costumava ser uma das melhores alunas a matemática, mas nesse dia não conseguiu encontrar
a solução para nenhuma das questões do teste. A professora chamou-a no final da aula e repreendeu-a pelo seu fraco desempenho.
"Que se passa contigo, Sacha?" Atirou a folha do teste para cima da secretária à sua frente. "Isto nem parece nada teu."
Sacha não foi capaz de responder. Voltou para casa e roubou uma das lâminas de barbear da casa de banho do pai. Foi para a sua própria casa de banho e cortou ambos
os pulsos. Uma das criadas viu o sangue escorrer por baixo da porta e correu aos gritos para a cozinha.
Os outros criados arrombaram a porta e depararam com ela. Chamaram uma ambulância. Os cortes que ela infligira nos pulsos não eram suficientemente fundos para porem
a sua vida em risco.
Marlene manteve-a em casa e não a deixou ir à escola durante três semanas. Quando Sacha regressou às aulas, disse à sua professora de música que nunca mais voltaria
a tocar piano. Recusou-se a participar no sarau musical que estava programado para a sexta-feira seguinte. Alguns dias mais tarde, cortou todo o cabelo com um par
de tesouras e esfacelou a cara com as unhas até fazer sangue, pois convencera-se de que tinha a pele coberta de pústulas de acne. Os seus traços faciais tornaram-se
macilentos e os seus modos, furtivos e nervosos. Os olhos pareciam assombrados. Deixara de ser bonita. Carl disse-lhe que era feia e que já não queria brincar mais
com ela.
Um mês depois, Sacha fugiu de casa. A polícia encontrou-a oito dias mais tarde, em Albuquerque, no Novo México, e levou-a para casa. Poucos meses depois, voltou
a fugir. Dessa vez, conseguiu chegar à Califórnia antes que a polícia a encontrasse.
Quando a obrigaram a voltar às aulas, ateou fogo às salas de música. As chamas destruíram toda essa ala da escola, com danos que ascenderam a vários milhões de dólares.
Após um prolongado e minucioso exame médico, Sacha foi enviada para o Hospital Psiquiátrico de Nine Elms, em Pasadena, onde iniciou um demorado e complicado programa
de tratamento e reabilitação. Nem uma única vez alguém suspeitou que ela tivesse sofrido qualquer tipo de abuso. Parecia que a própria Sacha expurgara por completo
esses incidentes da memória.
Começou a ganhar peso com rapidez. Num espaço de seis meses, o seu corpo ficou disforme e tornou-se clinicamente obesa. Usava sempre o cabelo cortado muito rente.
Os olhos tornaram-se mortiços e estupidificados e roía as unhas até ao sabugo, ao ponto de as extremidades dos dedos se deformarem e parecerem tocos. Chuchava no
polegar de modo quase contínuo. Tornou-se cada vez mais nervosa e muito agressiva. Atacava as enfermeiras e outros pacientes à mínima provocação. Mostrava, em particular
um antagonismo violento contra qualquer enfermeira que tentasse questioná-la acerca do seu relacionamento com a família. Sofria de insónias e começou a ter episódios
de sonambulismo.
Quando a família foi autorizada a visitá-la pela primeira vez desde que fora internada, Sacha mostrou-se soturna e fechada. Respondia às perguntas dos pais com grunhidos
animalescos e monossílabos resmoneados. Não reconheceu o irmão que outrora tanto amara.
- Não vais dizer olá ao Carl Peter, querida? - repreendeu-a a mãe num tom gentil. Sacha desviou os olhos.
- Mas ele é teu irmão, querida Sacha - insistiu Marlene. Sacha revelou uma pequena centelha de agitação. - Não tenho nenhum irmão - disse, usando uma frase completa
pela primeira vez, mas sem em momento algum levantar o olhar do chão. - Não quero ter nenhum irmão.
Henry Bannock levantou-se ao ouvir isto e disse à sua mulher: - Esperamos por ti no parque de estacionamento. Parece que eu e o Carl fazemos mais mal do que bem
ao virmos aqui. - Fez sinal a Carl com a cabeça. - Vamos lá, meu rapaz. Vamos embora daqui.
Henry abominava presenciar qualquer tipo de miséria e sofrimento, sobretudo quando se relacionavam pessoalmente com ele.
Limitava-se a fechar a mente a isso, dissociava-se dessas realidades e afastava-se. Nem ele nem Carl Peter voltariam a Nine Elms.
Marlene, por sua vez, nunca faltou a uma visita à filha. Todos os domingos de manhã, o motorista fazia o trajeto de cento e cinquenta quilómetros até Pasadena, onde
ela passava o resto do dia a tagarelar com a filha calada e retraída. Numa dessa visitas, levou uma cassete de concertos de piano de Rachmaninov para pôr a tocar
num gravador portátil, na esperança de que isso pudesse voltar a despertar-lhe os talentos musicais.
Aos primeiros compassos do primeiro andamento de abertura do Concerto n°. 3 em ré menor, Sacha levantou-se de um salto, agarrou no gravador e atirou-o contra a parede
com uma fúria louca. O aparelho despedaçou-se. Sacha lançou-se ao chão, encolheu-se na posição fetal, enfiou o polegar na boca e começou a bater ritmicamente a cabeça
contra o chão. Foi a última vez que Marlene tentou intervir no tratamento dela.
A partir desse incidente, limitou-se a ler poesia a Sacha ou a debitar-lhe um relato detalhado dos acontecimentos triviais da semana anterior. Sacha permanecia em
silêncio e completamente fechada sobre si própria. Fixava a parede, baloiçando-se para trás e para a frente na cadeira como se fosse um cavalo de baloiço.
Meses mais tarde, Marlene Imelda descobriu que estava novamente grávida. Aguardou até que o seu ginecologista lhe confirmasse o sexo da criança; depois, na visita
seguinte a Nine Elms, confidenciou a Sacha: - Sacha, minha querida. Tenho uma notícia maravilhosa para ti. Estou grávida e vais ter uma irmãzinha.
Sacha virou a cabeça e olhou Marlene nos olhos pela primeira vez durante essa visita. - Uma irmã? Vou ter uma irmã? De certeza que não é um rapaz? - perguntou numa
voz clara e com lucidez.
- Sim, querida. Uma irmãzinha para ti. Não é maravilhoso? - Sim! Quero muito ter uma irmã. Mas não quero ter um irmão. - Que nome achas que lhe devíamos pôr? Qual
é o nome de que gostas mais?
- Bryoni Lee! Adoro esse nome. - Conheces alguém com esse nome? - Havia uma rapariga na escola que era a minha melhor amiga. - Sorriu. - Mas o pai dela arranjou
um novo trabalho e mudaram-se para Chicago. - Estava animada e falava como uma criança normal da sua idade.
Semana após semana, continuaram a falar da bebé, e, semana após semana, Sacha fazia-lhe as mesmas perguntas, sempre pela mesma ordem. E ria-se com as respostas da
mãe.
Um dia, no final do oitavo mês de gestação, Sacha sentou-se ao lado da mãe durante toda a duração da visita e Marlene segurou-lhe a mão contra a barriga. Quando
a bebé se mexeu sob a sua palma pela primeira vez, Sacha soltou gritinhos de excitação, tão alto que a enfermeira de serviço entrou a correr na sala de visitas.
- Mas que é que se passa, Sacha? - perguntou. - A minha irmãzinha! Anda cá sentir como ela se mexe. Marlene levou Bryoni Lee a visitar Sacha pela primeira vez quando
ela tinha três meses de idade. Sacha teve permissão para pegar na irmãzinha e sentou-se com ela no colo durante toda a visita, arrulhando-lhe e rindo-se para ela
e fazendo perguntas à mãe sobre ela.
Após essa primeira visita com Bryoni, Marlene nunca faltou a nenhuma das visitas semanais e Sacha pôde acompanhar o crescimento de Bryoni. Os seus terapeutas reconheceram
o efeito benéfico que a bebé estava a exercer sobre ela e encorajaram ativamente esse relacionamento.
E assim os anos foram passando.
54
Bryoni Lee tornou-se uma criança adorável. Era franzina e delicada, com traços faciais miudinhos e cativantes olhos escuros. O rosto em forma de coração era vivaz
e expressivo. As pessoas sentiam-se naturalmente atraídas por ela e sorriam-lhe sempre que a viam. Tinha uma voz encantadora. Os pés pareciam ter sido concebidos
para dançar. No entanto, era uma criança determinada e segura de si.
Bryoni Lee destacava-se por natureza própria das demais crianças. À semelhança do pai, Henry Bannock, era uma líder e uma organizadora nata. Assumia sem esforço
o controlo em qualquer grupo de miúdos e mesmo os rapazes mais velhos submetiam-se prontamente à sua vontade.
Henry precisou de algum tempo para se habituar a ter em casa uma criança que não conseguia dominar por completo, até porque se tratava de uma descendente sua disposta
a fazer-lhe frente. Henry tinha uma opinião muito firme sobre as diferenças entre os géneros e sobre os papéis e relações entre pais e filhos e entre homens e mulheres.
A questão da igualdade não figurava na sua lista.
Bryoni Lee deleitava-o pelo facto de ser inteligente e uma criança exemplar, mas também o alarmava quando lhe dava uma resposta torta e discutia com ele. Henry era
acometido de ataques de fúria contra ela. Gritava-lhe e ameaçava-a com castigos corporais. Certa vez chegou mesmo a cumprir essa ameaça. Arrancou o cinto das calças
e bateu-lhe na parte de trás das pernas desnudas. Causou-lhe um vergão vermelho, mas ela manteve-se firme e recusou-se a chorar.
- Não devias fazer isso, papá - disse-lhe num tom sério. - Tu mesmo me disseste que um cavalheiro nunca bate numa senhora.
Henry tinha abatido caças comunistas na Coreia e pregara sustos de morte a operadores de sondas e outros operários matulões e durões que trabalhavam nas suas plataformas
petrolíferas, mas agora transigia perante uma rapariguinha de oito anos.
- Perdoa-me - disse-lhe enquanto enfiava o cinto nas presilhas das calças. - Tens razão. Não devia ter feito isso. Não voltarei a fazê-lo. Prometo-te. Mas tens de
aprender a prestar atenção ao que te digo, Bryoni Lee!
Por seu turno, passou a ouvir o que ela tinha para dizer, uma cortesia que raramente dispensara a qualquer outra mulher. E descobriu, para sua grande surpresa, que
muitas das vezes Bryoni Lee tinha razão no que dizia.
55
O ano do décimo aniversário de Bryoni Lee foi memorável na família Bannock. Em maio, Henry inaugurou o seu primeiro poço de petróleo ao largo da costa. A capitalização
bolsista da Bannock Oil alcançou os dez mil milhões de dólares. E comprou o seu próprio jato privado, um Gulfstream V, que ele próprio costumava pilotar. Nesse mesmo
mês, a família Bannock mudou-se para a sua nova residência em Forest Drive. Concebida por Andrew Moorcroft, da firma de arquitetos Moorcroft & Haye, erguia-se em
seis hectares de parques e continha oito suítes. Foi-lhe outorgado o Prémio de Melhor Casa pelo Instituto Americano de Arquitetos.
Carl Peter Bannock diplomou-se com distinção pela Universidade de Princeton e em junho começou a trabalhar na sede social da Bannock Oil, em Houston.
Em julho, Henry Bannock pediu ao seu velho amigo e advogado Ronnie Bunter para criar o Fundo Fiduciário da Família Henry
Bannock, a fim de proteger a sua família imediata de quaisquer danos e adversidades para o resto das suas vidas. Estudaram e analisaram penosamente o enunciado e
as cláusulas, até que, em agosto, Henry assinou por fim a escritura.
Ronald Bunter conservou o documento original na casa-forte da firma e Henry guardou a única cópia existente na sua própria casa-forte em Forest Drive.
Em agosto desse mesmo ano, os médicos do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms disseram a Henry e a Marlene que Sacha Jean nunca estaria em condições de viver fora
de uma instituição e que permaneceria internada para o resto da vida. Henry não fez nenhum comentário e Marlene trancou-se na sua nova e sumptuosa suíte com uma
garrafa de gim Bombay Sapphire.
Em setembro, Marlene Imelda Bannock iniciou um tratamento de desintoxicação de três meses numa clínica de reabilitação para alcoólicos, em Houston.
Em outubro, Henry Bannock divorciou-se de Marlene Imelda Bannock e obteve a custódia total de ambas as filhas: Sacha e Bryoni. Carl já era um adulto, de modo que
o seu nome nunca chegou a figurar nos papéis do divórcio. Quando Marlene completou o programa de reabilitação, foi viver sozinha para as ilhas Caimão, numa magnífica
propriedade junto à praia, onde era servida por uma vasta equipa de empregados domésticos. Todas essas benesses resultavam de uma das disposições que constavam do
acordo de divórcio.
Nos finais de outubro, a Direção de Aviação Civil recusou-se a renovar o brevete de piloto comercial de Henry Bannock, pois este não tinha passado no exame médico.
- Mas que diabos está você para aí a dizer? - perguntou Henry em fúria ao médico que estava a fazer o exame. - Acabei de comprar um Gulfstream por doze milhões de
dólares. Não me pode retirar o brevete agora. Estou tão fisicamente capaz como quando pilotava os jatos Sabre lá na Coreia.
- Com todo o respeito, permita-me recordar-lhe, senhor Bannock, que isso já foi há cerca de duas décadas. Desde então. o senhor tem-se matado a trabalhar como um
mouro. Quando foi a última vez que tirou férias?
- Que raios tem isso que ver com a renovação do meu brevete Não tenho tempo para gozar férias.
- É exatamente aí onde quero chegar, senhor. Diga-me, quantos Havanas já fumou desde a guerra da Coreia? Quantas garrafas de Jack Daniel's já emborcou? Faz exercício
físico?
- Está a ser insolente, meu rapaz. - O rosto de Henry ficou vermelho. - Isso é um assunto que só a mim diz respeito.
- Peço desculpa. No entanto, devo dizer-lhe que sofre de caso crónico de fibrilação auricular.
- Não me venha com essa conversa técnica. Que diabos está você para aí a fibrilar e a disparatar?
- Estou a tentar dizer-lhe que o seu coração anda a dançar de um lado para o outro como o Gene Kelly sob o efeito de esteroides. Mas isso é só meia missa. A sua
tensão arterial subiu até lá acima ao espaço como o Neil Armstrong. Se eu fosse seu médico, punha-o já a tomar Coumadin10, senhor Bannock. - Graças a Deus que você
não é o meu médico. Sei bem o que é essa coisa do Coumadin. Sei que é usado como veneno de rato e que o sabor não tem nada que ver com o Jack Daniel's. Portanto,
pode pegar nele e enfiá-lo pelo traseiro acima, doutor Menzies. - Henry levantou-se e saiu a passo largo do consultório.
Mesmo sem brevete, Henry continuou a pilotar o seu adorado Gulfstream. Dispunha de dois pilotos comerciais muito bem pagos que o substituíam aos comandos quando
necessário.
No entanto, às vezes acordava às primeiras horas da madrugada com o coração a palpitar e a bater irregularmente no peito. Recusou-se a consultar outro médico. Não
queria que lhe lessem em voz alta a própria sentença de morte.
Ciente da advertência de que os seus dias estavam contados, trabalhou ainda mais arduamente. A ideia de desistir dos Havanas e do seu Jack Daniel's era intolerável,
de modo que a tirou da cabeça.
Em novembro, Bryoni Lee ganhou um concurso estadual de matemática, vencendo alunos três ou quatro anos mais velhos do que ela, e os seus colegas de classe escolheram-na
como a aluna com mais probabilidades de vir a ser bem-sucedida na vida e de se tornar presidenta dos Estados Unidos da América. Com a mãe ausente, a própria Bryoni
assumiu os deveres de visitar a irmã mais velha.
Todos os domingos, Bonzo Barnes, o motorista e guarda-costas de Henry, levava-a a Nine Elms para passar o dia com Sacha. Bonzo era um ex-pugilista de pesos-pesados.
À semelhança da maior parte das pessoas, adorava a jovem Bryoni. Deixava-a sentar-se a seu lado à frente e tagarelavam, felizes, durante o percurso de ida e volta
até Pasadena.

Nota de Rodapé: Medicamento anticoagulante, usado para prevenir e tratar trombos e êmbolos, causadores, respetivamente, de tromboses e embolias.
Fim da Nota.
Em dezembro desse mesmo ano, enquanto o pai se ausentara para Abu Zara para renovar as concessões petrolíferas da Bannock Oil, Carl Peter Bannock conseguiu por fim
decifrar as palavras-passe e os códigos de acesso à casa-forte de Henry Bannock. Tinha descoberto um sítio no terraço da piscina de onde podia espiar sub-repticiamente
o estúdio do pai. Certa manhã de sábado, espiou, através das lentes de um potente par de binóculos Zeiss com ampliação de 10x, Henry sentado à secretária e viu-o
levantar o forro de seda da agenda de couro preto. Depois viu-o tirar de debaixo do forro um dos cartões de visita que tinha escondido aí.
No reverso do cartão via-se uma longa série de letras e números, escrita na caligrafia larga e firme de Henry. Viu o pai atravessar a divisão até à porta do cofre
pessoal. Depois viu-o consultar o que estava escrito no cartão e começar a rodar o disco da fechadura para trás e para a frente enquanto inseria a combinação e,
em seguida, viu-o girar a roda de bloqueio no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, abrindo depois a porta sólida e pesada.
Carl teve de esperar várias semanas até Henry partir de viagem. mas depois teve dez dias e dez noites para se dedicar ao seu plano.
Na primeira noite, após muitas tentativas frustradas, conseguiu dar conta das complicadas sequências de desativação do mecanismo de bloqueio e abrir a porta de aço
de acesso ao cofre.
Na noite seguinte, fotografou o interior do cofre e a disposição do conteúdo. Antes de se atrever a mexer no que quer que fosse. queria ter a certeza de conseguir
repor tudo exatamente na posição original. Sabia que o pai se aperceberia de imediato de qualquer alteração. Calçou luvas cirúrgicas de todas as vezes, para evitar
deixar impressões digitais em qualquer um dos itens do conteúdo do cofre, e prestava uma atenção minuciosa a todos os pormenores.
Na terceira noite, pôde começar a explorar o conteúdo do cofre. Os lingotes de ouro estavam empilhados numa área do chão onde o seu peso era suportado pelos alicerces
de aço e betão. Calculou que estivessem ali cerca de cinquenta ou sessenta milhões de dólares em ouro.
O comportamento de Henry sempre fora ditado por um peculiar misto de audácia temerária e cautela prudente. Aquele tesouro era o seu pequeno fundo de emergência.
Na seguinte fileira de prateleiras estavam as condecorações e as medalhas dos tempos de Henry na Força Aérea americana, bem como fotografias e recordações de significado
especial para ele. Nas prateleiras de aço por cima havia pastas de documentos e certificados de ações, obrigações, títulos de propriedade das numerosas propriedades
e concessões que Henry possuía em seu próprio nome. Os outros bens relevantes estavam em nome da Bannock Oil Corporation.
Na quarta prateleira a contar de cima, Carl encontrou aquilo que procurava realmente.
Já sabia da existência do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Enquanto ainda frequentava Princeton, tinha começado a intercetar os telefonemas do pai no quarto
e no estúdio. Tinha mesmo tentado aceder às linhas telefónicas privadas da sede da Bannock Oil, mas o cordão de segurança que protegia o Edifício Bannock era impenetrável.
Carl teve de se contentar em escutar na linha da principal suíte as numerosas conversas entre Henry e a sua ex-mulher e várias das suas amantes. Mas também fizera
transcrições dos telefonemas de Henry no estúdio no piso térreo, as quais incluíam várias conversas entre o pai e os seus parceiros de negócios e, mais importante
ainda, com os seus advogados.
Carl pudera, assim, acompanhar algumas das conversas entre Henry e Ronald Bunter, o principal advogado da família, enquanto elaboravam a escritura do Fundo Fiduciário.
Mas ficara apenas com uma vaga ideia do conteúdo exato e das cláusulas da escritura final.
E agora tinha descoberto a cópia que Henry possuía, um enorme tomo pousado a meio da quarta prateleira.
Mesmo assim, não se precipitou. Examinou minuciosamente o volume com uma lupa antes de o abrir. Marcou as páginas que Henry colara com minúsculas gotículas de cola.
Separou-as com enorme cuidado e voltou a colá-las assim que as leu.
Entre a página 30 e 31 encontrou o pelo que Henry aí colocara para detetar possíveis intrusos. Era um dos próprios pelos de Henry, crespo e encaracolado, que ele
arrancara de uma das suíças. Carl guardou-o num envelope branco e recolocou-o depois entre as páginas quando acabou de ler o documento.
Devido a todas estas precauções preliminares, restaram a Carl três noites seguidas para estudar a escritura do novo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock antes
de o pai regressar do Médio Oriente. Aquilo que leu conferiu-lhe uma exaltante sensação da sua própria supremacia. A escritura do Fundo Fiduciário outorgava-lhe
poderes quase divinos. Estava armado contra o mundo e escudado por milhares de milhões de dólares. Era invencível.
56
Sacha Jean regredira de forma gradual ao longo do tempo, até à idade mental equivalente à de uma criança de cinco ou seis anos. O seu mundo encolhera à medida que
o seu cérebro asfixiava sem estímulos e se encerrava. Já não reconhecia ninguém, à exceção das enfermeiras de meia-idade, que tinham sido particularmente amáveis
com ela, e da sua irmã Bryoni.
Quando a enfermeira que cuidava dela chegou à idade da reforma, o mundo de Sacha, já de si limitado, voltou a reduzir-se. Tornou-se então pateticamente dependente
de Bryoni.
Quando o clima o permitia, ambas passavam os domingos nos jardins de Nine Elms. Com o passar dos anos, os médicos foram-se apercebendo de que Bryoni era responsável
e não hesitavam em deixar Sacha entregue ao seu cuidado durante todo o dia da visita.
Sacha tinha agora vinte e poucos anos e era obesa. Era muito mais alta do que a irmã, mas Bryoni agia como uma mãe e levava-a pela mão para o local preferido dela
junto ao lago, onde faziam um piquenique e atiravam migalhas aos patos. Sacha já não conseguia concentrar-se o suficiente para ler sozinha, mas adorava cantigas
infantis. Bryoni trauteava-lhas. Jogavam à macaca, às imitações e às escondidas. Bryoni tinha uma paciência infinita. Dava de comer a Sacha o almoço que trouxera
de casa e limpava-lhe a cara e as mãos quando acabava de comer. Levava-a à casa de banho e ajudava-a a limpar-se e a ajeitar a roupa quando terminava.
Sacha adorava especialmente que lhe fizessem cócegas nas costas. Gostava de tirar a blusa e deitar-se de barriga em cima da manta para que Bryoni lhe fizesse cócegas.
Sempre que a irmã parava. punha-se a gritar: "Mais! Mais!"
Certo domingo, Bryoni estava a fazer-lhe cócegas quando Sacha disse numa voz bastante clara: - Se ele alguma vez te quiser tocar na pombinha, não o deixes.
Bryoni parou de repente de lhe fazer cócegas e pensou naquilo que a irmã acabara de dizer. "Pombinha" era a palavra infantil que ambas usavam para referir a vagina.
- O que é que disseste, Sash? - perguntou numa voz cuidadosa. - Quando?
- Agora mesmo. - Eu nunca disse nada - negou Sacha. - Disseste, sim. - Nunca disse. Nunca disse nada. - Sacha já estava a ficar agitada e nervosa. Bryoni conhecia
os sintomas. De seguida, iria encolher o corpo na posição fetal e começar a chuchar o polegar ou a bater com a cabeça no chão.
- Fui eu que me enganei, Sash. Claro que não disseste nada. Sacha descontraiu-se e começou a falar do seu cachorrinho. Queria o seu cãozinho de volta. No seu último
aniversário, a mãe dera-lhe um cachorrinho, mas Sacha adorava tanto o animal que o apertara com demasiada força e acabara por o asfixiar. Tiveram de lhe dizer que
o cão estava a dormir para conseguirem arrancar-lhe o cadáver das mãos. Pedia sempre a Bryoni para lho trazer de volta. Mas os médicos não permitiam que Sacha tivesse
outro animal de estimação.
O domingo seguinte foi um dia límpido e soalheiro e as duas fizeram um piquenique no local habitual, junto à borda do lago. Sacha não gostava que as coisas mudassem.
As mudanças deixavam-na nervosa e insegura. Quando acabaram de almoçar, Sacha pediu: - Faz-me cócegas nas costas.
- Quais são as palavras mágicas? - perguntou-lhe Bryoni. Sacha pensou, de testa franzida em concentração, mas acabou por desistir. - Esqueci-me de quais são. Diz-me
tu.
- Tens que dizer "por favor", não te lembras?
- Sim. Sim. É "por favor" - Sacha bateu as mãos de alegria.
- Por favor, Bryoni. Faz-me cócegas nas costas, por favor. - Tirou a blusa e estendeu-se sobre a manta. Pouco depois, Bryoni pensou que ela tinha adormecido, mas
de repente Sacha disse: - Se o deixares tocar-te na pombinha, ele enfia-te a coisa dura dele dentro e faz-te deitar sangue. Bryoni ficou petrificada. As palavras
chocaram-na, ao ponto de a fazerem sentir-se agoniada. No entanto, fingiu não ter ouvido e continuou a afagar as costas da irmã. Pouco depois, começou a trautear
uma canção infantil. Sacha tentou acompanhá-la, mas baralhou as palavras e ambas desataram às gargalhadas.
De seguida, Sacha disse: - Se ele te enfiar a coisa dele na tua pombinha, depois fica a doer muito e a deitar sangue. - Repetir as mesmas coisas vezes sem conta
era um truque que a sua mente danificada lhe pregava. - Está na hora de eu ir, Sash - disse Bryoni por fim. - Oh, não! Por favor, fica mais um pouquinho. Fico muito
assustada e triste quando tu vais embora e me deixas sozinha.
- Volto cá no próximo domingo. - Prometes? - Sim, prometo.
57
No domingo seguinte, Bryoni levou um gravador que tinha tomado de empréstimo do estúdio do pai.
Ambas caminharam de mãos dadas até à borda do lago. Bryoni levava a manta e o cesto de piquenique. Quando chegaram ao seu local favorito, Sacha estendeu a manta,
certificando-se de que não ficara com dobras nem pregas. Estender a manta era da sua responsabilidade e era muito conscienciosa e orgulhosa da sua capacidade de
a estender na perfeição. Enquanto a irmã concentrava toda a sua atenção na manta, Bryoni tirou o gravador do bolso das calças de ganga, ligou-o e guardou-o no bolso
sem que Sacha se apercebesse.
O dia seguiu o seu padrão habitual: atiraram migalhas aos patos e falaram do cachorrinho de Sacha, que estava com a sua mãe cadela no céu. Almoçaram e Bryoni levou
Sacha à casa de banho. Voltaram para junto do lago e deitaram-se na manta. Sacha pediu-lhe que lhe fizesse cócegas nas costas e Bryoni obrigou-a a pedir "por favorDepois,
enquanto lhe fazia cócegas, começou a trautear uma canção infantil, a qual desencadeou toda uma associação de ideias na mente estropiada de Sacha, como Bryoni esperava
que acontecesse.
De repente, Sacha disse: - Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar-me dentro da boca. Tinha um sabor horrível
Bryoni estremeceu, mas continuou a cantarolar baixinho. Dessa vez, Sacha parecia estar serena e continuou a divagar.
- Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito.
Voltou a calar-se e Bryoni continuou a trautear baixinho e num tom tranquilizador. De repente, Sacha soergueu-se e exclamou: - Já me lembro! Chamava-se Carl Peter
e era mesmo meu irmão. Mas depois ele foi embora. Todos eles foram embora. A minha mamã e o meu papá; todos eles foram embora e deixaram-me sozinha. A não ser tu,
Bryoni.
- Nunca te vou deixar, Sash. Ficaremos juntas para sempre, como as irmãs devem ficar. - Sacha acalmou-se e voltou a deitar-se de barriga para baixo. Bryoni recomeçou
a afagá-la e a cantar baixinho. De repente, Sacha falou alto, num tom de voz mais parecido com a idade que tinha realmente e não na voz da criança de cinco anos
em que se tornara.
- Sim, já me lembro que foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela
coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque
o Carl me tinha dito para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?
- Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas.
- Promete que nunca me vais deixar, Bryoni. - Prometo-te que nunca te vou deixar, minha querida Sash.
58
Nessa noite de domingo, quando Bryoni regressou a casa após a visita a Nine Elms, o novo Ford Mustang de Carl estava estacionado no caminho de acesso. Quando ela
entrou em casa, Carl descia a correr a escadaria principal. Estava de fato e gravata. Os sapatos brilhavam e o cabelo alisado reluzia de gel.
- Olá, Bree! - cumprimentou-a. - Como está a nossa irmã maluquinha? Ainda continua a brincar com as fadas?
- A Sacha está muito bem. É uma rapariga muito doce e encantadora. - Bryoni não conseguia olhar para o rosto do irmão, aquele rosto arrogante e presunçoso.
Carl depressa perdeu o interesse por saber novidades de Sacha. Só mencionara o nome dela para irritar Bryoni. Deteve-se à frente do espelho de corpo inteiro na base
das escadas e ajustou o nó da gravata. Depois tirou o pente do bolso e voltou a ajeitar cuidadosamente os poucos fios de cabelo que estavam fora do lugar. - Um grande
encontro esta noite. A miúda tem andado a suspirar por mim há já um mês ou mais. E hoje vai ser a noite de sorte dela. Que tal estou, Bree? - Virou-se para ela e
abriu os braços. - Tcharam! Tcharam! O sonho de qualquer mulher, hã?
Bryoni parou à frente dele e forçou-se a olhar-lhe o rosto. Muitas das suas amigas diziam que ele era o homem mais bonito que já tinham visto. Apercebeu-se de que
o odiava. Era um suíno sádico. doentio e pervertido.
- Sabes, Carl, é a primeira vez que reparo que o teu olho direito
é maior que o esquerdo - disse. Consternado, ele virou-se para o espelho. Bryoni desatou a correr pelas escadas acima em direção ao seu quarto. Sabia que ele iria
ficar angustiado durante semanas por causa do tamanho relativo dos seus olhos, e ficou contente.
Henry tinha-se ausentado da cidade. Viajara no seu novo jato para um qualquer pequeno e estranho país no Médio Oriente chamado Abu Zara e só regressaria dentro de
dois dias, aproximadamente. Estava sozinha naquela casa enorme. Ligou para a cozinha e perguntou a Cookie se podia comer com os outros empregados na sala de jantar
do pessoal doméstico, em vez de ficar sozinha na velha e enorme sala de jantar. Cookie ficou deliciada. Todos adoravam Bryoni.
- Fiz tarte de maçã especialmente para si, menina Bree. - És uma querida, Cookie. É a minha sobremesa preferida. Após o jantar, Bryoni trancou-se no estúdio contíguo
ao seu quarto e copiou para uma nova cassete a gravação que fizera em Nine Elms. Enquanto ouvia a voz doce e infantil de Sacha recitar tais perversões repugnantes,
recomeçou a sentir uma fúria extrema.
Deu por si a pensar na caçadeira de calibre 12 que o pai guardava no estúdio no piso térreo. Henry tinha-a ensinado a disparar aos pratos e ela tornara-se uma jovem
atiradora competente. Mas apercebeu-se, nesse momento, de que corria o risco de perder o bom senso e a razão. Obrigou-se a voltar ao plano original.
Quando acabou de copiar as afirmações de Sacha, trancou o gravador na pequena cómoda ao lado da cama e voltou a sentar-se à frente do computador para terminar os
trabalhos da escola para o dia seguinte. Desligou a luz um pouco antes das dez, mas só conseguiu adormecer era quase meia-noite. Depois acordou devido ao rugido
do motor do Mustang de Carl que subia o caminho de acesso. Ele conduzia sempre muito velozmente quando bebia. Bryoni verificou as horas: passavam dez minutos das
três da madrugada.
Na manhã seguinte, tomou o pequeno-almoço na cozinha com Cookie e depois Bonzo levou-a à escola antes de Carl sair do quarto.
No intervalo a meio da manhã, confiou a cópia da gravação das confissões de Sacha à guarda da sua melhor amiga, Alison Demper. Sabia que, se ela mesma guardasse
a gravação em Forest Drive, Carl acabaria por a encontrar.
- Tens de jurar pela tua vida e pelo que te é mais sagrado, e nunca contares a ninguém que te dei isto - disse a Alison, que ficou intrigada. Alison cuspiu no dedo
como era da praxe, fez o sinal da cruz sobre o coração e jurou pela sua vida.
Após as aulas, Bryoni alegou uma dor de cabeça e foi dispensada do curso extracurricular de arte. Foi diretamente para casa e esperou que Carl chegasse do seu trabalho
na sede da Bannock Oil. O irmão costumava parar no Troubadour Inn para beber uma cerveja com os amigos, mas nessa tarde regressou a casa no ruidoso Mustang um pouco
antes das sete.
Bryoni estava sentada na conversadeira do seu quarto. Debruçou-se sobre a janela e chamou-o enquanto ele saía do carro e fechava a porta. - Olá, Carl! Gostava de
falar contigo se tivesses uns minutinhos. Podes vir ao meu quarto, por favor?
- Vou já, mana. Ouviu-o subir as escadas e depois a batida na porta do seu quarto. - A porta está aberta - disse-lhe. Ele abriu-a e deteve-se à entrada. - Que se
passa, mana? Bryoni estava sentada na beira da cama, mas tinha arrastado a poltrona para o centro da divisão, para ele se sentar.
- Entra, Carl. Senta-te. Quero falar-te da Sacha. Ele fechou a porta e avançou para a poltrona. Sentou-se. apoiando uma das pernas sobre o braço da poltrona. - E
então. que se passa com a Sacha? Agora anda a ver homenzinhos verdes lá de Marte ou crê que se transformou finalmente num urso polar cor-de-rosa? - Riu-se da sua
própria piada.
- Ouve isto, por favor. - Mostrou-lhe o gravador. - Não me digas que é a tua música de rap preferida, acertei? Bryoni não conseguiu responder-lhe, pois odiava-o
com todas as suas forças. Ligou o gravador e pousou-o em cima da mesinha de cabeceira.
Fez-se silêncio enquanto o gravador rebobinava a fita e depois ouviu-se a voz de Sacha. Carl soube de imediato que era ela. Endireitou-se, tirou a perna de cima
do braço da poltrona e pousou ambos os pés no soalho.
"Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar dentro da minha boca. Tinha um sabor horrível", disse Sacha. Bryoni viu e irmão estremecer e fixar os olhos
na janela, como se procurasse uma via de fuga. Mas depois voltaram a recair sobre o gravador enquanto Sacha prosseguia.
"Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito."
Bryoni pegou no gravador e fez avançar a fita alguns segundos. Depois premiu o botão de reprodução e pousou de novo o gravador na mesinha. A voz de Sacha soava mais
firme e mais madura quando voltou a falar.
"...foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura
dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito
para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?"
"Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas."
Bryoni desligou o gravador e, no silêncio que se seguiu, perguntou em voz calma: - Achas que fizeste bem, Carl?
A boca dele movia-se, mas sem formular nenhuma palavra. Limpou a cara à manga do blusão e olhou depois para a mancha de suor no tecido fino.
Levantou-se de um salto, abruptamente, e agarrou no gravador pousado na mesinha e, no mesmo movimento contínuo, atirou-o contra a porta da casa de banho de Bryoni.
O aparelho desfez-se em pedaços. Carl atravessou a divisão com passos rápidos e decididos e esmagou os restos sob os sapatos.
As mãos tremiam-lhe e todo o seu corpo era sacudido por convulsões quando se virou para Bryoni.
- Aquela gaja! Aquela putazinha imunda! Tu mais a cabra da tua irmã inventaram isso tudo! Confessa: estás tão louca como ela. Vocês as duas têm é ciúmes de mim.
Estão a tentar desacreditar-me aos olhos do meu pai. Mas o meu pai adora-me.
- O teu pai era um criminoso de guerra nazi - disse Bryoni numa voz serena. - O teu pai era um homem chamado Kurtmeyer que matou pessoas nas câmaras de gás e tinha
uma rede de bordéis. És bem a semente podre do teu pai, Karl Kurtmeyer. - É mentira! Inventaste isso! És uma cadela mentirosa! - gritou-lhe. - Não inventei nada
- replicou Bryoni sem levantar a voz. - A nossa mãe contou-me tudo acerca do teu pai numa tarde em que se embebedou de gim.
- É mentira! O meu pai é Henry Bannock. Sou o seu único filho varão. Ele ama-me e sou o herdeiro dele. Tu e a putazinha imunda da tua irmã têm mas é ciúmes de mim.
Querem-lhe envenenar a cabeça contra mim. É por isso que estás a dizer todas essas mentiras horríveis sobre mim.
- Não estamos a pôr ninguém contra ti. Foste tu que maltrataste e humilhaste a tua própria irmã. Obrigaste-a a fazer coisas terríveis e nojentas e depois violaste-a
e puseste-a louca.
- Tudo mentiras! - gritou-lhe. - O meu pai nunca vai acreditar nas vossas mentiras. - Vai acreditar, vai, quando ouvir a gravação que fiz. - Bryoni levantou-se da
cama e confrontou-o com serenidade.
Carl girou sobre os calcanhares e correu para junto das peças desfeitas do gravador. Deixou-se cair de joelhos e começou a juntá-
-las, enfiando-as depois nos bolsos. - Já não há gravador - disse. - Foi-se. - Nunca existiu. Não passou tudo da fantasia de uma rapariga louca.
- Fiz uma cópia - disse Bryoni. Car levantou-se e avançou para ela com um ar ameaçador. - Onde está?
- Está num lugar onde nunca a vais conseguir encontrar.
- Dá-ma. - Nunca! - silvou Bryoni. Carl esbofeteou-a com força, fazendo-a desequilibrar-se e cair sobre a cama. Bryoni levantou-se, apoiada nos cotovelos; escorria-lhe
sangue da boca para o queixo. Rosnou-lhe através dos lábios ensanguentados, feroz como uma leoa ferida: - Nunca!
A visão do sangue luzidio inflamou-o. O sangue sempre tivera esse efeito nele. Precipitava-o para lá da fronteira da razão. Lançou-se sobre ela e imobilizou-lhe
os ombros contra a cama. Tinha mais do dobro da idade dela, e mais do dobro do peso. A sua força era esmagadora. Rasgou-lhe as roupas e grunhiu: - Vou-te ensinar
uma lição acerca do que é o respeito. A mesma lição que ensinei à louca da tua irmã.
Bryoni gritou, mas ele cerrou os dedos da mão esquerda à volta da garganta dela e apertou-lha com força, enquanto usava a outra mão para lhe baixar as cuecas e forçar
um dos joelhos entre as coxas dela. - Podes gritar quanto quiseres. Ninguém te vai ouvir. Ninguém te vai ajudar. Ninguém vai acreditar em ti. - A voz soava enrouquecida
de luxúria. - Tenho de te ensinar a ter respeito.
Desprendeu a fivela do cinto e abriu a braguilha com tal violência que um dos botões se soltou. Tinha-a agora sujeitada debaixo de si, pele nua contra pele nua.
A parte inferior do corpo infantil dela e a púbis estavam completamente desprovidas de pelos. A vagina de Bryoni era um fruto ainda por amadurecer: minúscula, apertada
e seca. Mas ele penetrou-a à força. Num paroxismo de dor, Bryoni enterrou-lhe os dentes no ombro. Carl insultou-a e libertou a mão que lhe apertava a garganta para
a obrigar a abrir a boca. Agora estavam ambos a sangrar. Bryoni lançou a cabeça para trás e gritou e uivou enquanto ele continuava a penetrá-la com violência.
Cookie, que estava na cozinha por baixo do quarto, ouviu os gritos dela e chamou Bonzo Barnes, o motorista, aos berros. Ambos subiram as escadas a correr e irromperam
pelo quarto de Bryoni no preciso momento em que todo o corpo de Carl se contorcia nos espasmos e gemidos do êxtase orgástico por cima do corpo franzino e seminu
de Bryoni.
Bonzo arrancou Carl de cima da irmã e lançou-o ao chão. - Que estás a fazer, pá? Ela não passa de uma criança! É a tua irmãzinha, pá! O que é que te passou pela
cabeça, homem? - gritou-lhe Bonzo. Agarrou em Carl pela garganta e sacudiu-o como se fosse um rato.
- Não lhe faças mal, Bonzo! - gritou-lhe Cookie. - A polícia ocupa-se dele. - Bonzo largou-o no chão e Carl soergueu-se.
- Não, não chamem a polícia - implorou em desespero. - O meu pai chega a casa amanhã. Ele vai tratar de tudo. Ele paga-te... - Fecha essa boca, seu porco. És pior
que um animal. Estou-te a avisar, pá - rosnou-lhe Bonzo.
Bryoni estava a chorar, desesperada de dor e em choque. Cookie agarrava-a contra o peito e sussurrou-lhe: - Pronto, acalma-te, minha menina. Ele já não te vai fazer
mais mal. Agora estás segura.
Estendeu o braço e levantou o auscultador do telefone em cima da mesinha de cabeceira e ligou para as emergências. A chamada foi atendida quase de imediato.
- Uma menina acabou de ser violada aqui. Está a sangrar muito. Apanhámos o pervertido que lhe fez isso. Mandem vir a polícia.
Os polícias de uniforme azul chegaram em duas viaturas de patrulha, menos de vinte minutos depois. Ouviram o que Cookie e Bonzo tinham para dizer e depois viraram-se
para Bryoni.
Bryoni levantou-se da cama onde Cookie a deitara. Virou-se para os agentes. Tinha as roupas rasgadas e manchadas de sangue. O rosto estava inchado e um dos olhos
ficara negro e meio fechado. Não parava de tremer.
Deu um passo para junto do sargento da polícia, mas um leve fio de sangue serpenteou por baixo da saia e escorreu pela coxa. Bryoni deixou escapar um gemido e agarrou
o baixo-ventre com as duas mãos. Dobrou-se lentamente e caiu de joelhos. Cookie levantou-a e abraçou-a contra o peito.
- Meu Santo Deus! - exclamou o sargento. - Enfiem as algemas nesse triste cabrão e levem-no para a esquadra.
Os seus homens agarraram Carl e torceram-lhe os braços atrás
das costas. - Calma lá, porra - protestou Carl. - Não é preciso tanta violência.
- Da mesma forma que não precisaste de usar tanta violência com aquela rapariguinha? - perguntou-lhe um dos agentes enquanto lhe fechava as algemas nos pulsos. Depois
olhou para o sargento. - O prisioneiro está a resistir à detenção, sargento. Será melhor enfiarmos-lhe também as correntes nas pernas, não vá dar-se o caso. O sargento
anuiu com a cabeça e depois virou-se para Cookie.
- Precisamos de levar esta criança ao hospital. Precisa de ser vista por um médico.
Cookie envolveu os ombros de Bryoni com um cobertor. Bonzo pegou nela e levou-a a correr para uma das viaturas da polícia.
59
Ronald Bunter telefonou a Henry Bannock que estava nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. A voz de Henry soava muito ensonada.
- Espero bem que me estejas a ligar por uma boa razão. São três da madrugada aqui.
- Desculpa-me, Henry, mas tenho notícias para te dar. Mas não é coisa boa - disse-lhe Ronald. - Na verdade, não podiam ser piores. Está aí alguém contigo?
- Claro que sim. Pensas que sou algum monge? - Ela não precisa de ouvir isto. - Espera um segundo. Vou sair do quarto. - Ouviu-se uma breve troca de palavras entre
Henry e a sua misteriosa companhia, houve uma pausa e depois Henry disse: - Pronto, Ronnie. Estou sentado na sanita e com a porta fechada. Conta lá.
- O Carl Peter foi preso. - Oh, não! Aquele pestinha - lamentou-se Henry. - O que foi desta vez? Excesso de velocidade? A conduzir embriagado?
- Quem dera que fosse isso, meu velho amigo. Infelizmente. é muito, muito pior.
- Vá lá, Ronnie! Deixa-te de rodeios! Desembucha lá! - Acusaram-no de vários delitos diferentes. Os mais graves são estupro, abuso de menor, agressão sexual agravada,
delito de agressão e ofensas corporais graves, maus-tratos, incesto e corrupção de menor. Ainda estão a investigar e a interrogar as testemunhas, mas avisaram-nos
que ainda poderia haver outras acusações, de agressão sexual agravada continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos. Alguns destes delitos são puníveis
com a pena de morte no Estado do Texas.
Seguiu-se um demorado silêncio, quebrado apenas pelo crepitar da estática. - Está lá? Está lá? Ainda estás aí, Henry? - Sim, continuo aqui. Estou a pensar. - A sua
voz soava desolada. - Dá-me alguns segundos, Ronnie. - Depois perguntou: - Quem são as vítimas que ele é acusado de violar?
- Lamento muito, Henry! Essa é a parte pior. É acusado de violar a Sacha e a Bryoni.
- Não posso crer! - disse Henry baixinho. - Só pode ser um engano. Não pode ser verdade. Não acredito nisso. A Bryoni é a minha menina.
Ronald quis dizer-lhe "A Sacha também é a tua menina", mas conteve-se. Não era sua intenção agravar o sofrimento do seu velho amigo.
- Vamos lutar contra isto, Ronnie. Vamos lutar contra isto com todas as nossas forças, estás a ouvir-me?
- Estou a ouvir-te, Henry. Mas pensa só nisto por um momento. Eles têm o testemunho das tuas duas filhas e de duas testemunhas oculares de confiança, têm amostras
do esperma do Carl Peter tiradas da vagina da Bryoni, misturado com o sangue dela. Têm fotografias das lesões corporais que ele lhe infligiu.
- Meu Deus! - exclamou Henry Bannock. - Que Deus e todos os santos me acudam!
Ronald quase conseguia ouvir os pilares do universo de Henry desmoronarem-se em cima dele. Julgou ouvi-lo chorar, mas não era possível. Chorar não. Henry nunca chorava.
- Achas que ele fez aquelas coisas, Ronald? - Sou advogado, não me cabe fazer julgamentos. - Mas achas que ele é culpado, não achas? Não me fales como meu advogado.
Fala comigo como o meu melhor amigo.
- Como teu advogado, não sei nem me importa. Como teu amigo, importa-me muito, e acho que o teu filho é culpado como tudo.
- Ele não é meu filho! - disse Henry. - Nunca foi meu filho. Tenho andado a enganar-me estes anos todos. É filho de um perverso cabrão nazi que a certa altura decidi
acolher sob a minha proteção. - Será melhor voltares para casa, Henry. Precisamos de ti aqui. As tuas duas meninas precisam muito de ti aqui.
- Vou partir de imediato! - disse Henry.
60
- Ouve bem o que te digo, Ronnie. - Henry inclinou-se sobre a escrivaninha e apontou o dedo a Ronald Bunter. - Quero aquele violador nazi cabrão riscado da lista
de beneficiários do meu Fundo Fiduciário, e não quero que o meu Fundo tenha de pagar os honorários dos advogados para o defenderem do crime de violar as minhas duas
filhas. Já falei com a Bryoni e mais culpado ele não podia ser. Quero-o ver pendurado na forca. Ronald girou na cadeira, uniu as pontas dos dedos e alçou o olhar
para o teto, como se procurasse ajuda e orientação lá no alto.
- Como bem sabes, já falámos disto muitas vezes, Henry. No entanto, vou responder em separado aos teus três desejos, pela mesma ordem que os expressaste. - Sentou-se
direito na poltrona, pousou os cotovelos na escrivaninha e olhou Henry diretamente nos olhos.
- Em primeiro lugar, foste tu que colocaste o Carl Bannock na lista de beneficiários e trataste de assegurar que ninguém o pudesse remover dessa lista. Ninguém o
pode fazer: nem eu, nem tu, nem o Supremo Tribunal de Washington. Estou de mãos atadas, e foste tu que mas ataste. Em segundo lugar, não queres que o Fundo Fiduciário
pague a defesa jurídica dele. Os mandatários, entre os quais eu próprio, não têm opção nessa matéria. Deixaste perfeitamente claro na escritura do Fundo Fiduciário,
que tu próprio assinaste, que somos obrigados a pagar todas as despesas para o proteger de quaisquer ações judiciais instauradas contra ele por qualquer pessoa ou
qualquer governo, seja pelo Departamento de Justiça ou pelo Departamento das Finanças. Está fora do nosso alcance. O Carl pode escolher a sua própria equipa de defesa
e o Fundo Fiduciário tem de pagar essas custas.
- Mas ele violou as minhas filhas - protestou Henry. - Nunca incluíste nenhuma exceção para essa eventualidade - frisou Ronald. - Por último, acabaste de expressar
o desejo de ver o Carl pendurado na forca. Isso nunca vai acontecer. O Estado do Texas aboliu a execução por enforcamento em 1924. O melhor que te posso oferecer
é uma injeção letal.
- Dou-me conta agora de que criar aquele Fundo Fiduciário foi o maior erro da minha doce vida.
- Volto a discordar de ti, Henry. O teu Fundo Fiduciário é um excelente instrumento. O sentimento que lhe subjaz é nobre. Assegura que à Marlene, à Sacha e à pequena
Bryoni, bem como a todos os seus próprios filhos e futuras esposas e respetiva prole, nunca faltará nada que o dinheiro possa comprar. És generoso e és um grande
homem, Henry Bannock.
- Aposto que dizes isso a todos os teus clientes.
61
O julgamento de Carl Peter Bannock prolongou-se por vinte e seis sessões judiciais.
As deliberações preliminares do júri de acusação ocuparam quatro dessas sessões, no final das quais foi apresentada uma acusação formal equivalente a uma acusação
de delito grave. O caso foi atribuído a um tribunal e o processo legal foi iniciado.
O juiz era Joshua Chamberlain, um homem na casa dos sessenta. Era um democrata empenhado e tinha a reputação de ser pedantesco e meticuloso. Durante quase vinte
anos como juiz, nenhum dos seus julgamentos fora alguma vez anulado no âmbito de um recurso, o que era em si mesmo um feito notável.
Em consonância com as suas crenças liberais, tinha condenado à morte menos de três por cento dos casos de pena capital que tinham comparecido perante si.
A procuradora do Ministério Público era Melody Strauss. Embora tivesse quase quarenta anos, já tinha defendido muitos casos extremamente complicados que lhe granjearam
uma reputação sólida. Foram-lhe atribuídos dois assistentes jurídicos.
A equipa da defesa compreendia cinco dos advogados mais caros do Estado do Texas. Tinham sido selecionados com grande cuidado pelos representantes do arguido. O
total dos seus honorários custavam ao Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock um montante que ascendia a um pouco mais de duzentos mil dólares por dia.
A primeira fase do processo consistia em escolher e ajuramentar os doze membros do júri de entre as cinquenta possibilidades apresentadas. Essa incumbência demorou
mais de uma semana, pois a defesa esforçou-se por excluir o maior número possível de mulheres. Usaram todas as dez recusas imotivadas para descartarem possíveis
jurados do sexo feminino e depois interrogaram persistentemente as restantes mulheres sobre a sua posição em relação à pena de morte, à provocação feminina e à instigação
à violação.
Melody Strauss enfrentou os elementos da equipa de defesa com grande determinação e rebateu-os com igual resolução. Esforçou-se por reter o maior número possível
de mulheres na lista final de jurados. Melody era perspicaz e persuasiva. Interrogou rigorosamente todos os candidatos masculinos para detetar quaisquer tendências
machistas. Reservou todas as suas recusas imotivadas para eliminar da lista apenas os candidatos masculinos que revelavam indícios dessas inclinações. No final,
conseguiu lograr um resultado equilibrado, com um número igual de homens e mulheres no júri.
Na décima sessão do julgamento, Melody Strauss apresentou o caso pela acusação e deparou com uma série de objeções por parte da defesa. Desde o início que contestaram
a capacidade de Sacha Jean Bannock depor, em razão da sua condição mental. Ambas as partes chamaram testemunhas-peritos. Melody Strauss chamou dois membros do pessoal
médico do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms que tinham tratado de Sacha ao longo de muitos anos. Ambas declararam que nos últimos tempos Sacha demonstrara uma melhoria
manifesta e contínua em termos de memória. Atribuíram esses progressos à influência da sua irmã mais nova, Bryoni Lee, e à catarse que experienciara depois de ter
recordado um acontecimento traumático, ou uma série deles, ocorrido na sua infância.
Submetidas a interrogatório, depuseram adicionalmente que os sintomas e a condição mental de Sacha eram um exemplo clássico dos efeitos de contínuos abusos sexuais
agravados na infância.
O perito chamado pela defesa era um professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Depôs que tinha examinado Sacha
e deu a sua opinião de que ela não era capaz de prestar depoimento sob juramento porque não compreendia o significado desse ato. Declarou ainda que qualquer testemunho
que ela pudesse prestar não seria minimamente fiável e que esse processo seria tão traumático para ela que corria um grande risco de vir a sofrer de danos mentais
permanentes em resultado dessa experiência. Melody solicitou ao juiz uma autorização especial para que Sacha pudesse depor nos aposentos dele, com a defesa e o júri
na sala contígua a assistirem e a ouvirem através do circuito televisivo fechado sem que Sacha se apercebesse dessas presenças. Após um aturado debate, o juiz Chamberlain
recusou o pedido.
Melody rogou então ao juiz autorização para fazer escutar ao júri a gravação que Bryoni fizera quando Sacha falara do seu relacionamento com o irmão Carl.
Este pedido desencadeou de novo uma onda de objeções por parte da defesa e o juiz Chamberlain voltou a recusar o pedido da acusação.
Restou a Melody uma última escolha decisiva. Poderia contrariar as probabilidades e chamar Sacha Jean ao banco das testemunhas, ou poderia retirar a acusação de
"agressão sexual agravada
continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos". E ir a julgamento unicamente com o depoimento de Bryoni Lee sobre a violação de que fora vítima.
Melody Strauss consultou Bryoni Lee Bannock para um aconselhamento final. Ambas tinham desenvolvido uma relação especial
durante o curto período de tempo desde que se tinham conhecido. Bryoni começara a gostar e a confiar em Melody, e esta ficara impressionada com a maturidade, coragem
e bom senso de Bryoni. Ficara sobretudo profundamente comovida com a sua lealdade e dedicação a Sacha, e com a sua compreensão intuitiva das razões subjacentes à
perturbação mental da irmã.
- Como reagirá a Sacha se eu a interrogar à frente de todas aquelas pessoas acerca daquilo que o Carl lhe fez? - perguntou a Bryoni. - Atira-se logo ao chão e encolhe-se
toda, e depois põe-se a chuchar o polegar e a bater com a cabeça no chão, e vai para um mundo dos sonhos só dela.
No dia seguinte, de forma a proteger Sacha, Melody Strauss retirou formalmente a acusação de "agressão sexual agravada continuada contra menor".
Instigada por este fracasso parcial, Melody apresentou, com um vigor renovado, as outras acusações contra Carl Bannock, com o objetivo de conseguir a pena máxima
possível.
Chamou Bryoni a depor. A defesa levantou uma nova onda de protestos: que Bryoni era uma criança imatura, que não compreenderia as questões que lhe seriam colocadas,
que era incapaz de fornecer um depoimento plausível e significativo.
O juiz Chamberlain anunciou uma suspensão de duas horas para ponderar as objeções. Falou a sós com Bryoni nos seus aposentos e, quando voltou para a sala de audiências,
disse ao júri: - Esta jovem menina demonstrou-me mais inteligência e maturidade do que muitas das pessoas de trinta e quarenta anos que já se apresentaram perante
mim neste tribunal. A objeção da defesa é recusada. A Menina Bryoni Lee Bannock pode ocupar o seu lugar no banco das testemunhas. Foi no banco das testemunhas que
John Martius, o principal advogado da defesa, se esforçou por lhe destruir a credibilidade.
Melody Strauss tinha preparado Bryoni para a provação e instruíra-a sobre como deveria comportar-se enquanto se encontrasse no banco das testemunhas, e que tipo
de perguntas poderiam fazer-lhe. "Dá respostas curtas e diretas", dissera ela. "Não deixes que te distraiam."
Durante o depoimento, Bryoni comportou-se como uma veterana. Respondeu de forma firme e educada a todas as perguntas.
- Quando foi a primeira vez que suspeitaste que a tua irmã tinha sido molestada sexualmente? - perguntou-lhe Melody.
- Quando ela me avisou para não deixar ninguém tocar-me nas partes íntimas, pois iriam magoar-me. Foi então que tive a certeza de que alguém lhe tinha feito isso
a ela.
- Objeção! Não passa de uma suposição! - John Martius tinha-se levantado de imediato.
- Objeção indeferida - disse o juiz Chamberlain. - Ela disse quem lhe tinha feito isso?
- De início não, mas quanto mais ela falava, mais se ia lembrando. Acho que ela estava a tentar esquecer as coisas feias que lhe tinham acontecido.
- E no final ela acabou por se recordar do nome? - Sim, minha senhora. Lembro-me das palavras exatas. Ela disse: "Agora lembro-me que foi o meu irmão Carl que foi
nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou.
Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito para não contar."
- Objeção! - uivou John Martius. - É testemunho em segunda mão de algo que ouviu dizer!
- Objeção indeferida - disse o juiz. - A testemunha está a descrever uma conversa na qual participou. O júri tomará em conta essa resposta.
Melody Strauss passou a abordar os acontecimentos depois de Bryoni ter confrontado Carl Bannock com as gravações que fizera de Sacha a descrever a série de agressões
de que fora vítima.
- Objeção! Não foi confirmada a proveniência das alegadas gravações e foram excluídas das provas - interpôs John Martius.
- Senhora Strauss? - disse o juiz, convidando-a a refutar. -- Meritíssimo, não estou a tentar apresentar as gravações como prova, estou a usá-las meramente como
uma referência temporal em relação aos acontecimentos dessa tarde.
- Objeção indeferida. Pode continuar, menina Bannock. Bryoni descreveu a agressão de Carl sobre a sua pessoa. - Exigiu que lhe dissesse o que tinha feito com a cópia
da gravação daquilo que a Sacha me tinha contado. Recusei-me a dizer-lhe. Depois bateu-me na cara e empurrou-me para cima da cama.
- Causou-te alguma lesão? - Fiquei com o olho esquerdo inchado e negro. Sangrava do nariz e tinha um dos lábios cortado, e foi por isso que fiquei com a boca cheia
de sangue.
Os membros femininos do júri arquejaram de surpresa, murmurando e trocando olhares horrorizados entre si.
Sentado na primeira fila na galeria do público, Henry Bannock olhou de semblante carregado e furibundo na direção do enteado, no banco dos acusados. Estivera ali
sentado durante todas as horas de cada dia do julgamento, na esperança de que a sua presença pudesse dar força e coragem a Bryoni durante a sua provação.
- Depois de ele te ter batido e de te ter empurrado para cima da cama, o que aconteceu depois, Bryoni? - perguntou-lhe Melody Strauss.
- O Carl disse-me que me ia ensinar o que era ter respeito, tal
como tinha feito à minha irmã Sacha.
- Quando dizes "Cari", estás a referir-te ao teu irmão, Carl Bannock, o arguido?
- Correto, minha senhora. John Martius apressou-se a intervir. - Objeção! Carl Bannock não é irmão da testemunha.
- Permita-me corrigir. - Melody Strauss foi igualmente rápida. - Eu deveria ter dito "meio-irmão". Essa relação também é abrangida na definição de incesto no Código
Penal do Estado do Texas. - Objeção! - Retiro esse comentário e reservo-o para a minha exposição final. - Melody voltou a virar-se para Bryoni. - E que fez depois
o arguido? - Pôs-se em cima de mim e abriu-me a roupa. - Tentaste resistir-lhe? - Fiz tudo para lhe resistir, mas ele era muito maior e mais forte que eu, minha
senhora, e estava atordoada do golpe que ele me tinha dado.
- Que aconteceu depois de ele te abrir a roupa? - Tirou o pénis para fora... Sentado à mesa da defesa, Carl Bannock tapou a cara com ambas as mãos e começou a chorar
alto. John Martius levantou-se de um salto.
- Meritíssimo, o meu cliente está assoberbado com estas acusações. Peço a sua compreensão e solicito uma pausa para que ele possa recompor-se.
- Senhor Martius, é por de mais evidente que o seu cliente é um indivíduo resistente e determinado. Tenho a certeza de que ele consegue aguentar um pouco mais. A
testemunha pode responder
pergunta. - Ele tirou o pénis para fora e meteu-o à força dentro de mim, na minha vagina. - Bryoni engoliu em seco e enxugou os olhos. - Doía-me tanto. Foi a pior
dor que já senti. Gritei e lutei, mas ele não parava de enfiar aquilo dentro de mim. Depois o Bonzo entrou lá e arrancou-o de cima de mim, mas a dor não parou e
reparei que estava a sangrar da vagina. A Cookie entrou lá e abraçou-me e disse-me que não precisava de ter medo e que o Carl nunca mais me voltaria a fazer mal.
Ela disse que não ia deixar ninguém voltar a fazer-me mal. - Bryoni afundou-se no banco e enterrou a cara nos braços, abalada por soluços entrecortados.
- Não tenho mais perguntas a fazer, Meritíssimo - disse Melody Strauss em voz baixa.
John Martius levantou-se de um salto. - Contrainterrogatório, Meritíssimo.
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã. Deve reservar o seu contrainterrogatório para essa altura, senhor Martius.
62
Henry Bannock, Ronnie Bunter e Bonzo Barnes já estavam à espera de Bryoni no exterior da sala de audiências quando ela saiu. Conduziram-na através da multidão de
repórteres e jornalistas amontoados no passeio e que lhe gritavam perguntas. Bryoni manteve-se de cabeça bem erguida e olhou diretamente à sua frente, mas tinha
o rosto pálido como cinza e os lábios tremiam-lhe. Ia agarrada ao braço do pai. Bonzo Barnes seguia à frente para lhes abrir caminho, e a sua corpulência e semblante
carrancudo abriram-lhes alas até à limusina que os esperava.
Nessa noite, Cookie levou o jantar num tabuleiro ao quarto de Bryoni e Henry Bannock sentou-se na beira da cama e falou-lhe enquanto ela comia. Disse-lhe que a amava
muito e que lamentava não ter sido capaz de a proteger a ela e a Sacha. Prometeu que nunca mais deixaria que nada de mal acontecesse às suas duas filhas. Fez-lhe
companhia e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer.
Às dez horas da manhã seguinte, Bryoni voltou a ocupar o banco das testemunhas. A sala de audiências estava a abarrotar e na secção da imprensa já só havia lugares
em pé. Bryoni tinha sido instruída por Melody Strauss e por Ronnie Bunter e ignorou-os por completo, fixando o olhar no pai, que estava na primeira fila na galeria
do público, e em Bonzo e Cookie, sentados três filas atrás.
John Martius levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e postou-se à frente de Bryoni.
- Compreendes que vou fazer-te algumas perguntas, Bryoni? - Sim, senhor. - Importas-te que te trate por tu? - Não, senhor. - Amas o teu irmão Carl? - Objeção! O
arguido não é irmão da testemunha - disse Melody, pagando-lhe na mesma moeda.
- Vou reformular a pergunta - concedeu Martius. - Amas o teu meio-irmão Carl?
- Talvez o amasse dantes, mas não desde que ele me violou a mim e à Sacha. Não o amo, não. - Um burburinho de aprovação varreu a sala de audiências perante estas
palavras. O juiz Chamberlain bateu com o martelo e disse numa voz severa: - Silêncio na sala, por favor.
- Alguma vez lhe pediste para te beijar? - Não, senhor. - Estás a dizer que nunca deste um beijo ao Carl? - Eu disse que nunca lhe pedi para me beijar, senhor. -
Alguma vez o beijaste? - Eu e o Carl só nos beijávamos na face para nos cumprimentarmos ou despedirmos, como toda a gente faz, senhor.
- Alguma vez pediste ao Carl para te beijar na boca, Bryoni? - Não, senhor. Porque faria eu isso? - Limita-te a responder às minhas perguntas, por favor, Bryoni.
Alguma vez enfiaste a língua na boca do Carl quando ele te beijou? - Objeção! A testemunha já depôs que nunca beijou o arguido na boca - interpôs Melody.
- Objeção deferida - disse o juiz Chamberlain. - A defesa retirará a pergunta.
- Pergunta retirada. - Martius inclinou levemente a cabeça na direção do juiz e voltou a concentrar-se em Bryoni. - Alguma vez entraste na casa de banho quando o
Carl estava a tomar duche, Bryoni? - Não, senhor. Tenho a minha própria casa de banho. Nunca fui à casa de banho do Carl.
- Alguma vez entraste no quarto do Carl quando sabias que ele estava a vestir-se?
- Não, senhor. Tenho o meu próprio quarto. Nunca fui ao quarto dele.
- Nunca? - Nunca, senhor. - E que me responderias se te dissesse que o Carl afirma que querias vê-lo tomar duche, e que certa vez foste ao quarto dele à noite e
te enfiaste na cama dele?
- Objeção! Essa pergunta já foi colocada e respondida! A testemunha já depôs que nunca foi à casa de banho do arguido.
- Objeção deferida. A defesa retirará a pergunta. - Retiro a pergunta, Meritíssimo. - Mas estava bastante satisfeito: tinha plantado uma semente de dúvida nas mentes
do júri. Consultou as suas próprias anotações por um momento e depois olhou para Bryoni.
- Alguma vez pediste ao teu meio-irmão Carl se gostaria de ver os teus peitos?
Melody Strauss pareceu prestes a objetar, mas permaneceu em silêncio e deixou Bryoni responder de forma espontânea e eloquente. - Não tenho peitos, senhor. Ainda
não me cresceram. - Pareceu ficar genuinamente perplexa quando dois dos jurados masculinos riram alto, mas era um riso gentil, sem o menor traço de escárnio. Dois
ou três dos jurados femininos franziram a cara, desaprovando a ligeireza dos seus colegas.
Henry Bannock reparou que Melody sustivera deliberadamente a sua objeção. Tinha sido uma decisão astuta. Só esperava que o júri punisse Martius por atormentar uma
criança, sobretudo uma menina tão linda.
Martius tinha corrido um grande risco ao introduzir o elemento da provocação feminina. Sabia que estava a perder a aposta e apressou-se a mudar de tática.
- Sabias que o teu pai tinha uma estima tão grande pelo teu meio-irmão Carl que o adotou formalmente como seu próprio filho, e que depois de o Carl ter se diplomado
com distinção por Princeton lhe ofereceu um trabalho muito bem pago e de grande responsabilidade na Bannock Oil Corporation?
- Sim, senhor, claro que sabia. Toda a gente sabia. - E isso levou-te a pensar que o teu pai amava mais o Carl do que te amava a ti? Ficaste com ciúmes dele? Foi
por causa disso que tu e a tua irmã Sacha resolveram inventar histórias maldosas acerca do Carl?
- O meu pai ama-me, senhor. - Olhou para Henry Bannock e sorriu. - Uma das razões pelas quais o meu pai me ama é que eu lhe disse sempre a verdade. Ele não me amaria
tanto se eu lhe mentisse.
Henry Bannock retribuiu-lhe o sorriso e anuiu com a cabeça, confirmando a declaração da filha. Os seus traços faciais marcados e obstinados suavizaram-se.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, Meritíssimo. - John Martius apercebeu-se de que tinha sido derrotado por uma criança e decidiu retirar-se com uma
certa dignidade.
-- Obrigado, menina Bryoni - disse o juiz Chamberlain. - Foi muito corajosa. Pode ir agora para junto do seu pai.
Henry Bannock veio ao encontro da filha e envolveu-lhe os ombros com o braço, num gesto protetor. Lançou um último olhar corrosivo ao filho adotivo e depois conduziu
Bryoni para fora da sala de audiências. Bryoni agarrou-se a ele e começou a chorar baixinho mas amargamente.
Melody Strauss chamou a sua testemunha seguinte, a Dra. Ruth MacMurray. Era a médica do corpo policial que tinha examinado Bryoni naquele fatídico fim de tarde.
Era uma mulher madura e de cabelos grisalhos, composta e de voz suave.
- Doutora MacMurray, examinou Bryoni Lee na passada tarde de quinze de agosto na sala de emergências no Hospital Universitário de Houston?
Sim. - Pode relatar a este tribunal as conclusões do seu exame nessa altura, doutora?
- A paciente era uma menina pré-pubescente. Apresentava lesões faciais superficiais, consistentes com golpe desferido com a mão. O olho esquerdo apresentava contusão
e inchaço. Também havia uma laceração do tecido mole da boca. Além disso, os dentes incisivo esquerdo e o primeiro pré-molar tinham-se soltado devido ao traumatismo.
- Havia mais alguma lesão corporal? - Sim. Havia extensas equimoses em ambos os antebraços e na garganta.
- O que é que essas equimoses poderiam indicar, doutora? - Poderiam indicar que a paciente fora provavelmente restringida à força pelos antebraços e que, ademais,
lhe tinham apertado a garganta, quer numa tentativa de estrangulação, quer para a impedir de gritar.
- Obrigada, doutora MacMurray. Encontrou mais alguma lesão?
- Os genitais da paciente apresentavam todos os sinais de penetração forçada por via de objeto grande e rígido.
- Seriam essas lesões consistentes com uma possível penetração forçada da paciente menor pelo pénis ereto de um adulto?
- Eram inteiramente consistentes com essa possibilidade. O hímen tinha sido rompido muito recentemente e continuava a sangrar. O períneo entre a vagina e o ânus
tinha sido rasgado e exigiu intervenção cirúrgica. Além disso, havia lacerações internas e rutura da parede vaginal inferior, o que também exigiu intervenção cirúrgica.
- Na sua opinião, eram essas lesões consistentes com a possibilidade de a paciente ter sido violada?
- Na minha opinião, tais lesões eram inteiramente consistentes com violação agravada e penetração forçada dos genitais.
- Chegou a colher amostras do fluido corporal que encontrou na vagina da paciente, doutora?
- Colhi trinta esfregaços vaginais da vagina rasgada. E amostras de sangue da roupa da paciente.
- Quais foram os resultados dos exames patológicos dessas amostras, doutora?
- No caso das amostras colhidas da roupa, foram encontrados dois grupos sanguíneos. Um era AB negativo e o outro O positivo.
- Correspondem ao grupo sanguíneo do arguido e da vítima, doutora? - O grupo sanguíneo de Carl Bannock é AB negativo, e o de Bryoni Bannock é O positivo.
- O tipo O é raro ou comum, doutora? - É o tipo mais comum. Cerca de quarenta por cento dos humanos têm sangue do tipo O.
- E o tipo AB negativo: é raro ou comum, doutora? - É o tipo de sangue mais raro de todos, só um por cento dos humanos o possui.
- Isso significa que existe uma probabilidade de quarenta para um de as amostras de sangue AB negativo pertencerem ao arguido Carl Bannock?
- Não sou corretora de apostas, minha senhora. Não lhe saberia dizer as probabilidades exatas. Direi, no entanto, que existe uma probabilidade muito mais elevada
de que as amostras de sangue AB negativo possam pertencer a Carl Bannock do que a qualquer outra pessoa à face da Terra.
- Obrigada, doutora. A minha pergunta seguinte, doutora, prende-se com as amostras dos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock. Quais foram os resultados
patológicos do exame desses esfregaços?
- Em todos os casos, sem exceção, foi detetada a presença de sangue e de fluido seminal.
- Qual era o tipo, ou tipos, de sangue, doutora? - Unicamente o tipo O positivo. - É o tipo sanguíneo de Bryoni Bannock, correto? - Correto, sim. - Havia mais algum
fluido corporal nos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock?
- Sim, também foi detetada a presença de fluido seminal. - Fluido seminal masculino? O patologista pôde estabelecer uma correspondência com as amostras colhidas
do arguido Carl Bannock?
- O fluido seminal colhido da vagina de Bryoni Bannock deu uma correspondência de oitenta a noventa por cento com as amostras fornecidas por Carl Bannock ao médico
do corpo policial.
- Como é que foi feita a análise comparativa dessas amostras. doutora? - Foram aplicadas três técnicas: o teste RSID, o teste PSA e o teste da fosfatase
- Obrigada, doutora. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe - disse Melody, olhando depois para John Martius na mesa da defesa. - A testemunha é sua.
- Não tenho questões a colocar - disse John Martius sem levantar os olhos do seu caderno de alegações.
O juiz Chamberlain olhou para o relógio da sala de audiências antes de instruir Melody. - Pode chamar, por favor, a sua próxima testemunha, senhora Strauss.
- A acusação chama a senhora Martha Honeycomb. Cookie levantou-se do seu lugar na galeria pública e avançou pela coxia até ao banco das testemunhas. Apesar dos conselhos
de Melody Strauss de que deveria usar roupas discretas, Cookie não resistira à tentação de usar o seu melhor traje e adornos para a ocasião. Usava um minúsculo chapéu
de palha colocado num ângulo desenvolto e um pequeno véu negro sobre um dos olhos. O vestido exibia um estampado de enormes girassóis cujo efeito lhe realçava o
volume do traseiro. Os sapatos brancos, de tacão muito alto. conferiam-lhe um andar um pouco vacilante.
Assim que ela se sentou no banco das testemunhas, Melody Strauss conduziu-a num breve relato da sua relação com a família Bannock.
- Há quanto tempo trabalha para o senhor Henry Bannock' - Desde que saí da escola, minha senhora. - Há quanto tempo conhece Bryoni Bannock, senhora Honeycomb?
Nota de Rodapé: " Teste RSID (Rapid Stain Identification) ou teste de Identificação Rápi-,ia de Mancha, usado frequentemente nos estudos forenses de amostras de
sémei:. Teste PSA (Prostate Specific Antigen) ou teste do A ntigénio Específico da Próstata análise da glicoproteína cuja função é liquefazer o coágulo seminal,
formado após a ejaculação, permitindo a movimentação dos espermatozoides. Fosfatas ácida: enzima cuja presença em grande quantidade é indicativa da presença dr esperma
(o conteúdo desta enzima é de 20 a 400 vezes maior no esperma 3: que em qualquer outro fluido humano).
Fim da Nota.
- Pode chamar-me Cookie, minha senhora. É como toda a gente me chama.
- Obrigada, Cookie. Há quanto tempo conhece Bryoni, Cookie? - Desde o dia em que ela nasceu. Era a coisinha mais linda de se ver. - E Carl, o irmão dela? Há quanto
tempo o conhece? Cookie rodou o seu enorme volume e lançou um olhar fulminante a Carl, sentado à mesa da defesa. - Desde o dia em que ele veio viver para a nossa
casa, e que dia mais triste e lamentável foi, se bem que nenhum de nós o soubesse nessa altura. Todos pensávamos que ele era um bom rapazinho.
- Senhora Procuradora, por favor diga à sua testemunha para se limitar a responder às perguntas.
- Ouviu o que o juiz disse, Cookie? - Peço desculpa, minha senhora. O senhor Bannock também diz que falo de mais.
O juiz Chamberlain tossicou e tapou a boca com a mão para conter tanto a tosse como o sorriso. Melody Strauss foi conduzindo Cookie ao longo dos acontecimentos,
até ao momento em que ela e Bonzo resgataram Bryoni do ataque de Carl e à posterior detenção dele pela polícia.
- Como sabia que o arguido tinha ido ao quarto da irmã no piso de cima? - Eu e o Bonzo tínhamo-lo ouvido subir a rampa de acesso naquele carrão vistoso que o pai
dele lhe tinha dado pelo aniversário. Depois ouvimos a Bryoni chamá-lo para ir ao quarto dela pois queria falar com ele.
- Que aconteceu depois, Cookie? - Ouvimos o jovem Carl subir as escadas a correr e depois a porta do quarto de Bryoni fechar. Ficou tudo muito silencioso durante
muito tempo. Depois, eu e o Bonzo ouvimos o Carl gritar como se estivesse desvairado da cabeça. Eu disse: "Bonzo, é melhor Irmos lá acima ver o que eles andam a
tramar." Mas o Bonzo disse: "Deixa lá, estão só a discutir, como sempre. É melhor deixá-los em paz. Vou polir o Cadillac para quando o senhor Bannock chegar a casa",
e lá foi ele pelas escadas abaixo.
- Portanto, Bonzo deixou-a sozinha na cozinha. E depois, que aconteceu, Cookie?
- Depois houve mais um pouco de silêncio, mas de repente a Menina Bryoni desatou a gritar como se alguém estivesse a cortar-lhe a garganta. Até o Bonzo a ouviu lá
em baixo na garagem. Mas eu gritei-lhe: "Bonzo, é melhor vires cá depressa! Parece-me que aconteceu alguma coisa grave lá em cima." Corremos pelas escadas acima
e o Bonzo atravessa direitinho aquela porta enorme como se fosse de papel. Eu entro a correr no quarto logo atrás dele e vejo o jovem Carl em cima da menina Bryoni
deitada na cama, e vejo-a a lutar com ele como uma louca e a gritar desalmada e ele sempre em cima dela a ter sexo com ela.
- Como sabia que ele estava a ter sexo com ela, Cookie? - Tive rapazes suficientes que mo fizeram a mim nos meus tempos para saber quando um deles está a fazer isso
a outra mulher. senhora Strauss.
- Por favor, continue a contar-nos o que aconteceu de seguida, Cookie. - Bom, o Bonzo ficou possesso como nunca o vi. Também ele adorava a menina Bryoni, como todos
nós. Pôs-se a gritar com o Carl: "O que lhe estás a fazer, pá? Ela é a tua irmãzinha, O que lhe estás a fazer?" e coisas desse género. Depois agarrou Carl e atirou-o
pelo ar. Foi então que vi o Carl com a parte da frente das calças toda aberta e com aquela coisa dele toda dura e espetada à frente, toda suja do sangue da minha
menina, e foi quando também a mim me deu ganas de o matar, mas disse ao Bonzo pra não lhe fazer mal, que deixasse a polícia ocupar-se dele. e devo dizer que a polícia
veio mesmo muito rápido e prendera o Carl, e depois o Bonzo levou a Bryoni pro carro da polícia, pois ela tinha muitas dores e não conseguia andar, e eles lá a levaram
então pro hospital.
- Obrigada, Cookie. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe. O juiz Chamberlain olhou na direção da mesa da defesa. - O advogado da defesa deseja contrainterrogar a
testemunha?
John Martius pareceu prestes a recusar, mas depois levantou-se lentamente.
- Senhora Honeycomb, diz que ouviu Bryoni convidar o arguido a ir ao quarto dela.
- Sim, senhor. Ouvi-a dizer-lhe para ir lá acima, mas não creio que ela quisesse brincar às escondidas com a salsicha daquele porco. Acho que ela ia pô-lo a ouvir
a gravação onde a Sacha dizia o que o Carl lhe tinha feito...
- Meritíssimo! A testemunha respondeu à minha pergunta confirmando que Bryoni Bannock tinha convidado o irmão a ir ao quarto dela. O resto do seu testemunho não
passa de suposições.
- Por favor, não especule, senhora Honeycomb. O júri não tomará em consideração o resto da resposta da testemunha.
- Obrigado, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha. - Martius voltou a sentar-se.
De seguida, Melody Strauss chamou Bonzo Barnes ao banco das testemunhas. Bonzo corroborou cada pormenor do depoimento de Cookie, embora não de forma tão eloquente
e sui generis como ela. fizera.
John Martius colocou uma única questão no contrainterrogatório. - Senhor Barnes, ouviu Bryoni Bannock convidar o irmão Carl a ir ao quarto dela? - Sim, senhor. Ouvi.
- Bryoni costumava receber o irmão Carl no quarto dela e à. porta fechada? - Se ela o fez, nunca a vi nem a ouvi fazer isso, senhor. - Mas não tem a certeza se ela
nunca chegou a estar sozinha com ele no seu quarto?
Bonzo ponderou profundamente na pergunta, com uma expressão sombria no rosto. - Não faz parte do meu trabalho estar de guarda à porta da menina Bryoni a toda a hora
do dia. - Por conseguinte, não sabe se Bryoni Bannock tinha por hábito receber os seus amigos no quarto e à porta fechada? - De uma coisa tenho a certeza, senhor.
Se apanhar qualquer rapaz no quarto dela a tentar fazer-lhe aquilo que o Carl lhe fez, parto-lhe o pescoço. - Obrigado, senhor Barnes. Não tenho mais perguntas para
esta testemunha, Meritíssimo.
Bonzo ergueu-se em toda a sua corpulência e lançou um olhar ameaçador a John Martius. - Sei bem o que me está a tentar fazer dizer, mas a única coisa que vai ouvir
de mim é que a nossa pequena Bryoni é uma boa menina. E parto o pescoço a qualquer um que se atreva a dizer o contrário dela.
- Obrigado, senhor Barnes. - John Martius apressou-se a afastar-se do alcance do braço comprido de Bonzo. - Pode sair do banco das testemunhas. Melody chamou a testemunha
seguinte. Era o sargento Roger Tarantus, do Departamento da Polícia de Houston. Começou por dizer que ele e a sua equipa tinham respondido a uma chamada de emergência
e se dirigiram ao nº 61 de Forest Drive, a residência de Henry Bannock e da sua família, no final da tarde em questão. Melody conduziu-o ao longo de uma descrição
detalhada daquilo com que deparara ao chegar ao local, bem como das ações que tomara. O depoimento do sargento Tarantus tendia a confirmar os depoimentos de todas
as outras testemunhas da acusação, nomeadamente Bryoni Bannock, Bonzo Barnes e Martha Honeycomb.
- Portanto, sargento Tarantus, com base naquilo que viu e ouviu no nº 61 de Forest Drive, prendeu Carl Bannock por violação e vários outros delitos e levou-o para
a esquadra da polícia em Houston, onde o encarcerou, correto?
- Está correto, minha senhora. A equipa da defesa prescindiu de contrainterrogar o sargento, e todas as restantes testemunhas chamadas pela acusação abonaram o bom
caráter de Bryoni Lee. Entre elas encontravam-se os professores de Bryoni e os psiquiatras de Nine Elms que tinham conhecido bem Bryoni ao longo dos tempos em que
ela visitara regularmente a sua irmã Sacha. Um após outro, descreveram Bryoni como uma aluna exemplar e uma criança inteligente, equilibrada e normal.
No contrainterrogatório, a defesa tentou induzir as testemunhas a concordarem que Bryoni tinha um interesse anormal pelo sexo oposto para uma criança da sua idade.
No entanto, essa insinuação foi energicamente contestada por todos eles.
No final, Melody pôde dizer ao juiz Chamberlain: - Não tenho mais perguntas. A acusação terminou a apresentação das provas.
- Estamos prontos para fazer a nossa exposição final ao júri, se estiver de acordo, Meritíssimo. - Obrigado, senhora Strauss. - O juiz virou-se para a mesa da defesa
e perguntou: - A defesa deseja chamar testemunhas em refutação, senhor Martius?
Um burburinho de expectativa apoderou-se da sala de audiências. Todos sabiam que a defesa tinha de chamar o arguido, Carl Peter Bannock, ao banco das testemunhas
para depor em própria defesa. Não o fazer equivaleria a uma admissão da sua culpa. Fazê-lo era um risco calculado.
John Martius levantou-se lentamente, quase com relutância. - A defesa chama o arguido, Carl Peter Bannock, Meritíssimo - disse. Ouviu-se um sonoro suspiro de alívio
e Melody Strauss esboçou um ténue sorriso de expectação, como uma leoa que captasse o odor de uma gazela.
Carl levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e, no silêncio palpável que pairava na sala de audiências, avançou para o banco das testemunhas com um ar profundamente
contrito. Manteve-se de pé no banco, com as mãos enlaçadas à frente e de cabeça curvada. A sua expressão era trágica.
- Pode sentar-se, Carl - disse John Martius. - Obrigado, senhor, mas prefiro ficar de pé - murmurou Carl como um homem destroçado.
- Por favor, diga-nos o que sente face a estas acusações. - Estou completamente devastado. Sinto que perdi a vontade de continuar a viver. Se este tribunal me condenar
à morte, de bom grado aceitarei a pena. - Carl ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da sala, na direção do seu pai adotivo, Henry Bannock, sentado na primeira
fila da galeria do público e virado para ele. - Sinto que desiludi o meu pai. Ele tinha grandes esperanças em mim e tentei estar à altura dessas expectativas, mas
falhei miseravelmente. - Começou a soluçar e enxugou os olhos com a manga. - Estou profundamente arrependido de qualquer mal ou dor que possa ter infligido às minhas
duas queridas irmãs. Sou tão culpado como elas por me terem levado a pecar. Perdoo-lhes e suplico-lhes que me perdoem também. Estou profundamente arrependido.
Henry Bannock bufou de indignação e desviou deliberadamente o olhar daquele espetáculo lamentável.
- É culpado das acusações apresentadas contra si, Carl Bannock? - perguntou John Martius.
- A minha única culpa foi ter sucumbido à tentação e à sedução feminina, ao pecado de Adão e aos embustes de Eva. - A frase era tão teatral e artificiosa que algumas
das pessoas que a ouviram se crisparam.
- Não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha, Meritíssimo. - John Martius sentou-se.
Melody Strauss acercou-se do arguido, como uma leoa a lançar-se de uma emboscada sobre a presa. - Está a insinuar, senhor Bannock, que foi deliberadamente induzido
pelas suas duas irmãs menores a cometer a violação?
- Sinto-me confuso e profundamente angustiado. Tudo isto tem sido um choque terrível para mim. A memória falha-me. Ouvi as acusações lançadas contra mim e creio
que deve haver alguma verdade nelas, mas não me recordo de quase nada disso, minha senhora.
- Como explica, então, que o seu esperma tenha sido encontrado na vagina da sua irmã de doze anos? Pretende fazer-nos crer que foi ela mesma que o colocou ali, senhor
Bannock?
- Deus é minha testemunha e só posso dizer que não sei. Não me lembro de nada disso, mas estou profundamente arrependido de qualquer mal que possa ter feito. - Recomeçou
a chorar.
- Está a insinuar que a sua irmã de doze anos infligiu aquelas equimoses e contusões no próprio corpo? Talvez tenha sido ela a rasgar as próprias partes íntimas
para depois o desgraçar a si, acha isso possível?
- Talvez tenha sido isso o que aconteceu, e, nesse caso, perdoo-lhe, como espero que ela me perdoe a mim.
- Crê o senhor que aqueles doze cidadãos honestos e respeitadores da lei que integram o júri são ingénuos e crédulos ao ponto de acreditarem na sua lengalenga? É
isso que crê?
- Não! Certamente que não acredito nisso. Mas duvido da minha própria memória.
- E quando foi que começou a sentir esse estranho ataque de amnésia, senhor? Foi quando se apercebeu de que ia pagar pelo sofrimento e humilhação que tão prontamente
infligiu às suas jovens irmãs? - Não me lembro. A sério que não me lembro. Melody lançou as mãos ao ar com grande indignação. Era demasiado astuta para insistir
num ponto que já demonstrara de forma tão convincente. Sabia que a defesa tinha pagado um preço alto ao permitir que o seu cliente expressasse o seu arrependimento
em audiência pública, e deu-se por satisfeita.
- Não tenho mais perguntas a fazer ao arguido, Meritíssimo. - Muito bem, senhoras e senhores. - O juiz Chamberlain olhou para o relógio na parede. - São quase quatro
horas. Vou dar a sessão encerrada por hoje e retomamos amanhã, às dez da manhã, para ouvir a exposição final da acusação.
63
A exposição final de Melody Strauss durou quase três horas. Apresentou os factos comprovados perante o júri, com a lógica e a convicção que lhe tinham granjeado
a reputação. O júri e todos os demais na sala de audiências escutaram em absoluto fascínio. A forma como apresentou o caso foi impecável.
John Martius, por seu turno, não tentou refutar as provas nem os testemunhos apresentados. Insistiu na teoria de que o seu cliente tinha sido vítima da sedução e
da cilada das suas duas irmãs. Expôs a teoria de que o motivo das raparigas era fazer Carl cair em desgraça aos olhos de Henry Bannock e substituí-lo nos afetos
paternos. A sua refutação demorou apenas quarenta e oito minutos.
O juiz Chamberlain recapitulou os debates para o júri. Disse-lhes para considerarem cuidadosamente se o arrependimento de Carl Bannock pelos crimes de que era acusado
era sincero ou se não passava de uma má encenação, e se as horríveis lesões de Bryoni Lee teriam sido autoinfligidas ou não.
- Aquelas lágrimas de arrependimento que vimos ontem nos olhos do arguido eram verdadeiras ou seriam talvez de natureza mais sáuria? - perguntou-lhes.
Imediatamente após o almoço, pediu ao júri que iniciasse as suas deliberações.
Henry levou Melody Strauss, Ronnie Bunter e Bryoni a almoçarem no Burger King local, ao fundo da rua. Bryoni e Melody partilharam um cheeseburger duplo. Agora que
a sua provação já estava quase terminada, Bryoni mostrava-se outra vez alegre como um pássaro, mas sem nunca largar a mão protetora do pai, chegando mesmo a sussurrar-lhe:
- O Carl vai ficar todo danado comigo se for para a prisão. Achas que ele virá atrás de mim quando o deixarem sair?
- O Carl vai ficar longe de nós por muito tempo. E vamos tratar de assegurar que nunca mais te possa fazer mal outra vez, meu tesouro.
Quando Henry pediu a conta, já passava das três. Ainda estava a pagar quando um funcionário do tribunal entrou apressado no restaurante.
- O júri já deliberou, senhor Bannock. Estão prestes a anunciar o veredito. Será melhor apressarem-se, senhor.
- Valha-me Deus! Demoraram bastante menos de três horas, o que é ou muito bom sinal ou muito mau sinal - opinou Ronnie Bunter. - Vamos lá embora daqui. - Henry agarrou
a mão de Bryoni e apressou-a ao longo da rua até ao edifício do tribunal. A sala de audiências estava a abarrotar e a secção da imprensa incluía repórteres de lugares
tão longínquos como a cidade de Nova Iorque e Anchorage, no Alasca.
64
Hector Cross havia dado ordens para não ser incomodado. Tinha transferido todas as chamadas do exterior para o gabinete de Agatha em Abu Zara. Estava tão profundamente
absorto no manuscrito de "A Semente Envenenada" que só dera conta das horas quando ouviu duas leves batidas discretas na porta do estúdio.
Foi bruscamente arrancado de um outro tempo e de um lugar distante para o momento presente. Estivera tão absorvido pelo relato de Jo Stanley que ficou um pouco desorientado
por alguns segundos. Olhou para a janela e reparou que o crepúsculo já tinha caído. O dia transcorrera com grande celeridade. Já não comia desde o pequeno-almoço
e subsistira à base de chávenas de café que ele mesmo preparara. E praticamente nem se dera ao trabalho de ir à casa de banho contígua ao estúdio.
Levantou-se da cadeira de um salto e avançou com rapidez para a porta. Abriu-a e ali estava ela, a sorrir-lhe. Vestia um dos roupões de veludo frisado branco e estava
descalça. Tinha o cabelo molhado, apanhado num puxo no cocuruto. O duche apagara-lhe os últimos vestígios de maquilhagem e a pele reluzia. Parecia tão jovem como
uma colegial. Dormira manifestamente bem, pois os olhos cintilavam. As íris verdes eram como a água do mar sob o sol tropical: verde-mar e serenas.
- Vamos ficar aqui a olhar um para o outro a noite inteira, ou vai-me convidar a entrar no seu covil?
- Perdoe-me. Quase me tinha esquecido de como é bela. - Viu-me há cerca de seis ou sete horas. - Já foi há tanto tempo? - Estava genuinamente surpreendido e verificou
as horas no relógio de pulso. - Tem razão. Tenho de aprender a não discutir consigo. - Deu-lhe a mão e convidou-a a entrar. - Peço que me desculpe por me ter esquecido
de si. Mas a culpa é toda sua, devo dizer-lhe. Hipnotizou-me com o seu talento literário. Deixou-me completamente preso ao rexto.
- Seu adulador fingido! - disse ela, mas dirigiu-lhe um sorriso de prazer genuíno.
- Sente-se, por favor. - Acompanhou-a até à poltrona de couro. Ela sentou-se, recolhendo as pernas sob o corpo. Depois esticou a ponta do roupão em redor delas quando
se apercebeu de que ele estava a olhar. Eram pernas encantadoras, reparou Hector. - Que fez durante este tempo todo em que estive tão ocupado que até me esqueci
de si?
- Dormi maravilhosamente durante três ou quatro horas. Depois aproveitei-me do seu ginásio. Encontrei um fato de treino lá no armário que ficou a servir-me depois
de enrolar as mangas e as pernas das calças. Mudei todas as configurações das suas máquinas de exercício, pelo que espero que me desculpe.
Hector abanou a cabeça e riu-se. - Fez muito bem. - Depois fiz uma sauna e lavei o cabelo. Usei todos os produtos femininos Hermes e Chanel que encontrei na casa
de banho dos hóspedes e fiquei contente ao reparar que nenhum deles tinha sido aberto por visitas anteriores.
- A Jo é a minha primeira hóspede. - Sou ingénua quanto baste para acreditar em si. Talvez porque assim quero crer.
- Juro pela minha alma! Mas já comeu? - Não tinha fome. Estava demasiado ocupada a explorar. - Oh, meu Deus! Ainda morre à fome e nunca me perdoarei por isso. Tem
duas opções. A Cynthia, a minha chef, é a melhor cozinheira de Londres, e possivelmente do universo inteiro. O Ivy Club só lhe fica atrás por um triz.
- Ambos temos estado enfiados o dia todo aqui dentro de casa. por mais encantadora que seja. Talvez fosse melhor irmos jantar fora - disse ela, mas ao mesmo tempo
afastou os olhos com recato.
Hector já a conhecia o suficiente para intuir aquilo a que ela pretendia aludir realmente: que era demasiado cedo para passar a noite em retiro íntimo com ele.
- Vamos então ao Ivy. É um ambiente bastante relaxado quanto ao código de vestuário. Mas se quiser mudar de roupa, posso passar pelo seu hotel.
- Obrigada, Hector. Acho que seria melhor. - Vou vestir algo mais apropriado enquanto volta a vestir-se. e depois espero por si no carro à entrada do hotel enquanto
troca de roupa. Ficou impressionado pelo facto de ela o manter à espera apenas vinte minutos, e por voltar envergando roupas discretas mas elegantes. - Perfeito!
- comentou ele enquanto lhe abria a porta do Bentley. - Está de arrasar.
- Essa expressão soa estranha a quem é do outro lado do Atlântico, mas vou encará-la como um elogio.
Deu-lhe o braço enquanto cruzavam a entrada que fazia lembrar a loja de uma florista e subiram no imponente elevador panorâmico. As jovens empregadas na receção
rodearam Hector de atenções enquanto recolhiam os casacos de ambos, e uma delas acompanhou-os num outro elevador até à sala de jantar.
- Por acaso é dono deste sítio? - sussurrou-lhe Jo. - Aonde quer que uma pessoa vá neste mundo perverso, uma gorjeta decente faz sempre milagres - disse.
- Suponho que também ajuda quando se tem um aspeto como o seu.
- Espero que não seja alérgica ao champanhe - disse et
enquanto se sentavam à mesa.
- Ponha-me à prova! - desafiou-o Jo. Depois de saborearem e aprovarem tanto o vinho como o primeiro prato, Jo fez a pergunta que tivera na ponta da língua desde
que saíram de The Cross Roads.
- E agora, diga-me: até que parte leu a minha história? - perguntou. - Cheguei à parte em que o Henry e a Bryoni estão à espera de ouvir o veredito do júri sobre
aquele cabrão merdoso do Carl Peter Bannock. Perdoe-me a linguagem, mas você fez-me odiá-lo.
- E tem toda a justificação para isso. Acho que o Carl Bannock é uma daquelas pessoas malignas até ao âmago e sem qualquer possibilidade de redenção.
- E onde está agora essa criatura monstruosa? - Leia o que escrevi, Hector. Não tente saber o fim da história antes de lá chegar. Se o fizer à minha maneira, compreenderá
muito melhor as personagens em jogo, e olhe que são muitas. Mas posso garantir-lhe que ainda não chegou à melhor parte, ou deveria dizer a pior parte?
- Muito bem, mas responda-me ao menos a mais uma pergunta que não para de me roer por dentro. A Hazel estava ao corrente disto? Se estava, nunca me falou de nada.
- A Hazel ainda não tinha aparecido em cena. Ainda estava a aprender a jogar ténis na África do Sul.
- Mas ela deve ter sabido disso quando casou com o Henry, não? - Duvido que o Henry alguma vez tenha contado os pormenores à Hazel. O Ronnie Bunter diz que o Henry
tinha uma vergonha tremenda do escândalo horrível que aquilo foi. Sentia-se terrivelmente culpado por não ter sido capaz de proteger as filhas. Mas também é possível
que a Hazel tivesse sabido e nunca lhe tenha contado a si. O que aconteceu foi tão trágico e sórdido que talvez a Hazel, tal como o Henry, se tivesse limitado a
fazer de conta que aquilo nunca tinha sucedido.
- O que foi feito da Bryoni Lee? Essa pequenita portou-se como uma heroína. Ia adorar conhecê-la, se isso for possível.
- Vai ter que esperar. Não lhe vou contar nada. Vai ter de ler até ao fim da história.
- Aviso-a desde já, minha senhora, que a paciência não é uma das minhas muitas virtudes. Quando quero uma coisa, quero-a logo.
- Há situações na vida em que mais vale esperar, pois a expectativa multiplica o prazer final - disse ela. - E ler histórias é uma dessas situações. - A sua expressão
era enigmática, apenas remotamente velada por uma nota de malícia.
- Tenho a certeza de que é um ótimo conselho. - Mal conseguiu conter um sorriso, mas logrou igualar o autodomínio dela. - Como é que conheceu o Ronnie Bunter? -
perguntou. mudando de assunto.
- Ele o meu pai andaram na mesma faculdade de Direito. Descendo de uma longa linhagem de advogados.
Jo aproveitou a deixa dele e conversaram demoradamente durante a excelente refeição, acabando por se conhecerem melhor um ao outro. No final, Hector levou-a a um
clube noturno privado chamado Annabel's. Jo nunca lá tinha ido, mas Hector foi recebido com grande alegria pelos empregados. Quando dançaram, descobriram que se
moviam bastante bem juntos. Depois a música mudou e tornou-se suave e romântica. Pareceu perfeitamente natural quando Hector a puxou mais para si e ela encostou
a cabeça ao peito dele. Hector levou-a de volta ao hotel e acompanhou-a até à entrada, onde ela lhe disse: - Boa noite, Hector. Gostei imenso desta noite. Liga-me
pela manhã, por favor? Ainda temos tantas coisas para falar. - Depois ofereceu-lhe a face para ele a beijar e desapareceu, volteando a saia.
65
Acordou ao nascer do sol na manhã seguinte, sentindo-se repousado e bem-disposto, com a sensação de que algo de bom estava prestes a acontecer-lhe. Deixou-se ficar
deitado durante alguns momentos, perguntando-se qual a razão de todo aquele entusiasmo. Foi então que tudo lhe acudiu à mente em catadupa. Riu-se com satisfação
e lançou as pernas sobre a beira da cama.
Antes de tomar um duche apressado, ligou para a cozinha e disse ao mordomo Stephen para lhe deixar o pequeno-almoço na escrivaninha no estúdio e não na sala de jantar.
Quando desceu as escadas a correr, já lavado e vestido, deparou com Stephen a sair do estúdio.
- Bom dia, Stephen. Tenho outro favor a pedir-lhe. - Stephen
seguiu-o para dentro do estúdio e escutou as suas instruções com uma expressão de incredulidade.
- Tem a certeza de que é isso mesmo que quer, senhor Cross? - perguntou quando Hector terminou.
- Diga-me, Stephen, quando foi a última vez que lhe pedi que fizesse algo que eu não queria que fizesse?
- Acho que isso nunca aconteceu, senhor. - Pois também não vai acontecer agora - assegurou-lhe Hector. - Vou tratar já disso, senhor Cross. - É bom poder contar
sempre consigo, Stephen. Hector sentou-se à escrivaninha e ligou o computador. Quando o ecrã se iluminou, pegou no telefone e ligou para o telemóvel de Jo, cujo
número ela lhe tinha dado na noite anterior. Enquanto esperava que ela atendesse, espetou o garfo num pedaço de manga madura e enfiou-o na boca.
Jo atendeu ao quarto toque. - Bom dia, Hector. Dormiu bem? - Caí dentro de um buraco negro fundo e acordei há meia hora. pronto para matar dragões.
- Ainda existem muitos deles por aí à solta. Mate um deles por mim. Ainda estou na cama, com uma chávena de café.
- Que preguiçosa! - repreendeu-a. - A vida é para ser vivida.
- A culpa é toda sua por me ter mantido acordada até altas horas da noite. Mas foi divertido, não foi? Devíamos repetir um dia destes. - Muito em breve! - concordou
ele. - Que tal hoje à noite. ou até mais cedo?
- Preciso de ver umas pessoas na cidade esta manhã. Tinha-o prometido ao Ronnie Bunter. Não tem nada que ver com "A Semente Envenenada". É um assunto completamente
diferente. Mas depois do almoço já estarei livre.
- Venha, então. Estarei à sua espera. - Continue com a sua leitura. Aviso-o desde já que depois lhe vou fazer perguntas.
- Também tenho umas quantas para si. Desligou e concentrou toda a sua atenção no ecrã do computador.
66
Henry Bannock, ladeado por Ronnie Bunter e Bryoni, acabava de se sentar na galeria do público na sala de audiências quando o juiz Chamberlain saiu pela porta dos
seus aposentos e o oficial de diligências pediu ordem na sala.
Os doze jurados, encabeçados pelo presidente, entraram em fila e ocuparam os seus lugares na tribuna do júri. Nenhum deles olhou na direção do lugar onde Carl Bannock
estava sentado à mesa da defesa. - É um bom sinal! - murmurou Ronnie a Henry. - Eles raramente olham para aqueles que condenaram.
- Os membros do júri já chegaram a um veredito? - perguntou o juiz Chamberlain.
- Sim, Meritíssimo - respondeu o presidente dos jurados. - Qual é o veredito? - Em relação à acusação de estupro, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação
de abuso de menor, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de agressão sexual agravada, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de delito
de agressão e ofensas corporais graves, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de perpetração de incesto, consideramos o arguido culpado. Em relação
à acusação de corrupção de menor, consideramos o arguido culpado.
- Seis condenações em seis acusações - sussurrou Ronnie Bunter. - Nota máxima para a Melody Strauss.
O juiz Chamberlain agradeceu e dispensou os membros do júri e depois conferenciou com os advogados da defesa e da acusação. Dirigiu-se finalmente à sala de audiências:
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã, altura em que pronunciarei a sentença do prisioneiro.
Nessa noite, Henry organizou um jantar de celebração em Forest Drive para vinte amigos íntimos e familiares mais próximos. Cookie serviu lombo de boi texano de primeira
qualidade. mal passado e a ressumar sucos, com dois nacos de carne ainda agarrados ao osso.
Henry abriu uma dúzia de garrafas Château Lafite Rothschild de 1995 para acompanhar a carne.
Ronnie inclinou-se sobre a mesa para apostar com Melody Strauss que Carl só iria apanhar dez anos na penitenciária estatal. pois o juiz Joshua Chamberlain tinha
fama de ser liberal. Melody apostou dez dólares numa pena de pelo menos quinze anos. No entanto, ambos estiveram de acordo que o Château Lafite era o melhor vinho
que já tinham provado.
Bryoni não conseguiu aguentar até à sobremesa, pois os olhos começaram a fechar-se e a cabeça tombou-lhe em cima da mesa. Henry levou-a para o quarto dela no piso
de cima e meteu-a na cama. Sentou-se na beira da cama e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer profundamente pela segunda vez, antes de voltar para junto dos seus
convidados. Assim que ele saiu do quarto, Cookie levou-lhe uma grande taça de gelado de chocolate pelas escadas das traseiras. Bryoni conseguiu arranjar reservas
suficientes de força para acordar e devorar a taça inteira.
Às oito horas da manhã seguinte, Bonzo Barnes levou Bryoni à escola. Henry queria que ela voltasse o mais cedo possível à sua rotina habitual. Arranjara-lhe aconselhamento
psicológico a longo prazo e falara demoradamente com o diretor da escola e a professora da turma de Bryoni. Henry estava satisfeito por ter feito tudo ao seu alcance
para a ajudar a ultrapassar o trauma e a reencontrar o equilíbrio na sua vida. Tinham-no advertido de que poderia ser um processo longo, mas Henry tinha fé na força
de caráter e na maturidade da filha.
Henry saiu em direção ao tribunal num estado de espírito irado e vingativo. Às dez horas exatas, o oficial de diligências pediu ordem no tribunal.
Henry Bannock sentou-se no seu lugar habitual, ao lado de Ronnie Bunter, na primeira fila da galeria do público.
Carl Peter Bannock foi trazido da secção de detenção e conduzido pela escadaria por dois guardas de uniforme. Vinha algemado e de pés acorrentados. Estava pálido,
com a barba por fazer e de cabelo desgrenhado. Viam-se-lhe sombras escuras sob os olhos raiados de sangue. Olhou, suplicante, na direção de Henry.
A expressão de Henry era fria e irada. Susteve o olhar de Carl durante um longo momento. Carl sorriu-lhe com hesitação e os lábios tremeram-lhe. Henry afastou deliberadamente
o olhar, numa rejeição total e final.
Os ombros de Carl descaíram e avançou de passo arrastado para o banco dos acusados, onde se virou para o juiz Chamberlain.
- Arguido em julgamento, ouviu o veredito do júri. Tem alguma coisa a dizer que possa atenuar a pena que lhe será pronunciada?
Carl olhou para as correntes nos tornozelos. - Estou profundamente arrependido da dor que causei ao meu pai e aos outros membros da minha família. Usarei de tudo
ao meu alcance para os tentar compensar.
- É tudo o que tem a dizer? - Sim, senhor juiz, estou profundamente arrependido. - O tribunal tomará em conta a sua contrição na atenuação da pena - declarou o juiz
Chamberlain, olhando depois para baixo para reorganizar os papéis à sua frente na secretária. Ergueu a cabeça.
- A sentença pronunciada por este tribunal é a seguinte: pela acusação de corrupção de menor, condeno-o a cinco anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de incesto, condeno-o a seis anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de delito de agressão e ofensas corporais graves, condeno-o a seis anos de
prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de agressão sexual agravada de menor, condeno-o a vinte anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de estupro, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de abuso de menor, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal.
Ordeno que as penas sejam aplicadas em simultâneo e que o senhor fique encarcerado por um período mínimo de quinze anos.
O juiz Chamberlain olhou expectante para John Martius, que se levantou.
- Meritíssimo, peço a sua permissão para interpor recurso no Supremo Tribunal contra a sentença.
- Permissão concedida - disse Joshua Chamberlain. - No entanto, o prisioneiro será transferido diretamente deste tribunal para o Centro de Ingresso de Presos de
Holloway, em Huntsville. e daí para a penitenciária que lhe foi destinada, para começar a cumprir de imediato a pena pronunciada por este tribunal.
Olhou na direção dos dois guardas. - Meus senhores, por favor - cumpram o vosso dever.
Cada um dos guardas agarrou num dos braços de Carl Bannock e conduziram-no até ao topo das escadas. As correntes nos tornozelos retiniram quando desceu os degraus
para a secção de detenção.
- O tribunal queira levantar-se - anunciou o oficial de diligências. Henry e Ronnie foram as últimas pessoas a sair da sala de audiências.
- Podia ter sido melhor - opinou Ronnie. - Esperava um mínimo de vinte e cinco anos de cadeia. Mas quinze anos terá que servir. Pelo menos, tudo terminou finalmente
e livraste-te da semente podre que te envenenou a família.
- Pergunto-me se terá terminado realmente - disse Henry num tom sombrio. - E se foi mesmo a última vez que eu e as minhas filhas vimos aquele animal pervertido.
67
A carrinha celular tinha estacionado no recinto de segurança, quase completamente encostada à porta das traseiras do edifício do tribunal. As portas traseiras foram
abertas para receber Carl Bannock. As laterais da viatura estavam pintadas com as letras DJPT-DIC: Departamento de Justiça Penal do Texas - Divisão dos Institutos
Correcionais. Carl foi levado para dentro da carrinha e prenderam-lhe as correntes dos tornozelos às argolas no chão entre as suas pernas. As portas foram fechadas
e trancadas e a viatura arrancou para fazer a viagem de mais de cem quilómetros até ao Centro de Ingresso de Presos, em Huntsviile.
O Centro de Ingresso de Presos de Holloway era um bloco quadrado de betão, com quatro pisos e pesadas barras de aço nas janelas. Era protegido por torres de vigia
e por um triplo anel de vedações de arame farpado. A carrinha foi submetida a minuciosas revistas de segurança em cada um dos três portões. Quando alcançou o edifício
principal, os guardas de Carl retiraram-lhe as correntes das pernas e escoltaram-no ao longo de uma série de portões de abertura eletrónica, até à área primária
de receção.
Os seus papéis foram verificados uma vez mais e o seu nome e restantes dados foram inseridos no registo. Depois, o sargento atrás da secretária assinou o documento
de entrega do prisioneiro. Dois novos guardas revezaram os outros dois que o tinham escoltado desde Houston. Carl foi conduzido através de outro portão acionado
por controlo remoto, para o interior da principal área de receção. Foram-lhe confiscados todos os seus objetos pessoais. nomeadamente o anel de sinete em ouro, a
carteira, o Rolex de oure e as roupas de civil. Tudo foi inventariado e guardado em sacos. Quando o guarda lhe deu o livro de registo para assinar, devolveu-lhe
uma nota de dez dólares que tirara da carteira dele.
- Porque me está a dar isto? - perguntou Carl. - És um agressor sexual. É para produtos de higiene básicos. - O que é que isso tem a ver com a minha condenação?
- Não vais tardar a descobrir. - O guarda dirigiu-lhe um sorriso maldoso.
Conduziu Carl à sala da barbearia, onde lhe raparam o cabelo O barbeiro recuou dois passos para admirar o seu trabalho. - Fabuloso! - opinou. - Os rapazolas sulistas
aqui de Holloway vão-te adorar, ó carinha laroca.
Os guardas levaram-no para a zona de duches para se lavar Depois, nu e molhado, foi levado ao armazém, onde lhe entregaram um uniforme através de um postigo. O uniforme
era composto por uma T-shirt e cuecas brancas, casaco e calças largas de lona branca, com cordão na cintura, e mocassins de lona branca.
Levaram-no através de outro portão eletrónico para uma Cela individual numa comprida fileira de celas e trancaram a porta. O mobiliário consistia numa latrina turca
e num beliche de madeira firmemente fixado ao chão e à parede lateral. Havia um único cobertor, mas nenhum colchão. Mais tarde, foi-lhe entregue o jantar através
do postigo: uma tigela de estufado aguado, com um grosso naco de pão dentro.
Cedo na manhã seguinte, foi levado da cela para a sala de interrogatório, onde três membros da direção do Centro de Ingresso esperavam sentados a uma mesa de aço.
Os três eram membros da Divisão dos Institutos Correcionais e envergavam uniforme.
- Carl Peter Bannock. Está correto? - perguntou o homem sentado no meio do trio, sem erguer a cabeça.
- Sim - respondeu Carl. - Sim, senhor! - corrigiu-o o interrogador. - Sim, senhor - repetiu Carl respeitosamente. - Pena de quinze anos, no mínimo. Está correto?
- Sim, senhor. - Agressor sexual e pedófilo. Está correto? - Sim, senhor - disse Carl por entre os dentes cerrados. - É melhor enviá-lo para o Centro Correcional
de Detenção a Longo Prazo de Holloway - disse outro dos membros do painel.
O membro de hierarquia superior sugeriu: - E se o enviássemos para o sexto nível, onde os outros reclusos de longa duração não lhe podem fazer nada? - O único lugar
onde aqueles rapazolas sulistas não lhe vão conseguir deitar a mão é lá no céu, e este lindinho nunca conseguirá chegar tão alto. - O terceiro membro do painel riu-se
à socapa e os outros riram por entre dentes.
Nessa tarde, outra carrinha celular do DJPT-DIC levou Carl cerca de trinta quilómetros mais para sul, para o interior da zona histórica da escravatura do algodão,
onde, no meio de numa paisagem árida e incaracterística, a penitenciária de Holloway se erguia sob a forma de um enorme monumento de betão cinzento, erigido à infâmia
da humanidade.
Ali, a segurança era ainda mais rigorosa do que no Centro de Ingresso. A carrinha demorou vinte minutos a passar pelo anel
composto pelas três vedações, até estacionar na entrada reservada à receção dos presos. Depois, mais vinte e cinco minutos de espera até tirarem as algemas e as
correntes a Carl e o transferirem do piso térreo para o seu destino final, no sexto e último nível do edifício.
Do elevador, foi conduzido ao longo de um corredor curto até uma porta onde se lia GABINETE DO SUPERVISOR DE NÍVEL. Um dos guardas bateu à porta e um berro abafado
respondeu-lhe do interior. Abriu a porta e fez sinal a Carl com a cabeça para entrar. O supervisor de nível estava sentado atrás da secretária. No crachá de plástico
preso à camisa lia-se LUCAS HELLER.
Lucas estava de botas pousadas no tampo da secretária e baloiçava a cadeira equilibrando-a nas duas pernas traseiras. Deixou a cadeira cair para a frente, com enorme
estrondo, até ficar apoiada nas quatro pernas, e levantou-se. Era alto, de ombros curvados e esguio. O cabelo ruivo já lhe rareava, mas o que restava dele caía-lhe
sobre a testa. As orelhas, enormes, eram desproporcionais
para o rosto comprido e pálido. Os olhos também eram pálidos e aquosos, mas a ponta do nariz era rosada e tinha as narinas húmidas devido à rinite. Os dois dentes
superiores da frente sobressaíam ao ponto de lhe conferirem um ar de coelho anémico.
Tinha um pingalim na mão direita. Contornou a secretária e girou com lentidão em redor de Carl nas suas pernas de cegonha. Fungou ruidosamente, com um som líquido,
enquanto estendia o braço e passava a ponta de couro do pingalim sobre as nádegas do preso. Carl sobressaltou-se e Lucas voltou a fungar, soltando risadinhas como
uma colegial.
- Bom - disse. - Muito bom. Vais encaixar bem aqui. - Piscou o olho a um dos guardas. - Vais encaixar mesmo muito bem, se me faço entender. - Sim! Entendi-o muito
bem, chefe. - O guarda desatou às gargalhadas.
Lucas voltou a colocar-se à frente de Carl e sentou-se na borda da secretária. - Já te deram os teus dez dólares para os produtos de higiene básicos, ó Bannock lindinho?
- Sim, chefe. - Dá-mos cá. - Lucas estendeu a mão e estalou os dedos. Carl enfiou a mão no bolso das calças de lona branca e tirou a nota amarrotada. Lucas arrancou-lha
da mão. Depois, voltou para trás da secretária e abriu uma das gavetas, de onde tirou uma garrafa plástica grande e a fez deslizar sobre o tampo na direção de Carl.
- Aí tens.
Carl pegou na garrafa e examinou o rótulo. - "Óleo essencial Macassar12 de primeira qualidade. Ideal para o cabelo" - leu em voz alta, com um ar perplexo.
- O que devo fazer com isto, chefe? - Já vais saber quando chegar a altura - assegurou-lhe Lucas. - Aconselho-te a mantê-la à mão. - Olhou para o guarda. - Tens
o recibo desta mercadoria?
Nota de Rodapé: Óleo de coco ou de palma, muito perfumado, assim designado por ter sido fabricado originalmente a partir de ingredientes comerciados no porto de
Makassar, na Indonésia.
Fim da Nota.
- Aqui mesmo, chefe. - O guarda pousou o livro de recibos à frente dele e Lucas escrevinhou a sua assinatura.
- Muito bem, rapazes. Tragam-no. - Conduziram Carl de volta pelo corredor e através de outra porta robusta, até ao interior de uma comprida galeria de aço cinzento
e betão de um cinzento mais escuro. O teto abobadado era de vidro blindado. Feixes retangulares de brilhante luz solar, repletos de partículas de poeira prateadas,
incidiam no chão. De cada um dos lados da galeria estendia-se uma comprida fila de celas de grades de aço. Vultos indistintos agarravam-se às grades ou mantinham-se
acocorados no interior, espreitando Carl enquanto era conduzido pelo guarda. Alguns deles gritaram-lhe as boas-vindas num tom sardónico e brindaram-no com piropos
e assobiadelas, rindo e enfiando as mãos entre as grades para lhe fazerem gestos obscenos.
Lucas parou à frente da última cela da fila e abriu a porta com a sua chave-mestra eletrónica.
- Bem-vindo à cela número 601. A Suíte Nupcial. - Lucas sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Assim que Carl entrou, a porta deslizou e fechou-se atrás dele. Lucas
e a escolta refizeram o mesmo trajeto pelo corredor, sem nunca olharem para trás.
Carl sentou-se no único beliche existente e olhou em redor da cela. Não era maior do que a sua cela no Centro de Ingresso. A única melhoria era o pequeno lavatório
de aço inoxidável ao lado da latrina turca e um banco à frente de uma pequena mesa. Cada peça de mobiliário estava presa às paredes para evitar ser usada como arma.
Este seria o seu lar pelo menos durante os seguintes quinze anos, um pensamento que o fez perder o ânimo.
Às seis da tarde, soou uma campainha e Carl, seguindo o exemplo dos outros reclusos, postou-se à porta da sua cela. Todas as portas das celas desse nível se abriram
em simultâneo e os presos saíram para a galeria.
Ao som das ordens gritadas pelos guardas armados na passarela de aço em cima, todos se viraram e seguiram em fila até ao refeitório na outra ponta da galeria. À
medida que cada recluso passava à frente do postigo da cozinha, era-lhe entregue um pequeno tabuleiro de plástico por um dos homens na cozinha. O jantar era uma
tigela de sopa, outra tigela de estufado de carne de carneiro e uma rodela de pão branco. Carl sentou-se a uma das mesas de aço nu, mas nenhum dos outros reclusos
se juntou a ele. Formavam grupos com outros presos da mesma origem étnica. Alguns deles estavam manifestamente a falar de Carl, mas, como ele não conseguiu ouvir
o que estavam a dizer, ignorou-os. Disse a si mesmo. com amargura, que teria muitos mais anos para encontrar o seu lugar naquela sociedade pervertida.
Tinham vinte minutos para comer e, após esse tempo, os guardas nas passarelas no alto ordenaram-lhes que voltassem para as suas celas.
O encerramento das celas era às sete e trinta. Carl deitou-se de costas no beliche, de pernas cruzadas e com as mãos atrás da nuca. Estava exausto. Tinha sido um
dia de preocupações e incertezas. Pelo menos o jantar fora comestível e ansiava que as lâmpadas de arco voltaico que iluminavam a cela fossem desligadas para a noite.
Mas tinham-no advertido de que isso nunca iria acontecer.
Começou a dar-se conta gradualmente de que as vozes dos presos nas celas à sua volta se reduziam a sussurros expectantes e a risos abafados. Soergueu-se e olhou
através das grades para a comprida galeria, mas a sua visão era limitada e não conseguiu descortinar nenhuma razão para a atmosfera carregada que parecia ter-se
apoderado dos outros reclusos no Nível Seis.
Depois, ergueu-se e lançou as pernas sobre a beira do beliche quando se apercebeu do estrépito de passos que se aproximavam ao longo da galeria. Lucas Heller, o
supervisor do nível, entrou no seu campo de visão. Empunhava o seu pingalim. Usava um chapéu regulamentar e um uniforme engomado.
- De pé, prisioneiro! - ordenou. Carl levantou-se do beliche. - Estás a gostar da tua primeira noite em Holloway, Bannock- - Tudo bem, chefe. - O jantar estava bom?
- Não tenho queixas, chefe.
- Estás aborrecido? - Nem por isso, chefe. - Então estás com azar, Bannock. Porque trouxe comigo alguns dos rapazes sulistas para te fazerem companhia. Alguns deles
já estão aqui há vinte anos ou mais e entediados de morte. Nenhum deles esteve com uma mulher nesse tempo todo, e andam todos pra'í com um bruto tesão, isso te garanto!
Carl retesou-se e sentiu a pele eriçar-se. Tinha ouvido as piadas e os rumores, mas quis acreditar que não eram verdadeiros e que isso nunca lhe aconteceria a ele.
Mas havia homens estranhos a amontoarem-se atrás de Lucas.
- Posso apresentar-te o senhor Johnny Congo? - Lucas pousou a mão no ombro do homem mais próximo dele. Lucas era alto, mas teve de esticar o braço à altura da cabeça
para poder fazê-lo. O homem parecia ser uma enorme montanha de antracite. A cabeça era redonda e lisa como uma bola de canhão. Usava apenas T-shirt e calções, de
modo que Carl pôde reparar que os membros dele eram como toros de madeira dura, negros como ébano, todo ele músculo rijo e osso, quase desprovido de qualquer sinal
de gordura. - O senhor Congo está a viver lá em baixo no corredor da morte enquanto o Supremo Tribunal considera o recurso que ele interpôs. Está connosco há oito
anos e é altamente respeitado aqui em Holloway, de modo que tem direitos de visita especiais. - Lucas ergueu a mão, de palma virada para cima, e Johnny Congo colocou
uma nota de vinte dólares nela. Lucas sorriu em agradecimento e premiu o botão de abertura da porta. A porta gradeada deslizou para o lado.
- Pode entrar, senhor Congo. Demore todo o tempo que quiser. Divirta-se.
Congo entrou na cela e os outros homens amontoaram-se junto à porta gradeada atrás dele, acotovelando-se uns aos outros para conseguirem as melhores posições e sorrindo
de expectativa.
- Tens aí o teu óleo Macassar, lindinho? - perguntou Congo a Carl. - Tens trinta segundos para te besuntares e te pores de joelhos, senão enrabo-te a seco.
Carl recuou para longe dele. Estava mudo de terror e começou a choramingar. - Não. Não, por favor, deixa-me em paz.
A cela era exígua e bastaram três passadas de gigante para Congo o encurralar no canto. Esticou a mão e agarrou no antebraço de Carl. Com um rápido girar do punho,
lançou-o de cara contra o beliche.
- Baixa as calças, lindinho. Dá-me cá o óleo. - Foi então que o próprio Congo viu a garrafa de óleo Macassar na prateleira por cima do lavatório, onde Carl a colocara.
Pegou nela e tirou a tampa. Voltou para junto do beliche. Carl enrolara o corpo numa bola, com os joelhos encostados ao queixo. Congo virou-o de cara contra o beliche,
enfiou um joelho entre as omoplatas de Carl e arrancou-lhe o cordão das calças. Segurou a garrafa no alto e despejou metade do conteúdo em cima das nádegas de Carl.
- Quer estejas pronto ou não, aqui vou eu! - disse Congo enquanto se punha em posição atrás de Carl.
- Não... - choramingou Carl, e depois gritou. Foi um som da mais profunda angústia. Cada um dos homens que aguardavam a sua vez pagaram a Lucas o preço da entrada,
como espectadores num jogo de futebol, e depois apinharam-se dentro da cela, atrás do par no beliche. As suas vozes eram roucas de desejo e excitação. Um deles entoou:
- Dá-lhe, Congo! Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe!
Os outros riram-se e retomaram o refrão. - Dá-lhe, Congo, dá-lhe! De repente, Congo arqueou as costas, lançou a cabeça para trás e soltou um urro como um touro no
cio. O homem atrás dele ajudou-o a sair e ocupou imediatamente o seu lugar. Carl voltou a gritar.
- Meu Deus, como ele canta tão doce - disse o terceiro homem na fila.
Na altura em que o quinto homem se aproximou dele, Carl já não gritava mais. Quando o último homem terminou, abanou a cabeça, desiludido, enquanto se afastava.
- Parece que já desmaiou e deixou-nos aqui pendurados, pá Congo estivera sentado no beliche ao lado de Carl. Levantou-se e disse: - Ná, ainda continua a respirar.
Se está a respirar.
então ainda aguenta mais um bocadinho de amor. - Pôs-se atrás de Carl uma vez mais.
O homem de confiança da enfermaria da prisão tinha sido convidado para a festa, tanto a título pessoal como profissional. Acercou-se no seu papel profissional e
verificou a pulsação de Carl sob o queixo, na artéria carótida.
- Este rapazola já teve o suficiente para esta noite. Ajudem-me a levá-lo lá para baixo e daqui a duas ou três semanas já estará pronto para mais diversão.
68
Ao amanhecer, Carl encontrava-se num estado crítico devido ao trauma e à perda de sangue. Foi chamado o médico da sede central. Ordenou que Carl fosse transferido
para as principais instalações médicas na Penitenciária Estatal de Huntsville.
No bloco operatório, aspiraram-lhe por sucção a cavidade abdominal inferior e quase lhe retiraram dois litros de sangue e esperma. Depois, o cirurgião suturou-lhe
os vasos sanguíneos rasgados. reparou-lhe cirurgicamente as lesões no quadrante inferior do cólon e administrou-lhe três litros de sangue por transfusão.
Durante a sua convalescença nas instalações médicas de Huntsville, Carl teve autorização para fazer chamadas e receber visitas. Telefonou para o Carson National
Bank em Houston e pediu ao seu gerente de conta para o visitar. Carl era um cliente importante e o gestor de conta anuiu de imediato.
Carl tinha trabalhado para o seu pai adotivo e para a Bannock Oil Corporation durante dois anos e dois meses antes da sua detenção. Henry estipulara-lhe um salário
inicial no belo montante de cento e dez mil dólares mensais. Henry acreditava firmemente no método de incentivos e punições. Também acreditava que o seu único filho
varão merecia ser tratado de forma principesca.
Para grande espanto e profunda satisfação de Henry, Carl revelara quase de imediato uma extraordinária perspicácia para os negócios que estava muito para além daquilo
que Henry esperaria de alguém com essa idade e inexperiência. No final do primeiro ano, Henry sentiu um enorme orgulho ao aperceber-se de que Carl era um génio financeiro,
cujos dotes naturais rivalizavam, e em alguns acasos até excediam, os seus. Carl viria a demonstrar uma assombrosa capacidade para farejar possíveis lucros, com
a mesma prontidão com que uma hiena esfomeada conseguia detetar uma carcaça em decomposição. O seu salário subiu exponencialmente à medida que os seus talentos se
desenvolviam e floresciam. No final do seu segundo ano na Bannock Oil, já tinha conquistado o seu lugar no conselho administrativo da companhia, e o montante total
do seu salário e honorários como diretor ascendia a duzentos e cinquenta mil dólares por mês. De acordo com as cláusulas estipuladas na escritura, o Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock estava obrigado a pagar-lhe por mês uma soma adicional três vezes superior ao montante dos seus ganhos pessoais. Em resultado da generosidade
do pai, mesmo depois de pagar meticulosamente os seus impostos, Carl tinha conseguido acumular um saldo de crédito muito superior a cinco milhões de dólares, de
modo que o gestor de conta acedera de imediato ao seu pedido.
Ao sexto dia, Carl já tinha recuperado suficientemente das lesões retais para poder ser transferido para a enfermaria do Centro de Holloway. Levou consigo o novo
livro de cheques que o gestor de conta lhe facultara. Da enfermaria, Carl conseguiu enviar uma mensagem a Lucas Heller através do enfermeiro de serviço. A mensagem
dizia que Lucas deveria falar com ele se desejava saber uma coisa que seria do seu grande benefício.
Lucas condescendeu em descer à enfermaria para ver Carl, principalmente pela oportunidade de poder troçar dele confinado à cama. De forma a manter a conversa aliciante,
e como sinal da sua boa-fé, Carl deu-lhe um cheque de cinco mil dólares ao portador pelo Carson National Bank. Lucas leu o montante com estupefação: raras vezes
tivera tanto dinheiro nas mãos de uma só vez, mas a experiência havia-o ensinado a não confiar em fadas madrinhas. Recusou-se a acreditar naquele golpe de sorte
até ter a oportunidade de ir apressadamente à cidade levantar o cheque na filial local do banco.
O caixa pagou-lhe sem levantar a mínima objeção. De cético tornou-se prontamente num crente. Regressou ao Centro de Holloway e voltou a visitar Carl. Nesta ocasião,
os seus modos eram profundamente deferentes e obsequiosos.
Carl ordenou-lhe então que veiculasse uma mensagem a Johnnv Congo no corredor da morte. Por essa altura, Carl já compreendera todas as estruturas de poder subjacentes
ao Centro de Hollowav. Ficara a saber que Johnny Congo exercia uma enorme influência em toda a prisão. À semelhança de uma grotesca aranha devoradora de carne humana,
mantinha-se no centro da sua teia e manipulava os fios, que se estendiam até ao gabinete do diretor do complexo prisional.
Ao longo dos anos, o diretor fora depositando uma enorme confiança em Congo para manter a ordem entre os reclusos. Se Johnny passasse a palavra de ordem para que
houvesse "paz e cooperação". então a administração do centro conseguia manter uma certa aparência de ordem no meio de um sistema que parecia especificamente concebido
para produzir o caos.
No entanto, se Johnny Congo dissesse "Motim!", rebentavam incêndios por todo o centro; os guardas eram esfaqueados nas oficinas, ou nas galerias, ou nas passarelas;
os reclusos assumiam o controlo dos refeitórios e do pátio da prisão. Partiam o mobiliário e demais acessórios. Assassinavam alguns dos seus companheiros para darem
vazão a velhos rancores ou em obediência às ordens de Johnny Congo. Atiravam objetos e gritavam insultos aos guardas. até que a Guarda Nacional fosse chamada com
equipamento antimotim completo. E, no rescaldo final, as classificações do desempenho do diretor caíam a pique.
Graças à sua cooperação com a administração, Johnny Congo tinha conquistado privilégios especiais. Assim que novos detidos chegavam ao centro, podia escolher os
mais bonitos entre eles. como Carl sentira pessoalmente na pele. Como a sua cela nunca era revistada, as suas reservas de droga e outros luxos nunca eram devassados.
Permitiam-lhe, inclusive, ter telemóvel na cela, de modo que podia comunicar com os seus contactos e parceiros de crime no mundo exterior. A sua pena de morte estava
obstruída algures no sistema; corriam rumores de que o governador do Texas tratara para que assim fosse. Os mais bem informados estavam a apostar que Johnny morreria
de velhice, sem qualquer ajuda do homem da injeção letal na câmara de execução de tijoleira branca.
Se alguém incorresse no desagrado de Johnny Congo, era apenas uma questão de dias até que a questão fosse resolvida à navalhada no pátio da prisão, ou às primeiras
horas da madrugada, na privacidade da própria cela do ofensor, que teria sido convenientemente deixada destrancada pelo Supervisor de Nível.
Corria o rumor de que a influência de Johnny Congo se estendia muito para lá dos muros da prisão. Acreditava-se que ele mantinha fortes laços com organizações criminosas
e gangues de todo o Texas e estados circundantes. Por um preço muito razoável, Johnny dispunha-se a corrigir problemas em cidades tão distantes como San Diego e
São Francisco.
Lucas Heller demorou quase uma semana a conseguir o encontro entre Carl e Johnny Congo, mas, no final, o gabinete do supervisor do corredor da morte foi colocado
à disposição e os dois reuniram-se às três da madrugada de um domingo, quando o resto do centro estava trancado para a noite. O Supervisor de Nível e quatro dos
seus guardas esperaram à porta, mas não interferiram.
Assim que Carl e Congo ficaram a sós, avaliaram-se um ao outro com desconfiança, como dois leões de juba negra de grupos rivais que se tivessem cruzado em território
disputado na savana africana. Por esta altura, Congo já percebera que Carl não era mais uma cara linda. Sabia que Carl era filho de Henry Bannock e conhecia o poder
e a riqueza da Bannock Oil Corporation.
- Querias falar comigo, lindinho? - Preciso da sua proteção, senhor Congo. - Carl não desperdiçou tempo. - Podes apostar esse teu lindo cuzinho que precisas mesmo,
pois em pouco tempo ia deixar de ser assim tão lindo e macio. Mas porque é que eu te deveria proteger?
- Posso pagar-lhe. - Sim, pá, talvez seja motivo suficiente para eu o fazer. Mas de quanto dinheiro estamos aqui a falar, rapaz?
- Diga-me o senhor. Congo pôs-se a catar o nariz enquanto ponderava a questão. Por fim, examinou a crosta de muco seco que retirara da narina esquerda
e sacudiu-a do dedo antes de anunciar o seu preço. - Cinco mil dólares a cada mês, em notas de um e cinco dólares, entregues aqui em Holloway. Não me servem de nada
lá fora. - Tinha estabelecido uma quantia escandalosamente exagerada, na esperança de que Carl regateasse.
- Que quantia mais ridícula, senhor Congo - disse Carl. Johnny Congo ficou ofendido e cerrou os punhos, que mais pareciam grossos presuntos negros. - Para um homem
do seu estatuto e posição elevada, estava a contar pagar-lhe dez ou até quinze mil dólares por mês.
Johnny Congo pestanejou e descerrou os punhos. Começou a sorrir de um modo paternal. - Estou-te a ouvir, lindinho, e estou a gostar do que ouço. Quinze mil parece-me
bastante bem.
- Tenho a certeza de que conseguirá arranjar uma forma de lhe entregarem o dinheiro desde o banco até ao local onde o quer ter. Diga-me só o que devo fazer e assim
farei. Ponho a minha mão no fogo, senhor. - Estendeu-lhe a mão. Congo estendeu a mão e, enquanto lha apertava, disse numa voz retumbante: - É mais do que a tua mão
o que está em jogo. rapaz. É toda a tua linda vidinha.
- Eu sei que sim, senhor Congo. Mas, se quer mesmo ganhar uma grande pipa de massa, devíamos fazer negócios juntos.
- Que tipo de negócios? - Congo quase se ria na cara dele. - Ora conta aí, lindinho.
Carl falou durante cerca de quarenta minutos e Congo manteve-se inclinado para a frente, ouvindo-o quase sem o interromper. No final, sorria de orelha a orelha e
os olhos brilhavam-lhe.
- Como sei que vais cumprir com o que dizes, rapaz? - perguntou-lhe por fim.
- Se eu não cumprir, então pode retirar-me a sua proteção senhor Congo.
Foi um encontro decisivo, do qual só poderia emergir uma aliança ímpia: um jovem génio de natureza retorcida a aliar os seus talentos aos estratagemas de um monstro
implacável que tinha poderes de vida e morte sobre os outros. Ambos eram psicopatas, completamente desprovidos de compaixão, escrúpulos ou remorsos.
Ao longo dos anos seguintes, os lucros dos seus vários empreendimentos, inicialmente concebidos por Carl e depois promovidos por Johnny Congo, eram primeiro lavados
e branqueados. Os amigos de Johnny no exterior voluntariavam-se com avidez para os auxiliar nesse processo. Depois de o dinheiro ter sido lavado, era pessoalmente
distribuído a Carl sob a forma de dividendos, e de honorários para o diretor da prisão, através de uma companhia nas ilhas Virgens Britânicas que Carl tinha criado
quando ainda estudava em Princeton. O valor das receitas finais era quadruplicado pelo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. No final, a enorme soma total era
dividida entre Carl e Johnny Congo e ocultado em contas bancárias numeradas em Hong Kong, Moscovo, Singapura e noutras cidades espalhadas pelo globo, onde nem mesmo
o poderoso braço da Administração Fiscal dos Estados Unidos conseguiria chegar.
De modo a facilitar a operação dos seus empreendimentos, tanto dentro como fora da prisão, Carl e Johnny depressa se viram na necessidade de incluir Marco Merkowski,
o diretor do Centro Correcional de Holloway, como sócio comanditário. Assim que o envolveram no seu primeiro esquema ilegal, Marco deu por si completamente às mãos
de Carl Bannock e de Johnny Congo.
69
Carl foi transferido do nível seis para a unidade do nível um. onde estavam alojados os condenados com regalias e outros reclusos de cadastro imaculado por motivo
de bom comportamento. A cela onde ficou instalado tinha o triplo do tamanho da sua cela anterior no nível seis. Dispunha de um televisor e do seu próprio telemóvel.
O telemóvel era um elemento essencial na gestão dos interesses comerciais da aliança. Por um feliz acaso, Carl deu por si a operar num mercado ferozmente em alta.
Todos os seus antigos contactos continuavam nos seus postos e os instintos do jovem Carl para o lucro mantinham-se infalíveis. Nos seus lentos dias na prisão, Carl
continuava a ter muito tempo para concentrar a sua mente fecunda a planear o futuro. Já se tinham passado mais de cinco anos desde a sua detenção. O seu cadastro
prisional não tinha máculas, graças aos bons ofícios do diretor Merkowski. A pena mínima inicial de quinze anos pronunciada pelo juiz Chamberlain tinha sido reduzida
em recurso para um mínimo de doze anos. Carl já quase cumprira metade dessa sentença. Ainda só tinha trinta anos, mas já era um multimilionário astuto e muito sabido,
desejoso de enfrentar o mundo nos seus próprios termos assim que saísse pelos portões do Centro Correcional de Holloway.
Graças aos múltiplos contactos de que ele e Johnny Congo dispunham no exterior, Carl mantinha-se sempre completamente informado acerca dos movimentos do pai e dos
passos de todos os outros beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Infelizmente para Carl e para as suas aspirações financeiras, o pai tinha conhecido uma tenista profissional, uma campeã trinta anos mais nova do que ele, consideravelmente
mais jovem do que o próprio Carl Bannock. Carl tinha visto fotografias dessa mulher. Chamava-se Hazel Nelson e era loira, atlética e encantadora. Apenas alguns meses
depois de se terem conhecido, o seu pai e Hazel casaram-se numa magnífica cerimónia na residência de Forest Drive, em Houston. Menos de um ano depois, Hazel deu
à luz uma menina à qual puseram o nome Cayla. O recorde de Henry de gerar apenas progénie do sexo feminino mantinha-se intacto. Na perspetiva de Carl, esta nova
e inoportuna aventura do seu pai viera adicionar mais dois nomes à lista de beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
A lista completa compreendia um total de sete pessoas, incluindo o próprio Carl: Henry Bannock e Hazel Bannock, juntamente com a sua filha Cayla; a mãe de Carl,
Marlene Imelda Bannock, que conservara o apelido do marido depois do divórcio; e as duas meias-irmãs de Carl, Sacha Jean e Bryoni Lee. Usando como base o valor de
mercado das ações da Bannock Oil Corporation na Bolsa de Valores de Nova Iorque, Carl estimou que o valor total do património atual do Fundo Fiduciário da Família
Henry Bannock rondasse os cento e onze mil milhões de dólares. A ideia de ter de partilhar mesmo essa quantia tão vasta com cinco ou seis outras pessoas causava-lhe
um ressentimento feroz.
A partir da sua cela, Carl seguia com enorme interesse pessoal o pedido legal que o pai submetera há muitos anos ao Supremo Tribunal de Washington DC para que Carl
Peter Bannock fosse excluído da lista de beneficiários do Fundo Fiduciário em razão de não ser parente de sangue do dador, e pelo facto de a sua condenação por uma
série de crimes graves o ter desqualificado. Quando os eminentes juízes do Supremo Tribunal rejeitaram por unanimidade o pedido de Henry Bannock, Carl soube então
que somente a morte poderia negar-lhe a sua parte dos fundos fiduciários.
Carl e Johnny Congo celebraram a notícia com uma pequena e discreta festa no corredor da morte, na qual participaram o diretor Merkowski e várias jovens acompanhantes
trazidas de Huntsville para a ocasião. Embora Carl e Johnny Congo se tivessem tornado amantes há muitos anos, ficaram bastante satisfeitos por partilharem o seu
leito conjugal com uma ou duas raparigas bonitas, ou mesmo rapazes quando os havia disponíveis.
A decisão do Supremo Tribunal a seu favor levou Carl a refletir seriamente sobre as muitas cláusulas notáveis que o seu pai estipulara na escritura do Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock.
Carl tinha desenvolvido uma excelente memória durante os seus anos de estudo e, embora nunca mais tivesse tido acesso a uma cópia da escritura original do Fundo
Fiduciário desde o dia em que conseguira abrir a caixa-forte do pai, fizera no entanto anotações detalhadas do seu conteúdo. Durante todo esse tempo houvera sempre
uma cláusula em particular que o pai incluíra na escritura que nunca deixara de o atormentar. A provisão postulava que quando restasse apenas um único beneficiário
vivo, os mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock deveriam liquidar o fundo, e todo o restante património deveria ser dividido igualmente entre uma
instituição de caridade favorecida por Henry e o único beneficiário vivo, fosse homem ou mulher.
Carl decidiu que chegara a altura de aproveitar ao máximo essa cláusula enquanto permanecia oculto da visibilidade pública nas profundezas do Centro Correcional
de Holloway, e enquanto as paredes de betão que o aprisionavam continuavam a funcionar como um escudo capaz de defletir possíveis suspeitas sobre ele e lhe forneciam
um álibi inabalável.
O próprio Henry era invulnerável, mas estava a envelhecer rapidamente. Ao ritmo a que ele vivia a vida, não duraria muitos mais anos. Através dos seus informadores,
Carl inteirara-se de que Henry já começava a dar sinais de esmorecer. Carl sabia que tinha um aliado no Anjo da Morte e estava preparado para esperar.
Hazel e a sua jovem filha Cayla estavam protegidas pelo pesado manto de majestade que Henry Bannock lançara sobre todos aqueles que o rodeavam de mais perto. Hazel
e Cayla ainda não estavam vulneráveis. Mas a sua hora chegaria assim que Henry ficasse fora do caminho.
O mesmo não se aplicava à sua mãe alcoólatra, Marlene Imelda, que ele desprezava; e também não se aplicava às suas meias-irmãs, por quem nutria um ódio profundo
e amargo. Eram diretamente responsáveis pela sua encarceração e pelos muitos anos desperdiçados da sua vida que era obrigado a passar atrás de barreiras de aço e
betão, na companhia de criaturas mais abjetas do que qualquer fera da selva. Carl ficara a saber que a condição mental da sua irmã mais velha Sacha, melhorara de
forma tão significativa desde que ele fora encarcerado que os seus médicos puderam finalmente dar-lhe alta do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms e entregá-la aos
cuidados da sua mãe. Sacha fora viver então com Marlene nas ilhas Caimão. A relação entre mãe e filha tinha florescido no âmbito dessa nova intimidade. Marlene não
ficou curada da sua dipsomania; no entanto, a tutela da sua primogénita dera-lhe o incentivo de que precisava para tentar tornar-se abstémia. Devotava agora todo
o seu amor e atenção a Sacha, e esta correspondia-lhe com enorme gratificação.
Quando Henry Bannock casou com Hazel Nelson e Cayla nasceu, Bryoni decidiu sair de Forest Drive e mudar-se para as ilhas Caimão para estar com a mãe e a irmã. Por
essa altura, Bryoni não era muito mais jovem do que a sua madrasta Hazel. As duas raparigas tinham personalidades muito fortes e competitivas e ambas disputavam
ferozmente a atenção de Henry Bannock. Tivessem sido outras as circunstâncias e talvez se houvessem tornado amigas, mas o nascimento da bebé Cayla fizera pender
a balança nitidamente a favor de Hazel. Era agora não só a nova patroa de Forest Drive, como também a mãe da filha mais nova de Henry. Henry estava perdido de amores
por Hazel e tratou de a encorajar quando ela começou a desenvolver um grande interesse pelos negócios da Bannock Oil Corporation. Pouco tempo depois, Henry atribuiu-lhe
o cargo na administração da companhia que Carl deixara vago após a sua condenação.
Hazel ocupou o seu lugar à mesa do conselho de administração, à direita de Henry. Ela era tudo para Henry Bannock: amante, esposa, mãe da sua filha, parceira nos
negócios e companheira íntima.
Bryoni, por seu lado, não tinha nenhum interesse particular pela Bannock Oil Corporation. Graças ao Fundo Fiduciário, dispunha de todo o dinheiro de que precisava,
e não era gananciosa. Possuía alguns dos outros talentos que Hazel possuía em abundância e que a tornavam tão valiosa e desejável aos olhos de Henry Bannock. Bryoni
não podia competir com ela a nenhum nível. De modo que partiu para a Grande Caimão nas Caraíbas, onde Marlene e Sacha a receberam com um entusiasmo comovente, e
onde ela pôde servir um propósito que era simultaneamente muito valorizado pelas duas pessoas que ela mais amava e que a realizava em pleno.
Na perspetiva de Carl, esse passo fora também muito favorável: três dos beneficiários do Fundo Fiduciário tinham sido removidos do escudo de proteção do pai e para
longe da jurisdição e tutela do governo dos Estados Unidos da América, para uma ilha isolada
onde estavam muito mais vulneráveis e acessíveis às atenções dos amigos de Johnny Congo.
Carl elaborou os seus planos com grande minúcia e atenção aos detalhes. Congo participou com entusiasmo nesse empreendimento. Dispunha de contactos nos cartéis de
cocaína nas Honduras e na Colômbia, os quais estavam sempre interessados em ganhar uns dólares extra em projetos secundários e mais mundanos.
O contacto de Johnny nas Honduras era um indivíduo chamado Sefior Alonso Almanza, cujo quartel-general se situava no porto de La Ceiba, onde operava duas velozes
lanchas de longo percurso. com doze metros de comprimento. Eram geralmente usadas para o contrabando de cocaína a coberto da noite, para o norte do México. Texas
ou Louisiana. No entanto, nesses últimos tempos a guarda costeira americana tinha-se tornado um pouco problemática, de modo que as suas potentes embarcações estavam
subaproveitadas
A distância entre La Ceiba e as ilhas Caimão era inferior a quinhentas milhas marítimas: um trajeto fácil e quase um passeio para as enormes e rápidas lanchas Chris-Craf
t.
- O Alonso é um bom tipo, de absoluta confiança. Não tenho remorsos em despachar alguém desta pra melhor se o preço for atrativo. Acho que não conseguíamos arranjar
ninguém mais indicado - disse Johnny Congo a Carl.
- Agrada-me a descrição que fazes dele, e os preços que ele pede são em conta. Mas e quanto ao reconhecimento inicial? Tens alguém lá na Grande Caimão que possa
fazer isso para nós?
- Não há problema, lindinho. - A alcunha, que começara por ser deliberadamente pejorativa, tornara-se agora num termo carinhoso entre os dois. - Há também um agente
imobiliário em George Town que chegou a fazer uns trabalhinhos pra mim. Nada melindroso. Basta dizer-lhe que queremos fazer uma oferta anónima por uma propriedade
na ilha e que precisamos duma descrição completa de tudo o que contém, incluindo o pessoal doméstico e ocupantes.
- Contacta-o então, Negrão. - Qualquer outra pessoa que chamasse isso a Johnny Congo na cara sofreria uma morte prematura e dolorosa. - Acima de tudo, precisamos
de obter informações sobre as medidas de segurança na propriedade. Se conheço bem o meu pai, e posso garantir-te que sim, devem ser apertadas. Vamos precisar de
saber em que quarto dorme a minha mãe e onde podemos encontrar as minhas duas irmãs. Quase apostava que os quartos delas são logo ao lado do da querida mamã.
O contacto de Johnny Congo na Grande Caimão era um inglês aposentado, chamado Trevor Jones, que decidira passar os seus dias de reforma numa ilha paradisíaca tropical.
No entanto, para seu grande desgosto, descobrira que o paraíso saía a um preço caro e que a sua pensão não dava para esticar tanto como esperara. De bom grado aceitara
aquela lucrativa missão proposta por Carl Bannock. Conseguiu obter, no gabinete de topografia do governo, uma cópia da planta da propriedade The Moorings, a residência
dos Bannocks junto à praia. Depois tratou de desencantar uma antiga criada de quarto da Sra. Marlene Bannock que tinha sido despedida das suas funções por ter roubado
um par de anéis de pérola da caixa de joias da Menina Sacha Bannock. Chamava-se Gladys e abandonara The Moorings com um rancor de todo o tamanho.
Juntos, Gladys e Trevor Jones examinaram atentamente a planta da casa. Ela mostrou-lhe em que quartos os três membros da família dormiam e onde se situava a sala
dos guardas de segurança. Conhecia as rotinas de patrulha dos guardas. Havia máquinas de marcar o ponto dispersas por vários locais da propriedade que mantinham
os guardas a cumprir um rigoroso horário de trabalho. Os turnos mudavam a horas muito precisas, de modo que os movimentos dos guardas eram previsíveis. Gladys também
lhe forneceu uma lista do pessoal doméstico. A maior parte dos empregados tirava folga ao domingo e só retomava as suas funções após o fim de semana.
Gladys conhecia a localização exata de cada um dos numerosos sensores de alarme espalhados pela propriedade. Obviamente que as palavras-passe tinham sido substituídas
depois de ela ter sido despedida, mas o seu companheiro continuava empregado em The Moorings como ajudante de cozinha e de bom grado lhe forneceu as novas palavras-passe.
A brecha através do recife de coral estava assinalada com balizas luminosas, bem como o canal de acesso ao ancoradouro à frente de The Moorings. Jones saiu no seu
pequeno barco de pesca a remos e procedeu a algumas medições furtivas, bem como a um ou dois outros preparativos. Durante a maré alta na primavera, o canal tinha
uns bons três metros de profundidade no ponto mais baixo. havendo, pois, água mais do que suficiente mesmo para uma das enormes lanchas Chris-Craft.
Todo este pacote de informações foi enviado a Johnny Congo. O custo total para Carl ficou abaixo dos quatro mil dólares, o que ele considerou um ótimo negócio.
As informações foram depois reencaminhadas para o Seior Alonso Almanza, em La Ceiba, juntamente com detalhadas instruções adicionais e um pagamento antecipado, por
transferência bancária, de setenta e cinco mil dólares, até à finalização do contrato no valor de duzentos e cinquenta mil dólares.
- Vou contar-te um pequeno segredo, Negrão. - Carl dirigiu um sorriso a Johnny Congo. - Quando tens dinheiro suficiente. podes fazer e ter tudo o que quiseres. Ninguém
te consegue dizer não.
- Nem mais, lindinho! Dá cá mais cinco! - Johnny ergueu a mão direita e bateram as palmas das mãos.
70
Vinte e oito dias mais tarde, a lancha Pluma de Mar do Sefior Almanza aproveitou a claridade da lua cheia para atravessar furtivamente a brecha no recife e entrar
na baía Old Man na costa norte da Grande Caimão. O casco estava pintado de preto mate, de modo que era quase invisível, mesmo com o luar. Zarpara de La Ceiba ao
meio-dia no dia anterior e a sua chegada ao destino tinha sido programada exatamente para as três menos um quarto da madrugada de domingo, a hora das bruxas, quando
apenas salteadores, lobisomens e piratas deveriam rondar a escuridão.
O Pluma de Mar transportava uma tripulação de onze elementos. Usavam fatos de treino pretos e capuzes escuros na cabeça, com fendas para os olhos e para a boca.
Prenderam a embarcação a uma das boias sinalizadoras do canal, a setenta metros da orla da praia onde se situava The Moorings. Trevor Jones tinha colocado um minúsculo
rádio na boia para se orientarem. Deixaram um tripulante a bordo para tomar conta da embarcação e lançaram à água um bote insuflável de motor fora de borda e movido
a bateria que os transportou em silêncio até à margem.
Alcançaram a praia às três horas em ponto, quando as patrulhas de segurança se tinham reunido na sala da guarda para a mudança de turno e para tomarem café. Dois
dos homens mascarados apressaram-se a desativar os sensores de alarme e a desimpedir o caminho para os companheiros que seguiam atrás. Quando o grupo de assalto
irrompeu pela sala da guarda, apanharam completamente de surpresa os quatro homens aí reunidos. Poucos minutos depois, já os tinham amordaçado e amarrado com fita
adesiva e desligaram o sistema de alarme no principal painel de controlo.
Depois precipitaram-se em redor da piscina e arrombaram a porta da casa com um pé-de-cabra. Sabiam exatamente para onde se dirigiam: atravessaram as salas de estar
e subiram a escadaria principal até às suítes. Dividiram-se em três grupos ao chegarem ao topo das escadas. Cada grupo avançou com rapidez para a suíte que lhe tinha
sido destinada. Invadiram as divisões enquanto os ocupantes ainda dormiam profundamente. Arrancaram-nos das camas e amarraram-lhes os punhos com fita adesiva. De
seguida, arrastaram-nos pela escadaria abaixo, em direção ao terraço da piscina, que estava discretamente resguardado por muros altos e por vegetação tropical, de
modo a permitir às mulheres Bannock tomarem banhos de sol nuas.
Um dos elementos do bando tirou uma câmara de filmar da mochila. Era um realizador de Guadalajara, no México, especializado em filmes pornográficos hardcore. Disse
num inglês sofrível às três prisioneiras que choravam aterrorizadas: - Chamo-me Amaranthus. É com prazer que vou fazer documentário sobre vocês. Por favor, não façam
caso de mim e tentem não olhar pra lente da minha câmara, a não ser que vos peça. - Recuou ligeiramente e apontou-lhes a câmara.
O líder do bando postou-se à frente delas. - Sou o Miguel. Vão fazer o que vos disser, senão vão-se arrepender. Nome? Nombre? - gritou-lhes, obrigando cada uma delas
a dizer o nome à vez, virada para a câmara de Amaranthus. Sacha Jean estava emudecida de terror. Bryoni falou pela irmã e disse o nome dela.
- É a minha irmã, Sacha Jean Bannock. Está doente. Por favor. não lhe façam mal.
Sacha caiu de joelhos e borrou as calças do pijama, num som explosivo. Miguel riu-se e deu-lhe um pontapé. - Vaca porcalhona! Levanta-te! - Voltou a pontapeá-la.
Bryoni estendeu as mãos atadas e ajudou Sacha a erguer-se.
O líder do bando virou-se para Marlene e tirou do bolso uma tira de papel. - Estas são as ordens que recebi. - Leu no seu carregado sotaque hispânico: - Marlene
Imelda Bannock. Vais ser executada. A tua morte será testemunhada pelas tuas filhas Sacha Jean e Bryoni Lee. A tua execução vai ser filmada para todas as partes
interessadas poderem ver. Depois, as tuas filhas serão encarceradas para o resto da vida num país estrangeiro.
As pernas de Sacha cederam novamente. Bryoni não conseguiu ampará-la e Sacha caiu contra a borda de mármore da piscina. Enrolou-se na posição fetal enquanto gemia
numa voz estrídula. Começou a bater com a testa na borda de mármore, com tal força que uma das sobrancelhas se rasgou, empapando-lhe os olhos de sangue. Bryoni ajoelhou-se
ao lado de Sacha e tentou impedi-la de se magoar mais.
Marlene gritava, desesperada, enquanto os três homens a arrastavam: - Sê valente, Sacha! Não chores, minha filhinha. Toma conta dela, Bryoni.
Arrastaram-na pelas escadas da piscina e enfiaram-na na água, que lhe dava pela cintura. Potentes holofotes submersos iluminavam o cenário para Amaranthus, que se
ajoelhou junto à borda da piscina para filmar tudo.
Dois membros da tripulação sujeitavam Marlene pelos braços. Olharam para Miguel na borda da piscina.
Miguel disse-lhes: - Bueno! Enfiem-na debaixo de água. Forçaram a cabeça de Marlene sob a superfície da água. Um terceiro homem agarrou-lhe os tornozelos e ergueu-lhos
bem alto. A metade superior do corpo de Marlene ficou completamente imersa. Esperneou de forma frenética e todo o seu corpo se arqueou em convulsões tão violentas
que os homens tiveram dificuldade em a imobilizar.
- Chega! - gritou Miguel. - Tirem-na pra fora por uns segundos. - Os homens ergueram-lhe a cabeça e Marlene engoliu uma golada de água enquanto se debatia por ar.
Depois, jorrou-lhe da boca aberta um misto de água e vómito que a sufocou quando tentou respirar.
- Bueno, já chega. Voltem a enfiar-lhe a cabeça. - Enfiaram-lhe a cabeça debaixo de água no momento em que ela arquejava por ar, acabando por engolir uma nova golada
de água em vez de ar.
Continuaram a submergir-lhe a cabeça a intervalos cada vez mais longos, enquanto Marlene se debatia cada vez mais debilmente. Postado atrás da câmara, Amaranthus
queria aproveitar a cena ao máximo. Era uma das especificações estipuladas por quem lhe dera as ordens, e Amaranthus compreendia que aquilo deveria ser fascinante
para eles. Dilacerada e dividida entre o seu amor pela irmã e pela mãe, Bryoni deixou Sacha e rastejou para junto de Miguel, tentando agarrar-se às pernas dele.
- É a minha mãe. Por favor, não lhe façam isso. Miguel afastou-a com um pontapé e disse aos três homens na piscina: - E agora terminamos. Mantenham a velha megera
debaixo de água.
Uma última e violenta rajada de bolhas assomou à superfície enquanto os pulmões de Marlene se esvaziavam por completo. Ofereceu cada vez menos resistência, até finalmente
parar de se debater. - Ha muerto? - perguntou um deles? - Está morta? - No, esperar un poco más - ordenou Miguel. Bryoni tinha conhecimentos suficientes de espanhol.
Voltou a rastejar para junto de Miguel e agarrou-se de novo à perna dele. - Por favor, seior. Tenha piedade, suplico-lhe.
Dessa vez, ele assestou-lhe um pontapé na boca e Bryoni caiu para trás. Levou as mãos aos lábios que sangravam. - Daqui a nada será a tua vez - disse ele num tom
trocista. - Mas primeiro temos de provar essa tua caminha e a da tua irmã loca. - Puxou a manga para trás para ver as horas no relógio. Depois falou aos homens na
piscina. - Bueno! Já deve bastar. Levantem-na pra vermos.
Um dos homens agarrou uma mão-cheia de cabelos de Marlene e ergueu-lhe o rosto acima da água. Tinha a pele cerosa e pálida. Os olhos arregalados e fixos no vazio.
Melenas de cabelo tombaram-lhe sobre o rosto como algas expostas numa rocha durante a maré vazante. Escorria-lhe água da boca aberta.
- Deixem-na ficar aí - ordenou Miguel. Os homens largaram-na e dirigiram-se para as escadas, deixando o corpo de Marlene a flutuar de rosto para baixo.
- Já estamos aqui há muito tempo. Está na hora de ir - disse-lhes Miguel. - Limpem aquela gaja. - Apontou para Sacha. - El jefe mata-nos se sujarmos o lindo barquinho
dele com bosta.
Arrancaram a Sacha o pijama sujo e atiraram-na nua para a piscina, ao lado do cadáver da mãe. Um deles curvou-se sobre Bryoni e cortou-lhe a fita adesiva que lhe
prendia os punhos.
- Mete-te ali na água com a porcalhona da tua irmã e lava-lhe a merda - ordenou-lhe em espanhol.
Bryoni enfiou-se na água e aproximou-se de Sacha; lavou-lhe o corpo e limpou-lhe o sangue do ferimento por cima do olho, e depois ajudou-a a subir as escadas da
piscina, envolvendo-lhe os ombros com um braço. Sacha não parava de chorar e de olhar para o cadáver de Marlene a flutuar. - Que se passa com a mamã? Porque é que
ela não quer falar comigo, Bryoni? - Sacha voltara a regredir ao estado de uma criança de cinco anos.


CONTINUA

30
Saíram da mesquita através do portão principal e viraram na estrada em direção ao complexo residencial muralhado que Tariq lhe tinha indicado mais cedo nesse
dia como sendo a casa de Aazim Muktar. Avançaram rapidamente, com uma precisão quase militar, num grupo compacto com Hector no meio. Quando alcançaram a entrada
do complexo, os portões foram abertos do interior e todos marcharam para um pátio pavimentado. No centro erguia-se uma enorme figueira-de-bengala com ramagens amplas.
À sua sombra estava sentado um pequeno grupo de mulheres de rosto velado e crianças de tenra idade. Observaram com interesse enquanto Hector era obrigado a marchar
até aos degraus que conduziam à varanda coberta de um bangaló de telhado plano.
Era um edifício modesto e despretensioso, não o tipo de lar que se poderia esperar de um alto clérigo ou de um importante funcionário do governo. A maior parte
dos membros da escolta de Hector deteve-se na base das escadas, mas dois deles flanquearam-no e agarraram-lhe os braços para o conduzirem pelas escadas até à varanda.
Hector afastou-lhes as mãos num gesto irritado e eles não insistiram. Subiu os degraus dois a dois e parou no topo. A porta à sua frente estava aberta e atravessou-a
com passadas largas e determinadas, parando à entrada enquanto os seus olhos se adaptavam ao interior obscurecido que contrastava com o sol brilhante do pátio.
A divisão era espaçosa mas esparsamente mobilada, ao estilo árabe. A mobília estava alinhada ao comprido das paredes, deixando o centro da divisão despojado e
desimpedido. Aazim Muktar era a única pessoa presente. Estava sentado de pernas cruzadas em cima de uma pilha de almofadas de veludo verde, à frente de uma mesa
baixa. Levantou-se num movimento ágil e fez uma vénia, tocando na testa, nos lábios e no coração. Depois endireitou o corpo e falou numa voz pausada.
- É muito bem-vindo à minha casa, senhor Cross. - É muito amável da sua parte convidar-me, xeque Tippoo Tip. - Hector retribuiu-lhe a vénia.
Aazim Muktar esboçou uma ligeira careta perante o tom irónico dele. - Talvez seja melhor falarmos de forma aberta e franca, senhor Cross. Não é minha intenção
retê-lo mais do que o estritamente necessário. - O seu inglês era perfeito, educado e culto como o de um aristocrata britânico.
- Não esperaria menos de si, mulá Aazim Muktar. - Queira sentar-se, por favor. - Indicou-lhe uma cadeira de espaldar alto que obviamente fora ali colocada para
o convidado. Hector avançou sem hesitação e sentou-se. Estava em séria desvantagem, de modo que era essencial manter uma expressão dura e uma determinação austera.
Aazim Muktar sentou-se nas almofadas, virado para ele. Ambos se olharam fixamente, até que o mulá quebrou o silêncio.
- Sabia que conheci a sua mulher há uns anos, numa receção na residência do embaixador americano em Londres? Hazel Bannock-Cross era uma dama muito bela e superior.
Gostava dela e admirava-a imenso.
Hector inspirou lenta e profundamente. Não queria que a voz tremesse devido à raiva que lhe inundava cada célula do corpo. Quando respondeu, fê-lo num tom baixo
e neutro. - Então porque é que a mandou matar? Os olhos de Aazim Muktar eram escuros e expressivos. As pestanas, compridas e quase femininas, pareciam incongruentes
no meio daqueles traços masculinos tão vincados. Os seus olhos encheram-se lentamente de sombras de dor e mágoa. Inclinou-se para Hector e, por um momento, pareceu
prestes a estender a mão e tocar-lhe, mas conteve-se. Voltou a sentar-se direito e susteve o olhar irado de Hector.
- Peço a Alá e ao seu Profeta que me ouçam quando lhe digo que isso não é verdade, caro senhor. Não estive envolvido de nenhuma forma no homicídio da sua mulher.
- E eu digo-lhe, caro senhor, que as palavras fluem com leviandade dos lábios daquele que negoceia em palavras.
- Haverá alguma forma de o convencer? - perguntou o mulá numa voz calma. - Choro a morte dela quase tanto quanto você.
- Não consigo imaginar nada que me possa convencer disso - disse Hector. - Não há mais ninguém que tivesse um motivo,
a não ser você. O credo da retaliação e da morte por vingança está profundamente imbuído na sua religião, na sua cultura e na sua psique.
- Isso não é verdade, senhor Cross. Há também a luz do perdão que nos conduz. Não prestou atenção à súplica que lhe dirigi pessoalmente a si na mesquita hoje?
Implorei-lhe que pusesse fim a este círculo vicioso de morte atrás de morte.
- Ouvi o que você pregou - replicou Hector -, mas não acreditei numa única palavra.
- Assim sendo, parece que só me resta mais um recurso. - Qual? Também me vai matar? - Não, meu senhor. Não matei a sua encantadora mulher nem o vou matar a si.
É convidado na minha casa. Encontra-se sob a minha proteção. Dá-me licença por uns momentos, senhor Cross?
Hector não respondeu e Aazim Muktar levantou-se e saiu. Hector levantou-se da cadeira de um salto e moveu-se rapidamente pela divisão. Os olhos dardejaram-lhe
de um lado para o outro à procura de uma via de fuga, de uma arma com que pudesse defender-se. Não encontrou nada, a não ser livros e pergaminhos, e, quando olhou
através da janela, reparou que o pátio estava cheio de seguidores de Aazim Muktar. Estava desesperadamente encurralado.
O mulá voltou poucos minutos depois. - Desculpe-me, senhor Cross, mas tive de tratar dos preparativos finais para o levar para fora da cidade. Talvez não saiba
que se trata de um delito muito grave para qualquer pessoa que não professa a fé islâmica entrar nos locais sagrados da Medina e de Meca. A pena é a morte por decapitação.
Tenho um carro e um motorista à espera junto aos portões do complexo para o levar ao aeroporto de Jidá. Fiz uma reserva em primeira classe num voo da Emirates de
Jidá para Abu Zara. que parte às dez desta noite. Assim que tiver levantado voo, os seus homens na Cross Bow Security serão avisados da sua chegada. No entanto,
deve partir já de Meca.
Hector fixou-o, atónito e totalmente incrédulo. Não acreditava que iam libertá-lo. Não passava de mais um ardil, sabia-o bem. Tentou ver para lá do olhar franco
e da expressão sincera do mulá.
- Por favor, senhor Cross. É uma questão de vida e morte Tem de partir já. Segui-lo-ei num veículo separado. Voltaremos a ter outra oportunidade de falar no aeroporto
de Jidá, numa sala VIP que reservei.
Hector inclinou um pouco a cabeça, fingindo aquiescência Sabia que o motorista o levaria para o deserto, onde deparam depois com um pelotão de execução composto
por fanáticos religiosos. Provavelmente já lhe tinham até escavado a sepultura.
Por mais desvantajosa que seja a posição em que este cabrão me colocou, tenho mais hipóteses de sobrevivência lá no deserto do que encurralado aqui dentro, concluiu.
- É muito generoso... - começou por dizer, mas Aazim Muktar interrompeu-o.
- Aqui está o seu bilhete de avião. - Entregou a Hector um envelope com o timbre da companhia Emirates estampado na aba. Hector abriu-o e verificou o nome no
bilhete. Era o mesmo nome falso que constava do passaporte de Abu Zara com o qual viajava Claro, o traidor Tariq dera-lhe essa informação.
Hector ergueu a cabeça. - Parece estar em ordem.
- Muito bem! E agora, parta sem demora. Voltarei a vê-lo em Jidá.
Segurou na porta aberta para ele passar, e Hector desceu as escadas a correr para o pátio. Um sedã Mercedes preto cruzou de imediato o portão, vindo da rua. Estacionou
à frente de Hector. Um motorista barbudo e de turbante negro saltou do assento do condutor e abriu-lhe a porta de trás. Assim que Hector se instalou no assento,
o motorista fechou a porta e voltou a enfiar-se atrás do volante. Os discípulos abriram alas para deixar passar o Mercedes que seguiu pelo portão do complexo para
a rua. Hector olhou para trás através da janela na traseira. Aazim Muktar estava especado na varanda do bangaló a vê-lo partir.
Hector passou todo o trajeto até ao aeroporto de Jidá num tumulto de indecisão. Teria sido fácil estender a mão por trás do assento do motorista, imobilizá-lo
com um golpe de gravata e partir-lhe o pescoço. Depois poderia usar o Mercedes para fugir até à fronteira com Abu Zara. No entanto, a fronteira ficava a mais de
mil e quinhentos quilómetros de distância e o ponteiro do combustível no painel de instrumentos indicava menos de metade do depósito cheio. Só dispunha de alguns
dólares no bolso, insuficientes para atestar o depósito. Talvez o motorista tivesse algum dinheiro, mas duvidava. O homem provavelmente tinha um cartão de abastecimento
de combustível ou algum outro tipo de cartão de débito. Sem dinheiro, nunca conseguiria escapar. E, claro, assim que o alarme soasse, a polícia saudita emitiria
um alerta geral para todos os agentes na estrada. Não conseguiria percorrer cem quilómetros, e muito menos mil, até o apanharem. Pôs de parte essa ideia.
Depois pensou em Aazim Muktar Tippoo Tip e sopesou as probabilidades de ele ser inocente ou culpado: poderia acreditar e confiar nele? Quando o ouvira pregar
na mesquita, quase se deixara convencer. Contudo, agora que tinha sido libertado, tinha a certeza de que só podia ser um ardil. Sabia que devia haver outra surpresa
chocante à sua espera.
Havia um telefone no apoio de braço do banco traseiro do Mercedes e Hector levantou o auscultador, encostando-o ao ouvido. Ouviu um sinal de linha. Abriu o envelope
que Aazim Muktar lhe tinha dado e procurou o número de telefone do balcão do check-in da companhia aérea Emirates no aeroporto de Jidá. Marcou-o e, ao terceiro toque,
uma mulher atendeu-o. Deu-lhe os pormenores do seu bilhete.
- Pode confirmar, por favor, se a minha reserva está correta? - Queira aguardar um momento, senhor. - Houve uma breve pausa e depois a mulher voltou a falar.
- Sim, senhor. Estamos à sua espera. O seu check-in já foi confirmado online. O seu voo vai partir à hora prevista, às vinte e duas.
Hector pousou o auscultador. Tudo parecia bater certo, até certo de mais. Aquilo que finalmente o decidiu foi pensar em Hazel. Por respeito à memória dela, deveria
confrontar Aazim Muktar e levar as coisas até ao fim, por mais riscos que isso envolvesse. Quase conseguia ouvir a voz dela. Tens de o fazer, meu querido. Tens de
o fazer, senão tu e eu nunca mais teremos paz.
De modo que se acomodou no banco traseiro e deixou o motorista conduzi-lo a Jidá.
31
No portão de embarque no terminal das Linhas Aéreas da United Arab Emirates no aeroporto de Jidá, um porteiro em vestes tradicionais abriu-lhe a porta do Mercedes
e, com respeito cerimonioso, acompanhou-o até à sala privada que tinha sido reservada pelo mulá. Assim que ficou sozinho, Hector tentou abrir a porta e descobriu
que estava destrancada. Entreabriu-a um pouco e espreitou através da nesga. Não viu nenhum guarda postado no exterior. Por essa altura, sentia-se mais intrigado
do que receoso. Fechou a porta e olhou em redor da sala de espera luxuosamente mobilada. Tinha a boca seca devido ao gosto râncido do perigo.
De bom grado voltava a ser virgem em troca de um uísque decente, pensou, mas claro que não havia nenhuma bebida alcoólica forte à vista naquele bastião islâmico.
Bebeu um copo de água Perrier, serviu-se de um outro e levou-o consigo para uma das poltronas. Enquanto se sentava, ouviu alguém bater à porta.
- Entre - disse, e Aazim Muktar entrou. Certamente seguira de perto o Mercedes que transportara Hector desde Meca. No entanto, Hector ficou atónito quando o mulá
entrou acompanhado de uma mulher coberta da cabeça aos pés. Chorava baixinho por trás do véu. Conduzia pela mão um rapazinho de tez escura, com cerca de seis ou
sete anos. Era um menino encantador, com caracóis negros e olhos escuros e grandes. Estava a chuchar no polegar, com um ar infeliz e perplexo. Aazim Muktar fez sinal
à mulher, a qual se apressou a afastar-se para um dos cantos da sala, onde se sentou no chão, abraçando a criança contra o peito. Hector reparou no brilho dos olhos
dela por trás da burca enquanto o observava, e depois apercebeu-se de que ela recomeçou a chorar. Aazim Muktar, com uma ordem ríspida, advertiu-a que se calasse
e depois sentou-se numa poltrona virada para Hector.
- Dentro de quarenta e cinco minutos vão anunciar o embarque para o seu voo - disse ele a Hector. - É todo o tempo de que disponho para o convencer de que não
tive nenhuma responsabilidade no assassinato da sua mulher. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe que estou a par de quase todos os detalhes do trágico confronto entre
a sua família e a minha. Houve muitas mortes de ambos os lados Compreendo que, tendo sido você um oficial do exército, em certas ocasiões se justificasse matar em
cumprimento do dever. Houve alturas em que você fez justiça pelas próprias mãos. - Calou-se e olhou bem no fundo dos olhos de Hector.
- Continue! - incitou-o Hector, sem deixar transparecer nenhuma emoção.
- Aceito o facto de o meu pai e a maior parte dos meus irmãos serem piratas, agindo em contravenção direta do Direito Internacional. Capturaram navios mercantes
no alto-mar e retiveram as tripulações em troca de um resgate. Dissociei-me, ainda muite jovem, desses crimes cometidos pela minha família e fui para Inglaterra
para estar o mais longe possível deles. Nunca considerei ter qualquer direito de retaliação contra si ou contra a sua família Já lhe contei que conheci a sua mulher
e que a admirava. Fiquei profundamente devastado quando soube que a tinham assassinado. Foi um ato contra todas as leis do homem e de Deus. No entanto, sabia que
após a morte dela você me iria perseguir para aplacar os pecados cometidos pelo meu clã.
- Sou todo ouvidos.
- Há muito que eu receava o dia do nosso encontro, mas preparei-me para isso.
- Tenho a certeza que sim - ripostou Hector, cuja expressão era agora sombria.
- Não à sua maneira, já que você é um guerreiro experiente, senhor Cross, e a sua maneira é a linguagem da espada.
- Diga-me então, mulá Tippoo Tip. Em que consiste a sua maneira?
- No caminho de Alá. A minha maneira de agir é o perdão mútuo. A minha maneira é Al-Qisas. Ofereço-lhe uma vida por outra vida. - Levantou-se e acercou-se do
pequeno volume de ibjeta humanidade amontoado no canto da sala. Agarrou a criança pela mão e fê-la parar à frente de Hector.
- Este é o meu filho. Tem seis anos. Chama-se Kurrum, que 'ignifica "felicidade". - O rapazinho voltou a enfiar o polegar na boca e olhou fixamente para Hector.
- É um menino bonito - acedeu Hector.
- É seu - disse Aazim Muktar em árabe, empurrando delicadamente a criança para a frente.
Consternado, Hector levantou-se da poltrona de um salto.
- Pelo amor de Deus, que pretende que faça com ele?
- Em nome de Alá, deve levá-lo e retê-lo como refém contra a minha boa-fé. Se encontrar provas irrefutáveis de que matei a sua mulher, deve matá-lo como é seu
direito, segundo a lei de Al-Qisas, e perdoar-lhe-ei.
A mulher gritou e arrojou-se no chão.
- É meu filho! É o meu único filho! Mate-me se tiver de o fazer, efêndi. Mas não mate o meu filho. - Rasgou o véu e esfacelou o rosto com as unhas compridas.
O sangue brotou dos arranhões profundos e escorreu-lhe do queixo. Rastejou até aos pés de Hector.
- Mate-me, mas poupe a vida ao meu filho, suplico-lhe.
- Cala-te, mulher. - O marido usou um tom amável. Pousou a mão no ombro dela e afastou-a para o fundo da sala. Depois voltou para junto de Hector. Das dobras
da túnica branca tirou uma carteira de couro e estendeu-lha.
- Está aqui toda a documentação de que precisa para poder levar o Kurrum consigo: o bilhete de avião dele, a sua certidão de nascimento, o passaporte e os documentos
que o nomeiam seu tutor legal. Qual é a sua decisão, senhor Cross?
Hector continuava absolutamente estupefacto. Aquilo era a última coisa que esperava. Olhou para a criança. Abanou a cabeça, como se para negar aquilo que estava
a acontecer. Estendeu a mão e acariciou a cabeça do rapaz, cujos caracóis crespos lhe assomavam sob os dedos. Kurrum não fez nenhum esforço para se esquivar ao contacto.
Ergueu a cabeça e olhou para Hector. Os olhos eram escuros e transpareciam uma sabedoria muito para além da sua idade. Falou baixinho: - O meu pai diz que devo ir
consigo, efêndi. O meu pai diz que agora sou um homem e que me devo portar como um homem. É essa a vontade de Alá.
Hector continuava sem palavras. Sentia a garganta seca e o sangue que lhe latejava nas têmporas ecoava-lhe no crânio como um tambor. Curvou-se para pegar na criança
e apoiou-a no flanco. Kurrum não se debateu. Hector tocou-lhe na face e depois virou-se para o pai do rapaz.
Conseguiu ver-lhe finalmente o âmago, e o que viu era bom Sabia por fim, sem lugar para dúvidas, que aquele homem não era a Besta que ele andava a perseguir.
Hector falou com a criança apoiada no seu flanco. - És meu refém, Kurrum. - A mãe do rapaz ouviu-o e lamentou-se. Hecto: não fez caso dela e continuou a falar
com a criança. - Sabes o que isso significa, Kurrum?
O menino abanou a cabeça e Hector prosseguiu: - Significa que és valente e bom, assim como o teu pai é valente e bom
- Pousou Kurrum no chão, virou-o para a mãe e deu-lhe um empurrão delicado. - Volta para junto da tua mãe, Kurrum, e cuida bem dela, pois agora és um homem como
o teu pai foi um homem antes de ti.
A mulher estendeu os braços e Kurrum correu ao seu encontro. Ela levantou-o do chão e avançou para a porta, mas deteve-se quando a alcançou e olhou para Hector
atrás de si, com lágrimas e sangue dos arranhões a escorrerem-lhe pelo rosto.
- Mestre... - começou ela por dizer, mas depois perdeu a voz.
- Vai! - ordenou-lhe Hector. - Leva o teu filho e que Alá te acompanhe. - Ela saiu e fechou a porta suavemente, deixando Hector e Aazim Muktar sozinhos na sala
espaçosa.
- Tem a certeza? - perguntou Aazim.
- Tanta certeza como alguma vez tive em relação a qualquer outra coisa na minha vida.
- Não tenho palavras que possam exprimir a minha gratidão. - Aazim fez uma vénia. - Ofereceu-me uma dádiva superior a tudo aquilo que eu jamais poderia imaginar.
Nunca lhe poderei retribuir.
- Já me pagou o que haveria a pagar. Só o simples facto de ter conhecido um homem santo como você enriqueceu a minha própria vida.
- Continuo em dívida para consigo. A vida do meu filho tem mais importância do que tudo o resto - disse-lhe Aazim com sinceridade. - Segundo sei, você chegou
a ver o homem que assassinou a sua mulher, o qual tinha a tatuagem característica de um certo gangue.
- Foi o Tariq Hakam que lhe contou isso! - A fúria de Hector voltou a inflamar-se. - Ele é um traidor. Traiu a minha amizade. Um dia vou matá-lo.
- Não, senhor Cross. Ele não é seu inimigo. - Hector abanou a cabeça com uma determinação intransigente, mas Aazim ergueu a mão para o impedir de continuar. -
Um dia irá compreender isso. Tariq Hakam pediu-me para lhe transmitir uma mensagem. Prometi-lhe que o faria. Posso comunicar-lhe o que ele me disse?
- Se assim o desejar.
- Ele disse que não havia nenhuma outra forma de o convencer de que estava a seguir o caminho errado na procura do inimigo. Disse que você e eu precisávamos de
nos compreender.
- Jamais o voltarei a aceitar como amigo, diga ele o que disser. Nunca poderei voltar a confiar nele.
- Tariq sabe isso.
- O que é que ele vai fazer agora?
- Está determinado a abandonar o caminho do guerreiro. A partir de agora, irá seguir o caminho que conduz a Alá.
- Com que então agora descobriu Deus e tornou-se um dos seus discípulos, é isso? Ainda bem para ele, o velho tratante.
- Velho tratante. Ele mencionou que você diria isso. - Aazim sorriu. - No entanto...
Calou-se, interrompido por uma voz feminina que ecoou através do sistema de sonorização: Última chamada para todos os passageiros do Voo EK 805 da Emir ates para
Abu Zara. Embarque na Porta A2 f. Os passageiros devem dirigir-se para a Porta A26 para procederem de imediato ao embarque.
- O nosso tempo juntos chegou ao fim, senhor Cross. Quando vivi em Londres, trabalhei com um homem que dedica a vida - ajudar a reabilitar rapazes muçulmanos
apanhados na malha dos gangues criminosos de rua a operar nas principais cidades do Reino Unido. Vou enviar-lhe uma mensagem para entrar em contacto consigo. Talvez
ele consiga ajudá-lo a localizar o homicida com a tatuagem Maalek. Talvez assim você possa identificar sem margem para dúvidas o seu inimigo oculto.
- Como vai fazer para que esse homem entre em contacto comigo, Aazim Tippoo Tip? Você não sabe onde vivo.
- Desde que Brandon Hall foi arrasado pelas chamas, você mudou-se para o número onze de Conrad Road, em Belgravia.
O seu principal endereço eletrônico é cross@crossbow.com, mai tem muitos outros. Estou correto, senhor Cross?
Hector inclinou a cabeça num gesto de aquiescência irónica.
- O Tariq contou-lhe tantas coisas sobre mim. Não me surpreenderia se você soubesse que número calço.
- Onze e meio, pelas medidas americanas - replicou Aazim sem sorrir, mas Hector riu-se alto.
- Adeus, Aazim Tippoo Tip. Nunca o esquecerei.
- Nem eu, senhor Hector Cross. Posso-lhe dar um aperto de mão?
Hector estendeu-lhe a mão e olharam-se nos olhos.
- Que Alá o acompanhe, senhor Hector Cross.
- Reze por mim, xeque Tippoo Tip. - Hector deu meia-volta e saiu sem olhar para trás, dirigindo-se para a Porta de Embarque A26.
32
Embora já passasse da meia-noite quando Hector chegou à pen- thouse de Seascape Mansions em Abu Zara, convocou de imediato um conselho de guerra para a sala de
cinema privada.
À medida que os elementos da equipa foram surgindo, cumprimentaram Hector com entusiasmo, mas depois olharam em redor à procura de Tariq Hakam. Hector não fez
nenhum esforço para lhes mitigar a curiosidade até todos estarem sentados nas filas de assentos, virados para ele no estrado.
- E então, onde está o Tariq? - Foi Nastiya quem fez a pergunta em nome de todos eles.
- É uma longa história - esquivou-se Hector.
- Está bem. Então trata de a encurtar - sugeriu Nastiya.
- Continua em Meca. - Ninguém se moveu. Ninguém falou. Hector viu-se forçado a prosseguir. Fez um relato conciso, despojado de pormenores e comentários. A tensão
na sala aumentou progressivamente enquanto falava. Contou-lhes tudo, exceto a despedida final no aeroporto de Jidá e a proposta de um refém por parte de Aazim. Quando
terminou, todos se fixaram nele num silêncio sombrio. Nastiya quebrou o feitiço daquele horror coletivo. Era a única pessoa na sala que não temia Hector Cross.
- Com que então o Tariq era o traidor durante este tempo todo. Traiu-te a ti e a nós todos. Porque é que não o mataste, Hector?
Hector tinha-se preparado para aquele interrogatório durante o voo de regresso de Meca. Bombardearam-no com perguntas e dúvidas durante quase mais trinta minutos.
Hector descreveu-lhes em detalhe o sermão de Aazim Muktar na mesquita, repetindo-o quase palavra por palavra.
- E acreditaste nele, não foi, Hector?
- Foi muito convincente. Mas não acreditei verdadeiramente nele. Pelo menos, não nessa altura. Só quando ele me ofereceu o filho de seis anos como refém. Nesse
momento acreditei nele. Despiu a alma perante mim e deu-me o seu filho. Soube então que ele estava do lado dos anjos. Tive a certeza de que ele não tinha planeado
o assassinato da Hazel.
- Se ele te propôs esse tal refém, Hector, então onde está o rapaz agora?
- Aceitei-o como refém, sim, mas depois entreguei-o à mãe dele.
- Estás maluco da cabeça, Hector Cross? - exclamou Nastiya.
- Há quem possa pensar isso. - Hector sorriu e continuou:
- Mas depois Aazim Muktar Tippoo Tip forneceu-me a prova definitiva da sua inocência.
- Que prova era essa, seu tonto?
- Embora me encontrasse completamente à mercê dele, deixou-me embarcar no avião para regressar incólume aqui a Abu Zara.
Paddy O'Quinn soltou uma risada sonora e deu uma palmadinha no joelho da sua mulher. - O Hector tem razão, minha querida. Não há prova mais convincente do que
essa. Agora, até eu acredito em Aazim Tippoo Tip.
A tensão na sala dissipou-se e todos trocaram acenos de cabeça e sorrisos de complacência. Mas Nastiya afastou a mão de Paddy do seu joelho e desafiou Hector
pela última vez. - Sendo tu o cavalheiro inglês que és, tenho a certeza de que até deste um aperto de mão a esse mulá assassino, assim como tenho a certeza de que
nem sequer vais matar o Tariq Hakam, estou correta?
- Não consigo esconder nada de ti, czarina. Sim, dei um aperto de mão a Aazim Tippoo Tip e não vi nenhum sangue nela. E sim, deixei que o Tariq Hakam fosse ao
encontro do seu Deus
- admitiu Hector, levantando-se. - Se queres que te diga a verdade, sinto-me melhor por ter feito essas duas coisas. E agora, preciso de algumas horas de sono. Voltamos
a encontrar-nos aqui pela manhã, a seguir ao pequeno-almoço, para refletirmos sobre a nossa situação.
- Posso dizer-te, de borla, qual é exatamente a tua situação, Hector Cross. Voltaste à estaca zero e podes considerar-te um verdadeiro sortudo por estares aqui.
- Nastiya tentou soar austera, mas havia uma leve centelha de tristeza nos seus olhos.
33
Hector segurava Catherine no colo enquanto lhe dava o biberão. A bebé emitia pequenos grunhidos de satisfação enquanto atacava a tetina com gosto, totalmente
alheia à plateia interessada que estava sentada nas filas ascendentes na sala de cinema.
- És o único homem que conheço que consegue maquinar caos e morte ao mesmo tempo que alimenta um bebé - comentou Paddy O'Quinn, mas Nastiya assestou-lhe de imediato
um soco no braço.
- Não percebes nada de bebés, marido. Observa o Hector e cala-me essa boca.
- Já chega, meus meninos. Parem lá de brigar e acalmem-se. Temos trabalho a fazer - admoestou-os Hector. - Ontem à noite não quis discutir com a Nastiya quando
ela disse que tínhamos voltado à estaca zero. Mas isso não é inteiramente verdade. Continuamos a dispor de uma ténue pista a partir da qual podemos trabalhar. Isto
foi-me sugerido pelo próprio Tariq Hakam. Dou-lhe todo o crédito por isso. Estávamos a discutir como é que a Besta montou a emboscada à Hazel e o Tariq fez-me uma
pergunta simples. Disse: "Como é que eles sabiam?"
Hector calou-se e deixou-os assimilar aquela informação. Depois repetiu: - Como é que a Besta sabia que a Hazel ia nesse dia a uma consulta no ginecologista em
Londres? - Todos se agitaram nos seus lugares e emitiram murmúrios de concordância.
- As únicas pessoas do nosso lado que sabiam eram a Hazel, e a Agatha, a assistente pessoal dela, que marcou a consulta. Trlefonei à Agatha ontem à noite e ela
jurou a pés juntos que não tinha contado a ninguém. Ficou muito perturbada por eu ter feito essa insinuação. Trabalhou durante quinze anos para a Hazel e é absolutamente
de confiança.
- O ginecologista da Hazel sabia - aventou Nastiya.
- Sim, tens razão. O doutor Donnovan sabia. Vou regressar a Londres esta tarde para falar com ele, mas vai ser um pouco embaraçoso insinuar que ele quebrou a
confidencialidade com a sua paciente. Quero que o Paddy e a Nastiya venham comigo, e, sim, Dave, já reparei nesse teu olhar ansioso. Também podes vir connosco. É
bem provável que venhamos a precisar de ti. - Dave Embiss sorriu de alívio. Hector prosseguiu: - Por agora, a Catherinne ficará em segurança aqui em Seascape, entregue
aos bons cuidados da Bonnie e da sua equipa de apoio. - Verificou as horas no relógio de pulso. - São nove e treze. Há um voo que parte às onze e trinta para o aeroporto
de Heathrow, em Londres. Se todos puserem esses cus a mexer, conseguimos lá chegar a tempo.
34
Os quatro jantaram nessa noite no nº 11. Sentado à cabeceira da mesa, Hector ergueu o copo na direção dos outros. - Acabo de me dar conta de que passaram exatamente
quatro meses desde que a Hazel me deixou. Parece-me que foi há muito menos tempo. Sempre que entro nalguma divisão desta casa, estou à espera de a ver. Gostava que
se juntassem a mim num brinde à sua paz eterna.
Horas mais tarde, quando Paddy e Nastiya subiram para a sua suíte, a russa sentou-se à frente do toucador enfiada num roupão de seda cor-de-rosa para escovar
o cabelo. Observou Paddy pelo espelho, deitado na cama a ler o jornal vespertino. - Sabes do que o Hector precisa? - perguntou-lhe.
- Diz lá - grunhiu ele enquanto virava a página.
- Precisa de uma boa mulher na cama dele para o ajudar a esquecer.
Paddy soergueu-se de repente, alarmado, amarfanhando inadvertidamente a folha do jornal. - Não te atrevas a sugerir-lhe isso' Ele mata-te, meu docinho de coco
russo desnaturado.
- Desnaturado não sei o que é. Docinho de coco sei o que é e é bom e delicioso. Se quiseres, posso-te dar a provar um bocadinho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Hector encontrou um lugar para estacionar em Harley Street e caminhou ao longo de meio quarteirão até à clínica de Alan Donnovan.
Subiu as escadas em vez de usar o elevador e, quando entrou na área da receção, encontrou-a vazia. Aguardou alguns segundos junto à secretária de atendimento, até
que a rececionista voltou do consultório de Alan com um conjunto de dossiês de pacientes.
- Lamento tê-lo feito esperar, senhor Cross.
- Não tem mal, Victoria. - A rapariga pareceu ficar um pouco perturbada ao vê-lo, mas Hector atribuiu-o à pressão de trabalhar para um homem como Alan.
- O doutor Alan está bastante atrasado. Não quer aproveitar para tratar de outro assunto que possa ter de resolver?
- Não há problema. Não tenho pressa. Posso esperar - disse-lhe Hector.
Victoria amontoou os dossiês em cima da sua secretária. Tinha um iPhone S4 na mão livre e pousou-o ao lado da pilha de dossiês quando o intercomunicador tocou.
- Peço desculpa, senhor Cross, mas parece que hoje tudo acontece ao mesmo tempo. - Levantou o auscultador e disse: - Sim, doutor Donnovan. Sim, de imediato. -
Pousou o auscultador. - Por favor, queira-me desculpar outra vez, senhor Cross.
Encaminhou-se para as salas interiores. Deixou o iPhone pousado ao lado dos dossiês. Hector reparou que o aparelho era idêntico ao seu. Algo lhe acudiu à mente
e, de repente, tudo pareceu encaixar no devido lugar. A resposta ao enigma estivera ali, mesmo à frente dos seus olhos. Não prestara atenção a Victoria, como se
ela não passasse de uma peça de mobília. Sentiu-se mortificado pelo facto de não se ter dado conta disso muito antes.
- Ouça, Victoria - disse ele enquanto ela se afastava.
- Acabo de me lembrar de uma coisa que preciso de fazer. De qualquer modo, também não era imperioso que eu falasse hoje com o doutor Donnovan. Por favor, cancele
a minha consulta. Volto a ligar-lhe na próxima semana para marcar outra.
- Oh, tem a certeza? Muito bem, mas lamento muito que tivesse de esperar, senhor Cross. - Apressou-se na direção da porta do consultório de Alan.
Enquanto a porta se fechava, Hector inclinou-se sobre a secretária e agarrou no iPhone da rapariga. Fez deslizar o seu próprio telemóvel da bolsa que levava ao
cinto e trocou-os. Só esperava que demorasse algum tempo até ela se dar conta daquela troca. Não o preocupava a possibilidade de poder deixar informações vitais
nas mãos da rapariga. Dave Imbiss tinha-o ensinado a manter o telemóvel inviolável. Saiu da clínica e desceu para o local onde estacionara e regressou ao nº 11,
onde encontrou os outros três membros da sua equipa na biblioteca.
- Não demoraste muito tempo. Não esperávamos que voltasse tão cedo - disse Dave Imbiss.
- Fui buscar-te um pequeno presente. Aqui tens. - Atirou-lhe para as mãos o iPhone de Victoria.
- Obrigadíssimo. - Dave apanhou o telemóvel num gesto ágil. - Mas já tenho um.
- Um como este não tens de certeza - garantiu-lhe Hector
- O que quero que faças é que o leves para a oficina e lhe saques todo e qualquer pedacinho de informação. Quero a lista completa dos números de contacto que encontrares.
Todas as mensagens recebidas e enviadas, de voz e SMS. Quero cópias de todos os vídeos gravados no cartão de memória. Quero que analises com uma atenção especial
tudo aquilo que datar desde a semana em que a Hazel morreu até ao dia de hoje.
- Onde arranjaste isto? - Dave examinou o iPhone com uma súbita atenção compenetrada, revirando-o nas mãos e sem nunca olhar para Hector enquanto lhe fazia perguntas.
- Pertence a alguém? Como é que lhe conseguiste deitar a mão?
- Roubei-o à rececionista lá na clínica do Alan Donnovan. O Alan era o ginecologista da Hazel. A rececionista chama-se Victoria Vusamazulu. É uma rapariga africana,
bonita e baixinha, e o nome dela em zulu é um grito de guerra político que significa "Despertar a Nação Zulu". Quanto à nação não tenho bem a certeza, mas, no respeitante
aos atributos físicos dela, não tenho dúvida de que conseguiria despertar uns quantos mortos. Provavelmente já se deu conta de que troquei o meu telemóvel pelo dela,
mas posso continuar a empatá-la até amanhã. Portanto, tens até amanhã para lhe sacares do telemóvel tudo o que conseguires. Para além do patrão dela, a Victoria
era a única pessoa que sabia que a Hazel ia a Londres no dia da emboscada.
Dave sorriu deleitado perante aquele desafio. - Não vai ser preciso tanto tempo. Esta pequena zulu em breve deixará de ter segredos para mim. Com licença, malta.
Hector resistiu à tentação de seguir Dave até à oficina na cave. Dave era um dos melhores no seu ramo, mas trabalharia melhor ainda sem que o acossassem com conselhos
não solicitados. Hector deixou-o ocupar-se da tarefa e foi para o seu estúdio.
Agatha tinha digitalizado toda a informação de Hazel desde os tempos em que começara a trabalhar como sua assistente pessoal. Deixara-lhe na escrivaninha um disco
externo que continha todo esse acervo: muitas centenas de gigabytes.
Agora que o rasto do assassino de Hazel esfriara em Meca, Hector estava determinado a voltar diretamente ao início da deslumbrante carreira de Hazel para tentar
identificar todos os rivais que ela antagonizara ao longo do seu percurso. Por muito que a tivesse amado, Hector em momento algum duvidara da capacidade de Hazel
para fazer inimigos. Hazel lutara com unhas e dentes para chegar ao topo e nunca recuara perante uma luta.
Quem passa toda uma vida a abalar montanhas, a revolver os oceanos e a desbravar selvas, como Hazel fez, acaba por espantar e afugentar algumas criaturas bem
assustadoras. Hector iniciou nova busca de uma dessas criaturas. A mais perversa e vingativa de todas; o inimigo que faria um grande tubarão branco parecer-se com
um Chihuahua desdentado.
Passadas apenas duas horas desde que começara a trabalhar, intercomunicador tocou. Era Agatha.
- Bom dia, senhor Cross. Tenho em linha a rececionista da clínica do doutor Donnovan. Tentei dizer-lhe que a altura não era oportuna, mas ela foi bastante insistente.
Posso passar-lhe a chamada?
- Obrigado, Agatha. Pode passar-ma. - Fez uma anotação mental para ter uma conversa séria com Agatha. Precisava urgentemente de uma assistente pessoal e ela seria
perfeita para esse cargo. Trabalhara para Hazel durante toda a sua vida e talvez agora pudesse transferir essa lealdade para ele. Um benefício secundário a desse
acordo era que não correria nenhum risco de um eventual envolvimento afetivo. Pôs esse pensamento de lado e atendeu a chamada: - Cross.
- Peço desculpa por o incomodar, senhor Cross. Daqui fala Vicky Vusamazulu. Parece que houve um engano. Reparei na sua primeira visita à clínica que o senhor
tem um iPhone S4 igualzinho ao meu...
- Sim, tenho - respondeu Hector, lamentando-se logo de seguida: - Oh, raios. Agora percebo o que deve ter acontecido. Não tenho conseguido ativar o meu telemóvel,
está sempre a recusar a minha palavra-passe. Estava junto à sua secretária esta manhã quando saí da clínica. Lembro-me que ia fazer uma chamada, mas depois mudei
de ideias e fui à casa de banho. Só aí é que me dei conta de que tinha deixado o meu telemóvel na sua secretária. Voltei para a receção. Você não estava lá, mas
vi um iPhone em cima da secretária. Pensei que era o meu e levei-o. As minhas sinceras desculpas, Vicky. Que estupidez a minha. Por acaso não tem aí consigo o meu
telemóvel, pois não?
- É por esse motivo que lhe estou a ligar, senhor. Tenho aqui o seu telemóvel. Sei que é o seu porque o senhor escreveu o número dentro da tampa de trás. O meu
tem muitas informações confidenciais. Posso ir a sua casa hoje depois do trabalho para trocar- os telemóveis?
- Vai ter de me desculpar, Victoria. Vou sair dentro de alguns minutos e só voltarei bastante tarde. Mas se, tal como diz, contém informações confidenciais, levarei
o seu telemóvel comigo. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia. Passo aí na clínica pela manhãzinha para trocarmos os telemóveis.
- Oh, meu Deus! Não consegue arranjar um tempinho hoje? é um grande contratempo para mim.
- Lamento, Victoria. Amanhã antes das dez, prometo-lhe.
- Desligou antes que a rapariga pudesse voltar a protestar.
Poucos minutos após as cinco da tarde, Dave Imbiss ligou-lhe através do intercomunicador.
- Desculpa. Demorou mais do que pensava. Essa jovem mazulu é uma pequena megera astuta. Pôs toda uma série de armadilhas no aparelho dela. Mas consegui sacar tudo
o que querias.
- Excelente trabalho. Conta-me.
- É melhor vires cá dar uma olhada e ouvires por ti mesmo. Vamos precisar de usar a sala de cinema. Tenho cerca de uma hora de vídeos para te mostrar. Antes de
vires, devias tomar um calmante ou até dois. Vais ficar impressionado com o que tenho para te mostrar.
- Estou aí dentro de cinco minutos. Liga ao Paddy e à Nastiya para se juntarem a nós neste espetáculo de gala.
Paddy e Nastiya estavam sentados no meio da segunda fila de assentos quando Hector entrou na sala de cinema. Dave estava ocupado com o equipamento eletrônico.
Ergueu a cabeça assim que Hector levantou a perna comprida para transpor a primeira fila e sentar-se no lugar ao lado de Nastiya.
- Lamento desapontar-vos, pessoal. Não vamos ter anúncios publicitários. Portanto, vou direto à atração principal - disse-lhes Dave. - Em primeiro lugar, algumas
conversas selecionadas. Um facto que a maior parte dos utilizadores de um iPhone desconhece é que nada fica perdido para sempre, por mais vezes que uma pessoa elimine
a informação, podemos sempre recuperá-la. A jovem Vusamazulu fez duas tentativas para eliminar esta conversa em particular, mas ei-la aqui de novo, gravada no dia
em que a Haze teve a última consulta com o Alan Donnovan. - Dave começou a reproduzir a gravação áudio. O primeiro som era o simples toque de chamada de um telemóvel
e, imediatamente a seguir, ouviu-se um clique quando a chamada foi atendida do outro lado da linha Fez-se uma pausa e depois falou uma voz feminina.
"Olá. És tu, Aleutian?"
A resposta foi imediata. "Já te disse para não mencionares nomes, sua cadela." A cadência era a do hip-hop americano. O tom era arrogante.
O leve arquejo de contrição da mulher era quase inaudível. Depois, a sua voz adotou um tom de súplica submissa: "Desculpa Já me tinha esquecido."
"Então não te esqueças de apagar depois o registo desta chamada quando terminarmos. E agora, conta-me! Ela já chegou?"
"Sim, está cá. Mas o marido já saiu. Disse ao doutor que voltava à uma e meia."
"Ótimo!", disse a voz masculina, e a chamada terminou. Dave desligou a gravação áudio. Todos ficaram em silêncio durante alguns momentos.
Depois, Hector disse: - Aleutian. Foi esse o nome que ela usou?
- Parece que sim. De qualquer modo, provavelmente é uma alcunha do submundo do crime, um nome de guerra. Não o nome que o tipo usa no passaporte, como deves imaginar.
- Volta a passar a gravação.
Dave puxou a conversa atrás e reproduziu-a de novo. Todos se inclinaram para a frente para ouvir. Quando a conversa terminou. Paddy concordou: - Aleutian. Definitivamente,
Aleutian. Portanto, pelo menos já temos um nome como ponto de partida.
- A data e a hora estão corretas. Deixei a Hazel na clínica do Donnovan e fui tratar de umas coisas na cidade - concordou Hector. - Que mais tens aí, Dave?
- A chamada seguinte foi às nove e quarenta e cinco dessa mesma noite - disse-lhes Dave. - Deste tal Aleutian a ligar à Victoria.
Reproduziu o telefonema. Ouviram-se quatro toques de chamada e depois a voz e a entoação inconfundíveis da rapariga.
"Olá. Fala a Victoria." "Vou aí buscar-te dentro de dez minutos. Espera por mim em baixo, à entrada da tabacaria. Vou num Volkswagen azul alugado."
"Estás atrasado. Tinhas dito às sete." "Pronto. Esquece. Posso arranjar outra gaja para hoje à noite. Não faltam ratas frescas por estas bandas."
"Não! Não era isso que eu queria dizer. Desculpa. Perdoa-me, por favor. Eu depois compenso-te. Prometo."
"Espero bem. Tou aqui a rebentar de tesão que nem imaginas. Victoria soltou uma risadinha. "És tão engraçado. Vem cá que eu alivio-te desse tesão todo, meu garanhão."
Hector interveio em voz baixa: - Na altura em que essa conversa erudita decorria, a Hazel estava em coma, com uma bala enfiada no cérebro e a poucas horas de morrer.
Paddy baixou a cabeça e remexeu-se inquieto. Nastiya agarrou na mão de Hector que estava pousada no assento entre ambos. Apertou-lha com força, mas continuou em
silêncio. Não havia nada que nenhum deles pudesse dizer para o confortar.
Dave tossicou e quebrou o silêncio. - Há mais quatro conversas entre os dois, mas é tudo no mesmo registo desbragado. Só ameaças e armanços de proezas sexuais da
parte dele e algumas recriminações dela. Mas não houve mais nenhuma chamada do tal Aleutian nestas últimas semanas. Tentei ligar para o número dele, mas está desligado.
- Ou ele lhe deu com os pés, ou então saiu do país há algumas semanas - aventou Hector.
- Largou-a simplesmente - disse Nastiya com grande determinação. - Os homens como esse Aleutian não costumam ficar mais que algumas semanas no mesmo sítio. Põem-se
ao fresco assim que conseguiram dar uma boa dentada no docinho de coco. - Virou-se para Paddy e franziu de forma sugestiva a sobrancelha perfeitamente delineada.
- Nada de piadas privadas aqui, por favor - advertiu-a Dave. - Mantenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto
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antenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto a chamadas telefónicas, é tudo, mas forneceram-nos algum material interessante. - Olhou para Hector. -
Se estiveres pronto, posso passar os vídeos.
- Podes prosseguir, Dave, por favor.
Dave diminuiu a intensidade das luzes e começou a reproduzir o primeiro vídeo que tinha copiado do iPhone. Ouviu-se imediatamente nos altifalantes uma cacofonia
de ruídos de fundo, vozes masculinas altas e estridentes gritos de riso femininos, música aos berros e o tilintar de garrafas e copos. No ecrã, as imagens eram confusas
e pouco nítidas enquanto o enquadramento da câmara oscilava de forma frenética do teto para o chão, detendo-se sobre uma mesa atulhada de garrafas de cerveja e copos
meio vazios e apresentando depois primeiros planos de pernas e pés. Depois estabilizou. A cena era obviamente o interior de um clube noturno sórdido. As mesas estavam
agrupadas em redor de uma minúscula pista de dança. A voz inconfundível de Victoria sobrepôs-se ao chinfrim.
"Toca a curtir, pessoal! Não se esqueçam que esta é a vossa audição para o Fator X." A lente focou-se num grupo de jovens sentados em redor de uma mesa atulhada
de bebidas e cinzeiros a transbordar de beatas. Alguns dos jovens lançaram olhares lúbricos na direção da câmara e ergueram os copos num brinde, outros tinham charros
enfiados em diversos ângulos nos cantos das bocas e sopravam baforadas de fumo, chegando um deles a enfiar o dedo pela garganta abaixo e a imitar sons de vómito.
A câmara focou-se numa atraente rapariga loira sentada no regaço de um rapaz na extremidade oposta da mesa e a voz de Victoria instruiu-a: "Vá lá, Angie. Faz
um truque de magia."
Angie enfiou os polegares na parte de cima do vestido e puxou-o até à cinta, expondo os seios grandes e brancos. Agarrou um em cada mão e apontou os mamilos para
a câmara. "Bangf Bang! Estás morto!", guinchou. A câmara estremeceu devido à risada geral que se seguiu e depois fixou-se no folião seguinte no círculo.
- Aqui vamos nós! - advertiu-os Dave Imbiss, parando o fotograma. Estavam a olhar para a imagem de um homem de pele escura. Hector calculou que teria pouco mais
de trinta anos. Tinha o cabelo empastado de gel, modelado na forma de um grande sol sobre a testa, e usava um blusão com as mangas enroladas acima dos cotovelos
e com o capuz lançado para trás. Os antebraços eram musculosos e tonificados, como se fizesse musculação num ginásio. Era bem-parecido, mas de um modo bruto, com
boca cruel e cínica. A sua expressão era premeditadamente interessada.
Dave deixou-os escrutinar a imagem durante mais algum tempo. - Creio que temos aqui o elo perdido do puzzle, o tipo que planeou e montou o golpe. Senhores e senhoras,
apresento-lhes o tal Aleutian.
Hector endireitou-se no assento e inclinou-se de imediato para frente, como um cão de caça cujas narinas acabassem de captar o cheiro da presa. - Temos mais gravações
desta beldade? - perguntou num tom mortiferamente glacial.
- Imensas. Imensas. A Victoria está de beiço caído pelo tipo. Parece que nunca fica satisfeita.
- Nem eu - murmurou Hector. - Quero-o a todo o custo. Continua, Dave.
O vídeo recomeçou e a voz de Victoria retomou os comentários.
Senhoras e senhores, homem mais estiloso do que isto é impossível. Apresento-lhes o senhor Estiloso em pessoa. Acena aos teus fãs. senhor Estiloso."
O Sr. Estiloso ergueu dois dedos em V e colocou o polegar entre ambos. Sem alterar a expressão que arvorava, enfiou o polegar na direção da lente, num gesto grosseiramente
obsceno. Victoria lançou um apupo e entoou: "Faz-me isso outra vez!".
O homem enquadrado pela lente reclinou-se para trás na cadeira e enlaçou as mãos por trás da nuca. Lançou uma piscadela à câmara. Dave voltou a congelar a imagem.
- Muito bem, malta, verifiquem só a mão esquerda dele - disse Dave, fazendo um zoom da mão. - É aquela a tatuagem vermelha?
- Sem tirar nem pôr, Dave. A tatuagem do Maalek. Mas temos a certeza de que este é mesmo o Aleutian? Ela não usou esse nome neste vídeo. Continua a passar a gravação.
Dave retomou a reprodução do vídeo, mas a câmara deixou de enquadrar o sujeito e Dave desculpou-se. - Não há mais nada neste vídeo. Mas não precisam de ficar
preocupados. Há muito mais em três dos outros vídeos, o suficiente para fazer vomitar um homem rijo.
- Vejamo-los então, por favor - ordenou Hector.
O vídeo seguinte era um plano amplo da pista de dança do clube noturno. A pessoa que estava a filmar postara-se certamente em cima de uma das mesas para conseguir
um tal ângulo elevado. Na orla mais próxima da pista de dança, Victoria Vusamazulu estava a dançar com o homem da tatuagem. Abanava as ancas, baloiçando a cabeça
de um lado para o outro, fazendo com que a comprida cabeleira postiça lhe caísse sobre a cara. O seu parceiro era bastante mais alto que ela. Tinha tirado o blusão
de capuz e a camisola de mangas cortadas que usava expunha-lhe a totalidade dos braços fortes e musculados. Hector conseguiu calcular-lhe a estatura comparando-o
com Victoria. Ela não lhe chegava sequer aos ombros.
Era alto, muito alto, e movia-se de forma ágil, com equilíbrio e coordenação. Era rápido nos movimentos de pés. Hector calculou que fosse um adversário perigoso.
De repente, o homem arrancou a cabeleira da cabeça de Victoria e rodeou-a, fustigando-lhe as costas e as nádegas com a cabeleira, como se ela fosse sua escrava.
A rapariga contorceu-se numa agonia fingida. O sujeito estendeu a mão para lhe desapertar o fecho que corria ao comprido das costas do vestido e abriu-o até à fenda
entre as nádegas. Ela agarrou a frente do vestido contra os seios, mas tinha as costas nuas e a pele escura reluzia de suor.
Os outros foliões rodearam-nos, acompanhando o ritmo da música e os seus movimentos primitivos com palmas, incitando-os com gritos estridentes e uivos de excitação.
O homem acercou-se por trás de Victoria, agarrou-lhe as ancas e puxou-a para si, golpeando-lhe as nádegas com o próprio sexo, numa paródia explícita de uma relação
anal. Ela lançava as nádegas contra ele com o mesmo vigor, correspondendo a cada uma das investidas dele e aguentando o assalto.
De repente, o ecrã escureceu e o ruído reduziu-se a um silêncio total. Dave ligou as luzes do teto.
- Desculpem lá - disse numa voz jovial. - Fim do vídeo. Nunca iremos saber como essa história acabou.
- Ainda bem. Nenhuma rapariga decente estaria segura na cama com um marido que tivesse visto uma coisa dessas - opinou Nastiya, dando uma cotovelada nas costelas
de Paddy.
- Se achaste aquilo um pouco excessivo, Nastiya, então é melhor saíres daqui antes que vos mostre o último vídeo - advertiu-a Dave.
Nastiya abanou a cabeça e chegou-se mais a Paddy. Agarrou-lhe o braço com força. - Sei que posso confiar neste homem para me proteger - disse. - É meu dever ficar
aqui. Um dia, talvez seja meu dever matar esse animal repugnante, esse Aleutian.
- Como podemos saber que este tipo é mesmo o Aleutian? - interveio Hector. - Vá lá, Dave, diz aí o nome, por favor.
- O seu desejo é uma ordem, chefe. O nome dele já vai surgir! - Desligou as luzes e passou o último vídeo.
Uma vez mais, assistiram a uma série de planos pouco nítidos e desfocados, do chão e do teto daquilo que era claramente o quarto de uma mulher, com uma colcha
cor-de-rosa na cama enorme e um toucador atulhado de artigos de higiene pessoal e frascos de perfume. Havia também uma coleção de animais de peluche dispostos na
única cadeira ao lado da cama. Depois a imagem estabilizou, como se a câmara tivesse sido colocada num tripé. O enquadramento centrou-se na cama. O homem da sequência
do clube noturno estava deitado de costas na cama, nu. Olhou para a lente, com a mesma expressão enigmática. Colocara uma das mãos atrás da cabeça e a tatuagem era
claramente visível. Com a outra mão, acariciava-se.
"Vá lá", disse ele à pessoa atrás da câmara. "Estás à espera de quê? Não me digas que tens medo aqui do meu Grandalhão, minha cadela."
Vicky Vusamazulu surgiu toda saracoteada no plano. Também estava nua. As reluzentes nádegas negras baloiçavam-lhe enquanto se aproximava do homem na cama. Alçou
uma das pernas por cima dele e montou-o.
Nenhum dos presentes na sala de cinema voltou a falar durante algum tempo. Victoria tornou a levantar-se mais duas vezes da cama e postou-se atrás da câmara para
alterar o ângulo e a focagem, de um plano de grande abertura para um primeiro plano muito próximo, e depois voltou a correr para a cama e lançou-se uma vez mais
à ação.
- Não acham estranho? - perguntou Hector por fim.
- O quê? - disse Paddy, sem tirar os olhos do ecrã.
- Não acham estranho como é aborrecido ver outras pessoas fazer isto, quando é uma enorme diversão sermos nós a fazê-lo?
Nastiya riu-se com deleite. - Adoro-te, Hector Cross! Consegues ser tão sensato e engraçado.
- Puxa à frente, por favor, Dave - insistiu Hector.
Dave encolheu os ombros. - Está bem, mas aviso-te desde já que vais perder uma carrada de material interessante.
Os movimentos do casal no ecrã tornaram-se tão bruscos e freneticamente acelerados como os de um filme a preto e branco de Charlie Chaplin da década de 1920.
O som era uma série de guinchos ininteligíveis.
Nastiya começou a rir, acabando por contagiar todos os outros. Dave Imbiss conseguiu por fim controlar suficientemente o riso para os advertir: - Muito bem, calem-se
todos, malta, por favor! Aqui vem o momento pelo qual todos esperávamos!
A ação abrandou para o ritmo em tempo real e Aleutian falou de forma bem audível: "Prepara-te, minha beleza! Aqui vem a mortífera serpente negra africana!"
"Oh, sim, Aleutian! Enfia-mo todo, Aleutian, meu cabrão obsceno!"
- E aqui têm! - disse Dave Imbiss num tom complacente.
- Peçam o nome e aqui o Imbiss dá-vos o nome, não uma, mas duas vezes. Isto é o que eu chamo um serviço impecável. - Estendeu a mão e desligou o vídeo.
Hector quebrou o silêncio que se seguiu. - Aquela rapariga não foi muito bem-educada. - Proferiu a sua opinião numa voz séria: - Repararam que no final ela nem
sequer chegou a dizer "por favor"? - Levantou-se e avançou para o estrado. Enfiou as mãos nos bolsos e virou-se para eles.
- Excelente trabalho, Dave. Nunca me deixas ficar mal. Neste preciso momento, acabas de tornar a Victoria Vusamazulu no assunto mais picante da cidade. É a única
pista que nos pode conduzir ao Aleutian. Precisamos de lhe manter o entusiasmo bem aceso. - Olhou para Nastiya. - Lamento, mas vai ser essa a tua tarefa, Nazzy.
- Eu? - Pareceu surpreendida. - Não me parece que a Victoria tenha dado mostras de quaisquer tendências lésbicas.
- Sabes tão bem quanto eu que uma mulher está muito mais aberta a uma abordagem amigável por parte de outra mulher do que de um homem. Ela não está à espera de um
tal engate. Quero que tu e a Vicky se tornem almas gémeas. Assim não perdemos de vista o tal Aleutian.
- Está bem. - Nastiya encolheu os ombros. - Que queres que eu faça?
Hector virou-se para Dave. - Dá-me o iPhone da rapariga, por favor.
Dave entregou-lho. Hector ligou-o e marcou um número. - Estou a ligar para o meu próprio telemóvel - explicou.
Assim que o toque de chamada soou, ligou o altifalante e fez sinal aos outros para se manterem em silêncio.
- Olá. Ligou para o telemóvel de Hector Cross. Fala Victoria Vusamazulu. - Aqui Hector Cross, Vicky. Ainda precisa que lhe entregue o seu iPhone esta noite em vez
de ser amanhã? Acho que posso tratar disso. - Oh, sim, por favor, senhor Cross - exclamou ela com entusiasmo. - Seria fantástico. Sinto-me totalmente perdida sem
ele.
- Muito bem. A minha secretária está acabar de terminar o expediente. Vou enviá-la num táxi ao seu encontro. Ela entrega-lho.
- Obrigada. Muito obrigada, senhor. - Calculo que já deva estar em casa, não? Qual é a sua morada? - Sim, estou no meu apartamento em Richmond. A morada é 47, Gardens
Lane e o código postal é TW9 5LA. Diga ao taxista que fica na esquina com Kew Gardens Road. Fica a cerca de trezentos metros ao fundo da estrada de quem vem da estação
de Kew Gardens.
- Muito bem. A minha secretária chama-se Natasha Voronc > É uma senhora russa de cabelo loiro. Estará aí consigo dentro de trinta ou quarenta minutos.
Desligou a chamada e entregou o telemóvel a Nastiya. - Podes ir, czarina. A Victoria está à tua espera. Demora o tempo que precisares. Nós tratamos de te guardar
o jantar. - Calou-se por momentos e depois prosseguiu: - Ouve uma coisa: para numa dessas lojas de bebidas a caminho e compra à Vicky uma garrafa de vinho decente.
Diz-lhe que é um presente da minha parte. Um grande pedido de desculpa por lhe ter levado o telemóvel. Talvez te convide a partilhares a garrafa com ela. Provavelmente
está sozinha agora que o Aleutian desapareceu de cena. Faz-te de muito amiga dela, tenta levá-la a confidenciar-te os seus segredos femininos. É mais do que certo
que vai querer queixar-se do Aleutian e dizer-te como ele é um grande cabrão. E tu podes-te queixar do Paddy e dizer-lhe que ele é um grande cabrão. Vocês as duas
vão-se divertir um bom bocado.
- Essa sugestão agrada-me - concedeu Nazzy.
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Nastiya regressou da sua visita ao apartamento de Victoria uma hora atrasada para o jantar. Os três homens, de uniforme de gala e a beberem o seu segundo uísque,
esperavam-na na sala de estar. Levantaram-se assim que ela surgiu à entrada.
- E então, como correu, minha querida? - perguntou-lhe Paddy, antecipando-se aos outros.
- Deixem-me primeiro ir lá acima mudar de roupa. Não demoro mais de um minuto e já vos conto a história toda quando voltar.
Quando desceu as escadas, todos se aperceberam de que valera a pena esperar. Nastiya usava os seus diamantes e estava deslumbrante. Na qualidade de anfitrião,
Hector deu-lhe o braço e conduziu-a para a sala de jantar. O primeiro prato era solha-limão-do-pacífico grelhada, servida desespinhada e acompanhada de cogumelos
silvestres da Provença, regados com molho de açafrão.
A comida manteve-os em respeitoso silêncio durante alguns minutos, até que Nastiya suspirou deliciada e limpou a boca ao guardanapo antes de falar.
- Aquela Victoria é uma rapariga muito querida. Acho-a simpática. Claro que é muito ingénua e louca por homens, como qualquer rapariga saudável da sua idade.
Mas, na verdade, não é mal-intencionada. Depois de beber dois copos de vinho, convenceu-se de que sou a sua nova melhor amiga. Sente-se sozinha, como o Hector tinha
dito. Quer alguém com quem possa falar. Nunca mais me deixava ir embora. Ela pensa que esse tal Aleutian vai voltar da América para casar com ela.
- Então foi para aí que ele foi. Bate certo com o sotaque e a tatuagem. Ela sabe que ele esteve envolvido no homicídio da Hazel?
Nastiya foi firme e determinada na resposta. - Tenho a certeza que não. Claro que não podia insistir com ela sobre esse assunto. Mas, como sabia que eu trabalho
para o Hector, foi ela mesmo quem trouxe o assunto à baila. Estava a par do assassinato da Hazel, através das notícias que tinha lido na imprensa e ouvido na TV.
Mas nunca associou o episódio ao Aleutian. O Aleutian disse-lhe que é um manda-chuva no negócio do petróleo na Califórnia. Pediu-lhe para o ajudar a conseguir um
encontro com a Hazel, para tentar aliciar a Bannock Oil e a Hazel a participarem num negócio qualquer que ele tinha em mente. Pediu à Victoria para o informar quando
a Hazel saísse da clínica do doutor Donnovan nesse dia para simular um encontro acidental. Já vos disse que a Victoria é muite ingénua e um pouco estúpida. Mas simpatizo
com ela.
- Isso quer dizer, então, que já não vamos deitar-lhe a mão para a fazer dar à língua? - Paddy olhou para Hector. - Devo dizer que estou desapontado. Até podia
ser divertido.
Hector sorriu e respondeu: - De certeza que a Nastiya tem razão. Aquela rapariga é uma lorpa. Não é muito inteligente e não sabe de nada. Mas é possível que o
Aleutian regresse cá para voltar a saborear o pitéu que ela de tão bom grado oferece. Essa é praticamente a única utilidade que ela tem para ele agora, ou para nós.
Sabes se a Vicky tem o atual número de telefone dele ou qualquer outro modo de o contactar?
- Perguntei-lhe isso, mas só tem o número de telemóvel que sacámos do iPhone dela. Ela diz que ele nunca lhe atende as chamadas. Pensa que isso só pode dever-se
ao facto de ele não ter roaming no telemóvel lá nos Estados Unidos. Só sabe é que ele lhe prometeu que voltaria para ela e que iriam viver juntos. E acredita que
ele vai cumprir a palavra.
- Mantém-te em contacto com ela, por favor, Nazzy. Pode dar-se o caso de ele de facto voltar.
- E que fazemos até lá? - perguntou Dave Imbiss. - Chegámos a outro beco sem saída, não é?
Todos olharam para ele, mas Hector não respondeu de imediato. Deu um gole no seu copo de vinho e saboreou-o, descrevendo círculos com a língua. - Este Chablis é
perfeito para acompanhar a solha.
- Todos sabemos que és um grande conhecedor de vinhos, mas isso não responde propriamente à pergunta do Dave - frisou Nastiya. Hector foi salvo pela entrada de Stephen,
o seu mordomo, e virou-se para ele com um certo alívio. - Passa-se alguma coisa, Stephen?
- Peço desculpa por o incomodar, senhor. Mas está um cavalheiro à porta. Bem, para ser sincero, senhor, diria que é mais um jovem mal-arranjado do que um cavalheiro.
Tentei mandá-lo embora, mas foi muito insistente. Diz que vem da parte de alguém chamado Sam Mucker. Que o senhor sabe a quem ele se refere. Diz que se trata de
uma questão de vida ou morte; foram estas as palavras dele.
Hector ponderou por momentos. - Sam Mucker? Não faço a mínima ideia do que é que ele está a falar. Já passa das dez e estamos a meio do jantar. Por favor, Stephen,
diga amavelmente ao sujeito que se ponha ao fresco.
- Com todo o gosto, senhor Cross. - Stephen conteve um sorriso e dirigiu-se para a porta com passadas firmes e determinadas.
Assim que o mordomo fechou a porta, Hector levantou-se de um salto da cadeira à cabeceira da mesa. - C'os diabos! - exclamou. - O tipo estava a referir-se a Aazim
Muktar. Stephen, volte já aqui! A porta voltou a abrir-se e Stephen manteve-se especado à entrada. - Chamou, senhor?
- Sim. Mudança de planos. Por favor, acompanhe o cavalheiro à biblioteca e ofereça-lhe uma bebida. Faça de tudo para o tratar como um cavalheiro. Diga-lhe que já
vou. - Hector virou-se para Dave. - Não, jovem David, meu rapaz. Não me parece que tenhamos chegado a outro beco sem saída. Aliás, desconfio que a verdadeira diversão
pode estar prestes a começar. - Fez soar a campainha para chamar o criado e disse-lhe: - Peça à para me guardar o resto desta excelente refeição no rescaldeiro.
- Levantou-se e disse aos outros: - Não esperem por mim, talvez demore um pouco. - Saiu da sala de jantar e foi para a biblioteca.
Quantas menos pessoas vissem o agente de Aazim Muktar. melhor para todos.
37
O visitante estava especado de costas viradas para a lareira, a aquecer-se. Tinha uma Coca-Cola na mão e Hector percebeu de imediato por que razão Stephen não o
vira com bons olhos. Tinha o rosto por barbear e o cabelo emaranhado e oleoso. As calças de ganga estavam esfarrapadas e provavelmente nunca tinham sido lavadas.
O desenho dos lábios conferia-lhe ao rosto uma expressão carrancuda e os seus modos sugeriam que se tratava de um sujeito desprezível. Tudo nele anunciava que se
estava na presença de um refugo da vida, um dos falhados.
Hector acercou-se dele e estendeu-lhe a mão. - Olá, sou o Hector Cross.
O rapaz apertou-lhe a mão sem hesitação. Os olhos eram castanho-claros, amistosos e inteligentes, em total contraste com o resto da sua aparência. - Eu sei. Fiz
uma pesquisa sobre si no Google. Devo confessar que o senhor é um homem deveras impressionante. Chamo-me Yaf Said, mas costumava dar pelo nome de Rupert Marsh antes
de encontrar Alá. - A voz era agradável, mas firme.
- Então por que nome te devo tratar? - Escolha o senhor. - Yaf significa "amigo". Vou-te chamar assim, pode ser? - Claro, se assim o desejar, senhor. - Senta-te,
Yaf - convidou-o Hector, sentando-se numa das poltronas de couro.
- Estou bem aqui, junto à lareira, senhor - declinou Ya:
- Vim de moto e apanhei frio. Além do mais, prefiro estar de pé na presença de pessoas mais velhas e mais importantes.
Hector pestanejou, surpreendido. Este miúdo tem classe, pensou.
Yaf pareceu ler-lhe o pensamento. - Por favor, queira-me desculpar o cabelo e a barba por fazer, bem como o meu aspeto geri. Esta é a minha roupa de trabalho.
- Aazim Muktar disse-me que ajudas outros miúdos transviados a reencontrarem o caminho.
O rosto de Yaf iluminou-se ao ouvir o nome do mulá. - Aazim Muktar fez o mesmo por mim. Quando cheguei à mesquita dele, estava um farrapo, num estado lastimável.
Estava farto da vida, farto de mim, sempre drogado. Ele mostrou-me o caminho e fez-me mudar de vida. É um grande homem. Grande e santo. - Sorriu timidamente. - Ei!
Peço desculpa, senhor Cross. Até pareço um daqueles tipos nos anúncios publicitários da TV!
- Sei como te sentes. Também eu o admiro.
- Aazim Muktar disse-me que o senhor procura um homem Não me disse porquê e também não lhe vou perguntar a si.
- Bem, caso sirva de ajuda, a pessoa que procuro chama-se Aleutian - disse Hector.
Yaf sorriu. - Lá no submundo, os nomes pouco ou nada significam. Consegue-me descrever o aspeto dele, senhor?
- Tenho fotografias dele - confirmou Hector.
- Isso vai-me facilitar as coisas, senhor. Com as fotos, é canja. Posso vê-las, por favor?
- Vou buscá-las. Talvez demore algum tempo. - Hector levantou-se. - Quando foi a última vez que comeste, Yaf? Pareces -me muito magrinho.
- Nunca tenho muito tempo para comer.
- Bem, agora tens tempo. Vou dizer à cozinheira para te preparar umas sandes e uma taça de batatas fritas com ketchup.
- Obrigado, senhor. Parece-me ótimo. Mas, por favor, nada de carne. Sou vegetariano.
- E ovos e queijo?
- Gosto de ambos.
Cerca de uma hora depois, Dave já tinha imprimido uma dúzia fotogramas dos vídeos de Vicky e Hector levou-os para a biblioteca, onde Yaf já devorara uma travessa
de sandes de queijo, tomate pasta para barrar Marmite e se ocupava agora dos ovos cozidos e taça de batatas fritas. Levantou-se de um salto assim que Hector entrou
na biblioteca.
- Foram as melhores sandes que comi nos últimos quinze anos, altura em que a minha mãe morreu e fiquei a viver na rua.
Hector achava que ele não teria mais de 25 anos. Por conseguinte, desde os dez anos que levava uma vida de agruras. - E o teu pai, rapaz? - perguntou-lhe.
Yaf esboçou um sorriso triste. - Nunca o cheguei a conhecer. Acho até que nem a minha mãe sabia grande coisa acerca dele. Se calhar sou um daqueles tipos sortudos
que tem só uma mãe mas vinte e cinco putativos pais. Não sei.
Hector sorriu face àquele pequeno gracejo corajoso e entregou-lhe as imagens impressas. - Dá uma olhada e diz-me o que pensas. Mas faz-me um favor e senta-te, pode
ser? Estás-me a pôr nervoso, Yaf.
Yaf sentou-se na beira da poltrona à frente da de Hector e examinou cuidadosamente cada uma das imagens que Dave
- Estás a ver a tatuagem dele? - perguntou Hector. - Sim, é uma das marcas distintivas do gangue Maalek. Ele deve ser um deles. - Olhou por fim para Hector e disse:
- Lamento, senhor. Não conheço este tipo, mas tem ar de quem só traz problemas.
Reparou no desapontamento de Hector e apressou-se a continuar: - Mas, por favor, não se preocupe, senhor. Se ele se encontrar num raio de cem quilómetros para lá
dos limites de Londres, acabarei por o encontrar. Vou tratar de pôr muita gente na rua à procura dele. Pode-me dar um número de telefone para o contactar em caso
de urgência? Tipos como este movem-se muito rápido, como tubarões-tigre à caça.
- Se ele for avistado, podes-me ligar para este número. - Hector aproximou-se da secretária e anotou o número do seu iPhone num cartão em branco. - Podes-me ligar
a cobrar no destinatário, seja qual for a parte do mundo onde eu estiver.
- Entregou-lhe o cartão e acompanhou-o à porta da entrada, ficando depois a vê-lo enquanto montava a lambreta BW de 12 e cruzava os portões.
Se calhar nunca mais o vou voltar a ver, mas nunca se sabe.
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Tentou afastar o rapaz da mente. No entanto, nos dias que se seguiram, Yaf não parava de se intrometer nos seus pensamentos, inclusive quando estava a tentar concentrar-se
na leitura da documentação de Hazel.
- Vivemos numa sociedade imoral quando os banqueiros recebem bónus de vários milhões de libras e rapazes honestos não conseguem arranjar trabalho e ficam a apodrecer
na rua até acabarem por cair numa vida de crime. Um dia acaba por rebentar tudo quando menos se espera - comentou ele a Paddy certo dia.
Isto fê-lo pensar em Catherine Cayla e naquilo que o mundo lhe reservava para o futuro. Apercebeu-se de que tinha imensas saudades da filha e que precisava desesperadamente
de voltar a vê-la. De modo que, alguns dias depois, apanhou um voo de regresso a Abu Zara, acompanhado de Paddy, Nastiya e Dave Imbiss.
39
- Temo-nos portado como uma boa menina, papá. Ganhámos quase meio quilo desde que o senhor partiu. - Bonnie colocou Catherine nos braços de Hector assim que ele
entrou no átrio da penthouse em Seascape Mansions. - Mas tivemos tantas saudades do nosso papá, não foi, bebé?
Hector não estava muito familiarizado com esta linguagem maternal e não percebeu bem quem sentia saudades de quem, mas esperava que não fosse aquilo que as palavras
de Bonnie pareciam transparecer.
Hector chegara mesmo a tempo para dar o biberão a Catherine e deitá-la depois no berço. Na manhã seguinte, colocou-a numa versão moderna de um marsúpio, uma espécie
de casulo de nylon fixo numa estrutura de alumínio, concebido de forma ergonómica para proteger e amimar um bebé. Fora Dave Imbiss quem lhe desencantara algures
este porta-bebés futurista. Se o prendesse ao peito, Hector poderia ver o rosto de Catherine enquanto corria. Ou podia prendê-lo nas costas, para que Catherine pudesse
olhar por cima do seu ombro.
Levou-a consigo para uma corrida de quinze quilómetros ao longo da marginal da praia. A bebé parecia apreciar o movimento baloiçante - pelo menos não emitiu nenhum
protesto audível; dormiu durante todo o percurso e só acordou quando regressou a casa, com um apetite digno de uma cria de leão. Tinha perdido um biberão, como Bonnie
anunciou ao mundo num tom estentórico de desaprovação.
Os dias sucederam-se numa rotina serena mas não desagradável. Paddy e Nastiya dispunham do seu próprio apartamento na Cidade de Abu Zara. Embora trabalhassem no
mesmo edifício, fora da sede da Cross Bow Security, por vezes passavam-se dias sem que se cruzassem. Contudo, Paddy telefonava a Hector todas as noites Para discutirem
possíveis desenvolvimentos; mas poucas novidades havia e não eram de grande relevância.
Pelo menos duas vezes por semana, Nastiya convidava Hector para jantar no apartamento onde vivia com Paddy ou num dos muitos restaurantes de luxo existentes na cidade.
Ao grupo juntava-se sempre um dos convidados de Nastiya: uma jovem mulher atraente e solteira. Era espantoso como ela conseguia desencantar tantas jovens. Certamente
passara a pente fino as tripulações de cabina de todas as companhias aéreas, os escritórios do pessoal administrativo das embaixadas britânica e americana e as principais
multinacionais a operarem na cidade. Mesmo quando Hector se esquivava com habilidade a estas ciladas óbvias, Nastiya nunca desistia de tentar. Tornou-se um jogo
amigável entre ambos. Paddy limitava-se a observar com um ar divertido.
Dave Imbiss passava muitas horas por dia na penthouse de Seascape Mansions a verificar e a aperfeiçoar as medidas de segurança que rodeavam Catherine Cayla, e a
certificar-se de que os seus homens se mantinham alerta e em plena forma física. A bebé nunca era deixada sozinha. Uma das três amas estava sempre a seu lado, dia
e noite. Havia sempre um guarda armado à porta do quarto da criança, bem como uma equipa da Cross Bow Security na sala dos monitores do sistema de televisão em circuito
fechado ao fundo do corredor, a vigiar todas as entradas para os apartamentos e o interior do quarto da criança.
Hector tomava o pequeno-almoço com Catherine todas as manhãs, às seis horas. Atacava o bacon e os ovos estrelados enquanto a bebé mamava do biberão. Depois levava-a
para a corrida habitual ao longo da marginal. Quando voltava à penthouse, entregava-a aos cuidados das amas e passava o resto da manhã a ler atentamente os comoventes
registos da vida de Hazel.
Para ele, os mais importantes e mais fascinantes eram os diários dela. Eram os únicos documentos de Hazel que Agatha não digitalizara. Hazel começara a escrevê-los
no seu 14º aniversário. Havia na coleção dela mais de vinte livrinhos de capas pretas idênticas. um para cada ano da sua vida desde o início da adolescência.
Os diários estavam escritos numa caligrafia miudinha e repletos de trechos em linguagem codificada por ela criada. Hector precisou de toda a sua imaginação e engenho
para decifrar alguns desses códigos. Hazel tinha registado cada detalhe da sua vida, fosse trivial ou apocalíptico. Hector estava fascinado. Nunca imaginara vir
a inteirar-se de tantas coisas acerca dela. Mas ali estavam as suas bazófias e confissões, escritas pelo próprio punho. Chegara mesmo a descrever, com deleite, a
perda da virgindade no seu 15º aniversário, no banco traseiro do velho Ford do seu treinador de ténis. Hector sentiu uma punhalada de ciúme.
O cabrão lascivo era quase trinta anos mais velho que a minha menina inocente. Deveria ter ido de cana por aquilo que lhe fez. Maldito pedófilo. Depois consolou-se
com o pensamento de que o maldito pedófilo provavelmente estaria agora gordo, careca e impotente; e com o facto de Hazel ter desfrutado dessa experiência. Continuou
a folhear os diários, saltando os anos intermédios até encontrar o dia em que ambos se conheceram.
Esse era um dos momentos cruciais da sua própria existência. Nunca haveria de esquecer um pormenor que fosse desse primeiro encontro. Ocorrera nas instalações da
Bannock Oil, ali no deserto de Abu Zara. Hector aguardara, juntamente com os outros manda-chuvas da Bannock Oil, pela chegada dela no meio de uma forte tempestade
de areia. O helicóptero surgira do meio das nuvens de areia castanho-escuras. Recordou-se que quando o aparelho aterrara e ela surgira à porta na fuselagem, fora
apanhado desprevenido pela descarga elétrica que lhe percorrera a coluna vertebral. Raios, ela era absolutamente magnífica.
Nesse primeiro dia, ela tratara-o com rispidez, o que o deixara furioso. Não estava habituado a ser tratado com desprezo. Odiado? Sim, mas nunca que o ignorassem
de forma tão descarada.
Agora, finalmente, podia ler os pensamentos dela nesse dia fatídico. Hazel tinha-o descrito da seguinte forma: "Todo ele pose, testosterona e músculo. Rezo a Deus
para que um dia me perdoe por achar este odioso simplório tão giro e tão sexy."
40
Seis semanas após a sua chegada a Abu Zara, Hector foi acordado pelo toque de chamada do seu iPhone. Rolou na cama, ligou o candeeiro da mesinha de cabeceira e olhou
para o despertador. Faltavam dez minutos para as quatro da madrugada. Pegou no telemóvel.
- Cross - disse. - Sou eu, o Yaf! Hector soergueu-se de imediato. - Diz-me coisas! - Ele está cá. Mas é melhor o senhor vir sem demora. Ele nunca para muito tempo
no mesmo sítio. Não há maneira de saber quando vai voltar a desaparecer.
- Que horas são aí em Londres? - Pouco passa da meia-noite - respondeu Yaf. Hector fez um cálculo rápido. - Estarei aí por volta das onze da manhã de Londres. Vai
à minha casa de manhã e espera-me lá. Vou dizer ao meu mordomo para te deixar entrar, e a minha chef vai-te preparar um banquete para o pequeno-almoço. - Desligou
e telefonou para o apartamento de Paddy. Atendeu-o a voz ensonada de Nastiya. - Quem mais pode ser senão o Hector Cross! - disse ela. - Adivinhaste. O Aleutian está
em Londres. Diz a esse pinga-amor deitado aí ao teu lado na cama para enfiar as calças. Diz-lhe para requisitar o jato G5 da Bannock Oil para uma partida imediata
e urgente rumo a Farnborough. Eles que arranquem os pilotos da cama se necessário for. Vamos apanhar aquele cabrão assassino.
Hector deixou Dave Imbiss a comandar os guardas da segurança de Catherine em Seascape Mansions. O G5 descolou com a restante equipa às 08h43 de Abu Zara e aterrou
em Farnborough cinco horas depois. O motorista de Hector avançou pela pista para os recolher. Pouco mais de uma hora depois, estacionaram na garagem subterrânea
do nº 11. Yaf Said aguardava na cozinha, onde travara amizade com a chef Cynthia. A mulher estava a fazê-lo ganhar peso, empanturrando-o com o seu famoso pudim de
chocolate com gelado. Yaf pousou a colher e apressou-se pelas escadas acima quando ouviu a voz de Hector.
Hector apresentou-o a Paddy e a Nastiya e convocou de imediato um conselho de guerra para a biblioteca. A pedido de Hector. Yaf relatou-lhes as linhas gerais do
que tinha acontecido durante a ausência deles.
- Ao longo das últimas duas semanas tenho recebido informações sobre o Aleutian, sobretudo de clubes noturnos na zona central de Londres. Mas sempre que seguia essas
pistas, chegava à conclusão de que não passavam de avistamentos falsos ou que o alvo já tinha desaparecido quando eu chegava ao local. Mas depois tive sorte num
lugar chamado Fusion Fire, um antro espampanante, cheio de luzes estroboscópicas e espelhos, montes de passadores e prostitutas sempre a rondar, mas a música é mesmo
marada. Consegui aproximar-me bastante do Aleutian no balcão do bar. Estava a beber com três outros tipos negros e consegui ver-lhe a tatuagem. Era o tipo que o
senhor procura, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas os amigos dele chamavam-lhe Óscar e não Aleutian.
- Quando foi isso? - perguntou Hector. - Foi numa sexta-feira, há duas semanas. Não lhe quis ligar logo, pois ele podia estar ali apenas de passagem. Esperei lá
por ele durante as quatro noites seguintes. Mas o tipo não voltou a aparecer. De modo que pus a minha malta de vigia em todos os clubes noturnos da zona. Acabámos
por o avistar em dois outros clubes ao longo da semana seguinte, e depois voltou ao Fusion Fire duas noites seguidas. Foi por isso que lhe liguei esta manhã. Dá-me
a impressão que ele anda sempre a saltar de sítio em sítio, mudando todos as noites de poiso. Não há nenhum padrão nas movimentações dele. Se fosse a si, punha alguém
a vigiar todos os clubes noturnos onde ele foi avistado recentemente. O tipo parece ser =a criatura de hábitos. Acho que é a melhor hipótese de o senhor conseguir
dar com ele.
- Faz sentido - concordou Hector. - Mas e quanto a ti, Yaf? Yaf pareceu constrangido e demorou algum tempo a ganhar coragem para falar. - Ajudei-o de bom grado a
tentar encontrar este tipo, mas não quero estar lá quando o senhor lhe deitar as mãos. Há muito tempo que renunciei a esse tipo de métodos violentos, quando Alá
me tomou sob a sua proteção. Sem ofensa, senhor Cross. Tem sido um grande prazer privar com um homem como o senhor, mas creio que agora devemos seguir caminhos diferentes.
- Obrigado uma vez mais, Yaf. Acho que é uma decisão sensata. Também foi um prazer para mim conhecer-te. Conseguiste reforçar a minha fé na geração mais nova. Se
te puder ajudar seja no que for, já sabes onde me encontrar. Entretanto, posso pagar-te pelo teu tempo e incómodo?
Yaf ergueu ambas as mãos, alarmado. - Não, por favor. Não fiz isto por dinheiro. Fi-lo por um homem bom e santo.
- Muito bem, Yaf. Mas a tua mesquita deve gerir alguma instituição de caridade para a qual eu possa contribuir.
- Bem, senhor, para lhe dizer a verdade, recebemos grande parte dos nossos fundos da Fundação Muçulmana para a Juventude - respondeu Yaf numa voz hesitante. - O
senhor pode fazer a sua doação online. Não precisa de dar o nome.
- Vou fazê-lo em teu nome - assegurou-lhe Hector. - Obrigado, senhor. Não preciso de lhe dizer isto, mas posso garantir-lhe que o dinheiro será muito bem gasto.
- Tirou uma tira de papel do bolso do blusão. - Tem aqui a lista de todos os clubes onde avistámos o Aleutian. Ele costuma aparecer sempre num deles por volta da
meia-noite, isto é, quando se digna aparecer, mas depois fica por lá até de madrugada. Espero que encontre aquilo que procura, senhor.
Hector acompanhou-o à porta da frente e disse-lhe: - Espero que a nossa amizade não acabe aqui, Yaf. Podes-me visitar sempre que passares aqui por perto. Se eu não
estiver cá, a Cynthia lá na cozinha terá todo o gosto em te oferecer uma chávena de café e algo para comer. Vou-lhe dizer que és sempre bem-vindo aqui.
- É muito amável da sua parte, senhor. Adeus e ma'a salamab. Deram um aperto de mão e depois Hector viu-o montar na lambreta e partir. Sabia que nunca mais voltaria
a vê-lo. Yaf era um jovem independente, demasiado orgulhoso para aparecer ali a mendigar.
Nota de Rodapé: Significa "adeus" em árabe, mas também "A paz esteja contigo/ consigo".
Fim da nota.
41
- Ora bem, os três clubes na lista do Yaf Said são o Fusion Fire, o Rabid Dog e o Portais of Paradise, todos na zona central londrina, desde o Soho até Elephant
e Castle. Não conheço nenhum destes antros, e vocês os dois? - Hector olhou primeiro para Nastiya.
- Não conheço, não faz nada o meu estilo - retorquiu ela numa voz afetada.
- E tu, Paddy? - Também não. Mas, a julgar pelos nomes, até parecem locais divertidos. - Eis como vamos tratar disto. Já verifiquei a localização dos três clubes
na Internet. Encontram-se espalhados ao longo de uma área bastante grande, a vários quilómetros de distância uns dos outros. Segundo o que o Yaf disse, não vale
a pena iniciar a busca antes da meia-noite. Teremos que fazer um turno noturno tardio. Se um de nós o identificar, deve chamar logo o resto da equipa. Tratamos de
manter o Aleutian sob vigilância e seguimo-lo quando sair do clube. Um de nós conduzirá o Q-Car. As ruas devem estar praticamente vazias a essa hora da manhã. Assim
que o apanharmos sozinho e sem ninguém por perto, espetamos-lhe a Hypnos.
A Hypnos era uma minúscula seringa hipodérmica que podia ser escondida na mão, ou na costura da manga de um casaco. Era feita de uma espécie de vinil indetetável
por raios X ou por qualquer outro tipo de dispositivo de deteção. O tubo cilíndrico era de cor verde. A agulha não metálica ficava a descoberto assim que se removia
a tampa protetora com o polegar; tinha apenas dois centímetros de comprimento e bastava perfurar a pele para que fossem injetados dois centímetros cúbicos de uma
potente droga que deixava a vítima quase instantaneamente paralisada. O nome Hypnos inspirava-se na deusa grega do sono.
Era impossível conseguir um fornecimento deste tipo de armas. a menos que, tal como Dave Imbiss, se tivesse contactos na Divisão de Guerra Química do exército americano.
- Depois, assim que o Aleutian perder os sentidos, enfiamo-lo no Q-car e trazemo-lo para aqui - continuou Hector enquanto delineava o plano. - A propósito, a cave
é insonorizada e tem uma divisão ao fundo onde costumo limpar o meu equipamento de pesca, mas dará uma boa sala de interrogatório. Teremos todo o equipamento apropriado
à mão. As paredes e o chão são em azulejo. fácil de lavar à mangueirada. Se a tortura da água não for suficiente. é possível que tenhamos de recorrer a meios menos
higiénicos até o Aleutian desembuchar e nos revelar o nome de quem o contratou. Depois de lhe tratarmos da saúde, enfiamos o que resta dele numa caixa de peixe hermética
e impermeável e exportamo-lo para Abu Zara no G5. Se escolhermos bem a faixa horária de descolagem. em princípio as autoridades aduaneiras não irão revistar o conteúdo
da caixa. Depois, o Dave Imbiss levará o corpo do Aleutian para a zona onde as equipas de exploração petrolífera estão a perfurar a nova concessão, no Zara Número
12. O Aleutian irá acabar no fundo do poço de perfuração, que por esta altura já terá atingido os cinco mil metros de profundidade, e depois reemergirá à superfície
misturado com a fina pasta de lodo triturado pela broca rotativa de ponta de diamante.
Dirigiu-lhes um sorriso feroz e prosseguiu: - Sei que é um plano de batalha um pouco rudimentar, mas também sei que vocês os dois são bastante bons a improvisar
conforme as circunstâncias mudam.
Verificou as horas no relógio de pulso e levantou-se. - Temos uma hora para trocar de roupa para o jantar. Sei que a chef nos preparou um prato especial, mas não
haverá vinho para acompanhar. Temos de estar bem lúcidos e despertos para a nossa tarefa noturna.
Após o jantar, é minha intenção dormir uma sesta de duas horas. Depois, voltamos a reunir-nos às onze. Vai-nos levar uma hora ou mais a chegarmos aos locais das
nossas posições. Acho que tu, Nastyia, deverias ir para o Portais of Paradise, por razões óbvias. E tu, Paddy, ocupas-te do Rabid Dog, por razões igualmente óbvias.
Eu fico de vigia ao Fusion Fire, apesar de não me ocorrer nenhuma razão óbvia para tal.
- Imagino que devem existir umas quantas brasas do teu perigoso passado que nos poderiam dar razões mais do que suficientes - insinuou Nastiya.
Hector subiu para o seu quarto de vestir e abriu a porta do compartimento secreto por trás da lareira. Pegou numa caixa pousada numa das prateleiras de cima, onde
estava guardada a sua pistola,
enfiada no coldre axilar. Enfiou um par de luvas cirúrgicas de borracha e limpou cuidadosamente a arma para remover as suas próprias impressões digitais. Depois
recarregou-a com as munições especiais que Dave lhe fornecera. Esfregou uma segunda vez a arma com o pano, só para ter a certeza de que ficava bem limpa. Calculara
os riscos e as vantagens de portar a arma nessa noite. Era um delito grave se as autoridades o encontrassem armado, mas
talvez o perigo fosse ainda maior se enfrentasse alguém do calibre de Aleutian completamente desarmado.
42
Deixaram Nastiya no Portais of Paradise alguns minutos depois da meia-noite. A entrada situava-se discretamente na ruela de umas antigas cavalariças. Havia uma pequena
multidão de jovens excitados. aglomerados em frente à porta. Dois seguranças corpulentos e de ar agressivo barravam-lhes a entrada para o clube, enquanto um porteiro
educado, em traje formal de smoking e gravata preta, fazia a seleção daqueles que considerava dignos de entrarem naquele edifício sagrado.
Hector estacionou o Q-Car à entrada da ruela e, juntamente com Paddy, observou enquanto Nastiya se dirigia para o clube.
O porteiro avistou Nastiya assim que ela entrou na ruela. Envergava um vestido justo de cor carmesim que se colava a todas as suas curvas e calçava saltos de agulha
de quinze centímetros que lhe deixavam os finos músculos dos gémeos sob tensão. A sua aparição silenciou o clamor da multidão de jovens à entrada do clube que suplicavam
que os deixassem entrar. Abriram alas e observaram em silêncio a sua passagem. O porteiro apressou-se ao encontro dela para a cumprimentar e deu-lhe o braço, com
um bajulador sorriso de boas-vindas. Acompanhou-a até ao interior e disse à rapariga da caixa registadora: - Esta senhora é convidada da casa. Arranja-lhe a melhor
mesa disponível.
Observando a cena sentado no banco traseiro do Q-car, Paddy O'Quinn deu voz à sua preocupação: - Só espero que ela fique bem. No meio daquela multidão estão alguns
tipos que até me dão a volta ao estômago.
Hector desatou às gargalhadas. - Só podes estar a brincar, Paddy. A única pessoa de quem sinto pena é do pobre coitado que tentar meter-se com a tua senhora.
Ligou o motor e conduziu cerca de três quilómetros até ao Rabid Dog. - Ora bem, Paddy, chegámos ao teu canil. Mantém-te morto da cintura para baixo e não te deixes
seduzir por nenhuma mulher. - Observou enquanto Paddy passava uma nota de dez libras ao porteiro e desaparecia através das cortinas que cobriam a entrada.
Hector pôs-se em marcha e conduziu cerca de quilómetro e meio até ao Fusion Fire. O clube noturno ocupava dois pisos. A fachada, virada para a estrada, era toda
ela de painéis de vidro, do chão ao teto. Podia ver através dos vidros que o interior estava profusamente iluminado por luzes estroboscópicas de uma miríade de cores,
montadas em torres giratórias. O teto estava revestido de mosaicos espelhados que refletiam as luzes ofuscantes e os vultos dos dançarinos na pista em baixo. As
pessoas dançavam numa multidão comprimida, como compactos cardumes de reluzentes peixes tropicais, agitando-se num frenesim selvagem ao ritmo retumbante da música.
Hector passou lentamente pela fachada, estacionou na esquina seguinte e voltou para a entrada do clube. Usava óculos escuros de aviador e um casaco de brocado rematado
nas ancas, provido de gola mandarim e com as mangas cortadas que Nastiya escolhera para ele. Tinham optado de forma deliberada por trajes extravagantes, para transparecerem
um ar excêntrico e amaneirado. Assim, ninguém pensaria que eram tropas de assalto e desataria a fugir com medo. Hector pagou cem libras por uma mesa VIP.
Sentou-se à mesa e observou o enorme espaço à sua volta. Reconheceu-o de imediato como o cenário de um dos vídeos com Aleutian que Vicky Vusamazulu gravara no iPhone
e sentiu-se mais alentado. Se Aleutian frequentara aquele local antes, havia uma forte probabilidade de ali voltar.
Num espaço de vinte minutos, deu por si a ser abordado sucessivamente por cinco raparigas diferentes que vinham oferecer-lhe toda a espécie de serviços, desde uma
mamada debaixo da mesa por cinquenta libras até uma noite inteira por quinhentas libras. Tudo propostas que ele declinou de modo educado.
Às cinco e vinte da madrugada, as multidões na pista de dança começaram a reduzir-se e ainda não havia sinal de alguém que se parecesse vagamente com Aleutian. Hector
resolveu sair do clube e conduziu o Q-car até ao Rabid Dog para ir buscar Paddy.
- Como é que correu, meu velho? - perguntou assim que Paddy se enfiou no banco a seu lado.
- Se tivesse fumado, snifado e engolido tudo aquilo que me ofereceram esta noite, estaria a voar mais alto do que a estrela da manhã ali em cima.
Seguiram para o Portais of Paradise e, quando Nastiya surgiu, parecia ter acabado de sair de um salão de beleza.
- Não tiveste sorte, rainha do meu coração? - perguntou-lhe Paddy numa voz ansiosa.
- Podia ter ganhado uma fortuna. Um velhinho muito querido, aí com uns noventa anos, ofereceu-me dez mil libras só para me olhar sem tocar.
- Devias ter aceitado - disse-lhe Paddy. Nastiya lançou-lhe um olhar de esguelha com os seus olhos de um azul tão glacial como o céu da tundra. Quando regressaram
ao nº 11, os três deitaram-se e dormiram até ao meio-dia.
A noite seguinte foi uma repetição da anterior. A única diferença era a clientela.
Na terceira noite, Hector entrou na confusão do Fusion Fire poucos minutos após a meia-noite. Era a noite de sábado e a pista estava completamente apinhada. O volume
da música entorpecia os sentidos. As enormes bolas espelhadas, suspensas do teto, moviam-se ao ritmo das batidas dos pés das pessoas que dançavam por baixo.
De modo a imiscuir-se no ambiente, Hector usava um bolero de cetim preto ao estilo espanhol, por cima de uma camisa branca aos folhos e uma gravata de cadarço preta.
As calças de toureiro cheias de lantejoulas colavam-se-lhe às coxas. Fora Nastiya quem, uma vez mais, lhe escolhera esse traje. Sentou-se à mesa habitual e uma rapariga
de minissaia, com um bonito rosto de traços miudinhos e lábios carnudos, que ele nunca tinha visto antes, sentou-se de repente no seu regaço.
- És tão lindo que quero casar contigo - disse-lhe. - És rico, não és? - Sou multimilionário - respondeu ele numa voz séria. - Oh, meu Deus! - exclamou ela, de fôlego
entrecortado. - Juro por Deus que acabaste de me fazer vir.
Hector achou-a, na verdade, bastante divertida. Riu-se e, quando olhou por cima do ombro dela, deparou do outro lado da pista com o rosto escuro e carrancudo de
que se lembrava tão bem dos vídeos de Victoria Vusamazulu.
Aleutian estava especado no topo das escadas que conduziam ao átrio. Estava acompanhado de uma rapariga que olhava para ele, mas cujo rosto Hector não conseguia
ver. Aleutian olhava-a com um ar condescendente. Embora a multidão continuasse a rodopiar à volta do par, a enorme corpulência de Aleutian fazia-o destacar-se acima
de todos os outros. Fora por essa razão que Hector o identificara de imediato. Olhou-o apenas durante alguns segundos, só para ter a certeza de que se tratava do
homem que procurava; mas, ainda assim, fora demasiado tempo.
Na selva, quando se olha fixamente um animal, é muito frequente este pressentir o olhar e reagir. Aleutian era exatamente isso, um predador selvagem no seu próprio
território. Os seus olhos apartaram-se do rosto da rapariga e fixaram-se nos de Hector. Reconheceu-o de imediato. Deu meia-volta e desceu as escadas à pressa. Hector
levantou-se de um salto e a rapariga tombou-lhe do regaço. Saltou por cima dela para a pista de dança e abriu caminho à força pelo meio das pessoas que dançavam,
até ao topo da escadaria por onde Aleutian desaparecera.
As escadas estavam quase tão apinhadas quanto a pista de dança. Quando Hector chegou à entrada do clube e irrompeu pela porta da rua, já não viu nenhum sinal dele.
Refreou o instinto cego de desatar a correr pelas ruas escuras para o procurar aleatoriamente.
Lembrou-se da rapariga com quem Aleutian estava. Talvez pudesse encontrá-la. Talvez ela pudesse indicar-lhe o lugar onde Aleutian se refugiara. Pôs de lado essa
ideia no mesmo instante em que lhe ocorreu. O Fusion Fire estava a abarrotar de beldades como ela. Nem sequer lhe vira o rosto. Nunca conseguiria identificá-la no
meio da multidão. De qualquer modo, provavelmente não passava de uma prostituta que Aleutian escolhera para o acompanhar naquela noite.
Como é que o Aleutian terá vindo para cá? De carro? De táxi? Nesse caso, há muito que já se foi. Não parava de pensar de forma furiosa. De metro? Sim, claro!
Sabia, com base na pesquisa que fizera na Internet, que a entrada da margem norte para a estação de Blackfriars ficava apenas a quatrocentos metros do local onde
se encontrava. Desatou num sprint. Correu até à primeira esquina e viu a entrada para a estação de metro ao fundo do quarteirão. A rua estava quase deserta àquela
hora. Havia apenas uns quantos folgazões tardios de regresso a casa. Um deles era Aleutian. Afastava-se de Hector a passo de corrida, em direção à estação de metro.
Quando Hector se lançou em perseguição, Aleutian alcançou a entrada da estação e desapareceu como um coelho que acabasse de se enfiar na toca. Hector seguiu-o pela
entrada. Desceu os degraus três a três, com os seus passos ecoando no túnel vazio. Alcançou a junção em forma de T no fundo. A sinalização no túnel à esquerda indicava
a direção de Richmond; a do túnel à direita, a direção de Upminster. Não tinha forma de saber por qual deles Aleutian seguira. Optou aleatoriamente pelo túnel da
direita e, assim que começou a avançar, ouviu o ruído de um metro na linha para Richmond. Deu meia-volta e correu nessa direção. Quando chegou à plataforma, olhou
com atenção. O metro já tinha parado e as portas estavam abertas. Havia uma pequena multidão de passageiros e folgazões resistentes a subir a bordo. Hector apercebeu-se
de imediato de que o seu palpite fora acertado: Aleutian abria caminho por entre os outros passageiros. Viu-o subir para uma das carruagens.
Hector galgou o último lanço de escadas, mas, a meio caminho da plataforma, as portas fecharam-se e o metro afastou-se. Enquanto as carruagens passavam por ele,
viu Aleutian especado a uma das janelas, a olhar para ele. Hector lançou a mão à pistola que levava no coldre axilar oculto. Mas depois conteve-se. O ângulo e a
distância eram muito arriscados. Aleutian estava rodeado de muito perto por outros passageiros. Não se atreveu a correr o risco de atingir um deles enquanto o metro
se afastava acelerado.
Aleutian sabia que estava a salvo. Sorriu na direção de Hector. Uma careta sardónica, carregada de ameaça. Hector sentiu a pele eriçar-se. Estava a olhar nos olhos
do assassino de Hazel. A intensidade das emoções era tal que as pernas lhe tremeram. Depois de a última carruagem desaparecer na boca do túnel, Hector demorou alguns
segundos a forçar-se a voltar a pensar com frieza.
Deu meia-volta e refez o caminho a passo de corrida, mas sabia que demoraria pelo menos dez minutos a chegar ao local onde estacionara o Q-car. O metro que transportava
Aleutian seguia a uma velocidade de cerca de sessenta e cinco quilómetros por hora. O avanço de Aleutian era demasiado grande para conseguir apanhá-lo, mesmo no
Q-car. Tinha de se antecipar e telefonar a Paddy ou a Nastiya para o intercetarem. Mas havia uma dúzia ou mais de paragens onde Aleutian poderia sair antes de o
metro chegar ao terminal em Richmond. Seria impossível cobri-las a todas.
Mas havia algo que estava a escapar-lhe. Sabia que alguma coisa estava a escapar-lhe enquanto subia a correr pelo túnel até ao nível da rua. Pensa!, disse a si mesmo.
Deixa-te guiar pela cabeça e não pelos tomates. Para onde é que o cabrão pode ter ido?
Irrompeu do túnel para a rua, e foi nesse instante que aquilo lhe acudiu à mente. Parou de imediato. Pegou no telemóvel e ligou a Nastiya. Os toques de chamada sucederam-se
de forma interminável, mas manteve o telemóvel colado ao ouvido enquanto corria à sua velocidade máxima.
A chave é a Vicky Vusamazulu. Sabia-o com uma clareza absoluta. Quase conseguia ver o Aleutian estabelecer essa ligação. Com o seu instinto de raposa, pressentiu
de imediato que tinha sido traído. Sabia que as probabilidades de eu dar com ele lá no Fusion Fire por mero acaso eram absolutamente ínfimas. Já sabe que alguém
me pôs no rasto dele. Sabe que a Vicky é a única pessoa que nos conhece aos dois. Era a única pessoa que sabia que ele frequentava o Fusion Fire. Não precisou de
muito para perceber que ela é a única pessoa que me poderia ter dado essa pista. As probabilidades de ir a caminho para se vingar da Victoria neste preciso momento
são de dez para um. Vá lá, Nazzy, querida. Atende o maldito telemóvel.
- Hector, onde estás? - atendeu-o Nastiya de repente. - Afugentei o Aleutian. Conseguiu escapar-me e fugiu. O meu palpite é que vai a caminho do apartamento da Vicky.
Lembras-te da morada dela, não lembras?
- Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica a cerca de trezentos metros da estação de metro de Kew Gardens. - A resposta de Nastiya foi rápida e precisa.
Era uma profissional.
- O Aleutian segue neste preciso instante a bordo de um metro que se dirige diretamente para Kew Gardens. Estás mais perto do que eu. Consegues chegar à casa da
Vicky muito antes de nós. Apanha um táxi. Eu e o Paddy cobrimos-te assim que pudermos. Mas sê rápida, Nazzy. A tua amiguinha Vicky é um alvo fácil e aquele cabrão
é um assassino. - A chamada foi cortada. Como sempre, Nastiya era uma mulher de poucas palavras.
Hector ligou a Paddy e falou com ele enquanto corria em direção ao Q-car. - Paddy, espera por mim à porta do Rabid Dog. Estarei aí dentro de vinte minutos, talvez
menos.
- Que se passa? - O Aleutian deu sinal de vida, mas cometi um erro de todo o tamanho. O tipo fugiu e anda a monte. Conto-te o resto quando chegar aí.
Quinze minutos depois, Paddy abriu rapidamente a porta do passageiro do Q-car e enfiou-se no banco antes de Hector sequer parar. Hector carregou a fundo no acelerador
e seguiu a toda a velocidade.
- Nº 47, Gardens Lane, TW9 5LA. É a morada da Vicky. Insere os dados no sistema de navegação por satélite, Paddy. Raios, tenho a certeza que é para onde o Aleutian
foi.
43
Os toques insistentes da campainha do apartamento acordaram Vicky Vusamazulu. Soergueu-se na cama muito ensonada. Tinha tomado um comprimido para dormir. Olhou para
o mostrador luminoso do despertador na mesinha de cabeceira. Eram quase duas da madrugada. Graças a Deus que a senhora Church é surda como uma porta. Vicky tentou
afastar o sono esfregando os olhos com os nós dos dedos. A Sra. Church era a sua senhoria. Vivia no piso por cima e Vicky sabia por experiência própria que ela desligava
o aparelho auditivo quando se deitava. Era uma bruxa velha, tão rígida e insuportável que Vicky era o único inquilino no prédio.
A campainha voltou a soar. Vicky ligou a luz, afastou os lençóis para trás, lançou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se. Vestia calções de pijama e um top
estampado com um brilhante padrão floral. Avançou trôpega pelo corredor até à porta ao fundo.
Verificou se as correntes de segurança estavam bem presas antes de se erguer nas pontas dos pés para espreitar pelo olho mágico. O visitante no exterior estava de
costas para ela.
- Quem é? - perguntou, irritada. O sujeito virou-se e Vicky reconheceu-o de imediato.
Arquejou, surpreendida e deleitada, e despertou por completo. Nem sequer sabia que Aleutian estava de volta a Londres.
- Abre a porta, cadela - disse ele.
- Aleutian! Oh, meu Deus. És mesmo tu? Pensava que nunca mais ias voltar. - Estava tão empolgada que não conseguia desprender as correntes de segurança. - Espera!
Não vás embora. É só um segundo. Espera, meu querido Aleutian.
Finalmente conseguiu abrir a porta e correu para ele para o abraçar, mas Aleutian empurrou-a para o lado e apressou-se a entrar no apartamento. Avançou pelo corredor
até ao quarto dela sem olhar para trás. Victoria fechou a porta mas não quis perder tempo a voltar a prender as correntes de segurança. Correu de imediato atrás
dele.
- Pensava que nunca mais ias voltar. Nunca devia ter duvidado de ti. Eu sabia que ias cumprir a tua palavra. Tive saudades tuas. Tive tantas saudades tuas. - Não
parava de palrar, tomada de emoção.
Ele tinha-se sentado na cama. Olhava-a com uma expressão estranha no rosto.
- Tens-te portado bem durante a minha ausência? - Oh, sim, sim. Fiquei em casa todas as noites à tua espera. Nunca olhei sequer para outros homens. Amo-te tanto!
- Estás-me a mentir - disse ele naquele seu tom suave e funesto que a deixava a tremer de desejo. - Acho que tens sido uma cadelinha malcomportada. Acho que vou
ter de te castigar.
Victoria conhecia tão bem este jogo que os seus mamilos endureceram sob o tecido fino do top do pijama.
- Tira o pijama! - ordenou-lhe. Ela despiu o top, amarfanhou-o numa bola e atirou-o para a cama, ao lado do lugar onde ele estava sentado. Depois fez deslizar os
calções pelas ancas e deixou-os cair em redor dos tornozelos. Chutou-os para longe e manteve-se nua à frente dele.
- Vais-me bater, Aleutian? - perguntou-lhe numa voz assustada, cobrindo o púbis com as mãos em concha.
- Afasta as mãos e vem cá. - Chamou-a com um gesto do dedo e ela colocou-se à sua frente. - Abre as pernas, cadela.
Ela afastou os pés. Aleutian inclinou-se para a frente e enfiou a mão entre as coxas dela. - Abre mais! - ordenou-lhe.
Victoria podia sentir o dedo dele a contorcer-se dentro de si e apoderou-se dela um desejo tremendo. Lançou as coxas para ele e sentiu-o tocar-lhe na boca do útero.
- Estás tão viscosa aí dentro como um balde cheio de enguias, sua cadela imunda. Mas percebes que tenho de te castigar, porque te portaste muito mal?
- Sim, percebo. - Mestre. Chama-me Mestre. Ou já te esqueceste? - Fez algo com o dedo que foi tão doloroso que a deixou a gemer. Era como se ele lhe tivesse rasgado
algo ali dentro. Abriu desmesuradamente os olhos devido à dor que sentia. Mas a dor era tão agradável que estava quase a atingir o primeiro orgasmo.
- Sim, compreendo, Mestre. Aleutian tirou o dedo e apontou-o à frente da cara dela. - Olha só o que fizeste, sua putinha imunda. Sujaste-me o meu lindo dedo limpinho
com essa tua rata imunda.
- Desculpa-me, Mestre. Não era minha intenção fazer isso. - Põe-te de joelhos - ordenou-lhe. Ela baixou-se à sua frente. Ele apontou-lhe o dedo. - Chupa-o até ficar
limpinho. - Vicky enfiou-o na boca. Aleutian forçou-lho pela garganta abaixo, tão fundo que os ombros dela estremeceram devido ao reflexo de vómito.
- Confessa. Tens-te portado muito mal na minha ausência, não tens?
Ela emitiu uns sons incoerentes de negação. O rosto inchava-lhe enquanto sufocava. Aleutian inclinou-se para trás e tirou o dedo da garganta dela. Vicky soluçou
de alívio e todo o seu corpo se convulsionou devido ao esforço para recuperar o fôlego. Olhou para ele com os olhos raiados de sangue e a escorrerem lágrimas.
Aleutian estendeu a mão que até então mantivera atrás das costas e Vicky apercebeu-se de que ele segurava numa navalha de ponta e mola. Viu-o carregar no botão de
libertação e a lâmina abrir-se com um estalido seco à sua frente. Tinha cerca de dezoito centímetros de comprimento e era reluzente como um raio de sol.
Isto era uma novidade. Ele nunca lhe tinha mostrado a navalha antes. Vicky tentou recuar ajoelhada, mas Aleutian agarrou no top do pijama dela pousado a seu lado
na cama e enrolou-lho à volta do pescoço, segurando-a depois como a um cachorro pela trela.
- Andaste a falar de mim a outras pessoas, não andaste, sua cadela?
- Não! - murmurou ela, abanando a cabeça num gesto veemente.
- Não me mintas, sua vaca! - Picou-lhe a face com a ponta da navalha. Vicky guinchou, de susto e dor. - Não me faças mais mal, por favor. Já não gosto destes jogos.
Já não quero brincar mais. Guarda a navalha, por favor, Aleutian.
- Isto não é nenhum jogo. Falaste de mim ao Hector Cross. sua cadela.
- Não, não falei nada. - No entanto, apesar da negação. ele viu um vestígio de culpa aflorar-lhe aos olhos. O rosto dela contorceu-se em terror.
- Falaste, sim. Disseste-lhe onde me podia encontrar. - Riu-se. - Por favor. Não estás a perceber. Ele não fez caso dos protestos e a sua voz adotou um tom afável
e tranquilizador. - Não fiques preocupada. Só tens de fazer o que te digo e tudo correrá bem. Agarra na orelha esquerda e estica-a para o lado o mais que puderes.
- Ela olhou-o, atónita e sem compreender.
- Faz o que te digo, Victoria. Fá-lo, se me amas de verdade - insistiu Aleutian. Ainda de olhos fixos nele, Vicky agarrou no lóbulo da orelha entre dois dedos e
esticou-o.
- Perfeito - disse ele. E, com um rápido golpe da lâmina prateada, cortou-lhe a orelha rente ao couro cabeludo.
Ela soltou um grito e depois olhou, horrorizada, a orelha decepada que segurava entre os dedos.
- Agora come-a. Enfia-a na boca e engole-a - disse-lhe baixinho.
O sangue da ferida pingava-lhe sobre o peito e escorria-lhe por entre os seios. Vicky não fez caso e continuou de olhos fixos na orelha cortada. De repente, Aleutian
picou-lhe o pescoço com a lâmina. Ela sobressaltou-se e olhou para ele.
- Abre a boca - disse, voltando a picá-la. Ela abriu a boca. - Agora enfia-a na boca e engole-a.
- Não! - disse ela. - Desculpa. Não era minha intenção fazer aquilo. Deixa-me explicar... Ele tocou-lhe na sobrancelha com a ponta da lâmina. - Come-a, senão arranco-te
os olhos, um de cada vez.
Vicky enfiou a orelha na boca. - Pronto. Não é assim tão difícil. Se calhar até sabe bastante bem, não sabe? - Os ombros dela voltaram a estremecer com convulsões.
- Não. Não faças isso. Engole tudo.
Determinada, Vicky fez um esforço para lhe obedecer. O seu rosto e a garganta contorceram-se. Engoliu finalmente. Estava a arquejar, mas balbuciou numa voz rouca:
- Já está. Engoli-a.
- Muito bem. Estou orgulhoso de ti. - Por favor, para, para com isto. Não me faças mais mal, por favor. - Chorava com amargura, continuando a abanar a cabeça de
um lado para o outro.
- Parar? - disse ele com uma surpresa fingida. - Mas se ainda agora começámos. Ainda há uma coisa que me queres contar, não há, Vicky? Queres dizer-me com quem andaste
a falar de mim, não é? - Nunca falei de ti a ninguém, juro pela alma da minha mãe. - Escorriam-lhe lágrimas pelo rosto e respirava em fortes arquejos acompanhados
de estremeções.
- Estás a mentir, Vicky. Vou ter de te obrigar a comer a outra orelha. - Forçou-a a ajoelhar-se, agarrou-lhe a outra orelha e esticou-a como se fosse um pedaço de
borracha. Encostou-lhe a lâmina e Vicky gritou.
Nastiya ouviu esse grito.
44
Nastiya apanhou o táxi à entrada do Portais of Paradise. Quatro raparigas polacas, todas elas risinhos e gritinhos, estavam a apear-se do veículo.
Nastiya empurrou uma das raparigas para o lado, enfiou-se no banco traseiro e disse ao taxista: - Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica na esquina
com Kew Gardens Road, cerca de trezentos metros depois da estação de metro de Kew Gardens.
- Sei onde fica, minha senhora - disse o taxista. - Dou-lhe mais cinquenta libras se conseguir pôr-me lá em menos de um quarto de hora.
- Aperte o cinto e ponha já de parte essa nota de cinquenta libras, minha senhora - disse ele. - Aqui vamos.
As ruas estavam quase desertas e o taxista conduziu a grande velocidade. Parou em Kew Gardens vários minutos antes de transcorrido o quarto de hora previsto. Nastiya
entregou-lhe duas notas de cinquenta libras através da divisória de vidro e disse-lhe: - Guarde o troco, merece-o. - Apeou-se do táxi de um salto e atravessou a
estrada a correr, em direção ao nº 47. Assim que cruzou o portão de acesso ao minúsculo jardim, ouviu Victoria gritar. Descalçou os sapatos de salto de agulha aos
pontapés e largou a bolsa coberta de lantejoulas. Prendeu a saia afunilada à volta da cinta e correu para a porta, ganhando velocidade. Lembrava-se, da sua visita
anterior, que a fechadura era velha e frágil. No entanto, também se recordava de duas robustas correntes de segurança, de modo que se lançou de pés juntos, desferindo
no último momento um enorme coice na porta como uma mula.
Para seu grande espanto, a fechadura cedeu de imediato e a porta esmagou-se contra a parede interior. Nastiya voou pela abertura, de pés esticados à sua frente,
para dentro do corredor. Rolou o corpo ao tocar no chão e levantou-se de imediato, desatando a correr praticamente sem perder o ímpeto. Lembrava-se da disposição
exata do pobre e exíguo apartamento. A sala de estar e a cozinha situavam-se à direita. Mas viu luz por baixo da porta do único quarto. Abriu-a com um pontapé e
esquivou-se para o lado, mantendo-se de corpo colado à parede lateral. Espreitou pela ombreira para dentro do quarto.
Uma carnificina total. Os lençóis cor-de-rosa da única cama existente estavam manchados de sangue. Havia sangue nas paredes e sangue a acumular-se numa poça sobre
os fofos tapetes brancos no centro do soalho.
Vicky estava de pé, virada para ela, mas Nastiya mal conseguiu reconhecê-la. Estava nua. As orelhas tinham sido decepadas. O sangue jorrava-lhe das feridas em carne
viva, entrando-lhe na boca e manchando-lhe os dentes de vermelho. Pingava-lhe do queixo e escorria-lhe pelo corpo em jorros. O quarto fedia a sangue e a vómito.
Nastiya reconheceu de imediato Aleutian dos vídeos. Estava especado atrás de Vicky. Sujeitava-a com um golpe de gravata, imobilizando-a por completo. Na outra mão
segurava uma navalha manchada de sangue, com a qual levara a cabo aquela chacina. Envolvia o corpo de Vicky com o braço e mantinha a ponta da comprida lâmina incrustada
de sangue ressequido contra o umbigo dela. Usando o corpo da rapariga como escudo, olhava com fúria para Nastiya por cima do ombro de Vicky.
- Ouve-me, Aleutian. Larga a Vicky e podes escapar ileso - disse-lhe Nastiya numa voz calma e firme.
- Não sei quem raios és, loiraça, mas estou a gostar do que vejo. Acho que tenho um plano melhor que o teu. Primeiro, vou terminar aquilo que comecei com esta vaca
aqui. A seguir, vou atrás de ti, e, quando te apanhar, vou-te dar a melhor foda da tua vida. Depois vou-te matar também, mas muito devagar. E agora, observa bem,
pois só vou fazer isto uma vez.
Passou a navalha com rapidez de um lado ao outro da barriga nua de Victoria, perfurando-lhe profundamente a pele, os músculos e a parede intestinal. Os intestinos
transbordaram pela abertura do ferimento. A navalha tinha-os cortado também e o seu conteúdo derramou-se. Depois mudou o ângulo da lâmina e espetou-a através do
esterno. Os olhos de Vicky arregalaram-se, enormes, como que fixos na eternidade, enquanto a lâmina lhe trespassava o coração. Escapou-lhe um último sopro da boca
aberta e tombou no braço de Aleutian enquanto morria. A própria Nastiya ficou momentaneamente petrificada com a brutalidade daquele ato.
Contudo, a sua preocupação principal já não era salvar a vida de Vicky, mas a lâmina na mão de Aleutian. A navalha dava-lhe o controlo da situação.
Percebera, pela forma como ele manejara a arma, que era um lutador muito hábil, provavelmente o mais perigoso que alguma vez defrontara. E ele tinha consciência
de quão destro era, exibindo uma autoconfiança absoluta. Estava a divertir-se. Tornava-se claro que o odor do sangue e o fedor dos intestinos rasgados que enchiam
o quarto o excitavam. Nastiya sabia que o tinha subestimado e corria agora um enorme perigo.
Estava desarmada, descalça e vestida com roupas que lhe restringiam os movimentos. A cama no centro do quarto exíguo tornava-o ainda mais minúsculo. O seu estilo
particular de luta exigia espaço para poder manobrar, recuar, fintar. Precisava, sobretudo, de espaço para se manter longe daquela navalha.
Aleutian chegara obviamente às mesmas conclusões e moveu-se com rapidez para lhe limitar ainda mais os movimentos. Continuando a agarrar o corpo de Vicky à sua frente
como um escudo, tentou encurralar Nastiya num dos cantos da divisão. Mas ela conseguiu afastar-se, esquivando-se pelo lado esquerdo, para longe da lâmina.
Antes que ele pudesse girar o escudo humano para a bloquear, Nastiya retomara a sua posição junto à entrada do quarto. As ombreiras de ambos os lados da porta protegiam-lhe
os flancos.
Voltou a encará-lo e pôs-se de cócoras, em posição de combate, de mãos erguidas e rígidas como lâminas de machado, cruzadas ao nível dos pulsos. - Uau! Andaste a
ver os filmes de Kung Fu do Jackie Chan, ó loiraça - troçou ele, erguendo Vicky até ficar com as pernas a baloiçar, antes de se lançar contra Nastiya. Estava a tentar
forçá-la a recuar para o corredor, onde teria mais facilidade em a atacar.
Nastiya viu ali a sua oportunidade: os pés dele eram visíveis por baixo das pernas baloiçantes de Vicky. Em vez de retroceder, correu para ele. Uma fração de segundo
antes de colidirem, lançou-se de pés esticados à sua frente, por baixo das pernas de Vicky, e desferiu o seu coice de mula preferido. Ambos os pés aterraram com
enorme força contra o tornozelo esquerdo de Aleutian, exatamente o ponto que ela pretendia atingir.
Ouviu o osso e a cartilagem da perna dele quebrarem com um estalido seco. Sentiu-se percorrida por uma onda de triunfo, pois tinha a certeza de que ele se estatelaria
no chão, e teria então a sua oportunidade para lhe tirar a navalha.
Aleutian grunhiu de dor, mas manteve-se de pé, para grande desalento dela. Nastiya fez um salto mortal à retaguarda e aterrou de pé, virando-se de imediato para
o enfrentar de novo. No entanto, antes que pudesse recuperar o equilíbrio por completo, ele usou Vicky como um aríete e lançou o corpo inerte contra Nastiya, com
tal força que a projetou para trás através da entrada. Embateu com violência na parede do corredor.
Aleutian avançou para ela. Coxeava apoiado no tornozelo ferido, mas, ainda assim, movia-se com uma rapidez surpreendente. Continuava a segurar no corpo mutilado
de Vicky à sua frente. Obrigou Nastiya a recuar contra a parede do corredor e desferiu-lhe uma navalhada contra o rosto, por cima do ombro de Vicky. Nastiya agarrou-lhe
no pulso, mas estava escorregadio devido ao sangue e ele conseguiu libertar a mão, sem largar a navalha. Nastiya estava encurralada contra a parede e ele não parava
de a atacar com o corpo de Vicky, restringindo-lhe os movimentos e impedindo-a de recuperar o equilíbrio. A cabeça de Vicky rolava livremente sobre os ombros. Tinha
os olhos vidrados e sem vida.
Aleutian voltou a tentar esfacelar-lhe a cara, mas Nastiya esquivou-se, baixando-se sob a lâmina, e perdeu-o de vista por um segundo. Ele largou o corpo de Vicky
e Nastiya perdeu esse escudo que lhe protegia a metade inferior do corpo. Com a rapidez de uma víbora, Aleutian tentou atingir-lhe a barriga. Nastiya contorceu-se
violentamente para o lado para fugir à investida. mas o corpo que jazia sobre os seus pés inibia-lhe os movimentos. Sentiu a picada do aço quando a lâmina lhe abriu
um comprido corte superficial na anca. Tentou transpor o corpo de Vicky de um salto e ganhar espaço antes que ele pudesse atacá-la outra vez, mas ficou com o tornozelo
preso naquela espécie de corda formada pelos intestinos de Vicky e tropeçou. Caiu sobre um dos joelhos e ergueu a mão para deter o golpe de navalha que seguramente
se abateria sobre si, mas Aleutian agarrou-a pelo pulso e arrastou-a de cara contra o soalho. Forçou um dos joelhos contra a nuca dela para a imobilizar enquanto
se apressava a reajustar a lâmina na mão. Depois obrigou-a a pôr-se de joelhos e ajoelhou-se por trás dela, sujeitando-a com um golpe de gravata com uma única mão.
Apertou-lhe a laringe com força suficiente para a impedir de gritar.
- Não és nada má a lutar, loiraça - elogiou-a. - Sabes usar bem o corpo numa luta. - Respirava pesadamente enquanto se ria. - E agora, vais-me poder mostrar como
és boa na velha e célebre foda à canzana.
Nesse preciso momento, a porta do apartamento foi arrancada das dobradiças e Hector e Paddy irromperam pelo corredor. Detiveram-se assim que depararam com aquela
cena.
Aleutian levantou-se, sem largar o pescoço de Nastiya. Enfrentou-os, usando o corpo dela como escudo. - Não se mexam - avisou-os. - Se tentarem aproximar-se, esta
tipa morre.
Segurava a navalha contra o pescoço de Nastiya, com a ponta da lâmina pressionada sob a orelha. Viu a pistola que Hector empunhava com ambas as mãos, tendo adotado
a clássica postura de cócoras dos atiradores: equilibrado sobre a parte dianteira dos pés. com a pistola apontada à testa de Aleutian.
Aleutian baixou a cabeça e escudou-se atrás do corpo de Nastiya de modo a oferecer um alvo mínimo. Começou a baloiçar a cabeça de um lado para o outro como uma cobra
para frustrar a pontaria de Hector.
- Seja bem-vindo, senhor Cross. É um enorme prazer voltar a vê-lo. Por favor, aceite as minhas condolências pela perda recente
sua encantadora mulher - disse. Foi como se um obturador se fechasse sobre os olhos de Hector
e a sua visão se incandescesse de vermelho com a intensidade da fúria. Quase perdeu o controlo.
A sua mente estava novamente a operar como um computador, calculando a distância e o ponto de mira. Os pontos de mira da pistola estavam configurados para disparar
quase quatro centímetros acima do enfiamento da arma, a uma distância de vinte e cinco metros. O alvo visado estava a uma distância de oito ou talvez nove metros.
Teria de compensar a trajetória de ascensão da bala.
Aleutian não parava de se mover, permitindo-lhe apenas vislumbres intermitentes da sua cabeça.
- Tu consegues abatê-lo, Heck - murmurou Paddy quando se acocorou atrás do ombro de Hector. As suas palavras foram quase inaudíveis.
Os lábios de Hector retesaram-se numa linha rígida; sabia que as hipóteses de lograr o tiro sem ferir Nastiya eram quase nulas.
- Podemos fazer um acordo, senhor Cross - disse Aleutian. - Sei que tem um carro lá fora. De outro modo, não teria conseguido chegar aqui tão depressa. Dê-me as
chaves e entrego-lhe esta rata loira. Parece-lhe uma troca justa?
As mãos de Hector não vacilaram. - Quem te contratou para matares a minha mulher? - perguntou-lhe.
- Não é esse o nosso acordo, senhor Cross. - É o único acordo possível, Aleutian. - Veja só o que fiz à sua amiguinha Victoria. Ficou sem as orelhas e sem as tripas.
Por favor, não me irrite.
Os olhos de Hector nem por um momento se desviaram na direção do corpo mutilado de Vicky. - Quero o nome - insistiu. - E eu quero continuar a viver. Nada de nomes.
- Posso esperar - disse Hector.
- Não creio - disse Aleutian. - Veja só isto. - Moveu a navalha por trás das costas de Nastiya e encostou a ponta ao trícípite exposto, trespassando-lhe depois lentamente
o braço com a lâmina comprida. O rosto de Nastiya contorceu-se de dor quando a ponta surgiu na parte frontal do bíceps.
- Estou bem, Hector - disse ela, mas a voz era rouca e os olhos denunciavam a sua agonia.
- Mas que valentona! - disse Aleutian, reconhecendo-lhe o estoicismo enquanto arrancava a lâmina. - A seguir é a perna - Espetou-lhe a navalha na coxa. Quando a
retirou, o sangue escuro brotou da ferida e pingou no soalho.
- Mata-o, Heck - urgiu Paddy. - A Hazel! - Com estas duas palavras, Hector justificou a sua relutância em disparar.
- Já não podes salvar a Hazel, mas podes salvar a Nazzy. Mata-o, por favor. - Paddy suplicava-lhe agora, e Hector nunca o tinha ouvido implorar antes. Mas Paddy
também nunca tinha sido obrigado a assistir, impotente, enquanto a mulher que adorava era cortada em pedaços.
Hector sabia que tinha de disparar. Também sabia que seria o tiro mais difícil que alguma vez disparara, e quais as consequências se falhasse.
No entanto, a pistola nas suas mãos era uma arma muito especial. Dave Imbiss tinha persuadido um mestre armeiro do exército a configurá-la segundo especificações
muito precisas. Primeiro, o armeiro obliterara os números de série, para eliminar qualquer registo escrito que associasse a pistola a Hector. Tinha polido a câmara
à mão, de modo a acomodar as balas na perfeição e evitar possíveis encravamentos. Inserira o cano numa máquina secreta da Divisão de Atiradores de Elite do Ministério
da Defesa dos Estados Unidos que tornara as estrias e os sulcos absolutamente perfeitos. Os projéteis também faziam parte de um lote especial. A balística era perfeita:
cada bala giraria através do cano e voaria em direção ao alvo numa trajetória idêntica, sem oscilações nem flutuações e com um desvio quase nulo. Por fim, a tosca
mira de ferro tinha sido substituída por uma ótica topo de gama. O resultado final era uma precisão refinada a milésimos de centímetro. Hector passara tantas horas
a praticar no campo de tiro que a pistola era quase uma extensão do seu próprio corpo.
Ademais, Aleutian era um animal selvagem encurralado e prestes a entrar em pânico. Já não estava a pensar como o assassino implacável que na verdade era. Estava
a cometer um pequeno erro. Começava a baloiçar a cabeça de forma ritmada, movendo-a de um lado para o outro com a cadência de um metrónomo. Aleutian estava a expor
a Hector um olho e cerca de quatro centímetros do lado direito da cabeça, a intervalos de dois segundos. Hector teria de fazer passar a bala a meros milímetros da
face de Nastiya.
Inspirou funda e lentamente e depois exalou com a mesma lentidão. Alinhou-se com o espaço contra o qual previa disparar. Exercia uma pressão tão leve com o dedo
sobre o gatilho que bastaria uma pluma para fazer disparar a arma. A sua concentração era tão intensa que tudo lhe pareceu abrandar e imobilizar-se num silêncio
total. A pistola disparou quase de moto-próprio. Hector teve a impressão de que uma força para lá da sua própria volição fizera o disparo. Viu um caracol de cabelo
loiro de Nastiya ser arrancado pela bala e a orelha estremecer assim que captou a turbulência causada
pela passagem do projétil, e depois viu o olho direito de Aleutian explodir numa rajada de massa gelatinosa pálida quando a bala o trespassou. A parte posterior
do crânio rebentou. A matéria cinzenta do cérebro esparrinhou a parede do corredor e Aleutian tombou pesadamente de costas. Os calcanhares tamborilaram em espasmos
sobre o soalho.
- Temos de pôr já torniquetes nas feridas dela, mas não toques em nada no quarto que possa deixar impressões digitais! - gritou Hector a Paddy enquanto se lançava
em frente. Nastiya deu um passo na direção dele e caiu assim que a perna ferida lhe cedeu sob o peso do corpo. Paddy amparou-a e deitou-a delicadamente no chão.
Hector avançou com rapidez para o local onde Aleutian estivera especado. Não precisava de se preocupar demasiado com possíveis impressões digitais nos cartuchos
usados. As únicas impressões que deixara foram nas partes externas da arma. Tirou do bolso um lenço de algodão e limpou meticulosamente a pistola, usando depois
o lenço como uma luva. Aproximou-se do local onde o corpo de Aleutian jazia de costas. Reparara na forma como ele empunhara a navalha e sabia que era destro. Ajoelhou-se
ao lado do corpo, pegou-lhe na mão direita inerte para lhe envolver os dedos à volta do cabo e pressionou-os contra o aço azulado. Depois fez o mesmo com a mão esquerda
de Aleutian sobre o ferrolho. Deteve-se por uns segundos para lhe examinar a tatuagem do Maalek no pulso e esboçou um esgar de fúria. Ajoelhado atrás de Aleutian,
com um dos braços envolvendo-lhe as axilas, pôs-se de pé lentamente enquanto lhe erguia o corpo.
- Baixa a cabeça, Paddy - advertiu. - Vou disparar mais um tiro. - Forçou o dedo inerte de Aleutian a premir o gatilho. A pistola disparou e a bala cravou-se na
parede do corredor, ao lado da porta da entrada. Depois largou o corpo de Aleutian e deixou-o tombar no chão sob o próprio peso.
Manteve-se ali especado por alguns segundos enquanto inspecionava a cena. Os ângulos estavam corretos. A mão direita de Aleutian estava agora coberta de pólvora
queimada. A equipa de especialistas forenses da polícia obteria um resultado positivo quando aplicasse o teste de parafina. O corpo de Aleutian tombara de forma
natural, com a navalha que usara contra Vicky caída sob ele. Era tudo muito convincente.
Afastou-se do corpo e acocorou-se ao lado de Paddy enquanto este se ocupava da perna de Nastiya. Paddy tinha arrancado um pedaço do cordão da cortina da janela na
parede ao fundo do corredor. Atara-o à volta da coxa de Nastiya, por cima da ferida, e apertava-o agora com força. O cordão enterrou-se gradualmente na carne e o
sangue que brotava da ferida começou a estancar. Hector usou o lenço como um torniquete no braço dela.
- Salvaste-lhe a vida. Não sei como te agradecer, Heck. - Paddy falou sem erguer a cabeça.
- Então não agradeças! - disse Hector. - Consigo fazer melhor do que o meu estúpido marido - disse Nastiya a Hector. - Assim que me conseguir pôr de pé, vou dar-te
uma beijoca enorme. - Estava muito pálida e a voz soava rouca, mas estava a sorrir.
- Vou ver se cumpres a palavra - advertiu-a ele. - Porque é que puseste o Aleutian a disparar um segundo tiro =esmo depois de morto? - perguntou Paddy.
- Para lhe deixar pólvora queimada nas mãos e as impressões na pistola - explicou Hector. - O que é que a polícia vai pensar quando encontrar esta enorme confusão
que fizemos? - perguntou Nastiya.
- Só nos resta esperar que pensem que o Aleutian matou a Vicky à navalhada na sequência de um arrufo de namorados, e que depois se matou, por remorso e medo das
consequências.
- E precisou de dois tiros para o fazer? - perguntou Paddy, incrédulo. - Só se tivesse uma pontaria mesmo muito má.
- Os suicidas costumam disparar primeiro um tiro para o ar para verificarem se a arma está funcional e ganharem coragem antes de dispararem o tiro mortal - explicou
Hector. - Acho que eliminámos todos os nossos rastos. Não deixámos nada aqui que possa conduzir a polícia a nós. Vamos mas é daqui pra fora.
Nastiya não emitiu nenhum som quando Paddy pegou nela e a carregou para fora do apartamento. Hector levantou-se e voltou para junto do local onde Vicky Vusamazulu
jazia. Mesmo para alguém como ele, habituado à morte em todas as suas versões mais hediondas, esta mutilação era doentia. Prestou-lhe alguns segundos de silêncio
respeitoso.
Era uma miúda parva. Mas não merecia acabar desta forma. Depois acercou-se de Aleutian e manteve-se especado sobre ele, de mãos enfiadas no bolso e olhos fixos na
cabeça despedaçada do assassino. O olho incólume parecia mirá-lo. Sentiu-se assaltado por ondas alternadas de raiva e desânimo. Raiva por aquilo que aquele homem
fizera a Hazel; desânimo pelo facto de a morte dele ter eliminado a única pista que poderia tê-lo conduzido ao covil da derradeira Besta.
Sabia agora que aquilo que o esperava era a verdadeira mãe de todos os becos sem saída. Virou costas e seguiu atrás de Paddy, em direção ao local onde deixara o
Q-car. A rua estava deserta.
Hector abriu a porta do condutor e enfiou-se atrás do volante. Paddy estava sentado no banco traseiro, abraçado a Nastiya, que continuava em silêncio e pálida. Hector
arrancou sem embalar o motor. Quando passaram pelos portões dos Jardins Botânicos. Hector voltou a falar.
- Bem, parece que tivemos sorte outra vez. Conseguimos escapar ilesos, à exceção da Nazzy. Estás a aguentar-te, czarina?
- Já estive pior, mas também já estive bem melhor - disse ela. - Para onde vamos?
- Vamos ver um homem que eu e o Paddy conhecemos bem - disse-lhe Hector enquanto estendia o iPhone por cima do ombro. - Toma lá o meu telemóvel, Paddy. Tens aí o
número do Doc Hogan na lista de contactos. Diz-lhe que estamos a caminho. Que dentro de hora e meia estamos lá.
Doc Hogan servira no Corpo Médico do Exército Real e tinha sido destacado para o regimento do SAE, o Serviço Aéreo Especial, no qual Hector prestara comissão. Quando
se aposentara instalara-se na quinta da família em Hampshire. No entanto, por trás da fachada de aristocrata rural, continuava a praticar medicina, embora de forma
oficiosa e em segredo. A sua especialidade era o tratamento de traumatismos. A sua reduzida e seleta lista de pacientes era composta por velhos amigos e camaradas
do exército que tinham sofrido contratempos menores como engravidar a mulher de outro homem ou serem esfaqueados, ou encontrarem-se descuidadamente na trajetória
de uma bala.
Paddy e Nastiya permaneceram durante dez dias como convidados de Doc Hogan, até ele lhes permitir apanharem o voo de regresso a Abu Zara no jato da Bannock Oil para
ela completar a convalescença.
As mortes de Aleutian e de Vicky Vusamazulu pouco interesse público despertaram. O incidente foi reportado como um ato de violência doméstica nas últimas páginas
de um boletim informativo local, mas nunca chegou aos canais noticiosos nem às emissões radiofónicas nacionais.
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Agatha tinha aceitado a proposta de Hector de um emprego permanente e era agora a sua principal assistente pessoal, mas os seus poderes de persuasão tinham sido
postos à prova para a convencer a aceitar um aumento salarial.
"Não sei o que fazer com tanto dinheiro, senhor Cross." "Você é uma mulher inteligente, Agatha. Alguma ideia lhe ocorrerá", assegurara-lhe. "Mas vou precisar de
si em Abu Zara, para me ajudar com os negócios e com a Catherine Cayla. Talvez possamos regressar a Londres assim que o Fundo Fiduciário vender a casa de Belgravia
e arranjarmos outra residência."
Para além do facto de ela ser uma secretária muito dedicada e experiente, era também a maior perita mundial sobre o período da vida de Hazel antes de Hector casar
com ela. Dia após dia, Hector envolvia-a cada vez mais na pesquisa que estava a desenvolver sobre os registos acumulados por Hazel, para tentar identificar o inimigo
oculto no passado dela. Nesse sentido, os conselhos experientes de Agatha eram inestimáveis
Foi durante uma dessas longas conversas investigativas sobre a identidade do assassino que Agatha o lembrou da existência do enteado de Henry Bannock, o filho da
mulher que precedera Hazel nessa função. Chamava-se Carl e Henry a princípio acolhera-o de braços abertos na sua família. Providenciara-lhe a melhor educação e,
quando ele saiu da universidade, ofereceu-lhe um cargo muito bem remunerado na Bannock Oil. No entanto, a relação entre ambos rompera-se na sequência de um terrível
escândalo no seio da família que afetara Henry Bannock profundamente.
- Que escândalo foi esse, Agatha? - perguntou-lhe Hector. - Ouvi uns rumores quando comecei a trabalhar para a Bannock Oil. Mas nunca vim a saber de nenhum pormenor.
- Pouquíssimas pessoas sabiam. Foi muito antes do meu tempo. Mas só sei que o senhor Bannock tinha uma enorme vergonha de todo aquele sucedido. Nunca permitia que
ninguém falasse disso na casa dos Bannocks. Não havia nenhuma referência a isso nos seus registos pessoais; deve tê-los expurgado todos. Era como se aquilo nunca
tivesse acontecido. Ouvi dizer que o Carl Bannock foi libertado da prisão após cumprir uma sentença longa. Mas depois.. simplesmente desapareceu, até que o senhor
Bannock faleceu e a Hazel assumiu o cargo dele como diretora executiva. Depois, voltou a aparecer do nada e começou a importunar a Hazel. Não sei o que ele pretendia,
mas acho que estava a tentar chantageá-la. Acho que a obrigou a pagar-lhe uma enorme quantia de dinheiro. porque ele voltou a desaparecer de repente e nunca mais
ouvi falar dele. A Hazel chegou alguma vez a falar-lhe dele?
- Nunca. Nunca lhe perguntei e ela também nunca me falou dele. Eu sabia que havia um enorme segredo obscuro na família. mas nunca quis remexer em coisas antigas
e dolorosas associadas ao Henry Bannock, pois ela venerava-o - admitiu Hector. - Era como se esse sujeito, o Carl, nunca tivesse existido.
- De qualquer forma, não estou a ver como é que o Carl poderia estar implicado no homicídio da Hazel. Que ganharia ele ao matá-la, ou mandá-la matar? Já lhe tinha
conseguido sacar todo o dinheiro que podia.
- Também não consigo ver nenhum motivo, para além do simples desejo de vingança. Mas se a Hazel lhe tinha dado dinheiro para lhe comprar o silêncio, como você sugere,
por que razão voltaria ele após todos estes anos para a matar? Concordo que não faz sentido. Acho que devemos procurar o assassino dela noutro lugar qualquer. Mas
sem nunca nos esquecermos desse senhor Carl Bannock, embora o nome dele se encontre bem no fundo da lista de possíveis suspeitos.
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Quando voltaram a instalar-se em Seascape Mansions, Hector e Agatha começaram a elaborar uma lista de possíveis vilãos, mas houvera tantas pessoas hostis na vida
de Hazel que a lista se alongou até atingir proporções que a tornavam impossível de gerir. Hector não podia viajar de um lado para o outro pelo globo para seguir
cada indício e eliminar da lista cada possível culpado. Por conseguinte, Agatha teve de procurar um conceituado detetive privado em cada um dos países por onde os
antigos inimigos de Hazel se encontravam atualmente dispersos. Hector contratou-os para efetuarem buscas nos seus países. Só quando o relatório de um desses detetives
contratados parecia relevante e promissor é que Hector viajava de jato para seguir o rasto de sangue pessoalmente.
Uma dessas viagens teve como destino a Colômbia, para investigar um famigerado barão da cocaína e do petróleo que outrora fizera negócios com a Bannock Oil, negócios
esses que tinham terminado em recriminações e raiva mútuas. Agatha recordava-se que o Senhor Bartolo Julio Alvarez chegara a proferir ameaças de morte e que se referia
em público a Hazel Bannock como uma Yanqui putain de bordel de merde. Para Hector, o sentido destas palavras era obscuro, mas Agatha explicou-lhe de bom grado que
significava algo como "uma senhora americana de virtude fácil que exerce o seu ofício numa casa de má reputação que foi erigida com excrementos."
- Que palavras pouco lisonjeiras - comentou Hector. - Acho que será melhor eu ir lá trocar uma palavrinha com ele.
Quando Hector chegou a Bogotá, descobriu que perdera, por uma semana, a oportunidade de assistir ao funeral do Señor Alvarez. Tinha sido despachado rumo à sua recompensa
celestial por seis tiros de uma submetralhadora Scorpion SA Vz. 61, disparados a uma distância de sessenta centímetros contra a parte posterior do crânio por um
guarda-costas da sua confiança que, segundo parecia, transferira recentemente a sua lealdade para o cabecilha de um cartel de cocaína rival.
Quando Hector regressou a Abu Zara, foi mais afortunado.
Nastiya já tinha recuperado o suficiente dos ferimentos para poder acompanhar Paddy ao aeroporto para recolher Hector.
- Nem imaginas o que aconteceu - disse-lhe Nastiya enquanto se abraçavam.
- Seja o que for, só pode ser coisa boa - respondeu Hector. - Estás a sorrir como uma idiota.
- A Catherine Cayla já sabe gatinhar! - Ela quê? - Já gatinha! Tu sabes, de mãos e joelhos no chão. Se continuar a este ritmo, estará apta a participar nos próximos
Jogos Olímpicos - disse Nastiya com orgulho.
- Parabéns, Heck! - Paddy riu-se. - Obrigado, Padraig. Pelos vistos, a minha filhinha é uma bebé prodígio. - Falou numa voz inchada de orgulho. - Tenho de ver isso
com os meus próprios olhos.
- O teu comité de receção espera ansiosamente pela tua chegada em Seascape Mansions. Aviso-te desde já que os preparativos foram bastante demorados - disse Paddy.
Subiram no elevador privado e, quando as portas se abriram, todo o pessoal doméstico estava alinhado no átrio, por baixo de uma rebuscada faixa pendurada de parede
a parede, com os seguintes dizeres numa brilhante tinta dourada: BEM-VINDO A CASA, PAPÁ! Ao fundo do átrio encontravam-se as fileiras dos empregados domésticos.
Os chefs envergavam impecáveis jaquetas brancas com os tradicionais chapéus altos. Os membros menos qualificados do pessoal doméstico vestiam uniformes lavados e
recém-engomados e as criadas usavam aventais brancos de folhos por cima das fardas azul-marinho. À frente deles perfilavam-se os operacionais de segurança nos seus
uniformes de gala, cintos de fivelas reluzentes e botas impecavelmente engraxadas. Na primeira fila estavam as três amas. Bonnie destacava-se no centro, segurando
Catherine Cayla-Bannock nos braços.
Catherine estava vestida com um babygro cor-de-rosa bordado e algumas melenas do seu macio cabelo loiro tinham sido unidas para segurar um enorme laço, também cor-de-rosa.
O grupo desatou a aplaudir assim que Hector saiu do elevador. Catherine girou a cabecita, olhando para todos com espanto, e depois os seus olhos fixaram-se em Hector
quando ele se aproximou. Hector reparou que os olhos dela tinham mudado de cor. Exibiam agora uma tonalidade azul mais carregada e mais brilhante. Eram os olhos
de Hazel. O seu olhar era constante e focado e Hector deu-se conta de que ela estava a vê-lo, possivelmente pela primeira vez. Hector parou à frente dela e a bebé
enfiou os pequenos polegares na boca, fixando-se nele com um olhar sério.
- És tão linda - disse-lhe. - És tão linda como a tua mãe.
- Estendeu os braços para ela e sorriu. - Posso pegar em ti, posso?
Sabia que ela ainda era demasiado pequena para se lembrar dele ou o reconhecer. Tinham-lhe dito que isso só aconteceria quando ela fizesse um ano. Mas continuou
a sorrir-lhe e a olhá-la nos olhos.
Viu os pensamentos dela aflorarem à superfície como belos peixinhos num fundo lago azul. De repente, ela imitou-lhe o sorriso e estendeu os bracinhos para ele, inclinando-se
para a frente nos braços de Bonnie e agitando-se com tal vigor que a ama quase a deixou cair. Pro diabo com os especialistas!, pensou ele com grande alegria. Ela
reconhece-me mesmo!
Pegou nela e Catherine sentou-se direita na curva do braço dele. Era leve e macia e cheirava a leite. Beijou-lhe o cocuruto e ela disse claramente: - Ba! Ba!
- Queremos dizer "papá" - traduziu Bonnie. - Temos estado a trabalhar nisto, mas é uma palavra muito difícil para nós.
Hector levou Catherine para o quarto de criança e as três amas seguiram-no em grupo. Deitou-a no centro do soalho e afastou-se para junto da porta.
- Muito bem, minha coisinha linda - disse-lhe. - Quero ver-te gatinhar. - Bateu as mãos. - Anda cá, Cathy. Anda aqui ao Ba-Ba, minha filhinha!
A bebé rolou até ficar de barriga, apoiou-se nas mãos e nos joelhos e lançou-se para ele num gatinhar veloz. Quando o alcançou. agarrou-se com ambas as mãos a uma
das pernas das calças dele e tentou levantar-se. Caiu para trás sobre o traseiro protegido pela fralda e as três amas irromperam em gritinhos excitados:
- Viram aquilo? - Ela tentou erguer-se nas duas perninhas! - Ela nunca fez isto antes! Era a hora de a alimentar e Hector fez a sua parte, dando-lhe colheradas de
papa de carne de frango e abóbora. A maior parte da papa acabava por lhe escorrer da boca para o queixo, sujando-lhe o babete e a parte da frente da camisa de Hector.
Enquanto ela engolia a última colherada, os seus olhos fecharam-se, o queixo tombou-lhe sobre o peito e adormeceu prontamente na cadeirinha.
Hector exercitou-se no ginásio durante duas horas enquanto Catherine dormia a sesta; depois calçou as sapatilhas de correr, pegou no marsúpio e foi buscar a bebé.
Quando Catherine viu o marsúpio, agitou as perninhas e emitiu sons de contentamento.
Hector correu ao longo da marginal quase deserta, seguido a uma distância discreta por dois dos melhores homens de Dave Imbiss. Hector cantarolou para a bebé e fez-lhe
caretas que a punham a rir. Catherine explorou a cara dele. Enfiava os dedos rechonchudos e rosados na boca dele para ver de onde vinham aqueles sons estranhos e
tentava imitá-los. Soprou bolinhas de saliva e deu gargalhadas.
A bebé mitigava-lhe a solidão. Já não lhe doía tanto quando pensava em Hazel.
Mas muito em breve teria de voltar a Londres.
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Contra todas as expectativas, o agente imobiliário tinha encontrado um comprador para a casa de Belgravia. Em nome dos mandatários do Fundo Fiduciário, Ronnie Bunter
pedira a Hector que supervisionasse a transação. Por conseguinte, teria de estar presente quando a empresa de mudanças transportasse o conteúdo da enorme casa. O
comprador era um magnata indiano da indústria do aço. Ia oferecê-la a um dos seus filhos como prenda de casamento. Hector conseguiu vender-lhe a maior parte do mobiliário
da grandiosa mansão. Enviou para a Sotheby's as antiguidades e as obras de arte que Hazel acumulara, para serem vendidas em leilão, e sentiu um alívio quase físico
quando a última das furgonetas das mudanças, sobrecarregada, arrancou pela rampa da entrada.
O astuto agente imobiliário tinha uma lista de doze possíveis substitutos para o nº 11 de Belgravia. Levou Hector numa visita guiada. A terceira hipótese da lista
era uma encantadora casa de cavalariça em Mayfair. Tinha sido completamente renovada e a pintura ainda mal secara nas paredes. Incluía todas as divisões de uso comum,
quatro suítes espaçosas, garagem subterrânea com capacidade para três veículos e alojamento na cave para cinco empregados domésticos. Hector demorou quarenta e cinco
minutos a tomar a decisão de a comprar.
Enquanto assinava os documentos de aquisição do nº 4 de Lowndes Mews, em Mayfair, escolhera já um nome para a nova casa que partilharia com Catherine: "The Cross
Roads". A nova residência ocupava uma área de superfície cerca de vinte por cento superior à da mansão de Belgravia.
Contratou a sua habitual firma de designers de interiores e deu-lhes um prazo-limite de seis semanas para terem a propriedade completamente mobilada e pronta a habitar.
Começou a sentir, por fim, que tinha conseguido deixar o passado para trás e que estava pronto para recomeçar a viver a sua própria vida.
Nota de Rodapé: "The Cross Roads": trata-se, obviamente de uma referência ao apelido "Cross", e a expressão pode ser traduzida como "as estradas/ os caminhos dos
Cross", mas também como "as encruzilhadas".
Fim da Nota.48
O julgamento no principal tribunal criminal de Londres dos dois delinquentes que tinham incendiado e destruído Brandon Hall iria decorrer algumas semanas mais tarde.
Durou seis dias.
Entre os três, Nastiya, Paddy e Hector passaram dois desses dias no banco das testemunhas, e os seus depoimentos, juntamente com o de Paul Stowe, o couteiro-mor,
foram esmagadores.
O júri voltou das suas deliberações apenas duas horas e meia depois, com o veredito de "culpados de todas as acusações".
Quando a lista das condenações anteriores foi lida em voz alta, o juiz decidiu aplicar aos acusados a pena máxima prevista por lei. Condenou cada um deles a vinte
e dois anos de prisão e ordenou que cumprissem um mínimo de dezanove anos das suas penas.
Tinham tentado matar Catherine Cayla pelas chamas e Hector só se sentiu parcialmente aplacado pela severidade da sentença. Consolou-se com a ideia de que, dada a
abolição da pena de morte no Reino Unido, era a punição máxima que as brandas leis atuais permitiam.
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Quando os três regressaram a Abu Zara no jato, Paul Stowe acompanhou-os a convite de Hector. Já não precisava de um couteiro-mor em Brandon Hall, mas, como Paul
era um elemento demasiado válido para o perder, Hector arranjou-lhe um novo emprego na Cross Bow Security.
Hector pôde dedicar-se a Catherine e a seguir o rasto de registos escritos que esperava que o conduzissem ao misterioso assassino.
No entanto, as dúvidas começavam a acumular-se nos recantos da sua mente. A lista de suspeitos estava a reduzir-se rapidamente à medida que recebia os relatórios
negativos dos seus agentes no terreno. Começou a ser assaltado por uma sensação de impotência e incapacidade, dois sentimentos aos quais não estava habituado.
Tentou combater estas mudanças de humor por via de pesado exercício físico e passando horas no campo de tiro. Também pôde contar com a distração de viajar para os
Estados Unidos para participar na assembleia geral anual da Bannock Oil, Inc., da qual continuava a ser um dos diretores.
Depois, os seus designers de interiores em Londres informaram-no de que tinham concluído a decoração da casa The Cross Roads em Lowndes Mews com apenas cinco dias
de atraso em relação ao prazo-limite que ele estipulara.
Foi com alívio que regressou ao bulício e à agitação de Londres.
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O decorador de interiores e dois dos seus assistentes mostraram a Hector a casa The Cross Roads. Nenhum detalhe fora descurado. A paleta de cores dominante que Hector
escolhera era de azuis e amarelos claros, com tons de castanho para contrabalançar. Era um ambiente acolhedor, funcional e masculino.
A sua equipa de empregados domésticos, cuidadosamente selecionados entre o seu pessoal da casa de Belgravia e de Brandon Hall, já se instalara nos seus alojamentos.
Cynthia, a chef, estava na cozinha, ocupada com as suas panelas e tachos.
Dois novos automóveis de carroçarias imaculadas, um Bentley Continental e um Range Rover, estavam estacionados na garagem subterrânea.
O bar e a adega estavam abastecidos com os seus vinhos e licores preferidos.
No seu estúdio, a iluminação era agradável aos olhos e tinha o computador ligado à rede.
A suíte principal era uma obra de arte, com uma cama gigantesca, preparada com os seus edredões de seda favoritos. Havia uma reluzente casa de banho masculina de
azulejos brancos, contígua a uma casa de banho feminina de um rosa suave, equipada, evidentemente, com um bidé. Os seus fatos e camisas tinham sido passados a ferro
e estavam pendurados no principal quarto de vestir. Os seus sapatos estavam guardados nas prateleiras, engraxados na perfeição.
Do outro lado do corredor ficava a suíte de criança de Catherine Antes de se mudar, Hector chamara Dave Imbiss de Abu Zara com a sua caixa de engenhos eletrónicos.
Dave varreu a casa a pente fino, desde a cave até ao telhado do sótão, e anunciou que estava livre de escutas ou de quaisquer outros dispositivos de vigia.
Hector decidira que, de futuro, viveria entre The Cross Roads. em Londres, e Seascape Mansions, em Abu Zara, passando dez dias alternados em cada um desses lugares.
Desse modo, poderia deleitar-se tanto com a agitação da metrópole como com a tranquilidade do reino do deserto.
Na primeira noite que passou em The Cross Roads, convidou três dos seus velhos companheiros de armas dos tempos da sua comissão no Serviço Aéreo Especial, e as respetivas
mulheres, para jantarem com ele. Foi uma noite de ameno convívio e só caiu na cama bastante depois da meia-noite.
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Na manhã seguinte, quando saía do duche, o seu telemóvel tocou. Secou a mão direita na toalha, sacudiu a água do cabelo molhado e agarrou no telemóvel pousado no
lavatório.
- Cross! - atendeu, contrariado. Ainda lhe doía um pouco a cabeça da diversão da noite anterior.
- Oh, espero não estar a incomodá-lo, senhor Cross - disse uma voz feminina.
- Jo? - perguntou ele numa voz hesitante. - Jo Stanley, não é? Ou deveria tratá-la por menina Stanley? - Sabia que era ela, claro. Há quase um ano que os acordes
musicais daquela voz lhe ecoavam suavemente nos remansos da memória.
- Jo soa-me melhor do que a sua segunda hipótese, Hector. - Que grande surpresa. Onde está? Não estará em Inglaterra por algum estranho acaso?
- Sim, estou em Londres. Cheguei ontem à noite, bastante tarde.
- Está no Ritz, como da outra vez? - Não, Santo Deus! - Hector sorriu ao ouvir aquela expressão. Era tão antiquada. - Não me posso dar ao luxo desse tipo de extravagância.
- Pode, sim, se depois enviar a conta ao Ronnie Bunter - sugeriu.
- Já não trabalho mais para o senhor Bunter - disse ela, apanhando-o de surpresa.
- Então para quem trabalha agora? - Para usar um eufemismo muito batido, neste momento estou em fase de transição profissional. - Voltou a surpreendê-lo.
- E o que a traz a Londres? - Vim vê-lo, Hector. - Não posso acreditar nisso. Porquê eu? - É complicado. Além do mais, há formas melhores e mais seguras de discutirmos
isto do que ao telemóvel.
- Na sua casa ou na minha? - perguntou ele, e ela voltou a rir-se. Era um som que agradava a Hector.
- Seria um atrevimento se lhe dissesse na sua? - Nunca chegaríamos a nenhum lado se nunca nos atrevêssemos. Onde a posso encontrar? Onde está hospedada?
- Num hotelzinho bastante simpático e com um nome também simpático, mesmo ao fundo de Chelsea Green.
- Qual é o nome? - Chama-se My Hotel. - Muito bem, sei qual é. Apanho-a aí na entrada principal dentro de quarenta e cinco minutos. Vou num... - Num Bentley prateado,
com a matrícula CRO 55, correto - Um palpite quase acertado, menina Stanley - riu-se. - Mas essa era a minha lata velha. A nova carripana é preta. Mas a matrícula
continua a ser a mesma.
- Santo Deus! Só os anjos conseguem perceber a fixação dos homens pelos carros.
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Jo estava especada à entrada do hotel. Vestia calças de ganga e um anoraque ligeiro, de cor azul, por cima de uma camisola de gola alta de malha branca em cabo trançado,
e segurava uma pasta de couro. Tinha mudado de penteado e usava agora o cabelo preso num puxo e com franjas. Ficava-lhe ainda melhor, pois dava a impressão de lhe
alongar mais o pescoço, fazendo-o parecer-se com o de um cisne. Tinha-se esquecido de como ela era alta e realmente elegante, mesmo em calças de ganga.
Quando lhe abriu a porta do lugar do passageiro, Jo enfiou-se no banco e apertou o cinto antes de se virar para ele.
- Não preciso de lhe perguntar como tem passado. Está com muito bom aspeto, Hector.
- Obrigado. E a Jo também está com excelente aspeto. Bem-vinda a Londres.
- Como está a Catherine Cayla? - Agora tocou no meu ponto fraco. Podia falar dela o dia todo. A Catherine Cayla é para lá de maravilhosa.
- Esqueça as minudências e conte-me as coisas importantes. - Tem olhos azuis e já sabe gatinhar. Até consegue dizer papá, só que o pronuncia como "Ba Ba", o que
prova, para lá de qualquer dúvida, que ela é um prodígio.
- Acha que alguma vez terei a oportunidade de a conhecer? - Ora aí está uma ideia magnífica.
Depois de estacionarem no pátio no exterior de The Cross Roads, Hector pegou na pasta dela e acompanhou-a ao vestíbulo da entrada. Jo olhou à sua volta, para a ampla
escadaria circular e para as portas abertas da sala de estar.
- Que acolhedor - comentou num tom aprovador. - Muito acolhedor. Ótimo gosto, Hector. Aquilo ali é um Paul Gauguin autêntico? - Indicou a enorme pintura a óleo na
parede ao fundo da sala de estar. - Antes fosse! A Hazel mandou fazer cópias de toda a sua coleção de arte para poder guardar os originais num depósito seguro sem
precisar de pagar um seguro exorbitante. Deve-se lembrar de que os originais pertenciam todos ao Fundo Fiduciário. Conserve: esta cópia em memória da Hazel. - Ficou
surpreendido ao constatar a facilidade com que agora conseguia falar de Hazel, com prazer e não com dor.
Pousou a pasta dela e ajudou-a a tirar o anoraque. Especado ao lado dela, recordou-se do seu perfume quando se tinham conhecido: Chanel Nº 22 - perfeito para ela.
- Se lhe parecer bem, podemos trabalhar no meu estúdio. Suponho que viemos aqui para trabalhar e não para nos pormos a admirar as minhas falsas obras-primas, não
é?
Ela riu-se baixinho. - Supôs bem. - Gostou da forma como ele admitiu prontamente que alguns dos seus quadros eram cópias. Era a confirmação daquilo que já suspeitava
quando o conhecera: Hector era um homem direto e sincero, sem arrogância nem presunção. Um homem no qual uma mulher podia confiar, e do qual os homens maus faziam
bem em afastar-se.
Hector tomou-lhe o cotovelo para a ajudar a subir as escadas. O estúdio exibia uma atmosfera muito masculina. Mas ela nunca esperara uma coleção tão grande de livros.
O soalho estava coberto com tapetes persas de cores e padrões agradáveis. A escrivaninha de teca esculpida dominava a divisão espaçosa. Na parede do fundo estava
pendurado um retrato a óleo de Hazel, especada num campo de trigo dourado e segurando na mão um chapéu de palha de aba larga. Com a outra mão protegia os olhos do
sol e estava a rir. O cabelo era de um dourado mais escuro que o trigo e esvoaçava ao vento. Jo baixou o olhar; sentiu uma estranha emoção que não conseguia definir.
Não sabia se era inveja ou admiração, ou compaixão.
Hector pousou a pasta dela na comprida e antiga mesa de Biblioteca e deu uma palmadinha na poltrona de couro capitoné. - É o assento mais confortável aqui no estúdio.
- Obrigada - disse ela. Mas, em vez de se sentar de imediato, deambulou ao longo das estantes enquanto examinava a coleção dele. - Quer alguma coisa para beber ou
comer? - perguntou-lhe. - Estou mortinha por tomar uma chávena de café. - A morte não é para aqui chamada - disse, acercando-se da máquina de café Nespresso escondida
atrás de um antigo biombo chinês no canto. - Nunca deixo que sejam os outros a prepararem-me o café - explicou. - Nem sequer a minha chef Cynthia.
Jo sentou-se por fim na poltrona que Hector lhe indicara e ele colocou as chávenas em cima da mesa ao lado dela. Sentou-se na sua própria poltrona atrás da escrivaninha.
- Temos assuntos muito delicados a discutir. Podemos fazê-lo aqui em segurança? - perguntou ela baixinho.
- Não precisa de se preocupar, Jo. Pedi a uma pessoa da minha absoluta confiança que fizesse uma revista minuciosa a toda a casa.
- Peço desculpa por ter perguntado. Sei que você é um profissional, Hector. - Ele inclinou a cabeça num gesto de aceitação da desculpa e ela prosseguiu: - Vim durante
toda a viagem sobre o Atlântico a pensar na melhor forma de lhe explicar tudo isto. Decidi que a única maneira era começar pelo princípio.
- Parece-me ser a solução mais lógica - concordou. - É por isso mesmo que vou começar pelo fim. - Agora que penso nisso, também me parece muito lógico,
mas só para quem é mulher, claro.
Ela não fez caso do sarcasmo. A sua expressão começou a alterar-se. O entusiasmo e a desenvoltura esmoreceram. Os olhos encantadores encheram-se de sombras.
Hector desejou desesperadamente ajudá-la, mas apercebeu-se de que a melhor forma de o fazer era continuar em silêncio e ouvi-la. Ela falou por fim.
- O Ronald Bunter é um excelente advogado e um homem honesto e de princípios nobres. Mas, como principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock,
teve de enfrentar uma decisão terrível. Teve de decidir se deveria trair a sua ética profissional ou as vidas de inocentes confiados ao seu cuidado.
Calou-se e Hector percebeu, por um rasgo de intuição, que ela se vira confrontada com a mesma terrível decisão.
Ela suspirou, e foi um som pungente. Pousou a mão na pasta e disse: - Tenho aqui dentro uma cópia digital da escritura do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Roubei-a da firma de advogados à qual jurei fidelidade. O Ronald Bunter deu-me uma cópia das chaves e os códigos para eu poder entrar na casa-forte enquanto o edifício
estava deserto, e ajudou-me a não ser descoberta. Foi meu cúmplice. Só cometemos este ato depois de uma longa e profunda discussão e reflexão. Mas, no final, decidimos
que a justiça era mais importante que a estrita letra da lei. É algo quase inaceitável para um advogado. Ainda assim, quando terminei aquilo que me dispus a fazer,
senti que era meu dever, perante Deus e a minha própria consciência, demitir-me da firma cuja confiança tinha traído de forma tão lamentável.
Hector deu-se conta de que tinha estado a suster a respiração enquanto a ouvia. Soltou um suspiro longo e quase inaudível e disse: - Se pensa fazer isso por mim,
não posso permitir que o faça. É um sacrifício demasiado grande.
- Já o fiz - disse ela. - Agora já não posso voltar atrás. É demasiado tarde. Além do mais, foi a decisão mais correta. Por favor, não me tente convencer do contrário.
Encare isto como uma prenda para si e para a Catherine Cayla.
- Já que coloca as coisas nesses termos, não me resta outra opção senão aceitar. Obrigado, Jo. Verá que não somos nenhuns ingratos. - Eu sei que não. - Baixou o
olhar e fixou-o nas mãos enlaçadas no regaço. Quando voltou a olhar para ele, recuperara por completo o controlo das emoções.
- A escritura do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock redigiu é uma monstruosidade de trezentas páginas. Levaria uma eternidade a lê-la até ao fim, porque cairia
logo de sono a cada duas ou três páginas lidas.
Abriu a pasta e tirou duas pequenas pens. Sopesou-as na mão, como se estivesse relutante em lhas entregar.
- O que fiz foi preparar-lhe uma cópia digital da escritura original do Fundo Fiduciário. - Pousou uma das pens à frente dele na escrivaninha. - Depois, nesta segunda
pen, expus os antecedentes e a história que levaram à formação do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock criou, bem como a reação em cadeia que esse ato desencadeou
posteriormente. Com a cooperação total do Ronnie Bunter, acho que consegui organizar os factos numa espécie de ordem lógica e coerente e de leitura fácil. Suponho
que sempre existiu em mim uma forte ambição de um dia vir a ser escritora, porque dei por mim muito envolvida neste processo. - Sorriu de forma autodepreciativa.
- Seja como for, ofereço-lhe a minha primeira tentativa no campo da literatura. Não é nenhum romance, nem sequer uma novela, porque tudo aquilo que contém é factual.
Levantou-se e pousou a segunda pen ao lado da primeira à frente dele na escrivaninha. Hector agarrou nela e examinou-a com curiosidade. Jo voltou a sentar-se e observou-o.
Ele estendeu o braço sobre a escrivaninha e inseriu a pen no computador.
- Está em formato Word - disse Jo. - Está a abrir sem problemas - replicou ele. - Mas agora está a pedir uma palavra-passe.
- É sementeenvenenada7805 - disse ela. - Tudo em minúsculas e tudo junto.
- Já está. Aqui vamos. Está a abrir. - Leu em voz alta o título do cabeçalho do documento: - "Karl Pieter Kurtmeyer: A Semente Envenenada".
- Espero que ache o conteúdo mais interessante do que aquilo que o título dá a entender - disse Jo.
- Vou começar a ler já, mas parece-me que vai demorar umas horas, ou mesmo dias. Há alguma coisa que eu possa fazer para a entreter nesse entretanto? Gostaria de
ler um livro ou ver televisão, ou dar um passeio para ver as vistas ou ir às compras? Londres é uma cidade com muita diversão.
- Sinto-me exausta por causa do jetlag. - Ocultou o bocejo por trás da mão. - Não preguei olho durante aquela viagem horrível em classe turística. Já para não falar
da turbulência e da mulher obesa sentada ao meu lado que não parava de ressonar como uma leoa furiosa e transbordava do assento dela para o meu. Não consegui pregar
olho.
- Coitada! - Levantou-se. - Não se preocupe. O problema resolve-se facilmente. Siga-me. - Levou-a para a suíte de hóspedes.
Quando ela reparou na cama, sorriu. - Já vi campos de polo mais pequenos do que isto.
Ficou também impressionada com a casa de banho. Hector levou-a de volta para o quarto principal e disse-lhe: - Os roupões estão no guarda-roupa. Escolha o que quiser,
depois feche a porta e diga adeus a este mundo cruel durante o tempo que achar necessário.
Voltou para o estúdio. Sentou-se à frente do computador e começou a ler a primeira página de "A Semente Envenenada".
Aquelas que impusera aos homens, mulheres e crianças judeus no campo de concentração.
Marlene Imelda deu por si viúva na tenra idade dos vinte e um anos.
Quando o património de Heinrich foi avaliado para fins fiscais, descobriu-se que tinha outro vício secreto, bastante diferente do de chacinar judeus indefesos: fora
um apostador compulsivo. Contrariamente àquilo que a maior parte das pessoas de Dusseldórfia acreditava, Heinrich não era um homem abastado. Tinha dilapidado a sua
fortuna. Marlene Imelda e o filho de tenra idade ficaram quase na miséria.
No entanto, ela era jovem, bela e expedita. Sabia onde o dinheiro estava. Emigrou para os Estados Unidos da América e, poucos meses após a sua chegada, já tinha
arranjado emprego como secretária assistente de uma emergente companhia de exploração petrolífera sediada em Houston.
O fundador e proprietário da companhia era um homem chamado Henry Bannock. Era uma personagem bem-parecida, exuberante e impressionante. No aspeto, fazia lembrar
John Wayne, com um toque de Burt Lancaster. Na sua juventude, tinha pilotado caças de combate F-86 Sabre na Coreia e foram-lhe creditados oficialmente seis abates.
Mais tarde, fundara no Alasca a sua própria companhia de voos chárter, à qual chamara Bannock Air. Fretara muitos voos para as grandes companhias de exploração petrolífera
e, no decurso dessas atividades comerciais, conhecera muitos executivos de topo, os quais o iniciaram nos segredos do ofício e lhe facilitaram a entrada no mundo
da exploração petrolífera. Pouco depois, tinha adquirido várias concessões de perfuração. Um pouco antes de Marlene Imelda ter ido trabalhar para a Bannock Oil,
Henry tinha comprado o seu primeiro campo de petróleo na Encosta Norte do Alasca, de modo que já era um multimilionário.
Marlene tinha vinte e poucos anos e era ainda mais bela do que fora aos dezanove anos, quando conhecera Heinrich. Sabia como agradar a um homem, tanto na cama como
fora dela. E agradou desmesuradamente a Henry Bannock. O facto de ela já ter um filho jovem tornava-a ainda mais desejável aos seus olhos.
Karl Pieter Kurtmeyer herdara a beleza da mãe. Era até ainda mais bem-parecido do que ela. Tinha cabelo loiro espesso, queixo saliente e uma pequena dobra epicântica
nas pálpebras que lhe conferia um ar misterioso e pensativo. Esta imperfeição menor parecia realçar-lhe a perfeição dos outros traços faciais.
Karl era inteligente e eloquente. Mesmo naquela tenra idade, já falava espanhol, francês, alemão e inglês. As suas notas na escola eram invariavelmente excelentes.
Henry ficava impressionado com pessoas bem-parecidas que também eram inteligentes e dóceis. Karl tinha todos estes atributos, à semelhança da mãe.
Quando Henry Bannock casou com Marlene Imelda, adotou Karl formalmente e mudou-lhe o nome para Carl Peter Bannock, abandonando assim a grafia teutónica dos seus
nomes de batismo. Graças aos seus contactos, Henry conseguiu inscrever Carl na Escola Primária de St. Michael, uma das escolas privadas mais prestigiadas do Estado
do Texas. Carl brilhou aí. Foi sempre um dos três melhores alunos da turma e fazia parte das equipas de futebol americano e de basquetebol da escola.
Em casa, Marlene Imelda demonstrou que Henry não era infértil, como proclamavam os rumores dos seus muitos inimigos. Pouco depois do casamento, deu à luz uma menina
com três quilos e dezoito gramas. Tal como a mãe, Sacha Jean era uma beldade excecional. Também era uma criança doce e sensível, com dotes musicais. Começou a aprender
piano aos três anos, e aos sete já conseguia executar mesmo as composições mais tecnicamente exigentes do repertório clássico padrão, como o Concerto para Piano
nº 3 de Rachmaninov. Adorava o seu irmão Carl.
Sacha tinha quase nove anos de idade quando Carl a forçou a ter sexo com penetração completa. Andara a prepará-la para esse efeito ao longo dos seis meses anteriores,
convencendo-a a acariciar-lhe os genitais quando estavam sozinhos. Carl tinha treze anos e tivera um desenvolvimento sexual precoce. Ensinou Sacha a manusear-lhe
o pénis, segurando-o na mão e movendo-o para trás e para a frente até ele ejacular. Carl era paciente e amável com ela, dizendo-lhe o quanto a amava e que ela era
esperta e bonita e lhe agradava imenso. Na sua inocência, Sacha via naqueles jogos um precioso segredo entre os dois, e ela gostava imenso de segredos.
O local preferido de Carl para ter relações íntimas com ela eram os vestiários da piscina, nos jardins de cinco hectares da residência da família. A melhor altura
era quando o pai se ausentava em negócios no Alasca e a mãe se retirava para repousar após o almoço. Marlene adquirira o hábito de tomar três ou mais cocktails de
gim e lima à hora do almoço e os passos vacilavam-lhe quando se levantava da mesa e se retirava para o quarto. Era nessa altura que Carl levava Sacha para a piscina.
Da primeira vez que Carl ejaculou dentro da boca dela, Sacha foi completamente apanhada de surpresa. Ficou enojada com o sabor do esperma e chorou, dizendo-lhe que
já não queria brincar mais com ele. Carl deu-lhe um beijo e disse que não fazia mal se ela já não o amava, mas que ele continuava a amá-la. No entanto não se comportava
como se ainda a amasse. Nas semanas seguintes, mostrou-se muito distante e dizia-lhe coisas maldosas e odiosas. No final, foi ela própria quem acabou por sugerir
que deviam ir nadar juntos após o almoço. Não tardou a habituar-se ao sabor. Mas depois, às vezes ele forçava o pénis demasiado fundo na sua garganta e à noite ela
chorava durante o sono. A única coisa que importava era que o irmão voltara a amá-la.
Certa tarde, Carl obrigou-a a tirar as cuecas. Sentou-se no banco à frente dela e tocou-lhe nos genitais. Sacha fechou os olhos e tentou não estremecer e esquivar-se
quando ele lhe enfiou o dedo. No final, ele levantou-se e ejaculou em cima da barriga dela. Depois, disse-lhe que ela estava nojenta e que devia limpar-se e não
contar a ninguém. E levantou-se sem lhe dirigir mais nenhuma palavra.
Sacha não quis jantar nessa noite. A mãe deu-lhe duas colheres de óleo de rícino e não a deixou ir à escola no dia seguinte.
Três semanas antes da festa do seu nono aniversário, Carl entrou no quarto de Sacha quando a casa estava em silêncio. Tirou as calças do pijama e enfiou-se na cama
com ela. Quando a penetrou, foi tão doloroso que ela gritou, mas ninguém a ouviu.
Depois de ele voltar para o seu próprio quarto, Sacha descobriu que estava a sangrar. Sentou-se na sanita, a ouvir o sangue pingar na água. Sentia demasiada vergonha
de si mesma para chamar a mãe. De qualquer modo, sabia que a mãe estava trancada no quarto e que nunca lhe abriria a porta, por mais que ela batesse ou implorasse.
Pouco depois, a hemorragia parou e Sacha enfiou a camisa de noite entre as pernas. Avançou a coxear até ao fundo do corredor e tirou um lençol lavado do armário
da roupa de cama para substituir o que estava manchado de sangue. Depois, seguiu de modos furtivos para a cozinha vazia, onde enfiou o pijama e o lençol sujos num
saco do lixo que depois depositou no caixote do lixo.
No dia seguinte, verificou que toda a gente na escola a olhava fixamente. Costumava ser uma das melhores alunas a matemática, mas nesse dia não conseguiu encontrar
a solução para nenhuma das questões do teste. A professora chamou-a no final da aula e repreendeu-a pelo seu fraco desempenho.
"Que se passa contigo, Sacha?" Atirou a folha do teste para cima da secretária à sua frente. "Isto nem parece nada teu."
Sacha não foi capaz de responder. Voltou para casa e roubou uma das lâminas de barbear da casa de banho do pai. Foi para a sua própria casa de banho e cortou ambos
os pulsos. Uma das criadas viu o sangue escorrer por baixo da porta e correu aos gritos para a cozinha.
Os outros criados arrombaram a porta e depararam com ela. Chamaram uma ambulância. Os cortes que ela infligira nos pulsos não eram suficientemente fundos para porem
a sua vida em risco.
Marlene manteve-a em casa e não a deixou ir à escola durante três semanas. Quando Sacha regressou às aulas, disse à sua professora de música que nunca mais voltaria
a tocar piano. Recusou-se a participar no sarau musical que estava programado para a sexta-feira seguinte. Alguns dias mais tarde, cortou todo o cabelo com um par
de tesouras e esfacelou a cara com as unhas até fazer sangue, pois convencera-se de que tinha a pele coberta de pústulas de acne. Os seus traços faciais tornaram-se
macilentos e os seus modos, furtivos e nervosos. Os olhos pareciam assombrados. Deixara de ser bonita. Carl disse-lhe que era feia e que já não queria brincar mais
com ela.
Um mês depois, Sacha fugiu de casa. A polícia encontrou-a oito dias mais tarde, em Albuquerque, no Novo México, e levou-a para casa. Poucos meses depois, voltou
a fugir. Dessa vez, conseguiu chegar à Califórnia antes que a polícia a encontrasse.
Quando a obrigaram a voltar às aulas, ateou fogo às salas de música. As chamas destruíram toda essa ala da escola, com danos que ascenderam a vários milhões de dólares.
Após um prolongado e minucioso exame médico, Sacha foi enviada para o Hospital Psiquiátrico de Nine Elms, em Pasadena, onde iniciou um demorado e complicado programa
de tratamento e reabilitação. Nem uma única vez alguém suspeitou que ela tivesse sofrido qualquer tipo de abuso. Parecia que a própria Sacha expurgara por completo
esses incidentes da memória.
Começou a ganhar peso com rapidez. Num espaço de seis meses, o seu corpo ficou disforme e tornou-se clinicamente obesa. Usava sempre o cabelo cortado muito rente.
Os olhos tornaram-se mortiços e estupidificados e roía as unhas até ao sabugo, ao ponto de as extremidades dos dedos se deformarem e parecerem tocos. Chuchava no
polegar de modo quase contínuo. Tornou-se cada vez mais nervosa e muito agressiva. Atacava as enfermeiras e outros pacientes à mínima provocação. Mostrava, em particular
um antagonismo violento contra qualquer enfermeira que tentasse questioná-la acerca do seu relacionamento com a família. Sofria de insónias e começou a ter episódios
de sonambulismo.
Quando a família foi autorizada a visitá-la pela primeira vez desde que fora internada, Sacha mostrou-se soturna e fechada. Respondia às perguntas dos pais com grunhidos
animalescos e monossílabos resmoneados. Não reconheceu o irmão que outrora tanto amara.
- Não vais dizer olá ao Carl Peter, querida? - repreendeu-a a mãe num tom gentil. Sacha desviou os olhos.
- Mas ele é teu irmão, querida Sacha - insistiu Marlene. Sacha revelou uma pequena centelha de agitação. - Não tenho nenhum irmão - disse, usando uma frase completa
pela primeira vez, mas sem em momento algum levantar o olhar do chão. - Não quero ter nenhum irmão.
Henry Bannock levantou-se ao ouvir isto e disse à sua mulher: - Esperamos por ti no parque de estacionamento. Parece que eu e o Carl fazemos mais mal do que bem
ao virmos aqui. - Fez sinal a Carl com a cabeça. - Vamos lá, meu rapaz. Vamos embora daqui.
Henry abominava presenciar qualquer tipo de miséria e sofrimento, sobretudo quando se relacionavam pessoalmente com ele.
Limitava-se a fechar a mente a isso, dissociava-se dessas realidades e afastava-se. Nem ele nem Carl Peter voltariam a Nine Elms.
Marlene, por sua vez, nunca faltou a uma visita à filha. Todos os domingos de manhã, o motorista fazia o trajeto de cento e cinquenta quilómetros até Pasadena, onde
ela passava o resto do dia a tagarelar com a filha calada e retraída. Numa dessa visitas, levou uma cassete de concertos de piano de Rachmaninov para pôr a tocar
num gravador portátil, na esperança de que isso pudesse voltar a despertar-lhe os talentos musicais.
Aos primeiros compassos do primeiro andamento de abertura do Concerto n°. 3 em ré menor, Sacha levantou-se de um salto, agarrou no gravador e atirou-o contra a parede
com uma fúria louca. O aparelho despedaçou-se. Sacha lançou-se ao chão, encolheu-se na posição fetal, enfiou o polegar na boca e começou a bater ritmicamente a cabeça
contra o chão. Foi a última vez que Marlene tentou intervir no tratamento dela.
A partir desse incidente, limitou-se a ler poesia a Sacha ou a debitar-lhe um relato detalhado dos acontecimentos triviais da semana anterior. Sacha permanecia em
silêncio e completamente fechada sobre si própria. Fixava a parede, baloiçando-se para trás e para a frente na cadeira como se fosse um cavalo de baloiço.
Meses mais tarde, Marlene Imelda descobriu que estava novamente grávida. Aguardou até que o seu ginecologista lhe confirmasse o sexo da criança; depois, na visita
seguinte a Nine Elms, confidenciou a Sacha: - Sacha, minha querida. Tenho uma notícia maravilhosa para ti. Estou grávida e vais ter uma irmãzinha.
Sacha virou a cabeça e olhou Marlene nos olhos pela primeira vez durante essa visita. - Uma irmã? Vou ter uma irmã? De certeza que não é um rapaz? - perguntou numa
voz clara e com lucidez.
- Sim, querida. Uma irmãzinha para ti. Não é maravilhoso? - Sim! Quero muito ter uma irmã. Mas não quero ter um irmão. - Que nome achas que lhe devíamos pôr? Qual
é o nome de que gostas mais?
- Bryoni Lee! Adoro esse nome. - Conheces alguém com esse nome? - Havia uma rapariga na escola que era a minha melhor amiga. - Sorriu. - Mas o pai dela arranjou
um novo trabalho e mudaram-se para Chicago. - Estava animada e falava como uma criança normal da sua idade.
Semana após semana, continuaram a falar da bebé, e, semana após semana, Sacha fazia-lhe as mesmas perguntas, sempre pela mesma ordem. E ria-se com as respostas da
mãe.
Um dia, no final do oitavo mês de gestação, Sacha sentou-se ao lado da mãe durante toda a duração da visita e Marlene segurou-lhe a mão contra a barriga. Quando
a bebé se mexeu sob a sua palma pela primeira vez, Sacha soltou gritinhos de excitação, tão alto que a enfermeira de serviço entrou a correr na sala de visitas.
- Mas que é que se passa, Sacha? - perguntou. - A minha irmãzinha! Anda cá sentir como ela se mexe. Marlene levou Bryoni Lee a visitar Sacha pela primeira vez quando
ela tinha três meses de idade. Sacha teve permissão para pegar na irmãzinha e sentou-se com ela no colo durante toda a visita, arrulhando-lhe e rindo-se para ela
e fazendo perguntas à mãe sobre ela.
Após essa primeira visita com Bryoni, Marlene nunca faltou a nenhuma das visitas semanais e Sacha pôde acompanhar o crescimento de Bryoni. Os seus terapeutas reconheceram
o efeito benéfico que a bebé estava a exercer sobre ela e encorajaram ativamente esse relacionamento.
E assim os anos foram passando.
54
Bryoni Lee tornou-se uma criança adorável. Era franzina e delicada, com traços faciais miudinhos e cativantes olhos escuros. O rosto em forma de coração era vivaz
e expressivo. As pessoas sentiam-se naturalmente atraídas por ela e sorriam-lhe sempre que a viam. Tinha uma voz encantadora. Os pés pareciam ter sido concebidos
para dançar. No entanto, era uma criança determinada e segura de si.
Bryoni Lee destacava-se por natureza própria das demais crianças. À semelhança do pai, Henry Bannock, era uma líder e uma organizadora nata. Assumia sem esforço
o controlo em qualquer grupo de miúdos e mesmo os rapazes mais velhos submetiam-se prontamente à sua vontade.
Henry precisou de algum tempo para se habituar a ter em casa uma criança que não conseguia dominar por completo, até porque se tratava de uma descendente sua disposta
a fazer-lhe frente. Henry tinha uma opinião muito firme sobre as diferenças entre os géneros e sobre os papéis e relações entre pais e filhos e entre homens e mulheres.
A questão da igualdade não figurava na sua lista.
Bryoni Lee deleitava-o pelo facto de ser inteligente e uma criança exemplar, mas também o alarmava quando lhe dava uma resposta torta e discutia com ele. Henry era
acometido de ataques de fúria contra ela. Gritava-lhe e ameaçava-a com castigos corporais. Certa vez chegou mesmo a cumprir essa ameaça. Arrancou o cinto das calças
e bateu-lhe na parte de trás das pernas desnudas. Causou-lhe um vergão vermelho, mas ela manteve-se firme e recusou-se a chorar.
- Não devias fazer isso, papá - disse-lhe num tom sério. - Tu mesmo me disseste que um cavalheiro nunca bate numa senhora.
Henry tinha abatido caças comunistas na Coreia e pregara sustos de morte a operadores de sondas e outros operários matulões e durões que trabalhavam nas suas plataformas
petrolíferas, mas agora transigia perante uma rapariguinha de oito anos.
- Perdoa-me - disse-lhe enquanto enfiava o cinto nas presilhas das calças. - Tens razão. Não devia ter feito isso. Não voltarei a fazê-lo. Prometo-te. Mas tens de
aprender a prestar atenção ao que te digo, Bryoni Lee!
Por seu turno, passou a ouvir o que ela tinha para dizer, uma cortesia que raramente dispensara a qualquer outra mulher. E descobriu, para sua grande surpresa, que
muitas das vezes Bryoni Lee tinha razão no que dizia.
55
O ano do décimo aniversário de Bryoni Lee foi memorável na família Bannock. Em maio, Henry inaugurou o seu primeiro poço de petróleo ao largo da costa. A capitalização
bolsista da Bannock Oil alcançou os dez mil milhões de dólares. E comprou o seu próprio jato privado, um Gulfstream V, que ele próprio costumava pilotar. Nesse mesmo
mês, a família Bannock mudou-se para a sua nova residência em Forest Drive. Concebida por Andrew Moorcroft, da firma de arquitetos Moorcroft & Haye, erguia-se em
seis hectares de parques e continha oito suítes. Foi-lhe outorgado o Prémio de Melhor Casa pelo Instituto Americano de Arquitetos.
Carl Peter Bannock diplomou-se com distinção pela Universidade de Princeton e em junho começou a trabalhar na sede social da Bannock Oil, em Houston.
Em julho, Henry Bannock pediu ao seu velho amigo e advogado Ronnie Bunter para criar o Fundo Fiduciário da Família Henry
Bannock, a fim de proteger a sua família imediata de quaisquer danos e adversidades para o resto das suas vidas. Estudaram e analisaram penosamente o enunciado e
as cláusulas, até que, em agosto, Henry assinou por fim a escritura.
Ronald Bunter conservou o documento original na casa-forte da firma e Henry guardou a única cópia existente na sua própria casa-forte em Forest Drive.
Em agosto desse mesmo ano, os médicos do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms disseram a Henry e a Marlene que Sacha Jean nunca estaria em condições de viver fora
de uma instituição e que permaneceria internada para o resto da vida. Henry não fez nenhum comentário e Marlene trancou-se na sua nova e sumptuosa suíte com uma
garrafa de gim Bombay Sapphire.
Em setembro, Marlene Imelda Bannock iniciou um tratamento de desintoxicação de três meses numa clínica de reabilitação para alcoólicos, em Houston.
Em outubro, Henry Bannock divorciou-se de Marlene Imelda Bannock e obteve a custódia total de ambas as filhas: Sacha e Bryoni. Carl já era um adulto, de modo que
o seu nome nunca chegou a figurar nos papéis do divórcio. Quando Marlene completou o programa de reabilitação, foi viver sozinha para as ilhas Caimão, numa magnífica
propriedade junto à praia, onde era servida por uma vasta equipa de empregados domésticos. Todas essas benesses resultavam de uma das disposições que constavam do
acordo de divórcio.
Nos finais de outubro, a Direção de Aviação Civil recusou-se a renovar o brevete de piloto comercial de Henry Bannock, pois este não tinha passado no exame médico.
- Mas que diabos está você para aí a dizer? - perguntou Henry em fúria ao médico que estava a fazer o exame. - Acabei de comprar um Gulfstream por doze milhões de
dólares. Não me pode retirar o brevete agora. Estou tão fisicamente capaz como quando pilotava os jatos Sabre lá na Coreia.
- Com todo o respeito, permita-me recordar-lhe, senhor Bannock, que isso já foi há cerca de duas décadas. Desde então. o senhor tem-se matado a trabalhar como um
mouro. Quando foi a última vez que tirou férias?
- Que raios tem isso que ver com a renovação do meu brevete Não tenho tempo para gozar férias.
- É exatamente aí onde quero chegar, senhor. Diga-me, quantos Havanas já fumou desde a guerra da Coreia? Quantas garrafas de Jack Daniel's já emborcou? Faz exercício
físico?
- Está a ser insolente, meu rapaz. - O rosto de Henry ficou vermelho. - Isso é um assunto que só a mim diz respeito.
- Peço desculpa. No entanto, devo dizer-lhe que sofre de caso crónico de fibrilação auricular.
- Não me venha com essa conversa técnica. Que diabos está você para aí a fibrilar e a disparatar?
- Estou a tentar dizer-lhe que o seu coração anda a dançar de um lado para o outro como o Gene Kelly sob o efeito de esteroides. Mas isso é só meia missa. A sua
tensão arterial subiu até lá acima ao espaço como o Neil Armstrong. Se eu fosse seu médico, punha-o já a tomar Coumadin10, senhor Bannock. - Graças a Deus que você
não é o meu médico. Sei bem o que é essa coisa do Coumadin. Sei que é usado como veneno de rato e que o sabor não tem nada que ver com o Jack Daniel's. Portanto,
pode pegar nele e enfiá-lo pelo traseiro acima, doutor Menzies. - Henry levantou-se e saiu a passo largo do consultório.
Mesmo sem brevete, Henry continuou a pilotar o seu adorado Gulfstream. Dispunha de dois pilotos comerciais muito bem pagos que o substituíam aos comandos quando
necessário.
No entanto, às vezes acordava às primeiras horas da madrugada com o coração a palpitar e a bater irregularmente no peito. Recusou-se a consultar outro médico. Não
queria que lhe lessem em voz alta a própria sentença de morte.
Ciente da advertência de que os seus dias estavam contados, trabalhou ainda mais arduamente. A ideia de desistir dos Havanas e do seu Jack Daniel's era intolerável,
de modo que a tirou da cabeça.
Em novembro, Bryoni Lee ganhou um concurso estadual de matemática, vencendo alunos três ou quatro anos mais velhos do que ela, e os seus colegas de classe escolheram-na
como a aluna com mais probabilidades de vir a ser bem-sucedida na vida e de se tornar presidenta dos Estados Unidos da América. Com a mãe ausente, a própria Bryoni
assumiu os deveres de visitar a irmã mais velha.
Todos os domingos, Bonzo Barnes, o motorista e guarda-costas de Henry, levava-a a Nine Elms para passar o dia com Sacha. Bonzo era um ex-pugilista de pesos-pesados.
À semelhança da maior parte das pessoas, adorava a jovem Bryoni. Deixava-a sentar-se a seu lado à frente e tagarelavam, felizes, durante o percurso de ida e volta
até Pasadena.

Nota de Rodapé: Medicamento anticoagulante, usado para prevenir e tratar trombos e êmbolos, causadores, respetivamente, de tromboses e embolias.
Fim da Nota.
Em dezembro desse mesmo ano, enquanto o pai se ausentara para Abu Zara para renovar as concessões petrolíferas da Bannock Oil, Carl Peter Bannock conseguiu por fim
decifrar as palavras-passe e os códigos de acesso à casa-forte de Henry Bannock. Tinha descoberto um sítio no terraço da piscina de onde podia espiar sub-repticiamente
o estúdio do pai. Certa manhã de sábado, espiou, através das lentes de um potente par de binóculos Zeiss com ampliação de 10x, Henry sentado à secretária e viu-o
levantar o forro de seda da agenda de couro preto. Depois viu-o tirar de debaixo do forro um dos cartões de visita que tinha escondido aí.
No reverso do cartão via-se uma longa série de letras e números, escrita na caligrafia larga e firme de Henry. Viu o pai atravessar a divisão até à porta do cofre
pessoal. Depois viu-o consultar o que estava escrito no cartão e começar a rodar o disco da fechadura para trás e para a frente enquanto inseria a combinação e,
em seguida, viu-o girar a roda de bloqueio no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, abrindo depois a porta sólida e pesada.
Carl teve de esperar várias semanas até Henry partir de viagem. mas depois teve dez dias e dez noites para se dedicar ao seu plano.
Na primeira noite, após muitas tentativas frustradas, conseguiu dar conta das complicadas sequências de desativação do mecanismo de bloqueio e abrir a porta de aço
de acesso ao cofre.
Na noite seguinte, fotografou o interior do cofre e a disposição do conteúdo. Antes de se atrever a mexer no que quer que fosse. queria ter a certeza de conseguir
repor tudo exatamente na posição original. Sabia que o pai se aperceberia de imediato de qualquer alteração. Calçou luvas cirúrgicas de todas as vezes, para evitar
deixar impressões digitais em qualquer um dos itens do conteúdo do cofre, e prestava uma atenção minuciosa a todos os pormenores.
Na terceira noite, pôde começar a explorar o conteúdo do cofre. Os lingotes de ouro estavam empilhados numa área do chão onde o seu peso era suportado pelos alicerces
de aço e betão. Calculou que estivessem ali cerca de cinquenta ou sessenta milhões de dólares em ouro.
O comportamento de Henry sempre fora ditado por um peculiar misto de audácia temerária e cautela prudente. Aquele tesouro era o seu pequeno fundo de emergência.
Na seguinte fileira de prateleiras estavam as condecorações e as medalhas dos tempos de Henry na Força Aérea americana, bem como fotografias e recordações de significado
especial para ele. Nas prateleiras de aço por cima havia pastas de documentos e certificados de ações, obrigações, títulos de propriedade das numerosas propriedades
e concessões que Henry possuía em seu próprio nome. Os outros bens relevantes estavam em nome da Bannock Oil Corporation.
Na quarta prateleira a contar de cima, Carl encontrou aquilo que procurava realmente.
Já sabia da existência do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Enquanto ainda frequentava Princeton, tinha começado a intercetar os telefonemas do pai no quarto
e no estúdio. Tinha mesmo tentado aceder às linhas telefónicas privadas da sede da Bannock Oil, mas o cordão de segurança que protegia o Edifício Bannock era impenetrável.
Carl teve de se contentar em escutar na linha da principal suíte as numerosas conversas entre Henry e a sua ex-mulher e várias das suas amantes. Mas também fizera
transcrições dos telefonemas de Henry no estúdio no piso térreo, as quais incluíam várias conversas entre o pai e os seus parceiros de negócios e, mais importante
ainda, com os seus advogados.
Carl pudera, assim, acompanhar algumas das conversas entre Henry e Ronald Bunter, o principal advogado da família, enquanto elaboravam a escritura do Fundo Fiduciário.
Mas ficara apenas com uma vaga ideia do conteúdo exato e das cláusulas da escritura final.
E agora tinha descoberto a cópia que Henry possuía, um enorme tomo pousado a meio da quarta prateleira.
Mesmo assim, não se precipitou. Examinou minuciosamente o volume com uma lupa antes de o abrir. Marcou as páginas que Henry colara com minúsculas gotículas de cola.
Separou-as com enorme cuidado e voltou a colá-las assim que as leu.
Entre a página 30 e 31 encontrou o pelo que Henry aí colocara para detetar possíveis intrusos. Era um dos próprios pelos de Henry, crespo e encaracolado, que ele
arrancara de uma das suíças. Carl guardou-o num envelope branco e recolocou-o depois entre as páginas quando acabou de ler o documento.
Devido a todas estas precauções preliminares, restaram a Carl três noites seguidas para estudar a escritura do novo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock antes
de o pai regressar do Médio Oriente. Aquilo que leu conferiu-lhe uma exaltante sensação da sua própria supremacia. A escritura do Fundo Fiduciário outorgava-lhe
poderes quase divinos. Estava armado contra o mundo e escudado por milhares de milhões de dólares. Era invencível.
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Sacha Jean regredira de forma gradual ao longo do tempo, até à idade mental equivalente à de uma criança de cinco ou seis anos. O seu mundo encolhera à medida que
o seu cérebro asfixiava sem estímulos e se encerrava. Já não reconhecia ninguém, à exceção das enfermeiras de meia-idade, que tinham sido particularmente amáveis
com ela, e da sua irmã Bryoni.
Quando a enfermeira que cuidava dela chegou à idade da reforma, o mundo de Sacha, já de si limitado, voltou a reduzir-se. Tornou-se então pateticamente dependente
de Bryoni.
Quando o clima o permitia, ambas passavam os domingos nos jardins de Nine Elms. Com o passar dos anos, os médicos foram-se apercebendo de que Bryoni era responsável
e não hesitavam em deixar Sacha entregue ao seu cuidado durante todo o dia da visita.
Sacha tinha agora vinte e poucos anos e era obesa. Era muito mais alta do que a irmã, mas Bryoni agia como uma mãe e levava-a pela mão para o local preferido dela
junto ao lago, onde faziam um piquenique e atiravam migalhas aos patos. Sacha já não conseguia concentrar-se o suficiente para ler sozinha, mas adorava cantigas
infantis. Bryoni trauteava-lhas. Jogavam à macaca, às imitações e às escondidas. Bryoni tinha uma paciência infinita. Dava de comer a Sacha o almoço que trouxera
de casa e limpava-lhe a cara e as mãos quando acabava de comer. Levava-a à casa de banho e ajudava-a a limpar-se e a ajeitar a roupa quando terminava.
Sacha adorava especialmente que lhe fizessem cócegas nas costas. Gostava de tirar a blusa e deitar-se de barriga em cima da manta para que Bryoni lhe fizesse cócegas.
Sempre que a irmã parava. punha-se a gritar: "Mais! Mais!"
Certo domingo, Bryoni estava a fazer-lhe cócegas quando Sacha disse numa voz bastante clara: - Se ele alguma vez te quiser tocar na pombinha, não o deixes.
Bryoni parou de repente de lhe fazer cócegas e pensou naquilo que a irmã acabara de dizer. "Pombinha" era a palavra infantil que ambas usavam para referir a vagina.
- O que é que disseste, Sash? - perguntou numa voz cuidadosa. - Quando?
- Agora mesmo. - Eu nunca disse nada - negou Sacha. - Disseste, sim. - Nunca disse. Nunca disse nada. - Sacha já estava a ficar agitada e nervosa. Bryoni conhecia
os sintomas. De seguida, iria encolher o corpo na posição fetal e começar a chuchar o polegar ou a bater com a cabeça no chão.
- Fui eu que me enganei, Sash. Claro que não disseste nada. Sacha descontraiu-se e começou a falar do seu cachorrinho. Queria o seu cãozinho de volta. No seu último
aniversário, a mãe dera-lhe um cachorrinho, mas Sacha adorava tanto o animal que o apertara com demasiada força e acabara por o asfixiar. Tiveram de lhe dizer que
o cão estava a dormir para conseguirem arrancar-lhe o cadáver das mãos. Pedia sempre a Bryoni para lho trazer de volta. Mas os médicos não permitiam que Sacha tivesse
outro animal de estimação.
O domingo seguinte foi um dia límpido e soalheiro e as duas fizeram um piquenique no local habitual, junto à borda do lago. Sacha não gostava que as coisas mudassem.
As mudanças deixavam-na nervosa e insegura. Quando acabaram de almoçar, Sacha pediu: - Faz-me cócegas nas costas.
- Quais são as palavras mágicas? - perguntou-lhe Bryoni. Sacha pensou, de testa franzida em concentração, mas acabou por desistir. - Esqueci-me de quais são. Diz-me
tu.
- Tens que dizer "por favor", não te lembras?
- Sim. Sim. É "por favor" - Sacha bateu as mãos de alegria.
- Por favor, Bryoni. Faz-me cócegas nas costas, por favor. - Tirou a blusa e estendeu-se sobre a manta. Pouco depois, Bryoni pensou que ela tinha adormecido, mas
de repente Sacha disse: - Se o deixares tocar-te na pombinha, ele enfia-te a coisa dura dele dentro e faz-te deitar sangue. Bryoni ficou petrificada. As palavras
chocaram-na, ao ponto de a fazerem sentir-se agoniada. No entanto, fingiu não ter ouvido e continuou a afagar as costas da irmã. Pouco depois, começou a trautear
uma canção infantil. Sacha tentou acompanhá-la, mas baralhou as palavras e ambas desataram às gargalhadas.
De seguida, Sacha disse: - Se ele te enfiar a coisa dele na tua pombinha, depois fica a doer muito e a deitar sangue. - Repetir as mesmas coisas vezes sem conta
era um truque que a sua mente danificada lhe pregava. - Está na hora de eu ir, Sash - disse Bryoni por fim. - Oh, não! Por favor, fica mais um pouquinho. Fico muito
assustada e triste quando tu vais embora e me deixas sozinha.
- Volto cá no próximo domingo. - Prometes? - Sim, prometo.
57
No domingo seguinte, Bryoni levou um gravador que tinha tomado de empréstimo do estúdio do pai.
Ambas caminharam de mãos dadas até à borda do lago. Bryoni levava a manta e o cesto de piquenique. Quando chegaram ao seu local favorito, Sacha estendeu a manta,
certificando-se de que não ficara com dobras nem pregas. Estender a manta era da sua responsabilidade e era muito conscienciosa e orgulhosa da sua capacidade de
a estender na perfeição. Enquanto a irmã concentrava toda a sua atenção na manta, Bryoni tirou o gravador do bolso das calças de ganga, ligou-o e guardou-o no bolso
sem que Sacha se apercebesse.
O dia seguiu o seu padrão habitual: atiraram migalhas aos patos e falaram do cachorrinho de Sacha, que estava com a sua mãe cadela no céu. Almoçaram e Bryoni levou
Sacha à casa de banho. Voltaram para junto do lago e deitaram-se na manta. Sacha pediu-lhe que lhe fizesse cócegas nas costas e Bryoni obrigou-a a pedir "por favorDepois,
enquanto lhe fazia cócegas, começou a trautear uma canção infantil, a qual desencadeou toda uma associação de ideias na mente estropiada de Sacha, como Bryoni esperava
que acontecesse.
De repente, Sacha disse: - Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar-me dentro da boca. Tinha um sabor horrível
Bryoni estremeceu, mas continuou a cantarolar baixinho. Dessa vez, Sacha parecia estar serena e continuou a divagar.
- Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito.
Voltou a calar-se e Bryoni continuou a trautear baixinho e num tom tranquilizador. De repente, Sacha soergueu-se e exclamou: - Já me lembro! Chamava-se Carl Peter
e era mesmo meu irmão. Mas depois ele foi embora. Todos eles foram embora. A minha mamã e o meu papá; todos eles foram embora e deixaram-me sozinha. A não ser tu,
Bryoni.
- Nunca te vou deixar, Sash. Ficaremos juntas para sempre, como as irmãs devem ficar. - Sacha acalmou-se e voltou a deitar-se de barriga para baixo. Bryoni recomeçou
a afagá-la e a cantar baixinho. De repente, Sacha falou alto, num tom de voz mais parecido com a idade que tinha realmente e não na voz da criança de cinco anos
em que se tornara.
- Sim, já me lembro que foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela
coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque
o Carl me tinha dito para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?
- Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas.
- Promete que nunca me vais deixar, Bryoni. - Prometo-te que nunca te vou deixar, minha querida Sash.
58
Nessa noite de domingo, quando Bryoni regressou a casa após a visita a Nine Elms, o novo Ford Mustang de Carl estava estacionado no caminho de acesso. Quando ela
entrou em casa, Carl descia a correr a escadaria principal. Estava de fato e gravata. Os sapatos brilhavam e o cabelo alisado reluzia de gel.
- Olá, Bree! - cumprimentou-a. - Como está a nossa irmã maluquinha? Ainda continua a brincar com as fadas?
- A Sacha está muito bem. É uma rapariga muito doce e encantadora. - Bryoni não conseguia olhar para o rosto do irmão, aquele rosto arrogante e presunçoso.
Carl depressa perdeu o interesse por saber novidades de Sacha. Só mencionara o nome dela para irritar Bryoni. Deteve-se à frente do espelho de corpo inteiro na base
das escadas e ajustou o nó da gravata. Depois tirou o pente do bolso e voltou a ajeitar cuidadosamente os poucos fios de cabelo que estavam fora do lugar. - Um grande
encontro esta noite. A miúda tem andado a suspirar por mim há já um mês ou mais. E hoje vai ser a noite de sorte dela. Que tal estou, Bree? - Virou-se para ela e
abriu os braços. - Tcharam! Tcharam! O sonho de qualquer mulher, hã?
Bryoni parou à frente dele e forçou-se a olhar-lhe o rosto. Muitas das suas amigas diziam que ele era o homem mais bonito que já tinham visto. Apercebeu-se de que
o odiava. Era um suíno sádico. doentio e pervertido.
- Sabes, Carl, é a primeira vez que reparo que o teu olho direito
é maior que o esquerdo - disse. Consternado, ele virou-se para o espelho. Bryoni desatou a correr pelas escadas acima em direção ao seu quarto. Sabia que ele iria
ficar angustiado durante semanas por causa do tamanho relativo dos seus olhos, e ficou contente.
Henry tinha-se ausentado da cidade. Viajara no seu novo jato para um qualquer pequeno e estranho país no Médio Oriente chamado Abu Zara e só regressaria dentro de
dois dias, aproximadamente. Estava sozinha naquela casa enorme. Ligou para a cozinha e perguntou a Cookie se podia comer com os outros empregados na sala de jantar
do pessoal doméstico, em vez de ficar sozinha na velha e enorme sala de jantar. Cookie ficou deliciada. Todos adoravam Bryoni.
- Fiz tarte de maçã especialmente para si, menina Bree. - És uma querida, Cookie. É a minha sobremesa preferida. Após o jantar, Bryoni trancou-se no estúdio contíguo
ao seu quarto e copiou para uma nova cassete a gravação que fizera em Nine Elms. Enquanto ouvia a voz doce e infantil de Sacha recitar tais perversões repugnantes,
recomeçou a sentir uma fúria extrema.
Deu por si a pensar na caçadeira de calibre 12 que o pai guardava no estúdio no piso térreo. Henry tinha-a ensinado a disparar aos pratos e ela tornara-se uma jovem
atiradora competente. Mas apercebeu-se, nesse momento, de que corria o risco de perder o bom senso e a razão. Obrigou-se a voltar ao plano original.
Quando acabou de copiar as afirmações de Sacha, trancou o gravador na pequena cómoda ao lado da cama e voltou a sentar-se à frente do computador para terminar os
trabalhos da escola para o dia seguinte. Desligou a luz um pouco antes das dez, mas só conseguiu adormecer era quase meia-noite. Depois acordou devido ao rugido
do motor do Mustang de Carl que subia o caminho de acesso. Ele conduzia sempre muito velozmente quando bebia. Bryoni verificou as horas: passavam dez minutos das
três da madrugada.
Na manhã seguinte, tomou o pequeno-almoço na cozinha com Cookie e depois Bonzo levou-a à escola antes de Carl sair do quarto.
No intervalo a meio da manhã, confiou a cópia da gravação das confissões de Sacha à guarda da sua melhor amiga, Alison Demper. Sabia que, se ela mesma guardasse
a gravação em Forest Drive, Carl acabaria por a encontrar.
- Tens de jurar pela tua vida e pelo que te é mais sagrado, e nunca contares a ninguém que te dei isto - disse a Alison, que ficou intrigada. Alison cuspiu no dedo
como era da praxe, fez o sinal da cruz sobre o coração e jurou pela sua vida.
Após as aulas, Bryoni alegou uma dor de cabeça e foi dispensada do curso extracurricular de arte. Foi diretamente para casa e esperou que Carl chegasse do seu trabalho
na sede da Bannock Oil. O irmão costumava parar no Troubadour Inn para beber uma cerveja com os amigos, mas nessa tarde regressou a casa no ruidoso Mustang um pouco
antes das sete.
Bryoni estava sentada na conversadeira do seu quarto. Debruçou-se sobre a janela e chamou-o enquanto ele saía do carro e fechava a porta. - Olá, Carl! Gostava de
falar contigo se tivesses uns minutinhos. Podes vir ao meu quarto, por favor?
- Vou já, mana. Ouviu-o subir as escadas e depois a batida na porta do seu quarto. - A porta está aberta - disse-lhe. Ele abriu-a e deteve-se à entrada. - Que se
passa, mana? Bryoni estava sentada na beira da cama, mas tinha arrastado a poltrona para o centro da divisão, para ele se sentar.
- Entra, Carl. Senta-te. Quero falar-te da Sacha. Ele fechou a porta e avançou para a poltrona. Sentou-se. apoiando uma das pernas sobre o braço da poltrona. - E
então. que se passa com a Sacha? Agora anda a ver homenzinhos verdes lá de Marte ou crê que se transformou finalmente num urso polar cor-de-rosa? - Riu-se da sua
própria piada.
- Ouve isto, por favor. - Mostrou-lhe o gravador. - Não me digas que é a tua música de rap preferida, acertei? Bryoni não conseguiu responder-lhe, pois odiava-o
com todas as suas forças. Ligou o gravador e pousou-o em cima da mesinha de cabeceira.
Fez-se silêncio enquanto o gravador rebobinava a fita e depois ouviu-se a voz de Sacha. Carl soube de imediato que era ela. Endireitou-se, tirou a perna de cima
do braço da poltrona e pousou ambos os pés no soalho.
"Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar dentro da minha boca. Tinha um sabor horrível", disse Sacha. Bryoni viu e irmão estremecer e fixar os olhos
na janela, como se procurasse uma via de fuga. Mas depois voltaram a recair sobre o gravador enquanto Sacha prosseguia.
"Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito."
Bryoni pegou no gravador e fez avançar a fita alguns segundos. Depois premiu o botão de reprodução e pousou de novo o gravador na mesinha. A voz de Sacha soava mais
firme e mais madura quando voltou a falar.
"...foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura
dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito
para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?"
"Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas."
Bryoni desligou o gravador e, no silêncio que se seguiu, perguntou em voz calma: - Achas que fizeste bem, Carl?
A boca dele movia-se, mas sem formular nenhuma palavra. Limpou a cara à manga do blusão e olhou depois para a mancha de suor no tecido fino.
Levantou-se de um salto, abruptamente, e agarrou no gravador pousado na mesinha e, no mesmo movimento contínuo, atirou-o contra a porta da casa de banho de Bryoni.
O aparelho desfez-se em pedaços. Carl atravessou a divisão com passos rápidos e decididos e esmagou os restos sob os sapatos.
As mãos tremiam-lhe e todo o seu corpo era sacudido por convulsões quando se virou para Bryoni.
- Aquela gaja! Aquela putazinha imunda! Tu mais a cabra da tua irmã inventaram isso tudo! Confessa: estás tão louca como ela. Vocês as duas têm é ciúmes de mim.
Estão a tentar desacreditar-me aos olhos do meu pai. Mas o meu pai adora-me.
- O teu pai era um criminoso de guerra nazi - disse Bryoni numa voz serena. - O teu pai era um homem chamado Kurtmeyer que matou pessoas nas câmaras de gás e tinha
uma rede de bordéis. És bem a semente podre do teu pai, Karl Kurtmeyer. - É mentira! Inventaste isso! És uma cadela mentirosa! - gritou-lhe. - Não inventei nada
- replicou Bryoni sem levantar a voz. - A nossa mãe contou-me tudo acerca do teu pai numa tarde em que se embebedou de gim.
- É mentira! O meu pai é Henry Bannock. Sou o seu único filho varão. Ele ama-me e sou o herdeiro dele. Tu e a putazinha imunda da tua irmã têm mas é ciúmes de mim.
Querem-lhe envenenar a cabeça contra mim. É por isso que estás a dizer todas essas mentiras horríveis sobre mim.
- Não estamos a pôr ninguém contra ti. Foste tu que maltrataste e humilhaste a tua própria irmã. Obrigaste-a a fazer coisas terríveis e nojentas e depois violaste-a
e puseste-a louca.
- Tudo mentiras! - gritou-lhe. - O meu pai nunca vai acreditar nas vossas mentiras. - Vai acreditar, vai, quando ouvir a gravação que fiz. - Bryoni levantou-se da
cama e confrontou-o com serenidade.
Carl girou sobre os calcanhares e correu para junto das peças desfeitas do gravador. Deixou-se cair de joelhos e começou a juntá-
-las, enfiando-as depois nos bolsos. - Já não há gravador - disse. - Foi-se. - Nunca existiu. Não passou tudo da fantasia de uma rapariga louca.
- Fiz uma cópia - disse Bryoni. Car levantou-se e avançou para ela com um ar ameaçador. - Onde está?
- Está num lugar onde nunca a vais conseguir encontrar.
- Dá-ma. - Nunca! - silvou Bryoni. Carl esbofeteou-a com força, fazendo-a desequilibrar-se e cair sobre a cama. Bryoni levantou-se, apoiada nos cotovelos; escorria-lhe
sangue da boca para o queixo. Rosnou-lhe através dos lábios ensanguentados, feroz como uma leoa ferida: - Nunca!
A visão do sangue luzidio inflamou-o. O sangue sempre tivera esse efeito nele. Precipitava-o para lá da fronteira da razão. Lançou-se sobre ela e imobilizou-lhe
os ombros contra a cama. Tinha mais do dobro da idade dela, e mais do dobro do peso. A sua força era esmagadora. Rasgou-lhe as roupas e grunhiu: - Vou-te ensinar
uma lição acerca do que é o respeito. A mesma lição que ensinei à louca da tua irmã.
Bryoni gritou, mas ele cerrou os dedos da mão esquerda à volta da garganta dela e apertou-lha com força, enquanto usava a outra mão para lhe baixar as cuecas e forçar
um dos joelhos entre as coxas dela. - Podes gritar quanto quiseres. Ninguém te vai ouvir. Ninguém te vai ajudar. Ninguém vai acreditar em ti. - A voz soava enrouquecida
de luxúria. - Tenho de te ensinar a ter respeito.
Desprendeu a fivela do cinto e abriu a braguilha com tal violência que um dos botões se soltou. Tinha-a agora sujeitada debaixo de si, pele nua contra pele nua.
A parte inferior do corpo infantil dela e a púbis estavam completamente desprovidas de pelos. A vagina de Bryoni era um fruto ainda por amadurecer: minúscula, apertada
e seca. Mas ele penetrou-a à força. Num paroxismo de dor, Bryoni enterrou-lhe os dentes no ombro. Carl insultou-a e libertou a mão que lhe apertava a garganta para
a obrigar a abrir a boca. Agora estavam ambos a sangrar. Bryoni lançou a cabeça para trás e gritou e uivou enquanto ele continuava a penetrá-la com violência.
Cookie, que estava na cozinha por baixo do quarto, ouviu os gritos dela e chamou Bonzo Barnes, o motorista, aos berros. Ambos subiram as escadas a correr e irromperam
pelo quarto de Bryoni no preciso momento em que todo o corpo de Carl se contorcia nos espasmos e gemidos do êxtase orgástico por cima do corpo franzino e seminu
de Bryoni.
Bonzo arrancou Carl de cima da irmã e lançou-o ao chão. - Que estás a fazer, pá? Ela não passa de uma criança! É a tua irmãzinha, pá! O que é que te passou pela
cabeça, homem? - gritou-lhe Bonzo. Agarrou em Carl pela garganta e sacudiu-o como se fosse um rato.
- Não lhe faças mal, Bonzo! - gritou-lhe Cookie. - A polícia ocupa-se dele. - Bonzo largou-o no chão e Carl soergueu-se.
- Não, não chamem a polícia - implorou em desespero. - O meu pai chega a casa amanhã. Ele vai tratar de tudo. Ele paga-te... - Fecha essa boca, seu porco. És pior
que um animal. Estou-te a avisar, pá - rosnou-lhe Bonzo.
Bryoni estava a chorar, desesperada de dor e em choque. Cookie agarrava-a contra o peito e sussurrou-lhe: - Pronto, acalma-te, minha menina. Ele já não te vai fazer
mais mal. Agora estás segura.
Estendeu o braço e levantou o auscultador do telefone em cima da mesinha de cabeceira e ligou para as emergências. A chamada foi atendida quase de imediato.
- Uma menina acabou de ser violada aqui. Está a sangrar muito. Apanhámos o pervertido que lhe fez isso. Mandem vir a polícia.
Os polícias de uniforme azul chegaram em duas viaturas de patrulha, menos de vinte minutos depois. Ouviram o que Cookie e Bonzo tinham para dizer e depois viraram-se
para Bryoni.
Bryoni levantou-se da cama onde Cookie a deitara. Virou-se para os agentes. Tinha as roupas rasgadas e manchadas de sangue. O rosto estava inchado e um dos olhos
ficara negro e meio fechado. Não parava de tremer.
Deu um passo para junto do sargento da polícia, mas um leve fio de sangue serpenteou por baixo da saia e escorreu pela coxa. Bryoni deixou escapar um gemido e agarrou
o baixo-ventre com as duas mãos. Dobrou-se lentamente e caiu de joelhos. Cookie levantou-a e abraçou-a contra o peito.
- Meu Santo Deus! - exclamou o sargento. - Enfiem as algemas nesse triste cabrão e levem-no para a esquadra.
Os seus homens agarraram Carl e torceram-lhe os braços atrás
das costas. - Calma lá, porra - protestou Carl. - Não é preciso tanta violência.
- Da mesma forma que não precisaste de usar tanta violência com aquela rapariguinha? - perguntou-lhe um dos agentes enquanto lhe fechava as algemas nos pulsos. Depois
olhou para o sargento. - O prisioneiro está a resistir à detenção, sargento. Será melhor enfiarmos-lhe também as correntes nas pernas, não vá dar-se o caso. O sargento
anuiu com a cabeça e depois virou-se para Cookie.
- Precisamos de levar esta criança ao hospital. Precisa de ser vista por um médico.
Cookie envolveu os ombros de Bryoni com um cobertor. Bonzo pegou nela e levou-a a correr para uma das viaturas da polícia.
59
Ronald Bunter telefonou a Henry Bannock que estava nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. A voz de Henry soava muito ensonada.
- Espero bem que me estejas a ligar por uma boa razão. São três da madrugada aqui.
- Desculpa-me, Henry, mas tenho notícias para te dar. Mas não é coisa boa - disse-lhe Ronald. - Na verdade, não podiam ser piores. Está aí alguém contigo?
- Claro que sim. Pensas que sou algum monge? - Ela não precisa de ouvir isto. - Espera um segundo. Vou sair do quarto. - Ouviu-se uma breve troca de palavras entre
Henry e a sua misteriosa companhia, houve uma pausa e depois Henry disse: - Pronto, Ronnie. Estou sentado na sanita e com a porta fechada. Conta lá.
- O Carl Peter foi preso. - Oh, não! Aquele pestinha - lamentou-se Henry. - O que foi desta vez? Excesso de velocidade? A conduzir embriagado?
- Quem dera que fosse isso, meu velho amigo. Infelizmente. é muito, muito pior.
- Vá lá, Ronnie! Deixa-te de rodeios! Desembucha lá! - Acusaram-no de vários delitos diferentes. Os mais graves são estupro, abuso de menor, agressão sexual agravada,
delito de agressão e ofensas corporais graves, maus-tratos, incesto e corrupção de menor. Ainda estão a investigar e a interrogar as testemunhas, mas avisaram-nos
que ainda poderia haver outras acusações, de agressão sexual agravada continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos. Alguns destes delitos são puníveis
com a pena de morte no Estado do Texas.
Seguiu-se um demorado silêncio, quebrado apenas pelo crepitar da estática. - Está lá? Está lá? Ainda estás aí, Henry? - Sim, continuo aqui. Estou a pensar. - A sua
voz soava desolada. - Dá-me alguns segundos, Ronnie. - Depois perguntou: - Quem são as vítimas que ele é acusado de violar?
- Lamento muito, Henry! Essa é a parte pior. É acusado de violar a Sacha e a Bryoni.
- Não posso crer! - disse Henry baixinho. - Só pode ser um engano. Não pode ser verdade. Não acredito nisso. A Bryoni é a minha menina.
Ronald quis dizer-lhe "A Sacha também é a tua menina", mas conteve-se. Não era sua intenção agravar o sofrimento do seu velho amigo.
- Vamos lutar contra isto, Ronnie. Vamos lutar contra isto com todas as nossas forças, estás a ouvir-me?
- Estou a ouvir-te, Henry. Mas pensa só nisto por um momento. Eles têm o testemunho das tuas duas filhas e de duas testemunhas oculares de confiança, têm amostras
do esperma do Carl Peter tiradas da vagina da Bryoni, misturado com o sangue dela. Têm fotografias das lesões corporais que ele lhe infligiu.
- Meu Deus! - exclamou Henry Bannock. - Que Deus e todos os santos me acudam!
Ronald quase conseguia ouvir os pilares do universo de Henry desmoronarem-se em cima dele. Julgou ouvi-lo chorar, mas não era possível. Chorar não. Henry nunca chorava.
- Achas que ele fez aquelas coisas, Ronald? - Sou advogado, não me cabe fazer julgamentos. - Mas achas que ele é culpado, não achas? Não me fales como meu advogado.
Fala comigo como o meu melhor amigo.
- Como teu advogado, não sei nem me importa. Como teu amigo, importa-me muito, e acho que o teu filho é culpado como tudo.
- Ele não é meu filho! - disse Henry. - Nunca foi meu filho. Tenho andado a enganar-me estes anos todos. É filho de um perverso cabrão nazi que a certa altura decidi
acolher sob a minha proteção. - Será melhor voltares para casa, Henry. Precisamos de ti aqui. As tuas duas meninas precisam muito de ti aqui.
- Vou partir de imediato! - disse Henry.
60
- Ouve bem o que te digo, Ronnie. - Henry inclinou-se sobre a escrivaninha e apontou o dedo a Ronald Bunter. - Quero aquele violador nazi cabrão riscado da lista
de beneficiários do meu Fundo Fiduciário, e não quero que o meu Fundo tenha de pagar os honorários dos advogados para o defenderem do crime de violar as minhas duas
filhas. Já falei com a Bryoni e mais culpado ele não podia ser. Quero-o ver pendurado na forca. Ronald girou na cadeira, uniu as pontas dos dedos e alçou o olhar
para o teto, como se procurasse ajuda e orientação lá no alto.
- Como bem sabes, já falámos disto muitas vezes, Henry. No entanto, vou responder em separado aos teus três desejos, pela mesma ordem que os expressaste. - Sentou-se
direito na poltrona, pousou os cotovelos na escrivaninha e olhou Henry diretamente nos olhos.
- Em primeiro lugar, foste tu que colocaste o Carl Bannock na lista de beneficiários e trataste de assegurar que ninguém o pudesse remover dessa lista. Ninguém o
pode fazer: nem eu, nem tu, nem o Supremo Tribunal de Washington. Estou de mãos atadas, e foste tu que mas ataste. Em segundo lugar, não queres que o Fundo Fiduciário
pague a defesa jurídica dele. Os mandatários, entre os quais eu próprio, não têm opção nessa matéria. Deixaste perfeitamente claro na escritura do Fundo Fiduciário,
que tu próprio assinaste, que somos obrigados a pagar todas as despesas para o proteger de quaisquer ações judiciais instauradas contra ele por qualquer pessoa ou
qualquer governo, seja pelo Departamento de Justiça ou pelo Departamento das Finanças. Está fora do nosso alcance. O Carl pode escolher a sua própria equipa de defesa
e o Fundo Fiduciário tem de pagar essas custas.
- Mas ele violou as minhas filhas - protestou Henry. - Nunca incluíste nenhuma exceção para essa eventualidade - frisou Ronald. - Por último, acabaste de expressar
o desejo de ver o Carl pendurado na forca. Isso nunca vai acontecer. O Estado do Texas aboliu a execução por enforcamento em 1924. O melhor que te posso oferecer
é uma injeção letal.
- Dou-me conta agora de que criar aquele Fundo Fiduciário foi o maior erro da minha doce vida.
- Volto a discordar de ti, Henry. O teu Fundo Fiduciário é um excelente instrumento. O sentimento que lhe subjaz é nobre. Assegura que à Marlene, à Sacha e à pequena
Bryoni, bem como a todos os seus próprios filhos e futuras esposas e respetiva prole, nunca faltará nada que o dinheiro possa comprar. És generoso e és um grande
homem, Henry Bannock.
- Aposto que dizes isso a todos os teus clientes.
61
O julgamento de Carl Peter Bannock prolongou-se por vinte e seis sessões judiciais.
As deliberações preliminares do júri de acusação ocuparam quatro dessas sessões, no final das quais foi apresentada uma acusação formal equivalente a uma acusação
de delito grave. O caso foi atribuído a um tribunal e o processo legal foi iniciado.
O juiz era Joshua Chamberlain, um homem na casa dos sessenta. Era um democrata empenhado e tinha a reputação de ser pedantesco e meticuloso. Durante quase vinte
anos como juiz, nenhum dos seus julgamentos fora alguma vez anulado no âmbito de um recurso, o que era em si mesmo um feito notável.
Em consonância com as suas crenças liberais, tinha condenado à morte menos de três por cento dos casos de pena capital que tinham comparecido perante si.
A procuradora do Ministério Público era Melody Strauss. Embora tivesse quase quarenta anos, já tinha defendido muitos casos extremamente complicados que lhe granjearam
uma reputação sólida. Foram-lhe atribuídos dois assistentes jurídicos.
A equipa da defesa compreendia cinco dos advogados mais caros do Estado do Texas. Tinham sido selecionados com grande cuidado pelos representantes do arguido. O
total dos seus honorários custavam ao Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock um montante que ascendia a um pouco mais de duzentos mil dólares por dia.
A primeira fase do processo consistia em escolher e ajuramentar os doze membros do júri de entre as cinquenta possibilidades apresentadas. Essa incumbência demorou
mais de uma semana, pois a defesa esforçou-se por excluir o maior número possível de mulheres. Usaram todas as dez recusas imotivadas para descartarem possíveis
jurados do sexo feminino e depois interrogaram persistentemente as restantes mulheres sobre a sua posição em relação à pena de morte, à provocação feminina e à instigação
à violação.
Melody Strauss enfrentou os elementos da equipa de defesa com grande determinação e rebateu-os com igual resolução. Esforçou-se por reter o maior número possível
de mulheres na lista final de jurados. Melody era perspicaz e persuasiva. Interrogou rigorosamente todos os candidatos masculinos para detetar quaisquer tendências
machistas. Reservou todas as suas recusas imotivadas para eliminar da lista apenas os candidatos masculinos que revelavam indícios dessas inclinações. No final,
conseguiu lograr um resultado equilibrado, com um número igual de homens e mulheres no júri.
Na décima sessão do julgamento, Melody Strauss apresentou o caso pela acusação e deparou com uma série de objeções por parte da defesa. Desde o início que contestaram
a capacidade de Sacha Jean Bannock depor, em razão da sua condição mental. Ambas as partes chamaram testemunhas-peritos. Melody Strauss chamou dois membros do pessoal
médico do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms que tinham tratado de Sacha ao longo de muitos anos. Ambas declararam que nos últimos tempos Sacha demonstrara uma melhoria
manifesta e contínua em termos de memória. Atribuíram esses progressos à influência da sua irmã mais nova, Bryoni Lee, e à catarse que experienciara depois de ter
recordado um acontecimento traumático, ou uma série deles, ocorrido na sua infância.
Submetidas a interrogatório, depuseram adicionalmente que os sintomas e a condição mental de Sacha eram um exemplo clássico dos efeitos de contínuos abusos sexuais
agravados na infância.
O perito chamado pela defesa era um professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Depôs que tinha examinado Sacha
e deu a sua opinião de que ela não era capaz de prestar depoimento sob juramento porque não compreendia o significado desse ato. Declarou ainda que qualquer testemunho
que ela pudesse prestar não seria minimamente fiável e que esse processo seria tão traumático para ela que corria um grande risco de vir a sofrer de danos mentais
permanentes em resultado dessa experiência. Melody solicitou ao juiz uma autorização especial para que Sacha pudesse depor nos aposentos dele, com a defesa e o júri
na sala contígua a assistirem e a ouvirem através do circuito televisivo fechado sem que Sacha se apercebesse dessas presenças. Após um aturado debate, o juiz Chamberlain
recusou o pedido.
Melody rogou então ao juiz autorização para fazer escutar ao júri a gravação que Bryoni fizera quando Sacha falara do seu relacionamento com o irmão Carl.
Este pedido desencadeou de novo uma onda de objeções por parte da defesa e o juiz Chamberlain voltou a recusar o pedido da acusação.
Restou a Melody uma última escolha decisiva. Poderia contrariar as probabilidades e chamar Sacha Jean ao banco das testemunhas, ou poderia retirar a acusação de
"agressão sexual agravada
continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos". E ir a julgamento unicamente com o depoimento de Bryoni Lee sobre a violação de que fora vítima.
Melody Strauss consultou Bryoni Lee Bannock para um aconselhamento final. Ambas tinham desenvolvido uma relação especial
durante o curto período de tempo desde que se tinham conhecido. Bryoni começara a gostar e a confiar em Melody, e esta ficara impressionada com a maturidade, coragem
e bom senso de Bryoni. Ficara sobretudo profundamente comovida com a sua lealdade e dedicação a Sacha, e com a sua compreensão intuitiva das razões subjacentes à
perturbação mental da irmã.
- Como reagirá a Sacha se eu a interrogar à frente de todas aquelas pessoas acerca daquilo que o Carl lhe fez? - perguntou a Bryoni. - Atira-se logo ao chão e encolhe-se
toda, e depois põe-se a chuchar o polegar e a bater com a cabeça no chão, e vai para um mundo dos sonhos só dela.
No dia seguinte, de forma a proteger Sacha, Melody Strauss retirou formalmente a acusação de "agressão sexual agravada continuada contra menor".
Instigada por este fracasso parcial, Melody apresentou, com um vigor renovado, as outras acusações contra Carl Bannock, com o objetivo de conseguir a pena máxima
possível.
Chamou Bryoni a depor. A defesa levantou uma nova onda de protestos: que Bryoni era uma criança imatura, que não compreenderia as questões que lhe seriam colocadas,
que era incapaz de fornecer um depoimento plausível e significativo.
O juiz Chamberlain anunciou uma suspensão de duas horas para ponderar as objeções. Falou a sós com Bryoni nos seus aposentos e, quando voltou para a sala de audiências,
disse ao júri: - Esta jovem menina demonstrou-me mais inteligência e maturidade do que muitas das pessoas de trinta e quarenta anos que já se apresentaram perante
mim neste tribunal. A objeção da defesa é recusada. A Menina Bryoni Lee Bannock pode ocupar o seu lugar no banco das testemunhas. Foi no banco das testemunhas que
John Martius, o principal advogado da defesa, se esforçou por lhe destruir a credibilidade.
Melody Strauss tinha preparado Bryoni para a provação e instruíra-a sobre como deveria comportar-se enquanto se encontrasse no banco das testemunhas, e que tipo
de perguntas poderiam fazer-lhe. "Dá respostas curtas e diretas", dissera ela. "Não deixes que te distraiam."
Durante o depoimento, Bryoni comportou-se como uma veterana. Respondeu de forma firme e educada a todas as perguntas.
- Quando foi a primeira vez que suspeitaste que a tua irmã tinha sido molestada sexualmente? - perguntou-lhe Melody.
- Quando ela me avisou para não deixar ninguém tocar-me nas partes íntimas, pois iriam magoar-me. Foi então que tive a certeza de que alguém lhe tinha feito isso
a ela.
- Objeção! Não passa de uma suposição! - John Martius tinha-se levantado de imediato.
- Objeção indeferida - disse o juiz Chamberlain. - Ela disse quem lhe tinha feito isso?
- De início não, mas quanto mais ela falava, mais se ia lembrando. Acho que ela estava a tentar esquecer as coisas feias que lhe tinham acontecido.
- E no final ela acabou por se recordar do nome? - Sim, minha senhora. Lembro-me das palavras exatas. Ela disse: "Agora lembro-me que foi o meu irmão Carl que foi
nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou.
Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito para não contar."
- Objeção! - uivou John Martius. - É testemunho em segunda mão de algo que ouviu dizer!
- Objeção indeferida - disse o juiz. - A testemunha está a descrever uma conversa na qual participou. O júri tomará em conta essa resposta.
Melody Strauss passou a abordar os acontecimentos depois de Bryoni ter confrontado Carl Bannock com as gravações que fizera de Sacha a descrever a série de agressões
de que fora vítima.
- Objeção! Não foi confirmada a proveniência das alegadas gravações e foram excluídas das provas - interpôs John Martius.
- Senhora Strauss? - disse o juiz, convidando-a a refutar. -- Meritíssimo, não estou a tentar apresentar as gravações como prova, estou a usá-las meramente como
uma referência temporal em relação aos acontecimentos dessa tarde.
- Objeção indeferida. Pode continuar, menina Bannock. Bryoni descreveu a agressão de Carl sobre a sua pessoa. - Exigiu que lhe dissesse o que tinha feito com a cópia
da gravação daquilo que a Sacha me tinha contado. Recusei-me a dizer-lhe. Depois bateu-me na cara e empurrou-me para cima da cama.
- Causou-te alguma lesão? - Fiquei com o olho esquerdo inchado e negro. Sangrava do nariz e tinha um dos lábios cortado, e foi por isso que fiquei com a boca cheia
de sangue.
Os membros femininos do júri arquejaram de surpresa, murmurando e trocando olhares horrorizados entre si.
Sentado na primeira fila na galeria do público, Henry Bannock olhou de semblante carregado e furibundo na direção do enteado, no banco dos acusados. Estivera ali
sentado durante todas as horas de cada dia do julgamento, na esperança de que a sua presença pudesse dar força e coragem a Bryoni durante a sua provação.
- Depois de ele te ter batido e de te ter empurrado para cima da cama, o que aconteceu depois, Bryoni? - perguntou-lhe Melody Strauss.
- O Carl disse-me que me ia ensinar o que era ter respeito, tal
como tinha feito à minha irmã Sacha.
- Quando dizes "Cari", estás a referir-te ao teu irmão, Carl Bannock, o arguido?
- Correto, minha senhora. John Martius apressou-se a intervir. - Objeção! Carl Bannock não é irmão da testemunha.
- Permita-me corrigir. - Melody Strauss foi igualmente rápida. - Eu deveria ter dito "meio-irmão". Essa relação também é abrangida na definição de incesto no Código
Penal do Estado do Texas. - Objeção! - Retiro esse comentário e reservo-o para a minha exposição final. - Melody voltou a virar-se para Bryoni. - E que fez depois
o arguido? - Pôs-se em cima de mim e abriu-me a roupa. - Tentaste resistir-lhe? - Fiz tudo para lhe resistir, mas ele era muito maior e mais forte que eu, minha
senhora, e estava atordoada do golpe que ele me tinha dado.
- Que aconteceu depois de ele te abrir a roupa? - Tirou o pénis para fora... Sentado à mesa da defesa, Carl Bannock tapou a cara com ambas as mãos e começou a chorar
alto. John Martius levantou-se de um salto.
- Meritíssimo, o meu cliente está assoberbado com estas acusações. Peço a sua compreensão e solicito uma pausa para que ele possa recompor-se.
- Senhor Martius, é por de mais evidente que o seu cliente é um indivíduo resistente e determinado. Tenho a certeza de que ele consegue aguentar um pouco mais. A
testemunha pode responder
pergunta. - Ele tirou o pénis para fora e meteu-o à força dentro de mim, na minha vagina. - Bryoni engoliu em seco e enxugou os olhos. - Doía-me tanto. Foi a pior
dor que já senti. Gritei e lutei, mas ele não parava de enfiar aquilo dentro de mim. Depois o Bonzo entrou lá e arrancou-o de cima de mim, mas a dor não parou e
reparei que estava a sangrar da vagina. A Cookie entrou lá e abraçou-me e disse-me que não precisava de ter medo e que o Carl nunca mais me voltaria a fazer mal.
Ela disse que não ia deixar ninguém voltar a fazer-me mal. - Bryoni afundou-se no banco e enterrou a cara nos braços, abalada por soluços entrecortados.
- Não tenho mais perguntas a fazer, Meritíssimo - disse Melody Strauss em voz baixa.
John Martius levantou-se de um salto. - Contrainterrogatório, Meritíssimo.
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã. Deve reservar o seu contrainterrogatório para essa altura, senhor Martius.
62
Henry Bannock, Ronnie Bunter e Bonzo Barnes já estavam à espera de Bryoni no exterior da sala de audiências quando ela saiu. Conduziram-na através da multidão de
repórteres e jornalistas amontoados no passeio e que lhe gritavam perguntas. Bryoni manteve-se de cabeça bem erguida e olhou diretamente à sua frente, mas tinha
o rosto pálido como cinza e os lábios tremiam-lhe. Ia agarrada ao braço do pai. Bonzo Barnes seguia à frente para lhes abrir caminho, e a sua corpulência e semblante
carrancudo abriram-lhes alas até à limusina que os esperava.
Nessa noite, Cookie levou o jantar num tabuleiro ao quarto de Bryoni e Henry Bannock sentou-se na beira da cama e falou-lhe enquanto ela comia. Disse-lhe que a amava
muito e que lamentava não ter sido capaz de a proteger a ela e a Sacha. Prometeu que nunca mais deixaria que nada de mal acontecesse às suas duas filhas. Fez-lhe
companhia e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer.
Às dez horas da manhã seguinte, Bryoni voltou a ocupar o banco das testemunhas. A sala de audiências estava a abarrotar e na secção da imprensa já só havia lugares
em pé. Bryoni tinha sido instruída por Melody Strauss e por Ronnie Bunter e ignorou-os por completo, fixando o olhar no pai, que estava na primeira fila na galeria
do público, e em Bonzo e Cookie, sentados três filas atrás.
John Martius levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e postou-se à frente de Bryoni.
- Compreendes que vou fazer-te algumas perguntas, Bryoni? - Sim, senhor. - Importas-te que te trate por tu? - Não, senhor. - Amas o teu irmão Carl? - Objeção! O
arguido não é irmão da testemunha - disse Melody, pagando-lhe na mesma moeda.
- Vou reformular a pergunta - concedeu Martius. - Amas o teu meio-irmão Carl?
- Talvez o amasse dantes, mas não desde que ele me violou a mim e à Sacha. Não o amo, não. - Um burburinho de aprovação varreu a sala de audiências perante estas
palavras. O juiz Chamberlain bateu com o martelo e disse numa voz severa: - Silêncio na sala, por favor.
- Alguma vez lhe pediste para te beijar? - Não, senhor. - Estás a dizer que nunca deste um beijo ao Carl? - Eu disse que nunca lhe pedi para me beijar, senhor. -
Alguma vez o beijaste? - Eu e o Carl só nos beijávamos na face para nos cumprimentarmos ou despedirmos, como toda a gente faz, senhor.
- Alguma vez pediste ao Carl para te beijar na boca, Bryoni? - Não, senhor. Porque faria eu isso? - Limita-te a responder às minhas perguntas, por favor, Bryoni.
Alguma vez enfiaste a língua na boca do Carl quando ele te beijou? - Objeção! A testemunha já depôs que nunca beijou o arguido na boca - interpôs Melody.
- Objeção deferida - disse o juiz Chamberlain. - A defesa retirará a pergunta.
- Pergunta retirada. - Martius inclinou levemente a cabeça na direção do juiz e voltou a concentrar-se em Bryoni. - Alguma vez entraste na casa de banho quando o
Carl estava a tomar duche, Bryoni? - Não, senhor. Tenho a minha própria casa de banho. Nunca fui à casa de banho do Carl.
- Alguma vez entraste no quarto do Carl quando sabias que ele estava a vestir-se?
- Não, senhor. Tenho o meu próprio quarto. Nunca fui ao quarto dele.
- Nunca? - Nunca, senhor. - E que me responderias se te dissesse que o Carl afirma que querias vê-lo tomar duche, e que certa vez foste ao quarto dele à noite e
te enfiaste na cama dele?
- Objeção! Essa pergunta já foi colocada e respondida! A testemunha já depôs que nunca foi à casa de banho do arguido.
- Objeção deferida. A defesa retirará a pergunta. - Retiro a pergunta, Meritíssimo. - Mas estava bastante satisfeito: tinha plantado uma semente de dúvida nas mentes
do júri. Consultou as suas próprias anotações por um momento e depois olhou para Bryoni.
- Alguma vez pediste ao teu meio-irmão Carl se gostaria de ver os teus peitos?
Melody Strauss pareceu prestes a objetar, mas permaneceu em silêncio e deixou Bryoni responder de forma espontânea e eloquente. - Não tenho peitos, senhor. Ainda
não me cresceram. - Pareceu ficar genuinamente perplexa quando dois dos jurados masculinos riram alto, mas era um riso gentil, sem o menor traço de escárnio. Dois
ou três dos jurados femininos franziram a cara, desaprovando a ligeireza dos seus colegas.
Henry Bannock reparou que Melody sustivera deliberadamente a sua objeção. Tinha sido uma decisão astuta. Só esperava que o júri punisse Martius por atormentar uma
criança, sobretudo uma menina tão linda.
Martius tinha corrido um grande risco ao introduzir o elemento da provocação feminina. Sabia que estava a perder a aposta e apressou-se a mudar de tática.
- Sabias que o teu pai tinha uma estima tão grande pelo teu meio-irmão Carl que o adotou formalmente como seu próprio filho, e que depois de o Carl ter se diplomado
com distinção por Princeton lhe ofereceu um trabalho muito bem pago e de grande responsabilidade na Bannock Oil Corporation?
- Sim, senhor, claro que sabia. Toda a gente sabia. - E isso levou-te a pensar que o teu pai amava mais o Carl do que te amava a ti? Ficaste com ciúmes dele? Foi
por causa disso que tu e a tua irmã Sacha resolveram inventar histórias maldosas acerca do Carl?
- O meu pai ama-me, senhor. - Olhou para Henry Bannock e sorriu. - Uma das razões pelas quais o meu pai me ama é que eu lhe disse sempre a verdade. Ele não me amaria
tanto se eu lhe mentisse.
Henry Bannock retribuiu-lhe o sorriso e anuiu com a cabeça, confirmando a declaração da filha. Os seus traços faciais marcados e obstinados suavizaram-se.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, Meritíssimo. - John Martius apercebeu-se de que tinha sido derrotado por uma criança e decidiu retirar-se com uma
certa dignidade.
-- Obrigado, menina Bryoni - disse o juiz Chamberlain. - Foi muito corajosa. Pode ir agora para junto do seu pai.
Henry Bannock veio ao encontro da filha e envolveu-lhe os ombros com o braço, num gesto protetor. Lançou um último olhar corrosivo ao filho adotivo e depois conduziu
Bryoni para fora da sala de audiências. Bryoni agarrou-se a ele e começou a chorar baixinho mas amargamente.
Melody Strauss chamou a sua testemunha seguinte, a Dra. Ruth MacMurray. Era a médica do corpo policial que tinha examinado Bryoni naquele fatídico fim de tarde.
Era uma mulher madura e de cabelos grisalhos, composta e de voz suave.
- Doutora MacMurray, examinou Bryoni Lee na passada tarde de quinze de agosto na sala de emergências no Hospital Universitário de Houston?
Sim. - Pode relatar a este tribunal as conclusões do seu exame nessa altura, doutora?
- A paciente era uma menina pré-pubescente. Apresentava lesões faciais superficiais, consistentes com golpe desferido com a mão. O olho esquerdo apresentava contusão
e inchaço. Também havia uma laceração do tecido mole da boca. Além disso, os dentes incisivo esquerdo e o primeiro pré-molar tinham-se soltado devido ao traumatismo.
- Havia mais alguma lesão corporal? - Sim. Havia extensas equimoses em ambos os antebraços e na garganta.
- O que é que essas equimoses poderiam indicar, doutora? - Poderiam indicar que a paciente fora provavelmente restringida à força pelos antebraços e que, ademais,
lhe tinham apertado a garganta, quer numa tentativa de estrangulação, quer para a impedir de gritar.
- Obrigada, doutora MacMurray. Encontrou mais alguma lesão?
- Os genitais da paciente apresentavam todos os sinais de penetração forçada por via de objeto grande e rígido.
- Seriam essas lesões consistentes com uma possível penetração forçada da paciente menor pelo pénis ereto de um adulto?
- Eram inteiramente consistentes com essa possibilidade. O hímen tinha sido rompido muito recentemente e continuava a sangrar. O períneo entre a vagina e o ânus
tinha sido rasgado e exigiu intervenção cirúrgica. Além disso, havia lacerações internas e rutura da parede vaginal inferior, o que também exigiu intervenção cirúrgica.
- Na sua opinião, eram essas lesões consistentes com a possibilidade de a paciente ter sido violada?
- Na minha opinião, tais lesões eram inteiramente consistentes com violação agravada e penetração forçada dos genitais.
- Chegou a colher amostras do fluido corporal que encontrou na vagina da paciente, doutora?
- Colhi trinta esfregaços vaginais da vagina rasgada. E amostras de sangue da roupa da paciente.
- Quais foram os resultados dos exames patológicos dessas amostras, doutora?
- No caso das amostras colhidas da roupa, foram encontrados dois grupos sanguíneos. Um era AB negativo e o outro O positivo.
- Correspondem ao grupo sanguíneo do arguido e da vítima, doutora? - O grupo sanguíneo de Carl Bannock é AB negativo, e o de Bryoni Bannock é O positivo.
- O tipo O é raro ou comum, doutora? - É o tipo mais comum. Cerca de quarenta por cento dos humanos têm sangue do tipo O.
- E o tipo AB negativo: é raro ou comum, doutora? - É o tipo de sangue mais raro de todos, só um por cento dos humanos o possui.
- Isso significa que existe uma probabilidade de quarenta para um de as amostras de sangue AB negativo pertencerem ao arguido Carl Bannock?
- Não sou corretora de apostas, minha senhora. Não lhe saberia dizer as probabilidades exatas. Direi, no entanto, que existe uma probabilidade muito mais elevada
de que as amostras de sangue AB negativo possam pertencer a Carl Bannock do que a qualquer outra pessoa à face da Terra.
- Obrigada, doutora. A minha pergunta seguinte, doutora, prende-se com as amostras dos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock. Quais foram os resultados
patológicos do exame desses esfregaços?
- Em todos os casos, sem exceção, foi detetada a presença de sangue e de fluido seminal.
- Qual era o tipo, ou tipos, de sangue, doutora? - Unicamente o tipo O positivo. - É o tipo sanguíneo de Bryoni Bannock, correto? - Correto, sim. - Havia mais algum
fluido corporal nos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock?
- Sim, também foi detetada a presença de fluido seminal. - Fluido seminal masculino? O patologista pôde estabelecer uma correspondência com as amostras colhidas
do arguido Carl Bannock?
- O fluido seminal colhido da vagina de Bryoni Bannock deu uma correspondência de oitenta a noventa por cento com as amostras fornecidas por Carl Bannock ao médico
do corpo policial.
- Como é que foi feita a análise comparativa dessas amostras. doutora? - Foram aplicadas três técnicas: o teste RSID, o teste PSA e o teste da fosfatase
- Obrigada, doutora. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe - disse Melody, olhando depois para John Martius na mesa da defesa. - A testemunha é sua.
- Não tenho questões a colocar - disse John Martius sem levantar os olhos do seu caderno de alegações.
O juiz Chamberlain olhou para o relógio da sala de audiências antes de instruir Melody. - Pode chamar, por favor, a sua próxima testemunha, senhora Strauss.
- A acusação chama a senhora Martha Honeycomb. Cookie levantou-se do seu lugar na galeria pública e avançou pela coxia até ao banco das testemunhas. Apesar dos conselhos
de Melody Strauss de que deveria usar roupas discretas, Cookie não resistira à tentação de usar o seu melhor traje e adornos para a ocasião. Usava um minúsculo chapéu
de palha colocado num ângulo desenvolto e um pequeno véu negro sobre um dos olhos. O vestido exibia um estampado de enormes girassóis cujo efeito lhe realçava o
volume do traseiro. Os sapatos brancos, de tacão muito alto. conferiam-lhe um andar um pouco vacilante.
Assim que ela se sentou no banco das testemunhas, Melody Strauss conduziu-a num breve relato da sua relação com a família Bannock.
- Há quanto tempo trabalha para o senhor Henry Bannock' - Desde que saí da escola, minha senhora. - Há quanto tempo conhece Bryoni Bannock, senhora Honeycomb?
Nota de Rodapé: " Teste RSID (Rapid Stain Identification) ou teste de Identificação Rápi-,ia de Mancha, usado frequentemente nos estudos forenses de amostras de
sémei:. Teste PSA (Prostate Specific Antigen) ou teste do A ntigénio Específico da Próstata análise da glicoproteína cuja função é liquefazer o coágulo seminal,
formado após a ejaculação, permitindo a movimentação dos espermatozoides. Fosfatas ácida: enzima cuja presença em grande quantidade é indicativa da presença dr esperma
(o conteúdo desta enzima é de 20 a 400 vezes maior no esperma 3: que em qualquer outro fluido humano).
Fim da Nota.
- Pode chamar-me Cookie, minha senhora. É como toda a gente me chama.
- Obrigada, Cookie. Há quanto tempo conhece Bryoni, Cookie? - Desde o dia em que ela nasceu. Era a coisinha mais linda de se ver. - E Carl, o irmão dela? Há quanto
tempo o conhece? Cookie rodou o seu enorme volume e lançou um olhar fulminante a Carl, sentado à mesa da defesa. - Desde o dia em que ele veio viver para a nossa
casa, e que dia mais triste e lamentável foi, se bem que nenhum de nós o soubesse nessa altura. Todos pensávamos que ele era um bom rapazinho.
- Senhora Procuradora, por favor diga à sua testemunha para se limitar a responder às perguntas.
- Ouviu o que o juiz disse, Cookie? - Peço desculpa, minha senhora. O senhor Bannock também diz que falo de mais.
O juiz Chamberlain tossicou e tapou a boca com a mão para conter tanto a tosse como o sorriso. Melody Strauss foi conduzindo Cookie ao longo dos acontecimentos,
até ao momento em que ela e Bonzo resgataram Bryoni do ataque de Carl e à posterior detenção dele pela polícia.
- Como sabia que o arguido tinha ido ao quarto da irmã no piso de cima? - Eu e o Bonzo tínhamo-lo ouvido subir a rampa de acesso naquele carrão vistoso que o pai
dele lhe tinha dado pelo aniversário. Depois ouvimos a Bryoni chamá-lo para ir ao quarto dela pois queria falar com ele.
- Que aconteceu depois, Cookie? - Ouvimos o jovem Carl subir as escadas a correr e depois a porta do quarto de Bryoni fechar. Ficou tudo muito silencioso durante
muito tempo. Depois, eu e o Bonzo ouvimos o Carl gritar como se estivesse desvairado da cabeça. Eu disse: "Bonzo, é melhor Irmos lá acima ver o que eles andam a
tramar." Mas o Bonzo disse: "Deixa lá, estão só a discutir, como sempre. É melhor deixá-los em paz. Vou polir o Cadillac para quando o senhor Bannock chegar a casa",
e lá foi ele pelas escadas abaixo.
- Portanto, Bonzo deixou-a sozinha na cozinha. E depois, que aconteceu, Cookie?
- Depois houve mais um pouco de silêncio, mas de repente a Menina Bryoni desatou a gritar como se alguém estivesse a cortar-lhe a garganta. Até o Bonzo a ouviu lá
em baixo na garagem. Mas eu gritei-lhe: "Bonzo, é melhor vires cá depressa! Parece-me que aconteceu alguma coisa grave lá em cima." Corremos pelas escadas acima
e o Bonzo atravessa direitinho aquela porta enorme como se fosse de papel. Eu entro a correr no quarto logo atrás dele e vejo o jovem Carl em cima da menina Bryoni
deitada na cama, e vejo-a a lutar com ele como uma louca e a gritar desalmada e ele sempre em cima dela a ter sexo com ela.
- Como sabia que ele estava a ter sexo com ela, Cookie? - Tive rapazes suficientes que mo fizeram a mim nos meus tempos para saber quando um deles está a fazer isso
a outra mulher. senhora Strauss.
- Por favor, continue a contar-nos o que aconteceu de seguida, Cookie. - Bom, o Bonzo ficou possesso como nunca o vi. Também ele adorava a menina Bryoni, como todos
nós. Pôs-se a gritar com o Carl: "O que lhe estás a fazer, pá? Ela é a tua irmãzinha, O que lhe estás a fazer?" e coisas desse género. Depois agarrou Carl e atirou-o
pelo ar. Foi então que vi o Carl com a parte da frente das calças toda aberta e com aquela coisa dele toda dura e espetada à frente, toda suja do sangue da minha
menina, e foi quando também a mim me deu ganas de o matar, mas disse ao Bonzo pra não lhe fazer mal, que deixasse a polícia ocupar-se dele. e devo dizer que a polícia
veio mesmo muito rápido e prendera o Carl, e depois o Bonzo levou a Bryoni pro carro da polícia, pois ela tinha muitas dores e não conseguia andar, e eles lá a levaram
então pro hospital.
- Obrigada, Cookie. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe. O juiz Chamberlain olhou na direção da mesa da defesa. - O advogado da defesa deseja contrainterrogar a
testemunha?
John Martius pareceu prestes a recusar, mas depois levantou-se lentamente.
- Senhora Honeycomb, diz que ouviu Bryoni convidar o arguido a ir ao quarto dela.
- Sim, senhor. Ouvi-a dizer-lhe para ir lá acima, mas não creio que ela quisesse brincar às escondidas com a salsicha daquele porco. Acho que ela ia pô-lo a ouvir
a gravação onde a Sacha dizia o que o Carl lhe tinha feito...
- Meritíssimo! A testemunha respondeu à minha pergunta confirmando que Bryoni Bannock tinha convidado o irmão a ir ao quarto dela. O resto do seu testemunho não
passa de suposições.
- Por favor, não especule, senhora Honeycomb. O júri não tomará em consideração o resto da resposta da testemunha.
- Obrigado, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha. - Martius voltou a sentar-se.
De seguida, Melody Strauss chamou Bonzo Barnes ao banco das testemunhas. Bonzo corroborou cada pormenor do depoimento de Cookie, embora não de forma tão eloquente
e sui generis como ela. fizera.
John Martius colocou uma única questão no contrainterrogatório. - Senhor Barnes, ouviu Bryoni Bannock convidar o irmão Carl a ir ao quarto dela? - Sim, senhor. Ouvi.
- Bryoni costumava receber o irmão Carl no quarto dela e à. porta fechada? - Se ela o fez, nunca a vi nem a ouvi fazer isso, senhor. - Mas não tem a certeza se ela
nunca chegou a estar sozinha com ele no seu quarto?
Bonzo ponderou profundamente na pergunta, com uma expressão sombria no rosto. - Não faz parte do meu trabalho estar de guarda à porta da menina Bryoni a toda a hora
do dia. - Por conseguinte, não sabe se Bryoni Bannock tinha por hábito receber os seus amigos no quarto e à porta fechada? - De uma coisa tenho a certeza, senhor.
Se apanhar qualquer rapaz no quarto dela a tentar fazer-lhe aquilo que o Carl lhe fez, parto-lhe o pescoço. - Obrigado, senhor Barnes. Não tenho mais perguntas para
esta testemunha, Meritíssimo.
Bonzo ergueu-se em toda a sua corpulência e lançou um olhar ameaçador a John Martius. - Sei bem o que me está a tentar fazer dizer, mas a única coisa que vai ouvir
de mim é que a nossa pequena Bryoni é uma boa menina. E parto o pescoço a qualquer um que se atreva a dizer o contrário dela.
- Obrigado, senhor Barnes. - John Martius apressou-se a afastar-se do alcance do braço comprido de Bonzo. - Pode sair do banco das testemunhas. Melody chamou a testemunha
seguinte. Era o sargento Roger Tarantus, do Departamento da Polícia de Houston. Começou por dizer que ele e a sua equipa tinham respondido a uma chamada de emergência
e se dirigiram ao nº 61 de Forest Drive, a residência de Henry Bannock e da sua família, no final da tarde em questão. Melody conduziu-o ao longo de uma descrição
detalhada daquilo com que deparara ao chegar ao local, bem como das ações que tomara. O depoimento do sargento Tarantus tendia a confirmar os depoimentos de todas
as outras testemunhas da acusação, nomeadamente Bryoni Bannock, Bonzo Barnes e Martha Honeycomb.
- Portanto, sargento Tarantus, com base naquilo que viu e ouviu no nº 61 de Forest Drive, prendeu Carl Bannock por violação e vários outros delitos e levou-o para
a esquadra da polícia em Houston, onde o encarcerou, correto?
- Está correto, minha senhora. A equipa da defesa prescindiu de contrainterrogar o sargento, e todas as restantes testemunhas chamadas pela acusação abonaram o bom
caráter de Bryoni Lee. Entre elas encontravam-se os professores de Bryoni e os psiquiatras de Nine Elms que tinham conhecido bem Bryoni ao longo dos tempos em que
ela visitara regularmente a sua irmã Sacha. Um após outro, descreveram Bryoni como uma aluna exemplar e uma criança inteligente, equilibrada e normal.
No contrainterrogatório, a defesa tentou induzir as testemunhas a concordarem que Bryoni tinha um interesse anormal pelo sexo oposto para uma criança da sua idade.
No entanto, essa insinuação foi energicamente contestada por todos eles.
No final, Melody pôde dizer ao juiz Chamberlain: - Não tenho mais perguntas. A acusação terminou a apresentação das provas.
- Estamos prontos para fazer a nossa exposição final ao júri, se estiver de acordo, Meritíssimo. - Obrigado, senhora Strauss. - O juiz virou-se para a mesa da defesa
e perguntou: - A defesa deseja chamar testemunhas em refutação, senhor Martius?
Um burburinho de expectativa apoderou-se da sala de audiências. Todos sabiam que a defesa tinha de chamar o arguido, Carl Peter Bannock, ao banco das testemunhas
para depor em própria defesa. Não o fazer equivaleria a uma admissão da sua culpa. Fazê-lo era um risco calculado.
John Martius levantou-se lentamente, quase com relutância. - A defesa chama o arguido, Carl Peter Bannock, Meritíssimo - disse. Ouviu-se um sonoro suspiro de alívio
e Melody Strauss esboçou um ténue sorriso de expectação, como uma leoa que captasse o odor de uma gazela.
Carl levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e, no silêncio palpável que pairava na sala de audiências, avançou para o banco das testemunhas com um ar profundamente
contrito. Manteve-se de pé no banco, com as mãos enlaçadas à frente e de cabeça curvada. A sua expressão era trágica.
- Pode sentar-se, Carl - disse John Martius. - Obrigado, senhor, mas prefiro ficar de pé - murmurou Carl como um homem destroçado.
- Por favor, diga-nos o que sente face a estas acusações. - Estou completamente devastado. Sinto que perdi a vontade de continuar a viver. Se este tribunal me condenar
à morte, de bom grado aceitarei a pena. - Carl ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da sala, na direção do seu pai adotivo, Henry Bannock, sentado na primeira
fila da galeria do público e virado para ele. - Sinto que desiludi o meu pai. Ele tinha grandes esperanças em mim e tentei estar à altura dessas expectativas, mas
falhei miseravelmente. - Começou a soluçar e enxugou os olhos com a manga. - Estou profundamente arrependido de qualquer mal ou dor que possa ter infligido às minhas
duas queridas irmãs. Sou tão culpado como elas por me terem levado a pecar. Perdoo-lhes e suplico-lhes que me perdoem também. Estou profundamente arrependido.
Henry Bannock bufou de indignação e desviou deliberadamente o olhar daquele espetáculo lamentável.
- É culpado das acusações apresentadas contra si, Carl Bannock? - perguntou John Martius.
- A minha única culpa foi ter sucumbido à tentação e à sedução feminina, ao pecado de Adão e aos embustes de Eva. - A frase era tão teatral e artificiosa que algumas
das pessoas que a ouviram se crisparam.
- Não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha, Meritíssimo. - John Martius sentou-se.
Melody Strauss acercou-se do arguido, como uma leoa a lançar-se de uma emboscada sobre a presa. - Está a insinuar, senhor Bannock, que foi deliberadamente induzido
pelas suas duas irmãs menores a cometer a violação?
- Sinto-me confuso e profundamente angustiado. Tudo isto tem sido um choque terrível para mim. A memória falha-me. Ouvi as acusações lançadas contra mim e creio
que deve haver alguma verdade nelas, mas não me recordo de quase nada disso, minha senhora.
- Como explica, então, que o seu esperma tenha sido encontrado na vagina da sua irmã de doze anos? Pretende fazer-nos crer que foi ela mesma que o colocou ali, senhor
Bannock?
- Deus é minha testemunha e só posso dizer que não sei. Não me lembro de nada disso, mas estou profundamente arrependido de qualquer mal que possa ter feito. - Recomeçou
a chorar.
- Está a insinuar que a sua irmã de doze anos infligiu aquelas equimoses e contusões no próprio corpo? Talvez tenha sido ela a rasgar as próprias partes íntimas
para depois o desgraçar a si, acha isso possível?
- Talvez tenha sido isso o que aconteceu, e, nesse caso, perdoo-lhe, como espero que ela me perdoe a mim.
- Crê o senhor que aqueles doze cidadãos honestos e respeitadores da lei que integram o júri são ingénuos e crédulos ao ponto de acreditarem na sua lengalenga? É
isso que crê?
- Não! Certamente que não acredito nisso. Mas duvido da minha própria memória.
- E quando foi que começou a sentir esse estranho ataque de amnésia, senhor? Foi quando se apercebeu de que ia pagar pelo sofrimento e humilhação que tão prontamente
infligiu às suas jovens irmãs? - Não me lembro. A sério que não me lembro. Melody lançou as mãos ao ar com grande indignação. Era demasiado astuta para insistir
num ponto que já demonstrara de forma tão convincente. Sabia que a defesa tinha pagado um preço alto ao permitir que o seu cliente expressasse o seu arrependimento
em audiência pública, e deu-se por satisfeita.
- Não tenho mais perguntas a fazer ao arguido, Meritíssimo. - Muito bem, senhoras e senhores. - O juiz Chamberlain olhou para o relógio na parede. - São quase quatro
horas. Vou dar a sessão encerrada por hoje e retomamos amanhã, às dez da manhã, para ouvir a exposição final da acusação.
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A exposição final de Melody Strauss durou quase três horas. Apresentou os factos comprovados perante o júri, com a lógica e a convicção que lhe tinham granjeado
a reputação. O júri e todos os demais na sala de audiências escutaram em absoluto fascínio. A forma como apresentou o caso foi impecável.
John Martius, por seu turno, não tentou refutar as provas nem os testemunhos apresentados. Insistiu na teoria de que o seu cliente tinha sido vítima da sedução e
da cilada das suas duas irmãs. Expôs a teoria de que o motivo das raparigas era fazer Carl cair em desgraça aos olhos de Henry Bannock e substituí-lo nos afetos
paternos. A sua refutação demorou apenas quarenta e oito minutos.
O juiz Chamberlain recapitulou os debates para o júri. Disse-lhes para considerarem cuidadosamente se o arrependimento de Carl Bannock pelos crimes de que era acusado
era sincero ou se não passava de uma má encenação, e se as horríveis lesões de Bryoni Lee teriam sido autoinfligidas ou não.
- Aquelas lágrimas de arrependimento que vimos ontem nos olhos do arguido eram verdadeiras ou seriam talvez de natureza mais sáuria? - perguntou-lhes.
Imediatamente após o almoço, pediu ao júri que iniciasse as suas deliberações.
Henry levou Melody Strauss, Ronnie Bunter e Bryoni a almoçarem no Burger King local, ao fundo da rua. Bryoni e Melody partilharam um cheeseburger duplo. Agora que
a sua provação já estava quase terminada, Bryoni mostrava-se outra vez alegre como um pássaro, mas sem nunca largar a mão protetora do pai, chegando mesmo a sussurrar-lhe:
- O Carl vai ficar todo danado comigo se for para a prisão. Achas que ele virá atrás de mim quando o deixarem sair?
- O Carl vai ficar longe de nós por muito tempo. E vamos tratar de assegurar que nunca mais te possa fazer mal outra vez, meu tesouro.
Quando Henry pediu a conta, já passava das três. Ainda estava a pagar quando um funcionário do tribunal entrou apressado no restaurante.
- O júri já deliberou, senhor Bannock. Estão prestes a anunciar o veredito. Será melhor apressarem-se, senhor.
- Valha-me Deus! Demoraram bastante menos de três horas, o que é ou muito bom sinal ou muito mau sinal - opinou Ronnie Bunter. - Vamos lá embora daqui. - Henry agarrou
a mão de Bryoni e apressou-a ao longo da rua até ao edifício do tribunal. A sala de audiências estava a abarrotar e a secção da imprensa incluía repórteres de lugares
tão longínquos como a cidade de Nova Iorque e Anchorage, no Alasca.
64
Hector Cross havia dado ordens para não ser incomodado. Tinha transferido todas as chamadas do exterior para o gabinete de Agatha em Abu Zara. Estava tão profundamente
absorto no manuscrito de "A Semente Envenenada" que só dera conta das horas quando ouviu duas leves batidas discretas na porta do estúdio.
Foi bruscamente arrancado de um outro tempo e de um lugar distante para o momento presente. Estivera tão absorvido pelo relato de Jo Stanley que ficou um pouco desorientado
por alguns segundos. Olhou para a janela e reparou que o crepúsculo já tinha caído. O dia transcorrera com grande celeridade. Já não comia desde o pequeno-almoço
e subsistira à base de chávenas de café que ele mesmo preparara. E praticamente nem se dera ao trabalho de ir à casa de banho contígua ao estúdio.
Levantou-se da cadeira de um salto e avançou com rapidez para a porta. Abriu-a e ali estava ela, a sorrir-lhe. Vestia um dos roupões de veludo frisado branco e estava
descalça. Tinha o cabelo molhado, apanhado num puxo no cocuruto. O duche apagara-lhe os últimos vestígios de maquilhagem e a pele reluzia. Parecia tão jovem como
uma colegial. Dormira manifestamente bem, pois os olhos cintilavam. As íris verdes eram como a água do mar sob o sol tropical: verde-mar e serenas.
- Vamos ficar aqui a olhar um para o outro a noite inteira, ou vai-me convidar a entrar no seu covil?
- Perdoe-me. Quase me tinha esquecido de como é bela. - Viu-me há cerca de seis ou sete horas. - Já foi há tanto tempo? - Estava genuinamente surpreendido e verificou
as horas no relógio de pulso. - Tem razão. Tenho de aprender a não discutir consigo. - Deu-lhe a mão e convidou-a a entrar. - Peço que me desculpe por me ter esquecido
de si. Mas a culpa é toda sua, devo dizer-lhe. Hipnotizou-me com o seu talento literário. Deixou-me completamente preso ao rexto.
- Seu adulador fingido! - disse ela, mas dirigiu-lhe um sorriso de prazer genuíno.
- Sente-se, por favor. - Acompanhou-a até à poltrona de couro. Ela sentou-se, recolhendo as pernas sob o corpo. Depois esticou a ponta do roupão em redor delas quando
se apercebeu de que ele estava a olhar. Eram pernas encantadoras, reparou Hector. - Que fez durante este tempo todo em que estive tão ocupado que até me esqueci
de si?
- Dormi maravilhosamente durante três ou quatro horas. Depois aproveitei-me do seu ginásio. Encontrei um fato de treino lá no armário que ficou a servir-me depois
de enrolar as mangas e as pernas das calças. Mudei todas as configurações das suas máquinas de exercício, pelo que espero que me desculpe.
Hector abanou a cabeça e riu-se. - Fez muito bem. - Depois fiz uma sauna e lavei o cabelo. Usei todos os produtos femininos Hermes e Chanel que encontrei na casa
de banho dos hóspedes e fiquei contente ao reparar que nenhum deles tinha sido aberto por visitas anteriores.
- A Jo é a minha primeira hóspede. - Sou ingénua quanto baste para acreditar em si. Talvez porque assim quero crer.
- Juro pela minha alma! Mas já comeu? - Não tinha fome. Estava demasiado ocupada a explorar. - Oh, meu Deus! Ainda morre à fome e nunca me perdoarei por isso. Tem
duas opções. A Cynthia, a minha chef, é a melhor cozinheira de Londres, e possivelmente do universo inteiro. O Ivy Club só lhe fica atrás por um triz.
- Ambos temos estado enfiados o dia todo aqui dentro de casa. por mais encantadora que seja. Talvez fosse melhor irmos jantar fora - disse ela, mas ao mesmo tempo
afastou os olhos com recato.
Hector já a conhecia o suficiente para intuir aquilo a que ela pretendia aludir realmente: que era demasiado cedo para passar a noite em retiro íntimo com ele.
- Vamos então ao Ivy. É um ambiente bastante relaxado quanto ao código de vestuário. Mas se quiser mudar de roupa, posso passar pelo seu hotel.
- Obrigada, Hector. Acho que seria melhor. - Vou vestir algo mais apropriado enquanto volta a vestir-se. e depois espero por si no carro à entrada do hotel enquanto
troca de roupa. Ficou impressionado pelo facto de ela o manter à espera apenas vinte minutos, e por voltar envergando roupas discretas mas elegantes. - Perfeito!
- comentou ele enquanto lhe abria a porta do Bentley. - Está de arrasar.
- Essa expressão soa estranha a quem é do outro lado do Atlântico, mas vou encará-la como um elogio.
Deu-lhe o braço enquanto cruzavam a entrada que fazia lembrar a loja de uma florista e subiram no imponente elevador panorâmico. As jovens empregadas na receção
rodearam Hector de atenções enquanto recolhiam os casacos de ambos, e uma delas acompanhou-os num outro elevador até à sala de jantar.
- Por acaso é dono deste sítio? - sussurrou-lhe Jo. - Aonde quer que uma pessoa vá neste mundo perverso, uma gorjeta decente faz sempre milagres - disse.
- Suponho que também ajuda quando se tem um aspeto como o seu.
- Espero que não seja alérgica ao champanhe - disse et
enquanto se sentavam à mesa.
- Ponha-me à prova! - desafiou-o Jo. Depois de saborearem e aprovarem tanto o vinho como o primeiro prato, Jo fez a pergunta que tivera na ponta da língua desde
que saíram de The Cross Roads.
- E agora, diga-me: até que parte leu a minha história? - perguntou. - Cheguei à parte em que o Henry e a Bryoni estão à espera de ouvir o veredito do júri sobre
aquele cabrão merdoso do Carl Peter Bannock. Perdoe-me a linguagem, mas você fez-me odiá-lo.
- E tem toda a justificação para isso. Acho que o Carl Bannock é uma daquelas pessoas malignas até ao âmago e sem qualquer possibilidade de redenção.
- E onde está agora essa criatura monstruosa? - Leia o que escrevi, Hector. Não tente saber o fim da história antes de lá chegar. Se o fizer à minha maneira, compreenderá
muito melhor as personagens em jogo, e olhe que são muitas. Mas posso garantir-lhe que ainda não chegou à melhor parte, ou deveria dizer a pior parte?
- Muito bem, mas responda-me ao menos a mais uma pergunta que não para de me roer por dentro. A Hazel estava ao corrente disto? Se estava, nunca me falou de nada.
- A Hazel ainda não tinha aparecido em cena. Ainda estava a aprender a jogar ténis na África do Sul.
- Mas ela deve ter sabido disso quando casou com o Henry, não? - Duvido que o Henry alguma vez tenha contado os pormenores à Hazel. O Ronnie Bunter diz que o Henry
tinha uma vergonha tremenda do escândalo horrível que aquilo foi. Sentia-se terrivelmente culpado por não ter sido capaz de proteger as filhas. Mas também é possível
que a Hazel tivesse sabido e nunca lhe tenha contado a si. O que aconteceu foi tão trágico e sórdido que talvez a Hazel, tal como o Henry, se tivesse limitado a
fazer de conta que aquilo nunca tinha sucedido.
- O que foi feito da Bryoni Lee? Essa pequenita portou-se como uma heroína. Ia adorar conhecê-la, se isso for possível.
- Vai ter que esperar. Não lhe vou contar nada. Vai ter de ler até ao fim da história.
- Aviso-a desde já, minha senhora, que a paciência não é uma das minhas muitas virtudes. Quando quero uma coisa, quero-a logo.
- Há situações na vida em que mais vale esperar, pois a expectativa multiplica o prazer final - disse ela. - E ler histórias é uma dessas situações. - A sua expressão
era enigmática, apenas remotamente velada por uma nota de malícia.
- Tenho a certeza de que é um ótimo conselho. - Mal conseguiu conter um sorriso, mas logrou igualar o autodomínio dela. - Como é que conheceu o Ronnie Bunter? -
perguntou. mudando de assunto.
- Ele o meu pai andaram na mesma faculdade de Direito. Descendo de uma longa linhagem de advogados.
Jo aproveitou a deixa dele e conversaram demoradamente durante a excelente refeição, acabando por se conhecerem melhor um ao outro. No final, Hector levou-a a um
clube noturno privado chamado Annabel's. Jo nunca lá tinha ido, mas Hector foi recebido com grande alegria pelos empregados. Quando dançaram, descobriram que se
moviam bastante bem juntos. Depois a música mudou e tornou-se suave e romântica. Pareceu perfeitamente natural quando Hector a puxou mais para si e ela encostou
a cabeça ao peito dele. Hector levou-a de volta ao hotel e acompanhou-a até à entrada, onde ela lhe disse: - Boa noite, Hector. Gostei imenso desta noite. Liga-me
pela manhã, por favor? Ainda temos tantas coisas para falar. - Depois ofereceu-lhe a face para ele a beijar e desapareceu, volteando a saia.
65
Acordou ao nascer do sol na manhã seguinte, sentindo-se repousado e bem-disposto, com a sensação de que algo de bom estava prestes a acontecer-lhe. Deixou-se ficar
deitado durante alguns momentos, perguntando-se qual a razão de todo aquele entusiasmo. Foi então que tudo lhe acudiu à mente em catadupa. Riu-se com satisfação
e lançou as pernas sobre a beira da cama.
Antes de tomar um duche apressado, ligou para a cozinha e disse ao mordomo Stephen para lhe deixar o pequeno-almoço na escrivaninha no estúdio e não na sala de jantar.
Quando desceu as escadas a correr, já lavado e vestido, deparou com Stephen a sair do estúdio.
- Bom dia, Stephen. Tenho outro favor a pedir-lhe. - Stephen
seguiu-o para dentro do estúdio e escutou as suas instruções com uma expressão de incredulidade.
- Tem a certeza de que é isso mesmo que quer, senhor Cross? - perguntou quando Hector terminou.
- Diga-me, Stephen, quando foi a última vez que lhe pedi que fizesse algo que eu não queria que fizesse?
- Acho que isso nunca aconteceu, senhor. - Pois também não vai acontecer agora - assegurou-lhe Hector. - Vou tratar já disso, senhor Cross. - É bom poder contar
sempre consigo, Stephen. Hector sentou-se à escrivaninha e ligou o computador. Quando o ecrã se iluminou, pegou no telefone e ligou para o telemóvel de Jo, cujo
número ela lhe tinha dado na noite anterior. Enquanto esperava que ela atendesse, espetou o garfo num pedaço de manga madura e enfiou-o na boca.
Jo atendeu ao quarto toque. - Bom dia, Hector. Dormiu bem? - Caí dentro de um buraco negro fundo e acordei há meia hora. pronto para matar dragões.
- Ainda existem muitos deles por aí à solta. Mate um deles por mim. Ainda estou na cama, com uma chávena de café.
- Que preguiçosa! - repreendeu-a. - A vida é para ser vivida.
- A culpa é toda sua por me ter mantido acordada até altas horas da noite. Mas foi divertido, não foi? Devíamos repetir um dia destes. - Muito em breve! - concordou
ele. - Que tal hoje à noite. ou até mais cedo?
- Preciso de ver umas pessoas na cidade esta manhã. Tinha-o prometido ao Ronnie Bunter. Não tem nada que ver com "A Semente Envenenada". É um assunto completamente
diferente. Mas depois do almoço já estarei livre.
- Venha, então. Estarei à sua espera. - Continue com a sua leitura. Aviso-o desde já que depois lhe vou fazer perguntas.
- Também tenho umas quantas para si. Desligou e concentrou toda a sua atenção no ecrã do computador.
66
Henry Bannock, ladeado por Ronnie Bunter e Bryoni, acabava de se sentar na galeria do público na sala de audiências quando o juiz Chamberlain saiu pela porta dos
seus aposentos e o oficial de diligências pediu ordem na sala.
Os doze jurados, encabeçados pelo presidente, entraram em fila e ocuparam os seus lugares na tribuna do júri. Nenhum deles olhou na direção do lugar onde Carl Bannock
estava sentado à mesa da defesa. - É um bom sinal! - murmurou Ronnie a Henry. - Eles raramente olham para aqueles que condenaram.
- Os membros do júri já chegaram a um veredito? - perguntou o juiz Chamberlain.
- Sim, Meritíssimo - respondeu o presidente dos jurados. - Qual é o veredito? - Em relação à acusação de estupro, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação
de abuso de menor, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de agressão sexual agravada, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de delito
de agressão e ofensas corporais graves, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de perpetração de incesto, consideramos o arguido culpado. Em relação
à acusação de corrupção de menor, consideramos o arguido culpado.
- Seis condenações em seis acusações - sussurrou Ronnie Bunter. - Nota máxima para a Melody Strauss.
O juiz Chamberlain agradeceu e dispensou os membros do júri e depois conferenciou com os advogados da defesa e da acusação. Dirigiu-se finalmente à sala de audiências:
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã, altura em que pronunciarei a sentença do prisioneiro.
Nessa noite, Henry organizou um jantar de celebração em Forest Drive para vinte amigos íntimos e familiares mais próximos. Cookie serviu lombo de boi texano de primeira
qualidade. mal passado e a ressumar sucos, com dois nacos de carne ainda agarrados ao osso.
Henry abriu uma dúzia de garrafas Château Lafite Rothschild de 1995 para acompanhar a carne.
Ronnie inclinou-se sobre a mesa para apostar com Melody Strauss que Carl só iria apanhar dez anos na penitenciária estatal. pois o juiz Joshua Chamberlain tinha
fama de ser liberal. Melody apostou dez dólares numa pena de pelo menos quinze anos. No entanto, ambos estiveram de acordo que o Château Lafite era o melhor vinho
que já tinham provado.
Bryoni não conseguiu aguentar até à sobremesa, pois os olhos começaram a fechar-se e a cabeça tombou-lhe em cima da mesa. Henry levou-a para o quarto dela no piso
de cima e meteu-a na cama. Sentou-se na beira da cama e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer profundamente pela segunda vez, antes de voltar para junto dos seus
convidados. Assim que ele saiu do quarto, Cookie levou-lhe uma grande taça de gelado de chocolate pelas escadas das traseiras. Bryoni conseguiu arranjar reservas
suficientes de força para acordar e devorar a taça inteira.
Às oito horas da manhã seguinte, Bonzo Barnes levou Bryoni à escola. Henry queria que ela voltasse o mais cedo possível à sua rotina habitual. Arranjara-lhe aconselhamento
psicológico a longo prazo e falara demoradamente com o diretor da escola e a professora da turma de Bryoni. Henry estava satisfeito por ter feito tudo ao seu alcance
para a ajudar a ultrapassar o trauma e a reencontrar o equilíbrio na sua vida. Tinham-no advertido de que poderia ser um processo longo, mas Henry tinha fé na força
de caráter e na maturidade da filha.
Henry saiu em direção ao tribunal num estado de espírito irado e vingativo. Às dez horas exatas, o oficial de diligências pediu ordem no tribunal.
Henry Bannock sentou-se no seu lugar habitual, ao lado de Ronnie Bunter, na primeira fila da galeria do público.
Carl Peter Bannock foi trazido da secção de detenção e conduzido pela escadaria por dois guardas de uniforme. Vinha algemado e de pés acorrentados. Estava pálido,
com a barba por fazer e de cabelo desgrenhado. Viam-se-lhe sombras escuras sob os olhos raiados de sangue. Olhou, suplicante, na direção de Henry.
A expressão de Henry era fria e irada. Susteve o olhar de Carl durante um longo momento. Carl sorriu-lhe com hesitação e os lábios tremeram-lhe. Henry afastou deliberadamente
o olhar, numa rejeição total e final.
Os ombros de Carl descaíram e avançou de passo arrastado para o banco dos acusados, onde se virou para o juiz Chamberlain.
- Arguido em julgamento, ouviu o veredito do júri. Tem alguma coisa a dizer que possa atenuar a pena que lhe será pronunciada?
Carl olhou para as correntes nos tornozelos. - Estou profundamente arrependido da dor que causei ao meu pai e aos outros membros da minha família. Usarei de tudo
ao meu alcance para os tentar compensar.
- É tudo o que tem a dizer? - Sim, senhor juiz, estou profundamente arrependido. - O tribunal tomará em conta a sua contrição na atenuação da pena - declarou o juiz
Chamberlain, olhando depois para baixo para reorganizar os papéis à sua frente na secretária. Ergueu a cabeça.
- A sentença pronunciada por este tribunal é a seguinte: pela acusação de corrupção de menor, condeno-o a cinco anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de incesto, condeno-o a seis anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de delito de agressão e ofensas corporais graves, condeno-o a seis anos de
prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de agressão sexual agravada de menor, condeno-o a vinte anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de estupro, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de abuso de menor, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal.
Ordeno que as penas sejam aplicadas em simultâneo e que o senhor fique encarcerado por um período mínimo de quinze anos.
O juiz Chamberlain olhou expectante para John Martius, que se levantou.
- Meritíssimo, peço a sua permissão para interpor recurso no Supremo Tribunal contra a sentença.
- Permissão concedida - disse Joshua Chamberlain. - No entanto, o prisioneiro será transferido diretamente deste tribunal para o Centro de Ingresso de Presos de
Holloway, em Huntsville. e daí para a penitenciária que lhe foi destinada, para começar a cumprir de imediato a pena pronunciada por este tribunal.
Olhou na direção dos dois guardas. - Meus senhores, por favor - cumpram o vosso dever.
Cada um dos guardas agarrou num dos braços de Carl Bannock e conduziram-no até ao topo das escadas. As correntes nos tornozelos retiniram quando desceu os degraus
para a secção de detenção.
- O tribunal queira levantar-se - anunciou o oficial de diligências. Henry e Ronnie foram as últimas pessoas a sair da sala de audiências.
- Podia ter sido melhor - opinou Ronnie. - Esperava um mínimo de vinte e cinco anos de cadeia. Mas quinze anos terá que servir. Pelo menos, tudo terminou finalmente
e livraste-te da semente podre que te envenenou a família.
- Pergunto-me se terá terminado realmente - disse Henry num tom sombrio. - E se foi mesmo a última vez que eu e as minhas filhas vimos aquele animal pervertido.
67
A carrinha celular tinha estacionado no recinto de segurança, quase completamente encostada à porta das traseiras do edifício do tribunal. As portas traseiras foram
abertas para receber Carl Bannock. As laterais da viatura estavam pintadas com as letras DJPT-DIC: Departamento de Justiça Penal do Texas - Divisão dos Institutos
Correcionais. Carl foi levado para dentro da carrinha e prenderam-lhe as correntes dos tornozelos às argolas no chão entre as suas pernas. As portas foram fechadas
e trancadas e a viatura arrancou para fazer a viagem de mais de cem quilómetros até ao Centro de Ingresso de Presos, em Huntsviile.
O Centro de Ingresso de Presos de Holloway era um bloco quadrado de betão, com quatro pisos e pesadas barras de aço nas janelas. Era protegido por torres de vigia
e por um triplo anel de vedações de arame farpado. A carrinha foi submetida a minuciosas revistas de segurança em cada um dos três portões. Quando alcançou o edifício
principal, os guardas de Carl retiraram-lhe as correntes das pernas e escoltaram-no ao longo de uma série de portões de abertura eletrónica, até à área primária
de receção.
Os seus papéis foram verificados uma vez mais e o seu nome e restantes dados foram inseridos no registo. Depois, o sargento atrás da secretária assinou o documento
de entrega do prisioneiro. Dois novos guardas revezaram os outros dois que o tinham escoltado desde Houston. Carl foi conduzido através de outro portão acionado
por controlo remoto, para o interior da principal área de receção. Foram-lhe confiscados todos os seus objetos pessoais. nomeadamente o anel de sinete em ouro, a
carteira, o Rolex de oure e as roupas de civil. Tudo foi inventariado e guardado em sacos. Quando o guarda lhe deu o livro de registo para assinar, devolveu-lhe
uma nota de dez dólares que tirara da carteira dele.
- Porque me está a dar isto? - perguntou Carl. - És um agressor sexual. É para produtos de higiene básicos. - O que é que isso tem a ver com a minha condenação?
- Não vais tardar a descobrir. - O guarda dirigiu-lhe um sorriso maldoso.
Conduziu Carl à sala da barbearia, onde lhe raparam o cabelo O barbeiro recuou dois passos para admirar o seu trabalho. - Fabuloso! - opinou. - Os rapazolas sulistas
aqui de Holloway vão-te adorar, ó carinha laroca.
Os guardas levaram-no para a zona de duches para se lavar Depois, nu e molhado, foi levado ao armazém, onde lhe entregaram um uniforme através de um postigo. O uniforme
era composto por uma T-shirt e cuecas brancas, casaco e calças largas de lona branca, com cordão na cintura, e mocassins de lona branca.
Levaram-no através de outro portão eletrónico para uma Cela individual numa comprida fileira de celas e trancaram a porta. O mobiliário consistia numa latrina turca
e num beliche de madeira firmemente fixado ao chão e à parede lateral. Havia um único cobertor, mas nenhum colchão. Mais tarde, foi-lhe entregue o jantar através
do postigo: uma tigela de estufado aguado, com um grosso naco de pão dentro.
Cedo na manhã seguinte, foi levado da cela para a sala de interrogatório, onde três membros da direção do Centro de Ingresso esperavam sentados a uma mesa de aço.
Os três eram membros da Divisão dos Institutos Correcionais e envergavam uniforme.
- Carl Peter Bannock. Está correto? - perguntou o homem sentado no meio do trio, sem erguer a cabeça.
- Sim - respondeu Carl. - Sim, senhor! - corrigiu-o o interrogador. - Sim, senhor - repetiu Carl respeitosamente. - Pena de quinze anos, no mínimo. Está correto?
- Sim, senhor. - Agressor sexual e pedófilo. Está correto? - Sim, senhor - disse Carl por entre os dentes cerrados. - É melhor enviá-lo para o Centro Correcional
de Detenção a Longo Prazo de Holloway - disse outro dos membros do painel.
O membro de hierarquia superior sugeriu: - E se o enviássemos para o sexto nível, onde os outros reclusos de longa duração não lhe podem fazer nada? - O único lugar
onde aqueles rapazolas sulistas não lhe vão conseguir deitar a mão é lá no céu, e este lindinho nunca conseguirá chegar tão alto. - O terceiro membro do painel riu-se
à socapa e os outros riram por entre dentes.
Nessa tarde, outra carrinha celular do DJPT-DIC levou Carl cerca de trinta quilómetros mais para sul, para o interior da zona histórica da escravatura do algodão,
onde, no meio de numa paisagem árida e incaracterística, a penitenciária de Holloway se erguia sob a forma de um enorme monumento de betão cinzento, erigido à infâmia
da humanidade.
Ali, a segurança era ainda mais rigorosa do que no Centro de Ingresso. A carrinha demorou vinte minutos a passar pelo anel
composto pelas três vedações, até estacionar na entrada reservada à receção dos presos. Depois, mais vinte e cinco minutos de espera até tirarem as algemas e as
correntes a Carl e o transferirem do piso térreo para o seu destino final, no sexto e último nível do edifício.
Do elevador, foi conduzido ao longo de um corredor curto até uma porta onde se lia GABINETE DO SUPERVISOR DE NÍVEL. Um dos guardas bateu à porta e um berro abafado
respondeu-lhe do interior. Abriu a porta e fez sinal a Carl com a cabeça para entrar. O supervisor de nível estava sentado atrás da secretária. No crachá de plástico
preso à camisa lia-se LUCAS HELLER.
Lucas estava de botas pousadas no tampo da secretária e baloiçava a cadeira equilibrando-a nas duas pernas traseiras. Deixou a cadeira cair para a frente, com enorme
estrondo, até ficar apoiada nas quatro pernas, e levantou-se. Era alto, de ombros curvados e esguio. O cabelo ruivo já lhe rareava, mas o que restava dele caía-lhe
sobre a testa. As orelhas, enormes, eram desproporcionais
para o rosto comprido e pálido. Os olhos também eram pálidos e aquosos, mas a ponta do nariz era rosada e tinha as narinas húmidas devido à rinite. Os dois dentes
superiores da frente sobressaíam ao ponto de lhe conferirem um ar de coelho anémico.
Tinha um pingalim na mão direita. Contornou a secretária e girou com lentidão em redor de Carl nas suas pernas de cegonha. Fungou ruidosamente, com um som líquido,
enquanto estendia o braço e passava a ponta de couro do pingalim sobre as nádegas do preso. Carl sobressaltou-se e Lucas voltou a fungar, soltando risadinhas como
uma colegial.
- Bom - disse. - Muito bom. Vais encaixar bem aqui. - Piscou o olho a um dos guardas. - Vais encaixar mesmo muito bem, se me faço entender. - Sim! Entendi-o muito
bem, chefe. - O guarda desatou às gargalhadas.
Lucas voltou a colocar-se à frente de Carl e sentou-se na borda da secretária. - Já te deram os teus dez dólares para os produtos de higiene básicos, ó Bannock lindinho?
- Sim, chefe. - Dá-mos cá. - Lucas estendeu a mão e estalou os dedos. Carl enfiou a mão no bolso das calças de lona branca e tirou a nota amarrotada. Lucas arrancou-lha
da mão. Depois, voltou para trás da secretária e abriu uma das gavetas, de onde tirou uma garrafa plástica grande e a fez deslizar sobre o tampo na direção de Carl.
- Aí tens.
Carl pegou na garrafa e examinou o rótulo. - "Óleo essencial Macassar12 de primeira qualidade. Ideal para o cabelo" - leu em voz alta, com um ar perplexo.
- O que devo fazer com isto, chefe? - Já vais saber quando chegar a altura - assegurou-lhe Lucas. - Aconselho-te a mantê-la à mão. - Olhou para o guarda. - Tens
o recibo desta mercadoria?
Nota de Rodapé: Óleo de coco ou de palma, muito perfumado, assim designado por ter sido fabricado originalmente a partir de ingredientes comerciados no porto de
Makassar, na Indonésia.
Fim da Nota.
- Aqui mesmo, chefe. - O guarda pousou o livro de recibos à frente dele e Lucas escrevinhou a sua assinatura.
- Muito bem, rapazes. Tragam-no. - Conduziram Carl de volta pelo corredor e através de outra porta robusta, até ao interior de uma comprida galeria de aço cinzento
e betão de um cinzento mais escuro. O teto abobadado era de vidro blindado. Feixes retangulares de brilhante luz solar, repletos de partículas de poeira prateadas,
incidiam no chão. De cada um dos lados da galeria estendia-se uma comprida fila de celas de grades de aço. Vultos indistintos agarravam-se às grades ou mantinham-se
acocorados no interior, espreitando Carl enquanto era conduzido pelo guarda. Alguns deles gritaram-lhe as boas-vindas num tom sardónico e brindaram-no com piropos
e assobiadelas, rindo e enfiando as mãos entre as grades para lhe fazerem gestos obscenos.
Lucas parou à frente da última cela da fila e abriu a porta com a sua chave-mestra eletrónica.
- Bem-vindo à cela número 601. A Suíte Nupcial. - Lucas sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Assim que Carl entrou, a porta deslizou e fechou-se atrás dele. Lucas
e a escolta refizeram o mesmo trajeto pelo corredor, sem nunca olharem para trás.
Carl sentou-se no único beliche existente e olhou em redor da cela. Não era maior do que a sua cela no Centro de Ingresso. A única melhoria era o pequeno lavatório
de aço inoxidável ao lado da latrina turca e um banco à frente de uma pequena mesa. Cada peça de mobiliário estava presa às paredes para evitar ser usada como arma.
Este seria o seu lar pelo menos durante os seguintes quinze anos, um pensamento que o fez perder o ânimo.
Às seis da tarde, soou uma campainha e Carl, seguindo o exemplo dos outros reclusos, postou-se à porta da sua cela. Todas as portas das celas desse nível se abriram
em simultâneo e os presos saíram para a galeria.
Ao som das ordens gritadas pelos guardas armados na passarela de aço em cima, todos se viraram e seguiram em fila até ao refeitório na outra ponta da galeria. À
medida que cada recluso passava à frente do postigo da cozinha, era-lhe entregue um pequeno tabuleiro de plástico por um dos homens na cozinha. O jantar era uma
tigela de sopa, outra tigela de estufado de carne de carneiro e uma rodela de pão branco. Carl sentou-se a uma das mesas de aço nu, mas nenhum dos outros reclusos
se juntou a ele. Formavam grupos com outros presos da mesma origem étnica. Alguns deles estavam manifestamente a falar de Carl, mas, como ele não conseguiu ouvir
o que estavam a dizer, ignorou-os. Disse a si mesmo. com amargura, que teria muitos mais anos para encontrar o seu lugar naquela sociedade pervertida.
Tinham vinte minutos para comer e, após esse tempo, os guardas nas passarelas no alto ordenaram-lhes que voltassem para as suas celas.
O encerramento das celas era às sete e trinta. Carl deitou-se de costas no beliche, de pernas cruzadas e com as mãos atrás da nuca. Estava exausto. Tinha sido um
dia de preocupações e incertezas. Pelo menos o jantar fora comestível e ansiava que as lâmpadas de arco voltaico que iluminavam a cela fossem desligadas para a noite.
Mas tinham-no advertido de que isso nunca iria acontecer.
Começou a dar-se conta gradualmente de que as vozes dos presos nas celas à sua volta se reduziam a sussurros expectantes e a risos abafados. Soergueu-se e olhou
através das grades para a comprida galeria, mas a sua visão era limitada e não conseguiu descortinar nenhuma razão para a atmosfera carregada que parecia ter-se
apoderado dos outros reclusos no Nível Seis.
Depois, ergueu-se e lançou as pernas sobre a beira do beliche quando se apercebeu do estrépito de passos que se aproximavam ao longo da galeria. Lucas Heller, o
supervisor do nível, entrou no seu campo de visão. Empunhava o seu pingalim. Usava um chapéu regulamentar e um uniforme engomado.
- De pé, prisioneiro! - ordenou. Carl levantou-se do beliche. - Estás a gostar da tua primeira noite em Holloway, Bannock- - Tudo bem, chefe. - O jantar estava bom?
- Não tenho queixas, chefe.
- Estás aborrecido? - Nem por isso, chefe. - Então estás com azar, Bannock. Porque trouxe comigo alguns dos rapazes sulistas para te fazerem companhia. Alguns deles
já estão aqui há vinte anos ou mais e entediados de morte. Nenhum deles esteve com uma mulher nesse tempo todo, e andam todos pra'í com um bruto tesão, isso te garanto!
Carl retesou-se e sentiu a pele eriçar-se. Tinha ouvido as piadas e os rumores, mas quis acreditar que não eram verdadeiros e que isso nunca lhe aconteceria a ele.
Mas havia homens estranhos a amontoarem-se atrás de Lucas.
- Posso apresentar-te o senhor Johnny Congo? - Lucas pousou a mão no ombro do homem mais próximo dele. Lucas era alto, mas teve de esticar o braço à altura da cabeça
para poder fazê-lo. O homem parecia ser uma enorme montanha de antracite. A cabeça era redonda e lisa como uma bola de canhão. Usava apenas T-shirt e calções, de
modo que Carl pôde reparar que os membros dele eram como toros de madeira dura, negros como ébano, todo ele músculo rijo e osso, quase desprovido de qualquer sinal
de gordura. - O senhor Congo está a viver lá em baixo no corredor da morte enquanto o Supremo Tribunal considera o recurso que ele interpôs. Está connosco há oito
anos e é altamente respeitado aqui em Holloway, de modo que tem direitos de visita especiais. - Lucas ergueu a mão, de palma virada para cima, e Johnny Congo colocou
uma nota de vinte dólares nela. Lucas sorriu em agradecimento e premiu o botão de abertura da porta. A porta gradeada deslizou para o lado.
- Pode entrar, senhor Congo. Demore todo o tempo que quiser. Divirta-se.
Congo entrou na cela e os outros homens amontoaram-se junto à porta gradeada atrás dele, acotovelando-se uns aos outros para conseguirem as melhores posições e sorrindo
de expectativa.
- Tens aí o teu óleo Macassar, lindinho? - perguntou Congo a Carl. - Tens trinta segundos para te besuntares e te pores de joelhos, senão enrabo-te a seco.
Carl recuou para longe dele. Estava mudo de terror e começou a choramingar. - Não. Não, por favor, deixa-me em paz.
A cela era exígua e bastaram três passadas de gigante para Congo o encurralar no canto. Esticou a mão e agarrou no antebraço de Carl. Com um rápido girar do punho,
lançou-o de cara contra o beliche.
- Baixa as calças, lindinho. Dá-me cá o óleo. - Foi então que o próprio Congo viu a garrafa de óleo Macassar na prateleira por cima do lavatório, onde Carl a colocara.
Pegou nela e tirou a tampa. Voltou para junto do beliche. Carl enrolara o corpo numa bola, com os joelhos encostados ao queixo. Congo virou-o de cara contra o beliche,
enfiou um joelho entre as omoplatas de Carl e arrancou-lhe o cordão das calças. Segurou a garrafa no alto e despejou metade do conteúdo em cima das nádegas de Carl.
- Quer estejas pronto ou não, aqui vou eu! - disse Congo enquanto se punha em posição atrás de Carl.
- Não... - choramingou Carl, e depois gritou. Foi um som da mais profunda angústia. Cada um dos homens que aguardavam a sua vez pagaram a Lucas o preço da entrada,
como espectadores num jogo de futebol, e depois apinharam-se dentro da cela, atrás do par no beliche. As suas vozes eram roucas de desejo e excitação. Um deles entoou:
- Dá-lhe, Congo! Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe!
Os outros riram-se e retomaram o refrão. - Dá-lhe, Congo, dá-lhe! De repente, Congo arqueou as costas, lançou a cabeça para trás e soltou um urro como um touro no
cio. O homem atrás dele ajudou-o a sair e ocupou imediatamente o seu lugar. Carl voltou a gritar.
- Meu Deus, como ele canta tão doce - disse o terceiro homem na fila.
Na altura em que o quinto homem se aproximou dele, Carl já não gritava mais. Quando o último homem terminou, abanou a cabeça, desiludido, enquanto se afastava.
- Parece que já desmaiou e deixou-nos aqui pendurados, pá Congo estivera sentado no beliche ao lado de Carl. Levantou-se e disse: - Ná, ainda continua a respirar.
Se está a respirar.
então ainda aguenta mais um bocadinho de amor. - Pôs-se atrás de Carl uma vez mais.
O homem de confiança da enfermaria da prisão tinha sido convidado para a festa, tanto a título pessoal como profissional. Acercou-se no seu papel profissional e
verificou a pulsação de Carl sob o queixo, na artéria carótida.
- Este rapazola já teve o suficiente para esta noite. Ajudem-me a levá-lo lá para baixo e daqui a duas ou três semanas já estará pronto para mais diversão.
68
Ao amanhecer, Carl encontrava-se num estado crítico devido ao trauma e à perda de sangue. Foi chamado o médico da sede central. Ordenou que Carl fosse transferido
para as principais instalações médicas na Penitenciária Estatal de Huntsville.
No bloco operatório, aspiraram-lhe por sucção a cavidade abdominal inferior e quase lhe retiraram dois litros de sangue e esperma. Depois, o cirurgião suturou-lhe
os vasos sanguíneos rasgados. reparou-lhe cirurgicamente as lesões no quadrante inferior do cólon e administrou-lhe três litros de sangue por transfusão.
Durante a sua convalescença nas instalações médicas de Huntsville, Carl teve autorização para fazer chamadas e receber visitas. Telefonou para o Carson National
Bank em Houston e pediu ao seu gerente de conta para o visitar. Carl era um cliente importante e o gestor de conta anuiu de imediato.
Carl tinha trabalhado para o seu pai adotivo e para a Bannock Oil Corporation durante dois anos e dois meses antes da sua detenção. Henry estipulara-lhe um salário
inicial no belo montante de cento e dez mil dólares mensais. Henry acreditava firmemente no método de incentivos e punições. Também acreditava que o seu único filho
varão merecia ser tratado de forma principesca.
Para grande espanto e profunda satisfação de Henry, Carl revelara quase de imediato uma extraordinária perspicácia para os negócios que estava muito para além daquilo
que Henry esperaria de alguém com essa idade e inexperiência. No final do primeiro ano, Henry sentiu um enorme orgulho ao aperceber-se de que Carl era um génio financeiro,
cujos dotes naturais rivalizavam, e em alguns acasos até excediam, os seus. Carl viria a demonstrar uma assombrosa capacidade para farejar possíveis lucros, com
a mesma prontidão com que uma hiena esfomeada conseguia detetar uma carcaça em decomposição. O seu salário subiu exponencialmente à medida que os seus talentos se
desenvolviam e floresciam. No final do seu segundo ano na Bannock Oil, já tinha conquistado o seu lugar no conselho administrativo da companhia, e o montante total
do seu salário e honorários como diretor ascendia a duzentos e cinquenta mil dólares por mês. De acordo com as cláusulas estipuladas na escritura, o Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock estava obrigado a pagar-lhe por mês uma soma adicional três vezes superior ao montante dos seus ganhos pessoais. Em resultado da generosidade
do pai, mesmo depois de pagar meticulosamente os seus impostos, Carl tinha conseguido acumular um saldo de crédito muito superior a cinco milhões de dólares, de
modo que o gestor de conta acedera de imediato ao seu pedido.
Ao sexto dia, Carl já tinha recuperado suficientemente das lesões retais para poder ser transferido para a enfermaria do Centro de Holloway. Levou consigo o novo
livro de cheques que o gestor de conta lhe facultara. Da enfermaria, Carl conseguiu enviar uma mensagem a Lucas Heller através do enfermeiro de serviço. A mensagem
dizia que Lucas deveria falar com ele se desejava saber uma coisa que seria do seu grande benefício.
Lucas condescendeu em descer à enfermaria para ver Carl, principalmente pela oportunidade de poder troçar dele confinado à cama. De forma a manter a conversa aliciante,
e como sinal da sua boa-fé, Carl deu-lhe um cheque de cinco mil dólares ao portador pelo Carson National Bank. Lucas leu o montante com estupefação: raras vezes
tivera tanto dinheiro nas mãos de uma só vez, mas a experiência havia-o ensinado a não confiar em fadas madrinhas. Recusou-se a acreditar naquele golpe de sorte
até ter a oportunidade de ir apressadamente à cidade levantar o cheque na filial local do banco.
O caixa pagou-lhe sem levantar a mínima objeção. De cético tornou-se prontamente num crente. Regressou ao Centro de Holloway e voltou a visitar Carl. Nesta ocasião,
os seus modos eram profundamente deferentes e obsequiosos.
Carl ordenou-lhe então que veiculasse uma mensagem a Johnnv Congo no corredor da morte. Por essa altura, Carl já compreendera todas as estruturas de poder subjacentes
ao Centro de Hollowav. Ficara a saber que Johnny Congo exercia uma enorme influência em toda a prisão. À semelhança de uma grotesca aranha devoradora de carne humana,
mantinha-se no centro da sua teia e manipulava os fios, que se estendiam até ao gabinete do diretor do complexo prisional.
Ao longo dos anos, o diretor fora depositando uma enorme confiança em Congo para manter a ordem entre os reclusos. Se Johnny passasse a palavra de ordem para que
houvesse "paz e cooperação". então a administração do centro conseguia manter uma certa aparência de ordem no meio de um sistema que parecia especificamente concebido
para produzir o caos.
No entanto, se Johnny Congo dissesse "Motim!", rebentavam incêndios por todo o centro; os guardas eram esfaqueados nas oficinas, ou nas galerias, ou nas passarelas;
os reclusos assumiam o controlo dos refeitórios e do pátio da prisão. Partiam o mobiliário e demais acessórios. Assassinavam alguns dos seus companheiros para darem
vazão a velhos rancores ou em obediência às ordens de Johnny Congo. Atiravam objetos e gritavam insultos aos guardas. até que a Guarda Nacional fosse chamada com
equipamento antimotim completo. E, no rescaldo final, as classificações do desempenho do diretor caíam a pique.
Graças à sua cooperação com a administração, Johnny Congo tinha conquistado privilégios especiais. Assim que novos detidos chegavam ao centro, podia escolher os
mais bonitos entre eles. como Carl sentira pessoalmente na pele. Como a sua cela nunca era revistada, as suas reservas de droga e outros luxos nunca eram devassados.
Permitiam-lhe, inclusive, ter telemóvel na cela, de modo que podia comunicar com os seus contactos e parceiros de crime no mundo exterior. A sua pena de morte estava
obstruída algures no sistema; corriam rumores de que o governador do Texas tratara para que assim fosse. Os mais bem informados estavam a apostar que Johnny morreria
de velhice, sem qualquer ajuda do homem da injeção letal na câmara de execução de tijoleira branca.
Se alguém incorresse no desagrado de Johnny Congo, era apenas uma questão de dias até que a questão fosse resolvida à navalhada no pátio da prisão, ou às primeiras
horas da madrugada, na privacidade da própria cela do ofensor, que teria sido convenientemente deixada destrancada pelo Supervisor de Nível.
Corria o rumor de que a influência de Johnny Congo se estendia muito para lá dos muros da prisão. Acreditava-se que ele mantinha fortes laços com organizações criminosas
e gangues de todo o Texas e estados circundantes. Por um preço muito razoável, Johnny dispunha-se a corrigir problemas em cidades tão distantes como San Diego e
São Francisco.
Lucas Heller demorou quase uma semana a conseguir o encontro entre Carl e Johnny Congo, mas, no final, o gabinete do supervisor do corredor da morte foi colocado
à disposição e os dois reuniram-se às três da madrugada de um domingo, quando o resto do centro estava trancado para a noite. O Supervisor de Nível e quatro dos
seus guardas esperaram à porta, mas não interferiram.
Assim que Carl e Congo ficaram a sós, avaliaram-se um ao outro com desconfiança, como dois leões de juba negra de grupos rivais que se tivessem cruzado em território
disputado na savana africana. Por esta altura, Congo já percebera que Carl não era mais uma cara linda. Sabia que Carl era filho de Henry Bannock e conhecia o poder
e a riqueza da Bannock Oil Corporation.
- Querias falar comigo, lindinho? - Preciso da sua proteção, senhor Congo. - Carl não desperdiçou tempo. - Podes apostar esse teu lindo cuzinho que precisas mesmo,
pois em pouco tempo ia deixar de ser assim tão lindo e macio. Mas porque é que eu te deveria proteger?
- Posso pagar-lhe. - Sim, pá, talvez seja motivo suficiente para eu o fazer. Mas de quanto dinheiro estamos aqui a falar, rapaz?
- Diga-me o senhor. Congo pôs-se a catar o nariz enquanto ponderava a questão. Por fim, examinou a crosta de muco seco que retirara da narina esquerda
e sacudiu-a do dedo antes de anunciar o seu preço. - Cinco mil dólares a cada mês, em notas de um e cinco dólares, entregues aqui em Holloway. Não me servem de nada
lá fora. - Tinha estabelecido uma quantia escandalosamente exagerada, na esperança de que Carl regateasse.
- Que quantia mais ridícula, senhor Congo - disse Carl. Johnny Congo ficou ofendido e cerrou os punhos, que mais pareciam grossos presuntos negros. - Para um homem
do seu estatuto e posição elevada, estava a contar pagar-lhe dez ou até quinze mil dólares por mês.
Johnny Congo pestanejou e descerrou os punhos. Começou a sorrir de um modo paternal. - Estou-te a ouvir, lindinho, e estou a gostar do que ouço. Quinze mil parece-me
bastante bem.
- Tenho a certeza de que conseguirá arranjar uma forma de lhe entregarem o dinheiro desde o banco até ao local onde o quer ter. Diga-me só o que devo fazer e assim
farei. Ponho a minha mão no fogo, senhor. - Estendeu-lhe a mão. Congo estendeu a mão e, enquanto lha apertava, disse numa voz retumbante: - É mais do que a tua mão
o que está em jogo. rapaz. É toda a tua linda vidinha.
- Eu sei que sim, senhor Congo. Mas, se quer mesmo ganhar uma grande pipa de massa, devíamos fazer negócios juntos.
- Que tipo de negócios? - Congo quase se ria na cara dele. - Ora conta aí, lindinho.
Carl falou durante cerca de quarenta minutos e Congo manteve-se inclinado para a frente, ouvindo-o quase sem o interromper. No final, sorria de orelha a orelha e
os olhos brilhavam-lhe.
- Como sei que vais cumprir com o que dizes, rapaz? - perguntou-lhe por fim.
- Se eu não cumprir, então pode retirar-me a sua proteção senhor Congo.
Foi um encontro decisivo, do qual só poderia emergir uma aliança ímpia: um jovem génio de natureza retorcida a aliar os seus talentos aos estratagemas de um monstro
implacável que tinha poderes de vida e morte sobre os outros. Ambos eram psicopatas, completamente desprovidos de compaixão, escrúpulos ou remorsos.
Ao longo dos anos seguintes, os lucros dos seus vários empreendimentos, inicialmente concebidos por Carl e depois promovidos por Johnny Congo, eram primeiro lavados
e branqueados. Os amigos de Johnny no exterior voluntariavam-se com avidez para os auxiliar nesse processo. Depois de o dinheiro ter sido lavado, era pessoalmente
distribuído a Carl sob a forma de dividendos, e de honorários para o diretor da prisão, através de uma companhia nas ilhas Virgens Britânicas que Carl tinha criado
quando ainda estudava em Princeton. O valor das receitas finais era quadruplicado pelo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. No final, a enorme soma total era
dividida entre Carl e Johnny Congo e ocultado em contas bancárias numeradas em Hong Kong, Moscovo, Singapura e noutras cidades espalhadas pelo globo, onde nem mesmo
o poderoso braço da Administração Fiscal dos Estados Unidos conseguiria chegar.
De modo a facilitar a operação dos seus empreendimentos, tanto dentro como fora da prisão, Carl e Johnny depressa se viram na necessidade de incluir Marco Merkowski,
o diretor do Centro Correcional de Holloway, como sócio comanditário. Assim que o envolveram no seu primeiro esquema ilegal, Marco deu por si completamente às mãos
de Carl Bannock e de Johnny Congo.
69
Carl foi transferido do nível seis para a unidade do nível um. onde estavam alojados os condenados com regalias e outros reclusos de cadastro imaculado por motivo
de bom comportamento. A cela onde ficou instalado tinha o triplo do tamanho da sua cela anterior no nível seis. Dispunha de um televisor e do seu próprio telemóvel.
O telemóvel era um elemento essencial na gestão dos interesses comerciais da aliança. Por um feliz acaso, Carl deu por si a operar num mercado ferozmente em alta.
Todos os seus antigos contactos continuavam nos seus postos e os instintos do jovem Carl para o lucro mantinham-se infalíveis. Nos seus lentos dias na prisão, Carl
continuava a ter muito tempo para concentrar a sua mente fecunda a planear o futuro. Já se tinham passado mais de cinco anos desde a sua detenção. O seu cadastro
prisional não tinha máculas, graças aos bons ofícios do diretor Merkowski. A pena mínima inicial de quinze anos pronunciada pelo juiz Chamberlain tinha sido reduzida
em recurso para um mínimo de doze anos. Carl já quase cumprira metade dessa sentença. Ainda só tinha trinta anos, mas já era um multimilionário astuto e muito sabido,
desejoso de enfrentar o mundo nos seus próprios termos assim que saísse pelos portões do Centro Correcional de Holloway.
Graças aos múltiplos contactos de que ele e Johnny Congo dispunham no exterior, Carl mantinha-se sempre completamente informado acerca dos movimentos do pai e dos
passos de todos os outros beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Infelizmente para Carl e para as suas aspirações financeiras, o pai tinha conhecido uma tenista profissional, uma campeã trinta anos mais nova do que ele, consideravelmente
mais jovem do que o próprio Carl Bannock. Carl tinha visto fotografias dessa mulher. Chamava-se Hazel Nelson e era loira, atlética e encantadora. Apenas alguns meses
depois de se terem conhecido, o seu pai e Hazel casaram-se numa magnífica cerimónia na residência de Forest Drive, em Houston. Menos de um ano depois, Hazel deu
à luz uma menina à qual puseram o nome Cayla. O recorde de Henry de gerar apenas progénie do sexo feminino mantinha-se intacto. Na perspetiva de Carl, esta nova
e inoportuna aventura do seu pai viera adicionar mais dois nomes à lista de beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
A lista completa compreendia um total de sete pessoas, incluindo o próprio Carl: Henry Bannock e Hazel Bannock, juntamente com a sua filha Cayla; a mãe de Carl,
Marlene Imelda Bannock, que conservara o apelido do marido depois do divórcio; e as duas meias-irmãs de Carl, Sacha Jean e Bryoni Lee. Usando como base o valor de
mercado das ações da Bannock Oil Corporation na Bolsa de Valores de Nova Iorque, Carl estimou que o valor total do património atual do Fundo Fiduciário da Família
Henry Bannock rondasse os cento e onze mil milhões de dólares. A ideia de ter de partilhar mesmo essa quantia tão vasta com cinco ou seis outras pessoas causava-lhe
um ressentimento feroz.
A partir da sua cela, Carl seguia com enorme interesse pessoal o pedido legal que o pai submetera há muitos anos ao Supremo Tribunal de Washington DC para que Carl
Peter Bannock fosse excluído da lista de beneficiários do Fundo Fiduciário em razão de não ser parente de sangue do dador, e pelo facto de a sua condenação por uma
série de crimes graves o ter desqualificado. Quando os eminentes juízes do Supremo Tribunal rejeitaram por unanimidade o pedido de Henry Bannock, Carl soube então
que somente a morte poderia negar-lhe a sua parte dos fundos fiduciários.
Carl e Johnny Congo celebraram a notícia com uma pequena e discreta festa no corredor da morte, na qual participaram o diretor Merkowski e várias jovens acompanhantes
trazidas de Huntsville para a ocasião. Embora Carl e Johnny Congo se tivessem tornado amantes há muitos anos, ficaram bastante satisfeitos por partilharem o seu
leito conjugal com uma ou duas raparigas bonitas, ou mesmo rapazes quando os havia disponíveis.
A decisão do Supremo Tribunal a seu favor levou Carl a refletir seriamente sobre as muitas cláusulas notáveis que o seu pai estipulara na escritura do Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock.
Carl tinha desenvolvido uma excelente memória durante os seus anos de estudo e, embora nunca mais tivesse tido acesso a uma cópia da escritura original do Fundo
Fiduciário desde o dia em que conseguira abrir a caixa-forte do pai, fizera no entanto anotações detalhadas do seu conteúdo. Durante todo esse tempo houvera sempre
uma cláusula em particular que o pai incluíra na escritura que nunca deixara de o atormentar. A provisão postulava que quando restasse apenas um único beneficiário
vivo, os mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock deveriam liquidar o fundo, e todo o restante património deveria ser dividido igualmente entre uma
instituição de caridade favorecida por Henry e o único beneficiário vivo, fosse homem ou mulher.
Carl decidiu que chegara a altura de aproveitar ao máximo essa cláusula enquanto permanecia oculto da visibilidade pública nas profundezas do Centro Correcional
de Holloway, e enquanto as paredes de betão que o aprisionavam continuavam a funcionar como um escudo capaz de defletir possíveis suspeitas sobre ele e lhe forneciam
um álibi inabalável.
O próprio Henry era invulnerável, mas estava a envelhecer rapidamente. Ao ritmo a que ele vivia a vida, não duraria muitos mais anos. Através dos seus informadores,
Carl inteirara-se de que Henry já começava a dar sinais de esmorecer. Carl sabia que tinha um aliado no Anjo da Morte e estava preparado para esperar.
Hazel e a sua jovem filha Cayla estavam protegidas pelo pesado manto de majestade que Henry Bannock lançara sobre todos aqueles que o rodeavam de mais perto. Hazel
e Cayla ainda não estavam vulneráveis. Mas a sua hora chegaria assim que Henry ficasse fora do caminho.
O mesmo não se aplicava à sua mãe alcoólatra, Marlene Imelda, que ele desprezava; e também não se aplicava às suas meias-irmãs, por quem nutria um ódio profundo
e amargo. Eram diretamente responsáveis pela sua encarceração e pelos muitos anos desperdiçados da sua vida que era obrigado a passar atrás de barreiras de aço e
betão, na companhia de criaturas mais abjetas do que qualquer fera da selva. Carl ficara a saber que a condição mental da sua irmã mais velha Sacha, melhorara de
forma tão significativa desde que ele fora encarcerado que os seus médicos puderam finalmente dar-lhe alta do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms e entregá-la aos
cuidados da sua mãe. Sacha fora viver então com Marlene nas ilhas Caimão. A relação entre mãe e filha tinha florescido no âmbito dessa nova intimidade. Marlene não
ficou curada da sua dipsomania; no entanto, a tutela da sua primogénita dera-lhe o incentivo de que precisava para tentar tornar-se abstémia. Devotava agora todo
o seu amor e atenção a Sacha, e esta correspondia-lhe com enorme gratificação.
Quando Henry Bannock casou com Hazel Nelson e Cayla nasceu, Bryoni decidiu sair de Forest Drive e mudar-se para as ilhas Caimão para estar com a mãe e a irmã. Por
essa altura, Bryoni não era muito mais jovem do que a sua madrasta Hazel. As duas raparigas tinham personalidades muito fortes e competitivas e ambas disputavam
ferozmente a atenção de Henry Bannock. Tivessem sido outras as circunstâncias e talvez se houvessem tornado amigas, mas o nascimento da bebé Cayla fizera pender
a balança nitidamente a favor de Hazel. Era agora não só a nova patroa de Forest Drive, como também a mãe da filha mais nova de Henry. Henry estava perdido de amores
por Hazel e tratou de a encorajar quando ela começou a desenvolver um grande interesse pelos negócios da Bannock Oil Corporation. Pouco tempo depois, Henry atribuiu-lhe
o cargo na administração da companhia que Carl deixara vago após a sua condenação.
Hazel ocupou o seu lugar à mesa do conselho de administração, à direita de Henry. Ela era tudo para Henry Bannock: amante, esposa, mãe da sua filha, parceira nos
negócios e companheira íntima.
Bryoni, por seu lado, não tinha nenhum interesse particular pela Bannock Oil Corporation. Graças ao Fundo Fiduciário, dispunha de todo o dinheiro de que precisava,
e não era gananciosa. Possuía alguns dos outros talentos que Hazel possuía em abundância e que a tornavam tão valiosa e desejável aos olhos de Henry Bannock. Bryoni
não podia competir com ela a nenhum nível. De modo que partiu para a Grande Caimão nas Caraíbas, onde Marlene e Sacha a receberam com um entusiasmo comovente, e
onde ela pôde servir um propósito que era simultaneamente muito valorizado pelas duas pessoas que ela mais amava e que a realizava em pleno.
Na perspetiva de Carl, esse passo fora também muito favorável: três dos beneficiários do Fundo Fiduciário tinham sido removidos do escudo de proteção do pai e para
longe da jurisdição e tutela do governo dos Estados Unidos da América, para uma ilha isolada
onde estavam muito mais vulneráveis e acessíveis às atenções dos amigos de Johnny Congo.
Carl elaborou os seus planos com grande minúcia e atenção aos detalhes. Congo participou com entusiasmo nesse empreendimento. Dispunha de contactos nos cartéis de
cocaína nas Honduras e na Colômbia, os quais estavam sempre interessados em ganhar uns dólares extra em projetos secundários e mais mundanos.
O contacto de Johnny nas Honduras era um indivíduo chamado Sefior Alonso Almanza, cujo quartel-general se situava no porto de La Ceiba, onde operava duas velozes
lanchas de longo percurso. com doze metros de comprimento. Eram geralmente usadas para o contrabando de cocaína a coberto da noite, para o norte do México. Texas
ou Louisiana. No entanto, nesses últimos tempos a guarda costeira americana tinha-se tornado um pouco problemática, de modo que as suas potentes embarcações estavam
subaproveitadas
A distância entre La Ceiba e as ilhas Caimão era inferior a quinhentas milhas marítimas: um trajeto fácil e quase um passeio para as enormes e rápidas lanchas Chris-Craf
t.
- O Alonso é um bom tipo, de absoluta confiança. Não tenho remorsos em despachar alguém desta pra melhor se o preço for atrativo. Acho que não conseguíamos arranjar
ninguém mais indicado - disse Johnny Congo a Carl.
- Agrada-me a descrição que fazes dele, e os preços que ele pede são em conta. Mas e quanto ao reconhecimento inicial? Tens alguém lá na Grande Caimão que possa
fazer isso para nós?
- Não há problema, lindinho. - A alcunha, que começara por ser deliberadamente pejorativa, tornara-se agora num termo carinhoso entre os dois. - Há também um agente
imobiliário em George Town que chegou a fazer uns trabalhinhos pra mim. Nada melindroso. Basta dizer-lhe que queremos fazer uma oferta anónima por uma propriedade
na ilha e que precisamos duma descrição completa de tudo o que contém, incluindo o pessoal doméstico e ocupantes.
- Contacta-o então, Negrão. - Qualquer outra pessoa que chamasse isso a Johnny Congo na cara sofreria uma morte prematura e dolorosa. - Acima de tudo, precisamos
de obter informações sobre as medidas de segurança na propriedade. Se conheço bem o meu pai, e posso garantir-te que sim, devem ser apertadas. Vamos precisar de
saber em que quarto dorme a minha mãe e onde podemos encontrar as minhas duas irmãs. Quase apostava que os quartos delas são logo ao lado do da querida mamã.
O contacto de Johnny Congo na Grande Caimão era um inglês aposentado, chamado Trevor Jones, que decidira passar os seus dias de reforma numa ilha paradisíaca tropical.
No entanto, para seu grande desgosto, descobrira que o paraíso saía a um preço caro e que a sua pensão não dava para esticar tanto como esperara. De bom grado aceitara
aquela lucrativa missão proposta por Carl Bannock. Conseguiu obter, no gabinete de topografia do governo, uma cópia da planta da propriedade The Moorings, a residência
dos Bannocks junto à praia. Depois tratou de desencantar uma antiga criada de quarto da Sra. Marlene Bannock que tinha sido despedida das suas funções por ter roubado
um par de anéis de pérola da caixa de joias da Menina Sacha Bannock. Chamava-se Gladys e abandonara The Moorings com um rancor de todo o tamanho.
Juntos, Gladys e Trevor Jones examinaram atentamente a planta da casa. Ela mostrou-lhe em que quartos os três membros da família dormiam e onde se situava a sala
dos guardas de segurança. Conhecia as rotinas de patrulha dos guardas. Havia máquinas de marcar o ponto dispersas por vários locais da propriedade que mantinham
os guardas a cumprir um rigoroso horário de trabalho. Os turnos mudavam a horas muito precisas, de modo que os movimentos dos guardas eram previsíveis. Gladys também
lhe forneceu uma lista do pessoal doméstico. A maior parte dos empregados tirava folga ao domingo e só retomava as suas funções após o fim de semana.
Gladys conhecia a localização exata de cada um dos numerosos sensores de alarme espalhados pela propriedade. Obviamente que as palavras-passe tinham sido substituídas
depois de ela ter sido despedida, mas o seu companheiro continuava empregado em The Moorings como ajudante de cozinha e de bom grado lhe forneceu as novas palavras-passe.
A brecha através do recife de coral estava assinalada com balizas luminosas, bem como o canal de acesso ao ancoradouro à frente de The Moorings. Jones saiu no seu
pequeno barco de pesca a remos e procedeu a algumas medições furtivas, bem como a um ou dois outros preparativos. Durante a maré alta na primavera, o canal tinha
uns bons três metros de profundidade no ponto mais baixo. havendo, pois, água mais do que suficiente mesmo para uma das enormes lanchas Chris-Craft.
Todo este pacote de informações foi enviado a Johnny Congo. O custo total para Carl ficou abaixo dos quatro mil dólares, o que ele considerou um ótimo negócio.
As informações foram depois reencaminhadas para o Seior Alonso Almanza, em La Ceiba, juntamente com detalhadas instruções adicionais e um pagamento antecipado, por
transferência bancária, de setenta e cinco mil dólares, até à finalização do contrato no valor de duzentos e cinquenta mil dólares.
- Vou contar-te um pequeno segredo, Negrão. - Carl dirigiu um sorriso a Johnny Congo. - Quando tens dinheiro suficiente. podes fazer e ter tudo o que quiseres. Ninguém
te consegue dizer não.
- Nem mais, lindinho! Dá cá mais cinco! - Johnny ergueu a mão direita e bateram as palmas das mãos.
70
Vinte e oito dias mais tarde, a lancha Pluma de Mar do Sefior Almanza aproveitou a claridade da lua cheia para atravessar furtivamente a brecha no recife e entrar
na baía Old Man na costa norte da Grande Caimão. O casco estava pintado de preto mate, de modo que era quase invisível, mesmo com o luar. Zarpara de La Ceiba ao
meio-dia no dia anterior e a sua chegada ao destino tinha sido programada exatamente para as três menos um quarto da madrugada de domingo, a hora das bruxas, quando
apenas salteadores, lobisomens e piratas deveriam rondar a escuridão.
O Pluma de Mar transportava uma tripulação de onze elementos. Usavam fatos de treino pretos e capuzes escuros na cabeça, com fendas para os olhos e para a boca.
Prenderam a embarcação a uma das boias sinalizadoras do canal, a setenta metros da orla da praia onde se situava The Moorings. Trevor Jones tinha colocado um minúsculo
rádio na boia para se orientarem. Deixaram um tripulante a bordo para tomar conta da embarcação e lançaram à água um bote insuflável de motor fora de borda e movido
a bateria que os transportou em silêncio até à margem.
Alcançaram a praia às três horas em ponto, quando as patrulhas de segurança se tinham reunido na sala da guarda para a mudança de turno e para tomarem café. Dois
dos homens mascarados apressaram-se a desativar os sensores de alarme e a desimpedir o caminho para os companheiros que seguiam atrás. Quando o grupo de assalto
irrompeu pela sala da guarda, apanharam completamente de surpresa os quatro homens aí reunidos. Poucos minutos depois, já os tinham amordaçado e amarrado com fita
adesiva e desligaram o sistema de alarme no principal painel de controlo.
Depois precipitaram-se em redor da piscina e arrombaram a porta da casa com um pé-de-cabra. Sabiam exatamente para onde se dirigiam: atravessaram as salas de estar
e subiram a escadaria principal até às suítes. Dividiram-se em três grupos ao chegarem ao topo das escadas. Cada grupo avançou com rapidez para a suíte que lhe tinha
sido destinada. Invadiram as divisões enquanto os ocupantes ainda dormiam profundamente. Arrancaram-nos das camas e amarraram-lhes os punhos com fita adesiva. De
seguida, arrastaram-nos pela escadaria abaixo, em direção ao terraço da piscina, que estava discretamente resguardado por muros altos e por vegetação tropical, de
modo a permitir às mulheres Bannock tomarem banhos de sol nuas.
Um dos elementos do bando tirou uma câmara de filmar da mochila. Era um realizador de Guadalajara, no México, especializado em filmes pornográficos hardcore. Disse
num inglês sofrível às três prisioneiras que choravam aterrorizadas: - Chamo-me Amaranthus. É com prazer que vou fazer documentário sobre vocês. Por favor, não façam
caso de mim e tentem não olhar pra lente da minha câmara, a não ser que vos peça. - Recuou ligeiramente e apontou-lhes a câmara.
O líder do bando postou-se à frente delas. - Sou o Miguel. Vão fazer o que vos disser, senão vão-se arrepender. Nome? Nombre? - gritou-lhes, obrigando cada uma delas
a dizer o nome à vez, virada para a câmara de Amaranthus. Sacha Jean estava emudecida de terror. Bryoni falou pela irmã e disse o nome dela.
- É a minha irmã, Sacha Jean Bannock. Está doente. Por favor. não lhe façam mal.
Sacha caiu de joelhos e borrou as calças do pijama, num som explosivo. Miguel riu-se e deu-lhe um pontapé. - Vaca porcalhona! Levanta-te! - Voltou a pontapeá-la.
Bryoni estendeu as mãos atadas e ajudou Sacha a erguer-se.
O líder do bando virou-se para Marlene e tirou do bolso uma tira de papel. - Estas são as ordens que recebi. - Leu no seu carregado sotaque hispânico: - Marlene
Imelda Bannock. Vais ser executada. A tua morte será testemunhada pelas tuas filhas Sacha Jean e Bryoni Lee. A tua execução vai ser filmada para todas as partes
interessadas poderem ver. Depois, as tuas filhas serão encarceradas para o resto da vida num país estrangeiro.
As pernas de Sacha cederam novamente. Bryoni não conseguiu ampará-la e Sacha caiu contra a borda de mármore da piscina. Enrolou-se na posição fetal enquanto gemia
numa voz estrídula. Começou a bater com a testa na borda de mármore, com tal força que uma das sobrancelhas se rasgou, empapando-lhe os olhos de sangue. Bryoni ajoelhou-se
ao lado de Sacha e tentou impedi-la de se magoar mais.
Marlene gritava, desesperada, enquanto os três homens a arrastavam: - Sê valente, Sacha! Não chores, minha filhinha. Toma conta dela, Bryoni.
Arrastaram-na pelas escadas da piscina e enfiaram-na na água, que lhe dava pela cintura. Potentes holofotes submersos iluminavam o cenário para Amaranthus, que se
ajoelhou junto à borda da piscina para filmar tudo.
Dois membros da tripulação sujeitavam Marlene pelos braços. Olharam para Miguel na borda da piscina.
Miguel disse-lhes: - Bueno! Enfiem-na debaixo de água. Forçaram a cabeça de Marlene sob a superfície da água. Um terceiro homem agarrou-lhe os tornozelos e ergueu-lhos
bem alto. A metade superior do corpo de Marlene ficou completamente imersa. Esperneou de forma frenética e todo o seu corpo se arqueou em convulsões tão violentas
que os homens tiveram dificuldade em a imobilizar.
- Chega! - gritou Miguel. - Tirem-na pra fora por uns segundos. - Os homens ergueram-lhe a cabeça e Marlene engoliu uma golada de água enquanto se debatia por ar.
Depois, jorrou-lhe da boca aberta um misto de água e vómito que a sufocou quando tentou respirar.
- Bueno, já chega. Voltem a enfiar-lhe a cabeça. - Enfiaram-lhe a cabeça debaixo de água no momento em que ela arquejava por ar, acabando por engolir uma nova golada
de água em vez de ar.
Continuaram a submergir-lhe a cabeça a intervalos cada vez mais longos, enquanto Marlene se debatia cada vez mais debilmente. Postado atrás da câmara, Amaranthus
queria aproveitar a cena ao máximo. Era uma das especificações estipuladas por quem lhe dera as ordens, e Amaranthus compreendia que aquilo deveria ser fascinante
para eles. Dilacerada e dividida entre o seu amor pela irmã e pela mãe, Bryoni deixou Sacha e rastejou para junto de Miguel, tentando agarrar-se às pernas dele.
- É a minha mãe. Por favor, não lhe façam isso. Miguel afastou-a com um pontapé e disse aos três homens na piscina: - E agora terminamos. Mantenham a velha megera
debaixo de água.
Uma última e violenta rajada de bolhas assomou à superfície enquanto os pulmões de Marlene se esvaziavam por completo. Ofereceu cada vez menos resistência, até finalmente
parar de se debater. - Ha muerto? - perguntou um deles? - Está morta? - No, esperar un poco más - ordenou Miguel. Bryoni tinha conhecimentos suficientes de espanhol.
Voltou a rastejar para junto de Miguel e agarrou-se de novo à perna dele. - Por favor, seior. Tenha piedade, suplico-lhe.
Dessa vez, ele assestou-lhe um pontapé na boca e Bryoni caiu para trás. Levou as mãos aos lábios que sangravam. - Daqui a nada será a tua vez - disse ele num tom
trocista. - Mas primeiro temos de provar essa tua caminha e a da tua irmã loca. - Puxou a manga para trás para ver as horas no relógio. Depois falou aos homens na
piscina. - Bueno! Já deve bastar. Levantem-na pra vermos.
Um dos homens agarrou uma mão-cheia de cabelos de Marlene e ergueu-lhe o rosto acima da água. Tinha a pele cerosa e pálida. Os olhos arregalados e fixos no vazio.
Melenas de cabelo tombaram-lhe sobre o rosto como algas expostas numa rocha durante a maré vazante. Escorria-lhe água da boca aberta.
- Deixem-na ficar aí - ordenou Miguel. Os homens largaram-na e dirigiram-se para as escadas, deixando o corpo de Marlene a flutuar de rosto para baixo.
- Já estamos aqui há muito tempo. Está na hora de ir - disse-lhes Miguel. - Limpem aquela gaja. - Apontou para Sacha. - El jefe mata-nos se sujarmos o lindo barquinho
dele com bosta.
Arrancaram a Sacha o pijama sujo e atiraram-na nua para a piscina, ao lado do cadáver da mãe. Um deles curvou-se sobre Bryoni e cortou-lhe a fita adesiva que lhe
prendia os punhos.
- Mete-te ali na água com a porcalhona da tua irmã e lava-lhe a merda - ordenou-lhe em espanhol.
Bryoni enfiou-se na água e aproximou-se de Sacha; lavou-lhe o corpo e limpou-lhe o sangue do ferimento por cima do olho, e depois ajudou-a a subir as escadas da
piscina, envolvendo-lhe os ombros com um braço. Sacha não parava de chorar e de olhar para o cadáver de Marlene a flutuar. - Que se passa com a mamã? Porque é que
ela não quer falar comigo, Bryoni? - Sacha voltara a regredir ao estado de uma criança de cinco anos.


CONTINUA

30
Saíram da mesquita através do portão principal e viraram na estrada em direção ao complexo residencial muralhado que Tariq lhe tinha indicado mais cedo nesse
dia como sendo a casa de Aazim Muktar. Avançaram rapidamente, com uma precisão quase militar, num grupo compacto com Hector no meio. Quando alcançaram a entrada
do complexo, os portões foram abertos do interior e todos marcharam para um pátio pavimentado. No centro erguia-se uma enorme figueira-de-bengala com ramagens amplas.
À sua sombra estava sentado um pequeno grupo de mulheres de rosto velado e crianças de tenra idade. Observaram com interesse enquanto Hector era obrigado a marchar
até aos degraus que conduziam à varanda coberta de um bangaló de telhado plano.
Era um edifício modesto e despretensioso, não o tipo de lar que se poderia esperar de um alto clérigo ou de um importante funcionário do governo. A maior parte
dos membros da escolta de Hector deteve-se na base das escadas, mas dois deles flanquearam-no e agarraram-lhe os braços para o conduzirem pelas escadas até à varanda.
Hector afastou-lhes as mãos num gesto irritado e eles não insistiram. Subiu os degraus dois a dois e parou no topo. A porta à sua frente estava aberta e atravessou-a
com passadas largas e determinadas, parando à entrada enquanto os seus olhos se adaptavam ao interior obscurecido que contrastava com o sol brilhante do pátio.
A divisão era espaçosa mas esparsamente mobilada, ao estilo árabe. A mobília estava alinhada ao comprido das paredes, deixando o centro da divisão despojado e
desimpedido. Aazim Muktar era a única pessoa presente. Estava sentado de pernas cruzadas em cima de uma pilha de almofadas de veludo verde, à frente de uma mesa
baixa. Levantou-se num movimento ágil e fez uma vénia, tocando na testa, nos lábios e no coração. Depois endireitou o corpo e falou numa voz pausada.
- É muito bem-vindo à minha casa, senhor Cross. - É muito amável da sua parte convidar-me, xeque Tippoo Tip. - Hector retribuiu-lhe a vénia.
Aazim Muktar esboçou uma ligeira careta perante o tom irónico dele. - Talvez seja melhor falarmos de forma aberta e franca, senhor Cross. Não é minha intenção
retê-lo mais do que o estritamente necessário. - O seu inglês era perfeito, educado e culto como o de um aristocrata britânico.
- Não esperaria menos de si, mulá Aazim Muktar. - Queira sentar-se, por favor. - Indicou-lhe uma cadeira de espaldar alto que obviamente fora ali colocada para
o convidado. Hector avançou sem hesitação e sentou-se. Estava em séria desvantagem, de modo que era essencial manter uma expressão dura e uma determinação austera.
Aazim Muktar sentou-se nas almofadas, virado para ele. Ambos se olharam fixamente, até que o mulá quebrou o silêncio.
- Sabia que conheci a sua mulher há uns anos, numa receção na residência do embaixador americano em Londres? Hazel Bannock-Cross era uma dama muito bela e superior.
Gostava dela e admirava-a imenso.
Hector inspirou lenta e profundamente. Não queria que a voz tremesse devido à raiva que lhe inundava cada célula do corpo. Quando respondeu, fê-lo num tom baixo
e neutro. - Então porque é que a mandou matar? Os olhos de Aazim Muktar eram escuros e expressivos. As pestanas, compridas e quase femininas, pareciam incongruentes
no meio daqueles traços masculinos tão vincados. Os seus olhos encheram-se lentamente de sombras de dor e mágoa. Inclinou-se para Hector e, por um momento, pareceu
prestes a estender a mão e tocar-lhe, mas conteve-se. Voltou a sentar-se direito e susteve o olhar irado de Hector.
- Peço a Alá e ao seu Profeta que me ouçam quando lhe digo que isso não é verdade, caro senhor. Não estive envolvido de nenhuma forma no homicídio da sua mulher.
- E eu digo-lhe, caro senhor, que as palavras fluem com leviandade dos lábios daquele que negoceia em palavras.
- Haverá alguma forma de o convencer? - perguntou o mulá numa voz calma. - Choro a morte dela quase tanto quanto você.
- Não consigo imaginar nada que me possa convencer disso - disse Hector. - Não há mais ninguém que tivesse um motivo,
a não ser você. O credo da retaliação e da morte por vingança está profundamente imbuído na sua religião, na sua cultura e na sua psique.
- Isso não é verdade, senhor Cross. Há também a luz do perdão que nos conduz. Não prestou atenção à súplica que lhe dirigi pessoalmente a si na mesquita hoje?
Implorei-lhe que pusesse fim a este círculo vicioso de morte atrás de morte.
- Ouvi o que você pregou - replicou Hector -, mas não acreditei numa única palavra.
- Assim sendo, parece que só me resta mais um recurso. - Qual? Também me vai matar? - Não, meu senhor. Não matei a sua encantadora mulher nem o vou matar a si.
É convidado na minha casa. Encontra-se sob a minha proteção. Dá-me licença por uns momentos, senhor Cross?
Hector não respondeu e Aazim Muktar levantou-se e saiu. Hector levantou-se da cadeira de um salto e moveu-se rapidamente pela divisão. Os olhos dardejaram-lhe
de um lado para o outro à procura de uma via de fuga, de uma arma com que pudesse defender-se. Não encontrou nada, a não ser livros e pergaminhos, e, quando olhou
através da janela, reparou que o pátio estava cheio de seguidores de Aazim Muktar. Estava desesperadamente encurralado.
O mulá voltou poucos minutos depois. - Desculpe-me, senhor Cross, mas tive de tratar dos preparativos finais para o levar para fora da cidade. Talvez não saiba
que se trata de um delito muito grave para qualquer pessoa que não professa a fé islâmica entrar nos locais sagrados da Medina e de Meca. A pena é a morte por decapitação.
Tenho um carro e um motorista à espera junto aos portões do complexo para o levar ao aeroporto de Jidá. Fiz uma reserva em primeira classe num voo da Emirates de
Jidá para Abu Zara. que parte às dez desta noite. Assim que tiver levantado voo, os seus homens na Cross Bow Security serão avisados da sua chegada. No entanto,
deve partir já de Meca.
Hector fixou-o, atónito e totalmente incrédulo. Não acreditava que iam libertá-lo. Não passava de mais um ardil, sabia-o bem. Tentou ver para lá do olhar franco
e da expressão sincera do mulá.
- Por favor, senhor Cross. É uma questão de vida e morte Tem de partir já. Segui-lo-ei num veículo separado. Voltaremos a ter outra oportunidade de falar no aeroporto
de Jidá, numa sala VIP que reservei.
Hector inclinou um pouco a cabeça, fingindo aquiescência Sabia que o motorista o levaria para o deserto, onde deparam depois com um pelotão de execução composto
por fanáticos religiosos. Provavelmente já lhe tinham até escavado a sepultura.
Por mais desvantajosa que seja a posição em que este cabrão me colocou, tenho mais hipóteses de sobrevivência lá no deserto do que encurralado aqui dentro, concluiu.
- É muito generoso... - começou por dizer, mas Aazim Muktar interrompeu-o.
- Aqui está o seu bilhete de avião. - Entregou a Hector um envelope com o timbre da companhia Emirates estampado na aba. Hector abriu-o e verificou o nome no
bilhete. Era o mesmo nome falso que constava do passaporte de Abu Zara com o qual viajava Claro, o traidor Tariq dera-lhe essa informação.
Hector ergueu a cabeça. - Parece estar em ordem.
- Muito bem! E agora, parta sem demora. Voltarei a vê-lo em Jidá.
Segurou na porta aberta para ele passar, e Hector desceu as escadas a correr para o pátio. Um sedã Mercedes preto cruzou de imediato o portão, vindo da rua. Estacionou
à frente de Hector. Um motorista barbudo e de turbante negro saltou do assento do condutor e abriu-lhe a porta de trás. Assim que Hector se instalou no assento,
o motorista fechou a porta e voltou a enfiar-se atrás do volante. Os discípulos abriram alas para deixar passar o Mercedes que seguiu pelo portão do complexo para
a rua. Hector olhou para trás através da janela na traseira. Aazim Muktar estava especado na varanda do bangaló a vê-lo partir.
Hector passou todo o trajeto até ao aeroporto de Jidá num tumulto de indecisão. Teria sido fácil estender a mão por trás do assento do motorista, imobilizá-lo
com um golpe de gravata e partir-lhe o pescoço. Depois poderia usar o Mercedes para fugir até à fronteira com Abu Zara. No entanto, a fronteira ficava a mais de
mil e quinhentos quilómetros de distância e o ponteiro do combustível no painel de instrumentos indicava menos de metade do depósito cheio. Só dispunha de alguns
dólares no bolso, insuficientes para atestar o depósito. Talvez o motorista tivesse algum dinheiro, mas duvidava. O homem provavelmente tinha um cartão de abastecimento
de combustível ou algum outro tipo de cartão de débito. Sem dinheiro, nunca conseguiria escapar. E, claro, assim que o alarme soasse, a polícia saudita emitiria
um alerta geral para todos os agentes na estrada. Não conseguiria percorrer cem quilómetros, e muito menos mil, até o apanharem. Pôs de parte essa ideia.
Depois pensou em Aazim Muktar Tippoo Tip e sopesou as probabilidades de ele ser inocente ou culpado: poderia acreditar e confiar nele? Quando o ouvira pregar
na mesquita, quase se deixara convencer. Contudo, agora que tinha sido libertado, tinha a certeza de que só podia ser um ardil. Sabia que devia haver outra surpresa
chocante à sua espera.
Havia um telefone no apoio de braço do banco traseiro do Mercedes e Hector levantou o auscultador, encostando-o ao ouvido. Ouviu um sinal de linha. Abriu o envelope
que Aazim Muktar lhe tinha dado e procurou o número de telefone do balcão do check-in da companhia aérea Emirates no aeroporto de Jidá. Marcou-o e, ao terceiro toque,
uma mulher atendeu-o. Deu-lhe os pormenores do seu bilhete.
- Pode confirmar, por favor, se a minha reserva está correta? - Queira aguardar um momento, senhor. - Houve uma breve pausa e depois a mulher voltou a falar.
- Sim, senhor. Estamos à sua espera. O seu check-in já foi confirmado online. O seu voo vai partir à hora prevista, às vinte e duas.
Hector pousou o auscultador. Tudo parecia bater certo, até certo de mais. Aquilo que finalmente o decidiu foi pensar em Hazel. Por respeito à memória dela, deveria
confrontar Aazim Muktar e levar as coisas até ao fim, por mais riscos que isso envolvesse. Quase conseguia ouvir a voz dela. Tens de o fazer, meu querido. Tens de
o fazer, senão tu e eu nunca mais teremos paz.
De modo que se acomodou no banco traseiro e deixou o motorista conduzi-lo a Jidá.
31
No portão de embarque no terminal das Linhas Aéreas da United Arab Emirates no aeroporto de Jidá, um porteiro em vestes tradicionais abriu-lhe a porta do Mercedes
e, com respeito cerimonioso, acompanhou-o até à sala privada que tinha sido reservada pelo mulá. Assim que ficou sozinho, Hector tentou abrir a porta e descobriu
que estava destrancada. Entreabriu-a um pouco e espreitou através da nesga. Não viu nenhum guarda postado no exterior. Por essa altura, sentia-se mais intrigado
do que receoso. Fechou a porta e olhou em redor da sala de espera luxuosamente mobilada. Tinha a boca seca devido ao gosto râncido do perigo.
De bom grado voltava a ser virgem em troca de um uísque decente, pensou, mas claro que não havia nenhuma bebida alcoólica forte à vista naquele bastião islâmico.
Bebeu um copo de água Perrier, serviu-se de um outro e levou-o consigo para uma das poltronas. Enquanto se sentava, ouviu alguém bater à porta.
- Entre - disse, e Aazim Muktar entrou. Certamente seguira de perto o Mercedes que transportara Hector desde Meca. No entanto, Hector ficou atónito quando o mulá
entrou acompanhado de uma mulher coberta da cabeça aos pés. Chorava baixinho por trás do véu. Conduzia pela mão um rapazinho de tez escura, com cerca de seis ou
sete anos. Era um menino encantador, com caracóis negros e olhos escuros e grandes. Estava a chuchar no polegar, com um ar infeliz e perplexo. Aazim Muktar fez sinal
à mulher, a qual se apressou a afastar-se para um dos cantos da sala, onde se sentou no chão, abraçando a criança contra o peito. Hector reparou no brilho dos olhos
dela por trás da burca enquanto o observava, e depois apercebeu-se de que ela recomeçou a chorar. Aazim Muktar, com uma ordem ríspida, advertiu-a que se calasse
e depois sentou-se numa poltrona virada para Hector.
- Dentro de quarenta e cinco minutos vão anunciar o embarque para o seu voo - disse ele a Hector. - É todo o tempo de que disponho para o convencer de que não
tive nenhuma responsabilidade no assassinato da sua mulher. Mas primeiro deixe-me dizer-lhe que estou a par de quase todos os detalhes do trágico confronto entre
a sua família e a minha. Houve muitas mortes de ambos os lados Compreendo que, tendo sido você um oficial do exército, em certas ocasiões se justificasse matar em
cumprimento do dever. Houve alturas em que você fez justiça pelas próprias mãos. - Calou-se e olhou bem no fundo dos olhos de Hector.
- Continue! - incitou-o Hector, sem deixar transparecer nenhuma emoção.
- Aceito o facto de o meu pai e a maior parte dos meus irmãos serem piratas, agindo em contravenção direta do Direito Internacional. Capturaram navios mercantes
no alto-mar e retiveram as tripulações em troca de um resgate. Dissociei-me, ainda muite jovem, desses crimes cometidos pela minha família e fui para Inglaterra
para estar o mais longe possível deles. Nunca considerei ter qualquer direito de retaliação contra si ou contra a sua família Já lhe contei que conheci a sua mulher
e que a admirava. Fiquei profundamente devastado quando soube que a tinham assassinado. Foi um ato contra todas as leis do homem e de Deus. No entanto, sabia que
após a morte dela você me iria perseguir para aplacar os pecados cometidos pelo meu clã.
- Sou todo ouvidos.
- Há muito que eu receava o dia do nosso encontro, mas preparei-me para isso.
- Tenho a certeza que sim - ripostou Hector, cuja expressão era agora sombria.
- Não à sua maneira, já que você é um guerreiro experiente, senhor Cross, e a sua maneira é a linguagem da espada.
- Diga-me então, mulá Tippoo Tip. Em que consiste a sua maneira?
- No caminho de Alá. A minha maneira de agir é o perdão mútuo. A minha maneira é Al-Qisas. Ofereço-lhe uma vida por outra vida. - Levantou-se e acercou-se do
pequeno volume de ibjeta humanidade amontoado no canto da sala. Agarrou a criança pela mão e fê-la parar à frente de Hector.
- Este é o meu filho. Tem seis anos. Chama-se Kurrum, que 'ignifica "felicidade". - O rapazinho voltou a enfiar o polegar na boca e olhou fixamente para Hector.
- É um menino bonito - acedeu Hector.
- É seu - disse Aazim Muktar em árabe, empurrando delicadamente a criança para a frente.
Consternado, Hector levantou-se da poltrona de um salto.
- Pelo amor de Deus, que pretende que faça com ele?
- Em nome de Alá, deve levá-lo e retê-lo como refém contra a minha boa-fé. Se encontrar provas irrefutáveis de que matei a sua mulher, deve matá-lo como é seu
direito, segundo a lei de Al-Qisas, e perdoar-lhe-ei.
A mulher gritou e arrojou-se no chão.
- É meu filho! É o meu único filho! Mate-me se tiver de o fazer, efêndi. Mas não mate o meu filho. - Rasgou o véu e esfacelou o rosto com as unhas compridas.
O sangue brotou dos arranhões profundos e escorreu-lhe do queixo. Rastejou até aos pés de Hector.
- Mate-me, mas poupe a vida ao meu filho, suplico-lhe.
- Cala-te, mulher. - O marido usou um tom amável. Pousou a mão no ombro dela e afastou-a para o fundo da sala. Depois voltou para junto de Hector. Das dobras
da túnica branca tirou uma carteira de couro e estendeu-lha.
- Está aqui toda a documentação de que precisa para poder levar o Kurrum consigo: o bilhete de avião dele, a sua certidão de nascimento, o passaporte e os documentos
que o nomeiam seu tutor legal. Qual é a sua decisão, senhor Cross?
Hector continuava absolutamente estupefacto. Aquilo era a última coisa que esperava. Olhou para a criança. Abanou a cabeça, como se para negar aquilo que estava
a acontecer. Estendeu a mão e acariciou a cabeça do rapaz, cujos caracóis crespos lhe assomavam sob os dedos. Kurrum não fez nenhum esforço para se esquivar ao contacto.
Ergueu a cabeça e olhou para Hector. Os olhos eram escuros e transpareciam uma sabedoria muito para além da sua idade. Falou baixinho: - O meu pai diz que devo ir
consigo, efêndi. O meu pai diz que agora sou um homem e que me devo portar como um homem. É essa a vontade de Alá.
Hector continuava sem palavras. Sentia a garganta seca e o sangue que lhe latejava nas têmporas ecoava-lhe no crânio como um tambor. Curvou-se para pegar na criança
e apoiou-a no flanco. Kurrum não se debateu. Hector tocou-lhe na face e depois virou-se para o pai do rapaz.
Conseguiu ver-lhe finalmente o âmago, e o que viu era bom Sabia por fim, sem lugar para dúvidas, que aquele homem não era a Besta que ele andava a perseguir.
Hector falou com a criança apoiada no seu flanco. - És meu refém, Kurrum. - A mãe do rapaz ouviu-o e lamentou-se. Hecto: não fez caso dela e continuou a falar
com a criança. - Sabes o que isso significa, Kurrum?
O menino abanou a cabeça e Hector prosseguiu: - Significa que és valente e bom, assim como o teu pai é valente e bom
- Pousou Kurrum no chão, virou-o para a mãe e deu-lhe um empurrão delicado. - Volta para junto da tua mãe, Kurrum, e cuida bem dela, pois agora és um homem como
o teu pai foi um homem antes de ti.
A mulher estendeu os braços e Kurrum correu ao seu encontro. Ela levantou-o do chão e avançou para a porta, mas deteve-se quando a alcançou e olhou para Hector
atrás de si, com lágrimas e sangue dos arranhões a escorrerem-lhe pelo rosto.
- Mestre... - começou ela por dizer, mas depois perdeu a voz.
- Vai! - ordenou-lhe Hector. - Leva o teu filho e que Alá te acompanhe. - Ela saiu e fechou a porta suavemente, deixando Hector e Aazim Muktar sozinhos na sala
espaçosa.
- Tem a certeza? - perguntou Aazim.
- Tanta certeza como alguma vez tive em relação a qualquer outra coisa na minha vida.
- Não tenho palavras que possam exprimir a minha gratidão. - Aazim fez uma vénia. - Ofereceu-me uma dádiva superior a tudo aquilo que eu jamais poderia imaginar.
Nunca lhe poderei retribuir.
- Já me pagou o que haveria a pagar. Só o simples facto de ter conhecido um homem santo como você enriqueceu a minha própria vida.
- Continuo em dívida para consigo. A vida do meu filho tem mais importância do que tudo o resto - disse-lhe Aazim com sinceridade. - Segundo sei, você chegou
a ver o homem que assassinou a sua mulher, o qual tinha a tatuagem característica de um certo gangue.
- Foi o Tariq Hakam que lhe contou isso! - A fúria de Hector voltou a inflamar-se. - Ele é um traidor. Traiu a minha amizade. Um dia vou matá-lo.
- Não, senhor Cross. Ele não é seu inimigo. - Hector abanou a cabeça com uma determinação intransigente, mas Aazim ergueu a mão para o impedir de continuar. -
Um dia irá compreender isso. Tariq Hakam pediu-me para lhe transmitir uma mensagem. Prometi-lhe que o faria. Posso comunicar-lhe o que ele me disse?
- Se assim o desejar.
- Ele disse que não havia nenhuma outra forma de o convencer de que estava a seguir o caminho errado na procura do inimigo. Disse que você e eu precisávamos de
nos compreender.
- Jamais o voltarei a aceitar como amigo, diga ele o que disser. Nunca poderei voltar a confiar nele.
- Tariq sabe isso.
- O que é que ele vai fazer agora?
- Está determinado a abandonar o caminho do guerreiro. A partir de agora, irá seguir o caminho que conduz a Alá.
- Com que então agora descobriu Deus e tornou-se um dos seus discípulos, é isso? Ainda bem para ele, o velho tratante.
- Velho tratante. Ele mencionou que você diria isso. - Aazim sorriu. - No entanto...
Calou-se, interrompido por uma voz feminina que ecoou através do sistema de sonorização: Última chamada para todos os passageiros do Voo EK 805 da Emir ates para
Abu Zara. Embarque na Porta A2 f. Os passageiros devem dirigir-se para a Porta A26 para procederem de imediato ao embarque.
- O nosso tempo juntos chegou ao fim, senhor Cross. Quando vivi em Londres, trabalhei com um homem que dedica a vida - ajudar a reabilitar rapazes muçulmanos
apanhados na malha dos gangues criminosos de rua a operar nas principais cidades do Reino Unido. Vou enviar-lhe uma mensagem para entrar em contacto consigo. Talvez
ele consiga ajudá-lo a localizar o homicida com a tatuagem Maalek. Talvez assim você possa identificar sem margem para dúvidas o seu inimigo oculto.
- Como vai fazer para que esse homem entre em contacto comigo, Aazim Tippoo Tip? Você não sabe onde vivo.
- Desde que Brandon Hall foi arrasado pelas chamas, você mudou-se para o número onze de Conrad Road, em Belgravia.
O seu principal endereço eletrônico é cross@crossbow.com, mai tem muitos outros. Estou correto, senhor Cross?
Hector inclinou a cabeça num gesto de aquiescência irónica.
- O Tariq contou-lhe tantas coisas sobre mim. Não me surpreenderia se você soubesse que número calço.
- Onze e meio, pelas medidas americanas - replicou Aazim sem sorrir, mas Hector riu-se alto.
- Adeus, Aazim Tippoo Tip. Nunca o esquecerei.
- Nem eu, senhor Hector Cross. Posso-lhe dar um aperto de mão?
Hector estendeu-lhe a mão e olharam-se nos olhos.
- Que Alá o acompanhe, senhor Hector Cross.
- Reze por mim, xeque Tippoo Tip. - Hector deu meia-volta e saiu sem olhar para trás, dirigindo-se para a Porta de Embarque A26.
32
Embora já passasse da meia-noite quando Hector chegou à pen- thouse de Seascape Mansions em Abu Zara, convocou de imediato um conselho de guerra para a sala de
cinema privada.
À medida que os elementos da equipa foram surgindo, cumprimentaram Hector com entusiasmo, mas depois olharam em redor à procura de Tariq Hakam. Hector não fez
nenhum esforço para lhes mitigar a curiosidade até todos estarem sentados nas filas de assentos, virados para ele no estrado.
- E então, onde está o Tariq? - Foi Nastiya quem fez a pergunta em nome de todos eles.
- É uma longa história - esquivou-se Hector.
- Está bem. Então trata de a encurtar - sugeriu Nastiya.
- Continua em Meca. - Ninguém se moveu. Ninguém falou. Hector viu-se forçado a prosseguir. Fez um relato conciso, despojado de pormenores e comentários. A tensão
na sala aumentou progressivamente enquanto falava. Contou-lhes tudo, exceto a despedida final no aeroporto de Jidá e a proposta de um refém por parte de Aazim. Quando
terminou, todos se fixaram nele num silêncio sombrio. Nastiya quebrou o feitiço daquele horror coletivo. Era a única pessoa na sala que não temia Hector Cross.
- Com que então o Tariq era o traidor durante este tempo todo. Traiu-te a ti e a nós todos. Porque é que não o mataste, Hector?
Hector tinha-se preparado para aquele interrogatório durante o voo de regresso de Meca. Bombardearam-no com perguntas e dúvidas durante quase mais trinta minutos.
Hector descreveu-lhes em detalhe o sermão de Aazim Muktar na mesquita, repetindo-o quase palavra por palavra.
- E acreditaste nele, não foi, Hector?
- Foi muito convincente. Mas não acreditei verdadeiramente nele. Pelo menos, não nessa altura. Só quando ele me ofereceu o filho de seis anos como refém. Nesse
momento acreditei nele. Despiu a alma perante mim e deu-me o seu filho. Soube então que ele estava do lado dos anjos. Tive a certeza de que ele não tinha planeado
o assassinato da Hazel.
- Se ele te propôs esse tal refém, Hector, então onde está o rapaz agora?
- Aceitei-o como refém, sim, mas depois entreguei-o à mãe dele.
- Estás maluco da cabeça, Hector Cross? - exclamou Nastiya.
- Há quem possa pensar isso. - Hector sorriu e continuou:
- Mas depois Aazim Muktar Tippoo Tip forneceu-me a prova definitiva da sua inocência.
- Que prova era essa, seu tonto?
- Embora me encontrasse completamente à mercê dele, deixou-me embarcar no avião para regressar incólume aqui a Abu Zara.
Paddy O'Quinn soltou uma risada sonora e deu uma palmadinha no joelho da sua mulher. - O Hector tem razão, minha querida. Não há prova mais convincente do que
essa. Agora, até eu acredito em Aazim Tippoo Tip.
A tensão na sala dissipou-se e todos trocaram acenos de cabeça e sorrisos de complacência. Mas Nastiya afastou a mão de Paddy do seu joelho e desafiou Hector
pela última vez. - Sendo tu o cavalheiro inglês que és, tenho a certeza de que até deste um aperto de mão a esse mulá assassino, assim como tenho a certeza de que
nem sequer vais matar o Tariq Hakam, estou correta?
- Não consigo esconder nada de ti, czarina. Sim, dei um aperto de mão a Aazim Tippoo Tip e não vi nenhum sangue nela. E sim, deixei que o Tariq Hakam fosse ao
encontro do seu Deus
- admitiu Hector, levantando-se. - Se queres que te diga a verdade, sinto-me melhor por ter feito essas duas coisas. E agora, preciso de algumas horas de sono. Voltamos
a encontrar-nos aqui pela manhã, a seguir ao pequeno-almoço, para refletirmos sobre a nossa situação.
- Posso dizer-te, de borla, qual é exatamente a tua situação, Hector Cross. Voltaste à estaca zero e podes considerar-te um verdadeiro sortudo por estares aqui.
- Nastiya tentou soar austera, mas havia uma leve centelha de tristeza nos seus olhos.
33
Hector segurava Catherine no colo enquanto lhe dava o biberão. A bebé emitia pequenos grunhidos de satisfação enquanto atacava a tetina com gosto, totalmente
alheia à plateia interessada que estava sentada nas filas ascendentes na sala de cinema.
- És o único homem que conheço que consegue maquinar caos e morte ao mesmo tempo que alimenta um bebé - comentou Paddy O'Quinn, mas Nastiya assestou-lhe de imediato
um soco no braço.
- Não percebes nada de bebés, marido. Observa o Hector e cala-me essa boca.
- Já chega, meus meninos. Parem lá de brigar e acalmem-se. Temos trabalho a fazer - admoestou-os Hector. - Ontem à noite não quis discutir com a Nastiya quando
ela disse que tínhamos voltado à estaca zero. Mas isso não é inteiramente verdade. Continuamos a dispor de uma ténue pista a partir da qual podemos trabalhar. Isto
foi-me sugerido pelo próprio Tariq Hakam. Dou-lhe todo o crédito por isso. Estávamos a discutir como é que a Besta montou a emboscada à Hazel e o Tariq fez-me uma
pergunta simples. Disse: "Como é que eles sabiam?"
Hector calou-se e deixou-os assimilar aquela informação. Depois repetiu: - Como é que a Besta sabia que a Hazel ia nesse dia a uma consulta no ginecologista em
Londres? - Todos se agitaram nos seus lugares e emitiram murmúrios de concordância.
- As únicas pessoas do nosso lado que sabiam eram a Hazel, e a Agatha, a assistente pessoal dela, que marcou a consulta. Trlefonei à Agatha ontem à noite e ela
jurou a pés juntos que não tinha contado a ninguém. Ficou muito perturbada por eu ter feito essa insinuação. Trabalhou durante quinze anos para a Hazel e é absolutamente
de confiança.
- O ginecologista da Hazel sabia - aventou Nastiya.
- Sim, tens razão. O doutor Donnovan sabia. Vou regressar a Londres esta tarde para falar com ele, mas vai ser um pouco embaraçoso insinuar que ele quebrou a
confidencialidade com a sua paciente. Quero que o Paddy e a Nastiya venham comigo, e, sim, Dave, já reparei nesse teu olhar ansioso. Também podes vir connosco. É
bem provável que venhamos a precisar de ti. - Dave Embiss sorriu de alívio. Hector prosseguiu: - Por agora, a Catherinne ficará em segurança aqui em Seascape, entregue
aos bons cuidados da Bonnie e da sua equipa de apoio. - Verificou as horas no relógio de pulso. - São nove e treze. Há um voo que parte às onze e trinta para o aeroporto
de Heathrow, em Londres. Se todos puserem esses cus a mexer, conseguimos lá chegar a tempo.
34
Os quatro jantaram nessa noite no nº 11. Sentado à cabeceira da mesa, Hector ergueu o copo na direção dos outros. - Acabo de me dar conta de que passaram exatamente
quatro meses desde que a Hazel me deixou. Parece-me que foi há muito menos tempo. Sempre que entro nalguma divisão desta casa, estou à espera de a ver. Gostava que
se juntassem a mim num brinde à sua paz eterna.
Horas mais tarde, quando Paddy e Nastiya subiram para a sua suíte, a russa sentou-se à frente do toucador enfiada num roupão de seda cor-de-rosa para escovar
o cabelo. Observou Paddy pelo espelho, deitado na cama a ler o jornal vespertino. - Sabes do que o Hector precisa? - perguntou-lhe.
- Diz lá - grunhiu ele enquanto virava a página.
- Precisa de uma boa mulher na cama dele para o ajudar a esquecer.
Paddy soergueu-se de repente, alarmado, amarfanhando inadvertidamente a folha do jornal. - Não te atrevas a sugerir-lhe isso' Ele mata-te, meu docinho de coco
russo desnaturado.
- Desnaturado não sei o que é. Docinho de coco sei o que é e é bom e delicioso. Se quiseres, posso-te dar a provar um bocadinho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Hector encontrou um lugar para estacionar em Harley Street e caminhou ao longo de meio quarteirão até à clínica de Alan Donnovan.
Subiu as escadas em vez de usar o elevador e, quando entrou na área da receção, encontrou-a vazia. Aguardou alguns segundos junto à secretária de atendimento, até
que a rececionista voltou do consultório de Alan com um conjunto de dossiês de pacientes.
- Lamento tê-lo feito esperar, senhor Cross.
- Não tem mal, Victoria. - A rapariga pareceu ficar um pouco perturbada ao vê-lo, mas Hector atribuiu-o à pressão de trabalhar para um homem como Alan.
- O doutor Alan está bastante atrasado. Não quer aproveitar para tratar de outro assunto que possa ter de resolver?
- Não há problema. Não tenho pressa. Posso esperar - disse-lhe Hector.
Victoria amontoou os dossiês em cima da sua secretária. Tinha um iPhone S4 na mão livre e pousou-o ao lado da pilha de dossiês quando o intercomunicador tocou.
- Peço desculpa, senhor Cross, mas parece que hoje tudo acontece ao mesmo tempo. - Levantou o auscultador e disse: - Sim, doutor Donnovan. Sim, de imediato. -
Pousou o auscultador. - Por favor, queira-me desculpar outra vez, senhor Cross.
Encaminhou-se para as salas interiores. Deixou o iPhone pousado ao lado dos dossiês. Hector reparou que o aparelho era idêntico ao seu. Algo lhe acudiu à mente
e, de repente, tudo pareceu encaixar no devido lugar. A resposta ao enigma estivera ali, mesmo à frente dos seus olhos. Não prestara atenção a Victoria, como se
ela não passasse de uma peça de mobília. Sentiu-se mortificado pelo facto de não se ter dado conta disso muito antes.
- Ouça, Victoria - disse ele enquanto ela se afastava.
- Acabo de me lembrar de uma coisa que preciso de fazer. De qualquer modo, também não era imperioso que eu falasse hoje com o doutor Donnovan. Por favor, cancele
a minha consulta. Volto a ligar-lhe na próxima semana para marcar outra.
- Oh, tem a certeza? Muito bem, mas lamento muito que tivesse de esperar, senhor Cross. - Apressou-se na direção da porta do consultório de Alan.
Enquanto a porta se fechava, Hector inclinou-se sobre a secretária e agarrou no iPhone da rapariga. Fez deslizar o seu próprio telemóvel da bolsa que levava ao
cinto e trocou-os. Só esperava que demorasse algum tempo até ela se dar conta daquela troca. Não o preocupava a possibilidade de poder deixar informações vitais
nas mãos da rapariga. Dave Imbiss tinha-o ensinado a manter o telemóvel inviolável. Saiu da clínica e desceu para o local onde estacionara e regressou ao nº 11,
onde encontrou os outros três membros da sua equipa na biblioteca.
- Não demoraste muito tempo. Não esperávamos que voltasse tão cedo - disse Dave Imbiss.
- Fui buscar-te um pequeno presente. Aqui tens. - Atirou-lhe para as mãos o iPhone de Victoria.
- Obrigadíssimo. - Dave apanhou o telemóvel num gesto ágil. - Mas já tenho um.
- Um como este não tens de certeza - garantiu-lhe Hector
- O que quero que faças é que o leves para a oficina e lhe saques todo e qualquer pedacinho de informação. Quero a lista completa dos números de contacto que encontrares.
Todas as mensagens recebidas e enviadas, de voz e SMS. Quero cópias de todos os vídeos gravados no cartão de memória. Quero que analises com uma atenção especial
tudo aquilo que datar desde a semana em que a Hazel morreu até ao dia de hoje.
- Onde arranjaste isto? - Dave examinou o iPhone com uma súbita atenção compenetrada, revirando-o nas mãos e sem nunca olhar para Hector enquanto lhe fazia perguntas.
- Pertence a alguém? Como é que lhe conseguiste deitar a mão?
- Roubei-o à rececionista lá na clínica do Alan Donnovan. O Alan era o ginecologista da Hazel. A rececionista chama-se Victoria Vusamazulu. É uma rapariga africana,
bonita e baixinha, e o nome dela em zulu é um grito de guerra político que significa "Despertar a Nação Zulu". Quanto à nação não tenho bem a certeza, mas, no respeitante
aos atributos físicos dela, não tenho dúvida de que conseguiria despertar uns quantos mortos. Provavelmente já se deu conta de que troquei o meu telemóvel pelo dela,
mas posso continuar a empatá-la até amanhã. Portanto, tens até amanhã para lhe sacares do telemóvel tudo o que conseguires. Para além do patrão dela, a Victoria
era a única pessoa que sabia que a Hazel ia a Londres no dia da emboscada.
Dave sorriu deleitado perante aquele desafio. - Não vai ser preciso tanto tempo. Esta pequena zulu em breve deixará de ter segredos para mim. Com licença, malta.
Hector resistiu à tentação de seguir Dave até à oficina na cave. Dave era um dos melhores no seu ramo, mas trabalharia melhor ainda sem que o acossassem com conselhos
não solicitados. Hector deixou-o ocupar-se da tarefa e foi para o seu estúdio.
Agatha tinha digitalizado toda a informação de Hazel desde os tempos em que começara a trabalhar como sua assistente pessoal. Deixara-lhe na escrivaninha um disco
externo que continha todo esse acervo: muitas centenas de gigabytes.
Agora que o rasto do assassino de Hazel esfriara em Meca, Hector estava determinado a voltar diretamente ao início da deslumbrante carreira de Hazel para tentar
identificar todos os rivais que ela antagonizara ao longo do seu percurso. Por muito que a tivesse amado, Hector em momento algum duvidara da capacidade de Hazel
para fazer inimigos. Hazel lutara com unhas e dentes para chegar ao topo e nunca recuara perante uma luta.
Quem passa toda uma vida a abalar montanhas, a revolver os oceanos e a desbravar selvas, como Hazel fez, acaba por espantar e afugentar algumas criaturas bem
assustadoras. Hector iniciou nova busca de uma dessas criaturas. A mais perversa e vingativa de todas; o inimigo que faria um grande tubarão branco parecer-se com
um Chihuahua desdentado.
Passadas apenas duas horas desde que começara a trabalhar, intercomunicador tocou. Era Agatha.
- Bom dia, senhor Cross. Tenho em linha a rececionista da clínica do doutor Donnovan. Tentei dizer-lhe que a altura não era oportuna, mas ela foi bastante insistente.
Posso passar-lhe a chamada?
- Obrigado, Agatha. Pode passar-ma. - Fez uma anotação mental para ter uma conversa séria com Agatha. Precisava urgentemente de uma assistente pessoal e ela seria
perfeita para esse cargo. Trabalhara para Hazel durante toda a sua vida e talvez agora pudesse transferir essa lealdade para ele. Um benefício secundário a desse
acordo era que não correria nenhum risco de um eventual envolvimento afetivo. Pôs esse pensamento de lado e atendeu a chamada: - Cross.
- Peço desculpa por o incomodar, senhor Cross. Daqui fala Vicky Vusamazulu. Parece que houve um engano. Reparei na sua primeira visita à clínica que o senhor
tem um iPhone S4 igualzinho ao meu...
- Sim, tenho - respondeu Hector, lamentando-se logo de seguida: - Oh, raios. Agora percebo o que deve ter acontecido. Não tenho conseguido ativar o meu telemóvel,
está sempre a recusar a minha palavra-passe. Estava junto à sua secretária esta manhã quando saí da clínica. Lembro-me que ia fazer uma chamada, mas depois mudei
de ideias e fui à casa de banho. Só aí é que me dei conta de que tinha deixado o meu telemóvel na sua secretária. Voltei para a receção. Você não estava lá, mas
vi um iPhone em cima da secretária. Pensei que era o meu e levei-o. As minhas sinceras desculpas, Vicky. Que estupidez a minha. Por acaso não tem aí consigo o meu
telemóvel, pois não?
- É por esse motivo que lhe estou a ligar, senhor. Tenho aqui o seu telemóvel. Sei que é o seu porque o senhor escreveu o número dentro da tampa de trás. O meu
tem muitas informações confidenciais. Posso ir a sua casa hoje depois do trabalho para trocar- os telemóveis?
- Vai ter de me desculpar, Victoria. Vou sair dentro de alguns minutos e só voltarei bastante tarde. Mas se, tal como diz, contém informações confidenciais, levarei
o seu telemóvel comigo. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia. Passo aí na clínica pela manhãzinha para trocarmos os telemóveis.
- Oh, meu Deus! Não consegue arranjar um tempinho hoje? é um grande contratempo para mim.
- Lamento, Victoria. Amanhã antes das dez, prometo-lhe.
- Desligou antes que a rapariga pudesse voltar a protestar.
Poucos minutos após as cinco da tarde, Dave Imbiss ligou-lhe através do intercomunicador.
- Desculpa. Demorou mais do que pensava. Essa jovem mazulu é uma pequena megera astuta. Pôs toda uma série de armadilhas no aparelho dela. Mas consegui sacar tudo
o que querias.
- Excelente trabalho. Conta-me.
- É melhor vires cá dar uma olhada e ouvires por ti mesmo. Vamos precisar de usar a sala de cinema. Tenho cerca de uma hora de vídeos para te mostrar. Antes de
vires, devias tomar um calmante ou até dois. Vais ficar impressionado com o que tenho para te mostrar.
- Estou aí dentro de cinco minutos. Liga ao Paddy e à Nastiya para se juntarem a nós neste espetáculo de gala.
Paddy e Nastiya estavam sentados no meio da segunda fila de assentos quando Hector entrou na sala de cinema. Dave estava ocupado com o equipamento eletrônico.
Ergueu a cabeça assim que Hector levantou a perna comprida para transpor a primeira fila e sentar-se no lugar ao lado de Nastiya.
- Lamento desapontar-vos, pessoal. Não vamos ter anúncios publicitários. Portanto, vou direto à atração principal - disse-lhes Dave. - Em primeiro lugar, algumas
conversas selecionadas. Um facto que a maior parte dos utilizadores de um iPhone desconhece é que nada fica perdido para sempre, por mais vezes que uma pessoa elimine
a informação, podemos sempre recuperá-la. A jovem Vusamazulu fez duas tentativas para eliminar esta conversa em particular, mas ei-la aqui de novo, gravada no dia
em que a Haze teve a última consulta com o Alan Donnovan. - Dave começou a reproduzir a gravação áudio. O primeiro som era o simples toque de chamada de um telemóvel
e, imediatamente a seguir, ouviu-se um clique quando a chamada foi atendida do outro lado da linha Fez-se uma pausa e depois falou uma voz feminina.
"Olá. És tu, Aleutian?"
A resposta foi imediata. "Já te disse para não mencionares nomes, sua cadela." A cadência era a do hip-hop americano. O tom era arrogante.
O leve arquejo de contrição da mulher era quase inaudível. Depois, a sua voz adotou um tom de súplica submissa: "Desculpa Já me tinha esquecido."
"Então não te esqueças de apagar depois o registo desta chamada quando terminarmos. E agora, conta-me! Ela já chegou?"
"Sim, está cá. Mas o marido já saiu. Disse ao doutor que voltava à uma e meia."
"Ótimo!", disse a voz masculina, e a chamada terminou. Dave desligou a gravação áudio. Todos ficaram em silêncio durante alguns momentos.
Depois, Hector disse: - Aleutian. Foi esse o nome que ela usou?
- Parece que sim. De qualquer modo, provavelmente é uma alcunha do submundo do crime, um nome de guerra. Não o nome que o tipo usa no passaporte, como deves imaginar.
- Volta a passar a gravação.
Dave puxou a conversa atrás e reproduziu-a de novo. Todos se inclinaram para a frente para ouvir. Quando a conversa terminou. Paddy concordou: - Aleutian. Definitivamente,
Aleutian. Portanto, pelo menos já temos um nome como ponto de partida.
- A data e a hora estão corretas. Deixei a Hazel na clínica do Donnovan e fui tratar de umas coisas na cidade - concordou Hector. - Que mais tens aí, Dave?
- A chamada seguinte foi às nove e quarenta e cinco dessa mesma noite - disse-lhes Dave. - Deste tal Aleutian a ligar à Victoria.
Reproduziu o telefonema. Ouviram-se quatro toques de chamada e depois a voz e a entoação inconfundíveis da rapariga.
"Olá. Fala a Victoria." "Vou aí buscar-te dentro de dez minutos. Espera por mim em baixo, à entrada da tabacaria. Vou num Volkswagen azul alugado."
"Estás atrasado. Tinhas dito às sete." "Pronto. Esquece. Posso arranjar outra gaja para hoje à noite. Não faltam ratas frescas por estas bandas."
"Não! Não era isso que eu queria dizer. Desculpa. Perdoa-me, por favor. Eu depois compenso-te. Prometo."
"Espero bem. Tou aqui a rebentar de tesão que nem imaginas. Victoria soltou uma risadinha. "És tão engraçado. Vem cá que eu alivio-te desse tesão todo, meu garanhão."
Hector interveio em voz baixa: - Na altura em que essa conversa erudita decorria, a Hazel estava em coma, com uma bala enfiada no cérebro e a poucas horas de morrer.
Paddy baixou a cabeça e remexeu-se inquieto. Nastiya agarrou na mão de Hector que estava pousada no assento entre ambos. Apertou-lha com força, mas continuou em
silêncio. Não havia nada que nenhum deles pudesse dizer para o confortar.
Dave tossicou e quebrou o silêncio. - Há mais quatro conversas entre os dois, mas é tudo no mesmo registo desbragado. Só ameaças e armanços de proezas sexuais da
parte dele e algumas recriminações dela. Mas não houve mais nenhuma chamada do tal Aleutian nestas últimas semanas. Tentei ligar para o número dele, mas está desligado.
- Ou ele lhe deu com os pés, ou então saiu do país há algumas semanas - aventou Hector.
- Largou-a simplesmente - disse Nastiya com grande determinação. - Os homens como esse Aleutian não costumam ficar mais que algumas semanas no mesmo sítio. Põem-se
ao fresco assim que conseguiram dar uma boa dentada no docinho de coco. - Virou-se para Paddy e franziu de forma sugestiva a sobrancelha perfeitamente delineada.
- Nada de piadas privadas aqui, por favor - advertiu-a Dave. - Mantenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto
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antenhamos a conversa num tom sério e siga o baile. Quanto a chamadas telefónicas, é tudo, mas forneceram-nos algum material interessante. - Olhou para Hector. -
Se estiveres pronto, posso passar os vídeos.
- Podes prosseguir, Dave, por favor.
Dave diminuiu a intensidade das luzes e começou a reproduzir o primeiro vídeo que tinha copiado do iPhone. Ouviu-se imediatamente nos altifalantes uma cacofonia
de ruídos de fundo, vozes masculinas altas e estridentes gritos de riso femininos, música aos berros e o tilintar de garrafas e copos. No ecrã, as imagens eram confusas
e pouco nítidas enquanto o enquadramento da câmara oscilava de forma frenética do teto para o chão, detendo-se sobre uma mesa atulhada de garrafas de cerveja e copos
meio vazios e apresentando depois primeiros planos de pernas e pés. Depois estabilizou. A cena era obviamente o interior de um clube noturno sórdido. As mesas estavam
agrupadas em redor de uma minúscula pista de dança. A voz inconfundível de Victoria sobrepôs-se ao chinfrim.
"Toca a curtir, pessoal! Não se esqueçam que esta é a vossa audição para o Fator X." A lente focou-se num grupo de jovens sentados em redor de uma mesa atulhada
de bebidas e cinzeiros a transbordar de beatas. Alguns dos jovens lançaram olhares lúbricos na direção da câmara e ergueram os copos num brinde, outros tinham charros
enfiados em diversos ângulos nos cantos das bocas e sopravam baforadas de fumo, chegando um deles a enfiar o dedo pela garganta abaixo e a imitar sons de vómito.
A câmara focou-se numa atraente rapariga loira sentada no regaço de um rapaz na extremidade oposta da mesa e a voz de Victoria instruiu-a: "Vá lá, Angie. Faz
um truque de magia."
Angie enfiou os polegares na parte de cima do vestido e puxou-o até à cinta, expondo os seios grandes e brancos. Agarrou um em cada mão e apontou os mamilos para
a câmara. "Bangf Bang! Estás morto!", guinchou. A câmara estremeceu devido à risada geral que se seguiu e depois fixou-se no folião seguinte no círculo.
- Aqui vamos nós! - advertiu-os Dave Imbiss, parando o fotograma. Estavam a olhar para a imagem de um homem de pele escura. Hector calculou que teria pouco mais
de trinta anos. Tinha o cabelo empastado de gel, modelado na forma de um grande sol sobre a testa, e usava um blusão com as mangas enroladas acima dos cotovelos
e com o capuz lançado para trás. Os antebraços eram musculosos e tonificados, como se fizesse musculação num ginásio. Era bem-parecido, mas de um modo bruto, com
boca cruel e cínica. A sua expressão era premeditadamente interessada.
Dave deixou-os escrutinar a imagem durante mais algum tempo. - Creio que temos aqui o elo perdido do puzzle, o tipo que planeou e montou o golpe. Senhores e senhoras,
apresento-lhes o tal Aleutian.
Hector endireitou-se no assento e inclinou-se de imediato para frente, como um cão de caça cujas narinas acabassem de captar o cheiro da presa. - Temos mais gravações
desta beldade? - perguntou num tom mortiferamente glacial.
- Imensas. Imensas. A Victoria está de beiço caído pelo tipo. Parece que nunca fica satisfeita.
- Nem eu - murmurou Hector. - Quero-o a todo o custo. Continua, Dave.
O vídeo recomeçou e a voz de Victoria retomou os comentários.
Senhoras e senhores, homem mais estiloso do que isto é impossível. Apresento-lhes o senhor Estiloso em pessoa. Acena aos teus fãs. senhor Estiloso."
O Sr. Estiloso ergueu dois dedos em V e colocou o polegar entre ambos. Sem alterar a expressão que arvorava, enfiou o polegar na direção da lente, num gesto grosseiramente
obsceno. Victoria lançou um apupo e entoou: "Faz-me isso outra vez!".
O homem enquadrado pela lente reclinou-se para trás na cadeira e enlaçou as mãos por trás da nuca. Lançou uma piscadela à câmara. Dave voltou a congelar a imagem.
- Muito bem, malta, verifiquem só a mão esquerda dele - disse Dave, fazendo um zoom da mão. - É aquela a tatuagem vermelha?
- Sem tirar nem pôr, Dave. A tatuagem do Maalek. Mas temos a certeza de que este é mesmo o Aleutian? Ela não usou esse nome neste vídeo. Continua a passar a gravação.
Dave retomou a reprodução do vídeo, mas a câmara deixou de enquadrar o sujeito e Dave desculpou-se. - Não há mais nada neste vídeo. Mas não precisam de ficar
preocupados. Há muito mais em três dos outros vídeos, o suficiente para fazer vomitar um homem rijo.
- Vejamo-los então, por favor - ordenou Hector.
O vídeo seguinte era um plano amplo da pista de dança do clube noturno. A pessoa que estava a filmar postara-se certamente em cima de uma das mesas para conseguir
um tal ângulo elevado. Na orla mais próxima da pista de dança, Victoria Vusamazulu estava a dançar com o homem da tatuagem. Abanava as ancas, baloiçando a cabeça
de um lado para o outro, fazendo com que a comprida cabeleira postiça lhe caísse sobre a cara. O seu parceiro era bastante mais alto que ela. Tinha tirado o blusão
de capuz e a camisola de mangas cortadas que usava expunha-lhe a totalidade dos braços fortes e musculados. Hector conseguiu calcular-lhe a estatura comparando-o
com Victoria. Ela não lhe chegava sequer aos ombros.
Era alto, muito alto, e movia-se de forma ágil, com equilíbrio e coordenação. Era rápido nos movimentos de pés. Hector calculou que fosse um adversário perigoso.
De repente, o homem arrancou a cabeleira da cabeça de Victoria e rodeou-a, fustigando-lhe as costas e as nádegas com a cabeleira, como se ela fosse sua escrava.
A rapariga contorceu-se numa agonia fingida. O sujeito estendeu a mão para lhe desapertar o fecho que corria ao comprido das costas do vestido e abriu-o até à fenda
entre as nádegas. Ela agarrou a frente do vestido contra os seios, mas tinha as costas nuas e a pele escura reluzia de suor.
Os outros foliões rodearam-nos, acompanhando o ritmo da música e os seus movimentos primitivos com palmas, incitando-os com gritos estridentes e uivos de excitação.
O homem acercou-se por trás de Victoria, agarrou-lhe as ancas e puxou-a para si, golpeando-lhe as nádegas com o próprio sexo, numa paródia explícita de uma relação
anal. Ela lançava as nádegas contra ele com o mesmo vigor, correspondendo a cada uma das investidas dele e aguentando o assalto.
De repente, o ecrã escureceu e o ruído reduziu-se a um silêncio total. Dave ligou as luzes do teto.
- Desculpem lá - disse numa voz jovial. - Fim do vídeo. Nunca iremos saber como essa história acabou.
- Ainda bem. Nenhuma rapariga decente estaria segura na cama com um marido que tivesse visto uma coisa dessas - opinou Nastiya, dando uma cotovelada nas costelas
de Paddy.
- Se achaste aquilo um pouco excessivo, Nastiya, então é melhor saíres daqui antes que vos mostre o último vídeo - advertiu-a Dave.
Nastiya abanou a cabeça e chegou-se mais a Paddy. Agarrou-lhe o braço com força. - Sei que posso confiar neste homem para me proteger - disse. - É meu dever ficar
aqui. Um dia, talvez seja meu dever matar esse animal repugnante, esse Aleutian.
- Como podemos saber que este tipo é mesmo o Aleutian? - interveio Hector. - Vá lá, Dave, diz aí o nome, por favor.
- O seu desejo é uma ordem, chefe. O nome dele já vai surgir! - Desligou as luzes e passou o último vídeo.
Uma vez mais, assistiram a uma série de planos pouco nítidos e desfocados, do chão e do teto daquilo que era claramente o quarto de uma mulher, com uma colcha
cor-de-rosa na cama enorme e um toucador atulhado de artigos de higiene pessoal e frascos de perfume. Havia também uma coleção de animais de peluche dispostos na
única cadeira ao lado da cama. Depois a imagem estabilizou, como se a câmara tivesse sido colocada num tripé. O enquadramento centrou-se na cama. O homem da sequência
do clube noturno estava deitado de costas na cama, nu. Olhou para a lente, com a mesma expressão enigmática. Colocara uma das mãos atrás da cabeça e a tatuagem era
claramente visível. Com a outra mão, acariciava-se.
"Vá lá", disse ele à pessoa atrás da câmara. "Estás à espera de quê? Não me digas que tens medo aqui do meu Grandalhão, minha cadela."
Vicky Vusamazulu surgiu toda saracoteada no plano. Também estava nua. As reluzentes nádegas negras baloiçavam-lhe enquanto se aproximava do homem na cama. Alçou
uma das pernas por cima dele e montou-o.
Nenhum dos presentes na sala de cinema voltou a falar durante algum tempo. Victoria tornou a levantar-se mais duas vezes da cama e postou-se atrás da câmara para
alterar o ângulo e a focagem, de um plano de grande abertura para um primeiro plano muito próximo, e depois voltou a correr para a cama e lançou-se uma vez mais
à ação.
- Não acham estranho? - perguntou Hector por fim.
- O quê? - disse Paddy, sem tirar os olhos do ecrã.
- Não acham estranho como é aborrecido ver outras pessoas fazer isto, quando é uma enorme diversão sermos nós a fazê-lo?
Nastiya riu-se com deleite. - Adoro-te, Hector Cross! Consegues ser tão sensato e engraçado.
- Puxa à frente, por favor, Dave - insistiu Hector.
Dave encolheu os ombros. - Está bem, mas aviso-te desde já que vais perder uma carrada de material interessante.
Os movimentos do casal no ecrã tornaram-se tão bruscos e freneticamente acelerados como os de um filme a preto e branco de Charlie Chaplin da década de 1920.
O som era uma série de guinchos ininteligíveis.
Nastiya começou a rir, acabando por contagiar todos os outros. Dave Imbiss conseguiu por fim controlar suficientemente o riso para os advertir: - Muito bem, calem-se
todos, malta, por favor! Aqui vem o momento pelo qual todos esperávamos!
A ação abrandou para o ritmo em tempo real e Aleutian falou de forma bem audível: "Prepara-te, minha beleza! Aqui vem a mortífera serpente negra africana!"
"Oh, sim, Aleutian! Enfia-mo todo, Aleutian, meu cabrão obsceno!"
- E aqui têm! - disse Dave Imbiss num tom complacente.
- Peçam o nome e aqui o Imbiss dá-vos o nome, não uma, mas duas vezes. Isto é o que eu chamo um serviço impecável. - Estendeu a mão e desligou o vídeo.
Hector quebrou o silêncio que se seguiu. - Aquela rapariga não foi muito bem-educada. - Proferiu a sua opinião numa voz séria: - Repararam que no final ela nem
sequer chegou a dizer "por favor"? - Levantou-se e avançou para o estrado. Enfiou as mãos nos bolsos e virou-se para eles.
- Excelente trabalho, Dave. Nunca me deixas ficar mal. Neste preciso momento, acabas de tornar a Victoria Vusamazulu no assunto mais picante da cidade. É a única
pista que nos pode conduzir ao Aleutian. Precisamos de lhe manter o entusiasmo bem aceso. - Olhou para Nastiya. - Lamento, mas vai ser essa a tua tarefa, Nazzy.
- Eu? - Pareceu surpreendida. - Não me parece que a Victoria tenha dado mostras de quaisquer tendências lésbicas.
- Sabes tão bem quanto eu que uma mulher está muito mais aberta a uma abordagem amigável por parte de outra mulher do que de um homem. Ela não está à espera de um
tal engate. Quero que tu e a Vicky se tornem almas gémeas. Assim não perdemos de vista o tal Aleutian.
- Está bem. - Nastiya encolheu os ombros. - Que queres que eu faça?
Hector virou-se para Dave. - Dá-me o iPhone da rapariga, por favor.
Dave entregou-lho. Hector ligou-o e marcou um número. - Estou a ligar para o meu próprio telemóvel - explicou.
Assim que o toque de chamada soou, ligou o altifalante e fez sinal aos outros para se manterem em silêncio.
- Olá. Ligou para o telemóvel de Hector Cross. Fala Victoria Vusamazulu. - Aqui Hector Cross, Vicky. Ainda precisa que lhe entregue o seu iPhone esta noite em vez
de ser amanhã? Acho que posso tratar disso. - Oh, sim, por favor, senhor Cross - exclamou ela com entusiasmo. - Seria fantástico. Sinto-me totalmente perdida sem
ele.
- Muito bem. A minha secretária está acabar de terminar o expediente. Vou enviá-la num táxi ao seu encontro. Ela entrega-lho.
- Obrigada. Muito obrigada, senhor. - Calculo que já deva estar em casa, não? Qual é a sua morada? - Sim, estou no meu apartamento em Richmond. A morada é 47, Gardens
Lane e o código postal é TW9 5LA. Diga ao taxista que fica na esquina com Kew Gardens Road. Fica a cerca de trezentos metros ao fundo da estrada de quem vem da estação
de Kew Gardens.
- Muito bem. A minha secretária chama-se Natasha Voronc > É uma senhora russa de cabelo loiro. Estará aí consigo dentro de trinta ou quarenta minutos.
Desligou a chamada e entregou o telemóvel a Nastiya. - Podes ir, czarina. A Victoria está à tua espera. Demora o tempo que precisares. Nós tratamos de te guardar
o jantar. - Calou-se por momentos e depois prosseguiu: - Ouve uma coisa: para numa dessas lojas de bebidas a caminho e compra à Vicky uma garrafa de vinho decente.
Diz-lhe que é um presente da minha parte. Um grande pedido de desculpa por lhe ter levado o telemóvel. Talvez te convide a partilhares a garrafa com ela. Provavelmente
está sozinha agora que o Aleutian desapareceu de cena. Faz-te de muito amiga dela, tenta levá-la a confidenciar-te os seus segredos femininos. É mais do que certo
que vai querer queixar-se do Aleutian e dizer-te como ele é um grande cabrão. E tu podes-te queixar do Paddy e dizer-lhe que ele é um grande cabrão. Vocês as duas
vão-se divertir um bom bocado.
- Essa sugestão agrada-me - concedeu Nazzy.
36
Nastiya regressou da sua visita ao apartamento de Victoria uma hora atrasada para o jantar. Os três homens, de uniforme de gala e a beberem o seu segundo uísque,
esperavam-na na sala de estar. Levantaram-se assim que ela surgiu à entrada.
- E então, como correu, minha querida? - perguntou-lhe Paddy, antecipando-se aos outros.
- Deixem-me primeiro ir lá acima mudar de roupa. Não demoro mais de um minuto e já vos conto a história toda quando voltar.
Quando desceu as escadas, todos se aperceberam de que valera a pena esperar. Nastiya usava os seus diamantes e estava deslumbrante. Na qualidade de anfitrião,
Hector deu-lhe o braço e conduziu-a para a sala de jantar. O primeiro prato era solha-limão-do-pacífico grelhada, servida desespinhada e acompanhada de cogumelos
silvestres da Provença, regados com molho de açafrão.
A comida manteve-os em respeitoso silêncio durante alguns minutos, até que Nastiya suspirou deliciada e limpou a boca ao guardanapo antes de falar.
- Aquela Victoria é uma rapariga muito querida. Acho-a simpática. Claro que é muito ingénua e louca por homens, como qualquer rapariga saudável da sua idade.
Mas, na verdade, não é mal-intencionada. Depois de beber dois copos de vinho, convenceu-se de que sou a sua nova melhor amiga. Sente-se sozinha, como o Hector tinha
dito. Quer alguém com quem possa falar. Nunca mais me deixava ir embora. Ela pensa que esse tal Aleutian vai voltar da América para casar com ela.
- Então foi para aí que ele foi. Bate certo com o sotaque e a tatuagem. Ela sabe que ele esteve envolvido no homicídio da Hazel?
Nastiya foi firme e determinada na resposta. - Tenho a certeza que não. Claro que não podia insistir com ela sobre esse assunto. Mas, como sabia que eu trabalho
para o Hector, foi ela mesmo quem trouxe o assunto à baila. Estava a par do assassinato da Hazel, através das notícias que tinha lido na imprensa e ouvido na TV.
Mas nunca associou o episódio ao Aleutian. O Aleutian disse-lhe que é um manda-chuva no negócio do petróleo na Califórnia. Pediu-lhe para o ajudar a conseguir um
encontro com a Hazel, para tentar aliciar a Bannock Oil e a Hazel a participarem num negócio qualquer que ele tinha em mente. Pediu à Victoria para o informar quando
a Hazel saísse da clínica do doutor Donnovan nesse dia para simular um encontro acidental. Já vos disse que a Victoria é muite ingénua e um pouco estúpida. Mas simpatizo
com ela.
- Isso quer dizer, então, que já não vamos deitar-lhe a mão para a fazer dar à língua? - Paddy olhou para Hector. - Devo dizer que estou desapontado. Até podia
ser divertido.
Hector sorriu e respondeu: - De certeza que a Nastiya tem razão. Aquela rapariga é uma lorpa. Não é muito inteligente e não sabe de nada. Mas é possível que o
Aleutian regresse cá para voltar a saborear o pitéu que ela de tão bom grado oferece. Essa é praticamente a única utilidade que ela tem para ele agora, ou para nós.
Sabes se a Vicky tem o atual número de telefone dele ou qualquer outro modo de o contactar?
- Perguntei-lhe isso, mas só tem o número de telemóvel que sacámos do iPhone dela. Ela diz que ele nunca lhe atende as chamadas. Pensa que isso só pode dever-se
ao facto de ele não ter roaming no telemóvel lá nos Estados Unidos. Só sabe é que ele lhe prometeu que voltaria para ela e que iriam viver juntos. E acredita que
ele vai cumprir a palavra.
- Mantém-te em contacto com ela, por favor, Nazzy. Pode dar-se o caso de ele de facto voltar.
- E que fazemos até lá? - perguntou Dave Imbiss. - Chegámos a outro beco sem saída, não é?
Todos olharam para ele, mas Hector não respondeu de imediato. Deu um gole no seu copo de vinho e saboreou-o, descrevendo círculos com a língua. - Este Chablis é
perfeito para acompanhar a solha.
- Todos sabemos que és um grande conhecedor de vinhos, mas isso não responde propriamente à pergunta do Dave - frisou Nastiya. Hector foi salvo pela entrada de Stephen,
o seu mordomo, e virou-se para ele com um certo alívio. - Passa-se alguma coisa, Stephen?
- Peço desculpa por o incomodar, senhor. Mas está um cavalheiro à porta. Bem, para ser sincero, senhor, diria que é mais um jovem mal-arranjado do que um cavalheiro.
Tentei mandá-lo embora, mas foi muito insistente. Diz que vem da parte de alguém chamado Sam Mucker. Que o senhor sabe a quem ele se refere. Diz que se trata de
uma questão de vida ou morte; foram estas as palavras dele.
Hector ponderou por momentos. - Sam Mucker? Não faço a mínima ideia do que é que ele está a falar. Já passa das dez e estamos a meio do jantar. Por favor, Stephen,
diga amavelmente ao sujeito que se ponha ao fresco.
- Com todo o gosto, senhor Cross. - Stephen conteve um sorriso e dirigiu-se para a porta com passadas firmes e determinadas.
Assim que o mordomo fechou a porta, Hector levantou-se de um salto da cadeira à cabeceira da mesa. - C'os diabos! - exclamou. - O tipo estava a referir-se a Aazim
Muktar. Stephen, volte já aqui! A porta voltou a abrir-se e Stephen manteve-se especado à entrada. - Chamou, senhor?
- Sim. Mudança de planos. Por favor, acompanhe o cavalheiro à biblioteca e ofereça-lhe uma bebida. Faça de tudo para o tratar como um cavalheiro. Diga-lhe que já
vou. - Hector virou-se para Dave. - Não, jovem David, meu rapaz. Não me parece que tenhamos chegado a outro beco sem saída. Aliás, desconfio que a verdadeira diversão
pode estar prestes a começar. - Fez soar a campainha para chamar o criado e disse-lhe: - Peça à para me guardar o resto desta excelente refeição no rescaldeiro.
- Levantou-se e disse aos outros: - Não esperem por mim, talvez demore um pouco. - Saiu da sala de jantar e foi para a biblioteca.
Quantas menos pessoas vissem o agente de Aazim Muktar. melhor para todos.
37
O visitante estava especado de costas viradas para a lareira, a aquecer-se. Tinha uma Coca-Cola na mão e Hector percebeu de imediato por que razão Stephen não o
vira com bons olhos. Tinha o rosto por barbear e o cabelo emaranhado e oleoso. As calças de ganga estavam esfarrapadas e provavelmente nunca tinham sido lavadas.
O desenho dos lábios conferia-lhe ao rosto uma expressão carrancuda e os seus modos sugeriam que se tratava de um sujeito desprezível. Tudo nele anunciava que se
estava na presença de um refugo da vida, um dos falhados.
Hector acercou-se dele e estendeu-lhe a mão. - Olá, sou o Hector Cross.
O rapaz apertou-lhe a mão sem hesitação. Os olhos eram castanho-claros, amistosos e inteligentes, em total contraste com o resto da sua aparência. - Eu sei. Fiz
uma pesquisa sobre si no Google. Devo confessar que o senhor é um homem deveras impressionante. Chamo-me Yaf Said, mas costumava dar pelo nome de Rupert Marsh antes
de encontrar Alá. - A voz era agradável, mas firme.
- Então por que nome te devo tratar? - Escolha o senhor. - Yaf significa "amigo". Vou-te chamar assim, pode ser? - Claro, se assim o desejar, senhor. - Senta-te,
Yaf - convidou-o Hector, sentando-se numa das poltronas de couro.
- Estou bem aqui, junto à lareira, senhor - declinou Ya:
- Vim de moto e apanhei frio. Além do mais, prefiro estar de pé na presença de pessoas mais velhas e mais importantes.
Hector pestanejou, surpreendido. Este miúdo tem classe, pensou.
Yaf pareceu ler-lhe o pensamento. - Por favor, queira-me desculpar o cabelo e a barba por fazer, bem como o meu aspeto geri. Esta é a minha roupa de trabalho.
- Aazim Muktar disse-me que ajudas outros miúdos transviados a reencontrarem o caminho.
O rosto de Yaf iluminou-se ao ouvir o nome do mulá. - Aazim Muktar fez o mesmo por mim. Quando cheguei à mesquita dele, estava um farrapo, num estado lastimável.
Estava farto da vida, farto de mim, sempre drogado. Ele mostrou-me o caminho e fez-me mudar de vida. É um grande homem. Grande e santo. - Sorriu timidamente. - Ei!
Peço desculpa, senhor Cross. Até pareço um daqueles tipos nos anúncios publicitários da TV!
- Sei como te sentes. Também eu o admiro.
- Aazim Muktar disse-me que o senhor procura um homem Não me disse porquê e também não lhe vou perguntar a si.
- Bem, caso sirva de ajuda, a pessoa que procuro chama-se Aleutian - disse Hector.
Yaf sorriu. - Lá no submundo, os nomes pouco ou nada significam. Consegue-me descrever o aspeto dele, senhor?
- Tenho fotografias dele - confirmou Hector.
- Isso vai-me facilitar as coisas, senhor. Com as fotos, é canja. Posso vê-las, por favor?
- Vou buscá-las. Talvez demore algum tempo. - Hector levantou-se. - Quando foi a última vez que comeste, Yaf? Pareces -me muito magrinho.
- Nunca tenho muito tempo para comer.
- Bem, agora tens tempo. Vou dizer à cozinheira para te preparar umas sandes e uma taça de batatas fritas com ketchup.
- Obrigado, senhor. Parece-me ótimo. Mas, por favor, nada de carne. Sou vegetariano.
- E ovos e queijo?
- Gosto de ambos.
Cerca de uma hora depois, Dave já tinha imprimido uma dúzia fotogramas dos vídeos de Vicky e Hector levou-os para a biblioteca, onde Yaf já devorara uma travessa
de sandes de queijo, tomate pasta para barrar Marmite e se ocupava agora dos ovos cozidos e taça de batatas fritas. Levantou-se de um salto assim que Hector entrou
na biblioteca.
- Foram as melhores sandes que comi nos últimos quinze anos, altura em que a minha mãe morreu e fiquei a viver na rua.
Hector achava que ele não teria mais de 25 anos. Por conseguinte, desde os dez anos que levava uma vida de agruras. - E o teu pai, rapaz? - perguntou-lhe.
Yaf esboçou um sorriso triste. - Nunca o cheguei a conhecer. Acho até que nem a minha mãe sabia grande coisa acerca dele. Se calhar sou um daqueles tipos sortudos
que tem só uma mãe mas vinte e cinco putativos pais. Não sei.
Hector sorriu face àquele pequeno gracejo corajoso e entregou-lhe as imagens impressas. - Dá uma olhada e diz-me o que pensas. Mas faz-me um favor e senta-te, pode
ser? Estás-me a pôr nervoso, Yaf.
Yaf sentou-se na beira da poltrona à frente da de Hector e examinou cuidadosamente cada uma das imagens que Dave
- Estás a ver a tatuagem dele? - perguntou Hector. - Sim, é uma das marcas distintivas do gangue Maalek. Ele deve ser um deles. - Olhou por fim para Hector e disse:
- Lamento, senhor. Não conheço este tipo, mas tem ar de quem só traz problemas.
Reparou no desapontamento de Hector e apressou-se a continuar: - Mas, por favor, não se preocupe, senhor. Se ele se encontrar num raio de cem quilómetros para lá
dos limites de Londres, acabarei por o encontrar. Vou tratar de pôr muita gente na rua à procura dele. Pode-me dar um número de telefone para o contactar em caso
de urgência? Tipos como este movem-se muito rápido, como tubarões-tigre à caça.
- Se ele for avistado, podes-me ligar para este número. - Hector aproximou-se da secretária e anotou o número do seu iPhone num cartão em branco. - Podes-me ligar
a cobrar no destinatário, seja qual for a parte do mundo onde eu estiver.
- Entregou-lhe o cartão e acompanhou-o à porta da entrada, ficando depois a vê-lo enquanto montava a lambreta BW de 12 e cruzava os portões.
Se calhar nunca mais o vou voltar a ver, mas nunca se sabe.
38
Tentou afastar o rapaz da mente. No entanto, nos dias que se seguiram, Yaf não parava de se intrometer nos seus pensamentos, inclusive quando estava a tentar concentrar-se
na leitura da documentação de Hazel.
- Vivemos numa sociedade imoral quando os banqueiros recebem bónus de vários milhões de libras e rapazes honestos não conseguem arranjar trabalho e ficam a apodrecer
na rua até acabarem por cair numa vida de crime. Um dia acaba por rebentar tudo quando menos se espera - comentou ele a Paddy certo dia.
Isto fê-lo pensar em Catherine Cayla e naquilo que o mundo lhe reservava para o futuro. Apercebeu-se de que tinha imensas saudades da filha e que precisava desesperadamente
de voltar a vê-la. De modo que, alguns dias depois, apanhou um voo de regresso a Abu Zara, acompanhado de Paddy, Nastiya e Dave Imbiss.
39
- Temo-nos portado como uma boa menina, papá. Ganhámos quase meio quilo desde que o senhor partiu. - Bonnie colocou Catherine nos braços de Hector assim que ele
entrou no átrio da penthouse em Seascape Mansions. - Mas tivemos tantas saudades do nosso papá, não foi, bebé?
Hector não estava muito familiarizado com esta linguagem maternal e não percebeu bem quem sentia saudades de quem, mas esperava que não fosse aquilo que as palavras
de Bonnie pareciam transparecer.
Hector chegara mesmo a tempo para dar o biberão a Catherine e deitá-la depois no berço. Na manhã seguinte, colocou-a numa versão moderna de um marsúpio, uma espécie
de casulo de nylon fixo numa estrutura de alumínio, concebido de forma ergonómica para proteger e amimar um bebé. Fora Dave Imbiss quem lhe desencantara algures
este porta-bebés futurista. Se o prendesse ao peito, Hector poderia ver o rosto de Catherine enquanto corria. Ou podia prendê-lo nas costas, para que Catherine pudesse
olhar por cima do seu ombro.
Levou-a consigo para uma corrida de quinze quilómetros ao longo da marginal da praia. A bebé parecia apreciar o movimento baloiçante - pelo menos não emitiu nenhum
protesto audível; dormiu durante todo o percurso e só acordou quando regressou a casa, com um apetite digno de uma cria de leão. Tinha perdido um biberão, como Bonnie
anunciou ao mundo num tom estentórico de desaprovação.
Os dias sucederam-se numa rotina serena mas não desagradável. Paddy e Nastiya dispunham do seu próprio apartamento na Cidade de Abu Zara. Embora trabalhassem no
mesmo edifício, fora da sede da Cross Bow Security, por vezes passavam-se dias sem que se cruzassem. Contudo, Paddy telefonava a Hector todas as noites Para discutirem
possíveis desenvolvimentos; mas poucas novidades havia e não eram de grande relevância.
Pelo menos duas vezes por semana, Nastiya convidava Hector para jantar no apartamento onde vivia com Paddy ou num dos muitos restaurantes de luxo existentes na cidade.
Ao grupo juntava-se sempre um dos convidados de Nastiya: uma jovem mulher atraente e solteira. Era espantoso como ela conseguia desencantar tantas jovens. Certamente
passara a pente fino as tripulações de cabina de todas as companhias aéreas, os escritórios do pessoal administrativo das embaixadas britânica e americana e as principais
multinacionais a operarem na cidade. Mesmo quando Hector se esquivava com habilidade a estas ciladas óbvias, Nastiya nunca desistia de tentar. Tornou-se um jogo
amigável entre ambos. Paddy limitava-se a observar com um ar divertido.
Dave Imbiss passava muitas horas por dia na penthouse de Seascape Mansions a verificar e a aperfeiçoar as medidas de segurança que rodeavam Catherine Cayla, e a
certificar-se de que os seus homens se mantinham alerta e em plena forma física. A bebé nunca era deixada sozinha. Uma das três amas estava sempre a seu lado, dia
e noite. Havia sempre um guarda armado à porta do quarto da criança, bem como uma equipa da Cross Bow Security na sala dos monitores do sistema de televisão em circuito
fechado ao fundo do corredor, a vigiar todas as entradas para os apartamentos e o interior do quarto da criança.
Hector tomava o pequeno-almoço com Catherine todas as manhãs, às seis horas. Atacava o bacon e os ovos estrelados enquanto a bebé mamava do biberão. Depois levava-a
para a corrida habitual ao longo da marginal. Quando voltava à penthouse, entregava-a aos cuidados das amas e passava o resto da manhã a ler atentamente os comoventes
registos da vida de Hazel.
Para ele, os mais importantes e mais fascinantes eram os diários dela. Eram os únicos documentos de Hazel que Agatha não digitalizara. Hazel começara a escrevê-los
no seu 14º aniversário. Havia na coleção dela mais de vinte livrinhos de capas pretas idênticas. um para cada ano da sua vida desde o início da adolescência.
Os diários estavam escritos numa caligrafia miudinha e repletos de trechos em linguagem codificada por ela criada. Hector precisou de toda a sua imaginação e engenho
para decifrar alguns desses códigos. Hazel tinha registado cada detalhe da sua vida, fosse trivial ou apocalíptico. Hector estava fascinado. Nunca imaginara vir
a inteirar-se de tantas coisas acerca dela. Mas ali estavam as suas bazófias e confissões, escritas pelo próprio punho. Chegara mesmo a descrever, com deleite, a
perda da virgindade no seu 15º aniversário, no banco traseiro do velho Ford do seu treinador de ténis. Hector sentiu uma punhalada de ciúme.
O cabrão lascivo era quase trinta anos mais velho que a minha menina inocente. Deveria ter ido de cana por aquilo que lhe fez. Maldito pedófilo. Depois consolou-se
com o pensamento de que o maldito pedófilo provavelmente estaria agora gordo, careca e impotente; e com o facto de Hazel ter desfrutado dessa experiência. Continuou
a folhear os diários, saltando os anos intermédios até encontrar o dia em que ambos se conheceram.
Esse era um dos momentos cruciais da sua própria existência. Nunca haveria de esquecer um pormenor que fosse desse primeiro encontro. Ocorrera nas instalações da
Bannock Oil, ali no deserto de Abu Zara. Hector aguardara, juntamente com os outros manda-chuvas da Bannock Oil, pela chegada dela no meio de uma forte tempestade
de areia. O helicóptero surgira do meio das nuvens de areia castanho-escuras. Recordou-se que quando o aparelho aterrara e ela surgira à porta na fuselagem, fora
apanhado desprevenido pela descarga elétrica que lhe percorrera a coluna vertebral. Raios, ela era absolutamente magnífica.
Nesse primeiro dia, ela tratara-o com rispidez, o que o deixara furioso. Não estava habituado a ser tratado com desprezo. Odiado? Sim, mas nunca que o ignorassem
de forma tão descarada.
Agora, finalmente, podia ler os pensamentos dela nesse dia fatídico. Hazel tinha-o descrito da seguinte forma: "Todo ele pose, testosterona e músculo. Rezo a Deus
para que um dia me perdoe por achar este odioso simplório tão giro e tão sexy."
40
Seis semanas após a sua chegada a Abu Zara, Hector foi acordado pelo toque de chamada do seu iPhone. Rolou na cama, ligou o candeeiro da mesinha de cabeceira e olhou
para o despertador. Faltavam dez minutos para as quatro da madrugada. Pegou no telemóvel.
- Cross - disse. - Sou eu, o Yaf! Hector soergueu-se de imediato. - Diz-me coisas! - Ele está cá. Mas é melhor o senhor vir sem demora. Ele nunca para muito tempo
no mesmo sítio. Não há maneira de saber quando vai voltar a desaparecer.
- Que horas são aí em Londres? - Pouco passa da meia-noite - respondeu Yaf. Hector fez um cálculo rápido. - Estarei aí por volta das onze da manhã de Londres. Vai
à minha casa de manhã e espera-me lá. Vou dizer ao meu mordomo para te deixar entrar, e a minha chef vai-te preparar um banquete para o pequeno-almoço. - Desligou
e telefonou para o apartamento de Paddy. Atendeu-o a voz ensonada de Nastiya. - Quem mais pode ser senão o Hector Cross! - disse ela. - Adivinhaste. O Aleutian está
em Londres. Diz a esse pinga-amor deitado aí ao teu lado na cama para enfiar as calças. Diz-lhe para requisitar o jato G5 da Bannock Oil para uma partida imediata
e urgente rumo a Farnborough. Eles que arranquem os pilotos da cama se necessário for. Vamos apanhar aquele cabrão assassino.
Hector deixou Dave Imbiss a comandar os guardas da segurança de Catherine em Seascape Mansions. O G5 descolou com a restante equipa às 08h43 de Abu Zara e aterrou
em Farnborough cinco horas depois. O motorista de Hector avançou pela pista para os recolher. Pouco mais de uma hora depois, estacionaram na garagem subterrânea
do nº 11. Yaf Said aguardava na cozinha, onde travara amizade com a chef Cynthia. A mulher estava a fazê-lo ganhar peso, empanturrando-o com o seu famoso pudim de
chocolate com gelado. Yaf pousou a colher e apressou-se pelas escadas acima quando ouviu a voz de Hector.
Hector apresentou-o a Paddy e a Nastiya e convocou de imediato um conselho de guerra para a biblioteca. A pedido de Hector. Yaf relatou-lhes as linhas gerais do
que tinha acontecido durante a ausência deles.
- Ao longo das últimas duas semanas tenho recebido informações sobre o Aleutian, sobretudo de clubes noturnos na zona central de Londres. Mas sempre que seguia essas
pistas, chegava à conclusão de que não passavam de avistamentos falsos ou que o alvo já tinha desaparecido quando eu chegava ao local. Mas depois tive sorte num
lugar chamado Fusion Fire, um antro espampanante, cheio de luzes estroboscópicas e espelhos, montes de passadores e prostitutas sempre a rondar, mas a música é mesmo
marada. Consegui aproximar-me bastante do Aleutian no balcão do bar. Estava a beber com três outros tipos negros e consegui ver-lhe a tatuagem. Era o tipo que o
senhor procura, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas os amigos dele chamavam-lhe Óscar e não Aleutian.
- Quando foi isso? - perguntou Hector. - Foi numa sexta-feira, há duas semanas. Não lhe quis ligar logo, pois ele podia estar ali apenas de passagem. Esperei lá
por ele durante as quatro noites seguintes. Mas o tipo não voltou a aparecer. De modo que pus a minha malta de vigia em todos os clubes noturnos da zona. Acabámos
por o avistar em dois outros clubes ao longo da semana seguinte, e depois voltou ao Fusion Fire duas noites seguidas. Foi por isso que lhe liguei esta manhã. Dá-me
a impressão que ele anda sempre a saltar de sítio em sítio, mudando todos as noites de poiso. Não há nenhum padrão nas movimentações dele. Se fosse a si, punha alguém
a vigiar todos os clubes noturnos onde ele foi avistado recentemente. O tipo parece ser =a criatura de hábitos. Acho que é a melhor hipótese de o senhor conseguir
dar com ele.
- Faz sentido - concordou Hector. - Mas e quanto a ti, Yaf? Yaf pareceu constrangido e demorou algum tempo a ganhar coragem para falar. - Ajudei-o de bom grado a
tentar encontrar este tipo, mas não quero estar lá quando o senhor lhe deitar as mãos. Há muito tempo que renunciei a esse tipo de métodos violentos, quando Alá
me tomou sob a sua proteção. Sem ofensa, senhor Cross. Tem sido um grande prazer privar com um homem como o senhor, mas creio que agora devemos seguir caminhos diferentes.
- Obrigado uma vez mais, Yaf. Acho que é uma decisão sensata. Também foi um prazer para mim conhecer-te. Conseguiste reforçar a minha fé na geração mais nova. Se
te puder ajudar seja no que for, já sabes onde me encontrar. Entretanto, posso pagar-te pelo teu tempo e incómodo?
Yaf ergueu ambas as mãos, alarmado. - Não, por favor. Não fiz isto por dinheiro. Fi-lo por um homem bom e santo.
- Muito bem, Yaf. Mas a tua mesquita deve gerir alguma instituição de caridade para a qual eu possa contribuir.
- Bem, senhor, para lhe dizer a verdade, recebemos grande parte dos nossos fundos da Fundação Muçulmana para a Juventude - respondeu Yaf numa voz hesitante. - O
senhor pode fazer a sua doação online. Não precisa de dar o nome.
- Vou fazê-lo em teu nome - assegurou-lhe Hector. - Obrigado, senhor. Não preciso de lhe dizer isto, mas posso garantir-lhe que o dinheiro será muito bem gasto.
- Tirou uma tira de papel do bolso do blusão. - Tem aqui a lista de todos os clubes onde avistámos o Aleutian. Ele costuma aparecer sempre num deles por volta da
meia-noite, isto é, quando se digna aparecer, mas depois fica por lá até de madrugada. Espero que encontre aquilo que procura, senhor.
Hector acompanhou-o à porta da frente e disse-lhe: - Espero que a nossa amizade não acabe aqui, Yaf. Podes-me visitar sempre que passares aqui por perto. Se eu não
estiver cá, a Cynthia lá na cozinha terá todo o gosto em te oferecer uma chávena de café e algo para comer. Vou-lhe dizer que és sempre bem-vindo aqui.
- É muito amável da sua parte, senhor. Adeus e ma'a salamab. Deram um aperto de mão e depois Hector viu-o montar na lambreta e partir. Sabia que nunca mais voltaria
a vê-lo. Yaf era um jovem independente, demasiado orgulhoso para aparecer ali a mendigar.
Nota de Rodapé: Significa "adeus" em árabe, mas também "A paz esteja contigo/ consigo".
Fim da nota.
41
- Ora bem, os três clubes na lista do Yaf Said são o Fusion Fire, o Rabid Dog e o Portais of Paradise, todos na zona central londrina, desde o Soho até Elephant
e Castle. Não conheço nenhum destes antros, e vocês os dois? - Hector olhou primeiro para Nastiya.
- Não conheço, não faz nada o meu estilo - retorquiu ela numa voz afetada.
- E tu, Paddy? - Também não. Mas, a julgar pelos nomes, até parecem locais divertidos. - Eis como vamos tratar disto. Já verifiquei a localização dos três clubes
na Internet. Encontram-se espalhados ao longo de uma área bastante grande, a vários quilómetros de distância uns dos outros. Segundo o que o Yaf disse, não vale
a pena iniciar a busca antes da meia-noite. Teremos que fazer um turno noturno tardio. Se um de nós o identificar, deve chamar logo o resto da equipa. Tratamos de
manter o Aleutian sob vigilância e seguimo-lo quando sair do clube. Um de nós conduzirá o Q-Car. As ruas devem estar praticamente vazias a essa hora da manhã. Assim
que o apanharmos sozinho e sem ninguém por perto, espetamos-lhe a Hypnos.
A Hypnos era uma minúscula seringa hipodérmica que podia ser escondida na mão, ou na costura da manga de um casaco. Era feita de uma espécie de vinil indetetável
por raios X ou por qualquer outro tipo de dispositivo de deteção. O tubo cilíndrico era de cor verde. A agulha não metálica ficava a descoberto assim que se removia
a tampa protetora com o polegar; tinha apenas dois centímetros de comprimento e bastava perfurar a pele para que fossem injetados dois centímetros cúbicos de uma
potente droga que deixava a vítima quase instantaneamente paralisada. O nome Hypnos inspirava-se na deusa grega do sono.
Era impossível conseguir um fornecimento deste tipo de armas. a menos que, tal como Dave Imbiss, se tivesse contactos na Divisão de Guerra Química do exército americano.
- Depois, assim que o Aleutian perder os sentidos, enfiamo-lo no Q-car e trazemo-lo para aqui - continuou Hector enquanto delineava o plano. - A propósito, a cave
é insonorizada e tem uma divisão ao fundo onde costumo limpar o meu equipamento de pesca, mas dará uma boa sala de interrogatório. Teremos todo o equipamento apropriado
à mão. As paredes e o chão são em azulejo. fácil de lavar à mangueirada. Se a tortura da água não for suficiente. é possível que tenhamos de recorrer a meios menos
higiénicos até o Aleutian desembuchar e nos revelar o nome de quem o contratou. Depois de lhe tratarmos da saúde, enfiamos o que resta dele numa caixa de peixe hermética
e impermeável e exportamo-lo para Abu Zara no G5. Se escolhermos bem a faixa horária de descolagem. em princípio as autoridades aduaneiras não irão revistar o conteúdo
da caixa. Depois, o Dave Imbiss levará o corpo do Aleutian para a zona onde as equipas de exploração petrolífera estão a perfurar a nova concessão, no Zara Número
12. O Aleutian irá acabar no fundo do poço de perfuração, que por esta altura já terá atingido os cinco mil metros de profundidade, e depois reemergirá à superfície
misturado com a fina pasta de lodo triturado pela broca rotativa de ponta de diamante.
Dirigiu-lhes um sorriso feroz e prosseguiu: - Sei que é um plano de batalha um pouco rudimentar, mas também sei que vocês os dois são bastante bons a improvisar
conforme as circunstâncias mudam.
Verificou as horas no relógio de pulso e levantou-se. - Temos uma hora para trocar de roupa para o jantar. Sei que a chef nos preparou um prato especial, mas não
haverá vinho para acompanhar. Temos de estar bem lúcidos e despertos para a nossa tarefa noturna.
Após o jantar, é minha intenção dormir uma sesta de duas horas. Depois, voltamos a reunir-nos às onze. Vai-nos levar uma hora ou mais a chegarmos aos locais das
nossas posições. Acho que tu, Nastyia, deverias ir para o Portais of Paradise, por razões óbvias. E tu, Paddy, ocupas-te do Rabid Dog, por razões igualmente óbvias.
Eu fico de vigia ao Fusion Fire, apesar de não me ocorrer nenhuma razão óbvia para tal.
- Imagino que devem existir umas quantas brasas do teu perigoso passado que nos poderiam dar razões mais do que suficientes - insinuou Nastiya.
Hector subiu para o seu quarto de vestir e abriu a porta do compartimento secreto por trás da lareira. Pegou numa caixa pousada numa das prateleiras de cima, onde
estava guardada a sua pistola,
enfiada no coldre axilar. Enfiou um par de luvas cirúrgicas de borracha e limpou cuidadosamente a arma para remover as suas próprias impressões digitais. Depois
recarregou-a com as munições especiais que Dave lhe fornecera. Esfregou uma segunda vez a arma com o pano, só para ter a certeza de que ficava bem limpa. Calculara
os riscos e as vantagens de portar a arma nessa noite. Era um delito grave se as autoridades o encontrassem armado, mas
talvez o perigo fosse ainda maior se enfrentasse alguém do calibre de Aleutian completamente desarmado.
42
Deixaram Nastiya no Portais of Paradise alguns minutos depois da meia-noite. A entrada situava-se discretamente na ruela de umas antigas cavalariças. Havia uma pequena
multidão de jovens excitados. aglomerados em frente à porta. Dois seguranças corpulentos e de ar agressivo barravam-lhes a entrada para o clube, enquanto um porteiro
educado, em traje formal de smoking e gravata preta, fazia a seleção daqueles que considerava dignos de entrarem naquele edifício sagrado.
Hector estacionou o Q-Car à entrada da ruela e, juntamente com Paddy, observou enquanto Nastiya se dirigia para o clube.
O porteiro avistou Nastiya assim que ela entrou na ruela. Envergava um vestido justo de cor carmesim que se colava a todas as suas curvas e calçava saltos de agulha
de quinze centímetros que lhe deixavam os finos músculos dos gémeos sob tensão. A sua aparição silenciou o clamor da multidão de jovens à entrada do clube que suplicavam
que os deixassem entrar. Abriram alas e observaram em silêncio a sua passagem. O porteiro apressou-se ao encontro dela para a cumprimentar e deu-lhe o braço, com
um bajulador sorriso de boas-vindas. Acompanhou-a até ao interior e disse à rapariga da caixa registadora: - Esta senhora é convidada da casa. Arranja-lhe a melhor
mesa disponível.
Observando a cena sentado no banco traseiro do Q-car, Paddy O'Quinn deu voz à sua preocupação: - Só espero que ela fique bem. No meio daquela multidão estão alguns
tipos que até me dão a volta ao estômago.
Hector desatou às gargalhadas. - Só podes estar a brincar, Paddy. A única pessoa de quem sinto pena é do pobre coitado que tentar meter-se com a tua senhora.
Ligou o motor e conduziu cerca de três quilómetros até ao Rabid Dog. - Ora bem, Paddy, chegámos ao teu canil. Mantém-te morto da cintura para baixo e não te deixes
seduzir por nenhuma mulher. - Observou enquanto Paddy passava uma nota de dez libras ao porteiro e desaparecia através das cortinas que cobriam a entrada.
Hector pôs-se em marcha e conduziu cerca de quilómetro e meio até ao Fusion Fire. O clube noturno ocupava dois pisos. A fachada, virada para a estrada, era toda
ela de painéis de vidro, do chão ao teto. Podia ver através dos vidros que o interior estava profusamente iluminado por luzes estroboscópicas de uma miríade de cores,
montadas em torres giratórias. O teto estava revestido de mosaicos espelhados que refletiam as luzes ofuscantes e os vultos dos dançarinos na pista em baixo. As
pessoas dançavam numa multidão comprimida, como compactos cardumes de reluzentes peixes tropicais, agitando-se num frenesim selvagem ao ritmo retumbante da música.
Hector passou lentamente pela fachada, estacionou na esquina seguinte e voltou para a entrada do clube. Usava óculos escuros de aviador e um casaco de brocado rematado
nas ancas, provido de gola mandarim e com as mangas cortadas que Nastiya escolhera para ele. Tinham optado de forma deliberada por trajes extravagantes, para transparecerem
um ar excêntrico e amaneirado. Assim, ninguém pensaria que eram tropas de assalto e desataria a fugir com medo. Hector pagou cem libras por uma mesa VIP.
Sentou-se à mesa e observou o enorme espaço à sua volta. Reconheceu-o de imediato como o cenário de um dos vídeos com Aleutian que Vicky Vusamazulu gravara no iPhone
e sentiu-se mais alentado. Se Aleutian frequentara aquele local antes, havia uma forte probabilidade de ali voltar.
Num espaço de vinte minutos, deu por si a ser abordado sucessivamente por cinco raparigas diferentes que vinham oferecer-lhe toda a espécie de serviços, desde uma
mamada debaixo da mesa por cinquenta libras até uma noite inteira por quinhentas libras. Tudo propostas que ele declinou de modo educado.
Às cinco e vinte da madrugada, as multidões na pista de dança começaram a reduzir-se e ainda não havia sinal de alguém que se parecesse vagamente com Aleutian. Hector
resolveu sair do clube e conduziu o Q-car até ao Rabid Dog para ir buscar Paddy.
- Como é que correu, meu velho? - perguntou assim que Paddy se enfiou no banco a seu lado.
- Se tivesse fumado, snifado e engolido tudo aquilo que me ofereceram esta noite, estaria a voar mais alto do que a estrela da manhã ali em cima.
Seguiram para o Portais of Paradise e, quando Nastiya surgiu, parecia ter acabado de sair de um salão de beleza.
- Não tiveste sorte, rainha do meu coração? - perguntou-lhe Paddy numa voz ansiosa.
- Podia ter ganhado uma fortuna. Um velhinho muito querido, aí com uns noventa anos, ofereceu-me dez mil libras só para me olhar sem tocar.
- Devias ter aceitado - disse-lhe Paddy. Nastiya lançou-lhe um olhar de esguelha com os seus olhos de um azul tão glacial como o céu da tundra. Quando regressaram
ao nº 11, os três deitaram-se e dormiram até ao meio-dia.
A noite seguinte foi uma repetição da anterior. A única diferença era a clientela.
Na terceira noite, Hector entrou na confusão do Fusion Fire poucos minutos após a meia-noite. Era a noite de sábado e a pista estava completamente apinhada. O volume
da música entorpecia os sentidos. As enormes bolas espelhadas, suspensas do teto, moviam-se ao ritmo das batidas dos pés das pessoas que dançavam por baixo.
De modo a imiscuir-se no ambiente, Hector usava um bolero de cetim preto ao estilo espanhol, por cima de uma camisa branca aos folhos e uma gravata de cadarço preta.
As calças de toureiro cheias de lantejoulas colavam-se-lhe às coxas. Fora Nastiya quem, uma vez mais, lhe escolhera esse traje. Sentou-se à mesa habitual e uma rapariga
de minissaia, com um bonito rosto de traços miudinhos e lábios carnudos, que ele nunca tinha visto antes, sentou-se de repente no seu regaço.
- És tão lindo que quero casar contigo - disse-lhe. - És rico, não és? - Sou multimilionário - respondeu ele numa voz séria. - Oh, meu Deus! - exclamou ela, de fôlego
entrecortado. - Juro por Deus que acabaste de me fazer vir.
Hector achou-a, na verdade, bastante divertida. Riu-se e, quando olhou por cima do ombro dela, deparou do outro lado da pista com o rosto escuro e carrancudo de
que se lembrava tão bem dos vídeos de Victoria Vusamazulu.
Aleutian estava especado no topo das escadas que conduziam ao átrio. Estava acompanhado de uma rapariga que olhava para ele, mas cujo rosto Hector não conseguia
ver. Aleutian olhava-a com um ar condescendente. Embora a multidão continuasse a rodopiar à volta do par, a enorme corpulência de Aleutian fazia-o destacar-se acima
de todos os outros. Fora por essa razão que Hector o identificara de imediato. Olhou-o apenas durante alguns segundos, só para ter a certeza de que se tratava do
homem que procurava; mas, ainda assim, fora demasiado tempo.
Na selva, quando se olha fixamente um animal, é muito frequente este pressentir o olhar e reagir. Aleutian era exatamente isso, um predador selvagem no seu próprio
território. Os seus olhos apartaram-se do rosto da rapariga e fixaram-se nos de Hector. Reconheceu-o de imediato. Deu meia-volta e desceu as escadas à pressa. Hector
levantou-se de um salto e a rapariga tombou-lhe do regaço. Saltou por cima dela para a pista de dança e abriu caminho à força pelo meio das pessoas que dançavam,
até ao topo da escadaria por onde Aleutian desaparecera.
As escadas estavam quase tão apinhadas quanto a pista de dança. Quando Hector chegou à entrada do clube e irrompeu pela porta da rua, já não viu nenhum sinal dele.
Refreou o instinto cego de desatar a correr pelas ruas escuras para o procurar aleatoriamente.
Lembrou-se da rapariga com quem Aleutian estava. Talvez pudesse encontrá-la. Talvez ela pudesse indicar-lhe o lugar onde Aleutian se refugiara. Pôs de lado essa
ideia no mesmo instante em que lhe ocorreu. O Fusion Fire estava a abarrotar de beldades como ela. Nem sequer lhe vira o rosto. Nunca conseguiria identificá-la no
meio da multidão. De qualquer modo, provavelmente não passava de uma prostituta que Aleutian escolhera para o acompanhar naquela noite.
Como é que o Aleutian terá vindo para cá? De carro? De táxi? Nesse caso, há muito que já se foi. Não parava de pensar de forma furiosa. De metro? Sim, claro!
Sabia, com base na pesquisa que fizera na Internet, que a entrada da margem norte para a estação de Blackfriars ficava apenas a quatrocentos metros do local onde
se encontrava. Desatou num sprint. Correu até à primeira esquina e viu a entrada para a estação de metro ao fundo do quarteirão. A rua estava quase deserta àquela
hora. Havia apenas uns quantos folgazões tardios de regresso a casa. Um deles era Aleutian. Afastava-se de Hector a passo de corrida, em direção à estação de metro.
Quando Hector se lançou em perseguição, Aleutian alcançou a entrada da estação e desapareceu como um coelho que acabasse de se enfiar na toca. Hector seguiu-o pela
entrada. Desceu os degraus três a três, com os seus passos ecoando no túnel vazio. Alcançou a junção em forma de T no fundo. A sinalização no túnel à esquerda indicava
a direção de Richmond; a do túnel à direita, a direção de Upminster. Não tinha forma de saber por qual deles Aleutian seguira. Optou aleatoriamente pelo túnel da
direita e, assim que começou a avançar, ouviu o ruído de um metro na linha para Richmond. Deu meia-volta e correu nessa direção. Quando chegou à plataforma, olhou
com atenção. O metro já tinha parado e as portas estavam abertas. Havia uma pequena multidão de passageiros e folgazões resistentes a subir a bordo. Hector apercebeu-se
de imediato de que o seu palpite fora acertado: Aleutian abria caminho por entre os outros passageiros. Viu-o subir para uma das carruagens.
Hector galgou o último lanço de escadas, mas, a meio caminho da plataforma, as portas fecharam-se e o metro afastou-se. Enquanto as carruagens passavam por ele,
viu Aleutian especado a uma das janelas, a olhar para ele. Hector lançou a mão à pistola que levava no coldre axilar oculto. Mas depois conteve-se. O ângulo e a
distância eram muito arriscados. Aleutian estava rodeado de muito perto por outros passageiros. Não se atreveu a correr o risco de atingir um deles enquanto o metro
se afastava acelerado.
Aleutian sabia que estava a salvo. Sorriu na direção de Hector. Uma careta sardónica, carregada de ameaça. Hector sentiu a pele eriçar-se. Estava a olhar nos olhos
do assassino de Hazel. A intensidade das emoções era tal que as pernas lhe tremeram. Depois de a última carruagem desaparecer na boca do túnel, Hector demorou alguns
segundos a forçar-se a voltar a pensar com frieza.
Deu meia-volta e refez o caminho a passo de corrida, mas sabia que demoraria pelo menos dez minutos a chegar ao local onde estacionara o Q-car. O metro que transportava
Aleutian seguia a uma velocidade de cerca de sessenta e cinco quilómetros por hora. O avanço de Aleutian era demasiado grande para conseguir apanhá-lo, mesmo no
Q-car. Tinha de se antecipar e telefonar a Paddy ou a Nastiya para o intercetarem. Mas havia uma dúzia ou mais de paragens onde Aleutian poderia sair antes de o
metro chegar ao terminal em Richmond. Seria impossível cobri-las a todas.
Mas havia algo que estava a escapar-lhe. Sabia que alguma coisa estava a escapar-lhe enquanto subia a correr pelo túnel até ao nível da rua. Pensa!, disse a si mesmo.
Deixa-te guiar pela cabeça e não pelos tomates. Para onde é que o cabrão pode ter ido?
Irrompeu do túnel para a rua, e foi nesse instante que aquilo lhe acudiu à mente. Parou de imediato. Pegou no telemóvel e ligou a Nastiya. Os toques de chamada sucederam-se
de forma interminável, mas manteve o telemóvel colado ao ouvido enquanto corria à sua velocidade máxima.
A chave é a Vicky Vusamazulu. Sabia-o com uma clareza absoluta. Quase conseguia ver o Aleutian estabelecer essa ligação. Com o seu instinto de raposa, pressentiu
de imediato que tinha sido traído. Sabia que as probabilidades de eu dar com ele lá no Fusion Fire por mero acaso eram absolutamente ínfimas. Já sabe que alguém
me pôs no rasto dele. Sabe que a Vicky é a única pessoa que nos conhece aos dois. Era a única pessoa que sabia que ele frequentava o Fusion Fire. Não precisou de
muito para perceber que ela é a única pessoa que me poderia ter dado essa pista. As probabilidades de ir a caminho para se vingar da Victoria neste preciso momento
são de dez para um. Vá lá, Nazzy, querida. Atende o maldito telemóvel.
- Hector, onde estás? - atendeu-o Nastiya de repente. - Afugentei o Aleutian. Conseguiu escapar-me e fugiu. O meu palpite é que vai a caminho do apartamento da Vicky.
Lembras-te da morada dela, não lembras?
- Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica a cerca de trezentos metros da estação de metro de Kew Gardens. - A resposta de Nastiya foi rápida e precisa.
Era uma profissional.
- O Aleutian segue neste preciso instante a bordo de um metro que se dirige diretamente para Kew Gardens. Estás mais perto do que eu. Consegues chegar à casa da
Vicky muito antes de nós. Apanha um táxi. Eu e o Paddy cobrimos-te assim que pudermos. Mas sê rápida, Nazzy. A tua amiguinha Vicky é um alvo fácil e aquele cabrão
é um assassino. - A chamada foi cortada. Como sempre, Nastiya era uma mulher de poucas palavras.
Hector ligou a Paddy e falou com ele enquanto corria em direção ao Q-car. - Paddy, espera por mim à porta do Rabid Dog. Estarei aí dentro de vinte minutos, talvez
menos.
- Que se passa? - O Aleutian deu sinal de vida, mas cometi um erro de todo o tamanho. O tipo fugiu e anda a monte. Conto-te o resto quando chegar aí.
Quinze minutos depois, Paddy abriu rapidamente a porta do passageiro do Q-car e enfiou-se no banco antes de Hector sequer parar. Hector carregou a fundo no acelerador
e seguiu a toda a velocidade.
- Nº 47, Gardens Lane, TW9 5LA. É a morada da Vicky. Insere os dados no sistema de navegação por satélite, Paddy. Raios, tenho a certeza que é para onde o Aleutian
foi.
43
Os toques insistentes da campainha do apartamento acordaram Vicky Vusamazulu. Soergueu-se na cama muito ensonada. Tinha tomado um comprimido para dormir. Olhou para
o mostrador luminoso do despertador na mesinha de cabeceira. Eram quase duas da madrugada. Graças a Deus que a senhora Church é surda como uma porta. Vicky tentou
afastar o sono esfregando os olhos com os nós dos dedos. A Sra. Church era a sua senhoria. Vivia no piso por cima e Vicky sabia por experiência própria que ela desligava
o aparelho auditivo quando se deitava. Era uma bruxa velha, tão rígida e insuportável que Vicky era o único inquilino no prédio.
A campainha voltou a soar. Vicky ligou a luz, afastou os lençóis para trás, lançou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se. Vestia calções de pijama e um top
estampado com um brilhante padrão floral. Avançou trôpega pelo corredor até à porta ao fundo.
Verificou se as correntes de segurança estavam bem presas antes de se erguer nas pontas dos pés para espreitar pelo olho mágico. O visitante no exterior estava de
costas para ela.
- Quem é? - perguntou, irritada. O sujeito virou-se e Vicky reconheceu-o de imediato.
Arquejou, surpreendida e deleitada, e despertou por completo. Nem sequer sabia que Aleutian estava de volta a Londres.
- Abre a porta, cadela - disse ele.
- Aleutian! Oh, meu Deus. És mesmo tu? Pensava que nunca mais ias voltar. - Estava tão empolgada que não conseguia desprender as correntes de segurança. - Espera!
Não vás embora. É só um segundo. Espera, meu querido Aleutian.
Finalmente conseguiu abrir a porta e correu para ele para o abraçar, mas Aleutian empurrou-a para o lado e apressou-se a entrar no apartamento. Avançou pelo corredor
até ao quarto dela sem olhar para trás. Victoria fechou a porta mas não quis perder tempo a voltar a prender as correntes de segurança. Correu de imediato atrás
dele.
- Pensava que nunca mais ias voltar. Nunca devia ter duvidado de ti. Eu sabia que ias cumprir a tua palavra. Tive saudades tuas. Tive tantas saudades tuas. - Não
parava de palrar, tomada de emoção.
Ele tinha-se sentado na cama. Olhava-a com uma expressão estranha no rosto.
- Tens-te portado bem durante a minha ausência? - Oh, sim, sim. Fiquei em casa todas as noites à tua espera. Nunca olhei sequer para outros homens. Amo-te tanto!
- Estás-me a mentir - disse ele naquele seu tom suave e funesto que a deixava a tremer de desejo. - Acho que tens sido uma cadelinha malcomportada. Acho que vou
ter de te castigar.
Victoria conhecia tão bem este jogo que os seus mamilos endureceram sob o tecido fino do top do pijama.
- Tira o pijama! - ordenou-lhe. Ela despiu o top, amarfanhou-o numa bola e atirou-o para a cama, ao lado do lugar onde ele estava sentado. Depois fez deslizar os
calções pelas ancas e deixou-os cair em redor dos tornozelos. Chutou-os para longe e manteve-se nua à frente dele.
- Vais-me bater, Aleutian? - perguntou-lhe numa voz assustada, cobrindo o púbis com as mãos em concha.
- Afasta as mãos e vem cá. - Chamou-a com um gesto do dedo e ela colocou-se à sua frente. - Abre as pernas, cadela.
Ela afastou os pés. Aleutian inclinou-se para a frente e enfiou a mão entre as coxas dela. - Abre mais! - ordenou-lhe.
Victoria podia sentir o dedo dele a contorcer-se dentro de si e apoderou-se dela um desejo tremendo. Lançou as coxas para ele e sentiu-o tocar-lhe na boca do útero.
- Estás tão viscosa aí dentro como um balde cheio de enguias, sua cadela imunda. Mas percebes que tenho de te castigar, porque te portaste muito mal?
- Sim, percebo. - Mestre. Chama-me Mestre. Ou já te esqueceste? - Fez algo com o dedo que foi tão doloroso que a deixou a gemer. Era como se ele lhe tivesse rasgado
algo ali dentro. Abriu desmesuradamente os olhos devido à dor que sentia. Mas a dor era tão agradável que estava quase a atingir o primeiro orgasmo.
- Sim, compreendo, Mestre. Aleutian tirou o dedo e apontou-o à frente da cara dela. - Olha só o que fizeste, sua putinha imunda. Sujaste-me o meu lindo dedo limpinho
com essa tua rata imunda.
- Desculpa-me, Mestre. Não era minha intenção fazer isso. - Põe-te de joelhos - ordenou-lhe. Ela baixou-se à sua frente. Ele apontou-lhe o dedo. - Chupa-o até ficar
limpinho. - Vicky enfiou-o na boca. Aleutian forçou-lho pela garganta abaixo, tão fundo que os ombros dela estremeceram devido ao reflexo de vómito.
- Confessa. Tens-te portado muito mal na minha ausência, não tens?
Ela emitiu uns sons incoerentes de negação. O rosto inchava-lhe enquanto sufocava. Aleutian inclinou-se para trás e tirou o dedo da garganta dela. Vicky soluçou
de alívio e todo o seu corpo se convulsionou devido ao esforço para recuperar o fôlego. Olhou para ele com os olhos raiados de sangue e a escorrerem lágrimas.
Aleutian estendeu a mão que até então mantivera atrás das costas e Vicky apercebeu-se de que ele segurava numa navalha de ponta e mola. Viu-o carregar no botão de
libertação e a lâmina abrir-se com um estalido seco à sua frente. Tinha cerca de dezoito centímetros de comprimento e era reluzente como um raio de sol.
Isto era uma novidade. Ele nunca lhe tinha mostrado a navalha antes. Vicky tentou recuar ajoelhada, mas Aleutian agarrou no top do pijama dela pousado a seu lado
na cama e enrolou-lho à volta do pescoço, segurando-a depois como a um cachorro pela trela.
- Andaste a falar de mim a outras pessoas, não andaste, sua cadela?
- Não! - murmurou ela, abanando a cabeça num gesto veemente.
- Não me mintas, sua vaca! - Picou-lhe a face com a ponta da navalha. Vicky guinchou, de susto e dor. - Não me faças mais mal, por favor. Já não gosto destes jogos.
Já não quero brincar mais. Guarda a navalha, por favor, Aleutian.
- Isto não é nenhum jogo. Falaste de mim ao Hector Cross. sua cadela.
- Não, não falei nada. - No entanto, apesar da negação. ele viu um vestígio de culpa aflorar-lhe aos olhos. O rosto dela contorceu-se em terror.
- Falaste, sim. Disseste-lhe onde me podia encontrar. - Riu-se. - Por favor. Não estás a perceber. Ele não fez caso dos protestos e a sua voz adotou um tom afável
e tranquilizador. - Não fiques preocupada. Só tens de fazer o que te digo e tudo correrá bem. Agarra na orelha esquerda e estica-a para o lado o mais que puderes.
- Ela olhou-o, atónita e sem compreender.
- Faz o que te digo, Victoria. Fá-lo, se me amas de verdade - insistiu Aleutian. Ainda de olhos fixos nele, Vicky agarrou no lóbulo da orelha entre dois dedos e
esticou-o.
- Perfeito - disse ele. E, com um rápido golpe da lâmina prateada, cortou-lhe a orelha rente ao couro cabeludo.
Ela soltou um grito e depois olhou, horrorizada, a orelha decepada que segurava entre os dedos.
- Agora come-a. Enfia-a na boca e engole-a - disse-lhe baixinho.
O sangue da ferida pingava-lhe sobre o peito e escorria-lhe por entre os seios. Vicky não fez caso e continuou de olhos fixos na orelha cortada. De repente, Aleutian
picou-lhe o pescoço com a lâmina. Ela sobressaltou-se e olhou para ele.
- Abre a boca - disse, voltando a picá-la. Ela abriu a boca. - Agora enfia-a na boca e engole-a.
- Não! - disse ela. - Desculpa. Não era minha intenção fazer aquilo. Deixa-me explicar... Ele tocou-lhe na sobrancelha com a ponta da lâmina. - Come-a, senão arranco-te
os olhos, um de cada vez.
Vicky enfiou a orelha na boca. - Pronto. Não é assim tão difícil. Se calhar até sabe bastante bem, não sabe? - Os ombros dela voltaram a estremecer com convulsões.
- Não. Não faças isso. Engole tudo.
Determinada, Vicky fez um esforço para lhe obedecer. O seu rosto e a garganta contorceram-se. Engoliu finalmente. Estava a arquejar, mas balbuciou numa voz rouca:
- Já está. Engoli-a.
- Muito bem. Estou orgulhoso de ti. - Por favor, para, para com isto. Não me faças mais mal, por favor. - Chorava com amargura, continuando a abanar a cabeça de
um lado para o outro.
- Parar? - disse ele com uma surpresa fingida. - Mas se ainda agora começámos. Ainda há uma coisa que me queres contar, não há, Vicky? Queres dizer-me com quem andaste
a falar de mim, não é? - Nunca falei de ti a ninguém, juro pela alma da minha mãe. - Escorriam-lhe lágrimas pelo rosto e respirava em fortes arquejos acompanhados
de estremeções.
- Estás a mentir, Vicky. Vou ter de te obrigar a comer a outra orelha. - Forçou-a a ajoelhar-se, agarrou-lhe a outra orelha e esticou-a como se fosse um pedaço de
borracha. Encostou-lhe a lâmina e Vicky gritou.
Nastiya ouviu esse grito.
44
Nastiya apanhou o táxi à entrada do Portais of Paradise. Quatro raparigas polacas, todas elas risinhos e gritinhos, estavam a apear-se do veículo.
Nastiya empurrou uma das raparigas para o lado, enfiou-se no banco traseiro e disse ao taxista: - Nº 47 em Gardens Lane, e o código postal é TW9 5LA. Fica na esquina
com Kew Gardens Road, cerca de trezentos metros depois da estação de metro de Kew Gardens.
- Sei onde fica, minha senhora - disse o taxista. - Dou-lhe mais cinquenta libras se conseguir pôr-me lá em menos de um quarto de hora.
- Aperte o cinto e ponha já de parte essa nota de cinquenta libras, minha senhora - disse ele. - Aqui vamos.
As ruas estavam quase desertas e o taxista conduziu a grande velocidade. Parou em Kew Gardens vários minutos antes de transcorrido o quarto de hora previsto. Nastiya
entregou-lhe duas notas de cinquenta libras através da divisória de vidro e disse-lhe: - Guarde o troco, merece-o. - Apeou-se do táxi de um salto e atravessou a
estrada a correr, em direção ao nº 47. Assim que cruzou o portão de acesso ao minúsculo jardim, ouviu Victoria gritar. Descalçou os sapatos de salto de agulha aos
pontapés e largou a bolsa coberta de lantejoulas. Prendeu a saia afunilada à volta da cinta e correu para a porta, ganhando velocidade. Lembrava-se, da sua visita
anterior, que a fechadura era velha e frágil. No entanto, também se recordava de duas robustas correntes de segurança, de modo que se lançou de pés juntos, desferindo
no último momento um enorme coice na porta como uma mula.
Para seu grande espanto, a fechadura cedeu de imediato e a porta esmagou-se contra a parede interior. Nastiya voou pela abertura, de pés esticados à sua frente,
para dentro do corredor. Rolou o corpo ao tocar no chão e levantou-se de imediato, desatando a correr praticamente sem perder o ímpeto. Lembrava-se da disposição
exata do pobre e exíguo apartamento. A sala de estar e a cozinha situavam-se à direita. Mas viu luz por baixo da porta do único quarto. Abriu-a com um pontapé e
esquivou-se para o lado, mantendo-se de corpo colado à parede lateral. Espreitou pela ombreira para dentro do quarto.
Uma carnificina total. Os lençóis cor-de-rosa da única cama existente estavam manchados de sangue. Havia sangue nas paredes e sangue a acumular-se numa poça sobre
os fofos tapetes brancos no centro do soalho.
Vicky estava de pé, virada para ela, mas Nastiya mal conseguiu reconhecê-la. Estava nua. As orelhas tinham sido decepadas. O sangue jorrava-lhe das feridas em carne
viva, entrando-lhe na boca e manchando-lhe os dentes de vermelho. Pingava-lhe do queixo e escorria-lhe pelo corpo em jorros. O quarto fedia a sangue e a vómito.
Nastiya reconheceu de imediato Aleutian dos vídeos. Estava especado atrás de Vicky. Sujeitava-a com um golpe de gravata, imobilizando-a por completo. Na outra mão
segurava uma navalha manchada de sangue, com a qual levara a cabo aquela chacina. Envolvia o corpo de Vicky com o braço e mantinha a ponta da comprida lâmina incrustada
de sangue ressequido contra o umbigo dela. Usando o corpo da rapariga como escudo, olhava com fúria para Nastiya por cima do ombro de Vicky.
- Ouve-me, Aleutian. Larga a Vicky e podes escapar ileso - disse-lhe Nastiya numa voz calma e firme.
- Não sei quem raios és, loiraça, mas estou a gostar do que vejo. Acho que tenho um plano melhor que o teu. Primeiro, vou terminar aquilo que comecei com esta vaca
aqui. A seguir, vou atrás de ti, e, quando te apanhar, vou-te dar a melhor foda da tua vida. Depois vou-te matar também, mas muito devagar. E agora, observa bem,
pois só vou fazer isto uma vez.
Passou a navalha com rapidez de um lado ao outro da barriga nua de Victoria, perfurando-lhe profundamente a pele, os músculos e a parede intestinal. Os intestinos
transbordaram pela abertura do ferimento. A navalha tinha-os cortado também e o seu conteúdo derramou-se. Depois mudou o ângulo da lâmina e espetou-a através do
esterno. Os olhos de Vicky arregalaram-se, enormes, como que fixos na eternidade, enquanto a lâmina lhe trespassava o coração. Escapou-lhe um último sopro da boca
aberta e tombou no braço de Aleutian enquanto morria. A própria Nastiya ficou momentaneamente petrificada com a brutalidade daquele ato.
Contudo, a sua preocupação principal já não era salvar a vida de Vicky, mas a lâmina na mão de Aleutian. A navalha dava-lhe o controlo da situação.
Percebera, pela forma como ele manejara a arma, que era um lutador muito hábil, provavelmente o mais perigoso que alguma vez defrontara. E ele tinha consciência
de quão destro era, exibindo uma autoconfiança absoluta. Estava a divertir-se. Tornava-se claro que o odor do sangue e o fedor dos intestinos rasgados que enchiam
o quarto o excitavam. Nastiya sabia que o tinha subestimado e corria agora um enorme perigo.
Estava desarmada, descalça e vestida com roupas que lhe restringiam os movimentos. A cama no centro do quarto exíguo tornava-o ainda mais minúsculo. O seu estilo
particular de luta exigia espaço para poder manobrar, recuar, fintar. Precisava, sobretudo, de espaço para se manter longe daquela navalha.
Aleutian chegara obviamente às mesmas conclusões e moveu-se com rapidez para lhe limitar ainda mais os movimentos. Continuando a agarrar o corpo de Vicky à sua frente
como um escudo, tentou encurralar Nastiya num dos cantos da divisão. Mas ela conseguiu afastar-se, esquivando-se pelo lado esquerdo, para longe da lâmina.
Antes que ele pudesse girar o escudo humano para a bloquear, Nastiya retomara a sua posição junto à entrada do quarto. As ombreiras de ambos os lados da porta protegiam-lhe
os flancos.
Voltou a encará-lo e pôs-se de cócoras, em posição de combate, de mãos erguidas e rígidas como lâminas de machado, cruzadas ao nível dos pulsos. - Uau! Andaste a
ver os filmes de Kung Fu do Jackie Chan, ó loiraça - troçou ele, erguendo Vicky até ficar com as pernas a baloiçar, antes de se lançar contra Nastiya. Estava a tentar
forçá-la a recuar para o corredor, onde teria mais facilidade em a atacar.
Nastiya viu ali a sua oportunidade: os pés dele eram visíveis por baixo das pernas baloiçantes de Vicky. Em vez de retroceder, correu para ele. Uma fração de segundo
antes de colidirem, lançou-se de pés esticados à sua frente, por baixo das pernas de Vicky, e desferiu o seu coice de mula preferido. Ambos os pés aterraram com
enorme força contra o tornozelo esquerdo de Aleutian, exatamente o ponto que ela pretendia atingir.
Ouviu o osso e a cartilagem da perna dele quebrarem com um estalido seco. Sentiu-se percorrida por uma onda de triunfo, pois tinha a certeza de que ele se estatelaria
no chão, e teria então a sua oportunidade para lhe tirar a navalha.
Aleutian grunhiu de dor, mas manteve-se de pé, para grande desalento dela. Nastiya fez um salto mortal à retaguarda e aterrou de pé, virando-se de imediato para
o enfrentar de novo. No entanto, antes que pudesse recuperar o equilíbrio por completo, ele usou Vicky como um aríete e lançou o corpo inerte contra Nastiya, com
tal força que a projetou para trás através da entrada. Embateu com violência na parede do corredor.
Aleutian avançou para ela. Coxeava apoiado no tornozelo ferido, mas, ainda assim, movia-se com uma rapidez surpreendente. Continuava a segurar no corpo mutilado
de Vicky à sua frente. Obrigou Nastiya a recuar contra a parede do corredor e desferiu-lhe uma navalhada contra o rosto, por cima do ombro de Vicky. Nastiya agarrou-lhe
no pulso, mas estava escorregadio devido ao sangue e ele conseguiu libertar a mão, sem largar a navalha. Nastiya estava encurralada contra a parede e ele não parava
de a atacar com o corpo de Vicky, restringindo-lhe os movimentos e impedindo-a de recuperar o equilíbrio. A cabeça de Vicky rolava livremente sobre os ombros. Tinha
os olhos vidrados e sem vida.
Aleutian voltou a tentar esfacelar-lhe a cara, mas Nastiya esquivou-se, baixando-se sob a lâmina, e perdeu-o de vista por um segundo. Ele largou o corpo de Vicky
e Nastiya perdeu esse escudo que lhe protegia a metade inferior do corpo. Com a rapidez de uma víbora, Aleutian tentou atingir-lhe a barriga. Nastiya contorceu-se
violentamente para o lado para fugir à investida. mas o corpo que jazia sobre os seus pés inibia-lhe os movimentos. Sentiu a picada do aço quando a lâmina lhe abriu
um comprido corte superficial na anca. Tentou transpor o corpo de Vicky de um salto e ganhar espaço antes que ele pudesse atacá-la outra vez, mas ficou com o tornozelo
preso naquela espécie de corda formada pelos intestinos de Vicky e tropeçou. Caiu sobre um dos joelhos e ergueu a mão para deter o golpe de navalha que seguramente
se abateria sobre si, mas Aleutian agarrou-a pelo pulso e arrastou-a de cara contra o soalho. Forçou um dos joelhos contra a nuca dela para a imobilizar enquanto
se apressava a reajustar a lâmina na mão. Depois obrigou-a a pôr-se de joelhos e ajoelhou-se por trás dela, sujeitando-a com um golpe de gravata com uma única mão.
Apertou-lhe a laringe com força suficiente para a impedir de gritar.
- Não és nada má a lutar, loiraça - elogiou-a. - Sabes usar bem o corpo numa luta. - Respirava pesadamente enquanto se ria. - E agora, vais-me poder mostrar como
és boa na velha e célebre foda à canzana.
Nesse preciso momento, a porta do apartamento foi arrancada das dobradiças e Hector e Paddy irromperam pelo corredor. Detiveram-se assim que depararam com aquela
cena.
Aleutian levantou-se, sem largar o pescoço de Nastiya. Enfrentou-os, usando o corpo dela como escudo. - Não se mexam - avisou-os. - Se tentarem aproximar-se, esta
tipa morre.
Segurava a navalha contra o pescoço de Nastiya, com a ponta da lâmina pressionada sob a orelha. Viu a pistola que Hector empunhava com ambas as mãos, tendo adotado
a clássica postura de cócoras dos atiradores: equilibrado sobre a parte dianteira dos pés. com a pistola apontada à testa de Aleutian.
Aleutian baixou a cabeça e escudou-se atrás do corpo de Nastiya de modo a oferecer um alvo mínimo. Começou a baloiçar a cabeça de um lado para o outro como uma cobra
para frustrar a pontaria de Hector.
- Seja bem-vindo, senhor Cross. É um enorme prazer voltar a vê-lo. Por favor, aceite as minhas condolências pela perda recente
sua encantadora mulher - disse. Foi como se um obturador se fechasse sobre os olhos de Hector
e a sua visão se incandescesse de vermelho com a intensidade da fúria. Quase perdeu o controlo.
A sua mente estava novamente a operar como um computador, calculando a distância e o ponto de mira. Os pontos de mira da pistola estavam configurados para disparar
quase quatro centímetros acima do enfiamento da arma, a uma distância de vinte e cinco metros. O alvo visado estava a uma distância de oito ou talvez nove metros.
Teria de compensar a trajetória de ascensão da bala.
Aleutian não parava de se mover, permitindo-lhe apenas vislumbres intermitentes da sua cabeça.
- Tu consegues abatê-lo, Heck - murmurou Paddy quando se acocorou atrás do ombro de Hector. As suas palavras foram quase inaudíveis.
Os lábios de Hector retesaram-se numa linha rígida; sabia que as hipóteses de lograr o tiro sem ferir Nastiya eram quase nulas.
- Podemos fazer um acordo, senhor Cross - disse Aleutian. - Sei que tem um carro lá fora. De outro modo, não teria conseguido chegar aqui tão depressa. Dê-me as
chaves e entrego-lhe esta rata loira. Parece-lhe uma troca justa?
As mãos de Hector não vacilaram. - Quem te contratou para matares a minha mulher? - perguntou-lhe.
- Não é esse o nosso acordo, senhor Cross. - É o único acordo possível, Aleutian. - Veja só o que fiz à sua amiguinha Victoria. Ficou sem as orelhas e sem as tripas.
Por favor, não me irrite.
Os olhos de Hector nem por um momento se desviaram na direção do corpo mutilado de Vicky. - Quero o nome - insistiu. - E eu quero continuar a viver. Nada de nomes.
- Posso esperar - disse Hector.
- Não creio - disse Aleutian. - Veja só isto. - Moveu a navalha por trás das costas de Nastiya e encostou a ponta ao trícípite exposto, trespassando-lhe depois lentamente
o braço com a lâmina comprida. O rosto de Nastiya contorceu-se de dor quando a ponta surgiu na parte frontal do bíceps.
- Estou bem, Hector - disse ela, mas a voz era rouca e os olhos denunciavam a sua agonia.
- Mas que valentona! - disse Aleutian, reconhecendo-lhe o estoicismo enquanto arrancava a lâmina. - A seguir é a perna - Espetou-lhe a navalha na coxa. Quando a
retirou, o sangue escuro brotou da ferida e pingou no soalho.
- Mata-o, Heck - urgiu Paddy. - A Hazel! - Com estas duas palavras, Hector justificou a sua relutância em disparar.
- Já não podes salvar a Hazel, mas podes salvar a Nazzy. Mata-o, por favor. - Paddy suplicava-lhe agora, e Hector nunca o tinha ouvido implorar antes. Mas Paddy
também nunca tinha sido obrigado a assistir, impotente, enquanto a mulher que adorava era cortada em pedaços.
Hector sabia que tinha de disparar. Também sabia que seria o tiro mais difícil que alguma vez disparara, e quais as consequências se falhasse.
No entanto, a pistola nas suas mãos era uma arma muito especial. Dave Imbiss tinha persuadido um mestre armeiro do exército a configurá-la segundo especificações
muito precisas. Primeiro, o armeiro obliterara os números de série, para eliminar qualquer registo escrito que associasse a pistola a Hector. Tinha polido a câmara
à mão, de modo a acomodar as balas na perfeição e evitar possíveis encravamentos. Inserira o cano numa máquina secreta da Divisão de Atiradores de Elite do Ministério
da Defesa dos Estados Unidos que tornara as estrias e os sulcos absolutamente perfeitos. Os projéteis também faziam parte de um lote especial. A balística era perfeita:
cada bala giraria através do cano e voaria em direção ao alvo numa trajetória idêntica, sem oscilações nem flutuações e com um desvio quase nulo. Por fim, a tosca
mira de ferro tinha sido substituída por uma ótica topo de gama. O resultado final era uma precisão refinada a milésimos de centímetro. Hector passara tantas horas
a praticar no campo de tiro que a pistola era quase uma extensão do seu próprio corpo.
Ademais, Aleutian era um animal selvagem encurralado e prestes a entrar em pânico. Já não estava a pensar como o assassino implacável que na verdade era. Estava
a cometer um pequeno erro. Começava a baloiçar a cabeça de forma ritmada, movendo-a de um lado para o outro com a cadência de um metrónomo. Aleutian estava a expor
a Hector um olho e cerca de quatro centímetros do lado direito da cabeça, a intervalos de dois segundos. Hector teria de fazer passar a bala a meros milímetros da
face de Nastiya.
Inspirou funda e lentamente e depois exalou com a mesma lentidão. Alinhou-se com o espaço contra o qual previa disparar. Exercia uma pressão tão leve com o dedo
sobre o gatilho que bastaria uma pluma para fazer disparar a arma. A sua concentração era tão intensa que tudo lhe pareceu abrandar e imobilizar-se num silêncio
total. A pistola disparou quase de moto-próprio. Hector teve a impressão de que uma força para lá da sua própria volição fizera o disparo. Viu um caracol de cabelo
loiro de Nastiya ser arrancado pela bala e a orelha estremecer assim que captou a turbulência causada
pela passagem do projétil, e depois viu o olho direito de Aleutian explodir numa rajada de massa gelatinosa pálida quando a bala o trespassou. A parte posterior
do crânio rebentou. A matéria cinzenta do cérebro esparrinhou a parede do corredor e Aleutian tombou pesadamente de costas. Os calcanhares tamborilaram em espasmos
sobre o soalho.
- Temos de pôr já torniquetes nas feridas dela, mas não toques em nada no quarto que possa deixar impressões digitais! - gritou Hector a Paddy enquanto se lançava
em frente. Nastiya deu um passo na direção dele e caiu assim que a perna ferida lhe cedeu sob o peso do corpo. Paddy amparou-a e deitou-a delicadamente no chão.
Hector avançou com rapidez para o local onde Aleutian estivera especado. Não precisava de se preocupar demasiado com possíveis impressões digitais nos cartuchos
usados. As únicas impressões que deixara foram nas partes externas da arma. Tirou do bolso um lenço de algodão e limpou meticulosamente a pistola, usando depois
o lenço como uma luva. Aproximou-se do local onde o corpo de Aleutian jazia de costas. Reparara na forma como ele empunhara a navalha e sabia que era destro. Ajoelhou-se
ao lado do corpo, pegou-lhe na mão direita inerte para lhe envolver os dedos à volta do cabo e pressionou-os contra o aço azulado. Depois fez o mesmo com a mão esquerda
de Aleutian sobre o ferrolho. Deteve-se por uns segundos para lhe examinar a tatuagem do Maalek no pulso e esboçou um esgar de fúria. Ajoelhado atrás de Aleutian,
com um dos braços envolvendo-lhe as axilas, pôs-se de pé lentamente enquanto lhe erguia o corpo.
- Baixa a cabeça, Paddy - advertiu. - Vou disparar mais um tiro. - Forçou o dedo inerte de Aleutian a premir o gatilho. A pistola disparou e a bala cravou-se na
parede do corredor, ao lado da porta da entrada. Depois largou o corpo de Aleutian e deixou-o tombar no chão sob o próprio peso.
Manteve-se ali especado por alguns segundos enquanto inspecionava a cena. Os ângulos estavam corretos. A mão direita de Aleutian estava agora coberta de pólvora
queimada. A equipa de especialistas forenses da polícia obteria um resultado positivo quando aplicasse o teste de parafina. O corpo de Aleutian tombara de forma
natural, com a navalha que usara contra Vicky caída sob ele. Era tudo muito convincente.
Afastou-se do corpo e acocorou-se ao lado de Paddy enquanto este se ocupava da perna de Nastiya. Paddy tinha arrancado um pedaço do cordão da cortina da janela na
parede ao fundo do corredor. Atara-o à volta da coxa de Nastiya, por cima da ferida, e apertava-o agora com força. O cordão enterrou-se gradualmente na carne e o
sangue que brotava da ferida começou a estancar. Hector usou o lenço como um torniquete no braço dela.
- Salvaste-lhe a vida. Não sei como te agradecer, Heck. - Paddy falou sem erguer a cabeça.
- Então não agradeças! - disse Hector. - Consigo fazer melhor do que o meu estúpido marido - disse Nastiya a Hector. - Assim que me conseguir pôr de pé, vou dar-te
uma beijoca enorme. - Estava muito pálida e a voz soava rouca, mas estava a sorrir.
- Vou ver se cumpres a palavra - advertiu-a ele. - Porque é que puseste o Aleutian a disparar um segundo tiro =esmo depois de morto? - perguntou Paddy.
- Para lhe deixar pólvora queimada nas mãos e as impressões na pistola - explicou Hector. - O que é que a polícia vai pensar quando encontrar esta enorme confusão
que fizemos? - perguntou Nastiya.
- Só nos resta esperar que pensem que o Aleutian matou a Vicky à navalhada na sequência de um arrufo de namorados, e que depois se matou, por remorso e medo das
consequências.
- E precisou de dois tiros para o fazer? - perguntou Paddy, incrédulo. - Só se tivesse uma pontaria mesmo muito má.
- Os suicidas costumam disparar primeiro um tiro para o ar para verificarem se a arma está funcional e ganharem coragem antes de dispararem o tiro mortal - explicou
Hector. - Acho que eliminámos todos os nossos rastos. Não deixámos nada aqui que possa conduzir a polícia a nós. Vamos mas é daqui pra fora.
Nastiya não emitiu nenhum som quando Paddy pegou nela e a carregou para fora do apartamento. Hector levantou-se e voltou para junto do local onde Vicky Vusamazulu
jazia. Mesmo para alguém como ele, habituado à morte em todas as suas versões mais hediondas, esta mutilação era doentia. Prestou-lhe alguns segundos de silêncio
respeitoso.
Era uma miúda parva. Mas não merecia acabar desta forma. Depois acercou-se de Aleutian e manteve-se especado sobre ele, de mãos enfiadas no bolso e olhos fixos na
cabeça despedaçada do assassino. O olho incólume parecia mirá-lo. Sentiu-se assaltado por ondas alternadas de raiva e desânimo. Raiva por aquilo que aquele homem
fizera a Hazel; desânimo pelo facto de a morte dele ter eliminado a única pista que poderia tê-lo conduzido ao covil da derradeira Besta.
Sabia agora que aquilo que o esperava era a verdadeira mãe de todos os becos sem saída. Virou costas e seguiu atrás de Paddy, em direção ao local onde deixara o
Q-car. A rua estava deserta.
Hector abriu a porta do condutor e enfiou-se atrás do volante. Paddy estava sentado no banco traseiro, abraçado a Nastiya, que continuava em silêncio e pálida. Hector
arrancou sem embalar o motor. Quando passaram pelos portões dos Jardins Botânicos. Hector voltou a falar.
- Bem, parece que tivemos sorte outra vez. Conseguimos escapar ilesos, à exceção da Nazzy. Estás a aguentar-te, czarina?
- Já estive pior, mas também já estive bem melhor - disse ela. - Para onde vamos?
- Vamos ver um homem que eu e o Paddy conhecemos bem - disse-lhe Hector enquanto estendia o iPhone por cima do ombro. - Toma lá o meu telemóvel, Paddy. Tens aí o
número do Doc Hogan na lista de contactos. Diz-lhe que estamos a caminho. Que dentro de hora e meia estamos lá.
Doc Hogan servira no Corpo Médico do Exército Real e tinha sido destacado para o regimento do SAE, o Serviço Aéreo Especial, no qual Hector prestara comissão. Quando
se aposentara instalara-se na quinta da família em Hampshire. No entanto, por trás da fachada de aristocrata rural, continuava a praticar medicina, embora de forma
oficiosa e em segredo. A sua especialidade era o tratamento de traumatismos. A sua reduzida e seleta lista de pacientes era composta por velhos amigos e camaradas
do exército que tinham sofrido contratempos menores como engravidar a mulher de outro homem ou serem esfaqueados, ou encontrarem-se descuidadamente na trajetória
de uma bala.
Paddy e Nastiya permaneceram durante dez dias como convidados de Doc Hogan, até ele lhes permitir apanharem o voo de regresso a Abu Zara no jato da Bannock Oil para
ela completar a convalescença.
As mortes de Aleutian e de Vicky Vusamazulu pouco interesse público despertaram. O incidente foi reportado como um ato de violência doméstica nas últimas páginas
de um boletim informativo local, mas nunca chegou aos canais noticiosos nem às emissões radiofónicas nacionais.
45
Agatha tinha aceitado a proposta de Hector de um emprego permanente e era agora a sua principal assistente pessoal, mas os seus poderes de persuasão tinham sido
postos à prova para a convencer a aceitar um aumento salarial.
"Não sei o que fazer com tanto dinheiro, senhor Cross." "Você é uma mulher inteligente, Agatha. Alguma ideia lhe ocorrerá", assegurara-lhe. "Mas vou precisar de
si em Abu Zara, para me ajudar com os negócios e com a Catherine Cayla. Talvez possamos regressar a Londres assim que o Fundo Fiduciário vender a casa de Belgravia
e arranjarmos outra residência."
Para além do facto de ela ser uma secretária muito dedicada e experiente, era também a maior perita mundial sobre o período da vida de Hazel antes de Hector casar
com ela. Dia após dia, Hector envolvia-a cada vez mais na pesquisa que estava a desenvolver sobre os registos acumulados por Hazel, para tentar identificar o inimigo
oculto no passado dela. Nesse sentido, os conselhos experientes de Agatha eram inestimáveis
Foi durante uma dessas longas conversas investigativas sobre a identidade do assassino que Agatha o lembrou da existência do enteado de Henry Bannock, o filho da
mulher que precedera Hazel nessa função. Chamava-se Carl e Henry a princípio acolhera-o de braços abertos na sua família. Providenciara-lhe a melhor educação e,
quando ele saiu da universidade, ofereceu-lhe um cargo muito bem remunerado na Bannock Oil. No entanto, a relação entre ambos rompera-se na sequência de um terrível
escândalo no seio da família que afetara Henry Bannock profundamente.
- Que escândalo foi esse, Agatha? - perguntou-lhe Hector. - Ouvi uns rumores quando comecei a trabalhar para a Bannock Oil. Mas nunca vim a saber de nenhum pormenor.
- Pouquíssimas pessoas sabiam. Foi muito antes do meu tempo. Mas só sei que o senhor Bannock tinha uma enorme vergonha de todo aquele sucedido. Nunca permitia que
ninguém falasse disso na casa dos Bannocks. Não havia nenhuma referência a isso nos seus registos pessoais; deve tê-los expurgado todos. Era como se aquilo nunca
tivesse acontecido. Ouvi dizer que o Carl Bannock foi libertado da prisão após cumprir uma sentença longa. Mas depois.. simplesmente desapareceu, até que o senhor
Bannock faleceu e a Hazel assumiu o cargo dele como diretora executiva. Depois, voltou a aparecer do nada e começou a importunar a Hazel. Não sei o que ele pretendia,
mas acho que estava a tentar chantageá-la. Acho que a obrigou a pagar-lhe uma enorme quantia de dinheiro. porque ele voltou a desaparecer de repente e nunca mais
ouvi falar dele. A Hazel chegou alguma vez a falar-lhe dele?
- Nunca. Nunca lhe perguntei e ela também nunca me falou dele. Eu sabia que havia um enorme segredo obscuro na família. mas nunca quis remexer em coisas antigas
e dolorosas associadas ao Henry Bannock, pois ela venerava-o - admitiu Hector. - Era como se esse sujeito, o Carl, nunca tivesse existido.
- De qualquer forma, não estou a ver como é que o Carl poderia estar implicado no homicídio da Hazel. Que ganharia ele ao matá-la, ou mandá-la matar? Já lhe tinha
conseguido sacar todo o dinheiro que podia.
- Também não consigo ver nenhum motivo, para além do simples desejo de vingança. Mas se a Hazel lhe tinha dado dinheiro para lhe comprar o silêncio, como você sugere,
por que razão voltaria ele após todos estes anos para a matar? Concordo que não faz sentido. Acho que devemos procurar o assassino dela noutro lugar qualquer. Mas
sem nunca nos esquecermos desse senhor Carl Bannock, embora o nome dele se encontre bem no fundo da lista de possíveis suspeitos.
46
Quando voltaram a instalar-se em Seascape Mansions, Hector e Agatha começaram a elaborar uma lista de possíveis vilãos, mas houvera tantas pessoas hostis na vida
de Hazel que a lista se alongou até atingir proporções que a tornavam impossível de gerir. Hector não podia viajar de um lado para o outro pelo globo para seguir
cada indício e eliminar da lista cada possível culpado. Por conseguinte, Agatha teve de procurar um conceituado detetive privado em cada um dos países por onde os
antigos inimigos de Hazel se encontravam atualmente dispersos. Hector contratou-os para efetuarem buscas nos seus países. Só quando o relatório de um desses detetives
contratados parecia relevante e promissor é que Hector viajava de jato para seguir o rasto de sangue pessoalmente.
Uma dessas viagens teve como destino a Colômbia, para investigar um famigerado barão da cocaína e do petróleo que outrora fizera negócios com a Bannock Oil, negócios
esses que tinham terminado em recriminações e raiva mútuas. Agatha recordava-se que o Senhor Bartolo Julio Alvarez chegara a proferir ameaças de morte e que se referia
em público a Hazel Bannock como uma Yanqui putain de bordel de merde. Para Hector, o sentido destas palavras era obscuro, mas Agatha explicou-lhe de bom grado que
significava algo como "uma senhora americana de virtude fácil que exerce o seu ofício numa casa de má reputação que foi erigida com excrementos."
- Que palavras pouco lisonjeiras - comentou Hector. - Acho que será melhor eu ir lá trocar uma palavrinha com ele.
Quando Hector chegou a Bogotá, descobriu que perdera, por uma semana, a oportunidade de assistir ao funeral do Señor Alvarez. Tinha sido despachado rumo à sua recompensa
celestial por seis tiros de uma submetralhadora Scorpion SA Vz. 61, disparados a uma distância de sessenta centímetros contra a parte posterior do crânio por um
guarda-costas da sua confiança que, segundo parecia, transferira recentemente a sua lealdade para o cabecilha de um cartel de cocaína rival.
Quando Hector regressou a Abu Zara, foi mais afortunado.
Nastiya já tinha recuperado o suficiente dos ferimentos para poder acompanhar Paddy ao aeroporto para recolher Hector.
- Nem imaginas o que aconteceu - disse-lhe Nastiya enquanto se abraçavam.
- Seja o que for, só pode ser coisa boa - respondeu Hector. - Estás a sorrir como uma idiota.
- A Catherine Cayla já sabe gatinhar! - Ela quê? - Já gatinha! Tu sabes, de mãos e joelhos no chão. Se continuar a este ritmo, estará apta a participar nos próximos
Jogos Olímpicos - disse Nastiya com orgulho.
- Parabéns, Heck! - Paddy riu-se. - Obrigado, Padraig. Pelos vistos, a minha filhinha é uma bebé prodígio. - Falou numa voz inchada de orgulho. - Tenho de ver isso
com os meus próprios olhos.
- O teu comité de receção espera ansiosamente pela tua chegada em Seascape Mansions. Aviso-te desde já que os preparativos foram bastante demorados - disse Paddy.
Subiram no elevador privado e, quando as portas se abriram, todo o pessoal doméstico estava alinhado no átrio, por baixo de uma rebuscada faixa pendurada de parede
a parede, com os seguintes dizeres numa brilhante tinta dourada: BEM-VINDO A CASA, PAPÁ! Ao fundo do átrio encontravam-se as fileiras dos empregados domésticos.
Os chefs envergavam impecáveis jaquetas brancas com os tradicionais chapéus altos. Os membros menos qualificados do pessoal doméstico vestiam uniformes lavados e
recém-engomados e as criadas usavam aventais brancos de folhos por cima das fardas azul-marinho. À frente deles perfilavam-se os operacionais de segurança nos seus
uniformes de gala, cintos de fivelas reluzentes e botas impecavelmente engraxadas. Na primeira fila estavam as três amas. Bonnie destacava-se no centro, segurando
Catherine Cayla-Bannock nos braços.
Catherine estava vestida com um babygro cor-de-rosa bordado e algumas melenas do seu macio cabelo loiro tinham sido unidas para segurar um enorme laço, também cor-de-rosa.
O grupo desatou a aplaudir assim que Hector saiu do elevador. Catherine girou a cabecita, olhando para todos com espanto, e depois os seus olhos fixaram-se em Hector
quando ele se aproximou. Hector reparou que os olhos dela tinham mudado de cor. Exibiam agora uma tonalidade azul mais carregada e mais brilhante. Eram os olhos
de Hazel. O seu olhar era constante e focado e Hector deu-se conta de que ela estava a vê-lo, possivelmente pela primeira vez. Hector parou à frente dela e a bebé
enfiou os pequenos polegares na boca, fixando-se nele com um olhar sério.
- És tão linda - disse-lhe. - És tão linda como a tua mãe.
- Estendeu os braços para ela e sorriu. - Posso pegar em ti, posso?
Sabia que ela ainda era demasiado pequena para se lembrar dele ou o reconhecer. Tinham-lhe dito que isso só aconteceria quando ela fizesse um ano. Mas continuou
a sorrir-lhe e a olhá-la nos olhos.
Viu os pensamentos dela aflorarem à superfície como belos peixinhos num fundo lago azul. De repente, ela imitou-lhe o sorriso e estendeu os bracinhos para ele, inclinando-se
para a frente nos braços de Bonnie e agitando-se com tal vigor que a ama quase a deixou cair. Pro diabo com os especialistas!, pensou ele com grande alegria. Ela
reconhece-me mesmo!
Pegou nela e Catherine sentou-se direita na curva do braço dele. Era leve e macia e cheirava a leite. Beijou-lhe o cocuruto e ela disse claramente: - Ba! Ba!
- Queremos dizer "papá" - traduziu Bonnie. - Temos estado a trabalhar nisto, mas é uma palavra muito difícil para nós.
Hector levou Catherine para o quarto de criança e as três amas seguiram-no em grupo. Deitou-a no centro do soalho e afastou-se para junto da porta.
- Muito bem, minha coisinha linda - disse-lhe. - Quero ver-te gatinhar. - Bateu as mãos. - Anda cá, Cathy. Anda aqui ao Ba-Ba, minha filhinha!
A bebé rolou até ficar de barriga, apoiou-se nas mãos e nos joelhos e lançou-se para ele num gatinhar veloz. Quando o alcançou. agarrou-se com ambas as mãos a uma
das pernas das calças dele e tentou levantar-se. Caiu para trás sobre o traseiro protegido pela fralda e as três amas irromperam em gritinhos excitados:
- Viram aquilo? - Ela tentou erguer-se nas duas perninhas! - Ela nunca fez isto antes! Era a hora de a alimentar e Hector fez a sua parte, dando-lhe colheradas de
papa de carne de frango e abóbora. A maior parte da papa acabava por lhe escorrer da boca para o queixo, sujando-lhe o babete e a parte da frente da camisa de Hector.
Enquanto ela engolia a última colherada, os seus olhos fecharam-se, o queixo tombou-lhe sobre o peito e adormeceu prontamente na cadeirinha.
Hector exercitou-se no ginásio durante duas horas enquanto Catherine dormia a sesta; depois calçou as sapatilhas de correr, pegou no marsúpio e foi buscar a bebé.
Quando Catherine viu o marsúpio, agitou as perninhas e emitiu sons de contentamento.
Hector correu ao longo da marginal quase deserta, seguido a uma distância discreta por dois dos melhores homens de Dave Imbiss. Hector cantarolou para a bebé e fez-lhe
caretas que a punham a rir. Catherine explorou a cara dele. Enfiava os dedos rechonchudos e rosados na boca dele para ver de onde vinham aqueles sons estranhos e
tentava imitá-los. Soprou bolinhas de saliva e deu gargalhadas.
A bebé mitigava-lhe a solidão. Já não lhe doía tanto quando pensava em Hazel.
Mas muito em breve teria de voltar a Londres.
47
Contra todas as expectativas, o agente imobiliário tinha encontrado um comprador para a casa de Belgravia. Em nome dos mandatários do Fundo Fiduciário, Ronnie Bunter
pedira a Hector que supervisionasse a transação. Por conseguinte, teria de estar presente quando a empresa de mudanças transportasse o conteúdo da enorme casa. O
comprador era um magnata indiano da indústria do aço. Ia oferecê-la a um dos seus filhos como prenda de casamento. Hector conseguiu vender-lhe a maior parte do mobiliário
da grandiosa mansão. Enviou para a Sotheby's as antiguidades e as obras de arte que Hazel acumulara, para serem vendidas em leilão, e sentiu um alívio quase físico
quando a última das furgonetas das mudanças, sobrecarregada, arrancou pela rampa da entrada.
O astuto agente imobiliário tinha uma lista de doze possíveis substitutos para o nº 11 de Belgravia. Levou Hector numa visita guiada. A terceira hipótese da lista
era uma encantadora casa de cavalariça em Mayfair. Tinha sido completamente renovada e a pintura ainda mal secara nas paredes. Incluía todas as divisões de uso comum,
quatro suítes espaçosas, garagem subterrânea com capacidade para três veículos e alojamento na cave para cinco empregados domésticos. Hector demorou quarenta e cinco
minutos a tomar a decisão de a comprar.
Enquanto assinava os documentos de aquisição do nº 4 de Lowndes Mews, em Mayfair, escolhera já um nome para a nova casa que partilharia com Catherine: "The Cross
Roads". A nova residência ocupava uma área de superfície cerca de vinte por cento superior à da mansão de Belgravia.
Contratou a sua habitual firma de designers de interiores e deu-lhes um prazo-limite de seis semanas para terem a propriedade completamente mobilada e pronta a habitar.
Começou a sentir, por fim, que tinha conseguido deixar o passado para trás e que estava pronto para recomeçar a viver a sua própria vida.
Nota de Rodapé: "The Cross Roads": trata-se, obviamente de uma referência ao apelido "Cross", e a expressão pode ser traduzida como "as estradas/ os caminhos dos
Cross", mas também como "as encruzilhadas".
Fim da Nota.48
O julgamento no principal tribunal criminal de Londres dos dois delinquentes que tinham incendiado e destruído Brandon Hall iria decorrer algumas semanas mais tarde.
Durou seis dias.
Entre os três, Nastiya, Paddy e Hector passaram dois desses dias no banco das testemunhas, e os seus depoimentos, juntamente com o de Paul Stowe, o couteiro-mor,
foram esmagadores.
O júri voltou das suas deliberações apenas duas horas e meia depois, com o veredito de "culpados de todas as acusações".
Quando a lista das condenações anteriores foi lida em voz alta, o juiz decidiu aplicar aos acusados a pena máxima prevista por lei. Condenou cada um deles a vinte
e dois anos de prisão e ordenou que cumprissem um mínimo de dezanove anos das suas penas.
Tinham tentado matar Catherine Cayla pelas chamas e Hector só se sentiu parcialmente aplacado pela severidade da sentença. Consolou-se com a ideia de que, dada a
abolição da pena de morte no Reino Unido, era a punição máxima que as brandas leis atuais permitiam.
49
Quando os três regressaram a Abu Zara no jato, Paul Stowe acompanhou-os a convite de Hector. Já não precisava de um couteiro-mor em Brandon Hall, mas, como Paul
era um elemento demasiado válido para o perder, Hector arranjou-lhe um novo emprego na Cross Bow Security.
Hector pôde dedicar-se a Catherine e a seguir o rasto de registos escritos que esperava que o conduzissem ao misterioso assassino.
No entanto, as dúvidas começavam a acumular-se nos recantos da sua mente. A lista de suspeitos estava a reduzir-se rapidamente à medida que recebia os relatórios
negativos dos seus agentes no terreno. Começou a ser assaltado por uma sensação de impotência e incapacidade, dois sentimentos aos quais não estava habituado.
Tentou combater estas mudanças de humor por via de pesado exercício físico e passando horas no campo de tiro. Também pôde contar com a distração de viajar para os
Estados Unidos para participar na assembleia geral anual da Bannock Oil, Inc., da qual continuava a ser um dos diretores.
Depois, os seus designers de interiores em Londres informaram-no de que tinham concluído a decoração da casa The Cross Roads em Lowndes Mews com apenas cinco dias
de atraso em relação ao prazo-limite que ele estipulara.
Foi com alívio que regressou ao bulício e à agitação de Londres.
50
O decorador de interiores e dois dos seus assistentes mostraram a Hector a casa The Cross Roads. Nenhum detalhe fora descurado. A paleta de cores dominante que Hector
escolhera era de azuis e amarelos claros, com tons de castanho para contrabalançar. Era um ambiente acolhedor, funcional e masculino.
A sua equipa de empregados domésticos, cuidadosamente selecionados entre o seu pessoal da casa de Belgravia e de Brandon Hall, já se instalara nos seus alojamentos.
Cynthia, a chef, estava na cozinha, ocupada com as suas panelas e tachos.
Dois novos automóveis de carroçarias imaculadas, um Bentley Continental e um Range Rover, estavam estacionados na garagem subterrânea.
O bar e a adega estavam abastecidos com os seus vinhos e licores preferidos.
No seu estúdio, a iluminação era agradável aos olhos e tinha o computador ligado à rede.
A suíte principal era uma obra de arte, com uma cama gigantesca, preparada com os seus edredões de seda favoritos. Havia uma reluzente casa de banho masculina de
azulejos brancos, contígua a uma casa de banho feminina de um rosa suave, equipada, evidentemente, com um bidé. Os seus fatos e camisas tinham sido passados a ferro
e estavam pendurados no principal quarto de vestir. Os seus sapatos estavam guardados nas prateleiras, engraxados na perfeição.
Do outro lado do corredor ficava a suíte de criança de Catherine Antes de se mudar, Hector chamara Dave Imbiss de Abu Zara com a sua caixa de engenhos eletrónicos.
Dave varreu a casa a pente fino, desde a cave até ao telhado do sótão, e anunciou que estava livre de escutas ou de quaisquer outros dispositivos de vigia.
Hector decidira que, de futuro, viveria entre The Cross Roads. em Londres, e Seascape Mansions, em Abu Zara, passando dez dias alternados em cada um desses lugares.
Desse modo, poderia deleitar-se tanto com a agitação da metrópole como com a tranquilidade do reino do deserto.
Na primeira noite que passou em The Cross Roads, convidou três dos seus velhos companheiros de armas dos tempos da sua comissão no Serviço Aéreo Especial, e as respetivas
mulheres, para jantarem com ele. Foi uma noite de ameno convívio e só caiu na cama bastante depois da meia-noite.
51
Na manhã seguinte, quando saía do duche, o seu telemóvel tocou. Secou a mão direita na toalha, sacudiu a água do cabelo molhado e agarrou no telemóvel pousado no
lavatório.
- Cross! - atendeu, contrariado. Ainda lhe doía um pouco a cabeça da diversão da noite anterior.
- Oh, espero não estar a incomodá-lo, senhor Cross - disse uma voz feminina.
- Jo? - perguntou ele numa voz hesitante. - Jo Stanley, não é? Ou deveria tratá-la por menina Stanley? - Sabia que era ela, claro. Há quase um ano que os acordes
musicais daquela voz lhe ecoavam suavemente nos remansos da memória.
- Jo soa-me melhor do que a sua segunda hipótese, Hector. - Que grande surpresa. Onde está? Não estará em Inglaterra por algum estranho acaso?
- Sim, estou em Londres. Cheguei ontem à noite, bastante tarde.
- Está no Ritz, como da outra vez? - Não, Santo Deus! - Hector sorriu ao ouvir aquela expressão. Era tão antiquada. - Não me posso dar ao luxo desse tipo de extravagância.
- Pode, sim, se depois enviar a conta ao Ronnie Bunter - sugeriu.
- Já não trabalho mais para o senhor Bunter - disse ela, apanhando-o de surpresa.
- Então para quem trabalha agora? - Para usar um eufemismo muito batido, neste momento estou em fase de transição profissional. - Voltou a surpreendê-lo.
- E o que a traz a Londres? - Vim vê-lo, Hector. - Não posso acreditar nisso. Porquê eu? - É complicado. Além do mais, há formas melhores e mais seguras de discutirmos
isto do que ao telemóvel.
- Na sua casa ou na minha? - perguntou ele, e ela voltou a rir-se. Era um som que agradava a Hector.
- Seria um atrevimento se lhe dissesse na sua? - Nunca chegaríamos a nenhum lado se nunca nos atrevêssemos. Onde a posso encontrar? Onde está hospedada?
- Num hotelzinho bastante simpático e com um nome também simpático, mesmo ao fundo de Chelsea Green.
- Qual é o nome? - Chama-se My Hotel. - Muito bem, sei qual é. Apanho-a aí na entrada principal dentro de quarenta e cinco minutos. Vou num... - Num Bentley prateado,
com a matrícula CRO 55, correto - Um palpite quase acertado, menina Stanley - riu-se. - Mas essa era a minha lata velha. A nova carripana é preta. Mas a matrícula
continua a ser a mesma.
- Santo Deus! Só os anjos conseguem perceber a fixação dos homens pelos carros.
52
Jo estava especada à entrada do hotel. Vestia calças de ganga e um anoraque ligeiro, de cor azul, por cima de uma camisola de gola alta de malha branca em cabo trançado,
e segurava uma pasta de couro. Tinha mudado de penteado e usava agora o cabelo preso num puxo e com franjas. Ficava-lhe ainda melhor, pois dava a impressão de lhe
alongar mais o pescoço, fazendo-o parecer-se com o de um cisne. Tinha-se esquecido de como ela era alta e realmente elegante, mesmo em calças de ganga.
Quando lhe abriu a porta do lugar do passageiro, Jo enfiou-se no banco e apertou o cinto antes de se virar para ele.
- Não preciso de lhe perguntar como tem passado. Está com muito bom aspeto, Hector.
- Obrigado. E a Jo também está com excelente aspeto. Bem-vinda a Londres.
- Como está a Catherine Cayla? - Agora tocou no meu ponto fraco. Podia falar dela o dia todo. A Catherine Cayla é para lá de maravilhosa.
- Esqueça as minudências e conte-me as coisas importantes. - Tem olhos azuis e já sabe gatinhar. Até consegue dizer papá, só que o pronuncia como "Ba Ba", o que
prova, para lá de qualquer dúvida, que ela é um prodígio.
- Acha que alguma vez terei a oportunidade de a conhecer? - Ora aí está uma ideia magnífica.
Depois de estacionarem no pátio no exterior de The Cross Roads, Hector pegou na pasta dela e acompanhou-a ao vestíbulo da entrada. Jo olhou à sua volta, para a ampla
escadaria circular e para as portas abertas da sala de estar.
- Que acolhedor - comentou num tom aprovador. - Muito acolhedor. Ótimo gosto, Hector. Aquilo ali é um Paul Gauguin autêntico? - Indicou a enorme pintura a óleo na
parede ao fundo da sala de estar. - Antes fosse! A Hazel mandou fazer cópias de toda a sua coleção de arte para poder guardar os originais num depósito seguro sem
precisar de pagar um seguro exorbitante. Deve-se lembrar de que os originais pertenciam todos ao Fundo Fiduciário. Conserve: esta cópia em memória da Hazel. - Ficou
surpreendido ao constatar a facilidade com que agora conseguia falar de Hazel, com prazer e não com dor.
Pousou a pasta dela e ajudou-a a tirar o anoraque. Especado ao lado dela, recordou-se do seu perfume quando se tinham conhecido: Chanel Nº 22 - perfeito para ela.
- Se lhe parecer bem, podemos trabalhar no meu estúdio. Suponho que viemos aqui para trabalhar e não para nos pormos a admirar as minhas falsas obras-primas, não
é?
Ela riu-se baixinho. - Supôs bem. - Gostou da forma como ele admitiu prontamente que alguns dos seus quadros eram cópias. Era a confirmação daquilo que já suspeitava
quando o conhecera: Hector era um homem direto e sincero, sem arrogância nem presunção. Um homem no qual uma mulher podia confiar, e do qual os homens maus faziam
bem em afastar-se.
Hector tomou-lhe o cotovelo para a ajudar a subir as escadas. O estúdio exibia uma atmosfera muito masculina. Mas ela nunca esperara uma coleção tão grande de livros.
O soalho estava coberto com tapetes persas de cores e padrões agradáveis. A escrivaninha de teca esculpida dominava a divisão espaçosa. Na parede do fundo estava
pendurado um retrato a óleo de Hazel, especada num campo de trigo dourado e segurando na mão um chapéu de palha de aba larga. Com a outra mão protegia os olhos do
sol e estava a rir. O cabelo era de um dourado mais escuro que o trigo e esvoaçava ao vento. Jo baixou o olhar; sentiu uma estranha emoção que não conseguia definir.
Não sabia se era inveja ou admiração, ou compaixão.
Hector pousou a pasta dela na comprida e antiga mesa de Biblioteca e deu uma palmadinha na poltrona de couro capitoné. - É o assento mais confortável aqui no estúdio.
- Obrigada - disse ela. Mas, em vez de se sentar de imediato, deambulou ao longo das estantes enquanto examinava a coleção dele. - Quer alguma coisa para beber ou
comer? - perguntou-lhe. - Estou mortinha por tomar uma chávena de café. - A morte não é para aqui chamada - disse, acercando-se da máquina de café Nespresso escondida
atrás de um antigo biombo chinês no canto. - Nunca deixo que sejam os outros a prepararem-me o café - explicou. - Nem sequer a minha chef Cynthia.
Jo sentou-se por fim na poltrona que Hector lhe indicara e ele colocou as chávenas em cima da mesa ao lado dela. Sentou-se na sua própria poltrona atrás da escrivaninha.
- Temos assuntos muito delicados a discutir. Podemos fazê-lo aqui em segurança? - perguntou ela baixinho.
- Não precisa de se preocupar, Jo. Pedi a uma pessoa da minha absoluta confiança que fizesse uma revista minuciosa a toda a casa.
- Peço desculpa por ter perguntado. Sei que você é um profissional, Hector. - Ele inclinou a cabeça num gesto de aceitação da desculpa e ela prosseguiu: - Vim durante
toda a viagem sobre o Atlântico a pensar na melhor forma de lhe explicar tudo isto. Decidi que a única maneira era começar pelo princípio.
- Parece-me ser a solução mais lógica - concordou. - É por isso mesmo que vou começar pelo fim. - Agora que penso nisso, também me parece muito lógico,
mas só para quem é mulher, claro.
Ela não fez caso do sarcasmo. A sua expressão começou a alterar-se. O entusiasmo e a desenvoltura esmoreceram. Os olhos encantadores encheram-se de sombras.
Hector desejou desesperadamente ajudá-la, mas apercebeu-se de que a melhor forma de o fazer era continuar em silêncio e ouvi-la. Ela falou por fim.
- O Ronald Bunter é um excelente advogado e um homem honesto e de princípios nobres. Mas, como principal mandatário do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock,
teve de enfrentar uma decisão terrível. Teve de decidir se deveria trair a sua ética profissional ou as vidas de inocentes confiados ao seu cuidado.
Calou-se e Hector percebeu, por um rasgo de intuição, que ela se vira confrontada com a mesma terrível decisão.
Ela suspirou, e foi um som pungente. Pousou a mão na pasta e disse: - Tenho aqui dentro uma cópia digital da escritura do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Roubei-a da firma de advogados à qual jurei fidelidade. O Ronald Bunter deu-me uma cópia das chaves e os códigos para eu poder entrar na casa-forte enquanto o edifício
estava deserto, e ajudou-me a não ser descoberta. Foi meu cúmplice. Só cometemos este ato depois de uma longa e profunda discussão e reflexão. Mas, no final, decidimos
que a justiça era mais importante que a estrita letra da lei. É algo quase inaceitável para um advogado. Ainda assim, quando terminei aquilo que me dispus a fazer,
senti que era meu dever, perante Deus e a minha própria consciência, demitir-me da firma cuja confiança tinha traído de forma tão lamentável.
Hector deu-se conta de que tinha estado a suster a respiração enquanto a ouvia. Soltou um suspiro longo e quase inaudível e disse: - Se pensa fazer isso por mim,
não posso permitir que o faça. É um sacrifício demasiado grande.
- Já o fiz - disse ela. - Agora já não posso voltar atrás. É demasiado tarde. Além do mais, foi a decisão mais correta. Por favor, não me tente convencer do contrário.
Encare isto como uma prenda para si e para a Catherine Cayla.
- Já que coloca as coisas nesses termos, não me resta outra opção senão aceitar. Obrigado, Jo. Verá que não somos nenhuns ingratos. - Eu sei que não. - Baixou o
olhar e fixou-o nas mãos enlaçadas no regaço. Quando voltou a olhar para ele, recuperara por completo o controlo das emoções.
- A escritura do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock redigiu é uma monstruosidade de trezentas páginas. Levaria uma eternidade a lê-la até ao fim, porque cairia
logo de sono a cada duas ou três páginas lidas.
Abriu a pasta e tirou duas pequenas pens. Sopesou-as na mão, como se estivesse relutante em lhas entregar.
- O que fiz foi preparar-lhe uma cópia digital da escritura original do Fundo Fiduciário. - Pousou uma das pens à frente dele na escrivaninha. - Depois, nesta segunda
pen, expus os antecedentes e a história que levaram à formação do Fundo Fiduciário que o Henry Bannock criou, bem como a reação em cadeia que esse ato desencadeou
posteriormente. Com a cooperação total do Ronnie Bunter, acho que consegui organizar os factos numa espécie de ordem lógica e coerente e de leitura fácil. Suponho
que sempre existiu em mim uma forte ambição de um dia vir a ser escritora, porque dei por mim muito envolvida neste processo. - Sorriu de forma autodepreciativa.
- Seja como for, ofereço-lhe a minha primeira tentativa no campo da literatura. Não é nenhum romance, nem sequer uma novela, porque tudo aquilo que contém é factual.
Levantou-se e pousou a segunda pen ao lado da primeira à frente dele na escrivaninha. Hector agarrou nela e examinou-a com curiosidade. Jo voltou a sentar-se e observou-o.
Ele estendeu o braço sobre a escrivaninha e inseriu a pen no computador.
- Está em formato Word - disse Jo. - Está a abrir sem problemas - replicou ele. - Mas agora está a pedir uma palavra-passe.
- É sementeenvenenada7805 - disse ela. - Tudo em minúsculas e tudo junto.
- Já está. Aqui vamos. Está a abrir. - Leu em voz alta o título do cabeçalho do documento: - "Karl Pieter Kurtmeyer: A Semente Envenenada".
- Espero que ache o conteúdo mais interessante do que aquilo que o título dá a entender - disse Jo.
- Vou começar a ler já, mas parece-me que vai demorar umas horas, ou mesmo dias. Há alguma coisa que eu possa fazer para a entreter nesse entretanto? Gostaria de
ler um livro ou ver televisão, ou dar um passeio para ver as vistas ou ir às compras? Londres é uma cidade com muita diversão.
- Sinto-me exausta por causa do jetlag. - Ocultou o bocejo por trás da mão. - Não preguei olho durante aquela viagem horrível em classe turística. Já para não falar
da turbulência e da mulher obesa sentada ao meu lado que não parava de ressonar como uma leoa furiosa e transbordava do assento dela para o meu. Não consegui pregar
olho.
- Coitada! - Levantou-se. - Não se preocupe. O problema resolve-se facilmente. Siga-me. - Levou-a para a suíte de hóspedes.
Quando ela reparou na cama, sorriu. - Já vi campos de polo mais pequenos do que isto.
Ficou também impressionada com a casa de banho. Hector levou-a de volta para o quarto principal e disse-lhe: - Os roupões estão no guarda-roupa. Escolha o que quiser,
depois feche a porta e diga adeus a este mundo cruel durante o tempo que achar necessário.
Voltou para o estúdio. Sentou-se à frente do computador e começou a ler a primeira página de "A Semente Envenenada".
Aquelas que impusera aos homens, mulheres e crianças judeus no campo de concentração.
Marlene Imelda deu por si viúva na tenra idade dos vinte e um anos.
Quando o património de Heinrich foi avaliado para fins fiscais, descobriu-se que tinha outro vício secreto, bastante diferente do de chacinar judeus indefesos: fora
um apostador compulsivo. Contrariamente àquilo que a maior parte das pessoas de Dusseldórfia acreditava, Heinrich não era um homem abastado. Tinha dilapidado a sua
fortuna. Marlene Imelda e o filho de tenra idade ficaram quase na miséria.
No entanto, ela era jovem, bela e expedita. Sabia onde o dinheiro estava. Emigrou para os Estados Unidos da América e, poucos meses após a sua chegada, já tinha
arranjado emprego como secretária assistente de uma emergente companhia de exploração petrolífera sediada em Houston.
O fundador e proprietário da companhia era um homem chamado Henry Bannock. Era uma personagem bem-parecida, exuberante e impressionante. No aspeto, fazia lembrar
John Wayne, com um toque de Burt Lancaster. Na sua juventude, tinha pilotado caças de combate F-86 Sabre na Coreia e foram-lhe creditados oficialmente seis abates.
Mais tarde, fundara no Alasca a sua própria companhia de voos chárter, à qual chamara Bannock Air. Fretara muitos voos para as grandes companhias de exploração petrolífera
e, no decurso dessas atividades comerciais, conhecera muitos executivos de topo, os quais o iniciaram nos segredos do ofício e lhe facilitaram a entrada no mundo
da exploração petrolífera. Pouco depois, tinha adquirido várias concessões de perfuração. Um pouco antes de Marlene Imelda ter ido trabalhar para a Bannock Oil,
Henry tinha comprado o seu primeiro campo de petróleo na Encosta Norte do Alasca, de modo que já era um multimilionário.
Marlene tinha vinte e poucos anos e era ainda mais bela do que fora aos dezanove anos, quando conhecera Heinrich. Sabia como agradar a um homem, tanto na cama como
fora dela. E agradou desmesuradamente a Henry Bannock. O facto de ela já ter um filho jovem tornava-a ainda mais desejável aos seus olhos.
Karl Pieter Kurtmeyer herdara a beleza da mãe. Era até ainda mais bem-parecido do que ela. Tinha cabelo loiro espesso, queixo saliente e uma pequena dobra epicântica
nas pálpebras que lhe conferia um ar misterioso e pensativo. Esta imperfeição menor parecia realçar-lhe a perfeição dos outros traços faciais.
Karl era inteligente e eloquente. Mesmo naquela tenra idade, já falava espanhol, francês, alemão e inglês. As suas notas na escola eram invariavelmente excelentes.
Henry ficava impressionado com pessoas bem-parecidas que também eram inteligentes e dóceis. Karl tinha todos estes atributos, à semelhança da mãe.
Quando Henry Bannock casou com Marlene Imelda, adotou Karl formalmente e mudou-lhe o nome para Carl Peter Bannock, abandonando assim a grafia teutónica dos seus
nomes de batismo. Graças aos seus contactos, Henry conseguiu inscrever Carl na Escola Primária de St. Michael, uma das escolas privadas mais prestigiadas do Estado
do Texas. Carl brilhou aí. Foi sempre um dos três melhores alunos da turma e fazia parte das equipas de futebol americano e de basquetebol da escola.
Em casa, Marlene Imelda demonstrou que Henry não era infértil, como proclamavam os rumores dos seus muitos inimigos. Pouco depois do casamento, deu à luz uma menina
com três quilos e dezoito gramas. Tal como a mãe, Sacha Jean era uma beldade excecional. Também era uma criança doce e sensível, com dotes musicais. Começou a aprender
piano aos três anos, e aos sete já conseguia executar mesmo as composições mais tecnicamente exigentes do repertório clássico padrão, como o Concerto para Piano
nº 3 de Rachmaninov. Adorava o seu irmão Carl.
Sacha tinha quase nove anos de idade quando Carl a forçou a ter sexo com penetração completa. Andara a prepará-la para esse efeito ao longo dos seis meses anteriores,
convencendo-a a acariciar-lhe os genitais quando estavam sozinhos. Carl tinha treze anos e tivera um desenvolvimento sexual precoce. Ensinou Sacha a manusear-lhe
o pénis, segurando-o na mão e movendo-o para trás e para a frente até ele ejacular. Carl era paciente e amável com ela, dizendo-lhe o quanto a amava e que ela era
esperta e bonita e lhe agradava imenso. Na sua inocência, Sacha via naqueles jogos um precioso segredo entre os dois, e ela gostava imenso de segredos.
O local preferido de Carl para ter relações íntimas com ela eram os vestiários da piscina, nos jardins de cinco hectares da residência da família. A melhor altura
era quando o pai se ausentava em negócios no Alasca e a mãe se retirava para repousar após o almoço. Marlene adquirira o hábito de tomar três ou mais cocktails de
gim e lima à hora do almoço e os passos vacilavam-lhe quando se levantava da mesa e se retirava para o quarto. Era nessa altura que Carl levava Sacha para a piscina.
Da primeira vez que Carl ejaculou dentro da boca dela, Sacha foi completamente apanhada de surpresa. Ficou enojada com o sabor do esperma e chorou, dizendo-lhe que
já não queria brincar mais com ele. Carl deu-lhe um beijo e disse que não fazia mal se ela já não o amava, mas que ele continuava a amá-la. No entanto não se comportava
como se ainda a amasse. Nas semanas seguintes, mostrou-se muito distante e dizia-lhe coisas maldosas e odiosas. No final, foi ela própria quem acabou por sugerir
que deviam ir nadar juntos após o almoço. Não tardou a habituar-se ao sabor. Mas depois, às vezes ele forçava o pénis demasiado fundo na sua garganta e à noite ela
chorava durante o sono. A única coisa que importava era que o irmão voltara a amá-la.
Certa tarde, Carl obrigou-a a tirar as cuecas. Sentou-se no banco à frente dela e tocou-lhe nos genitais. Sacha fechou os olhos e tentou não estremecer e esquivar-se
quando ele lhe enfiou o dedo. No final, ele levantou-se e ejaculou em cima da barriga dela. Depois, disse-lhe que ela estava nojenta e que devia limpar-se e não
contar a ninguém. E levantou-se sem lhe dirigir mais nenhuma palavra.
Sacha não quis jantar nessa noite. A mãe deu-lhe duas colheres de óleo de rícino e não a deixou ir à escola no dia seguinte.
Três semanas antes da festa do seu nono aniversário, Carl entrou no quarto de Sacha quando a casa estava em silêncio. Tirou as calças do pijama e enfiou-se na cama
com ela. Quando a penetrou, foi tão doloroso que ela gritou, mas ninguém a ouviu.
Depois de ele voltar para o seu próprio quarto, Sacha descobriu que estava a sangrar. Sentou-se na sanita, a ouvir o sangue pingar na água. Sentia demasiada vergonha
de si mesma para chamar a mãe. De qualquer modo, sabia que a mãe estava trancada no quarto e que nunca lhe abriria a porta, por mais que ela batesse ou implorasse.
Pouco depois, a hemorragia parou e Sacha enfiou a camisa de noite entre as pernas. Avançou a coxear até ao fundo do corredor e tirou um lençol lavado do armário
da roupa de cama para substituir o que estava manchado de sangue. Depois, seguiu de modos furtivos para a cozinha vazia, onde enfiou o pijama e o lençol sujos num
saco do lixo que depois depositou no caixote do lixo.
No dia seguinte, verificou que toda a gente na escola a olhava fixamente. Costumava ser uma das melhores alunas a matemática, mas nesse dia não conseguiu encontrar
a solução para nenhuma das questões do teste. A professora chamou-a no final da aula e repreendeu-a pelo seu fraco desempenho.
"Que se passa contigo, Sacha?" Atirou a folha do teste para cima da secretária à sua frente. "Isto nem parece nada teu."
Sacha não foi capaz de responder. Voltou para casa e roubou uma das lâminas de barbear da casa de banho do pai. Foi para a sua própria casa de banho e cortou ambos
os pulsos. Uma das criadas viu o sangue escorrer por baixo da porta e correu aos gritos para a cozinha.
Os outros criados arrombaram a porta e depararam com ela. Chamaram uma ambulância. Os cortes que ela infligira nos pulsos não eram suficientemente fundos para porem
a sua vida em risco.
Marlene manteve-a em casa e não a deixou ir à escola durante três semanas. Quando Sacha regressou às aulas, disse à sua professora de música que nunca mais voltaria
a tocar piano. Recusou-se a participar no sarau musical que estava programado para a sexta-feira seguinte. Alguns dias mais tarde, cortou todo o cabelo com um par
de tesouras e esfacelou a cara com as unhas até fazer sangue, pois convencera-se de que tinha a pele coberta de pústulas de acne. Os seus traços faciais tornaram-se
macilentos e os seus modos, furtivos e nervosos. Os olhos pareciam assombrados. Deixara de ser bonita. Carl disse-lhe que era feia e que já não queria brincar mais
com ela.
Um mês depois, Sacha fugiu de casa. A polícia encontrou-a oito dias mais tarde, em Albuquerque, no Novo México, e levou-a para casa. Poucos meses depois, voltou
a fugir. Dessa vez, conseguiu chegar à Califórnia antes que a polícia a encontrasse.
Quando a obrigaram a voltar às aulas, ateou fogo às salas de música. As chamas destruíram toda essa ala da escola, com danos que ascenderam a vários milhões de dólares.
Após um prolongado e minucioso exame médico, Sacha foi enviada para o Hospital Psiquiátrico de Nine Elms, em Pasadena, onde iniciou um demorado e complicado programa
de tratamento e reabilitação. Nem uma única vez alguém suspeitou que ela tivesse sofrido qualquer tipo de abuso. Parecia que a própria Sacha expurgara por completo
esses incidentes da memória.
Começou a ganhar peso com rapidez. Num espaço de seis meses, o seu corpo ficou disforme e tornou-se clinicamente obesa. Usava sempre o cabelo cortado muito rente.
Os olhos tornaram-se mortiços e estupidificados e roía as unhas até ao sabugo, ao ponto de as extremidades dos dedos se deformarem e parecerem tocos. Chuchava no
polegar de modo quase contínuo. Tornou-se cada vez mais nervosa e muito agressiva. Atacava as enfermeiras e outros pacientes à mínima provocação. Mostrava, em particular
um antagonismo violento contra qualquer enfermeira que tentasse questioná-la acerca do seu relacionamento com a família. Sofria de insónias e começou a ter episódios
de sonambulismo.
Quando a família foi autorizada a visitá-la pela primeira vez desde que fora internada, Sacha mostrou-se soturna e fechada. Respondia às perguntas dos pais com grunhidos
animalescos e monossílabos resmoneados. Não reconheceu o irmão que outrora tanto amara.
- Não vais dizer olá ao Carl Peter, querida? - repreendeu-a a mãe num tom gentil. Sacha desviou os olhos.
- Mas ele é teu irmão, querida Sacha - insistiu Marlene. Sacha revelou uma pequena centelha de agitação. - Não tenho nenhum irmão - disse, usando uma frase completa
pela primeira vez, mas sem em momento algum levantar o olhar do chão. - Não quero ter nenhum irmão.
Henry Bannock levantou-se ao ouvir isto e disse à sua mulher: - Esperamos por ti no parque de estacionamento. Parece que eu e o Carl fazemos mais mal do que bem
ao virmos aqui. - Fez sinal a Carl com a cabeça. - Vamos lá, meu rapaz. Vamos embora daqui.
Henry abominava presenciar qualquer tipo de miséria e sofrimento, sobretudo quando se relacionavam pessoalmente com ele.
Limitava-se a fechar a mente a isso, dissociava-se dessas realidades e afastava-se. Nem ele nem Carl Peter voltariam a Nine Elms.
Marlene, por sua vez, nunca faltou a uma visita à filha. Todos os domingos de manhã, o motorista fazia o trajeto de cento e cinquenta quilómetros até Pasadena, onde
ela passava o resto do dia a tagarelar com a filha calada e retraída. Numa dessa visitas, levou uma cassete de concertos de piano de Rachmaninov para pôr a tocar
num gravador portátil, na esperança de que isso pudesse voltar a despertar-lhe os talentos musicais.
Aos primeiros compassos do primeiro andamento de abertura do Concerto n°. 3 em ré menor, Sacha levantou-se de um salto, agarrou no gravador e atirou-o contra a parede
com uma fúria louca. O aparelho despedaçou-se. Sacha lançou-se ao chão, encolheu-se na posição fetal, enfiou o polegar na boca e começou a bater ritmicamente a cabeça
contra o chão. Foi a última vez que Marlene tentou intervir no tratamento dela.
A partir desse incidente, limitou-se a ler poesia a Sacha ou a debitar-lhe um relato detalhado dos acontecimentos triviais da semana anterior. Sacha permanecia em
silêncio e completamente fechada sobre si própria. Fixava a parede, baloiçando-se para trás e para a frente na cadeira como se fosse um cavalo de baloiço.
Meses mais tarde, Marlene Imelda descobriu que estava novamente grávida. Aguardou até que o seu ginecologista lhe confirmasse o sexo da criança; depois, na visita
seguinte a Nine Elms, confidenciou a Sacha: - Sacha, minha querida. Tenho uma notícia maravilhosa para ti. Estou grávida e vais ter uma irmãzinha.
Sacha virou a cabeça e olhou Marlene nos olhos pela primeira vez durante essa visita. - Uma irmã? Vou ter uma irmã? De certeza que não é um rapaz? - perguntou numa
voz clara e com lucidez.
- Sim, querida. Uma irmãzinha para ti. Não é maravilhoso? - Sim! Quero muito ter uma irmã. Mas não quero ter um irmão. - Que nome achas que lhe devíamos pôr? Qual
é o nome de que gostas mais?
- Bryoni Lee! Adoro esse nome. - Conheces alguém com esse nome? - Havia uma rapariga na escola que era a minha melhor amiga. - Sorriu. - Mas o pai dela arranjou
um novo trabalho e mudaram-se para Chicago. - Estava animada e falava como uma criança normal da sua idade.
Semana após semana, continuaram a falar da bebé, e, semana após semana, Sacha fazia-lhe as mesmas perguntas, sempre pela mesma ordem. E ria-se com as respostas da
mãe.
Um dia, no final do oitavo mês de gestação, Sacha sentou-se ao lado da mãe durante toda a duração da visita e Marlene segurou-lhe a mão contra a barriga. Quando
a bebé se mexeu sob a sua palma pela primeira vez, Sacha soltou gritinhos de excitação, tão alto que a enfermeira de serviço entrou a correr na sala de visitas.
- Mas que é que se passa, Sacha? - perguntou. - A minha irmãzinha! Anda cá sentir como ela se mexe. Marlene levou Bryoni Lee a visitar Sacha pela primeira vez quando
ela tinha três meses de idade. Sacha teve permissão para pegar na irmãzinha e sentou-se com ela no colo durante toda a visita, arrulhando-lhe e rindo-se para ela
e fazendo perguntas à mãe sobre ela.
Após essa primeira visita com Bryoni, Marlene nunca faltou a nenhuma das visitas semanais e Sacha pôde acompanhar o crescimento de Bryoni. Os seus terapeutas reconheceram
o efeito benéfico que a bebé estava a exercer sobre ela e encorajaram ativamente esse relacionamento.
E assim os anos foram passando.
54
Bryoni Lee tornou-se uma criança adorável. Era franzina e delicada, com traços faciais miudinhos e cativantes olhos escuros. O rosto em forma de coração era vivaz
e expressivo. As pessoas sentiam-se naturalmente atraídas por ela e sorriam-lhe sempre que a viam. Tinha uma voz encantadora. Os pés pareciam ter sido concebidos
para dançar. No entanto, era uma criança determinada e segura de si.
Bryoni Lee destacava-se por natureza própria das demais crianças. À semelhança do pai, Henry Bannock, era uma líder e uma organizadora nata. Assumia sem esforço
o controlo em qualquer grupo de miúdos e mesmo os rapazes mais velhos submetiam-se prontamente à sua vontade.
Henry precisou de algum tempo para se habituar a ter em casa uma criança que não conseguia dominar por completo, até porque se tratava de uma descendente sua disposta
a fazer-lhe frente. Henry tinha uma opinião muito firme sobre as diferenças entre os géneros e sobre os papéis e relações entre pais e filhos e entre homens e mulheres.
A questão da igualdade não figurava na sua lista.
Bryoni Lee deleitava-o pelo facto de ser inteligente e uma criança exemplar, mas também o alarmava quando lhe dava uma resposta torta e discutia com ele. Henry era
acometido de ataques de fúria contra ela. Gritava-lhe e ameaçava-a com castigos corporais. Certa vez chegou mesmo a cumprir essa ameaça. Arrancou o cinto das calças
e bateu-lhe na parte de trás das pernas desnudas. Causou-lhe um vergão vermelho, mas ela manteve-se firme e recusou-se a chorar.
- Não devias fazer isso, papá - disse-lhe num tom sério. - Tu mesmo me disseste que um cavalheiro nunca bate numa senhora.
Henry tinha abatido caças comunistas na Coreia e pregara sustos de morte a operadores de sondas e outros operários matulões e durões que trabalhavam nas suas plataformas
petrolíferas, mas agora transigia perante uma rapariguinha de oito anos.
- Perdoa-me - disse-lhe enquanto enfiava o cinto nas presilhas das calças. - Tens razão. Não devia ter feito isso. Não voltarei a fazê-lo. Prometo-te. Mas tens de
aprender a prestar atenção ao que te digo, Bryoni Lee!
Por seu turno, passou a ouvir o que ela tinha para dizer, uma cortesia que raramente dispensara a qualquer outra mulher. E descobriu, para sua grande surpresa, que
muitas das vezes Bryoni Lee tinha razão no que dizia.
55
O ano do décimo aniversário de Bryoni Lee foi memorável na família Bannock. Em maio, Henry inaugurou o seu primeiro poço de petróleo ao largo da costa. A capitalização
bolsista da Bannock Oil alcançou os dez mil milhões de dólares. E comprou o seu próprio jato privado, um Gulfstream V, que ele próprio costumava pilotar. Nesse mesmo
mês, a família Bannock mudou-se para a sua nova residência em Forest Drive. Concebida por Andrew Moorcroft, da firma de arquitetos Moorcroft & Haye, erguia-se em
seis hectares de parques e continha oito suítes. Foi-lhe outorgado o Prémio de Melhor Casa pelo Instituto Americano de Arquitetos.
Carl Peter Bannock diplomou-se com distinção pela Universidade de Princeton e em junho começou a trabalhar na sede social da Bannock Oil, em Houston.
Em julho, Henry Bannock pediu ao seu velho amigo e advogado Ronnie Bunter para criar o Fundo Fiduciário da Família Henry
Bannock, a fim de proteger a sua família imediata de quaisquer danos e adversidades para o resto das suas vidas. Estudaram e analisaram penosamente o enunciado e
as cláusulas, até que, em agosto, Henry assinou por fim a escritura.
Ronald Bunter conservou o documento original na casa-forte da firma e Henry guardou a única cópia existente na sua própria casa-forte em Forest Drive.
Em agosto desse mesmo ano, os médicos do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms disseram a Henry e a Marlene que Sacha Jean nunca estaria em condições de viver fora
de uma instituição e que permaneceria internada para o resto da vida. Henry não fez nenhum comentário e Marlene trancou-se na sua nova e sumptuosa suíte com uma
garrafa de gim Bombay Sapphire.
Em setembro, Marlene Imelda Bannock iniciou um tratamento de desintoxicação de três meses numa clínica de reabilitação para alcoólicos, em Houston.
Em outubro, Henry Bannock divorciou-se de Marlene Imelda Bannock e obteve a custódia total de ambas as filhas: Sacha e Bryoni. Carl já era um adulto, de modo que
o seu nome nunca chegou a figurar nos papéis do divórcio. Quando Marlene completou o programa de reabilitação, foi viver sozinha para as ilhas Caimão, numa magnífica
propriedade junto à praia, onde era servida por uma vasta equipa de empregados domésticos. Todas essas benesses resultavam de uma das disposições que constavam do
acordo de divórcio.
Nos finais de outubro, a Direção de Aviação Civil recusou-se a renovar o brevete de piloto comercial de Henry Bannock, pois este não tinha passado no exame médico.
- Mas que diabos está você para aí a dizer? - perguntou Henry em fúria ao médico que estava a fazer o exame. - Acabei de comprar um Gulfstream por doze milhões de
dólares. Não me pode retirar o brevete agora. Estou tão fisicamente capaz como quando pilotava os jatos Sabre lá na Coreia.
- Com todo o respeito, permita-me recordar-lhe, senhor Bannock, que isso já foi há cerca de duas décadas. Desde então. o senhor tem-se matado a trabalhar como um
mouro. Quando foi a última vez que tirou férias?
- Que raios tem isso que ver com a renovação do meu brevete Não tenho tempo para gozar férias.
- É exatamente aí onde quero chegar, senhor. Diga-me, quantos Havanas já fumou desde a guerra da Coreia? Quantas garrafas de Jack Daniel's já emborcou? Faz exercício
físico?
- Está a ser insolente, meu rapaz. - O rosto de Henry ficou vermelho. - Isso é um assunto que só a mim diz respeito.
- Peço desculpa. No entanto, devo dizer-lhe que sofre de caso crónico de fibrilação auricular.
- Não me venha com essa conversa técnica. Que diabos está você para aí a fibrilar e a disparatar?
- Estou a tentar dizer-lhe que o seu coração anda a dançar de um lado para o outro como o Gene Kelly sob o efeito de esteroides. Mas isso é só meia missa. A sua
tensão arterial subiu até lá acima ao espaço como o Neil Armstrong. Se eu fosse seu médico, punha-o já a tomar Coumadin10, senhor Bannock. - Graças a Deus que você
não é o meu médico. Sei bem o que é essa coisa do Coumadin. Sei que é usado como veneno de rato e que o sabor não tem nada que ver com o Jack Daniel's. Portanto,
pode pegar nele e enfiá-lo pelo traseiro acima, doutor Menzies. - Henry levantou-se e saiu a passo largo do consultório.
Mesmo sem brevete, Henry continuou a pilotar o seu adorado Gulfstream. Dispunha de dois pilotos comerciais muito bem pagos que o substituíam aos comandos quando
necessário.
No entanto, às vezes acordava às primeiras horas da madrugada com o coração a palpitar e a bater irregularmente no peito. Recusou-se a consultar outro médico. Não
queria que lhe lessem em voz alta a própria sentença de morte.
Ciente da advertência de que os seus dias estavam contados, trabalhou ainda mais arduamente. A ideia de desistir dos Havanas e do seu Jack Daniel's era intolerável,
de modo que a tirou da cabeça.
Em novembro, Bryoni Lee ganhou um concurso estadual de matemática, vencendo alunos três ou quatro anos mais velhos do que ela, e os seus colegas de classe escolheram-na
como a aluna com mais probabilidades de vir a ser bem-sucedida na vida e de se tornar presidenta dos Estados Unidos da América. Com a mãe ausente, a própria Bryoni
assumiu os deveres de visitar a irmã mais velha.
Todos os domingos, Bonzo Barnes, o motorista e guarda-costas de Henry, levava-a a Nine Elms para passar o dia com Sacha. Bonzo era um ex-pugilista de pesos-pesados.
À semelhança da maior parte das pessoas, adorava a jovem Bryoni. Deixava-a sentar-se a seu lado à frente e tagarelavam, felizes, durante o percurso de ida e volta
até Pasadena.

Nota de Rodapé: Medicamento anticoagulante, usado para prevenir e tratar trombos e êmbolos, causadores, respetivamente, de tromboses e embolias.
Fim da Nota.
Em dezembro desse mesmo ano, enquanto o pai se ausentara para Abu Zara para renovar as concessões petrolíferas da Bannock Oil, Carl Peter Bannock conseguiu por fim
decifrar as palavras-passe e os códigos de acesso à casa-forte de Henry Bannock. Tinha descoberto um sítio no terraço da piscina de onde podia espiar sub-repticiamente
o estúdio do pai. Certa manhã de sábado, espiou, através das lentes de um potente par de binóculos Zeiss com ampliação de 10x, Henry sentado à secretária e viu-o
levantar o forro de seda da agenda de couro preto. Depois viu-o tirar de debaixo do forro um dos cartões de visita que tinha escondido aí.
No reverso do cartão via-se uma longa série de letras e números, escrita na caligrafia larga e firme de Henry. Viu o pai atravessar a divisão até à porta do cofre
pessoal. Depois viu-o consultar o que estava escrito no cartão e começar a rodar o disco da fechadura para trás e para a frente enquanto inseria a combinação e,
em seguida, viu-o girar a roda de bloqueio no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, abrindo depois a porta sólida e pesada.
Carl teve de esperar várias semanas até Henry partir de viagem. mas depois teve dez dias e dez noites para se dedicar ao seu plano.
Na primeira noite, após muitas tentativas frustradas, conseguiu dar conta das complicadas sequências de desativação do mecanismo de bloqueio e abrir a porta de aço
de acesso ao cofre.
Na noite seguinte, fotografou o interior do cofre e a disposição do conteúdo. Antes de se atrever a mexer no que quer que fosse. queria ter a certeza de conseguir
repor tudo exatamente na posição original. Sabia que o pai se aperceberia de imediato de qualquer alteração. Calçou luvas cirúrgicas de todas as vezes, para evitar
deixar impressões digitais em qualquer um dos itens do conteúdo do cofre, e prestava uma atenção minuciosa a todos os pormenores.
Na terceira noite, pôde começar a explorar o conteúdo do cofre. Os lingotes de ouro estavam empilhados numa área do chão onde o seu peso era suportado pelos alicerces
de aço e betão. Calculou que estivessem ali cerca de cinquenta ou sessenta milhões de dólares em ouro.
O comportamento de Henry sempre fora ditado por um peculiar misto de audácia temerária e cautela prudente. Aquele tesouro era o seu pequeno fundo de emergência.
Na seguinte fileira de prateleiras estavam as condecorações e as medalhas dos tempos de Henry na Força Aérea americana, bem como fotografias e recordações de significado
especial para ele. Nas prateleiras de aço por cima havia pastas de documentos e certificados de ações, obrigações, títulos de propriedade das numerosas propriedades
e concessões que Henry possuía em seu próprio nome. Os outros bens relevantes estavam em nome da Bannock Oil Corporation.
Na quarta prateleira a contar de cima, Carl encontrou aquilo que procurava realmente.
Já sabia da existência do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. Enquanto ainda frequentava Princeton, tinha começado a intercetar os telefonemas do pai no quarto
e no estúdio. Tinha mesmo tentado aceder às linhas telefónicas privadas da sede da Bannock Oil, mas o cordão de segurança que protegia o Edifício Bannock era impenetrável.
Carl teve de se contentar em escutar na linha da principal suíte as numerosas conversas entre Henry e a sua ex-mulher e várias das suas amantes. Mas também fizera
transcrições dos telefonemas de Henry no estúdio no piso térreo, as quais incluíam várias conversas entre o pai e os seus parceiros de negócios e, mais importante
ainda, com os seus advogados.
Carl pudera, assim, acompanhar algumas das conversas entre Henry e Ronald Bunter, o principal advogado da família, enquanto elaboravam a escritura do Fundo Fiduciário.
Mas ficara apenas com uma vaga ideia do conteúdo exato e das cláusulas da escritura final.
E agora tinha descoberto a cópia que Henry possuía, um enorme tomo pousado a meio da quarta prateleira.
Mesmo assim, não se precipitou. Examinou minuciosamente o volume com uma lupa antes de o abrir. Marcou as páginas que Henry colara com minúsculas gotículas de cola.
Separou-as com enorme cuidado e voltou a colá-las assim que as leu.
Entre a página 30 e 31 encontrou o pelo que Henry aí colocara para detetar possíveis intrusos. Era um dos próprios pelos de Henry, crespo e encaracolado, que ele
arrancara de uma das suíças. Carl guardou-o num envelope branco e recolocou-o depois entre as páginas quando acabou de ler o documento.
Devido a todas estas precauções preliminares, restaram a Carl três noites seguidas para estudar a escritura do novo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock antes
de o pai regressar do Médio Oriente. Aquilo que leu conferiu-lhe uma exaltante sensação da sua própria supremacia. A escritura do Fundo Fiduciário outorgava-lhe
poderes quase divinos. Estava armado contra o mundo e escudado por milhares de milhões de dólares. Era invencível.
56
Sacha Jean regredira de forma gradual ao longo do tempo, até à idade mental equivalente à de uma criança de cinco ou seis anos. O seu mundo encolhera à medida que
o seu cérebro asfixiava sem estímulos e se encerrava. Já não reconhecia ninguém, à exceção das enfermeiras de meia-idade, que tinham sido particularmente amáveis
com ela, e da sua irmã Bryoni.
Quando a enfermeira que cuidava dela chegou à idade da reforma, o mundo de Sacha, já de si limitado, voltou a reduzir-se. Tornou-se então pateticamente dependente
de Bryoni.
Quando o clima o permitia, ambas passavam os domingos nos jardins de Nine Elms. Com o passar dos anos, os médicos foram-se apercebendo de que Bryoni era responsável
e não hesitavam em deixar Sacha entregue ao seu cuidado durante todo o dia da visita.
Sacha tinha agora vinte e poucos anos e era obesa. Era muito mais alta do que a irmã, mas Bryoni agia como uma mãe e levava-a pela mão para o local preferido dela
junto ao lago, onde faziam um piquenique e atiravam migalhas aos patos. Sacha já não conseguia concentrar-se o suficiente para ler sozinha, mas adorava cantigas
infantis. Bryoni trauteava-lhas. Jogavam à macaca, às imitações e às escondidas. Bryoni tinha uma paciência infinita. Dava de comer a Sacha o almoço que trouxera
de casa e limpava-lhe a cara e as mãos quando acabava de comer. Levava-a à casa de banho e ajudava-a a limpar-se e a ajeitar a roupa quando terminava.
Sacha adorava especialmente que lhe fizessem cócegas nas costas. Gostava de tirar a blusa e deitar-se de barriga em cima da manta para que Bryoni lhe fizesse cócegas.
Sempre que a irmã parava. punha-se a gritar: "Mais! Mais!"
Certo domingo, Bryoni estava a fazer-lhe cócegas quando Sacha disse numa voz bastante clara: - Se ele alguma vez te quiser tocar na pombinha, não o deixes.
Bryoni parou de repente de lhe fazer cócegas e pensou naquilo que a irmã acabara de dizer. "Pombinha" era a palavra infantil que ambas usavam para referir a vagina.
- O que é que disseste, Sash? - perguntou numa voz cuidadosa. - Quando?
- Agora mesmo. - Eu nunca disse nada - negou Sacha. - Disseste, sim. - Nunca disse. Nunca disse nada. - Sacha já estava a ficar agitada e nervosa. Bryoni conhecia
os sintomas. De seguida, iria encolher o corpo na posição fetal e começar a chuchar o polegar ou a bater com a cabeça no chão.
- Fui eu que me enganei, Sash. Claro que não disseste nada. Sacha descontraiu-se e começou a falar do seu cachorrinho. Queria o seu cãozinho de volta. No seu último
aniversário, a mãe dera-lhe um cachorrinho, mas Sacha adorava tanto o animal que o apertara com demasiada força e acabara por o asfixiar. Tiveram de lhe dizer que
o cão estava a dormir para conseguirem arrancar-lhe o cadáver das mãos. Pedia sempre a Bryoni para lho trazer de volta. Mas os médicos não permitiam que Sacha tivesse
outro animal de estimação.
O domingo seguinte foi um dia límpido e soalheiro e as duas fizeram um piquenique no local habitual, junto à borda do lago. Sacha não gostava que as coisas mudassem.
As mudanças deixavam-na nervosa e insegura. Quando acabaram de almoçar, Sacha pediu: - Faz-me cócegas nas costas.
- Quais são as palavras mágicas? - perguntou-lhe Bryoni. Sacha pensou, de testa franzida em concentração, mas acabou por desistir. - Esqueci-me de quais são. Diz-me
tu.
- Tens que dizer "por favor", não te lembras?
- Sim. Sim. É "por favor" - Sacha bateu as mãos de alegria.
- Por favor, Bryoni. Faz-me cócegas nas costas, por favor. - Tirou a blusa e estendeu-se sobre a manta. Pouco depois, Bryoni pensou que ela tinha adormecido, mas
de repente Sacha disse: - Se o deixares tocar-te na pombinha, ele enfia-te a coisa dura dele dentro e faz-te deitar sangue. Bryoni ficou petrificada. As palavras
chocaram-na, ao ponto de a fazerem sentir-se agoniada. No entanto, fingiu não ter ouvido e continuou a afagar as costas da irmã. Pouco depois, começou a trautear
uma canção infantil. Sacha tentou acompanhá-la, mas baralhou as palavras e ambas desataram às gargalhadas.
De seguida, Sacha disse: - Se ele te enfiar a coisa dele na tua pombinha, depois fica a doer muito e a deitar sangue. - Repetir as mesmas coisas vezes sem conta
era um truque que a sua mente danificada lhe pregava. - Está na hora de eu ir, Sash - disse Bryoni por fim. - Oh, não! Por favor, fica mais um pouquinho. Fico muito
assustada e triste quando tu vais embora e me deixas sozinha.
- Volto cá no próximo domingo. - Prometes? - Sim, prometo.
57
No domingo seguinte, Bryoni levou um gravador que tinha tomado de empréstimo do estúdio do pai.
Ambas caminharam de mãos dadas até à borda do lago. Bryoni levava a manta e o cesto de piquenique. Quando chegaram ao seu local favorito, Sacha estendeu a manta,
certificando-se de que não ficara com dobras nem pregas. Estender a manta era da sua responsabilidade e era muito conscienciosa e orgulhosa da sua capacidade de
a estender na perfeição. Enquanto a irmã concentrava toda a sua atenção na manta, Bryoni tirou o gravador do bolso das calças de ganga, ligou-o e guardou-o no bolso
sem que Sacha se apercebesse.
O dia seguiu o seu padrão habitual: atiraram migalhas aos patos e falaram do cachorrinho de Sacha, que estava com a sua mãe cadela no céu. Almoçaram e Bryoni levou
Sacha à casa de banho. Voltaram para junto do lago e deitaram-se na manta. Sacha pediu-lhe que lhe fizesse cócegas nas costas e Bryoni obrigou-a a pedir "por favorDepois,
enquanto lhe fazia cócegas, começou a trautear uma canção infantil, a qual desencadeou toda uma associação de ideias na mente estropiada de Sacha, como Bryoni esperava
que acontecesse.
De repente, Sacha disse: - Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar-me dentro da boca. Tinha um sabor horrível
Bryoni estremeceu, mas continuou a cantarolar baixinho. Dessa vez, Sacha parecia estar serena e continuou a divagar.
- Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito.
Voltou a calar-se e Bryoni continuou a trautear baixinho e num tom tranquilizador. De repente, Sacha soergueu-se e exclamou: - Já me lembro! Chamava-se Carl Peter
e era mesmo meu irmão. Mas depois ele foi embora. Todos eles foram embora. A minha mamã e o meu papá; todos eles foram embora e deixaram-me sozinha. A não ser tu,
Bryoni.
- Nunca te vou deixar, Sash. Ficaremos juntas para sempre, como as irmãs devem ficar. - Sacha acalmou-se e voltou a deitar-se de barriga para baixo. Bryoni recomeçou
a afagá-la e a cantar baixinho. De repente, Sacha falou alto, num tom de voz mais parecido com a idade que tinha realmente e não na voz da criança de cinco anos
em que se tornara.
- Sim, já me lembro que foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela
coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque
o Carl me tinha dito para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?
- Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas.
- Promete que nunca me vais deixar, Bryoni. - Prometo-te que nunca te vou deixar, minha querida Sash.
58
Nessa noite de domingo, quando Bryoni regressou a casa após a visita a Nine Elms, o novo Ford Mustang de Carl estava estacionado no caminho de acesso. Quando ela
entrou em casa, Carl descia a correr a escadaria principal. Estava de fato e gravata. Os sapatos brilhavam e o cabelo alisado reluzia de gel.
- Olá, Bree! - cumprimentou-a. - Como está a nossa irmã maluquinha? Ainda continua a brincar com as fadas?
- A Sacha está muito bem. É uma rapariga muito doce e encantadora. - Bryoni não conseguia olhar para o rosto do irmão, aquele rosto arrogante e presunçoso.
Carl depressa perdeu o interesse por saber novidades de Sacha. Só mencionara o nome dela para irritar Bryoni. Deteve-se à frente do espelho de corpo inteiro na base
das escadas e ajustou o nó da gravata. Depois tirou o pente do bolso e voltou a ajeitar cuidadosamente os poucos fios de cabelo que estavam fora do lugar. - Um grande
encontro esta noite. A miúda tem andado a suspirar por mim há já um mês ou mais. E hoje vai ser a noite de sorte dela. Que tal estou, Bree? - Virou-se para ela e
abriu os braços. - Tcharam! Tcharam! O sonho de qualquer mulher, hã?
Bryoni parou à frente dele e forçou-se a olhar-lhe o rosto. Muitas das suas amigas diziam que ele era o homem mais bonito que já tinham visto. Apercebeu-se de que
o odiava. Era um suíno sádico. doentio e pervertido.
- Sabes, Carl, é a primeira vez que reparo que o teu olho direito
é maior que o esquerdo - disse. Consternado, ele virou-se para o espelho. Bryoni desatou a correr pelas escadas acima em direção ao seu quarto. Sabia que ele iria
ficar angustiado durante semanas por causa do tamanho relativo dos seus olhos, e ficou contente.
Henry tinha-se ausentado da cidade. Viajara no seu novo jato para um qualquer pequeno e estranho país no Médio Oriente chamado Abu Zara e só regressaria dentro de
dois dias, aproximadamente. Estava sozinha naquela casa enorme. Ligou para a cozinha e perguntou a Cookie se podia comer com os outros empregados na sala de jantar
do pessoal doméstico, em vez de ficar sozinha na velha e enorme sala de jantar. Cookie ficou deliciada. Todos adoravam Bryoni.
- Fiz tarte de maçã especialmente para si, menina Bree. - És uma querida, Cookie. É a minha sobremesa preferida. Após o jantar, Bryoni trancou-se no estúdio contíguo
ao seu quarto e copiou para uma nova cassete a gravação que fizera em Nine Elms. Enquanto ouvia a voz doce e infantil de Sacha recitar tais perversões repugnantes,
recomeçou a sentir uma fúria extrema.
Deu por si a pensar na caçadeira de calibre 12 que o pai guardava no estúdio no piso térreo. Henry tinha-a ensinado a disparar aos pratos e ela tornara-se uma jovem
atiradora competente. Mas apercebeu-se, nesse momento, de que corria o risco de perder o bom senso e a razão. Obrigou-se a voltar ao plano original.
Quando acabou de copiar as afirmações de Sacha, trancou o gravador na pequena cómoda ao lado da cama e voltou a sentar-se à frente do computador para terminar os
trabalhos da escola para o dia seguinte. Desligou a luz um pouco antes das dez, mas só conseguiu adormecer era quase meia-noite. Depois acordou devido ao rugido
do motor do Mustang de Carl que subia o caminho de acesso. Ele conduzia sempre muito velozmente quando bebia. Bryoni verificou as horas: passavam dez minutos das
três da madrugada.
Na manhã seguinte, tomou o pequeno-almoço na cozinha com Cookie e depois Bonzo levou-a à escola antes de Carl sair do quarto.
No intervalo a meio da manhã, confiou a cópia da gravação das confissões de Sacha à guarda da sua melhor amiga, Alison Demper. Sabia que, se ela mesma guardasse
a gravação em Forest Drive, Carl acabaria por a encontrar.
- Tens de jurar pela tua vida e pelo que te é mais sagrado, e nunca contares a ninguém que te dei isto - disse a Alison, que ficou intrigada. Alison cuspiu no dedo
como era da praxe, fez o sinal da cruz sobre o coração e jurou pela sua vida.
Após as aulas, Bryoni alegou uma dor de cabeça e foi dispensada do curso extracurricular de arte. Foi diretamente para casa e esperou que Carl chegasse do seu trabalho
na sede da Bannock Oil. O irmão costumava parar no Troubadour Inn para beber uma cerveja com os amigos, mas nessa tarde regressou a casa no ruidoso Mustang um pouco
antes das sete.
Bryoni estava sentada na conversadeira do seu quarto. Debruçou-se sobre a janela e chamou-o enquanto ele saía do carro e fechava a porta. - Olá, Carl! Gostava de
falar contigo se tivesses uns minutinhos. Podes vir ao meu quarto, por favor?
- Vou já, mana. Ouviu-o subir as escadas e depois a batida na porta do seu quarto. - A porta está aberta - disse-lhe. Ele abriu-a e deteve-se à entrada. - Que se
passa, mana? Bryoni estava sentada na beira da cama, mas tinha arrastado a poltrona para o centro da divisão, para ele se sentar.
- Entra, Carl. Senta-te. Quero falar-te da Sacha. Ele fechou a porta e avançou para a poltrona. Sentou-se. apoiando uma das pernas sobre o braço da poltrona. - E
então. que se passa com a Sacha? Agora anda a ver homenzinhos verdes lá de Marte ou crê que se transformou finalmente num urso polar cor-de-rosa? - Riu-se da sua
própria piada.
- Ouve isto, por favor. - Mostrou-lhe o gravador. - Não me digas que é a tua música de rap preferida, acertei? Bryoni não conseguiu responder-lhe, pois odiava-o
com todas as suas forças. Ligou o gravador e pousou-o em cima da mesinha de cabeceira.
Fez-se silêncio enquanto o gravador rebobinava a fita e depois ouviu-se a voz de Sacha. Carl soube de imediato que era ela. Endireitou-se, tirou a perna de cima
do braço da poltrona e pousou ambos os pés no soalho.
"Não gostei nada quando ele pôs a coisa dele a esguichar dentro da minha boca. Tinha um sabor horrível", disse Sacha. Bryoni viu e irmão estremecer e fixar os olhos
na janela, como se procurasse uma via de fuga. Mas depois voltaram a recair sobre o gravador enquanto Sacha prosseguia.
"Tenho tentado lembrar-me do nome dele. Ele disse que era meu irmão, mas eu não tenho nenhum irmão. Ele mostrou-me como segurar na coisa dele e mexer a minha mão
para cima e para baixo até aquilo esguichar. Eu gostava quando ele me dizia que eu era esperta e que me amava muito."
Bryoni pegou no gravador e fez avançar a fita alguns segundos. Depois premiu o botão de reprodução e pousou de novo o gravador na mesinha. A voz de Sacha soava mais
firme e mais madura quando voltou a falar.
"...foi o meu irmão Carl que foi nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura
dentro de mim e depois esguichou. Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito
para não contar. Achas que fiz bem, Bryoni?"
"Claro que sim, minha irmã querida. És muito bem-comportada e fazes sempre bem as coisas."
Bryoni desligou o gravador e, no silêncio que se seguiu, perguntou em voz calma: - Achas que fizeste bem, Carl?
A boca dele movia-se, mas sem formular nenhuma palavra. Limpou a cara à manga do blusão e olhou depois para a mancha de suor no tecido fino.
Levantou-se de um salto, abruptamente, e agarrou no gravador pousado na mesinha e, no mesmo movimento contínuo, atirou-o contra a porta da casa de banho de Bryoni.
O aparelho desfez-se em pedaços. Carl atravessou a divisão com passos rápidos e decididos e esmagou os restos sob os sapatos.
As mãos tremiam-lhe e todo o seu corpo era sacudido por convulsões quando se virou para Bryoni.
- Aquela gaja! Aquela putazinha imunda! Tu mais a cabra da tua irmã inventaram isso tudo! Confessa: estás tão louca como ela. Vocês as duas têm é ciúmes de mim.
Estão a tentar desacreditar-me aos olhos do meu pai. Mas o meu pai adora-me.
- O teu pai era um criminoso de guerra nazi - disse Bryoni numa voz serena. - O teu pai era um homem chamado Kurtmeyer que matou pessoas nas câmaras de gás e tinha
uma rede de bordéis. És bem a semente podre do teu pai, Karl Kurtmeyer. - É mentira! Inventaste isso! És uma cadela mentirosa! - gritou-lhe. - Não inventei nada
- replicou Bryoni sem levantar a voz. - A nossa mãe contou-me tudo acerca do teu pai numa tarde em que se embebedou de gim.
- É mentira! O meu pai é Henry Bannock. Sou o seu único filho varão. Ele ama-me e sou o herdeiro dele. Tu e a putazinha imunda da tua irmã têm mas é ciúmes de mim.
Querem-lhe envenenar a cabeça contra mim. É por isso que estás a dizer todas essas mentiras horríveis sobre mim.
- Não estamos a pôr ninguém contra ti. Foste tu que maltrataste e humilhaste a tua própria irmã. Obrigaste-a a fazer coisas terríveis e nojentas e depois violaste-a
e puseste-a louca.
- Tudo mentiras! - gritou-lhe. - O meu pai nunca vai acreditar nas vossas mentiras. - Vai acreditar, vai, quando ouvir a gravação que fiz. - Bryoni levantou-se da
cama e confrontou-o com serenidade.
Carl girou sobre os calcanhares e correu para junto das peças desfeitas do gravador. Deixou-se cair de joelhos e começou a juntá-
-las, enfiando-as depois nos bolsos. - Já não há gravador - disse. - Foi-se. - Nunca existiu. Não passou tudo da fantasia de uma rapariga louca.
- Fiz uma cópia - disse Bryoni. Car levantou-se e avançou para ela com um ar ameaçador. - Onde está?
- Está num lugar onde nunca a vais conseguir encontrar.
- Dá-ma. - Nunca! - silvou Bryoni. Carl esbofeteou-a com força, fazendo-a desequilibrar-se e cair sobre a cama. Bryoni levantou-se, apoiada nos cotovelos; escorria-lhe
sangue da boca para o queixo. Rosnou-lhe através dos lábios ensanguentados, feroz como uma leoa ferida: - Nunca!
A visão do sangue luzidio inflamou-o. O sangue sempre tivera esse efeito nele. Precipitava-o para lá da fronteira da razão. Lançou-se sobre ela e imobilizou-lhe
os ombros contra a cama. Tinha mais do dobro da idade dela, e mais do dobro do peso. A sua força era esmagadora. Rasgou-lhe as roupas e grunhiu: - Vou-te ensinar
uma lição acerca do que é o respeito. A mesma lição que ensinei à louca da tua irmã.
Bryoni gritou, mas ele cerrou os dedos da mão esquerda à volta da garganta dela e apertou-lha com força, enquanto usava a outra mão para lhe baixar as cuecas e forçar
um dos joelhos entre as coxas dela. - Podes gritar quanto quiseres. Ninguém te vai ouvir. Ninguém te vai ajudar. Ninguém vai acreditar em ti. - A voz soava enrouquecida
de luxúria. - Tenho de te ensinar a ter respeito.
Desprendeu a fivela do cinto e abriu a braguilha com tal violência que um dos botões se soltou. Tinha-a agora sujeitada debaixo de si, pele nua contra pele nua.
A parte inferior do corpo infantil dela e a púbis estavam completamente desprovidas de pelos. A vagina de Bryoni era um fruto ainda por amadurecer: minúscula, apertada
e seca. Mas ele penetrou-a à força. Num paroxismo de dor, Bryoni enterrou-lhe os dentes no ombro. Carl insultou-a e libertou a mão que lhe apertava a garganta para
a obrigar a abrir a boca. Agora estavam ambos a sangrar. Bryoni lançou a cabeça para trás e gritou e uivou enquanto ele continuava a penetrá-la com violência.
Cookie, que estava na cozinha por baixo do quarto, ouviu os gritos dela e chamou Bonzo Barnes, o motorista, aos berros. Ambos subiram as escadas a correr e irromperam
pelo quarto de Bryoni no preciso momento em que todo o corpo de Carl se contorcia nos espasmos e gemidos do êxtase orgástico por cima do corpo franzino e seminu
de Bryoni.
Bonzo arrancou Carl de cima da irmã e lançou-o ao chão. - Que estás a fazer, pá? Ela não passa de uma criança! É a tua irmãzinha, pá! O que é que te passou pela
cabeça, homem? - gritou-lhe Bonzo. Agarrou em Carl pela garganta e sacudiu-o como se fosse um rato.
- Não lhe faças mal, Bonzo! - gritou-lhe Cookie. - A polícia ocupa-se dele. - Bonzo largou-o no chão e Carl soergueu-se.
- Não, não chamem a polícia - implorou em desespero. - O meu pai chega a casa amanhã. Ele vai tratar de tudo. Ele paga-te... - Fecha essa boca, seu porco. És pior
que um animal. Estou-te a avisar, pá - rosnou-lhe Bonzo.
Bryoni estava a chorar, desesperada de dor e em choque. Cookie agarrava-a contra o peito e sussurrou-lhe: - Pronto, acalma-te, minha menina. Ele já não te vai fazer
mais mal. Agora estás segura.
Estendeu o braço e levantou o auscultador do telefone em cima da mesinha de cabeceira e ligou para as emergências. A chamada foi atendida quase de imediato.
- Uma menina acabou de ser violada aqui. Está a sangrar muito. Apanhámos o pervertido que lhe fez isso. Mandem vir a polícia.
Os polícias de uniforme azul chegaram em duas viaturas de patrulha, menos de vinte minutos depois. Ouviram o que Cookie e Bonzo tinham para dizer e depois viraram-se
para Bryoni.
Bryoni levantou-se da cama onde Cookie a deitara. Virou-se para os agentes. Tinha as roupas rasgadas e manchadas de sangue. O rosto estava inchado e um dos olhos
ficara negro e meio fechado. Não parava de tremer.
Deu um passo para junto do sargento da polícia, mas um leve fio de sangue serpenteou por baixo da saia e escorreu pela coxa. Bryoni deixou escapar um gemido e agarrou
o baixo-ventre com as duas mãos. Dobrou-se lentamente e caiu de joelhos. Cookie levantou-a e abraçou-a contra o peito.
- Meu Santo Deus! - exclamou o sargento. - Enfiem as algemas nesse triste cabrão e levem-no para a esquadra.
Os seus homens agarraram Carl e torceram-lhe os braços atrás
das costas. - Calma lá, porra - protestou Carl. - Não é preciso tanta violência.
- Da mesma forma que não precisaste de usar tanta violência com aquela rapariguinha? - perguntou-lhe um dos agentes enquanto lhe fechava as algemas nos pulsos. Depois
olhou para o sargento. - O prisioneiro está a resistir à detenção, sargento. Será melhor enfiarmos-lhe também as correntes nas pernas, não vá dar-se o caso. O sargento
anuiu com a cabeça e depois virou-se para Cookie.
- Precisamos de levar esta criança ao hospital. Precisa de ser vista por um médico.
Cookie envolveu os ombros de Bryoni com um cobertor. Bonzo pegou nela e levou-a a correr para uma das viaturas da polícia.
59
Ronald Bunter telefonou a Henry Bannock que estava nas instalações da Bannock Oil em Abu Zara. A voz de Henry soava muito ensonada.
- Espero bem que me estejas a ligar por uma boa razão. São três da madrugada aqui.
- Desculpa-me, Henry, mas tenho notícias para te dar. Mas não é coisa boa - disse-lhe Ronald. - Na verdade, não podiam ser piores. Está aí alguém contigo?
- Claro que sim. Pensas que sou algum monge? - Ela não precisa de ouvir isto. - Espera um segundo. Vou sair do quarto. - Ouviu-se uma breve troca de palavras entre
Henry e a sua misteriosa companhia, houve uma pausa e depois Henry disse: - Pronto, Ronnie. Estou sentado na sanita e com a porta fechada. Conta lá.
- O Carl Peter foi preso. - Oh, não! Aquele pestinha - lamentou-se Henry. - O que foi desta vez? Excesso de velocidade? A conduzir embriagado?
- Quem dera que fosse isso, meu velho amigo. Infelizmente. é muito, muito pior.
- Vá lá, Ronnie! Deixa-te de rodeios! Desembucha lá! - Acusaram-no de vários delitos diferentes. Os mais graves são estupro, abuso de menor, agressão sexual agravada,
delito de agressão e ofensas corporais graves, maus-tratos, incesto e corrupção de menor. Ainda estão a investigar e a interrogar as testemunhas, mas avisaram-nos
que ainda poderia haver outras acusações, de agressão sexual agravada continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos. Alguns destes delitos são puníveis
com a pena de morte no Estado do Texas.
Seguiu-se um demorado silêncio, quebrado apenas pelo crepitar da estática. - Está lá? Está lá? Ainda estás aí, Henry? - Sim, continuo aqui. Estou a pensar. - A sua
voz soava desolada. - Dá-me alguns segundos, Ronnie. - Depois perguntou: - Quem são as vítimas que ele é acusado de violar?
- Lamento muito, Henry! Essa é a parte pior. É acusado de violar a Sacha e a Bryoni.
- Não posso crer! - disse Henry baixinho. - Só pode ser um engano. Não pode ser verdade. Não acredito nisso. A Bryoni é a minha menina.
Ronald quis dizer-lhe "A Sacha também é a tua menina", mas conteve-se. Não era sua intenção agravar o sofrimento do seu velho amigo.
- Vamos lutar contra isto, Ronnie. Vamos lutar contra isto com todas as nossas forças, estás a ouvir-me?
- Estou a ouvir-te, Henry. Mas pensa só nisto por um momento. Eles têm o testemunho das tuas duas filhas e de duas testemunhas oculares de confiança, têm amostras
do esperma do Carl Peter tiradas da vagina da Bryoni, misturado com o sangue dela. Têm fotografias das lesões corporais que ele lhe infligiu.
- Meu Deus! - exclamou Henry Bannock. - Que Deus e todos os santos me acudam!
Ronald quase conseguia ouvir os pilares do universo de Henry desmoronarem-se em cima dele. Julgou ouvi-lo chorar, mas não era possível. Chorar não. Henry nunca chorava.
- Achas que ele fez aquelas coisas, Ronald? - Sou advogado, não me cabe fazer julgamentos. - Mas achas que ele é culpado, não achas? Não me fales como meu advogado.
Fala comigo como o meu melhor amigo.
- Como teu advogado, não sei nem me importa. Como teu amigo, importa-me muito, e acho que o teu filho é culpado como tudo.
- Ele não é meu filho! - disse Henry. - Nunca foi meu filho. Tenho andado a enganar-me estes anos todos. É filho de um perverso cabrão nazi que a certa altura decidi
acolher sob a minha proteção. - Será melhor voltares para casa, Henry. Precisamos de ti aqui. As tuas duas meninas precisam muito de ti aqui.
- Vou partir de imediato! - disse Henry.
60
- Ouve bem o que te digo, Ronnie. - Henry inclinou-se sobre a escrivaninha e apontou o dedo a Ronald Bunter. - Quero aquele violador nazi cabrão riscado da lista
de beneficiários do meu Fundo Fiduciário, e não quero que o meu Fundo tenha de pagar os honorários dos advogados para o defenderem do crime de violar as minhas duas
filhas. Já falei com a Bryoni e mais culpado ele não podia ser. Quero-o ver pendurado na forca. Ronald girou na cadeira, uniu as pontas dos dedos e alçou o olhar
para o teto, como se procurasse ajuda e orientação lá no alto.
- Como bem sabes, já falámos disto muitas vezes, Henry. No entanto, vou responder em separado aos teus três desejos, pela mesma ordem que os expressaste. - Sentou-se
direito na poltrona, pousou os cotovelos na escrivaninha e olhou Henry diretamente nos olhos.
- Em primeiro lugar, foste tu que colocaste o Carl Bannock na lista de beneficiários e trataste de assegurar que ninguém o pudesse remover dessa lista. Ninguém o
pode fazer: nem eu, nem tu, nem o Supremo Tribunal de Washington. Estou de mãos atadas, e foste tu que mas ataste. Em segundo lugar, não queres que o Fundo Fiduciário
pague a defesa jurídica dele. Os mandatários, entre os quais eu próprio, não têm opção nessa matéria. Deixaste perfeitamente claro na escritura do Fundo Fiduciário,
que tu próprio assinaste, que somos obrigados a pagar todas as despesas para o proteger de quaisquer ações judiciais instauradas contra ele por qualquer pessoa ou
qualquer governo, seja pelo Departamento de Justiça ou pelo Departamento das Finanças. Está fora do nosso alcance. O Carl pode escolher a sua própria equipa de defesa
e o Fundo Fiduciário tem de pagar essas custas.
- Mas ele violou as minhas filhas - protestou Henry. - Nunca incluíste nenhuma exceção para essa eventualidade - frisou Ronald. - Por último, acabaste de expressar
o desejo de ver o Carl pendurado na forca. Isso nunca vai acontecer. O Estado do Texas aboliu a execução por enforcamento em 1924. O melhor que te posso oferecer
é uma injeção letal.
- Dou-me conta agora de que criar aquele Fundo Fiduciário foi o maior erro da minha doce vida.
- Volto a discordar de ti, Henry. O teu Fundo Fiduciário é um excelente instrumento. O sentimento que lhe subjaz é nobre. Assegura que à Marlene, à Sacha e à pequena
Bryoni, bem como a todos os seus próprios filhos e futuras esposas e respetiva prole, nunca faltará nada que o dinheiro possa comprar. És generoso e és um grande
homem, Henry Bannock.
- Aposto que dizes isso a todos os teus clientes.
61
O julgamento de Carl Peter Bannock prolongou-se por vinte e seis sessões judiciais.
As deliberações preliminares do júri de acusação ocuparam quatro dessas sessões, no final das quais foi apresentada uma acusação formal equivalente a uma acusação
de delito grave. O caso foi atribuído a um tribunal e o processo legal foi iniciado.
O juiz era Joshua Chamberlain, um homem na casa dos sessenta. Era um democrata empenhado e tinha a reputação de ser pedantesco e meticuloso. Durante quase vinte
anos como juiz, nenhum dos seus julgamentos fora alguma vez anulado no âmbito de um recurso, o que era em si mesmo um feito notável.
Em consonância com as suas crenças liberais, tinha condenado à morte menos de três por cento dos casos de pena capital que tinham comparecido perante si.
A procuradora do Ministério Público era Melody Strauss. Embora tivesse quase quarenta anos, já tinha defendido muitos casos extremamente complicados que lhe granjearam
uma reputação sólida. Foram-lhe atribuídos dois assistentes jurídicos.
A equipa da defesa compreendia cinco dos advogados mais caros do Estado do Texas. Tinham sido selecionados com grande cuidado pelos representantes do arguido. O
total dos seus honorários custavam ao Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock um montante que ascendia a um pouco mais de duzentos mil dólares por dia.
A primeira fase do processo consistia em escolher e ajuramentar os doze membros do júri de entre as cinquenta possibilidades apresentadas. Essa incumbência demorou
mais de uma semana, pois a defesa esforçou-se por excluir o maior número possível de mulheres. Usaram todas as dez recusas imotivadas para descartarem possíveis
jurados do sexo feminino e depois interrogaram persistentemente as restantes mulheres sobre a sua posição em relação à pena de morte, à provocação feminina e à instigação
à violação.
Melody Strauss enfrentou os elementos da equipa de defesa com grande determinação e rebateu-os com igual resolução. Esforçou-se por reter o maior número possível
de mulheres na lista final de jurados. Melody era perspicaz e persuasiva. Interrogou rigorosamente todos os candidatos masculinos para detetar quaisquer tendências
machistas. Reservou todas as suas recusas imotivadas para eliminar da lista apenas os candidatos masculinos que revelavam indícios dessas inclinações. No final,
conseguiu lograr um resultado equilibrado, com um número igual de homens e mulheres no júri.
Na décima sessão do julgamento, Melody Strauss apresentou o caso pela acusação e deparou com uma série de objeções por parte da defesa. Desde o início que contestaram
a capacidade de Sacha Jean Bannock depor, em razão da sua condição mental. Ambas as partes chamaram testemunhas-peritos. Melody Strauss chamou dois membros do pessoal
médico do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms que tinham tratado de Sacha ao longo de muitos anos. Ambas declararam que nos últimos tempos Sacha demonstrara uma melhoria
manifesta e contínua em termos de memória. Atribuíram esses progressos à influência da sua irmã mais nova, Bryoni Lee, e à catarse que experienciara depois de ter
recordado um acontecimento traumático, ou uma série deles, ocorrido na sua infância.
Submetidas a interrogatório, depuseram adicionalmente que os sintomas e a condição mental de Sacha eram um exemplo clássico dos efeitos de contínuos abusos sexuais
agravados na infância.
O perito chamado pela defesa era um professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Depôs que tinha examinado Sacha
e deu a sua opinião de que ela não era capaz de prestar depoimento sob juramento porque não compreendia o significado desse ato. Declarou ainda que qualquer testemunho
que ela pudesse prestar não seria minimamente fiável e que esse processo seria tão traumático para ela que corria um grande risco de vir a sofrer de danos mentais
permanentes em resultado dessa experiência. Melody solicitou ao juiz uma autorização especial para que Sacha pudesse depor nos aposentos dele, com a defesa e o júri
na sala contígua a assistirem e a ouvirem através do circuito televisivo fechado sem que Sacha se apercebesse dessas presenças. Após um aturado debate, o juiz Chamberlain
recusou o pedido.
Melody rogou então ao juiz autorização para fazer escutar ao júri a gravação que Bryoni fizera quando Sacha falara do seu relacionamento com o irmão Carl.
Este pedido desencadeou de novo uma onda de objeções por parte da defesa e o juiz Chamberlain voltou a recusar o pedido da acusação.
Restou a Melody uma última escolha decisiva. Poderia contrariar as probabilidades e chamar Sacha Jean ao banco das testemunhas, ou poderia retirar a acusação de
"agressão sexual agravada
continuada contra pessoa ou pessoas menores de catorze anos". E ir a julgamento unicamente com o depoimento de Bryoni Lee sobre a violação de que fora vítima.
Melody Strauss consultou Bryoni Lee Bannock para um aconselhamento final. Ambas tinham desenvolvido uma relação especial
durante o curto período de tempo desde que se tinham conhecido. Bryoni começara a gostar e a confiar em Melody, e esta ficara impressionada com a maturidade, coragem
e bom senso de Bryoni. Ficara sobretudo profundamente comovida com a sua lealdade e dedicação a Sacha, e com a sua compreensão intuitiva das razões subjacentes à
perturbação mental da irmã.
- Como reagirá a Sacha se eu a interrogar à frente de todas aquelas pessoas acerca daquilo que o Carl lhe fez? - perguntou a Bryoni. - Atira-se logo ao chão e encolhe-se
toda, e depois põe-se a chuchar o polegar e a bater com a cabeça no chão, e vai para um mundo dos sonhos só dela.
No dia seguinte, de forma a proteger Sacha, Melody Strauss retirou formalmente a acusação de "agressão sexual agravada continuada contra menor".
Instigada por este fracasso parcial, Melody apresentou, com um vigor renovado, as outras acusações contra Carl Bannock, com o objetivo de conseguir a pena máxima
possível.
Chamou Bryoni a depor. A defesa levantou uma nova onda de protestos: que Bryoni era uma criança imatura, que não compreenderia as questões que lhe seriam colocadas,
que era incapaz de fornecer um depoimento plausível e significativo.
O juiz Chamberlain anunciou uma suspensão de duas horas para ponderar as objeções. Falou a sós com Bryoni nos seus aposentos e, quando voltou para a sala de audiências,
disse ao júri: - Esta jovem menina demonstrou-me mais inteligência e maturidade do que muitas das pessoas de trinta e quarenta anos que já se apresentaram perante
mim neste tribunal. A objeção da defesa é recusada. A Menina Bryoni Lee Bannock pode ocupar o seu lugar no banco das testemunhas. Foi no banco das testemunhas que
John Martius, o principal advogado da defesa, se esforçou por lhe destruir a credibilidade.
Melody Strauss tinha preparado Bryoni para a provação e instruíra-a sobre como deveria comportar-se enquanto se encontrasse no banco das testemunhas, e que tipo
de perguntas poderiam fazer-lhe. "Dá respostas curtas e diretas", dissera ela. "Não deixes que te distraiam."
Durante o depoimento, Bryoni comportou-se como uma veterana. Respondeu de forma firme e educada a todas as perguntas.
- Quando foi a primeira vez que suspeitaste que a tua irmã tinha sido molestada sexualmente? - perguntou-lhe Melody.
- Quando ela me avisou para não deixar ninguém tocar-me nas partes íntimas, pois iriam magoar-me. Foi então que tive a certeza de que alguém lhe tinha feito isso
a ela.
- Objeção! Não passa de uma suposição! - John Martius tinha-se levantado de imediato.
- Objeção indeferida - disse o juiz Chamberlain. - Ela disse quem lhe tinha feito isso?
- De início não, mas quanto mais ela falava, mais se ia lembrando. Acho que ela estava a tentar esquecer as coisas feias que lhe tinham acontecido.
- E no final ela acabou por se recordar do nome? - Sim, minha senhora. Lembro-me das palavras exatas. Ela disse: "Agora lembro-me que foi o meu irmão Carl que foi
nessa noite ao meu quarto e se meteu na minha cama. Foi o Carl que me obrigou a abrir as pernas e enfiou aquela coisa grande e dura dentro de mim e depois esguichou.
Eu gritei, mas ninguém me ouviu. Estava a deitar sangue e doía-me muito, mas nunca contei a ninguém porque o Carl me tinha dito para não contar."
- Objeção! - uivou John Martius. - É testemunho em segunda mão de algo que ouviu dizer!
- Objeção indeferida - disse o juiz. - A testemunha está a descrever uma conversa na qual participou. O júri tomará em conta essa resposta.
Melody Strauss passou a abordar os acontecimentos depois de Bryoni ter confrontado Carl Bannock com as gravações que fizera de Sacha a descrever a série de agressões
de que fora vítima.
- Objeção! Não foi confirmada a proveniência das alegadas gravações e foram excluídas das provas - interpôs John Martius.
- Senhora Strauss? - disse o juiz, convidando-a a refutar. -- Meritíssimo, não estou a tentar apresentar as gravações como prova, estou a usá-las meramente como
uma referência temporal em relação aos acontecimentos dessa tarde.
- Objeção indeferida. Pode continuar, menina Bannock. Bryoni descreveu a agressão de Carl sobre a sua pessoa. - Exigiu que lhe dissesse o que tinha feito com a cópia
da gravação daquilo que a Sacha me tinha contado. Recusei-me a dizer-lhe. Depois bateu-me na cara e empurrou-me para cima da cama.
- Causou-te alguma lesão? - Fiquei com o olho esquerdo inchado e negro. Sangrava do nariz e tinha um dos lábios cortado, e foi por isso que fiquei com a boca cheia
de sangue.
Os membros femininos do júri arquejaram de surpresa, murmurando e trocando olhares horrorizados entre si.
Sentado na primeira fila na galeria do público, Henry Bannock olhou de semblante carregado e furibundo na direção do enteado, no banco dos acusados. Estivera ali
sentado durante todas as horas de cada dia do julgamento, na esperança de que a sua presença pudesse dar força e coragem a Bryoni durante a sua provação.
- Depois de ele te ter batido e de te ter empurrado para cima da cama, o que aconteceu depois, Bryoni? - perguntou-lhe Melody Strauss.
- O Carl disse-me que me ia ensinar o que era ter respeito, tal
como tinha feito à minha irmã Sacha.
- Quando dizes "Cari", estás a referir-te ao teu irmão, Carl Bannock, o arguido?
- Correto, minha senhora. John Martius apressou-se a intervir. - Objeção! Carl Bannock não é irmão da testemunha.
- Permita-me corrigir. - Melody Strauss foi igualmente rápida. - Eu deveria ter dito "meio-irmão". Essa relação também é abrangida na definição de incesto no Código
Penal do Estado do Texas. - Objeção! - Retiro esse comentário e reservo-o para a minha exposição final. - Melody voltou a virar-se para Bryoni. - E que fez depois
o arguido? - Pôs-se em cima de mim e abriu-me a roupa. - Tentaste resistir-lhe? - Fiz tudo para lhe resistir, mas ele era muito maior e mais forte que eu, minha
senhora, e estava atordoada do golpe que ele me tinha dado.
- Que aconteceu depois de ele te abrir a roupa? - Tirou o pénis para fora... Sentado à mesa da defesa, Carl Bannock tapou a cara com ambas as mãos e começou a chorar
alto. John Martius levantou-se de um salto.
- Meritíssimo, o meu cliente está assoberbado com estas acusações. Peço a sua compreensão e solicito uma pausa para que ele possa recompor-se.
- Senhor Martius, é por de mais evidente que o seu cliente é um indivíduo resistente e determinado. Tenho a certeza de que ele consegue aguentar um pouco mais. A
testemunha pode responder
pergunta. - Ele tirou o pénis para fora e meteu-o à força dentro de mim, na minha vagina. - Bryoni engoliu em seco e enxugou os olhos. - Doía-me tanto. Foi a pior
dor que já senti. Gritei e lutei, mas ele não parava de enfiar aquilo dentro de mim. Depois o Bonzo entrou lá e arrancou-o de cima de mim, mas a dor não parou e
reparei que estava a sangrar da vagina. A Cookie entrou lá e abraçou-me e disse-me que não precisava de ter medo e que o Carl nunca mais me voltaria a fazer mal.
Ela disse que não ia deixar ninguém voltar a fazer-me mal. - Bryoni afundou-se no banco e enterrou a cara nos braços, abalada por soluços entrecortados.
- Não tenho mais perguntas a fazer, Meritíssimo - disse Melody Strauss em voz baixa.
John Martius levantou-se de um salto. - Contrainterrogatório, Meritíssimo.
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã. Deve reservar o seu contrainterrogatório para essa altura, senhor Martius.
62
Henry Bannock, Ronnie Bunter e Bonzo Barnes já estavam à espera de Bryoni no exterior da sala de audiências quando ela saiu. Conduziram-na através da multidão de
repórteres e jornalistas amontoados no passeio e que lhe gritavam perguntas. Bryoni manteve-se de cabeça bem erguida e olhou diretamente à sua frente, mas tinha
o rosto pálido como cinza e os lábios tremiam-lhe. Ia agarrada ao braço do pai. Bonzo Barnes seguia à frente para lhes abrir caminho, e a sua corpulência e semblante
carrancudo abriram-lhes alas até à limusina que os esperava.
Nessa noite, Cookie levou o jantar num tabuleiro ao quarto de Bryoni e Henry Bannock sentou-se na beira da cama e falou-lhe enquanto ela comia. Disse-lhe que a amava
muito e que lamentava não ter sido capaz de a proteger a ela e a Sacha. Prometeu que nunca mais deixaria que nada de mal acontecesse às suas duas filhas. Fez-lhe
companhia e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer.
Às dez horas da manhã seguinte, Bryoni voltou a ocupar o banco das testemunhas. A sala de audiências estava a abarrotar e na secção da imprensa já só havia lugares
em pé. Bryoni tinha sido instruída por Melody Strauss e por Ronnie Bunter e ignorou-os por completo, fixando o olhar no pai, que estava na primeira fila na galeria
do público, e em Bonzo e Cookie, sentados três filas atrás.
John Martius levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e postou-se à frente de Bryoni.
- Compreendes que vou fazer-te algumas perguntas, Bryoni? - Sim, senhor. - Importas-te que te trate por tu? - Não, senhor. - Amas o teu irmão Carl? - Objeção! O
arguido não é irmão da testemunha - disse Melody, pagando-lhe na mesma moeda.
- Vou reformular a pergunta - concedeu Martius. - Amas o teu meio-irmão Carl?
- Talvez o amasse dantes, mas não desde que ele me violou a mim e à Sacha. Não o amo, não. - Um burburinho de aprovação varreu a sala de audiências perante estas
palavras. O juiz Chamberlain bateu com o martelo e disse numa voz severa: - Silêncio na sala, por favor.
- Alguma vez lhe pediste para te beijar? - Não, senhor. - Estás a dizer que nunca deste um beijo ao Carl? - Eu disse que nunca lhe pedi para me beijar, senhor. -
Alguma vez o beijaste? - Eu e o Carl só nos beijávamos na face para nos cumprimentarmos ou despedirmos, como toda a gente faz, senhor.
- Alguma vez pediste ao Carl para te beijar na boca, Bryoni? - Não, senhor. Porque faria eu isso? - Limita-te a responder às minhas perguntas, por favor, Bryoni.
Alguma vez enfiaste a língua na boca do Carl quando ele te beijou? - Objeção! A testemunha já depôs que nunca beijou o arguido na boca - interpôs Melody.
- Objeção deferida - disse o juiz Chamberlain. - A defesa retirará a pergunta.
- Pergunta retirada. - Martius inclinou levemente a cabeça na direção do juiz e voltou a concentrar-se em Bryoni. - Alguma vez entraste na casa de banho quando o
Carl estava a tomar duche, Bryoni? - Não, senhor. Tenho a minha própria casa de banho. Nunca fui à casa de banho do Carl.
- Alguma vez entraste no quarto do Carl quando sabias que ele estava a vestir-se?
- Não, senhor. Tenho o meu próprio quarto. Nunca fui ao quarto dele.
- Nunca? - Nunca, senhor. - E que me responderias se te dissesse que o Carl afirma que querias vê-lo tomar duche, e que certa vez foste ao quarto dele à noite e
te enfiaste na cama dele?
- Objeção! Essa pergunta já foi colocada e respondida! A testemunha já depôs que nunca foi à casa de banho do arguido.
- Objeção deferida. A defesa retirará a pergunta. - Retiro a pergunta, Meritíssimo. - Mas estava bastante satisfeito: tinha plantado uma semente de dúvida nas mentes
do júri. Consultou as suas próprias anotações por um momento e depois olhou para Bryoni.
- Alguma vez pediste ao teu meio-irmão Carl se gostaria de ver os teus peitos?
Melody Strauss pareceu prestes a objetar, mas permaneceu em silêncio e deixou Bryoni responder de forma espontânea e eloquente. - Não tenho peitos, senhor. Ainda
não me cresceram. - Pareceu ficar genuinamente perplexa quando dois dos jurados masculinos riram alto, mas era um riso gentil, sem o menor traço de escárnio. Dois
ou três dos jurados femininos franziram a cara, desaprovando a ligeireza dos seus colegas.
Henry Bannock reparou que Melody sustivera deliberadamente a sua objeção. Tinha sido uma decisão astuta. Só esperava que o júri punisse Martius por atormentar uma
criança, sobretudo uma menina tão linda.
Martius tinha corrido um grande risco ao introduzir o elemento da provocação feminina. Sabia que estava a perder a aposta e apressou-se a mudar de tática.
- Sabias que o teu pai tinha uma estima tão grande pelo teu meio-irmão Carl que o adotou formalmente como seu próprio filho, e que depois de o Carl ter se diplomado
com distinção por Princeton lhe ofereceu um trabalho muito bem pago e de grande responsabilidade na Bannock Oil Corporation?
- Sim, senhor, claro que sabia. Toda a gente sabia. - E isso levou-te a pensar que o teu pai amava mais o Carl do que te amava a ti? Ficaste com ciúmes dele? Foi
por causa disso que tu e a tua irmã Sacha resolveram inventar histórias maldosas acerca do Carl?
- O meu pai ama-me, senhor. - Olhou para Henry Bannock e sorriu. - Uma das razões pelas quais o meu pai me ama é que eu lhe disse sempre a verdade. Ele não me amaria
tanto se eu lhe mentisse.
Henry Bannock retribuiu-lhe o sorriso e anuiu com a cabeça, confirmando a declaração da filha. Os seus traços faciais marcados e obstinados suavizaram-se.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, Meritíssimo. - John Martius apercebeu-se de que tinha sido derrotado por uma criança e decidiu retirar-se com uma
certa dignidade.
-- Obrigado, menina Bryoni - disse o juiz Chamberlain. - Foi muito corajosa. Pode ir agora para junto do seu pai.
Henry Bannock veio ao encontro da filha e envolveu-lhe os ombros com o braço, num gesto protetor. Lançou um último olhar corrosivo ao filho adotivo e depois conduziu
Bryoni para fora da sala de audiências. Bryoni agarrou-se a ele e começou a chorar baixinho mas amargamente.
Melody Strauss chamou a sua testemunha seguinte, a Dra. Ruth MacMurray. Era a médica do corpo policial que tinha examinado Bryoni naquele fatídico fim de tarde.
Era uma mulher madura e de cabelos grisalhos, composta e de voz suave.
- Doutora MacMurray, examinou Bryoni Lee na passada tarde de quinze de agosto na sala de emergências no Hospital Universitário de Houston?
Sim. - Pode relatar a este tribunal as conclusões do seu exame nessa altura, doutora?
- A paciente era uma menina pré-pubescente. Apresentava lesões faciais superficiais, consistentes com golpe desferido com a mão. O olho esquerdo apresentava contusão
e inchaço. Também havia uma laceração do tecido mole da boca. Além disso, os dentes incisivo esquerdo e o primeiro pré-molar tinham-se soltado devido ao traumatismo.
- Havia mais alguma lesão corporal? - Sim. Havia extensas equimoses em ambos os antebraços e na garganta.
- O que é que essas equimoses poderiam indicar, doutora? - Poderiam indicar que a paciente fora provavelmente restringida à força pelos antebraços e que, ademais,
lhe tinham apertado a garganta, quer numa tentativa de estrangulação, quer para a impedir de gritar.
- Obrigada, doutora MacMurray. Encontrou mais alguma lesão?
- Os genitais da paciente apresentavam todos os sinais de penetração forçada por via de objeto grande e rígido.
- Seriam essas lesões consistentes com uma possível penetração forçada da paciente menor pelo pénis ereto de um adulto?
- Eram inteiramente consistentes com essa possibilidade. O hímen tinha sido rompido muito recentemente e continuava a sangrar. O períneo entre a vagina e o ânus
tinha sido rasgado e exigiu intervenção cirúrgica. Além disso, havia lacerações internas e rutura da parede vaginal inferior, o que também exigiu intervenção cirúrgica.
- Na sua opinião, eram essas lesões consistentes com a possibilidade de a paciente ter sido violada?
- Na minha opinião, tais lesões eram inteiramente consistentes com violação agravada e penetração forçada dos genitais.
- Chegou a colher amostras do fluido corporal que encontrou na vagina da paciente, doutora?
- Colhi trinta esfregaços vaginais da vagina rasgada. E amostras de sangue da roupa da paciente.
- Quais foram os resultados dos exames patológicos dessas amostras, doutora?
- No caso das amostras colhidas da roupa, foram encontrados dois grupos sanguíneos. Um era AB negativo e o outro O positivo.
- Correspondem ao grupo sanguíneo do arguido e da vítima, doutora? - O grupo sanguíneo de Carl Bannock é AB negativo, e o de Bryoni Bannock é O positivo.
- O tipo O é raro ou comum, doutora? - É o tipo mais comum. Cerca de quarenta por cento dos humanos têm sangue do tipo O.
- E o tipo AB negativo: é raro ou comum, doutora? - É o tipo de sangue mais raro de todos, só um por cento dos humanos o possui.
- Isso significa que existe uma probabilidade de quarenta para um de as amostras de sangue AB negativo pertencerem ao arguido Carl Bannock?
- Não sou corretora de apostas, minha senhora. Não lhe saberia dizer as probabilidades exatas. Direi, no entanto, que existe uma probabilidade muito mais elevada
de que as amostras de sangue AB negativo possam pertencer a Carl Bannock do que a qualquer outra pessoa à face da Terra.
- Obrigada, doutora. A minha pergunta seguinte, doutora, prende-se com as amostras dos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock. Quais foram os resultados
patológicos do exame desses esfregaços?
- Em todos os casos, sem exceção, foi detetada a presença de sangue e de fluido seminal.
- Qual era o tipo, ou tipos, de sangue, doutora? - Unicamente o tipo O positivo. - É o tipo sanguíneo de Bryoni Bannock, correto? - Correto, sim. - Havia mais algum
fluido corporal nos esfregaços que colheu da vagina de Bryoni Bannock?
- Sim, também foi detetada a presença de fluido seminal. - Fluido seminal masculino? O patologista pôde estabelecer uma correspondência com as amostras colhidas
do arguido Carl Bannock?
- O fluido seminal colhido da vagina de Bryoni Bannock deu uma correspondência de oitenta a noventa por cento com as amostras fornecidas por Carl Bannock ao médico
do corpo policial.
- Como é que foi feita a análise comparativa dessas amostras. doutora? - Foram aplicadas três técnicas: o teste RSID, o teste PSA e o teste da fosfatase
- Obrigada, doutora. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe - disse Melody, olhando depois para John Martius na mesa da defesa. - A testemunha é sua.
- Não tenho questões a colocar - disse John Martius sem levantar os olhos do seu caderno de alegações.
O juiz Chamberlain olhou para o relógio da sala de audiências antes de instruir Melody. - Pode chamar, por favor, a sua próxima testemunha, senhora Strauss.
- A acusação chama a senhora Martha Honeycomb. Cookie levantou-se do seu lugar na galeria pública e avançou pela coxia até ao banco das testemunhas. Apesar dos conselhos
de Melody Strauss de que deveria usar roupas discretas, Cookie não resistira à tentação de usar o seu melhor traje e adornos para a ocasião. Usava um minúsculo chapéu
de palha colocado num ângulo desenvolto e um pequeno véu negro sobre um dos olhos. O vestido exibia um estampado de enormes girassóis cujo efeito lhe realçava o
volume do traseiro. Os sapatos brancos, de tacão muito alto. conferiam-lhe um andar um pouco vacilante.
Assim que ela se sentou no banco das testemunhas, Melody Strauss conduziu-a num breve relato da sua relação com a família Bannock.
- Há quanto tempo trabalha para o senhor Henry Bannock' - Desde que saí da escola, minha senhora. - Há quanto tempo conhece Bryoni Bannock, senhora Honeycomb?
Nota de Rodapé: " Teste RSID (Rapid Stain Identification) ou teste de Identificação Rápi-,ia de Mancha, usado frequentemente nos estudos forenses de amostras de
sémei:. Teste PSA (Prostate Specific Antigen) ou teste do A ntigénio Específico da Próstata análise da glicoproteína cuja função é liquefazer o coágulo seminal,
formado após a ejaculação, permitindo a movimentação dos espermatozoides. Fosfatas ácida: enzima cuja presença em grande quantidade é indicativa da presença dr esperma
(o conteúdo desta enzima é de 20 a 400 vezes maior no esperma 3: que em qualquer outro fluido humano).
Fim da Nota.
- Pode chamar-me Cookie, minha senhora. É como toda a gente me chama.
- Obrigada, Cookie. Há quanto tempo conhece Bryoni, Cookie? - Desde o dia em que ela nasceu. Era a coisinha mais linda de se ver. - E Carl, o irmão dela? Há quanto
tempo o conhece? Cookie rodou o seu enorme volume e lançou um olhar fulminante a Carl, sentado à mesa da defesa. - Desde o dia em que ele veio viver para a nossa
casa, e que dia mais triste e lamentável foi, se bem que nenhum de nós o soubesse nessa altura. Todos pensávamos que ele era um bom rapazinho.
- Senhora Procuradora, por favor diga à sua testemunha para se limitar a responder às perguntas.
- Ouviu o que o juiz disse, Cookie? - Peço desculpa, minha senhora. O senhor Bannock também diz que falo de mais.
O juiz Chamberlain tossicou e tapou a boca com a mão para conter tanto a tosse como o sorriso. Melody Strauss foi conduzindo Cookie ao longo dos acontecimentos,
até ao momento em que ela e Bonzo resgataram Bryoni do ataque de Carl e à posterior detenção dele pela polícia.
- Como sabia que o arguido tinha ido ao quarto da irmã no piso de cima? - Eu e o Bonzo tínhamo-lo ouvido subir a rampa de acesso naquele carrão vistoso que o pai
dele lhe tinha dado pelo aniversário. Depois ouvimos a Bryoni chamá-lo para ir ao quarto dela pois queria falar com ele.
- Que aconteceu depois, Cookie? - Ouvimos o jovem Carl subir as escadas a correr e depois a porta do quarto de Bryoni fechar. Ficou tudo muito silencioso durante
muito tempo. Depois, eu e o Bonzo ouvimos o Carl gritar como se estivesse desvairado da cabeça. Eu disse: "Bonzo, é melhor Irmos lá acima ver o que eles andam a
tramar." Mas o Bonzo disse: "Deixa lá, estão só a discutir, como sempre. É melhor deixá-los em paz. Vou polir o Cadillac para quando o senhor Bannock chegar a casa",
e lá foi ele pelas escadas abaixo.
- Portanto, Bonzo deixou-a sozinha na cozinha. E depois, que aconteceu, Cookie?
- Depois houve mais um pouco de silêncio, mas de repente a Menina Bryoni desatou a gritar como se alguém estivesse a cortar-lhe a garganta. Até o Bonzo a ouviu lá
em baixo na garagem. Mas eu gritei-lhe: "Bonzo, é melhor vires cá depressa! Parece-me que aconteceu alguma coisa grave lá em cima." Corremos pelas escadas acima
e o Bonzo atravessa direitinho aquela porta enorme como se fosse de papel. Eu entro a correr no quarto logo atrás dele e vejo o jovem Carl em cima da menina Bryoni
deitada na cama, e vejo-a a lutar com ele como uma louca e a gritar desalmada e ele sempre em cima dela a ter sexo com ela.
- Como sabia que ele estava a ter sexo com ela, Cookie? - Tive rapazes suficientes que mo fizeram a mim nos meus tempos para saber quando um deles está a fazer isso
a outra mulher. senhora Strauss.
- Por favor, continue a contar-nos o que aconteceu de seguida, Cookie. - Bom, o Bonzo ficou possesso como nunca o vi. Também ele adorava a menina Bryoni, como todos
nós. Pôs-se a gritar com o Carl: "O que lhe estás a fazer, pá? Ela é a tua irmãzinha, O que lhe estás a fazer?" e coisas desse género. Depois agarrou Carl e atirou-o
pelo ar. Foi então que vi o Carl com a parte da frente das calças toda aberta e com aquela coisa dele toda dura e espetada à frente, toda suja do sangue da minha
menina, e foi quando também a mim me deu ganas de o matar, mas disse ao Bonzo pra não lhe fazer mal, que deixasse a polícia ocupar-se dele. e devo dizer que a polícia
veio mesmo muito rápido e prendera o Carl, e depois o Bonzo levou a Bryoni pro carro da polícia, pois ela tinha muitas dores e não conseguia andar, e eles lá a levaram
então pro hospital.
- Obrigada, Cookie. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe. O juiz Chamberlain olhou na direção da mesa da defesa. - O advogado da defesa deseja contrainterrogar a
testemunha?
John Martius pareceu prestes a recusar, mas depois levantou-se lentamente.
- Senhora Honeycomb, diz que ouviu Bryoni convidar o arguido a ir ao quarto dela.
- Sim, senhor. Ouvi-a dizer-lhe para ir lá acima, mas não creio que ela quisesse brincar às escondidas com a salsicha daquele porco. Acho que ela ia pô-lo a ouvir
a gravação onde a Sacha dizia o que o Carl lhe tinha feito...
- Meritíssimo! A testemunha respondeu à minha pergunta confirmando que Bryoni Bannock tinha convidado o irmão a ir ao quarto dela. O resto do seu testemunho não
passa de suposições.
- Por favor, não especule, senhora Honeycomb. O júri não tomará em consideração o resto da resposta da testemunha.
- Obrigado, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha. - Martius voltou a sentar-se.
De seguida, Melody Strauss chamou Bonzo Barnes ao banco das testemunhas. Bonzo corroborou cada pormenor do depoimento de Cookie, embora não de forma tão eloquente
e sui generis como ela. fizera.
John Martius colocou uma única questão no contrainterrogatório. - Senhor Barnes, ouviu Bryoni Bannock convidar o irmão Carl a ir ao quarto dela? - Sim, senhor. Ouvi.
- Bryoni costumava receber o irmão Carl no quarto dela e à. porta fechada? - Se ela o fez, nunca a vi nem a ouvi fazer isso, senhor. - Mas não tem a certeza se ela
nunca chegou a estar sozinha com ele no seu quarto?
Bonzo ponderou profundamente na pergunta, com uma expressão sombria no rosto. - Não faz parte do meu trabalho estar de guarda à porta da menina Bryoni a toda a hora
do dia. - Por conseguinte, não sabe se Bryoni Bannock tinha por hábito receber os seus amigos no quarto e à porta fechada? - De uma coisa tenho a certeza, senhor.
Se apanhar qualquer rapaz no quarto dela a tentar fazer-lhe aquilo que o Carl lhe fez, parto-lhe o pescoço. - Obrigado, senhor Barnes. Não tenho mais perguntas para
esta testemunha, Meritíssimo.
Bonzo ergueu-se em toda a sua corpulência e lançou um olhar ameaçador a John Martius. - Sei bem o que me está a tentar fazer dizer, mas a única coisa que vai ouvir
de mim é que a nossa pequena Bryoni é uma boa menina. E parto o pescoço a qualquer um que se atreva a dizer o contrário dela.
- Obrigado, senhor Barnes. - John Martius apressou-se a afastar-se do alcance do braço comprido de Bonzo. - Pode sair do banco das testemunhas. Melody chamou a testemunha
seguinte. Era o sargento Roger Tarantus, do Departamento da Polícia de Houston. Começou por dizer que ele e a sua equipa tinham respondido a uma chamada de emergência
e se dirigiram ao nº 61 de Forest Drive, a residência de Henry Bannock e da sua família, no final da tarde em questão. Melody conduziu-o ao longo de uma descrição
detalhada daquilo com que deparara ao chegar ao local, bem como das ações que tomara. O depoimento do sargento Tarantus tendia a confirmar os depoimentos de todas
as outras testemunhas da acusação, nomeadamente Bryoni Bannock, Bonzo Barnes e Martha Honeycomb.
- Portanto, sargento Tarantus, com base naquilo que viu e ouviu no nº 61 de Forest Drive, prendeu Carl Bannock por violação e vários outros delitos e levou-o para
a esquadra da polícia em Houston, onde o encarcerou, correto?
- Está correto, minha senhora. A equipa da defesa prescindiu de contrainterrogar o sargento, e todas as restantes testemunhas chamadas pela acusação abonaram o bom
caráter de Bryoni Lee. Entre elas encontravam-se os professores de Bryoni e os psiquiatras de Nine Elms que tinham conhecido bem Bryoni ao longo dos tempos em que
ela visitara regularmente a sua irmã Sacha. Um após outro, descreveram Bryoni como uma aluna exemplar e uma criança inteligente, equilibrada e normal.
No contrainterrogatório, a defesa tentou induzir as testemunhas a concordarem que Bryoni tinha um interesse anormal pelo sexo oposto para uma criança da sua idade.
No entanto, essa insinuação foi energicamente contestada por todos eles.
No final, Melody pôde dizer ao juiz Chamberlain: - Não tenho mais perguntas. A acusação terminou a apresentação das provas.
- Estamos prontos para fazer a nossa exposição final ao júri, se estiver de acordo, Meritíssimo. - Obrigado, senhora Strauss. - O juiz virou-se para a mesa da defesa
e perguntou: - A defesa deseja chamar testemunhas em refutação, senhor Martius?
Um burburinho de expectativa apoderou-se da sala de audiências. Todos sabiam que a defesa tinha de chamar o arguido, Carl Peter Bannock, ao banco das testemunhas
para depor em própria defesa. Não o fazer equivaleria a uma admissão da sua culpa. Fazê-lo era um risco calculado.
John Martius levantou-se lentamente, quase com relutância. - A defesa chama o arguido, Carl Peter Bannock, Meritíssimo - disse. Ouviu-se um sonoro suspiro de alívio
e Melody Strauss esboçou um ténue sorriso de expectação, como uma leoa que captasse o odor de uma gazela.
Carl levantou-se do seu lugar à mesa da defesa e, no silêncio palpável que pairava na sala de audiências, avançou para o banco das testemunhas com um ar profundamente
contrito. Manteve-se de pé no banco, com as mãos enlaçadas à frente e de cabeça curvada. A sua expressão era trágica.
- Pode sentar-se, Carl - disse John Martius. - Obrigado, senhor, mas prefiro ficar de pé - murmurou Carl como um homem destroçado.
- Por favor, diga-nos o que sente face a estas acusações. - Estou completamente devastado. Sinto que perdi a vontade de continuar a viver. Se este tribunal me condenar
à morte, de bom grado aceitarei a pena. - Carl ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da sala, na direção do seu pai adotivo, Henry Bannock, sentado na primeira
fila da galeria do público e virado para ele. - Sinto que desiludi o meu pai. Ele tinha grandes esperanças em mim e tentei estar à altura dessas expectativas, mas
falhei miseravelmente. - Começou a soluçar e enxugou os olhos com a manga. - Estou profundamente arrependido de qualquer mal ou dor que possa ter infligido às minhas
duas queridas irmãs. Sou tão culpado como elas por me terem levado a pecar. Perdoo-lhes e suplico-lhes que me perdoem também. Estou profundamente arrependido.
Henry Bannock bufou de indignação e desviou deliberadamente o olhar daquele espetáculo lamentável.
- É culpado das acusações apresentadas contra si, Carl Bannock? - perguntou John Martius.
- A minha única culpa foi ter sucumbido à tentação e à sedução feminina, ao pecado de Adão e aos embustes de Eva. - A frase era tão teatral e artificiosa que algumas
das pessoas que a ouviram se crisparam.
- Não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha, Meritíssimo. - John Martius sentou-se.
Melody Strauss acercou-se do arguido, como uma leoa a lançar-se de uma emboscada sobre a presa. - Está a insinuar, senhor Bannock, que foi deliberadamente induzido
pelas suas duas irmãs menores a cometer a violação?
- Sinto-me confuso e profundamente angustiado. Tudo isto tem sido um choque terrível para mim. A memória falha-me. Ouvi as acusações lançadas contra mim e creio
que deve haver alguma verdade nelas, mas não me recordo de quase nada disso, minha senhora.
- Como explica, então, que o seu esperma tenha sido encontrado na vagina da sua irmã de doze anos? Pretende fazer-nos crer que foi ela mesma que o colocou ali, senhor
Bannock?
- Deus é minha testemunha e só posso dizer que não sei. Não me lembro de nada disso, mas estou profundamente arrependido de qualquer mal que possa ter feito. - Recomeçou
a chorar.
- Está a insinuar que a sua irmã de doze anos infligiu aquelas equimoses e contusões no próprio corpo? Talvez tenha sido ela a rasgar as próprias partes íntimas
para depois o desgraçar a si, acha isso possível?
- Talvez tenha sido isso o que aconteceu, e, nesse caso, perdoo-lhe, como espero que ela me perdoe a mim.
- Crê o senhor que aqueles doze cidadãos honestos e respeitadores da lei que integram o júri são ingénuos e crédulos ao ponto de acreditarem na sua lengalenga? É
isso que crê?
- Não! Certamente que não acredito nisso. Mas duvido da minha própria memória.
- E quando foi que começou a sentir esse estranho ataque de amnésia, senhor? Foi quando se apercebeu de que ia pagar pelo sofrimento e humilhação que tão prontamente
infligiu às suas jovens irmãs? - Não me lembro. A sério que não me lembro. Melody lançou as mãos ao ar com grande indignação. Era demasiado astuta para insistir
num ponto que já demonstrara de forma tão convincente. Sabia que a defesa tinha pagado um preço alto ao permitir que o seu cliente expressasse o seu arrependimento
em audiência pública, e deu-se por satisfeita.
- Não tenho mais perguntas a fazer ao arguido, Meritíssimo. - Muito bem, senhoras e senhores. - O juiz Chamberlain olhou para o relógio na parede. - São quase quatro
horas. Vou dar a sessão encerrada por hoje e retomamos amanhã, às dez da manhã, para ouvir a exposição final da acusação.
63
A exposição final de Melody Strauss durou quase três horas. Apresentou os factos comprovados perante o júri, com a lógica e a convicção que lhe tinham granjeado
a reputação. O júri e todos os demais na sala de audiências escutaram em absoluto fascínio. A forma como apresentou o caso foi impecável.
John Martius, por seu turno, não tentou refutar as provas nem os testemunhos apresentados. Insistiu na teoria de que o seu cliente tinha sido vítima da sedução e
da cilada das suas duas irmãs. Expôs a teoria de que o motivo das raparigas era fazer Carl cair em desgraça aos olhos de Henry Bannock e substituí-lo nos afetos
paternos. A sua refutação demorou apenas quarenta e oito minutos.
O juiz Chamberlain recapitulou os debates para o júri. Disse-lhes para considerarem cuidadosamente se o arrependimento de Carl Bannock pelos crimes de que era acusado
era sincero ou se não passava de uma má encenação, e se as horríveis lesões de Bryoni Lee teriam sido autoinfligidas ou não.
- Aquelas lágrimas de arrependimento que vimos ontem nos olhos do arguido eram verdadeiras ou seriam talvez de natureza mais sáuria? - perguntou-lhes.
Imediatamente após o almoço, pediu ao júri que iniciasse as suas deliberações.
Henry levou Melody Strauss, Ronnie Bunter e Bryoni a almoçarem no Burger King local, ao fundo da rua. Bryoni e Melody partilharam um cheeseburger duplo. Agora que
a sua provação já estava quase terminada, Bryoni mostrava-se outra vez alegre como um pássaro, mas sem nunca largar a mão protetora do pai, chegando mesmo a sussurrar-lhe:
- O Carl vai ficar todo danado comigo se for para a prisão. Achas que ele virá atrás de mim quando o deixarem sair?
- O Carl vai ficar longe de nós por muito tempo. E vamos tratar de assegurar que nunca mais te possa fazer mal outra vez, meu tesouro.
Quando Henry pediu a conta, já passava das três. Ainda estava a pagar quando um funcionário do tribunal entrou apressado no restaurante.
- O júri já deliberou, senhor Bannock. Estão prestes a anunciar o veredito. Será melhor apressarem-se, senhor.
- Valha-me Deus! Demoraram bastante menos de três horas, o que é ou muito bom sinal ou muito mau sinal - opinou Ronnie Bunter. - Vamos lá embora daqui. - Henry agarrou
a mão de Bryoni e apressou-a ao longo da rua até ao edifício do tribunal. A sala de audiências estava a abarrotar e a secção da imprensa incluía repórteres de lugares
tão longínquos como a cidade de Nova Iorque e Anchorage, no Alasca.
64
Hector Cross havia dado ordens para não ser incomodado. Tinha transferido todas as chamadas do exterior para o gabinete de Agatha em Abu Zara. Estava tão profundamente
absorto no manuscrito de "A Semente Envenenada" que só dera conta das horas quando ouviu duas leves batidas discretas na porta do estúdio.
Foi bruscamente arrancado de um outro tempo e de um lugar distante para o momento presente. Estivera tão absorvido pelo relato de Jo Stanley que ficou um pouco desorientado
por alguns segundos. Olhou para a janela e reparou que o crepúsculo já tinha caído. O dia transcorrera com grande celeridade. Já não comia desde o pequeno-almoço
e subsistira à base de chávenas de café que ele mesmo preparara. E praticamente nem se dera ao trabalho de ir à casa de banho contígua ao estúdio.
Levantou-se da cadeira de um salto e avançou com rapidez para a porta. Abriu-a e ali estava ela, a sorrir-lhe. Vestia um dos roupões de veludo frisado branco e estava
descalça. Tinha o cabelo molhado, apanhado num puxo no cocuruto. O duche apagara-lhe os últimos vestígios de maquilhagem e a pele reluzia. Parecia tão jovem como
uma colegial. Dormira manifestamente bem, pois os olhos cintilavam. As íris verdes eram como a água do mar sob o sol tropical: verde-mar e serenas.
- Vamos ficar aqui a olhar um para o outro a noite inteira, ou vai-me convidar a entrar no seu covil?
- Perdoe-me. Quase me tinha esquecido de como é bela. - Viu-me há cerca de seis ou sete horas. - Já foi há tanto tempo? - Estava genuinamente surpreendido e verificou
as horas no relógio de pulso. - Tem razão. Tenho de aprender a não discutir consigo. - Deu-lhe a mão e convidou-a a entrar. - Peço que me desculpe por me ter esquecido
de si. Mas a culpa é toda sua, devo dizer-lhe. Hipnotizou-me com o seu talento literário. Deixou-me completamente preso ao rexto.
- Seu adulador fingido! - disse ela, mas dirigiu-lhe um sorriso de prazer genuíno.
- Sente-se, por favor. - Acompanhou-a até à poltrona de couro. Ela sentou-se, recolhendo as pernas sob o corpo. Depois esticou a ponta do roupão em redor delas quando
se apercebeu de que ele estava a olhar. Eram pernas encantadoras, reparou Hector. - Que fez durante este tempo todo em que estive tão ocupado que até me esqueci
de si?
- Dormi maravilhosamente durante três ou quatro horas. Depois aproveitei-me do seu ginásio. Encontrei um fato de treino lá no armário que ficou a servir-me depois
de enrolar as mangas e as pernas das calças. Mudei todas as configurações das suas máquinas de exercício, pelo que espero que me desculpe.
Hector abanou a cabeça e riu-se. - Fez muito bem. - Depois fiz uma sauna e lavei o cabelo. Usei todos os produtos femininos Hermes e Chanel que encontrei na casa
de banho dos hóspedes e fiquei contente ao reparar que nenhum deles tinha sido aberto por visitas anteriores.
- A Jo é a minha primeira hóspede. - Sou ingénua quanto baste para acreditar em si. Talvez porque assim quero crer.
- Juro pela minha alma! Mas já comeu? - Não tinha fome. Estava demasiado ocupada a explorar. - Oh, meu Deus! Ainda morre à fome e nunca me perdoarei por isso. Tem
duas opções. A Cynthia, a minha chef, é a melhor cozinheira de Londres, e possivelmente do universo inteiro. O Ivy Club só lhe fica atrás por um triz.
- Ambos temos estado enfiados o dia todo aqui dentro de casa. por mais encantadora que seja. Talvez fosse melhor irmos jantar fora - disse ela, mas ao mesmo tempo
afastou os olhos com recato.
Hector já a conhecia o suficiente para intuir aquilo a que ela pretendia aludir realmente: que era demasiado cedo para passar a noite em retiro íntimo com ele.
- Vamos então ao Ivy. É um ambiente bastante relaxado quanto ao código de vestuário. Mas se quiser mudar de roupa, posso passar pelo seu hotel.
- Obrigada, Hector. Acho que seria melhor. - Vou vestir algo mais apropriado enquanto volta a vestir-se. e depois espero por si no carro à entrada do hotel enquanto
troca de roupa. Ficou impressionado pelo facto de ela o manter à espera apenas vinte minutos, e por voltar envergando roupas discretas mas elegantes. - Perfeito!
- comentou ele enquanto lhe abria a porta do Bentley. - Está de arrasar.
- Essa expressão soa estranha a quem é do outro lado do Atlântico, mas vou encará-la como um elogio.
Deu-lhe o braço enquanto cruzavam a entrada que fazia lembrar a loja de uma florista e subiram no imponente elevador panorâmico. As jovens empregadas na receção
rodearam Hector de atenções enquanto recolhiam os casacos de ambos, e uma delas acompanhou-os num outro elevador até à sala de jantar.
- Por acaso é dono deste sítio? - sussurrou-lhe Jo. - Aonde quer que uma pessoa vá neste mundo perverso, uma gorjeta decente faz sempre milagres - disse.
- Suponho que também ajuda quando se tem um aspeto como o seu.
- Espero que não seja alérgica ao champanhe - disse et
enquanto se sentavam à mesa.
- Ponha-me à prova! - desafiou-o Jo. Depois de saborearem e aprovarem tanto o vinho como o primeiro prato, Jo fez a pergunta que tivera na ponta da língua desde
que saíram de The Cross Roads.
- E agora, diga-me: até que parte leu a minha história? - perguntou. - Cheguei à parte em que o Henry e a Bryoni estão à espera de ouvir o veredito do júri sobre
aquele cabrão merdoso do Carl Peter Bannock. Perdoe-me a linguagem, mas você fez-me odiá-lo.
- E tem toda a justificação para isso. Acho que o Carl Bannock é uma daquelas pessoas malignas até ao âmago e sem qualquer possibilidade de redenção.
- E onde está agora essa criatura monstruosa? - Leia o que escrevi, Hector. Não tente saber o fim da história antes de lá chegar. Se o fizer à minha maneira, compreenderá
muito melhor as personagens em jogo, e olhe que são muitas. Mas posso garantir-lhe que ainda não chegou à melhor parte, ou deveria dizer a pior parte?
- Muito bem, mas responda-me ao menos a mais uma pergunta que não para de me roer por dentro. A Hazel estava ao corrente disto? Se estava, nunca me falou de nada.
- A Hazel ainda não tinha aparecido em cena. Ainda estava a aprender a jogar ténis na África do Sul.
- Mas ela deve ter sabido disso quando casou com o Henry, não? - Duvido que o Henry alguma vez tenha contado os pormenores à Hazel. O Ronnie Bunter diz que o Henry
tinha uma vergonha tremenda do escândalo horrível que aquilo foi. Sentia-se terrivelmente culpado por não ter sido capaz de proteger as filhas. Mas também é possível
que a Hazel tivesse sabido e nunca lhe tenha contado a si. O que aconteceu foi tão trágico e sórdido que talvez a Hazel, tal como o Henry, se tivesse limitado a
fazer de conta que aquilo nunca tinha sucedido.
- O que foi feito da Bryoni Lee? Essa pequenita portou-se como uma heroína. Ia adorar conhecê-la, se isso for possível.
- Vai ter que esperar. Não lhe vou contar nada. Vai ter de ler até ao fim da história.
- Aviso-a desde já, minha senhora, que a paciência não é uma das minhas muitas virtudes. Quando quero uma coisa, quero-a logo.
- Há situações na vida em que mais vale esperar, pois a expectativa multiplica o prazer final - disse ela. - E ler histórias é uma dessas situações. - A sua expressão
era enigmática, apenas remotamente velada por uma nota de malícia.
- Tenho a certeza de que é um ótimo conselho. - Mal conseguiu conter um sorriso, mas logrou igualar o autodomínio dela. - Como é que conheceu o Ronnie Bunter? -
perguntou. mudando de assunto.
- Ele o meu pai andaram na mesma faculdade de Direito. Descendo de uma longa linhagem de advogados.
Jo aproveitou a deixa dele e conversaram demoradamente durante a excelente refeição, acabando por se conhecerem melhor um ao outro. No final, Hector levou-a a um
clube noturno privado chamado Annabel's. Jo nunca lá tinha ido, mas Hector foi recebido com grande alegria pelos empregados. Quando dançaram, descobriram que se
moviam bastante bem juntos. Depois a música mudou e tornou-se suave e romântica. Pareceu perfeitamente natural quando Hector a puxou mais para si e ela encostou
a cabeça ao peito dele. Hector levou-a de volta ao hotel e acompanhou-a até à entrada, onde ela lhe disse: - Boa noite, Hector. Gostei imenso desta noite. Liga-me
pela manhã, por favor? Ainda temos tantas coisas para falar. - Depois ofereceu-lhe a face para ele a beijar e desapareceu, volteando a saia.
65
Acordou ao nascer do sol na manhã seguinte, sentindo-se repousado e bem-disposto, com a sensação de que algo de bom estava prestes a acontecer-lhe. Deixou-se ficar
deitado durante alguns momentos, perguntando-se qual a razão de todo aquele entusiasmo. Foi então que tudo lhe acudiu à mente em catadupa. Riu-se com satisfação
e lançou as pernas sobre a beira da cama.
Antes de tomar um duche apressado, ligou para a cozinha e disse ao mordomo Stephen para lhe deixar o pequeno-almoço na escrivaninha no estúdio e não na sala de jantar.
Quando desceu as escadas a correr, já lavado e vestido, deparou com Stephen a sair do estúdio.
- Bom dia, Stephen. Tenho outro favor a pedir-lhe. - Stephen
seguiu-o para dentro do estúdio e escutou as suas instruções com uma expressão de incredulidade.
- Tem a certeza de que é isso mesmo que quer, senhor Cross? - perguntou quando Hector terminou.
- Diga-me, Stephen, quando foi a última vez que lhe pedi que fizesse algo que eu não queria que fizesse?
- Acho que isso nunca aconteceu, senhor. - Pois também não vai acontecer agora - assegurou-lhe Hector. - Vou tratar já disso, senhor Cross. - É bom poder contar
sempre consigo, Stephen. Hector sentou-se à escrivaninha e ligou o computador. Quando o ecrã se iluminou, pegou no telefone e ligou para o telemóvel de Jo, cujo
número ela lhe tinha dado na noite anterior. Enquanto esperava que ela atendesse, espetou o garfo num pedaço de manga madura e enfiou-o na boca.
Jo atendeu ao quarto toque. - Bom dia, Hector. Dormiu bem? - Caí dentro de um buraco negro fundo e acordei há meia hora. pronto para matar dragões.
- Ainda existem muitos deles por aí à solta. Mate um deles por mim. Ainda estou na cama, com uma chávena de café.
- Que preguiçosa! - repreendeu-a. - A vida é para ser vivida.
- A culpa é toda sua por me ter mantido acordada até altas horas da noite. Mas foi divertido, não foi? Devíamos repetir um dia destes. - Muito em breve! - concordou
ele. - Que tal hoje à noite. ou até mais cedo?
- Preciso de ver umas pessoas na cidade esta manhã. Tinha-o prometido ao Ronnie Bunter. Não tem nada que ver com "A Semente Envenenada". É um assunto completamente
diferente. Mas depois do almoço já estarei livre.
- Venha, então. Estarei à sua espera. - Continue com a sua leitura. Aviso-o desde já que depois lhe vou fazer perguntas.
- Também tenho umas quantas para si. Desligou e concentrou toda a sua atenção no ecrã do computador.
66
Henry Bannock, ladeado por Ronnie Bunter e Bryoni, acabava de se sentar na galeria do público na sala de audiências quando o juiz Chamberlain saiu pela porta dos
seus aposentos e o oficial de diligências pediu ordem na sala.
Os doze jurados, encabeçados pelo presidente, entraram em fila e ocuparam os seus lugares na tribuna do júri. Nenhum deles olhou na direção do lugar onde Carl Bannock
estava sentado à mesa da defesa. - É um bom sinal! - murmurou Ronnie a Henry. - Eles raramente olham para aqueles que condenaram.
- Os membros do júri já chegaram a um veredito? - perguntou o juiz Chamberlain.
- Sim, Meritíssimo - respondeu o presidente dos jurados. - Qual é o veredito? - Em relação à acusação de estupro, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação
de abuso de menor, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de agressão sexual agravada, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de delito
de agressão e ofensas corporais graves, consideramos o arguido culpado. Em relação à acusação de perpetração de incesto, consideramos o arguido culpado. Em relação
à acusação de corrupção de menor, consideramos o arguido culpado.
- Seis condenações em seis acusações - sussurrou Ronnie Bunter. - Nota máxima para a Melody Strauss.
O juiz Chamberlain agradeceu e dispensou os membros do júri e depois conferenciou com os advogados da defesa e da acusação. Dirigiu-se finalmente à sala de audiências:
- A sessão está suspensa até às dez horas de amanhã, altura em que pronunciarei a sentença do prisioneiro.
Nessa noite, Henry organizou um jantar de celebração em Forest Drive para vinte amigos íntimos e familiares mais próximos. Cookie serviu lombo de boi texano de primeira
qualidade. mal passado e a ressumar sucos, com dois nacos de carne ainda agarrados ao osso.
Henry abriu uma dúzia de garrafas Château Lafite Rothschild de 1995 para acompanhar a carne.
Ronnie inclinou-se sobre a mesa para apostar com Melody Strauss que Carl só iria apanhar dez anos na penitenciária estatal. pois o juiz Joshua Chamberlain tinha
fama de ser liberal. Melody apostou dez dólares numa pena de pelo menos quinze anos. No entanto, ambos estiveram de acordo que o Château Lafite era o melhor vinho
que já tinham provado.
Bryoni não conseguiu aguentar até à sobremesa, pois os olhos começaram a fechar-se e a cabeça tombou-lhe em cima da mesa. Henry levou-a para o quarto dela no piso
de cima e meteu-a na cama. Sentou-se na beira da cama e afagou-lhe o cabelo até ela adormecer profundamente pela segunda vez, antes de voltar para junto dos seus
convidados. Assim que ele saiu do quarto, Cookie levou-lhe uma grande taça de gelado de chocolate pelas escadas das traseiras. Bryoni conseguiu arranjar reservas
suficientes de força para acordar e devorar a taça inteira.
Às oito horas da manhã seguinte, Bonzo Barnes levou Bryoni à escola. Henry queria que ela voltasse o mais cedo possível à sua rotina habitual. Arranjara-lhe aconselhamento
psicológico a longo prazo e falara demoradamente com o diretor da escola e a professora da turma de Bryoni. Henry estava satisfeito por ter feito tudo ao seu alcance
para a ajudar a ultrapassar o trauma e a reencontrar o equilíbrio na sua vida. Tinham-no advertido de que poderia ser um processo longo, mas Henry tinha fé na força
de caráter e na maturidade da filha.
Henry saiu em direção ao tribunal num estado de espírito irado e vingativo. Às dez horas exatas, o oficial de diligências pediu ordem no tribunal.
Henry Bannock sentou-se no seu lugar habitual, ao lado de Ronnie Bunter, na primeira fila da galeria do público.
Carl Peter Bannock foi trazido da secção de detenção e conduzido pela escadaria por dois guardas de uniforme. Vinha algemado e de pés acorrentados. Estava pálido,
com a barba por fazer e de cabelo desgrenhado. Viam-se-lhe sombras escuras sob os olhos raiados de sangue. Olhou, suplicante, na direção de Henry.
A expressão de Henry era fria e irada. Susteve o olhar de Carl durante um longo momento. Carl sorriu-lhe com hesitação e os lábios tremeram-lhe. Henry afastou deliberadamente
o olhar, numa rejeição total e final.
Os ombros de Carl descaíram e avançou de passo arrastado para o banco dos acusados, onde se virou para o juiz Chamberlain.
- Arguido em julgamento, ouviu o veredito do júri. Tem alguma coisa a dizer que possa atenuar a pena que lhe será pronunciada?
Carl olhou para as correntes nos tornozelos. - Estou profundamente arrependido da dor que causei ao meu pai e aos outros membros da minha família. Usarei de tudo
ao meu alcance para os tentar compensar.
- É tudo o que tem a dizer? - Sim, senhor juiz, estou profundamente arrependido. - O tribunal tomará em conta a sua contrição na atenuação da pena - declarou o juiz
Chamberlain, olhando depois para baixo para reorganizar os papéis à sua frente na secretária. Ergueu a cabeça.
- A sentença pronunciada por este tribunal é a seguinte: pela acusação de corrupção de menor, condeno-o a cinco anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de incesto, condeno-o a seis anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de delito de agressão e ofensas corporais graves, condeno-o a seis anos de
prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de agressão sexual agravada de menor, condeno-o a vinte anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação
de estupro, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal. Pela acusação de abuso de menor, condeno-o a quinze anos de prisão numa penitenciária federal.
Ordeno que as penas sejam aplicadas em simultâneo e que o senhor fique encarcerado por um período mínimo de quinze anos.
O juiz Chamberlain olhou expectante para John Martius, que se levantou.
- Meritíssimo, peço a sua permissão para interpor recurso no Supremo Tribunal contra a sentença.
- Permissão concedida - disse Joshua Chamberlain. - No entanto, o prisioneiro será transferido diretamente deste tribunal para o Centro de Ingresso de Presos de
Holloway, em Huntsville. e daí para a penitenciária que lhe foi destinada, para começar a cumprir de imediato a pena pronunciada por este tribunal.
Olhou na direção dos dois guardas. - Meus senhores, por favor - cumpram o vosso dever.
Cada um dos guardas agarrou num dos braços de Carl Bannock e conduziram-no até ao topo das escadas. As correntes nos tornozelos retiniram quando desceu os degraus
para a secção de detenção.
- O tribunal queira levantar-se - anunciou o oficial de diligências. Henry e Ronnie foram as últimas pessoas a sair da sala de audiências.
- Podia ter sido melhor - opinou Ronnie. - Esperava um mínimo de vinte e cinco anos de cadeia. Mas quinze anos terá que servir. Pelo menos, tudo terminou finalmente
e livraste-te da semente podre que te envenenou a família.
- Pergunto-me se terá terminado realmente - disse Henry num tom sombrio. - E se foi mesmo a última vez que eu e as minhas filhas vimos aquele animal pervertido.
67
A carrinha celular tinha estacionado no recinto de segurança, quase completamente encostada à porta das traseiras do edifício do tribunal. As portas traseiras foram
abertas para receber Carl Bannock. As laterais da viatura estavam pintadas com as letras DJPT-DIC: Departamento de Justiça Penal do Texas - Divisão dos Institutos
Correcionais. Carl foi levado para dentro da carrinha e prenderam-lhe as correntes dos tornozelos às argolas no chão entre as suas pernas. As portas foram fechadas
e trancadas e a viatura arrancou para fazer a viagem de mais de cem quilómetros até ao Centro de Ingresso de Presos, em Huntsviile.
O Centro de Ingresso de Presos de Holloway era um bloco quadrado de betão, com quatro pisos e pesadas barras de aço nas janelas. Era protegido por torres de vigia
e por um triplo anel de vedações de arame farpado. A carrinha foi submetida a minuciosas revistas de segurança em cada um dos três portões. Quando alcançou o edifício
principal, os guardas de Carl retiraram-lhe as correntes das pernas e escoltaram-no ao longo de uma série de portões de abertura eletrónica, até à área primária
de receção.
Os seus papéis foram verificados uma vez mais e o seu nome e restantes dados foram inseridos no registo. Depois, o sargento atrás da secretária assinou o documento
de entrega do prisioneiro. Dois novos guardas revezaram os outros dois que o tinham escoltado desde Houston. Carl foi conduzido através de outro portão acionado
por controlo remoto, para o interior da principal área de receção. Foram-lhe confiscados todos os seus objetos pessoais. nomeadamente o anel de sinete em ouro, a
carteira, o Rolex de oure e as roupas de civil. Tudo foi inventariado e guardado em sacos. Quando o guarda lhe deu o livro de registo para assinar, devolveu-lhe
uma nota de dez dólares que tirara da carteira dele.
- Porque me está a dar isto? - perguntou Carl. - És um agressor sexual. É para produtos de higiene básicos. - O que é que isso tem a ver com a minha condenação?
- Não vais tardar a descobrir. - O guarda dirigiu-lhe um sorriso maldoso.
Conduziu Carl à sala da barbearia, onde lhe raparam o cabelo O barbeiro recuou dois passos para admirar o seu trabalho. - Fabuloso! - opinou. - Os rapazolas sulistas
aqui de Holloway vão-te adorar, ó carinha laroca.
Os guardas levaram-no para a zona de duches para se lavar Depois, nu e molhado, foi levado ao armazém, onde lhe entregaram um uniforme através de um postigo. O uniforme
era composto por uma T-shirt e cuecas brancas, casaco e calças largas de lona branca, com cordão na cintura, e mocassins de lona branca.
Levaram-no através de outro portão eletrónico para uma Cela individual numa comprida fileira de celas e trancaram a porta. O mobiliário consistia numa latrina turca
e num beliche de madeira firmemente fixado ao chão e à parede lateral. Havia um único cobertor, mas nenhum colchão. Mais tarde, foi-lhe entregue o jantar através
do postigo: uma tigela de estufado aguado, com um grosso naco de pão dentro.
Cedo na manhã seguinte, foi levado da cela para a sala de interrogatório, onde três membros da direção do Centro de Ingresso esperavam sentados a uma mesa de aço.
Os três eram membros da Divisão dos Institutos Correcionais e envergavam uniforme.
- Carl Peter Bannock. Está correto? - perguntou o homem sentado no meio do trio, sem erguer a cabeça.
- Sim - respondeu Carl. - Sim, senhor! - corrigiu-o o interrogador. - Sim, senhor - repetiu Carl respeitosamente. - Pena de quinze anos, no mínimo. Está correto?
- Sim, senhor. - Agressor sexual e pedófilo. Está correto? - Sim, senhor - disse Carl por entre os dentes cerrados. - É melhor enviá-lo para o Centro Correcional
de Detenção a Longo Prazo de Holloway - disse outro dos membros do painel.
O membro de hierarquia superior sugeriu: - E se o enviássemos para o sexto nível, onde os outros reclusos de longa duração não lhe podem fazer nada? - O único lugar
onde aqueles rapazolas sulistas não lhe vão conseguir deitar a mão é lá no céu, e este lindinho nunca conseguirá chegar tão alto. - O terceiro membro do painel riu-se
à socapa e os outros riram por entre dentes.
Nessa tarde, outra carrinha celular do DJPT-DIC levou Carl cerca de trinta quilómetros mais para sul, para o interior da zona histórica da escravatura do algodão,
onde, no meio de numa paisagem árida e incaracterística, a penitenciária de Holloway se erguia sob a forma de um enorme monumento de betão cinzento, erigido à infâmia
da humanidade.
Ali, a segurança era ainda mais rigorosa do que no Centro de Ingresso. A carrinha demorou vinte minutos a passar pelo anel
composto pelas três vedações, até estacionar na entrada reservada à receção dos presos. Depois, mais vinte e cinco minutos de espera até tirarem as algemas e as
correntes a Carl e o transferirem do piso térreo para o seu destino final, no sexto e último nível do edifício.
Do elevador, foi conduzido ao longo de um corredor curto até uma porta onde se lia GABINETE DO SUPERVISOR DE NÍVEL. Um dos guardas bateu à porta e um berro abafado
respondeu-lhe do interior. Abriu a porta e fez sinal a Carl com a cabeça para entrar. O supervisor de nível estava sentado atrás da secretária. No crachá de plástico
preso à camisa lia-se LUCAS HELLER.
Lucas estava de botas pousadas no tampo da secretária e baloiçava a cadeira equilibrando-a nas duas pernas traseiras. Deixou a cadeira cair para a frente, com enorme
estrondo, até ficar apoiada nas quatro pernas, e levantou-se. Era alto, de ombros curvados e esguio. O cabelo ruivo já lhe rareava, mas o que restava dele caía-lhe
sobre a testa. As orelhas, enormes, eram desproporcionais
para o rosto comprido e pálido. Os olhos também eram pálidos e aquosos, mas a ponta do nariz era rosada e tinha as narinas húmidas devido à rinite. Os dois dentes
superiores da frente sobressaíam ao ponto de lhe conferirem um ar de coelho anémico.
Tinha um pingalim na mão direita. Contornou a secretária e girou com lentidão em redor de Carl nas suas pernas de cegonha. Fungou ruidosamente, com um som líquido,
enquanto estendia o braço e passava a ponta de couro do pingalim sobre as nádegas do preso. Carl sobressaltou-se e Lucas voltou a fungar, soltando risadinhas como
uma colegial.
- Bom - disse. - Muito bom. Vais encaixar bem aqui. - Piscou o olho a um dos guardas. - Vais encaixar mesmo muito bem, se me faço entender. - Sim! Entendi-o muito
bem, chefe. - O guarda desatou às gargalhadas.
Lucas voltou a colocar-se à frente de Carl e sentou-se na borda da secretária. - Já te deram os teus dez dólares para os produtos de higiene básicos, ó Bannock lindinho?
- Sim, chefe. - Dá-mos cá. - Lucas estendeu a mão e estalou os dedos. Carl enfiou a mão no bolso das calças de lona branca e tirou a nota amarrotada. Lucas arrancou-lha
da mão. Depois, voltou para trás da secretária e abriu uma das gavetas, de onde tirou uma garrafa plástica grande e a fez deslizar sobre o tampo na direção de Carl.
- Aí tens.
Carl pegou na garrafa e examinou o rótulo. - "Óleo essencial Macassar12 de primeira qualidade. Ideal para o cabelo" - leu em voz alta, com um ar perplexo.
- O que devo fazer com isto, chefe? - Já vais saber quando chegar a altura - assegurou-lhe Lucas. - Aconselho-te a mantê-la à mão. - Olhou para o guarda. - Tens
o recibo desta mercadoria?
Nota de Rodapé: Óleo de coco ou de palma, muito perfumado, assim designado por ter sido fabricado originalmente a partir de ingredientes comerciados no porto de
Makassar, na Indonésia.
Fim da Nota.
- Aqui mesmo, chefe. - O guarda pousou o livro de recibos à frente dele e Lucas escrevinhou a sua assinatura.
- Muito bem, rapazes. Tragam-no. - Conduziram Carl de volta pelo corredor e através de outra porta robusta, até ao interior de uma comprida galeria de aço cinzento
e betão de um cinzento mais escuro. O teto abobadado era de vidro blindado. Feixes retangulares de brilhante luz solar, repletos de partículas de poeira prateadas,
incidiam no chão. De cada um dos lados da galeria estendia-se uma comprida fila de celas de grades de aço. Vultos indistintos agarravam-se às grades ou mantinham-se
acocorados no interior, espreitando Carl enquanto era conduzido pelo guarda. Alguns deles gritaram-lhe as boas-vindas num tom sardónico e brindaram-no com piropos
e assobiadelas, rindo e enfiando as mãos entre as grades para lhe fazerem gestos obscenos.
Lucas parou à frente da última cela da fila e abriu a porta com a sua chave-mestra eletrónica.
- Bem-vindo à cela número 601. A Suíte Nupcial. - Lucas sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Assim que Carl entrou, a porta deslizou e fechou-se atrás dele. Lucas
e a escolta refizeram o mesmo trajeto pelo corredor, sem nunca olharem para trás.
Carl sentou-se no único beliche existente e olhou em redor da cela. Não era maior do que a sua cela no Centro de Ingresso. A única melhoria era o pequeno lavatório
de aço inoxidável ao lado da latrina turca e um banco à frente de uma pequena mesa. Cada peça de mobiliário estava presa às paredes para evitar ser usada como arma.
Este seria o seu lar pelo menos durante os seguintes quinze anos, um pensamento que o fez perder o ânimo.
Às seis da tarde, soou uma campainha e Carl, seguindo o exemplo dos outros reclusos, postou-se à porta da sua cela. Todas as portas das celas desse nível se abriram
em simultâneo e os presos saíram para a galeria.
Ao som das ordens gritadas pelos guardas armados na passarela de aço em cima, todos se viraram e seguiram em fila até ao refeitório na outra ponta da galeria. À
medida que cada recluso passava à frente do postigo da cozinha, era-lhe entregue um pequeno tabuleiro de plástico por um dos homens na cozinha. O jantar era uma
tigela de sopa, outra tigela de estufado de carne de carneiro e uma rodela de pão branco. Carl sentou-se a uma das mesas de aço nu, mas nenhum dos outros reclusos
se juntou a ele. Formavam grupos com outros presos da mesma origem étnica. Alguns deles estavam manifestamente a falar de Carl, mas, como ele não conseguiu ouvir
o que estavam a dizer, ignorou-os. Disse a si mesmo. com amargura, que teria muitos mais anos para encontrar o seu lugar naquela sociedade pervertida.
Tinham vinte minutos para comer e, após esse tempo, os guardas nas passarelas no alto ordenaram-lhes que voltassem para as suas celas.
O encerramento das celas era às sete e trinta. Carl deitou-se de costas no beliche, de pernas cruzadas e com as mãos atrás da nuca. Estava exausto. Tinha sido um
dia de preocupações e incertezas. Pelo menos o jantar fora comestível e ansiava que as lâmpadas de arco voltaico que iluminavam a cela fossem desligadas para a noite.
Mas tinham-no advertido de que isso nunca iria acontecer.
Começou a dar-se conta gradualmente de que as vozes dos presos nas celas à sua volta se reduziam a sussurros expectantes e a risos abafados. Soergueu-se e olhou
através das grades para a comprida galeria, mas a sua visão era limitada e não conseguiu descortinar nenhuma razão para a atmosfera carregada que parecia ter-se
apoderado dos outros reclusos no Nível Seis.
Depois, ergueu-se e lançou as pernas sobre a beira do beliche quando se apercebeu do estrépito de passos que se aproximavam ao longo da galeria. Lucas Heller, o
supervisor do nível, entrou no seu campo de visão. Empunhava o seu pingalim. Usava um chapéu regulamentar e um uniforme engomado.
- De pé, prisioneiro! - ordenou. Carl levantou-se do beliche. - Estás a gostar da tua primeira noite em Holloway, Bannock- - Tudo bem, chefe. - O jantar estava bom?
- Não tenho queixas, chefe.
- Estás aborrecido? - Nem por isso, chefe. - Então estás com azar, Bannock. Porque trouxe comigo alguns dos rapazes sulistas para te fazerem companhia. Alguns deles
já estão aqui há vinte anos ou mais e entediados de morte. Nenhum deles esteve com uma mulher nesse tempo todo, e andam todos pra'í com um bruto tesão, isso te garanto!
Carl retesou-se e sentiu a pele eriçar-se. Tinha ouvido as piadas e os rumores, mas quis acreditar que não eram verdadeiros e que isso nunca lhe aconteceria a ele.
Mas havia homens estranhos a amontoarem-se atrás de Lucas.
- Posso apresentar-te o senhor Johnny Congo? - Lucas pousou a mão no ombro do homem mais próximo dele. Lucas era alto, mas teve de esticar o braço à altura da cabeça
para poder fazê-lo. O homem parecia ser uma enorme montanha de antracite. A cabeça era redonda e lisa como uma bola de canhão. Usava apenas T-shirt e calções, de
modo que Carl pôde reparar que os membros dele eram como toros de madeira dura, negros como ébano, todo ele músculo rijo e osso, quase desprovido de qualquer sinal
de gordura. - O senhor Congo está a viver lá em baixo no corredor da morte enquanto o Supremo Tribunal considera o recurso que ele interpôs. Está connosco há oito
anos e é altamente respeitado aqui em Holloway, de modo que tem direitos de visita especiais. - Lucas ergueu a mão, de palma virada para cima, e Johnny Congo colocou
uma nota de vinte dólares nela. Lucas sorriu em agradecimento e premiu o botão de abertura da porta. A porta gradeada deslizou para o lado.
- Pode entrar, senhor Congo. Demore todo o tempo que quiser. Divirta-se.
Congo entrou na cela e os outros homens amontoaram-se junto à porta gradeada atrás dele, acotovelando-se uns aos outros para conseguirem as melhores posições e sorrindo
de expectativa.
- Tens aí o teu óleo Macassar, lindinho? - perguntou Congo a Carl. - Tens trinta segundos para te besuntares e te pores de joelhos, senão enrabo-te a seco.
Carl recuou para longe dele. Estava mudo de terror e começou a choramingar. - Não. Não, por favor, deixa-me em paz.
A cela era exígua e bastaram três passadas de gigante para Congo o encurralar no canto. Esticou a mão e agarrou no antebraço de Carl. Com um rápido girar do punho,
lançou-o de cara contra o beliche.
- Baixa as calças, lindinho. Dá-me cá o óleo. - Foi então que o próprio Congo viu a garrafa de óleo Macassar na prateleira por cima do lavatório, onde Carl a colocara.
Pegou nela e tirou a tampa. Voltou para junto do beliche. Carl enrolara o corpo numa bola, com os joelhos encostados ao queixo. Congo virou-o de cara contra o beliche,
enfiou um joelho entre as omoplatas de Carl e arrancou-lhe o cordão das calças. Segurou a garrafa no alto e despejou metade do conteúdo em cima das nádegas de Carl.
- Quer estejas pronto ou não, aqui vou eu! - disse Congo enquanto se punha em posição atrás de Carl.
- Não... - choramingou Carl, e depois gritou. Foi um som da mais profunda angústia. Cada um dos homens que aguardavam a sua vez pagaram a Lucas o preço da entrada,
como espectadores num jogo de futebol, e depois apinharam-se dentro da cela, atrás do par no beliche. As suas vozes eram roucas de desejo e excitação. Um deles entoou:
- Dá-lhe, Congo! Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe!
Os outros riram-se e retomaram o refrão. - Dá-lhe, Congo, dá-lhe! De repente, Congo arqueou as costas, lançou a cabeça para trás e soltou um urro como um touro no
cio. O homem atrás dele ajudou-o a sair e ocupou imediatamente o seu lugar. Carl voltou a gritar.
- Meu Deus, como ele canta tão doce - disse o terceiro homem na fila.
Na altura em que o quinto homem se aproximou dele, Carl já não gritava mais. Quando o último homem terminou, abanou a cabeça, desiludido, enquanto se afastava.
- Parece que já desmaiou e deixou-nos aqui pendurados, pá Congo estivera sentado no beliche ao lado de Carl. Levantou-se e disse: - Ná, ainda continua a respirar.
Se está a respirar.
então ainda aguenta mais um bocadinho de amor. - Pôs-se atrás de Carl uma vez mais.
O homem de confiança da enfermaria da prisão tinha sido convidado para a festa, tanto a título pessoal como profissional. Acercou-se no seu papel profissional e
verificou a pulsação de Carl sob o queixo, na artéria carótida.
- Este rapazola já teve o suficiente para esta noite. Ajudem-me a levá-lo lá para baixo e daqui a duas ou três semanas já estará pronto para mais diversão.
68
Ao amanhecer, Carl encontrava-se num estado crítico devido ao trauma e à perda de sangue. Foi chamado o médico da sede central. Ordenou que Carl fosse transferido
para as principais instalações médicas na Penitenciária Estatal de Huntsville.
No bloco operatório, aspiraram-lhe por sucção a cavidade abdominal inferior e quase lhe retiraram dois litros de sangue e esperma. Depois, o cirurgião suturou-lhe
os vasos sanguíneos rasgados. reparou-lhe cirurgicamente as lesões no quadrante inferior do cólon e administrou-lhe três litros de sangue por transfusão.
Durante a sua convalescença nas instalações médicas de Huntsville, Carl teve autorização para fazer chamadas e receber visitas. Telefonou para o Carson National
Bank em Houston e pediu ao seu gerente de conta para o visitar. Carl era um cliente importante e o gestor de conta anuiu de imediato.
Carl tinha trabalhado para o seu pai adotivo e para a Bannock Oil Corporation durante dois anos e dois meses antes da sua detenção. Henry estipulara-lhe um salário
inicial no belo montante de cento e dez mil dólares mensais. Henry acreditava firmemente no método de incentivos e punições. Também acreditava que o seu único filho
varão merecia ser tratado de forma principesca.
Para grande espanto e profunda satisfação de Henry, Carl revelara quase de imediato uma extraordinária perspicácia para os negócios que estava muito para além daquilo
que Henry esperaria de alguém com essa idade e inexperiência. No final do primeiro ano, Henry sentiu um enorme orgulho ao aperceber-se de que Carl era um génio financeiro,
cujos dotes naturais rivalizavam, e em alguns acasos até excediam, os seus. Carl viria a demonstrar uma assombrosa capacidade para farejar possíveis lucros, com
a mesma prontidão com que uma hiena esfomeada conseguia detetar uma carcaça em decomposição. O seu salário subiu exponencialmente à medida que os seus talentos se
desenvolviam e floresciam. No final do seu segundo ano na Bannock Oil, já tinha conquistado o seu lugar no conselho administrativo da companhia, e o montante total
do seu salário e honorários como diretor ascendia a duzentos e cinquenta mil dólares por mês. De acordo com as cláusulas estipuladas na escritura, o Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock estava obrigado a pagar-lhe por mês uma soma adicional três vezes superior ao montante dos seus ganhos pessoais. Em resultado da generosidade
do pai, mesmo depois de pagar meticulosamente os seus impostos, Carl tinha conseguido acumular um saldo de crédito muito superior a cinco milhões de dólares, de
modo que o gestor de conta acedera de imediato ao seu pedido.
Ao sexto dia, Carl já tinha recuperado suficientemente das lesões retais para poder ser transferido para a enfermaria do Centro de Holloway. Levou consigo o novo
livro de cheques que o gestor de conta lhe facultara. Da enfermaria, Carl conseguiu enviar uma mensagem a Lucas Heller através do enfermeiro de serviço. A mensagem
dizia que Lucas deveria falar com ele se desejava saber uma coisa que seria do seu grande benefício.
Lucas condescendeu em descer à enfermaria para ver Carl, principalmente pela oportunidade de poder troçar dele confinado à cama. De forma a manter a conversa aliciante,
e como sinal da sua boa-fé, Carl deu-lhe um cheque de cinco mil dólares ao portador pelo Carson National Bank. Lucas leu o montante com estupefação: raras vezes
tivera tanto dinheiro nas mãos de uma só vez, mas a experiência havia-o ensinado a não confiar em fadas madrinhas. Recusou-se a acreditar naquele golpe de sorte
até ter a oportunidade de ir apressadamente à cidade levantar o cheque na filial local do banco.
O caixa pagou-lhe sem levantar a mínima objeção. De cético tornou-se prontamente num crente. Regressou ao Centro de Holloway e voltou a visitar Carl. Nesta ocasião,
os seus modos eram profundamente deferentes e obsequiosos.
Carl ordenou-lhe então que veiculasse uma mensagem a Johnnv Congo no corredor da morte. Por essa altura, Carl já compreendera todas as estruturas de poder subjacentes
ao Centro de Hollowav. Ficara a saber que Johnny Congo exercia uma enorme influência em toda a prisão. À semelhança de uma grotesca aranha devoradora de carne humana,
mantinha-se no centro da sua teia e manipulava os fios, que se estendiam até ao gabinete do diretor do complexo prisional.
Ao longo dos anos, o diretor fora depositando uma enorme confiança em Congo para manter a ordem entre os reclusos. Se Johnny passasse a palavra de ordem para que
houvesse "paz e cooperação". então a administração do centro conseguia manter uma certa aparência de ordem no meio de um sistema que parecia especificamente concebido
para produzir o caos.
No entanto, se Johnny Congo dissesse "Motim!", rebentavam incêndios por todo o centro; os guardas eram esfaqueados nas oficinas, ou nas galerias, ou nas passarelas;
os reclusos assumiam o controlo dos refeitórios e do pátio da prisão. Partiam o mobiliário e demais acessórios. Assassinavam alguns dos seus companheiros para darem
vazão a velhos rancores ou em obediência às ordens de Johnny Congo. Atiravam objetos e gritavam insultos aos guardas. até que a Guarda Nacional fosse chamada com
equipamento antimotim completo. E, no rescaldo final, as classificações do desempenho do diretor caíam a pique.
Graças à sua cooperação com a administração, Johnny Congo tinha conquistado privilégios especiais. Assim que novos detidos chegavam ao centro, podia escolher os
mais bonitos entre eles. como Carl sentira pessoalmente na pele. Como a sua cela nunca era revistada, as suas reservas de droga e outros luxos nunca eram devassados.
Permitiam-lhe, inclusive, ter telemóvel na cela, de modo que podia comunicar com os seus contactos e parceiros de crime no mundo exterior. A sua pena de morte estava
obstruída algures no sistema; corriam rumores de que o governador do Texas tratara para que assim fosse. Os mais bem informados estavam a apostar que Johnny morreria
de velhice, sem qualquer ajuda do homem da injeção letal na câmara de execução de tijoleira branca.
Se alguém incorresse no desagrado de Johnny Congo, era apenas uma questão de dias até que a questão fosse resolvida à navalhada no pátio da prisão, ou às primeiras
horas da madrugada, na privacidade da própria cela do ofensor, que teria sido convenientemente deixada destrancada pelo Supervisor de Nível.
Corria o rumor de que a influência de Johnny Congo se estendia muito para lá dos muros da prisão. Acreditava-se que ele mantinha fortes laços com organizações criminosas
e gangues de todo o Texas e estados circundantes. Por um preço muito razoável, Johnny dispunha-se a corrigir problemas em cidades tão distantes como San Diego e
São Francisco.
Lucas Heller demorou quase uma semana a conseguir o encontro entre Carl e Johnny Congo, mas, no final, o gabinete do supervisor do corredor da morte foi colocado
à disposição e os dois reuniram-se às três da madrugada de um domingo, quando o resto do centro estava trancado para a noite. O Supervisor de Nível e quatro dos
seus guardas esperaram à porta, mas não interferiram.
Assim que Carl e Congo ficaram a sós, avaliaram-se um ao outro com desconfiança, como dois leões de juba negra de grupos rivais que se tivessem cruzado em território
disputado na savana africana. Por esta altura, Congo já percebera que Carl não era mais uma cara linda. Sabia que Carl era filho de Henry Bannock e conhecia o poder
e a riqueza da Bannock Oil Corporation.
- Querias falar comigo, lindinho? - Preciso da sua proteção, senhor Congo. - Carl não desperdiçou tempo. - Podes apostar esse teu lindo cuzinho que precisas mesmo,
pois em pouco tempo ia deixar de ser assim tão lindo e macio. Mas porque é que eu te deveria proteger?
- Posso pagar-lhe. - Sim, pá, talvez seja motivo suficiente para eu o fazer. Mas de quanto dinheiro estamos aqui a falar, rapaz?
- Diga-me o senhor. Congo pôs-se a catar o nariz enquanto ponderava a questão. Por fim, examinou a crosta de muco seco que retirara da narina esquerda
e sacudiu-a do dedo antes de anunciar o seu preço. - Cinco mil dólares a cada mês, em notas de um e cinco dólares, entregues aqui em Holloway. Não me servem de nada
lá fora. - Tinha estabelecido uma quantia escandalosamente exagerada, na esperança de que Carl regateasse.
- Que quantia mais ridícula, senhor Congo - disse Carl. Johnny Congo ficou ofendido e cerrou os punhos, que mais pareciam grossos presuntos negros. - Para um homem
do seu estatuto e posição elevada, estava a contar pagar-lhe dez ou até quinze mil dólares por mês.
Johnny Congo pestanejou e descerrou os punhos. Começou a sorrir de um modo paternal. - Estou-te a ouvir, lindinho, e estou a gostar do que ouço. Quinze mil parece-me
bastante bem.
- Tenho a certeza de que conseguirá arranjar uma forma de lhe entregarem o dinheiro desde o banco até ao local onde o quer ter. Diga-me só o que devo fazer e assim
farei. Ponho a minha mão no fogo, senhor. - Estendeu-lhe a mão. Congo estendeu a mão e, enquanto lha apertava, disse numa voz retumbante: - É mais do que a tua mão
o que está em jogo. rapaz. É toda a tua linda vidinha.
- Eu sei que sim, senhor Congo. Mas, se quer mesmo ganhar uma grande pipa de massa, devíamos fazer negócios juntos.
- Que tipo de negócios? - Congo quase se ria na cara dele. - Ora conta aí, lindinho.
Carl falou durante cerca de quarenta minutos e Congo manteve-se inclinado para a frente, ouvindo-o quase sem o interromper. No final, sorria de orelha a orelha e
os olhos brilhavam-lhe.
- Como sei que vais cumprir com o que dizes, rapaz? - perguntou-lhe por fim.
- Se eu não cumprir, então pode retirar-me a sua proteção senhor Congo.
Foi um encontro decisivo, do qual só poderia emergir uma aliança ímpia: um jovem génio de natureza retorcida a aliar os seus talentos aos estratagemas de um monstro
implacável que tinha poderes de vida e morte sobre os outros. Ambos eram psicopatas, completamente desprovidos de compaixão, escrúpulos ou remorsos.
Ao longo dos anos seguintes, os lucros dos seus vários empreendimentos, inicialmente concebidos por Carl e depois promovidos por Johnny Congo, eram primeiro lavados
e branqueados. Os amigos de Johnny no exterior voluntariavam-se com avidez para os auxiliar nesse processo. Depois de o dinheiro ter sido lavado, era pessoalmente
distribuído a Carl sob a forma de dividendos, e de honorários para o diretor da prisão, através de uma companhia nas ilhas Virgens Britânicas que Carl tinha criado
quando ainda estudava em Princeton. O valor das receitas finais era quadruplicado pelo Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock. No final, a enorme soma total era
dividida entre Carl e Johnny Congo e ocultado em contas bancárias numeradas em Hong Kong, Moscovo, Singapura e noutras cidades espalhadas pelo globo, onde nem mesmo
o poderoso braço da Administração Fiscal dos Estados Unidos conseguiria chegar.
De modo a facilitar a operação dos seus empreendimentos, tanto dentro como fora da prisão, Carl e Johnny depressa se viram na necessidade de incluir Marco Merkowski,
o diretor do Centro Correcional de Holloway, como sócio comanditário. Assim que o envolveram no seu primeiro esquema ilegal, Marco deu por si completamente às mãos
de Carl Bannock e de Johnny Congo.
69
Carl foi transferido do nível seis para a unidade do nível um. onde estavam alojados os condenados com regalias e outros reclusos de cadastro imaculado por motivo
de bom comportamento. A cela onde ficou instalado tinha o triplo do tamanho da sua cela anterior no nível seis. Dispunha de um televisor e do seu próprio telemóvel.
O telemóvel era um elemento essencial na gestão dos interesses comerciais da aliança. Por um feliz acaso, Carl deu por si a operar num mercado ferozmente em alta.
Todos os seus antigos contactos continuavam nos seus postos e os instintos do jovem Carl para o lucro mantinham-se infalíveis. Nos seus lentos dias na prisão, Carl
continuava a ter muito tempo para concentrar a sua mente fecunda a planear o futuro. Já se tinham passado mais de cinco anos desde a sua detenção. O seu cadastro
prisional não tinha máculas, graças aos bons ofícios do diretor Merkowski. A pena mínima inicial de quinze anos pronunciada pelo juiz Chamberlain tinha sido reduzida
em recurso para um mínimo de doze anos. Carl já quase cumprira metade dessa sentença. Ainda só tinha trinta anos, mas já era um multimilionário astuto e muito sabido,
desejoso de enfrentar o mundo nos seus próprios termos assim que saísse pelos portões do Centro Correcional de Holloway.
Graças aos múltiplos contactos de que ele e Johnny Congo dispunham no exterior, Carl mantinha-se sempre completamente informado acerca dos movimentos do pai e dos
passos de todos os outros beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
Infelizmente para Carl e para as suas aspirações financeiras, o pai tinha conhecido uma tenista profissional, uma campeã trinta anos mais nova do que ele, consideravelmente
mais jovem do que o próprio Carl Bannock. Carl tinha visto fotografias dessa mulher. Chamava-se Hazel Nelson e era loira, atlética e encantadora. Apenas alguns meses
depois de se terem conhecido, o seu pai e Hazel casaram-se numa magnífica cerimónia na residência de Forest Drive, em Houston. Menos de um ano depois, Hazel deu
à luz uma menina à qual puseram o nome Cayla. O recorde de Henry de gerar apenas progénie do sexo feminino mantinha-se intacto. Na perspetiva de Carl, esta nova
e inoportuna aventura do seu pai viera adicionar mais dois nomes à lista de beneficiários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock.
A lista completa compreendia um total de sete pessoas, incluindo o próprio Carl: Henry Bannock e Hazel Bannock, juntamente com a sua filha Cayla; a mãe de Carl,
Marlene Imelda Bannock, que conservara o apelido do marido depois do divórcio; e as duas meias-irmãs de Carl, Sacha Jean e Bryoni Lee. Usando como base o valor de
mercado das ações da Bannock Oil Corporation na Bolsa de Valores de Nova Iorque, Carl estimou que o valor total do património atual do Fundo Fiduciário da Família
Henry Bannock rondasse os cento e onze mil milhões de dólares. A ideia de ter de partilhar mesmo essa quantia tão vasta com cinco ou seis outras pessoas causava-lhe
um ressentimento feroz.
A partir da sua cela, Carl seguia com enorme interesse pessoal o pedido legal que o pai submetera há muitos anos ao Supremo Tribunal de Washington DC para que Carl
Peter Bannock fosse excluído da lista de beneficiários do Fundo Fiduciário em razão de não ser parente de sangue do dador, e pelo facto de a sua condenação por uma
série de crimes graves o ter desqualificado. Quando os eminentes juízes do Supremo Tribunal rejeitaram por unanimidade o pedido de Henry Bannock, Carl soube então
que somente a morte poderia negar-lhe a sua parte dos fundos fiduciários.
Carl e Johnny Congo celebraram a notícia com uma pequena e discreta festa no corredor da morte, na qual participaram o diretor Merkowski e várias jovens acompanhantes
trazidas de Huntsville para a ocasião. Embora Carl e Johnny Congo se tivessem tornado amantes há muitos anos, ficaram bastante satisfeitos por partilharem o seu
leito conjugal com uma ou duas raparigas bonitas, ou mesmo rapazes quando os havia disponíveis.
A decisão do Supremo Tribunal a seu favor levou Carl a refletir seriamente sobre as muitas cláusulas notáveis que o seu pai estipulara na escritura do Fundo Fiduciário
da Família Henry Bannock.
Carl tinha desenvolvido uma excelente memória durante os seus anos de estudo e, embora nunca mais tivesse tido acesso a uma cópia da escritura original do Fundo
Fiduciário desde o dia em que conseguira abrir a caixa-forte do pai, fizera no entanto anotações detalhadas do seu conteúdo. Durante todo esse tempo houvera sempre
uma cláusula em particular que o pai incluíra na escritura que nunca deixara de o atormentar. A provisão postulava que quando restasse apenas um único beneficiário
vivo, os mandatários do Fundo Fiduciário da Família Henry Bannock deveriam liquidar o fundo, e todo o restante património deveria ser dividido igualmente entre uma
instituição de caridade favorecida por Henry e o único beneficiário vivo, fosse homem ou mulher.
Carl decidiu que chegara a altura de aproveitar ao máximo essa cláusula enquanto permanecia oculto da visibilidade pública nas profundezas do Centro Correcional
de Holloway, e enquanto as paredes de betão que o aprisionavam continuavam a funcionar como um escudo capaz de defletir possíveis suspeitas sobre ele e lhe forneciam
um álibi inabalável.
O próprio Henry era invulnerável, mas estava a envelhecer rapidamente. Ao ritmo a que ele vivia a vida, não duraria muitos mais anos. Através dos seus informadores,
Carl inteirara-se de que Henry já começava a dar sinais de esmorecer. Carl sabia que tinha um aliado no Anjo da Morte e estava preparado para esperar.
Hazel e a sua jovem filha Cayla estavam protegidas pelo pesado manto de majestade que Henry Bannock lançara sobre todos aqueles que o rodeavam de mais perto. Hazel
e Cayla ainda não estavam vulneráveis. Mas a sua hora chegaria assim que Henry ficasse fora do caminho.
O mesmo não se aplicava à sua mãe alcoólatra, Marlene Imelda, que ele desprezava; e também não se aplicava às suas meias-irmãs, por quem nutria um ódio profundo
e amargo. Eram diretamente responsáveis pela sua encarceração e pelos muitos anos desperdiçados da sua vida que era obrigado a passar atrás de barreiras de aço e
betão, na companhia de criaturas mais abjetas do que qualquer fera da selva. Carl ficara a saber que a condição mental da sua irmã mais velha Sacha, melhorara de
forma tão significativa desde que ele fora encarcerado que os seus médicos puderam finalmente dar-lhe alta do Hospital Psiquiátrico de Nine Elms e entregá-la aos
cuidados da sua mãe. Sacha fora viver então com Marlene nas ilhas Caimão. A relação entre mãe e filha tinha florescido no âmbito dessa nova intimidade. Marlene não
ficou curada da sua dipsomania; no entanto, a tutela da sua primogénita dera-lhe o incentivo de que precisava para tentar tornar-se abstémia. Devotava agora todo
o seu amor e atenção a Sacha, e esta correspondia-lhe com enorme gratificação.
Quando Henry Bannock casou com Hazel Nelson e Cayla nasceu, Bryoni decidiu sair de Forest Drive e mudar-se para as ilhas Caimão para estar com a mãe e a irmã. Por
essa altura, Bryoni não era muito mais jovem do que a sua madrasta Hazel. As duas raparigas tinham personalidades muito fortes e competitivas e ambas disputavam
ferozmente a atenção de Henry Bannock. Tivessem sido outras as circunstâncias e talvez se houvessem tornado amigas, mas o nascimento da bebé Cayla fizera pender
a balança nitidamente a favor de Hazel. Era agora não só a nova patroa de Forest Drive, como também a mãe da filha mais nova de Henry. Henry estava perdido de amores
por Hazel e tratou de a encorajar quando ela começou a desenvolver um grande interesse pelos negócios da Bannock Oil Corporation. Pouco tempo depois, Henry atribuiu-lhe
o cargo na administração da companhia que Carl deixara vago após a sua condenação.
Hazel ocupou o seu lugar à mesa do conselho de administração, à direita de Henry. Ela era tudo para Henry Bannock: amante, esposa, mãe da sua filha, parceira nos
negócios e companheira íntima.
Bryoni, por seu lado, não tinha nenhum interesse particular pela Bannock Oil Corporation. Graças ao Fundo Fiduciário, dispunha de todo o dinheiro de que precisava,
e não era gananciosa. Possuía alguns dos outros talentos que Hazel possuía em abundância e que a tornavam tão valiosa e desejável aos olhos de Henry Bannock. Bryoni
não podia competir com ela a nenhum nível. De modo que partiu para a Grande Caimão nas Caraíbas, onde Marlene e Sacha a receberam com um entusiasmo comovente, e
onde ela pôde servir um propósito que era simultaneamente muito valorizado pelas duas pessoas que ela mais amava e que a realizava em pleno.
Na perspetiva de Carl, esse passo fora também muito favorável: três dos beneficiários do Fundo Fiduciário tinham sido removidos do escudo de proteção do pai e para
longe da jurisdição e tutela do governo dos Estados Unidos da América, para uma ilha isolada
onde estavam muito mais vulneráveis e acessíveis às atenções dos amigos de Johnny Congo.
Carl elaborou os seus planos com grande minúcia e atenção aos detalhes. Congo participou com entusiasmo nesse empreendimento. Dispunha de contactos nos cartéis de
cocaína nas Honduras e na Colômbia, os quais estavam sempre interessados em ganhar uns dólares extra em projetos secundários e mais mundanos.
O contacto de Johnny nas Honduras era um indivíduo chamado Sefior Alonso Almanza, cujo quartel-general se situava no porto de La Ceiba, onde operava duas velozes
lanchas de longo percurso. com doze metros de comprimento. Eram geralmente usadas para o contrabando de cocaína a coberto da noite, para o norte do México. Texas
ou Louisiana. No entanto, nesses últimos tempos a guarda costeira americana tinha-se tornado um pouco problemática, de modo que as suas potentes embarcações estavam
subaproveitadas
A distância entre La Ceiba e as ilhas Caimão era inferior a quinhentas milhas marítimas: um trajeto fácil e quase um passeio para as enormes e rápidas lanchas Chris-Craf
t.
- O Alonso é um bom tipo, de absoluta confiança. Não tenho remorsos em despachar alguém desta pra melhor se o preço for atrativo. Acho que não conseguíamos arranjar
ninguém mais indicado - disse Johnny Congo a Carl.
- Agrada-me a descrição que fazes dele, e os preços que ele pede são em conta. Mas e quanto ao reconhecimento inicial? Tens alguém lá na Grande Caimão que possa
fazer isso para nós?
- Não há problema, lindinho. - A alcunha, que começara por ser deliberadamente pejorativa, tornara-se agora num termo carinhoso entre os dois. - Há também um agente
imobiliário em George Town que chegou a fazer uns trabalhinhos pra mim. Nada melindroso. Basta dizer-lhe que queremos fazer uma oferta anónima por uma propriedade
na ilha e que precisamos duma descrição completa de tudo o que contém, incluindo o pessoal doméstico e ocupantes.
- Contacta-o então, Negrão. - Qualquer outra pessoa que chamasse isso a Johnny Congo na cara sofreria uma morte prematura e dolorosa. - Acima de tudo, precisamos
de obter informações sobre as medidas de segurança na propriedade. Se conheço bem o meu pai, e posso garantir-te que sim, devem ser apertadas. Vamos precisar de
saber em que quarto dorme a minha mãe e onde podemos encontrar as minhas duas irmãs. Quase apostava que os quartos delas são logo ao lado do da querida mamã.
O contacto de Johnny Congo na Grande Caimão era um inglês aposentado, chamado Trevor Jones, que decidira passar os seus dias de reforma numa ilha paradisíaca tropical.
No entanto, para seu grande desgosto, descobrira que o paraíso saía a um preço caro e que a sua pensão não dava para esticar tanto como esperara. De bom grado aceitara
aquela lucrativa missão proposta por Carl Bannock. Conseguiu obter, no gabinete de topografia do governo, uma cópia da planta da propriedade The Moorings, a residência
dos Bannocks junto à praia. Depois tratou de desencantar uma antiga criada de quarto da Sra. Marlene Bannock que tinha sido despedida das suas funções por ter roubado
um par de anéis de pérola da caixa de joias da Menina Sacha Bannock. Chamava-se Gladys e abandonara The Moorings com um rancor de todo o tamanho.
Juntos, Gladys e Trevor Jones examinaram atentamente a planta da casa. Ela mostrou-lhe em que quartos os três membros da família dormiam e onde se situava a sala
dos guardas de segurança. Conhecia as rotinas de patrulha dos guardas. Havia máquinas de marcar o ponto dispersas por vários locais da propriedade que mantinham
os guardas a cumprir um rigoroso horário de trabalho. Os turnos mudavam a horas muito precisas, de modo que os movimentos dos guardas eram previsíveis. Gladys também
lhe forneceu uma lista do pessoal doméstico. A maior parte dos empregados tirava folga ao domingo e só retomava as suas funções após o fim de semana.
Gladys conhecia a localização exata de cada um dos numerosos sensores de alarme espalhados pela propriedade. Obviamente que as palavras-passe tinham sido substituídas
depois de ela ter sido despedida, mas o seu companheiro continuava empregado em The Moorings como ajudante de cozinha e de bom grado lhe forneceu as novas palavras-passe.
A brecha através do recife de coral estava assinalada com balizas luminosas, bem como o canal de acesso ao ancoradouro à frente de The Moorings. Jones saiu no seu
pequeno barco de pesca a remos e procedeu a algumas medições furtivas, bem como a um ou dois outros preparativos. Durante a maré alta na primavera, o canal tinha
uns bons três metros de profundidade no ponto mais baixo. havendo, pois, água mais do que suficiente mesmo para uma das enormes lanchas Chris-Craft.
Todo este pacote de informações foi enviado a Johnny Congo. O custo total para Carl ficou abaixo dos quatro mil dólares, o que ele considerou um ótimo negócio.
As informações foram depois reencaminhadas para o Seior Alonso Almanza, em La Ceiba, juntamente com detalhadas instruções adicionais e um pagamento antecipado, por
transferência bancária, de setenta e cinco mil dólares, até à finalização do contrato no valor de duzentos e cinquenta mil dólares.
- Vou contar-te um pequeno segredo, Negrão. - Carl dirigiu um sorriso a Johnny Congo. - Quando tens dinheiro suficiente. podes fazer e ter tudo o que quiseres. Ninguém
te consegue dizer não.
- Nem mais, lindinho! Dá cá mais cinco! - Johnny ergueu a mão direita e bateram as palmas das mãos.
70
Vinte e oito dias mais tarde, a lancha Pluma de Mar do Sefior Almanza aproveitou a claridade da lua cheia para atravessar furtivamente a brecha no recife e entrar
na baía Old Man na costa norte da Grande Caimão. O casco estava pintado de preto mate, de modo que era quase invisível, mesmo com o luar. Zarpara de La Ceiba ao
meio-dia no dia anterior e a sua chegada ao destino tinha sido programada exatamente para as três menos um quarto da madrugada de domingo, a hora das bruxas, quando
apenas salteadores, lobisomens e piratas deveriam rondar a escuridão.
O Pluma de Mar transportava uma tripulação de onze elementos. Usavam fatos de treino pretos e capuzes escuros na cabeça, com fendas para os olhos e para a boca.
Prenderam a embarcação a uma das boias sinalizadoras do canal, a setenta metros da orla da praia onde se situava The Moorings. Trevor Jones tinha colocado um minúsculo
rádio na boia para se orientarem. Deixaram um tripulante a bordo para tomar conta da embarcação e lançaram à água um bote insuflável de motor fora de borda e movido
a bateria que os transportou em silêncio até à margem.
Alcançaram a praia às três horas em ponto, quando as patrulhas de segurança se tinham reunido na sala da guarda para a mudança de turno e para tomarem café. Dois
dos homens mascarados apressaram-se a desativar os sensores de alarme e a desimpedir o caminho para os companheiros que seguiam atrás. Quando o grupo de assalto
irrompeu pela sala da guarda, apanharam completamente de surpresa os quatro homens aí reunidos. Poucos minutos depois, já os tinham amordaçado e amarrado com fita
adesiva e desligaram o sistema de alarme no principal painel de controlo.
Depois precipitaram-se em redor da piscina e arrombaram a porta da casa com um pé-de-cabra. Sabiam exatamente para onde se dirigiam: atravessaram as salas de estar
e subiram a escadaria principal até às suítes. Dividiram-se em três grupos ao chegarem ao topo das escadas. Cada grupo avançou com rapidez para a suíte que lhe tinha
sido destinada. Invadiram as divisões enquanto os ocupantes ainda dormiam profundamente. Arrancaram-nos das camas e amarraram-lhes os punhos com fita adesiva. De
seguida, arrastaram-nos pela escadaria abaixo, em direção ao terraço da piscina, que estava discretamente resguardado por muros altos e por vegetação tropical, de
modo a permitir às mulheres Bannock tomarem banhos de sol nuas.
Um dos elementos do bando tirou uma câmara de filmar da mochila. Era um realizador de Guadalajara, no México, especializado em filmes pornográficos hardcore. Disse
num inglês sofrível às três prisioneiras que choravam aterrorizadas: - Chamo-me Amaranthus. É com prazer que vou fazer documentário sobre vocês. Por favor, não façam
caso de mim e tentem não olhar pra lente da minha câmara, a não ser que vos peça. - Recuou ligeiramente e apontou-lhes a câmara.
O líder do bando postou-se à frente delas. - Sou o Miguel. Vão fazer o que vos disser, senão vão-se arrepender. Nome? Nombre? - gritou-lhes, obrigando cada uma delas
a dizer o nome à vez, virada para a câmara de Amaranthus. Sacha Jean estava emudecida de terror. Bryoni falou pela irmã e disse o nome dela.
- É a minha irmã, Sacha Jean Bannock. Está doente. Por favor. não lhe façam mal.
Sacha caiu de joelhos e borrou as calças do pijama, num som explosivo. Miguel riu-se e deu-lhe um pontapé. - Vaca porcalhona! Levanta-te! - Voltou a pontapeá-la.
Bryoni estendeu as mãos atadas e ajudou Sacha a erguer-se.
O líder do bando virou-se para Marlene e tirou do bolso uma tira de papel. - Estas são as ordens que recebi. - Leu no seu carregado sotaque hispânico: - Marlene
Imelda Bannock. Vais ser executada. A tua morte será testemunhada pelas tuas filhas Sacha Jean e Bryoni Lee. A tua execução vai ser filmada para todas as partes
interessadas poderem ver. Depois, as tuas filhas serão encarceradas para o resto da vida num país estrangeiro.
As pernas de Sacha cederam novamente. Bryoni não conseguiu ampará-la e Sacha caiu contra a borda de mármore da piscina. Enrolou-se na posição fetal enquanto gemia
numa voz estrídula. Começou a bater com a testa na borda de mármore, com tal força que uma das sobrancelhas se rasgou, empapando-lhe os olhos de sangue. Bryoni ajoelhou-se
ao lado de Sacha e tentou impedi-la de se magoar mais.
Marlene gritava, desesperada, enquanto os três homens a arrastavam: - Sê valente, Sacha! Não chores, minha filhinha. Toma conta dela, Bryoni.
Arrastaram-na pelas escadas da piscina e enfiaram-na na água, que lhe dava pela cintura. Potentes holofotes submersos iluminavam o cenário para Amaranthus, que se
ajoelhou junto à borda da piscina para filmar tudo.
Dois membros da tripulação sujeitavam Marlene pelos braços. Olharam para Miguel na borda da piscina.
Miguel disse-lhes: - Bueno! Enfiem-na debaixo de água. Forçaram a cabeça de Marlene sob a superfície da água. Um terceiro homem agarrou-lhe os tornozelos e ergueu-lhos
bem alto. A metade superior do corpo de Marlene ficou completamente imersa. Esperneou de forma frenética e todo o seu corpo se arqueou em convulsões tão violentas
que os homens tiveram dificuldade em a imobilizar.
- Chega! - gritou Miguel. - Tirem-na pra fora por uns segundos. - Os homens ergueram-lhe a cabeça e Marlene engoliu uma golada de água enquanto se debatia por ar.
Depois, jorrou-lhe da boca aberta um misto de água e vómito que a sufocou quando tentou respirar.
- Bueno, já chega. Voltem a enfiar-lhe a cabeça. - Enfiaram-lhe a cabeça debaixo de água no momento em que ela arquejava por ar, acabando por engolir uma nova golada
de água em vez de ar.
Continuaram a submergir-lhe a cabeça a intervalos cada vez mais longos, enquanto Marlene se debatia cada vez mais debilmente. Postado atrás da câmara, Amaranthus
queria aproveitar a cena ao máximo. Era uma das especificações estipuladas por quem lhe dera as ordens, e Amaranthus compreendia que aquilo deveria ser fascinante
para eles. Dilacerada e dividida entre o seu amor pela irmã e pela mãe, Bryoni deixou Sacha e rastejou para junto de Miguel, tentando agarrar-se às pernas dele.
- É a minha mãe. Por favor, não lhe façam isso. Miguel afastou-a com um pontapé e disse aos três homens na piscina: - E agora terminamos. Mantenham a velha megera
debaixo de água.
Uma última e violenta rajada de bolhas assomou à superfície enquanto os pulmões de Marlene se esvaziavam por completo. Ofereceu cada vez menos resistência, até finalmente
parar de se debater. - Ha muerto? - perguntou um deles? - Está morta? - No, esperar un poco más - ordenou Miguel. Bryoni tinha conhecimentos suficientes de espanhol.
Voltou a rastejar para junto de Miguel e agarrou-se de novo à perna dele. - Por favor, seior. Tenha piedade, suplico-lhe.
Dessa vez, ele assestou-lhe um pontapé na boca e Bryoni caiu para trás. Levou as mãos aos lábios que sangravam. - Daqui a nada será a tua vez - disse ele num tom
trocista. - Mas primeiro temos de provar essa tua caminha e a da tua irmã loca. - Puxou a manga para trás para ver as horas no relógio. Depois falou aos homens na
piscina. - Bueno! Já deve bastar. Levantem-na pra vermos.
Um dos homens agarrou uma mão-cheia de cabelos de Marlene e ergueu-lhe o rosto acima da água. Tinha a pele cerosa e pálida. Os olhos arregalados e fixos no vazio.
Melenas de cabelo tombaram-lhe sobre o rosto como algas expostas numa rocha durante a maré vazante. Escorria-lhe água da boca aberta.
- Deixem-na ficar aí - ordenou Miguel. Os homens largaram-na e dirigiram-se para as escadas, deixando o corpo de Marlene a flutuar de rosto para baixo.
- Já estamos aqui há muito tempo. Está na hora de ir - disse-lhes Miguel. - Limpem aquela gaja. - Apontou para Sacha. - El jefe mata-nos se sujarmos o lindo barquinho
dele com bosta.
Arrancaram a Sacha o pijama sujo e atiraram-na nua para a piscina, ao lado do cadáver da mãe. Um deles curvou-se sobre Bryoni e cortou-lhe a fita adesiva que lhe
prendia os punhos.
- Mete-te ali na água com a porcalhona da tua irmã e lava-lhe a merda - ordenou-lhe em espanhol.
Bryoni enfiou-se na água e aproximou-se de Sacha; lavou-lhe o corpo e limpou-lhe o sangue do ferimento por cima do olho, e depois ajudou-a a subir as escadas da
piscina, envolvendo-lhe os ombros com um braço. Sacha não parava de chorar e de olhar para o cadáver de Marlene a flutuar. - Que se passa com a mamã? Porque é que
ela não quer falar comigo, Bryoni? - Sacha voltara a regredir ao estado de uma criança de cinco anos.

 

 


CONTINUA