12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.
CONTINUA
12.
EVERGLADES
Eram cerca de cinco da manhã quando eles deixaram o trem sorrateiramente em Jacksonville.
Ainda estava escuro e as plataformas nuas do grande entroncamento da Flórida estavam mal iluminadas. A entrada da passagem subterrânea ficava a apenas poucos metros do vagão 245 e não havia sinal de vida no trem adormecido, quando desceram a escada. Bond dissera ao cabineiro para manter a porta da cabine deles fechada e as venezianas arriadas depois de sua partida, e pensou que havia alguma chance de não darem por sua falta até que o trem chegasse a St. Petersburg.
Saíram da passagem no saguão de compra de bilhetes. Bond verificou que o próximo expresso para St. Petersburg seria o Meteoro de Prata, irmão do Fantasma de Prata, com chegada esperada às nove horas, e comprou dois assentos no Pullman. Em seguida, pegou Solitaire pelo braço e os dois saíram na rua quente e escura.
Havia duas ou três lanchonetes vinte e quatro horas à escolha, e eles empurraram a porta que anunciava “Boas refeições” através do néon mais brilhante. Tratava-se da pobre e costumeira máquina de servir comida — duas garçonetes cansadas atrás de um balcão de zinco entulhado de cigarros, doces, livros de bolso e revistas em quadrinhos. Havia uma grande máquina de café e uma série de bocas de gás. A porta em que estava escrito “toalete” escondia seus segredos medonhos, ao lado de outra, “particular”, que era provavelmente a entrada dos fundos. Um grupo de sujeitos vestidos de macacões, em uma das dez mesas manchadas, todas com galheteiros, ergueu os olhos por um instante quando eles entraram e, em seguida, retomou sua conversa em voz baixa. Equipes de revezamento das locomotivas, supôs Bond.
Havia quatro reservados estreitos à direita da entrada e Bond e Solitaire pegaram um deles. Consultaram, entorpecidos, o cardápio manchado.
Depois de algum tempo, uma das garçonetes se aproximou displicentemente, apoiando-se na divisória e estudando as roupas de Solitaire.
“Suco de laranja, café, ovos mexidos, dois pedidos”, disse Bond, concisamente.
“Certo”, disse a mulher, e saiu arrastando os pés com displicência.
“Os ovos mexidos serão feitos no leite”, disse Bond. “Mas a gente não consegue comer ovos escaldados na América. Parecem tão repugnantes sem casca, misturados em uma xícara, da maneira como os fazem aqui. Deus sabe onde aprenderam isso. Na Alemanha, aposto. E o café ruim americano é pior que o pior café, até pior que na Inglaterra. Não dá para estragar muito o suco de laranja. Afinal de contas, agora estamos na Flórida.” De repente sentiu-se deprimido ao pensar na espera de quatro horas que teriam de suportar nesse ambiente gasto e sujo.
“Todo mundo está ganhando dinheiro fácil na América nos dias de hoje”, disse Solitaire. “Isso é ruim para o freguês. Eles só querem arrancar um dólar rápido de você e botá-lo para fora. Espere até chegar ao litoral. Nessa época do ano a Flórida é a maior arapuca de otários do mundo. Na Costa Leste eles depenam os milionários. Para onde vamos, ordenham o cara humilde. Bem feito para ele, evidente. Vai lá para morrer. E não conseguirá levar o que possui junto com ele.”
“Pelo amor de Deus”, disse Bond, “para que tipo de lugar nós vamos?”
“Quase todo mundo já está praticamente morto em St. Petersburg”, explicou Solitaire. “É o grande cemitério americano. Quando o bancário, o carteiro ou o condutor de trem chega aos sessenta, pega sua pensão, junta com quaisquer atrasados, e vai tomar sol durante alguns anos em St. Petersburg, antes de morrer. É chamada ‘cidade do sol’. O tempo é tão bom lá que o jornal vespertino local, o Independent, é distribuído de graça em qualquer dia que o sol não tenha brilhado até a hora da saída do jornal. Só acontece três ou quatro vezes por ano, e é uma excelente propaganda. Todo mundo vai para a cama por volta das nove da noite e durante o dia os velhinhos, que são um montão, jogam shuffleboard e bridge. Há uns dois times de beisebol, ‘os pirralhos’ e ‘os garotos’, cujos jogadores têm todos mais de setenta e cinco anos. Depois jogam boliche, mas passam a maior parte do tempo sentados, espremidos, como um rebanho, em coisas chamadas Sidewalk Davenports, fileiras de bancos ao longo das calçadas das ruas principais. Ficam só tomando sol, fofocando e cochilando. É uma visão horrenda, toda aquela gente com seus óculos, aparelhos auditivos e o clique-clique das dentaduras.”
“Parece uma tristeza”, disse Bond. “Por que diabos Mr. Big escolheu esse lugar como centro de operações?”
“Para ele é perfeito”, respondeu Solitaire, seriamente. “Não existe praticamente crime, a não ser roubar no bridge ou na canastra. Por isso o efetivo policial é mínimo. Existe um posto da guarda costeira bastante grande, que se preocupa principalmente com o contrabando entre Tampa e Cuba, e a pesca de esponjas fora da estação em Tarpon Springs. Não sei exatamente o que ele faz ali, só que tem um agente importante chamado ‘Ladrão’. Tem algo a ver com Cuba, suponho”, acrescentou pensativa. “Provavelmente algo relacionado com o comunismo. Acredito que Cuba é submetida ao Harlem e manda agentes vermelhos para todo o Caribe.”
“De qualquer maneira”, prosseguiu, “St. Petersburg talvez seja a cidade mais inocente da América. Tudo é muito ‘simplório’ e ‘gracioso’. É verdade que existe um lugar chamado The Restorium, que é um hospital para alcoólatras. Mas alcoólatras muito velhos, acho”, ela riu, “e aposto que já estão muito velhos para fazer mal a alguém. Você vai adorar”, ela sorriu maliciosamente para Bond. “Na certa vai querer se estabelecer lá pela vida toda até virar ‘idoso’ também. Essa é a palavra-chave de lá... ‘idoso’.”
“Deus me livre”, disse Bond com horror. “Parece um tanto com Bournemouth ou Torquay. Mas mil vezes pior. Espero que não tenhamos alguma partida de tiro ao alvo com o Ladrão e seus amigos. Provavelmente apressaríamos a ida de centenas de idosos para o cemitério, acometidos de ataques cardíacos. Mas será que não existe gente jovem nesse lugar?”
“Sim”, riu Solitaire. “Muita gente. Todos os habitantes locais que ganham dinheiro à custa dos idosos, por exemplo. O pessoal que é dono dos motéis, dos campings. Você poderia ganhar muito dinheiro organizando torneios de bingo. Eu seria sua ‘isca’ — a garota que fica do lado de fora para pescar os otários. Caro senhor Bond”, ela esticou o braço e apertou a mão dele, “o senhor deseja se estabelecer comigo e envelhecer decentemente em St. Petersburg?”
Bond se recostou, dando-lhe um olhar crítico. “Quero primeiro viver indecentemente um longo período com você”, disse com um sorriso. “Esta talvez seja a minha vocação de verdade. E para mim até que vem a calhar ir para a cama todo dia às nove, como eles fazem lá.”
Os olhos dela devolveram o seu sorriso. Retirou sua mão da dele, quando chegou o café da manhã. “Sim. Você vai para a cama às nove e eu escapulo pela porta dos fundos e vou para a farra com os Pirralhos e os Garotos.”
O café da manhã foi tão ruim quanto Bond profetizara.
Depois de pagar, foram para a sala de espera da estação.
O sol já raiara e a luz jorrava em feixes empoeirados na sala abobadada e vazia. Ficaram sentados em um canto até a chegada do Meteoro de Prata, e Bond a assediou com perguntas sobre Big Man e tudo o que ela pudesse lhe informar sobre suas operações.
Às vezes tomava nota de um nome ou de uma data, mas ela não foi capaz de acrescentar mais coisas ao que ele já sabia. Ela tinha um apartamento próprio no mesmo quarteirão de Mr. Big no Harlem, onde fora mantida prisioneira durante o ano anterior. Tinha a “companhia” de duas negras fortonas e jamais podia sair sem estar acompanhada por um guarda.
De vez em quando Mr. Big mandava trazê-la para a sala onde Bond a vira. Lá ele lhe diria para adivinhar se algum sujeito ou mulher, geralmente amarrado à cadeira, estava mentindo ou não. Ela variava as respostas segundo achasse que a pessoa era ruim ou boa. Sabia que seu diagnóstico podia significar muitas vezes uma sentença de morte, mas sentia-se indiferente ao destino de quem ela julgasse mau. Muito poucas dessas pessoas eram brancas.
Bond anotou as datas e os detalhes de todas essas ocasiões.
Tudo que ela lhe contou reforçava a imagem de um homem muito poderoso e ativo, implacável e cruel, no comando de uma enorme rede de operações.
Tudo que sabia sobre as moedas de ouro era que ela tivera muitas vezes de interrogar gente sobre quantas haviam sido passadas e o valor recebido por elas. Mentiam sobre ambas as questões com muita frequência.
Bond tomou cuidado de divulgar somente muito pouco daquilo que já sabia ou adivinhara. O crescente afeto por Solitaire e o desejo por seu corpo ficavam em um compartimento estanque em relação à sua vida profissional.
O Meteoro de Prata chegou na hora e ambos sentiram alívio em estar novamente a caminho, longe do mundo monótono do grande entroncamento.
O trem prosseguiu sua carreira através da Flórida, atravessando florestas e pântanos, totalmente enfeitiçados por barbas-de-velho, e quilômetros de pomares de frutas cítricas.
Em toda a parte central do estado a barba-de-velho emprestava à paisagem uma atmosfera morta e fantasmagórica. Até mesmo os povoados por que passavam tinham um aspecto cinzento, esquelético, com suas casas de tábuas secas e castigadas pelo sol. Apenas os pomares de cítricos carregados de frutas pareciam verdes e viçosos. Todo o resto parecia assado e ressecado pelo calor.
Ao olhar as florestas sombrias, silenciosas e murchas, Bond pensou que nada viveria nelas exceto morcegos, escorpiões, lagartos e viúvas-negras.
Almoçaram e de repente o trem corria pelo Golfo do México, através dos mangues e palmeirais, infindáveis motéis e campings, e Bond sentiu o cheiro da outra Flórida, a Flórida dos anúncios, a terra da “Miss Flor de Laranjeira de 1954”.
Abandonaram o trem em Clearwater, a última estação antes de St. Petersburg. Bond pegou um táxi e deu o endereço em Treasure Island, a meia hora de carro dali. Eram duas horas e o sol torrava em um céu sem nuvens. Solitaire insistiu em tirar o chapéu e o véu. “Está grudando no meu rosto”, disse. “Praticamente ninguém jamais me viu por aqui.”
Um negro grande, com o rosto picotado de marcas antigas de varíola, foi retido no trânsito em seu táxi, ao mesmo tempo que eles, na junção de Park Street e Central Avenue, onde a avenida segue até o longo elevado de Treasure Island, que atravessa as águas rasas de Boca Ciega Bay.
Quando o negro viu o perfil de Solitaire, ficou boquiaberto. Estacionou o táxi no meio-fio e mergulhou em uma drugstore. Ligou para um número em St. Petersburg.
“Aqui é o Poxy”, disse com urgência no bocal. “Chama o Ladrão e anda depressa. É você, Ladrão? Olha, Big Man deve tá aqui. Como você acabou de falar com ele em Nova York? Acabei de ver sua garota em um táxi de Clearwater, da Stassen Company, indo em direção ao elevado. Claro que tenho certeza. Juro por Deus. Não podia me enganar com aquele pedaço. Com um cara de terno azul, chapéu Stetson cinza. Parece que tinha uma cicatriz no rosto. O que cê quer dizer com ‘siga eles’? Simplesmente não acredito que cê não me diria se Big Man estivesse aqui. Acho melhor verificar e ter certeza. Ok, ok. Eu pego o táxi quando ele voltar pelo elevado, ou então em Clearwater. Ok, ok. Fica calmo. Não fiz nada errado.”
O sujeito chamado Ladrão conseguiu falar com Nova York em cinco minutos. Fora avisado sobre Bond, mas não conseguia entender como Solitaire se encaixava nessa história. Quando acabou de falar com Big Man ainda não sabia, mas suas instruções eram muito claras.
Desligou e ficou um tempo tamborilando na escrivaninha. Dez mil pelo serviço. Precisaria de dois sujeitos. Então restariam para ele oito mil. Lambeu os lábios e ligou para uma sinuca em um bar da periferia, em Tampa.
Bond pagou o táxi em Everglades, um grupo de cabanas bem cuidadas de madeira, brancas e amarelas, situadas nos três lados de uma praça gramada que descia cinquenta metros até uma praia branca como cal, seguida do mar. Dali se estendia por todo o Golfo do México, calmo como um espelho, até que o mormaço no horizonte o fizesse se fundir com o céu sem núvens.
Depois de Londres, Nova York e Jacksonville, aquilo era uma brilhante transição.
Bond entrou pela porta em que estava escrito ESCRITÓRIO, com Solitaire modestamente nos seus calcanhares. Tocou uma campainha onde estava escrito GERENTE: SRA STUYVESANT, e uma mulher que parecia um camarão seco, com uma rinsagem azul nos cabelos, apareceu, sorrindo com os lábios enrugados. “Sim?”
“O senhor Leiter?”
“Ah, sim, é o senhor Bryce. Cabana número um, bem na praia. O senhor Leiter está esperando-o desde o almoço. E...?”, ela esquadrinhou Solitaire com o seu pincenê.
“A senhora Bryce”, informou Bond.
“Ah, sim”, disse a sra. Stuyvesant, não parecendo acreditar muito. “Bem, por favor, preencham o registro. Tenho certeza de que o senhor e a senhora Bryce gostariam de uma ducha depois da viagem. O endereço completo, por obséquio. Obrigada.”
Conduziu-os porta afora, pelo caminho cimentado, até a última cabana à esquerda. Bateu e Leiter surgiu. Bond estava esperando uma acolhida calorosa, mas Leiter pareceu atônito ao vê-lo. Ficou boquiaberto. Seu cabelo cor de palha, com as raízes ainda ligeiramente pretas, parecia um monte de feno.
“Acho que ainda não conhece minha mulher”, disse Bond.
“Não, não, quero dizer, sim. Como vai?”
Tudo aquilo extrapolava a sua compreensão. Ignorando Solitaire, quase arrastou Bond porta adentro. Na última hora se lembrou da garota e com a outra mão puxou-a também, fechando a porta com o calcanhar e cortando o “espero que tenham uma boa...” da sra. Stuyvesant, antes de ela poder dizer “estadia”.
Uma vez lá dentro, Leiter ainda não conseguia entender a situação. Olhava embasbacado para um e depois para o outro.
Bond colocou sua valise no chão do pequeno vestíbulo. Havia duas portas. Abriu a da direita e segurou-a para Solitaire. Era uma pequena sala de estar que ocupava a largura da cabana e dava para a praia e o mar. Era agradavelmente mobiliada, com cadeiras de praia de bambu estofadas com espuma de borracha, e um tecido de chintz estampado com hibiscos verdes e vermelhos. Uma esteira de palha de palmeira cobria o assoalho. As paredes eram de um azul ovo de pato, e no centro de uma delas via-se uma estampa colorida de flores tropicais, em moldura de bambu. Havia uma grande mesa de bambu, no formato de um tambor, com tampo de vidro. Sustentava um vaso de flores e um telefone branco. Largas janelas davam para o mar e, à direita, uma porta levava à praia. Venezianas brancas de plástico pendiam meio arriadas nas janelas, para cortar o reflexo claro da areia.
Bond e Solitaire se sentaram. Bond acendeu um cigarro e jogou o maço e o isqueiro em cima da mesa.
De repente o telefone tocou. Leiter saiu do transe, veio da porta para atender.
“Ele falando”, disse. “Por favor, me passe o tenente. É você, tenente? Ele está aqui. Acabou de chegar. Não, são e salvo.” Ouviu um instante e, em seguida, se virou para Bond. “Onde foi que você deixou o Fantasma?”, perguntou. Bond lhe contou. “Jacksonville”, disse Leiter no telefone. “Sim, direi. Certo. Pegarei os detalhes com ele e ligarei de volta. Por favor, cancele Homicídio. Eu é que lhe agradeço. E Nova York. Muito obrigado, tenente. Orlando 9.000. Ok. E obrigado de novo. Até logo.” Recolocou o fone no gancho. Secou o suor na testa e sentou ao lado de Bond.
De repente olhou para Solitaire e sorriu com ar de quem se desculpa. “Você deve ser Solitaire. Perdoe pela acolhida tumultuada. Mas foi um dia e tanto. Pela segunda vez em vinte e quatro horas eu não esperava mais ver esse cara de novo.” Virou-se para Bond: “Posso continuar?”
“Pode”, disse Bond. “Solitaire agora está do nosso lado.”
“Boa notícia”, disse Leiter. “Bem, você não deve ter lido os jornais nem ouvido rádio, por isso vou lhe transmitir as manchetes primeiro. O Fantasma foi parado logo depois de Jacksonville. Entre Waldo e Ocala. Sua cabine foi metralhada e explodida. Virou um caco. Matou na hora o porteiro do Pullman que estava no corredor. Não houve outras baixas. Está havendo um alvoroço danado. Quem foi o autor? Quem são o senhor e a senhora Bryce? Onde estão? Evidente que tínhamos certeza de que vocês haviam sido sequestrados. A polícia de Orlando está encarregada do caso. Rastreou as reservas a Nova York. Descobriu que haviam sido feitas pelo FBI. Todo mundo caiu em cima de mim como uma avalanche. Aí você aparece de braço dado com uma garota bonita, feliz como um passarinho.”
Leiter deu uma gargalhada. “Cara! Você devia ter ouvido Washington pouco tempo atrás. Qualquer um haveria de pensar que fui eu quem explodiu a porcaria do trem.”
Estendeu a mão e pegou um dos cigarros de Bond, que acendeu.
“Bem, esta é a sinopse. Eu lhe mostrarei o roteiro quando me contar o seu lado da história.”
Bond descreveu em detalhes o que acontecera desde que falara com Leiter no St. Regis. Ao chegar à parte da noite passada no trem, tirou do bolso o pedaço de papel e empurrou-o por cima da mesa.
Leiter deu um assobio. “Vodu”, disse. “Acho que era para ser encontrado junto com o cadáver. Assassinato ritual pelos amigos dos sujeitos que você apagou no Harlem. Era essa a impressão que a coisa deveria dar. Para tirar a pressão de cima de Big Man. Eles certamente pensam em todos os ângulos. Vamos atrás daquele sicário que ele tinha no trem. Provavelmente um dos ajudantes do vagão-restaurante. Deve ter sido ele quem indicou a sua cabine. Termine, que eu lhe contarei como ele fez.”
“Deixe-me ver”, disse Solitaire. Estendeu a mão para pegar o papel.
“Sim”, disse em voz baixa. “É um ouanga, um feitiço vodu. A invocação da bruxa do tambor. É usado pela tribo Ashanti na África, quando querem matar alguém. Empregam algo parecido no Haiti.” Ela devolveu-o a Bond. “Sorte você não ter me contado”, disse, séria. “Eu teria ficado histérica.”
“Eu mesmo não gostei”, afirmou Bond. “Senti que eram notícias más. Sorte que a gente desembarcou em Jacksonville. Pobre Baldwin. Devemos muito a ele.”
Terminou a história sobre o resto da viagem.
“Alguém o viu quando você desembarcou do trem?”, perguntou Leiter.
“Acho que não”, respondeu Bond. “É melhor a gente manter Solitaire escondida até que possamos tirá-la daqui. Acho que devemos mandá-la de avião para a Jamaica amanhã. Posso arranjar para que cuidem dela até chegarmos.”
“Certo”, concordou Leiter. “Vamos botá-la em um voo charter em Tampa. É só levá-la amanhã na hora do almoço a Miami, que ela consegue pegar um dos voos vespertinos — da KLM ou Panam. Chegará até a hora do jantar, amanhã. Já é tarde demais para fazermos alguma coisa agora.”
“Concorda, Solitaire?”, quis saber Bond.
A garota olhava pela janela. Seus olhos tinham aquele ar distante que Bond já vira antes.
De repente ela sentiu um calafrio.
Seu olhar voltou-se para Bond. Estendeu a mão e tocou a manga do seu casaco.
“Sim”, disse, hesitante. “Acho que sim.”
13.
A MORTE DE UM PELICANO
Solitaire se levantou.
“Preciso dar um jeito em mim. Aposto que vocês dois devem ter muito o que conversar.”
“É claro”, disse Leiter, levantando-se de um pulo. “Que loucura a minha! Vocês devem estar mortos de cansaço. É melhor você ficar no quarto de James e ele pode dormir no meu.”
Solitaire o seguiu até o pequeno vestíbulo e Bond ouviu Leiter explicando a disposição dos quartos.
Um momento depois Leiter voltava com uma garrafa de Haig and Haig e gelo.
“Esqueci minhas boas maneiras”, falou. “Precisamos de um drinque. Há uma pequena despensa ao lado do banheiro onde fiz um estoque de tudo o que poderíamos precisar!”
Foi buscar a soda e ambos fizeram um drinque num copo longo.
“Vamos lá com os detalhes”, insistiu Bond, se refestelando. “Deve ter sido um serviço para lá de bom.”
“Com certeza foi”, concordou Leiter, “só que faltaram os cadáveres”.
Botou os pés na mesa e acendeu um cigarro.
“O Fantasma partiu de Jacksonville por volta das cinco horas”, começou. “Chegou a Waldo por volta das seis. Logo depois de ter partido de Waldo — e aqui estou adivinhando as coisas — o sujeito de Mr. Big vem ao seu vagão, entra na cabine ao lado da sua e pendura uma toalha entre a veneziana fechada e a janela para indicar — deve ter dado muitos telefonemas nas estações até aqui — que é ‘a janela à direita da janela da toalha’.
“Há um longo trecho reto na linha entre Waldo e Ocala”, prosseguiu Leiter, “que atravessa florestas e mangues. A rodovia estadual corre ao lado da linha. Cerca de vinte minutos depois de Waldo, Bam! Explode o sinal de emergência, de dinamite, sob a primeira locomotiva diesel. O maquinista diminui para sessenta. Bam! E mais um, Bam! E outro, Bam! Três seguidos! Emergência! Pare imediatamente! Para o trem a se perguntar: ‘Que diabo... a linha é reta.’ O último sinal era duplamente verde. Nada à vista. São mais ou menos seis e quinze e está ficando claro. Há um sedã, puxado [Bond ergueu a sobrancelha. “Roubado”, explicou Leiter], cinza, parece que um Buick, com as luzes apagadas, motor ligado, à espera na rodovia, ao lado do meio do trem. Saem três sujeitos. Provavelmente negros. Caminham em silêncio, lado a lado, ao longo da margem gramada entre a estrada e a linha. Os dois na lateral portam metralhadoras. O sujeito no meio carrega algo na mão. Mais vinte metros e param diante do vagão 245. Os sujeitos das metralhadoras dão uma rajada dupla no vidro de sua cabine. Agora ela está pronta para receber a granada. O homem do meio a joga lá dentro e todos os três voltam correndo para o carro. Estopim de dois segundos. Ao chegarem ao carro, BUM! Picadinho da cabine H. Provável picadinho do senhor e da senhora Bryce. Na verdade, picadinho do ‘seu’ Baldwin, que corre para lá e se agacha logo que vê os homens se aproximando do seu vagão. Não há outras baixas, a não ser estado de choque e histeria geral em todo o trem. O carro sai ventando para o limbo, onde ainda está e onde provavelmente deve permanecer. Silêncio, misturado aos gritos, quedas. Gente para lá e para cá. O trem prossegue mancando, cautelosamente, até Ocala. Desengata o vagão 245. Recebe ordem de prosseguir três horas depois. Cena II. Leiter está sentado na cabana, esperando jamais ter dito alguma palavra ofensiva a seu amigo Bond, e imaginando como o senhor Hoover irá servir o senhor Leiter para o jantar essa noite. E é só, pessoal.”
Bond riu. “Que organização! Tenho certeza de que devem ter uma fachada e álibis para tudo. Que sujeito! Parece deter o controle deste país. Serve para mostrar como se consegue desvirtuar a democracia; também com o habeas corpus, os direitos humanos e todo o resto. Que bom que a gente não precisa lidar com esse tipo na Inglaterra. Os cassetetes de madeira não fariam sequer uma marca nele. Olhe”, concluiu, “já são três vezes que consegui escapar. O ritmo está começando a ficar um pouco quente.”
“Sim”, disse Leiter, pensativo. “Antes de sua chegada a gente podia contar em um dedo os erros cometidos por Mr. Big. Agora ele cometeu três, um depois do outro. Não vai gostar disso. Precisamos botar pressão nele enquanto ainda estiver aparvalhado e depois dar o fora depressa. Olhe o que tenho em mente. Sem dúvida, o ouro entra no país por aqui. Já rastreamos o Secatur inúmeras vezes. Ele vem diretamente da Jamaica para St. Pertersburg e atraca na doca daquela empresa de iscas de minhoca — Rubberus, ou sei lá como se chama.”
“Ourobouros”, disse Bond. “O grande verme mitológico. Bom nome para uma empresa de iscas de minhoca.” De repente teve um estalo. Bateu no vidro da mesa com a palma da mão. “Felix! Está na cara. Ourobouros e o ouro – não vê? E por trás se encontra o Ladrão, o representante de Mr. Big aqui.”
O rosto de Leiter se iluminou. “Deus do céu”, exclamou. “É claro que é o tipo de jogo de palavras de que Mr. Big gosta. Aquele grego, o suposto dono, o sujeito em Tarpon Springs que consta dos relatórios que aquele cabeça-dura, Binswanger, nos mostrou em Nova York, provavelmente não passa de uma figura de proa. Talvez nem sequer desconfie de que haja alguma coisa errada. Precisamos ir atrás do seu gerente aqui. Com certeza é o Ladrão.”
Leiter se levantou rápido.
“Vamos. Vamos embora. A gente vai até lá e dá uma olhada geral. Ia sugerir que fizéssemos isso, de qualquer modo, já que o Secatur sempre atraca na doca deles. Aliás, agora está em Cuba”, acrescentou, “Havana. Depois de passar por uma fiscalização feita aqui há uma semana. Fizeram uma busca minuciosa na chegada e na partida. Não acharam nada, evidente. Pensaram que tivesse um casco falso. Quase o arrebentaram. Precisou de reparos na doca seca antes de poder zarpar de novo. Nada. Sombra alguma de algo errado. Muito menos de um saco de ouro. De qualquer modo, vamos lá dar uma fuçada. Para ver se conseguimos avistar nosso amigo, o Ladrão. Preciso apenas conversar com Orlando e Washington. Contar-lhes tudo o que sabemos. Precisam pegar depressa o sujeito de Big Man no trem. Provavelmente já é tarde demais. Vá ver como Solitaire está se ajeitando. Diga a ela para ficar quieta até voltarmos. Tranque-a aqui dentro. Depois a levaremos para jantar em Tampa. Lá tem o melhor restaurante de todo o litoral. Cubano, Las Novedades. Paramos no aeroporto, a caminho, e já reservamos o voo para amanhã.”
Leiter pegou o telefone e pediu o interurbano. Bond esperou que ele telefonasse.
Em dez minutos já estavam a caminho.
Solitaire não quis que a deixassem sozinha. Agarrara-se a Bond. “Quero sair daqui”, pediu com um olhar amedrontado. “Estou com um sentimento...” Não terminou a frase. Bond a beijou.
“Está tudo bem. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos. Nada pode lhe acontecer aqui. Depois ficarei com você até o embarque no avião. Podemos até ficar em Tampa e você pega o primeiro voo amanhã.”
“Sim, por favor”, disse Solitaire, ansiosa. “Prefiro assim. Tenho medo aqui. Sinto que estou em perigo.” Abraçou o pescoço dele. “Não pense que sou histérica.” Beijou-o. “Agora podem ir. Só queria vê-lo. Volte depressa.”
Leiter chamara e Bond fechara e trancara a porta por fora.
Seguiu Leiter até o carro na Parkway, sentindo-se um tanto perturbado. Não era capaz de imaginar qual o problema que a garota poderia ter naquele lugar tranquilo e ordeiro, ou que Big Man pudesse tê-la rastreado até o Everglades, apenas mais uma entre as centenas de pousadas na praia em Treasure Island. Mas respeitava o tremendo poder de sua intuição, e o ataque nervoso o deixou inquieto.
Ao ver o carro de Leiter, tirou essas coisas da cabeça.
Bond gostava de carros velozes, de dirigi-los. A maioria dos carros americanos o entediava. Faltavam-lhes personalidade e a pátina do artesanato individual dos carros europeus. Eram veículos, semelhantes na forma e na cor, até mesmo na tonalidade das buzinas. Projetados para servir um ano e serem trocados pelo modelo mais recente. Tiraram toda a graça de dirigir ao aposentarem o câmbio mecânico, e com a direção hidráulica e a suspensão macia demais. Atenuaram tudo que significava algum esforço, e com isso aquele contato íntimo com a máquina e com a estrada que exige técnica e coragem do motorista europeu. Para Bond, os carros americanos não passavam de autoramas em forma de besouro, que a gente dirigia com uma das mãos no volante, o rádio no máximo e os vidros elétricos fechados para evitar o vento.
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos que têm personalidade, e Bond gostou de embarcar no sedã de suspensão baixa, de ouvir o barulho firme do engate das marchas e o tom masculino do largo escape. Fabricado há quinze anos, pensou, e, no entanto, ainda um dos carros de aspecto mais moderno do mundo.
Entraram no elevado, passando por cima da grande extensão de água parada que separa a ilha estreita de trinta quilômetros da larga península por onde se espalham St. Petersburg e seus subúrbios.
Quando ainda rodavam lentamente pela Central Avenue, atravessando a cidade a caminho do Yatch Basin, o porto principal e os grandes hotéis, Bond teve uma amostra da atmosfera que faz da cidade o “Lar dos Idosos” da América. Todo mundo nas calçadas tinha cabelos brancos ou azuis, e os célebres bancos de calçada que Solitaire descrevera estavam apinhados de idosos, sentados em fileiras como os estorninhos em Trafalgar Square.
Bond notou as pequenas bocas tortas das mulheres, com o sol brilhando nos seus pincenês. Os braços e os torsos chupados e encarquilhados dos homens, expostos ao sol em camisetas. Os raros tufos de cabelos felpudos das mulheres deixando transparecer o couro cabeludo rosado. As cabeças calvas e ossudas dos homens. E, em todo canto, uma camaradagem prolixa, a troca de boatos e novidades, a marcação de encontros amistosos para o jogo de shuffle ou para a mesa de bridge, um tal de mostrar a todos as cartas dos filhos e netos, as infindáveis reclamações sobre os preços das lojas e dos motéis.
Não era preciso estar no meio deles para ouvir tudo isso. Era evidente nos meneios e trejeitos dos tufos de cabelos azulados, nos tapas nas costas e nos pigarros dos velhinhos carecas.
“Faz a gente querer entrar no túmulo e abaixar a tampa”, comentou Leiter, diante das exclamações horrorizadas de Bond. “Espere só quando sairmos e caminharmos. Se eles veem a sua sombra na calçada atrás deles, saem da frente como se você fosse o fiscal que viesse espiar por cima de seus ombros, no banco. É terrível. Me faz lembrar o bancário que foi para casa de imprevisto ao meio-dia e encontrou o presidente do banco na cama com sua mulher. Voltou para o banco e contou a seus colegas: ‘Puxa, gente, quase que ele me pega!’”
Bond riu.
“A gente consegue ouvir todos os relógios de ouro ganhos na formatura batendo nos seus bolsos”, disse Leiter. “O lugar está repleto de funerárias, penhores apinhados de relógios de ouro, anéis maçônicos, pedaços de ébano e medalhões cheios de chumaços de cabelo. Chega a dar calafrios. Espere só até chegarmos ao Aunt Milly’s Place e vermos aquele monte de gente mastigando com dificuldade picadinhos de carne enlatada com milho e cheeseburgers, tentando se conservar viva até os noventa. Você morrerá de susto. Mas nem todos são velhos aqui. Olha aquele anúncio lá.” Apontou para um cartaz grande em um terreno baldio.
Era a propaganda de roupas para mulheres grávidas. STUZHEIMER & BLOCK, dizia, NOVIDADE! NOSSO DEPARTAMENTO PARA QUEM É MÃE OU AINDA VAI SER! ROUPAS PARA PIMPOLHOS (1-4) E BAIXINHOS (4-8).
Bond deu um gemido. “Vamos sair daqui. Isto vai muito além do imperativo do dever.”
Foram até a beira-mar e viraram à direita, até chegarem à base de hidroaviões e ao posto da guarda costeira. As ruas estavam livres de idosos e o que se via era a vida portuária de sempre — armazéns, desembarcadouros, um estaleiro, alguns barcos virados, redes secando, os gritos das gaivotas, o cheiro quase podre vindo da baía. Depois daquele ossário apinhado da cidade, a placa em cima da garagem — “Dirija você mesmo. Pat Grady. O irlandês sorridente. Carros usados” — era uma alegre recordação de um mundo mais animado e inquieto.
“É melhor sair e andar”, disse Leiter. “O estabelecimento do Ladrão fica na próxima quadra.”
Deixaram o carro ao lado do porto e foram caminhando lentamente, passando pelo armazém de madeira e alguns tanques de petróleo. Em seguida, viraram à esquerda de novo, em direção ao mar.
A ruela lateral terminava em um pequeno píer de madeira castigado pelo tempo, que se estendia uns sete metros sobre a baía, em cima de pilastras cheias de craca. Bem junto de seu portão aberto ficava um longo armazém de chapas de ferro corrugadas. Em cima de suas largas portas estava pintado OUROBOUROS INC. MINHOCAS VIVAS E COMÉRCIO DE ISCAS. CORAL, CONCHAS, PEIXES TROPICAIS. VENDAS SÓ POR ATACADO. Em uma das portas duplas havia outra menor, com uma fechadura Yale luzidia e uma tabuleta: PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA.
Encostado nela estava sentado um sujeito em uma cadeira de cozinha, com o espaldar reclinado, de modo que a porta sustentava o seu peso. Limpava um rifle, um Remington .30, assim parecia a Bond. De sua boca saía um palito de madeira e ele usava um boné de beisebol na parte de trás da cabeça. Vestia uma camiseta branca manchada, deixando à mostra tufos de cabelos pretos nas axilas, calças brancas de lona bem amarrotadas e sapatos informais de solas de borracha. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto tão sulcado e nodoso quanto os postes de atracação no píer. Era um rosto magro, de feições acentuadas e lábios pálidos descarnados. Seu semblante era da cor de pó de tabaco, uma espécie de bege amarelado. Parecia frio e cruel, como o bandido naqueles velhos filmes sobre jogadores de pôquer e minas de ouro.
Bond e Leiter passaram por ele caminhando e seguiram para o píer. Ele não levantou os olhos do rifle quando passaram, mas Bond sentiu que os seguia com o olhar.
“Se este não for o Ladrão”, disse Leiter, “é parente próximo”.
Avistaram um pelicano, com a cabeça amarela-clara, encolhido em cima de um dos postes de amarração no final do píer. Deixou-os se aproximarem muito. Em seguida bateu as asas pesadas, contrariado, e foi planar logo acima da superfície do porto. De repente mergulhou, desajeitado, com o longo bico à frente. Emergiu com um pequeno peixe no bico, que engoliu melancolicamente. Depois o grande pássaro levantou voo de novo e foi pescar, voando a favor da luz do sol, para que sua sombra não traísse sua presença. Quando Bond e Leiter se viraram para voltar pelo píer, ele desistiu de pescar e veio planando de volta para seu poste. Acomodou-se com um sonoro bater de asas e retomou sua pensativa meditação sobre o cair da tarde.
O homem ainda estava inclinado sobre a arma, limpando o mecanismo com um trapo oleoso.
“Boa tarde”, disse Leiter. “Você é o gerente deste armazém?”
“Sou”, disse o sujeito, sem levantar os olhos.
“Eu estava pensando se havia alguma possibilidade de ancorar meu barco aqui. A Baisin está bastante cheia.”
“Não.”
Leiter tirou sua carteira. “Será que vinte dá jeito?”
“Não.” O sujeito deu um tremendo pigarro e cuspiu exatamente entre Bond e Leiter.
“Ei”, disse Leiter. “Cuidado com os modos.”
O homem pareceu pensar. Levantou o olhar para Leiter. Tinha olhos juntos e pequenos, cruéis como os do dentista que jura que a anestesia será perfeita.
“Qual o nome de seu barco?”
“Sybil”, respondeu Leiter.
“Não tem barco nenhum com esse nome na Baisin”, disse o sujeito. Fechou a culatra do rifle com um clique. Deixou-o displicentemente no colo, apontado para o caminho do armazém, distante do mar.
“Você é cego”, disse Leiter. “Está lá há uma semana. Sessenta pés, motor diesel de duas hélices. Branco com um toldo verde. Equipado para pesca.”
O rifle começou a traçar um arco baixo e preguiçoso. A mão esquerda do sujeito estava no gatilho, a direita logo diante do anel circundante, virando a arma.
Ficaram parados.
O sujeito ficou sentado preguiçosamente, olhando para a culatra, com a cadeira ainda inclinada contra a pequena porta com a fechadura amarela Yale.
O rifle passou lentamente pela barriga de Leiter e, em seguida, pela de Bond. Os dois permaneciam como estátuas, sem querer arriscar nenhum gesto de mão. A arma parou de girar. Apontava para o píer. O Ladrão levantou os olhos, rápido, estreitou-os e puxou o gatilho. O pelicano deu um leve grasnido, e ouviram seu corpo pesado caindo dentro d’água. O eco do tiro reverberou pelo porto.
“Por que diabos fez isso?”, perguntou Bond, furioso.
“Treinando”, disse o sujeito, empurrando outra bala na agulha.
“Deve haver uma sucursal da Sociedade Protetora dos Animais nesta cidade”, disse Leiter. “Vamos lá denunciar esse cara.”
“Querem ser processados por invasão?”, perguntou o Ladrão, levantando-se lentamente e movendo o rifle debaixo do braço. “Isto aqui é propriedade particular. Agora”, cuspiu as palavras, “deem o fora daqui.” Virou-se, tirou a cadeira com força da porta, abriu-a com uma chave e se virou, com um pé na soleira. “Vocês dois estão armados”, disse. “Consigo farejar isso. Se vierem de novo terão o mesmo destino do pássaro e alegarei legítima defesa. Já estou por aqui com esse monte de tiras respirando no meu pescoço. Sybil porra nenhuma!” Virou-se com desprezo e bateu a porta com tanta força que a moldura ficou sacudindo.
Olharam um para o outro. Leiter deu um sorriso de decepção e sacudiu os ombros.
“Vantagem no primeiro assalto para o Ladrão”, declarou.
Foram embora pela estrada lateral empoeirada. O sol se punha e o mar, atrás deles, era um lago de sangue. Quando chegaram à rua principal, Bond olhou para trás. Uma grande lâmpada fluorescente se acendera em cima da porta, e a chegada ao armazém estava livre de sombras.
“Não adianta tentar nada pela frente”, disse Bond. “mas também não existe um armazém com uma só entrada.”
“Exatamente o que eu estava pensando”, comentou Leiter. “Vamos guardar esta informação para a próxima visita.”
Entraram no carro e rodaram devagar pela Central Avenue, no caminho para casa.
Na volta, Leiter fez uma série de perguntas sobre Solitaire. Por fim, disse de modo casual: “Aliás, espero que eu tenha arrumado os quartos da maneira como você queria.”
“Não podia ter feito melhor”, respondeu alegremente Bond.
“Ótimo. Imaginei que vocês dois estivessem conectados.”
“Anda lendo Walter Winchell demais”, disse Bond.
“É só uma maneira delicada de falar. Não esqueça que as paredes dessas cabanas são bastante finas. Uso meus ouvidos para escutar — e não para colecionar batom.”
Bond pegou um lenço. “Seu filho da mãe”, falou, furioso.
Leiter contemplou-o com o canto do olho a esfregar a orelha. “O que está fazendo?”, perguntou de modo inocente. “Não insinuei nada sobre a cor naturalmente rosada da sua orelha. Mas...” Deixou subentendida uma ampla gama de significados com esta conjunção.
“Se você acordar morto na sua cama hoje à noite”, riu Bond, “já sabe quem foi.”
Ainda implicavam um com o outro ao chegarem ao Everglades, rindo, quando foram recebidos pela sisuda sra. Stuyvesant no gramado.
“Perdoe-me, senhor Leiter”, falou. “Mas não posso permitir que se toque música aqui. Preciso defender a paz dos demais hóspedes em todas as circunstâncias.”
Olharam para ela espantados. “Desculpe, senhora Stuyvesant”, observou Leiter, “não estou compreendendo bem.”
“Aquela radiola grande que o senhor mandou entregar”, disse a sra. Stuyvesant. “Os homens mal conseguiram passar com o pacote pela porta.”
14.
“ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU”
A garota não opusera muita resistência.
Quando Leiter e Bond, deixando a gerente embasbacada no gramado, correram até a cabana, encontraram o seu quarto intacto e as roupas de cama muito pouco amarrotadas.
A fechadura do quarto fora forçada com um rápido puxão de pé de cabra, e os dois sujeitos devem ter ficado ali, de arma na mão.
“Vamos embora, madame. Vista-se. Se tentar qualquer esperteza a gente peneira a senhora.”
Em seguida, devem tê-la amordaçado ou desacordado, dobrado seu corpo e o enfiado na caixa, e depois pregado a tampa. Havia marcas de pneus nos fundos da cabana, onde o caminhão estivera. Quase tapando o vestíbulo da entrada, viram uma enorme e antiquada radiola. De segunda mão, deve ter-lhes custado menos de cinquenta paus.
Bond podia imaginar a expressão de terror cego no rosto de Solitaire, como se ela estivesse presente diante dele. Praguejou amargamente por tê-la deixado a sós. Não era capaz de adivinhar como eles a haviam rastreado tão depressa. Mais um exemplo da máquina de Big Man.
Leiter falava com a sede do FBI em Tampa. “Aeroportos, rodoviárias e as rodovias”, dizia. “Vocês receberão ordens mais extensas de Washington, tão logo eu fale com eles. Garanto que darão máxima prioridade a esta questão. Muito obrigado. Estarei por aqui. Ok.”
Desligou. “Graças a Deus, estão cooperando”, disse a Bond, que permanecia em pé, fitando o mar com um olhar duro e vidrado. “Vão mandar uns dois homens e armar a rede mais ampla possível. Enquanto costuro isso com Washington e Nova York, veja se extrai o máximo daquele velho canhão. Hora exata, descrições etc. Melhor dar a entender que foi um assalto e que Solitaire se mandou com os sujeitos. Ela vai compreender isso. Assim a coisa fica no nível dos crimes comuns nos hotéis. Diga que a polícia está a caminho e que não culpamos o Everglades. Ela vai querer evitar o escândalo. Diga que queremos a mesma coisa.”
Bond aquiesceu com um gesto de cabeça. “Se mandou com os sujeitos?” Impossível não era. Mas de certo modo não acreditava nisso. Voltou ao quarto de Solitaire e fez uma busca minuciosa. Ainda tinha o seu cheiro, do “Vent Vert” que o fazia lembrar a viagem juntos. O chapéu e o véu estavam no armário e seus poucos artigos de toalete na prateleira do banheiro. Não demorou a encontrar sua valise e percebeu que teve razão em confiar nela. Estava debaixo da cama e ele a imaginou chutando-a para escondê-la, ao se levantar sob a mira das armas. Esvaziou-a em cima da cama e tateou o forro. Depois pegou uma pequena faca e fez cuidadosamente pequenos cortes. Tirou os cinco mil dólares e enfiou-os na carteira. Estariam seguros com ele. Se ela fosse morta por Mr. Big, ele os gastaria com a vingança. Recompôs o pano da melhor maneira possível, repôs os outros itens na valise e chutou-a novamente para baixo da cama.
Em seguida, foi ao escritório da pousada.
Às oito horas o trabalho de rotina já terminara. Tomaram um drinque forte e foram para a sala principal de refeições, onde um punhado de hóspedes acabava de terminar o jantar. Todo mundo olhou-os com uma ponta de medo e curiosidade. O que esses dois rapazes, de aspecto um tanto perigoso, faziam ali? Onde estava a mulher que viera com eles? Com quem era casada? O que significara toda aquela movimentação esta noite? Pobre sra. Stuyvesant, indo de lá para cá toda espantada. E será que eles não perceberam que o jantar é às sete horas? Os funcionários da cozinha estavam prestes a ir para casa. Bem feito se a comida estivesse fria. As pessoas precisam ter consideração pelos outros. A sra. Stuyvesant dissera que eles eram gente do governo, de Washington. Sim, mas o que isso queria dizer?
Por consenso, achavam que eles eram criadores de confusão e não mereciam a companhia da clientela ultrasseleta do Everglades.
Bond e Leiter foram conduzidos a uma mesa ruim perto da porta de serviço. O jantar consistia de uma série de pratos em inglês afetado e francês macarrônico. Reduzia-se a suco de tomate, peixe cozido com molho branco, uma fatia de peru gelado com um pingo de geleia de oxicoco, e uma fatia de torta de limão com um suspiro de falso creme em cima. Comeram melancolicamente enquanto a sala de jantar se esvaziava de seus casais idosos e as luzes das mesas iam sendo apagadas uma a uma. Lavabos com uma pétala flutuante de hibisco deram o gracioso toque final à refeição.
Bond comia calado e, quando acabaram, Leiter fez um esforço proposital de alegrar a atmosfera.
“Vamos tomar um porre. Tivemos um final infeliz de um dia ainda mais infeliz. Ou vai querer jogar bingo com os idosos? Dizem por aí que haverá um torneio de bingo hoje à noite no ‘salão de festas’.”
Bond sacudiu os ombros e eles voltaram para a sala de estar de sua cabana, onde ficaram sentados durante certo tempo, bebendo taciturnos e olhando para a areia da praia, branca como sal ao luar, e para a infindável escuridão do mar.
Depois que Bond bebera o suficiente para afogar seus pensamentos, deu boa noite e foi para o quarto de Solitaire, do qual tomara posse agora. Enfiou-se entre os lençóis onde o corpo quente dela havia estado e, antes de dormir, tomou uma resolução. Iria atrás do Ladrão assim que amanhecesse e extrairia a verdade dele, à força. No meio de toda aquela preocupação não pudera discutir o caso com Leiter, mas tinha certeza de que o Ladrão desempenhara um grande papel no sequestro de Solitaire. Pensou nos pequenos olhos cruéis e nos lábios pálidos e descarnados do sujeito. Em seguida, no pescoço esquelético que brotava, como um pescoço de tartaruga, da camiseta suja. Os músculos de seus braços se contraíram sob os lençóis. Então, depois de tomar essa resolução, relaxou o corpo e caiu no sono.
Dormiu até as oito. Ao ver as horas no relógio, praguejou. Tomou uma chuveirada rápida, mantendo os olhos abertos sob os jatos finos de água, até que ardessem. Enrolou uma toalha na cintura e foi até o quarto de Leiter. As tiras das venezianas ainda estavam abaixadas, mas a luz era suficiente para constatar que ninguém dormira em nenhuma das duas camas.
Sorriu, achando que Leiter provavelmente acabara com a garrafa de uísque e adormecera no sofá da sala. Foi até lá. A sala estava vazia. A garrafa de uísque, ainda pela metade, descansava em cima da mesa, junto com o cinzeiro transbordando de guimbas de cigarros.
Bond foi até a janela, puxou as venezianas e abriu-as. Teve a rápida visão de uma bela e clara manhã, antes de voltar para a sala.
Então distinguiu o envelope. Estava em uma cadeira oposta à porta por que passara. Pegou-o. Continha um bilhete escrito a lápis.
Comecei a pensar e não estou a fim de dormir. São mais ou menos cinco da manhã. Vou visitar o armazém das minhocas e iscas. Como sempre madrugador. Estranho aquele atirador de elite estar sentado ali enquanto S. era sequestrada. Como se soubesse que estávamos no pedaço e estivesse preparado para alguma encrenca, se o sequestro desse errado. Se eu não estiver de volta às dez, chame a milícia. Tampa 88.
FELIX
Bond não esperou. Barbeou-se e se vestiu, pediu café com bolinhos e um táxi. Conseguiu tudo isso em pouco mais de dez minutos, queimando-se com o café. Estava saindo da casa quando ouviu o telefone tocar na sala. Correu de volta.
“Senhor Bryce? Aqui é do Mound Park Hospital”, disse uma voz. “Enfermaria da emergência, doutor Roberts. Estamos aqui com um senhor Leiter que pede para vê-lo. O senhor pode vir agora?”
“Deus do céu”, disse Bond, tomado de medo. “Qual o problema dele? Está mal?”
“Não precisa se preocupar”, disse a voz. “Acidente de automóvel. Parece que foi atropelado e o atropelador fugiu sem prestar socorro. Pequena concussão cerebral. O senhor pode vir? Ele quer vê-lo.”
“Claro”, respondeu Bond, aliviado. “Não demoro.”
Que diabo, pensou ao atravessar o gramado depressa. Deve ter sido espancado e largado na rua. Contudo, Bond se alegrou por não ter sido pior.
Ao fazerem a volta para pegar o elevado de Treasure Island, passou por eles uma ambulância com a sirene ligada.
Mais encrencas, pensou Bond. Parece que não conseguia dar um passo sem ter de enfrentá-las.
Atravessaram St. Petersburg pela Central Avenue e viraram à direita, na rua que ele e Leiter haviam pegado no dia anterior. As suspeitas de Bond se confirmaram quando descobriu que o hospital ficava apenas a alguns quarteirões da Ourobouros Inc.
Bond pagou o táxi e subiu correndo a escadaria do prédio impressionante. Havia um balcão de recepção no hall de entrada espaçoso. Uma enfermeira bonita, sentada à mesa, lia os anúncios do St. Petersburg Times.
“Dr. Roberts?”, perguntou Bond.
“Dr. o quê?”, indagou a garota, olhando-o com simpatia.
“Dr. Roberts, da emergência”, respondeu Bond, com impaciência. “Paciente chamado Leiter, Felix Leiter. Internado esta manhã.”
“Não existe nenhum dr. Roberts aqui”, afirmou a garota. Correu o dedo por uma lista na mesa. “E nenhum paciente chamado Leiter. Espere um pouco que chamarei o guarda. Como é mesmo seu nome?”
“Bryce”, disse Bond. “John Bryce.” Começou a suar em abundância, embora o saguão fosse fresco. Enxugou as mãos molhadas nas calças, lutando contra o pânico. A porcaria da garota não sabia trabalhar. Bonita demais para ser enfermeira. Deviam botar alguém que fosse competente no balcão. Rilhou os dentes, enquanto ela falava ao telefone.
Desligou. “Sinto muito, senhor Bryce. Deve ser algum engano. Não houve internações à noite e nunca ouviram falar em nenhum dr. Roberts ou em nenhum sr. Leiter. O senhor veio ao hospital certo?”
Bond afastou-se sem responder. Limpando o suor da testa, dirigiu-se à saída.
A garota fez uma careta para ele e pegou o jornal.
Felizmente, havia um táxi chegando com outras visitas. Bond pegou-o e disse ao motorista que o levasse de volta rápido ao Everglades. Sabia apenas que tinham pego Leiter e tentado afastá-lo, ele Bond, da cabana. Não conseguia entender, mas percebia que tudo ia mal para eles e que a iniciativa voltara a ser de Mr. Big e de sua máquina.
A sra. Stuyvesant veio correndo quando o viu desembarcar do táxi.
“Seu pobre amigo”, disse, sem grande simpatia, “deveria realmente tomar mais cuidado.”
“Sim, senhora Stuyvesant. O que foi?”, perguntou Bond, sem paciência.
“A ambulância chegou logo depois de o senhor partir.” Os olhos da mulher brilhavam com as más notícias. “Parece que o senhor Leiter teve um acidente de carro. Precisaram levá-lo de maca até a cabana. O encarregado era um senhor negro muito simpático. Disse que o senhor Leiter ficaria bem, mas não deveria ser incomodado em hipótese alguma. Pobre rapaz! Com a cara toda coberta por ataduras. Disseram que elas o fariam se sentir melhor, e que um médico viria depois. Se precisarem de...”
Bond não esperou mais. Correu pelo gramado até a cabana e disparou pelo vestíbulo até o quarto de Leiter.
A forma de um corpo repousava na cama de Leiter. Estava coberta por um lençol, que parecia imóvel, inclusive na parte que cobria o rosto.
Bond trincou os dentes, inclinando-se sobre a cama. Haveria um sinal mínimo de movimento?
Bond arrancou a mortalha de cima do rosto. Não havia rosto. Apenas algo embrulhado em várias camadas de ataduras sujas, como um ninho branco de vespas.
Puxou o lençol para baixo, com delicadeza. Mais ataduras, atadas de maneira mais tosca, minando sangue. Depois a parte de cima de um saco, cobrindo a metade inferior do corpo. Tudo ensopado de sangue.
Um pedaço de papel saía de uma abertura nas ataduras, onde a boca deveria estar.
Bond puxou-o, inclinando-se. Havia o mais ligeiro sopro contra sua face. Agarrou o telefone ao lado da cama. Passaram-se minutos antes que Tampa compreendesse. Só então conseguiu transmitir a urgência da situação. Chegariam dentro de vinte minutos.
Pôs o fone no gancho e olhou vagamente para o papel na sua mão. Era um pedaço irregular de papel branco de embrulho. Rabiscadas a lápis, em letras toscas maiúsculas, liam-se as palavras:
ELE PASSOU MAL COM ALGO QUE O COMEU
E embaixo, entre parênteses:
(P.S. TEMOS UMA PORÇÃO DE PIADAS
TÃO BOAS QUANTO ESTA)
Com gestos de sonâmbulo, Bond colocou o pedaço de papel em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, se voltou para o corpo na cama. Mal ousava tocá-lo, com medo de que o hálito débil e instável de repente parasse. Mas precisava descobrir algo. Seus dedos trabalharam com delicadeza nas ataduras em cima da cabeça. Logo destapou alguns fios de cabelo. O cabelo estava molhado, e ele pôs o dedo na boca. Sentiu um gosto salgado. Puxou alguns fios de cabelo para fora, examinando-os com cuidado. Não havia mais dúvida.
Reviu a cabeleira cor de palha clara que costumava cair em desordem sobre o olho direito cinzento, cheio de humor, e, mais embaixo, o rosto oblíquo e aquilino do texano com que partilhara tantas aventuras. Pensou nele, por um instante, do modo como havia sido. Em seguida, enfiou de novo o tufo de cabelos nas ataduras e sentou-se na beira da outra cama, vigiando em silêncio o corpo do amigo e imaginando o quanto dele ainda poderia ser preservado.
Quando os dois detetives e o cirurgião da polícia chegaram, contou-lhes tudo em uma voz baixa e inexpressiva. Agindo de acordo com o que Bond já lhes havia revelado, mandaram um carro patrulha até o estabelecimento do Ladrão e ficaram esperando o informe, enquanto o cirurgião trabalhava no quarto ao lado.
Este acabou primeiro. Voltou para a sala com um aspecto ansioso. Bond levantou-se de um pulo. O cirurgião da polícia se deixou cair em uma cadeira, levantando os olhos para ele.
“Acho que viverá”, disse. “Mas as chances são de cinquenta por cento. Fizeram um estrago terrível no pobre sujeito. Um braço se foi. Metade da perna esquerda também. O rosto está em petição de miséria, mas é só uma coisa superficial. Eu só queria saber o que poderia ter feito isto. A única coisa que me vem à mente é um animal, ou um peixe grande. Foi estraçalhado por alguma coisa. Saberei melhor quando conseguir levá-lo ao hospital. Poderei ver as marcas dos dentes de seja lá o que fez isso. A ambulância deve chegar de uma hora para outra.”
Ficaram sentados em um silêncio melancólico. O telefone tocava de vez em quando. Nova York, Washington. O departamento de polícia de St. Petersburg queria saber que diabo andara acontecendo no cais, e recebera ordem de ficar afastado do caso. Era um problema de âmbito federal. Finalmente, falando de uma cabine telefônica, surgiu a voz do tenente encarregado da patrulha, para dar seu informe.
Tinham passado um pente-fino no estabelecimento do Ladrão. Não havia nada além de tanques de peixes e de iscas, caixotes de conchas e de coral. O Ladrão e os dois sujeitos que estavam lá controlando as bombas e o aquecimento da água tinham sido presos e interrogados durante uma hora. Seus álibis foram conferidos e demonstraram ser tão sólidos como o Empire State Building. O Ladrão exigira, zangado, a presença de seu advogado, e quando finalmente sua visita fora permitida, todos já haviam sido automaticamente soltos. Nenhuma acusação, nenhuma prova que pudesse servir de fundamento. Todos os indícios levavam a nada. Com exceção do carro de Leiter, encontrado do outro lado do ancoradouro. Um monte de impressões digitais, mas nenhuma coincidia com a de qualquer dos três sujeitos. Tinham alguma sugestão?
“Continue a procurar pistas”, disse o homem mais graduado na cabana, que se apresentara como Capitão Franks. “Logo estarei aí. Washington disse que precisamos pegar estes homens, nem que seja a última coisa que façamos. Dois agentes graduados chegam esta noite de avião. Está na hora de conseguir a cooperação da polícia. Direi a eles para botarem seus informantes para trabalhar em Tampa. Este não é apenas um caso restrito a St. Petersburg. Até logo, por enquanto.”
Eram três horas. A ambulância chegou e saiu levando o cirurgião e o corpo tão próximo da morte. Os dois homens partiram. Prometeram ficar em contato. Estavam ansiosos para saber os planos de Bond. Ele respondeu com evasivas. Disse que precisava falar com Washington. Nesse meio-tempo, poderia ficar com o carro de Leiter? Sim, ele seria trazido, tão logo a polícia técnica terminasse de examiná-lo.
Depois que partiram, Bond ficou sentado, mergulhado em seus pensamentos. Haviam feito sanduíches com os gêneros que encontraram na despensa bem equipada e Bond acabou com o que restava deles. Depois tomou um drinque pesado.
O telefone tocou. Interurbano. Bond se viu falando com o chefe do departamento de Leiter, na CIA. A moral da história é que ficariam muito contentes se Bond fosse imediatamente para a Jamaica. Falaram com Londres, que concordara. Queriam saber a data da chegada de Bond à ilha, para poderem informar a Londres.
Bond sabia que havia um voo da Transcarib, via Nassau, no dia seguinte. Disse que o pegaria. Outras notícias? Ah, sim, disse a CIA. O cavalheiro do Harlem e sua namorada haviam partido de avião para Havana, Cuba, durante a noite. Voo fretado, particular, saindo de um lugarejo na Costa Leste chamado Vero Beach. Os documentos estavam em ordem e a empresa de aviação era tão pequena que o FBI não se dera ao trabalho de incluí-la quando dera a ordem de vigiar todos os aeroportos. A chegada fora confirmada pelo agente da CIA em Cuba. Sim, uma pena. Sim, o Secatur ainda estava lá. Não havia data prevista de saída. Que pena o negócio com Leiter. Excelente sujeito. Tomara que saia desta. Então, Bond estaria na Jamaica amanhã? Ok, desculpe toda a confusão. Até logo.
Bond pensou um pouco, depois pegou o telefone e falou rapidamente com um homem do Aquário de East Garden, em Miami, consultando-o sobre como poderia comprar um tubarão vivo para mantê-lo em uma laguna ornamental.
“O único lugar de que ouvi falar, senhor Bryce, fica aí bem perto do senhor”, informou a voz prestativa. “Ourobouros Worm and Bait. Eles têm tubarões. Grandes. Fazem negócios com zoológicos estrangeiros e assim por diante. Brancos, tigres, até cabeças de martelo. Terão o maior prazer em ajudá-lo. É caro alimentá-los. Foi um prazer. A qualquer hora que passar por aqui. Até logo.”
Bond tirou a arma do coldre e limpou-a, à espera da noite.
15.
MEIA-NOITE ENTRE AS MINHOCAS
Por volta das seis, Bond arrumou a mala e pagou a conta. A sra. Stuyvesant ficou contente ao vê-lo pelas costas. O Everglades não passara por tantos sobressaltos desde o último furacão.
O carro de Leiter estava no Boulevard e Bond foi nele até a cidade. Passou em uma loja de ferragens e comprou vários artigos. Depois comeu, com fritas, o maior bife malpassado que jamais vira. Era um pequeno restaurante chamado Pete’s, escuro e acolhedor. Bebeu quase um copo de Old Grandad com o bife e tomou duas xícaras de café forte. Com tudo isso na barriga começou a se sentir mais animado.
Fez a refeição e os drinques renderem até nove horas. Em seguida, estudou um mapa da cidade, pegou o carro e deu uma longa volta que acabou levando-o, pelo lado sul, a um quarteirão de distância do atracadouro do Ladrão. Dirigiu até a beira-mar e saiu.
Era uma noite de lua e os prédios e armazéns projetavam grandes sombras cor de índigo. Todo o setor parecia deserto e só se ouvia o chapinhar baixo das pequenas ondas contra a amurada, e o gorgolejo do mar debaixo dos atracadouros.
O topo da amurada baixa tinha cerca de um metro de largura. Ficava na sombra pelos cerca de cem metros que separavam Bond do longo perfil negro do armazém da Ourobouros.
Foi andando em silêncio, com cuidado, por cima dela, entre o mar e os prédios. À medida que se aproximava, passou a ouvir um uivo constante e agudo, que ia aumentando de volume até que, ao descer no amplo estacionamento cimentado nos fundos do prédio, tornara-se um grito abafado. Bond esperara algo assim. O barulho vinha das bombas de ar e dos sistemas de aquecimento, que sabia serem necessários à saúde dos peixes durante o período frio da noite. Também esperava que a maior parte do telhado fosse de vidro para deixar passar a luz durante o dia e que, igualmente, houvesse uma boa ventilação.
Não se decepcionou. Toda a parede sul do armazém, a partir de um ponto pouco mais alto que ele, era de vidro temperado, através do qual podia ver o luar brilhando sobre uns dois mil metros quadrados de telhado de vidro. Bem acima dele, fora de alcance, largas janelas abertas deixavam entrar o ar noturno. Havia, tal como ele e Leiter previram, uma pequena porta embaixo, mas estava trancada e aferrolhada, e os fios encapados de chumbo que saíam das dobradiças deixavam entrever algum tipo de alarme contra roubo.
Bond não estava interessado na porta. Fiel à sua intuição, viera preparado para entrar pelo vidro. Procurou alguma coisa que o levantasse uns sessenta centímetros. Em uma terra onde o lixo e os objetos descartados fazem parte da paisagem, não demorou a achar o que queria. Um pneu enorme jogado ali. Rolou-o até o muro do armazém, longe da porta, e tirou os sapatos.
Colocou tijolos debaixo do pneu para estabilizá-lo e subiu. O grito constante das bombas o protegia e ele passou a trabalhar imediatamente com o pequeno cortador de vidro, que comprara junto com um pouco de massa de vidraceiro, quando fora almoçar. Depois de cortar os dois lados verticais de um dos painéis de um metro quadrado, comprimiu a massa no centro do vidro e modelou-a até que virasse um puxador saliente. Em seguida, começou a cortar os dois lados horizontais do painel.
Enquanto trabalhava, contemplou o panorama enluarado do grande depósito. As fileiras infindáveis de tanques descansavam sobre armações de madeira que formavam passadiços estreitos. No centro do prédio havia um passadiço mais largo. Sob as armações Bond distinguiu longos tanques e bandejas embutidos no chão. Do lado de dentro, logo abaixo de onde estava, largas prateleiras apinhadas de conchas se projetavam das paredes. A maioria dos tanques estava escura, mas em alguns uma pequena faixa de luz fantasmagórica brilhava em pequenos repuxos borbulhantes entre as plantas e a areia. Havia uma passarela metálica leve suspensa do teto, sobre cada fileira de tanques, usada, supunha Bond, para levantar cada tanque e levá-lo até a saída para ser despachado, ou para tirar peixes doentes e deixá-los em quarentena. Ele olhava por uma janela que dava para um mundo e um negócio estranhos. Era esquisito imaginar todas as minhocas, as enguias e os peixes se mexendo silenciosamente à noite, milhares de guelras a suspirar e a multidão de antenas se movendo, apontando e transmitindo seus pequenos sinais de radar para os centros nervosos semiadormecidos.
Depois de quinze minutos de trabalho meticuloso, ouviu-se um ligeiro barulho de rachadura e o painel se soltou, puxado pela bola de massa de vidraceiro presa à sua mão.
Desceu, colocando o painel cuidadosamente no chão, afastado do pneu. Em seguida, enfiou os sapatos dentro da camisa. Com apenas uma das mãos funcionando bem, eles poderiam desempenhar o papel de armas vitais. Escutou. Não havia nenhum barulho, exceto o gemido incessante das bombas. Olhou para cima, para ver se havia algumas nuvens prestes a encobrir a lua, mas o céu estava vazio, exceto pelo seu dossel de estrelas claras e cintilantes. Voltou a subir no pneu e, com uma pequena pressão dos braços, passou pelo largo buraco que abrira.
Virou-se e agarrou a moldura metálica acima de sua cabeça, colocou todo seu peso nos braços, dobrou e abaixou as pernas de modo que pendessem alguns centímetros sobre as prateleiras cheias de conchas. Abaixou o corpo até sentir, com as pontas dos pés calçados com meias, o dorso das conchas, separando-as delicadamente com os dedos do pé até abrir um bom espaço na tábua. Em seguida, baixou todo seu peso, com cuidado, sobre a prateleira, que o suportou. Em um instante já estava no chão, com todos os sentidos despertos para detectar algum outro ruído além do gemido do maquinário.
Mas não havia nenhum. Pegou seus sapatos com biqueiras de aço e os deixou no pedaço de tábua descoberto. Depois avançou sobre o piso de concreto com uma lanterna fina como um lápis na mão.
Estava no setor de peixes de aquário. Quando examinava as etiquetas, distinguiu lampejos de luz colorida vindos dos tanques profundos, e por vezes uma joia viva se materializava e o olhava um instante com olhos esbugalhados, antes que ele seguisse adiante.
Havia inúmeros tipos — Swordtails, Guppies, Platys, Terras, Neons, Cichlids, Labirintos e Peixes do Paraíso, e todas as variedades de peixes vermelhos exóticos. Embaixo, embutidas no chão, cobertas na maior parte por grades de galinheiro, bandejas em cima de bandejas apinhadas e revoltas por minhocas e iscas: minhocas brancas, miniminhocas, camarões, pulgas d’água e grossas minhocas marinhas. Destes tanques ao nível do piso, uma porção de pequenos olhos dirigia-se à lanterna.
Havia o cheiro fétido do mangue no ar e a temperatura estava em torno dos vinte graus. Bond começou a suar ligeiramente e a ansiar pelo ar limpo da noite.
Dirigira-se ao passadiço central até encontrar os peixes venenosos que constituíam um de seus objetivos. Depois que lera sobre eles nos arquivos da chefatura de polícia em Nova York, tomara nota mentalmente de investigar mais este comércio secundário da Ourobouros Inc.
Aqui os tanques eram menores e geralmente só havia um espécime em cada um. Os olhos que fitavam Bond preguiçosamente eram frios e encobertos, e às vezes a luz da lanterna revelava uma presa, ou um espeto dorsal que se expunha.
Cada tanque trazia um desenho a giz de uma caveira e ossos, e havia também grandes tabuletas onde estava escrito GRANDE PERIGO e MANTENHA DISTÂNCIA.
Deveria haver pelo menos cem tanques de diversos tamanhos, desde os grandes para conter as raias elétricas e as sinistras violas, até os menores para as enguias, peixes-pedra do Pacífico e o monstruoso peixe-escorpião das Antilhas, cheio de espinhas envenenadas, cada uma com um saco de veneno tão potente quanto o de uma cascavel.
Os olhos de Bond se estreitaram ao perceber que todos os tanques perigosos estavam ocupados até quase a metade de lama ou de areia.
Escolheu um tanque que continha um peixe-escorpião de quinze centímetros. Sabia alguma coisa sobre os hábitos dessa espécie mortífera, especialmente que ela não atacava, mas envenenava por contato.
A parte de cima do tanque estava no nível de sua cintura. Tirou um canivete reforçado que comprara e abriu a lâmina mais comprida. Em seguida, se inclinou sobre o tanque e, com as mangas enroladas, apontou a lâmina deliberadamente para o meio da cabeça áspera, entre as saliências das órbitas oculares. Quando sua mão rompeu a superfície da água, as espinhas brancas se eriçaram perigosamente e as listras manchadas do peixe se transformaram em listras uniformes, marrons como lama. Seus largos peitorais, semelhantes a asas, se ergueram ligeiramente, prontos para a fuga.
Bond espetou rapidamente, corrigindo sua mira de acordo com o ângulo de refração da superfície d’água. Prendeu a cabeça saliente, enquanto a cauda se debatia freneticamente, trazendo o peixe em sua direção e arrastando-o para cima pelo lado de vidro do tanque. Ficou de lado e jogou-o no chão, onde continuou a pular e a se contorcer a despeito de seu crânio destroçado.
Inclinou-se sobre o tanque e mergulhou a mão até o fundo, no meio da lama e da areia.
Sim, elas estavam ali. Sua intuição sobre o peixe venenoso fora correta. Seus dedos sentiam as pilhas apertadas de moedas no fundo da lama, como fichas dentro de uma caixa. Estavam em uma bandeja rasa. Dava para sentir as divisões de madeira. Tirou uma moeda, enxaguando-a, junto com a mão, na superfície mais limpa da água. Iluminou-a com a lanterna. Era tão grande quanto uma moeda moderna de cinco xelins, com metade da espessura, e de ouro. Trazia o escudo d’armas da Espanha e a efígie de Felipe II.
Olhou para o tanque, medindo-o. Deveria haver mil moedas naquele tanque, que nenhum funcionário da alfândega pensaria em remexer. Um valor de dez a vinte mil dólares, guardados por um Cérbero de presa venenosa. Aquilo devia ser o carregamento trazido pelo Secatur na sua última viagem, há uma semana. Cem tanques. Digamos, cento e cinquenta mil dólares de ouro por viagem. Em breve viriam os caminhões para pegar os tanques e, em qualquer lugar da estrada, os homens com tenazes revestidos de borracha tiravam os peixes mortíferos e os jogavam no mar, ou os queimavam. Esvaziavam os tanques da lama e da areia, lavavam as moedas e as colocavam em sacolas. Então as sacolas seguiriam para os agentes e as moedas pingariam no mercado, cada uma meticulosamente registrada pela engrenagem de Mr. Big.
Era um esquema em conformidade com a filosofia de Mr. Big. Eficaz, tecnicamente brilhante, quase à prova de riscos.
Bond estava cheio de admiração ao se inclinar e fisgar o peixe-escorpião de lado, no piso. Atirou-o de volta ao tanque. Não havia sentido em divulgar o que ele sabia para o inimigo.
Foi quando se afastou do tanque que todas as luzes do armazém se acenderam de repente e uma voz ríspida, autoritária, disse: “Não se mexa nem um centímetro. Levante as mãos.”
Ao se lançar e rolar sob o tanque, Bond distinguiu de relance a figura esguia do Ladrão, de olhos semifechados, mirando o rifle a cerca de vinte metros de distância, na entrada principal. Lançou-se, rezando para que o Ladrão errasse, mas também rezando para que o tanque baixo, sob o qual procurava abrigo, fosse do tipo coberto. Era. Estava coberto com grade de galinheiro. Algo tentou mordê-lo quando ele resvalou no aramado e deslizou direto até o passadiço ao lado. Assim que mergulhou, o rifle deu um tiro e o tanque do peixe-escorpião acima de sua cabeça se estilhaçou, derramando toda a água.
Bond correu depressa entre os tanques, de volta a seu único meio de fuga. No exato momento em que dobrou uma esquina, mais um tiro, e um tanque de peixe-anjo explodiu como uma bomba ao lado de seu ouvido.
Agora estava em uma extremidade do armazém, e o Ladrão na outra, a cinquenta metros de distância. Não havia nenhuma chance de pular pela janela do outro lado do passadiço central. Ficou por um instante recuperando o fôlego e pensando. Percebeu que as fileiras de tanques só o protegeriam até os joelhos, e que entre os tanques ele estaria totalmente à vista nos corredores estreitos. De qualquer modo, não podia ficar parado. Foi lembrado deste fato por um tiro que passou entre as suas pernas e bateu em uma pilha de conchas, espalhando pedaços de sua dura casca, que zuniram à sua volta como vespas. Correu para a direita e outro tiro veio endereçado às suas pernas. Atingiu o chão e ricocheteou, batendo em um enorme garrafão de mexilhões, que rachou ao meio e derramou uma centena de moluscos no chão. Bond voltou depressa, a passos largos e rápidos. Sacou a Beretta e atirou duas vezes ao atravessar a passarela central. Viu que o Ladrão pulou para se proteger, enquanto um tanque se estilhaçava acima de sua cabeça.
Bond sorriu ao ouvir um grito abafado pelo ruído de vidro estilhaçado e de água.
Ajoelhou-se de imediato e deu dois tiros nas pernas do Ladrão, mas acertar um alvo a cinquenta metros de distância era exigir demais de sua pistola de pequeno calibre. Ouviu-se o barulho do estilhaçar de outro tanque, mas o segundo tiro fez um ruído metálico ao bater nos portões de ferro da entrada.
Em seguida, o Ladrão reiniciou o tiroteio. Bond podia apenas se esquivar para lá e para cá atrás dos caixotes e ficar esperando um tiro no joelho. De vez em quando atirava de volta, para forçar o Ladrão a manter distância, mas sabia que a batalha estava perdida. O sujeito parecia ter munição ilimitada. Restavam apenas duas balas na pistola de Bond, e um pente cheio no bolso.
Ao correr daqui para lá, escorregando nos peixes raros que se debatiam freneticamente no concreto, chegou até a pegar conchas pesadas e outros moluscos, arremessando-os no inimigo. Muitas vezes chegavam a impressionar quando batiam em cima de algum tanque, aumentando a algazarra dentro do galpão de ferro corrugado. Mas eram totalmente ineficazes. Pensou em atirar nas lâmpadas, mas havia pelo menos vinte, em duas fileiras.
Bond finalmente resolveu se entregar. Ainda tinha um truque na manga, e uma chance qualquer na batalha era melhor do que ficar exausto na extremidade errada daquele tiro ao alvo barato.
Ao passar por uma fileira de tanques, dos quais o mais próximo estava quebrado, empurrou-o no chão. Ainda estava meio cheio de raros peixes de briga siameses, e Bond ficou satisfeito com o baque quando os restos do tanque caro se estilhaçaram no chão. Abriu-se um bom espaço na superfície da armação, e depois de dar duas corridas rápidas para pegar seus sapatos, correu de volta à mesa e pulou nela.
Sem que o Ladrão tivesse um alvo para atingir, fez-se um momento de silêncio, exceto pelo uivo das bombas, o ruído da água vazando dos tanques e dos peixes se debatendo ao morrer. Bond calçou os sapatos e amarrou-os com força.
“Ei, inglês”, chamou o Ladrão, de modo paciente. “Sai logo ou vou começar a usar granadas. Estava esperando você e tenho munição à beça.”
“Eu me rendo”, gritou Bond, com as mãos em concha. “Mas só porque você estourou um dos meus tornozelos.”
“Não vou atirar”, gritou o Ladrão. “Larga tua arma no chão e vem pela passagem central com as mãos pra cima. Teremos uma conversa tranquila.”
“Estou vendo que não tenho alternativa”, disse Bond, dando um toque de desespero a sua voz. Deixou cair sua Beretta com um baque metálico no chão de cimento. Tirou a moeda de ouro do bolso e apertou-a na mão esquerda, envolta por ataduras.
Bond deu um gemido ao pousar os pés no chão. Arrastava a perna esquerda, mancando bastante ao descer o passadiço central, com as mãos levantadas ao nível dos ombros. Parou no meio do corredor.
O Ladrão se aproximou lentamente, meio agachado, com o rifle apontado para a barriga do inglês. Bond gostou de ver que a camisa dele estava ensopada e que ele tinha um corte em cima do olho esquerdo.
O Ladrão veio andando bem à esquerda do passadiço. Quando chegou a cerca de dez metros, Bond parou, com um pé calçado de meia descansando displicentemente em uma pequena obstrução no piso de cimento.
O Ladrão fez um gesto com o rifle. “Mais alto”, rosnou, rispidamente.
Bond gemeu e levantou as mãos mais alguns centímetros, de modo que quase tapavam seu rosto, como uma atitude de defesa.
Entre os dedos, viu que o Ladrão chutava algo com força para o lado, e ouviu um leve barulho metálico, como se ele tivesse puxado um ferrolho. Os olhos de Bond brilharam por trás de suas mãos e seu queixo se contraiu. Sabia agora o que acontecera a Leiter.
O Ladrão se aproximou, e sua figura magra e rija ocultava o lugar onde parara no chão.
“Deus do céu”, disse Bond. “Preciso sentar. Minha perna não me sustenta.”
O Ladrão parou a alguns metros. “Fique de pé enquanto faço umas perguntas, inglês.” Mostrou os dentes manchados de fumo. “Em breve você estará deitado, e para sempre.” O Ladrão ficou estudando-o. As pernas de Bond iam cedendo. Por trás da expressão de derrota, seu cérebro calculava os centímetros.
“Filho da puta intrometido”, disse o Ladrão...
Nesse momento Bond deixou cair a moeda de ouro da sua mão esquerda. Ela bateu no cimento com um barulho metálico e começou a rolar.
Na fração de segundo em que os olhos do Ladrão olharam para baixo, o pé direito de Bond, calçando o sapato com a biqueira de aço, deu um chute no seu alcance máximo, quase arrancando o rifle das mãos do Ladrão. Enquanto este apertava o gatilho e a bala atingia o teto inofensivamente, Bond mergulhou já socando com as duas mãos, direto na barriga do sujeito.
Suas mãos atingiram algo mole, o que provocou um gemido de agonia. Uma descarga de dor percorreu a mão esquerda de Bond, e ele se encolheu quando o rifle bateu nas suas costas. Mas arremessou-se contra o sujeito, indiferente à dor, batendo com as duas mãos, com a cabeça abaixada entre os ombros curvos, obrigando o Ladrão a recuar e a se desequilibrar. Ao sentir o outro perdendo o equilíbrio, Bond se endireitou ligeiramente e chutou de novo com a biqueira de aço. O chute pegou o Ladrão no joelho. Houve um grito de agonia e o rifle caiu por terra, enquanto o Ladrão procurava se salvar. Estava quase caindo, quando o soco ascendente de Bond pegou-o e jogou seu corpo alguns metros mais para trás.
O Ladrão caiu no centro do passadiço, bem ao lado de um ferrolho puxado, que Bond agora distinguiu.
Quando o corpo bateu no chão, uma parte do piso se abriu rapidamente sobre um pino central, e ele quase sumiu pela abertura escura do largo alçapão no concreto.
Ao sentir o piso ceder sob o seu peso, o Ladrão deu um grito agudo de pavor e suas mãos lutaram para se segurar. Agarraram a borda do piso no momento em que todo seu corpo escorregava para dentro do abismo e o painel de dois metros de concreto armado girava suavemente até ficar ereto sobre seu pino, tendo uma bocarra negra aberta de cada lado.
Bond se esforçava para respirar. Pôs as mãos nos quadris e recuperou algum fôlego. Em seguida, andou até a beirada do buraco à direita e olhou para baixo.
O rosto apavorado do Ladrão, com os lábios repuxados em um esgar terrível e os olhos arregalados, estava voltado para ele proferindo um atropelo de palavras.
Ao olhar para além dele, Bond não conseguia distinguir nada, mas ouvia o chapinhar da água contra as fundações do prédio e percebia uma leve luminescência do lado do mar. Bond adivinhou que deveria haver um acesso ao mar através de algum aramado ou barras de ferro cerradas.
À medida que a voz do Ladrão se reduzia a uma lamúria, Bond conseguiu ouvir algo se mexendo lá embaixo, provavelmente acordado pela luz. Um tubarão-tigre ou um cabeça de martelo, imaginou, com suas reações rápidas.
“Me puxa, amigo. Me dá uma chance. Me puxa. Não vou conseguir me segurar por muito mais tempo. Faço qualquer coisa que quiser. Conto qualquer coisa.” A voz do Ladrão era um sussurro rouco em forma de súplica.
“O que aconteceu com Solitaire?”, Bond fitou os olhos aterrorizados do outro.
“Foi Big Man. Me mandou arranjar um sequestro. Dois caras de Tampa. Pergunte pelo Butch e pelo Perpétuo. Uma sinuca atrás do ‘Oasis’. Ela não sofreu nada de mau. Me deixe sair, camarada.”
“E o americano, Leiter?”
O rosto agoniado suplicava. “Foi culpa dele. Veio falar comigo cedo de manhã. Disse que o lugar estava pegando fogo. Vira o incêndio ao passar de carro. Me rendeu e me trouxe até aqui. Queria fazer uma busca no local. Simplesmente caiu no alçapão. Um acidente. Juro que foi culpa dele. A gente o tirou antes que se acabasse. Vai ficar bem.”
Bond olhou friamente para os dedos brancos que se agarravam desesperadamente na beirada afiada de concreto. Sabia que o Ladrão devia ter puxado o ferrolho e manobrado para que Leiter caísse na armadilha. Podia ouvir a risada de triunfo dele quando o chão se abriu. Podia imaginar o sorriso cruel ao rabiscar o bilhete que ele enfiou nas ataduras, depois de terem pescado o corpo meio devorado.
Uma raiva cega dominou-o.
Deu dois chutes decididos.
Um breve grito veio das profundezas. Ouviu-se um som de algo caindo na água e depois um grande estardalhaço.
Bond caminhou até o lado do alçapão e empurrou o retângulo ereto de concreto. Girou-o com facilidade sobre o eixo central.
Pouco antes de suas bordas taparem o vão escuro embaixo, Bond ouviu um terrível grunhido aspirado, como se um grande porco estivesse enchendo a boca. Sabia que era o grunhido que um tubarão faz quando seu focinho medonho e achatado sai da água e sua boca em forma de foice abocanha alguma carcaça flutuante. Bond estremeceu e chutou o ferrolho, fechando-o com o pé.
Bond pegou a moeda de ouro do chão e apanhou a Beretta. Foi até a entrada principal e contemplou por um instante os destroços do campo de batalha.
Refletiu que nada demonstrava que o segredo do tesouro havia sido descoberto. Um tiro destroçara a parte de cima do tanque do peixe-escorpião sob o qual Bond mergulhara. Quando os outros chegassem de manhã, não ficariam espantados ao descobrir o peixe morto dentro do tanque. Pegariam os restos do Ladrão do poço dos tubarões e relatariam a Mr. Big que ele levara o pior em um tiroteio, e que havia um prejuízo de X mil dólares que precisava ser consertado antes que o Secatur pudesse trazer o próximo carregamento. Depois achariam algumas cápsulas da arma de Bond e logo adivinhariam que havia sido um serviço seu.
Bond afastou inflexivelmente da cabeça a cena horrorosa sob o piso do armazém. Desligou a luz e saiu pela entrada principal.
Havia sido uma pequena desforra pelo que fizeram a Solitaire e a Leiter.