7.
MISTER BIG
Seus passos reverberavam ao longo do grande corredor de pedra. No final havia uma porta. Passaram e enveredaram por outro longo corredor iluminado pela ocasional lâmpada no teto. Mais uma porta e se encontraram em um grande armazém. Caixotes e fardos estavam arrumados em pilhas ordenadas. Havia trilhos para guindastes suspensos. Pelas marcas nas caixas, parecia um depósito de bebidas. Seguiram uma passagem até uma porta de ferro. O sujeito chamado Tee-Hee tocou a campainha. Fazia um silêncio absoluto. Bond calculou que deviam ter andado pelo menos um quarteirão desde a boate.
Houve um barulho de ferrolhos e a porta se abriu. Um negro de smoking, com uma arma na mão, se afastou de lado e deixou-os passar para um saguão atapetado.
“Pode ir entrando, Tee-Hee”, disse o sujeito de smoking.
Tee-Hee bateu na porta em frente, abriu-a e foi guiando-os.
Em uma cadeira de espaldar alto, atrás de uma escrivaninha cara, sentava-se Mr. Big, olhando-os tranquilamente.
“Bom dia, senhor James Bond.” A voz era grave e aveludada. “Sente-se.”
O guarda de Bond levou-o pelo grosso tapete até uma poltrona baixa de couro e tubos de aço. Soltou seu braço, e Bond se sentou, encarando Big Man atrás da larga escrivaninha.
Era um alívio abençoado se ver livre daquelas mãos que pareciam tenazes. Toda a sensibilidade dos antebraços de Bond se fora. Deixou-os pender dos lados e recebeu com alegria a dor surda do sangue que voltava a circular.
Mr. Big permanecia sentado, olhando-o, descansando a enorme cabeça no espaldar da cadeira alta. Não disse nada.
Bond percebeu de imediato que as fotos não haviam transmitido coisa alguma deste homem, nada do poder e da inteligência que pareciam emanar dele, nada de suas feições exageradas.
Era uma cabeça do tamanho de uma bola de futebol, duas vezes maior do que o normal e quase totalmente redonda. A pele era preta-acinzentada, esticada e luzidia como a do rosto de um cadáver há uma semana submerso no rio. Era glabra, salvo por uns pequenos tufos de cabelo castanho-acinzentado acima das orelhas. Não havia sobrancelhas, nem cílios, e os olhos eram tão separado, que era impossível enfocar os dois simultaneamente, apenas um de cada vez. Seu olhar era firme e penetrante. Quando pousava em algo, parecia devorá-lo, abarcá-lo todo. Os olhos eram levemente salientes, com íris douradas em volta de pupilas negras, agora dilatadas. Eram olhos animais, não humanos, e pareciam esbraseados.
O nariz era largo, embora não fosse especialmente negroide. As narinas não se apresentavam como cavidades enormes. Os lábios, apenas levemente revirados, eram grossos e escuros. Só se abriam quando ele falava, e então revelavam os dentes e as gengivas rosa pálidas.
Tinha poucas rugas ou marcas, com exceção de dois grandes sulcos acima do nariz, sulcos de concentração. Acima deles, a testa era levemente abaulada antes de se fundir com o topo polido e calvo da cabeça.
Curiosamente, não havia nada de desproporcional relativo àquela cabeça monstruosa. Encimava um pescoço curto e largo, sustentado por ombros gigantescos. Bond sabia pela ficha que ele tinha dois metros de altura e pesava cento e vinte e sete quilos, e que pouca coisa disso era gordura. Porém, a impressão global era medonha, até mesmo aterrorizante, e Bond era capaz de imaginar esse desajustado, obcecado desde criança em se vingar do destino e do mundo, que o odiava porque o temia.
Big Man trajava um smoking. Havia um toque de vaidade nos diamantes que brilhavam no peito e nos punhos de sua camisa. Suas grandes mãos chatas descansavam, meio dobradas, na mesa à sua frente. Não havia vestígio de cigarros ou cinzeiro, e o quarto tinha um cheiro neutro. Não havia nada em cima da escrivaninha, salvo um interfone grande com cerca de vinte canais e, estranhamente, um chicote muito pequeno de montaria, com cabo de marfim e um longo e fino látego.
Mr. Big olhava, concentrado, profunda e silenciosamente para Bond, do lado oposto da mesa.
Em contrapartida, depois de estudá-lo cuidadosamente, Bond olhou em volta do quarto.
Estava cheio de livros e era espaçoso, tranquilo e muito silencioso, como a biblioteca de um milionário.
Havia uma janela alta por cima da cabeça de Mr. Big, mas, fora isso, as paredes estavam cobertas de estantes. Bond se virou na cadeira. Mais estantes entulhadas de livros. Não havia sinal da porta, mas poderia haver uma quantidade delas disfarçadas como estantes. Os dois negros que o haviam trazido permaneciam um pouco constrangidos contra a parede atrás de sua cadeira. Estavam temerosos. Não olhavam para Mr. Big, mas para uma curiosa efígie que descansava em uma mesa no espaço aberto à direita, ligeiramente atrás de Mr. Big.
Mesmo com seus parcos conhecimentos de vodu, Bond a reconheceu de imediato, a partir da descrição de Leigh Fermor.
Uma cruz de um metro e sessenta jazia sobre um pedestal branco. Os braços da cruz estavam enfiados nas mangas de um fraque preto empoeirado, cujas caudas pendiam por trás da mesa, até o chão. Por cima da gola do fraque, um chapéu-coco, cujo topo furado dava passagem à extremidade vertical da cruz, o espreitava. Alguns centímetros abaixo da aba, em volta do pescoço da cruz, pousado sobre as traves horizontais, havia um largo colarinho engomado de clérigo.
Na base do pedestal branco sobre a mesa descansava um velho par de luvas cor de limão. Um cajado curto de málaca, com castão de ouro, estava encostado no ombro esquerdo da efígie. Havia também na mesa uma cartola preta em mau estado.
Aquele espantalho do mal espreitava o quarto — o deus dos cemitérios e chefe da legião dos mortos, Baron Samedi. Até para Bond parecia transmitir uma mensagem medonha, aterrorizante.
Bond desviou o olhar para o grande rosto preto-acinzentado do outro lado da mesa.
Mr. Big falou:
“Quero você, Tee-Hee.” Seus olhos se mexeram. “Pode ir para Miami.”
“Sim, senhor, patrão”, disseram ambos ao mesmo tempo.
Bond ouviu uma porta se abrir e fechar.
Fez-se silêncio de novo. De início os olhos de Mr. Big ficaram focados incisivamente em Bond. Examinaram-no meticulosamente. Mas agora Bond notou que, embora ainda descansassem nele, haviam ficado ligeiramente opacos. Olhavam para Bond sem o ver. Este tinha a impressão de que o cérebro por trás deles estava ocupado, longe dali.
Bond estava determinado a não se deixar perturbar. A sensibilidade voltara às suas mãos, e ele as aproximara do corpo para pegar seus cigarros e o isqueiro.
Mr. Big falou:
“Pode fumar, sr. Bond. Caso sua intenção seja outra, faça o favor de se inclinar para a frente e examinar o buraco da fechadura da gaveta desta escrivaninha diante de sua cadeira. Estarei pronto para o senhor dentro de um momento.”
Bond se inclinou. Era um buraco grande de fechadura. Na realidade, Bond calculou um diâmetro de .45 polegadas. Disparado, supunha, por um pedal debaixo da escrivaninha. Esse sujeito tinha um punhado de truques. Pueris. Pueris? Mas que talvez não devessem ser desprezados tão facilmente. Os truques — a bomba, a mesa que desapareceu — tinham funcionado bem, com eficiência. Não haviam sido meros gestos de vaidade para impressionar. Não havia nada de absurdo quanto a essa arma. Trabalhosa, talvez, mas via-se obrigado a confessar que a coisa era tecnicamente viável.
Acendeu um cigarro e inalou a fumaça profundamente, grato e satisfeito. Não se sentia especialmente preocupado com sua situação. Recusava-se a crer que fosse lhe acontecer algum mal. Seria um serviço porco fazê-lo desaparecer dois dias depois de sua chegada da Inglaterra, a não ser que fosse possível simular algum acidente muito bem pensado. E teriam de se livrar de Leiter também. Seria simplesmente algo intolerável para os dois serviços, e Mr. Big devia sabê-lo. Porém, Bond estava preocupado com Leiter nas mãos daqueles macacos pretos desajeitados.
Os lábios de Big Man se abriram lentamente.
“Há muitos anos que não vejo um membro do serviço secreto, senhor Bond. Desde a guerra. O seu serviço fez um bom trabalho na época. Vocês têm alguns homens capazes. Soube pelos meus amigos que pertence ao alto escalão. Tem dois zeros antes da identificação, acredito — 007, se bem me lembro. O significado desse duplo zero, dizem, é que você foi obrigado a matar alguém durante uma missão. O serviço não deve ter muitos zeros duplos, pois não privilegia o assassinato como arma. Mandaram-no aqui para matar quem, sr. Bond? Não a mim, espero.”
A voz era suave e até mesmo inexpressiva, com uma ligeira mistura de sotaques americano e francês. Mas o inglês era quase pedante na sua precisão, sem nenhum traço de gíria.
Bond permaneceu calado. Presumiu que Moscou mandara uma mensagem com a sua descrição.
“É preciso responder, senhor Bond. O destino dos dois depende disso. Tenho confiança na minha fonte de informações. Sei muito mais do que falei. Saberei descobrir facilmente qualquer mentira.”
Bond acreditava nele. Escolheu uma história que pudesse sustentar e que batesse com os fatos.
“Existem moedas de ouro inglesas circulando na América. Rose Nobles de Eduardo IV”, disse. “Algumas foram vendidas no Harlem. O Tesouro americano pediu uma ajuda para rastreá-las, pois devem provir de uma fonte britânica. Vim pessoalmente ao Harlem para ver esta situação, acompanhado de um representante do Tesouro americano, que espero estar a caminho do hotel, são e salvo.”
“O senhor Leiter é representante da CIA, e não do Tesouro”, disse Mr. Big, friamente. “A posição dele neste momento é extremamente delicada.”
Fez uma pausa, parecendo pensar. Seu olhar ultrapassou Bond.
“Tee-Hee.”
“Sim senhor, patrão.”
“Amarre o senhor Bond na cadeira.”
Bond se ergueu até quase ficar de pé.
“Não se mexa, senhor Bond”, disse a voz macia. “O senhor tem alguma chance de sobreviver se ficar onde está.”
Bond olhou para Big Man, para seus olhos dourados e impassíveis.
Arriou o corpo de volta na cadeira. Imediatamente, passaram uma correia larga em volta dele e a prenderam bem. Duas correias curtas passavam em volta dos pulsos e eram presas aos braços de couro e de metal. Duas a mais em torno dos tornozelos. Ele poderia se arremessar, junto com a cadeira, no chão, mas fora isso se encontrava impotente.
Mr. Big apertou uma tecla no interfone.
“Mande entrar a srta. Solitaire”, disse, soltando a tecla.
Houve um breve intervalo e então uma parte da estante à direita se abriu.
Uma das mulheres mais bonitas que Bond já vira surgiu lentamente e fechou a porta depois. Entrou um pouco no quarto e ficou observando Bond, examinando-o palmo a palmo, da cabeça aos pés. Depois de completar seu exame minucioso, virou-se para Mr. Big.
“Sim?”, perguntou, inexpressivamente.
Mr. Big não mexera a cabeça. Dirigiu-se a Bond.
“Esta é uma mulher extraordinária, senhor Bond”, disse na mesma voz baixa e tranquila, “e vou me casar com ela porque é única. Achei-a em um cabaré no Haiti, onde nasceu. Estava fazendo uma apresentação de telepatia que eu não pude compreender. Estudei-o mais a fundo, e mesmo assim não consegui deslindá-lo. Não havia nada a decifrar. Era mesmo telepatia.”
Mr. Big fez uma pausa.
“Digo-lhe isto como aviso. Ela é a minha inquisidora. A tortura é uma coisa suja e inconclusiva. As pessoas contam aquilo que lhes aliviará a dor. Com esta garota não é preciso utilizar métodos toscos. Consegue adivinhar se as pessoas estão dizendo a verdade. Por isso será a minha mulher. É demasiadamente valiosa para continuar em liberdade. E”, prosseguiu de modo brando, “será interessante ver nossos filhos.”
Mr. Big virou-se para ela e fitou-a, impassivelmente.
“Por enquanto é difícil. Não quer nada com os homens. Por isso é que, no Haiti, nós a chamamos de ‘Solitaire’.”
“Pegue uma cadeira”, falou para ela em voz baixa. “Diga se este homem está mentindo. Fique longe da arma”, acrescentou.
A garota não disse nada, mas pegou uma cadeira parecida com a de Bond, junto à parede, e a empurrou para perto dele. Sentou-se, quase tocando o joelho direito de Bond. Olhou nos seus olhos.
Seu rosto era pálido, com a palidez das famílias que viveram muito tempo nos trópicos. Mas não demonstrava nenhum sinal do cansaço que o ambiente tropical infunde à pele e aos cabelos. Os olhos eram azuis, ardentes e desdenhosos, mas, ao olharem para os seus com uma insinuação de humor, ele percebeu que lhe transmitiam uma mensagem pessoal. Mas esta deixou de existir quando Bond reagiu com o seu próprio olhar. Seus cabelos eram pretos-azulados e caíam pesadamente até os ombros. Tinha maçãs do rosto salientes e uma boca larga e sensual, com um toque de crueldade. O perfil do queixo era delicado e belo. Demonstrava um caráter decidido e uma vontade de ferro, reproduzidos no nariz reto, pontudo. Uma parte da beleza do rosto provinha da ausência de conciliação. Rosto nascido para mandar. Rosto de filha de francês, senhor de escravos colonial.
Trajava um vestido longo de noite, de seda branca, pesada e fosca, cujo corte clássico era quebrado pelas longas dobras que caíam dos ombros, deixando à mostra a parte de cima dos seios. Tinha brincos de diamantes, lapidados em baguette, e uma pulseira fina de diamantes no pulso esquerdo. Não usava anéis. As unhas eram curtas, sem esmalte.
Olhou nos olhos dele e juntou os antebraços displicentemente no colo, aprofundando o vazio entre os seios.
Era uma mensagem inconfundível, e a reação calorosa de Bond deve ter se revelado no seu rosto frio e tenso, porque de repente Big Man pegou o pequeno chicote de marfim em cima da escrivaninha, ao seu lado, e deu uma chicotada que assobiou no ar e foi morder com crueldade os ombros da mulher.
Bond estremeceu ainda mais que ela, cujo olhar se incendiou por um instante, passando depois a tomar um aspecto ausente.
“Sente-se direito”, disse Big Man em voz baixa, “isso não são modos.”
Ela se endireitou lentamente. Tinha um maço de cartas em uma das mãos, que começou a embaralhar. Em seguida, como provocação talvez, mandou-lhe outra mensagem — de cumplicidade, de mais do que cumplicidade.
Dividiu o baralho. Em uma das mãos ficou por cima o valete de ouros. Na outra, a rainha de copas. Ela colocou as duas metades do baralho no colo, de modo que as duas cartas se entreolhassem. Em seguida, juntou as duas metades em um beijo. Depois misturou as cartas e embaralhou-as de novo.
Em nenhum momento deste espetáculo mudo olhou para Bond, e tudo se passou em um instante. Mas Bond sentiu o calor da excitação e seu pulso se acelerando. Tinha uma amiga no campo inimigo.
“Está pronta, Solitaire?”, perguntou Big Man.
“Sim, as cartas estão prontas”, respondeu a garota, em um tom de voz baixo e controlado.
“Senhor Bond, olhe nos olhos desta garota e repita o motivo de sua presença aqui, que o senhor me relatou agora mesmo.”
Bond olhou em seus olhos. Não havia nenhuma mensagem. Não estavam focados nos seus. Olhavam através dele.
Mr. Big repetiu o que dissera.
Por um instante, Bond sentiu uma emoção sinistra. A garota seria capaz de adivinhar? Se fosse verdade, ela o apoiaria ou não?
Fez-se um silêncio mortal na sala. Bond procurou se mostrar indiferente. Olhou para o teto e, em seguida, de volta a ela.
O foco retornou a seus olhos. Ela os desviou dele e olhou para Mr. Big.
“Fala a verdade”, disse a mulher, friamente.
8.
NENHUM “SENSUDIUMÔ”
Mr. Big ponderou um instante. Em seguida, pareceu se decidir. Apertou uma tecla no interfone.
“Boca de Trombone?”
“Sim senhor, patrão.”
“Você está com o americano, Leiter?”
“Sim senhor.”
“Machuque-o bastante. Leve-o de carro até o Bellevue Hospital e largue-o ali perto. Compreendeu?”
“Sim senhor.”
“Não seja visto.”
“Sim senhor.”
Mr. Big soltou a tecla.
“Maldito!”, disse Bond, ferozmente. “A CIA não o deixará escapar depois disso!”
“Você se esquece, senhor Bond, que ela não tem jurisdição sobre a América. O serviço secreto americano não tem poder na América — só no exterior. E o FBI não é amigo dela. Tee-Hee, venha cá.”
“Sim senhor, patrão.” Tee-Hee se aproximou e ficou ao lado da escrivaninha.
Mr. Big olhou para Bond.
“Qual é o dedo que menos usa, senhor Bond?”
Bond ficou espantado com a pergunta. Sua cabeça começou a funcionar a mil.
“Pensando bem, já sei que dirá que é o mínimo da mão esquerda”, continuou a voz macia. “Tee-Hee, quebre o dedo mindinho da mão esquerda do senhor Bond.”
O negro demonstrou o motivo do apelido.
“Hi-hi”, riu em falsete, desdenhoso. “Hi-hi.”
Caminhou ligeiro até Bond. Este se agarrou desesperadamente aos braços da cadeira. O suor começou a brotar na sua testa. Tentou imaginar a dor para que pudesse controlá-la.
O negro levantou lentamente o dedo mínimo da mão esquerda de Bond, que apertava com força o braço da cadeira.
Segurou a ponta dele entre seu polegar e o indicador e começou a entortá-lo para trás, com a máxima determinação, rindo sozinho como um idiota.
Bond se balançava e fazia força para cima, tentando desequilibrar a cadeira, mas Tee-Hee segurou o encosto dela com a outra mão, mantendo-a no lugar. O suor escorria do rosto de Bond. Começou a mostrar os dentes em uma contração involuntária. Com a dor crescente, Bond mal podia distinguir os olhos arregalados da garota dirigidos a ele, e seus lábios vermelhos ligeiramente entreabertos.
O dedo ficou na vertical e começou a dobrar para trás, em direção ao pulso. De repente cedeu. Ouviu-se um estalo agudo.
“Basta”, disse Mr. Big.
Tee-Hee soltou o dedo quebrado a contragosto.
Bond deu um gemido animal em voz baixa e desmaiou.
“Esse cara não tem nenhum sensudiumô”, comentou Tee-Hee.
Solitaire se recostou, murcha, na cadeira, fechando os olhos.
“Ele tinha uma arma?”, perguntou Mr. Big.
“Sim senhor.” Tee-Hee tirou a Beretta de Bond do bolso e empurrou-a por cima da escrivaninha. Big Man pegou-a e a examinou com ar de entendido. Sopesou-a na mão, experimentando a coronha anatômica. Em seguida, foi ejetando as balas em cima da escrivaninha, verificou se a agulha estava vazia e a empurrou em direção a Bond.
“Acorde-o”, ordenou, consultando o relógio. Eram três horas.
Tee-hee foi atrás da cadeira de Bond e enfiou as unhas nos lóbulos das suas orelhas.
Bond gemeu e levantou a cabeça.
Seus olhos focaram Mr. Big, e ele soltou uma série de palavrões pesados.
“Agradeça por não estar morto”, disse Mr. Big, sem nenhuma emoção. “Qualquer dor é melhor do que a morte. Aqui está sua arma. Fiquei com as balas. Tee-Hee, devolva para ele.”
Tee-Hee pegou a pistola em cima da mesa e enfiou-a no coldre de Bond.
“Explicarei resumidamente”, prosseguiu Big Man, “o motivo de você não estar morto; de ter sofrido essa dor, em vez de ter contribuído para a poluição do rio Harlem, dentro do que se chama, jocosamente, um ‘sobretudo de cimento’”.
Fez uma pausa de instantes e falou:
“Senhor Bond, sofro de tédio. Sou dominado por aquilo que os cristãos primitivos chamavam ‘acídia’, a letargia mortal que acomete quem está saciado, quem não tem mais desejos. Sou um sucesso absoluto na minha profissão de escolha, mereço a confiança de quem eventualmente emprega meu talento, sou temido e obedecido cegamente por quem emprego. Não tenho, literalmente, outros mundos a conquistar dentro do terreno de minha escolha. Infelizmente, já é tarde demais na minha vida para trocar de terreno, e já que o poder é a meta de toda ambição, não é provável que eu pudesse adquirir mais poder em qualquer outro terreno, além do que já possuo neste.”
Bond escutava com uma parte de sua mente. Com a outra, já planejava. Sentia a presença de Solitaire, mas mantinha o olhar afastado dela. Fitava firme o grande rosto cinzento, do outro lado da mesa, com seus olhos dourados que jamais piscavam.
A voz macia prosseguiu:
“Senhor Bond, hoje só me dão prazer a artesania, o polimento e o refinamento de que eu possa dotar as minhas operações. Tornou-se quase uma obsessão a justeza absoluta, a grande elegância com que conduzo meus negócios. Todo dia, senhor Bond, procuro fixar padrões ainda mais elevados de sutileza, polimento técnico, de modo que cada um de meus negócios possa ser uma obra de arte, levando a minha assinatura de modo tão nítido como, diríamos, as criações de Benvenuto Cellini. Por enquanto, me satisfaço em ser meu próprio juiz, mas creio com sinceridade, senhor Bond, que a perfeição da qual constantemente me aproximo nas minhas operações acabará finalmente por conquistar o reconhecimento histórico, ainda em nossa época.”
Mr. Big fez uma pausa. Bond viu que seus grandes olhos amarelos estavam arregalados, como se estivesse tendo visões. É um megalomaníaco desvairado, pensou Bond. E tanto mais perigoso por isso. A maior parte das mentes criminosas tinha como motivação apenas a cobiça. Já uma mente obcecada era outra história. Este homem não era nenhum gângster. E sim uma ameaça. Bond não deixou de sentir um certo fascínio e de ficar ligeiramente intimidado.
“Aceito o anonimato por dois motivos”, prosseguiu Mr. Big em voz baixa. “Porque a natureza das minhas operações assim o exige e porque admiro a abnegação do artista anônimo. Se me permite o convencimento, às vezes gosto de me imaginar como um daqueles grandes pintores de afrescos egípcios, que dedicaram suas vidas a produzir obras-primas para os túmulos dos reis, sabendo que nenhum olho vivente jamais os veria.”
Os grandes olhos se fecharam por um momento.
“No entanto, voltemos ao particular. O motivo, senhor Bond, por que não o matei esta manhã é que não me daria nenhum prazer estético abrir um buraco na sua barriga. Com este aparelho aqui”, gesticulou em direção à arma apontada para Bond através da gaveta da escrivaninha, “já abri muitos buracos em muitas barrigas, de modo que me dou por satisfeito em saber que meu pequeno brinquedo mecânico é um sucesso técnico. Além do mais, como o senhor bem pode supor, seria um problema ter uma porção de abelhudos por aqui me fazendo perguntas sobre o seu desaparecimento e o do sr. Leiter. Não passaria de um aborrecimento; mas, por vários motivos, desejo me concentrar em outras questões no momento.
“Então”, Mr. Big consultou o relógio, “resolvi deixar meu cartão de visitas em cada um de vocês e dar-lhes mais um aviso sério. Deve deixar o país hoje, senhor Bond, e o senhor Leiter deve se transferir para outra missão. Já me bastam as preocupações que tenho para ainda ser obrigado a aturar uma porção de agentes europeus, sem falar no número considerável de abelhudos locais que devo enfrentar.
“É só”, concluiu. “Se avistá-lo novamente, morrerá da maneira mais inventiva e apropriada que eu puder criar na hora. Tee-Hee, leve o senhor Bond para a garagem. Diga a dois homens para levá-lo ao Central Park e jogá-lo dentro do lago ornamental. Caso resista, podem machucá-lo, mas não matá-lo. Compreendeu?”
“Sim senhor, patrão”, disse Tee-Hee, dando suas risadinhas em falsete.
Desamarrou os tornozelos e depois os pulsos de Bond. Pegou a mão machucada de Bond e dobrou-a atrás das costas. Em seguida, com sua outra mão, desamarrou a correia em volta da cintura. Puxou Bond para que ficasse de pé.
“Levanta”, disse Tee-Hee.
Bond olhou mais uma vez para o grande rosto cinzento.
“Aqueles que merecem morrer”, Big Man fez uma pausa, “morrem como merecem. Anote isso”, acrescentou. “É um pensamento original.”
Em seguida, olhou para Solitaire, cujo olhar estava dirigido às mãos no seu colo. Ela não levantou a cabeça.
“Vambora”, disse Tee-Hee. Virou Bond contra a parede e empurrou-o para a frente, dobrando seu pulso para trás até quase deslocar o antebraço. Bond deu um gemido verossímil e fraquejou o passo. Queria que Tee-Hee acreditasse que ele estava dócil e intimidado. Queria que ele afrouxasse só um pouco a garra torturante no seu braço esquerdo. Do jeito em que estava, qualquer movimento súbito só resultaria na quebra do braço.
Tee-Hee estendeu a mão por cima do ombro de Bond e apertou um dos livros nas estantes apinhadas. Uma grande parte da estante se abriu, girando sobre um pino central. Bond passou empurrado e o negro deslocou a estante com o pé para que voltasse ao lugar. Pela grossura da porta, Bond imaginou que fosse à prova de som. Chegaram a um longo corredor atapetado que terminava em uma escada que descia. Bond gemeu. “Está quebrando meu braço”, reclamou. “Cuidado. Vou desmaiar.”
Tropeçou de novo, tentando calcular exatamente a posição do negro atrás dele. Lembrou-se do conselho de Leiter: “Canelas, virilha, barriga, garganta. Se bater neles em qualquer outro lugar, quebrará a sua mão.”
“Cala a boca”, disse o negro, abaixando a mão de Bond poucos centímetros nas costas.
Era tudo de que Bond precisava.
Estavam no meio do corredor, faltando pouco para chegar à escada. Bond tropeçou de novo, de modo que o corpo do negro bateu nele. Isto lhe forneceu todas as informações sobre a distância e a direção de que precisava.
Curvou-se um pouco e puxou rápido a mão direita, espalmada e reta como uma tábua, em torno dele e para dentro. Sentiu o baque quando ela acertou o alvo. O negro berrou alto como um coelho ferido. Bond sentiu que seu braço esquerdo se libertara. Virou depressa, puxou a arma descarregada com a mão direita. O negro estava dobrado em dois, com as mãos entre as pernas, dando pequenos gritos ofegantes. Bond deu uma coronhada forte na parte de trás do crânio lanudo. Fez um barulho surdo como se tivesse batido em uma porta, o negro gemeu e caiu para a frente de joelhos, esticando as mãos para se apoiar. Bond foi atrás dele e, com toda a força que podia reunir na biqueira de aço do sapato, desferiu um chute poderoso sob o traseiro das calças cor de lavanda do negro.
O sujeito deu um breve grito final ao ser arremessado um metro e pouco até a escada. Sua cabeça bateu no lado do balaústre de ferro e, em seguida, girando braços e pernas, sumiu pela beirada, vão abaixo. Ouviram-se um baque curto quando ele ricocheteou em algum obstáculo, uma pausa e depois um baque, e um estrondo quando bateu no chão. Em seguida, silêncio.
Bond enxugou o suor dos olhos e ficou escutando. Enfiou a mão esquerda ferida no bolso do paletó. Latejava de dor e o inchaço quase duplicara seu tamanho normal. Segurando a arma com a mão direita, caminhou até o alto da escada e desceu muito devagar, na ponta dos pés.
Só havia um andar até o corpo esparramado embaixo. Ao chegar à plataforma entre os dois lances da escada, parou de novo e escutou. Bem perto, podia ouvir o guincho agudo de algum tipo de transmissor de rádio. Percebeu que vinha de uma das duas portas na plataforma. Devia ser o centro de comunicações de Mr. Big. Ele gostaria de lançar um longo ataque. Mas sua pistola estava descarregada e ele não fazia ideia de quantos sujeitos encontraria na sala. Só os fones no ouvido deveriam tê-los impedido de ouvir os ruídos da queda de Tee-Hee. Foi descendo com cuidado.
Tee-Hee estava morto ou moribundo. Jazia esparramado de costas. A gravata listrada cobria seu rosto como uma cobra esmagada. Bond não sentiu remorso algum. Revistou o corpo à procura da arma e encontrou-a enfiada na cintura das calças cor de lavanda, agora manchadas de sangue. Um Colt .38 Detective Special, cano curto. Estava carregado. Bond enfiou a Beretta inútil de novo no coldre. Aninhou o revólver grande na palma da mão e sorriu inflexivelmente.
Viu uma pequena porta trancada à sua frente. Bond encostou o ouvido nela. Conseguiu detectar o ruído abafado de um motor. Devia ser a garagem. Mas o motor ligado? Naquela hora da manhã? Bond rilhou os dentes. Evidente. Mr. Big devia ter falado que Tee-Hee estava levando-o para baixo. É provável que estivessem estranhando o motivo de tanta demora, e olhassem a porta à espera de que o negro aparecesse.
Bond pensou um instante. Tinha a vantagem da surpresa. Se apenas o ferrolho estivesse bem lubrificado...
Sua mão esquerda estava praticamente inutilizada. Segurando o Colt com a direita, experimentou o primeiro ferrolho com a borda da mão machucada. Voltou com facilidade. O segundo também. Só restava empurrar a maçaneta para baixo. Fez pressão e puxou a porta devagar.
Era uma porta grossa, e o barulho do motor aumentava à medida que a fresta se alargava. O carro devia estar logo ali dentro. Qualquer movimento a mais da porta o trairia. Abriu-a com força e virou a cara de lado, como um esgrimista, para proporcionar o menor alvo possível. O cão do revólver estava armado.
A poucos metros de distância havia um sedã preto, com o motor funcionando. Estava de frente para as portas duplas abertas da garagem. Lâmpadas fluorescentes fortes iluminavam as carrocerias de vários outros carros. Havia um negro grande ao volante do sedã e outro próximo, encostado na porta traseira. Não se via mais ninguém.
Ao verem Bond os negros ficaram boquiabertos de espanto. O cigarro caiu da boca do motorista. Em seguida, ambos se jogaram para pegar suas armas.
Instintivamente, Bond atirou primeiro no sujeito em pé, sabendo que ele sacaria a arma mais rápido.
O revólver pesado tonitroou na garagem.
O negro agarrou a barriga com as duas mãos, deu dois passos cambaleantes em direção a Bond e caiu de cara. Sua arma bateu com um barulho metálico no concreto.
O sujeito ao volante gritou quando o revólver de Bond girou em sua direção. Atrapalhado pelo volante, sua mão direita ainda estava enfiada no casaco.
Bond atirou bem na boca daquele que gritava e a cabeça do sujeito se chocou contra a janela lateral.
Rodeou o carro correndo e abriu a porta. O negro caiu esparramado para fora. Bond jogou seu revólver no assento do motorista e puxou o sujeito até o piso da garagem. Tentou evitar o sangue. Sentou no assento e agradeceu pelo motor estar funcionando e pela alavanca das marchas ser no volante. Bateu a porta, descansou a mão machucada à esquerda da direção e engatou a marcha.
O freio de mão ainda estava puxado. Precisou se inclinar por baixo do volante para soltá-lo.
Foi uma demora arriscada. Quando o carro pesado arremeteu pelas portas duplas largas, houve o estouro de um tiro e uma bala perfurou a carroceria. Ele girou o volante com a mão direita e mais um tiro passou alto. Do outro lado da rua, uma janela se estilhaçou.
O clarão veio de baixo, perto do chão, e Bond imaginou que o primeiro negro tivesse arranjado uma maneira de pegar sua arma.
Não houve mais tiros e nenhum ruído das fachadas insossas dos prédios às suas costas. Ao passar as marchas, não conseguiu distinguir coisa alguma no retrovisor, a não ser a larga faixa de luz da garagem colorindo a rua escura e deserta.
Bond não fazia ideia de onde estava e para onde ia. Era uma rua larga, sem características especiais, e ele seguiu em frente. Viu-se dirigindo à esquerda e voltou rápido para o lado direito. Sua mão doía terrivelmente, mas o polegar e o indicador ajudavam a estabilizar o volante. Tentou se lembrar de manter seu flanco esquerdo livre do sangue na porta e na janela. Só habitavam a rua infindável os pequenos fantasmas de vapor que tremulavam, saídos dos bueiros no asfalto, ligados ao sistema de aquecimento da cidade. O capô feio do carro os ceifava um a um, mas Bond os via pelo retrovisor se reerguendo atrás — um panorama cheio de espectros brancos, de gestos amenos, a se distanciar cada vez mais.
Manteve o carro grande a oitenta. Chegou a uns sinais vermelhos, que furou. A seguir vieram vários quarteirões escuros e depois uma avenida iluminada. Havia tráfego e ele parou até que o sinal ficasse verde. Virou à esquerda e foi recompensado com uma onda de sinais verdes, cada um pondo mais distância entre ele e o inimigo. Em uma encruzilhada, examinou as placas. Estava na Park Avenue com a 116th Street. Diminuiu de novo na próxima rua. Era a 115th. Rumava para o centro, se afastando do Harlem. Seguiu adiante. Virou na 60th Street. Estava deserta. Desligou o carro e deixou-o do lado oposto a um hidrante. Pegou o revólver no assento, enfiou-o na cintura e voltou andando para a Park Avenue.
Alguns minutos depois fez sinal para um táxi que zanzava, e logo estava subindo a escada do St. Regis.
“Recado para o senhor, senhor Bond”, disse o porteiro da noite. Bond escondeu dele o seu lado esquerdo. Abriu a mensagem com a mão direita. Era de Felix Leiter, enviada às quatro da madrugada. “Ligue imediatamente”, dizia.
Bond andou até o elevador, que o levou ao seu andar. Entrou no apartamento 2.100 e passou para a sala de estar.
Então ambos estavam vivos. Bond se deixou cair em uma cadeira ao lado do telefone.
“Meu Deus do céu”, disse Bond, com profunda gratidão. “Que escapada.”
9.
VERDADEIRO OU FALSO
Bond olhou para o telefone e, em seguida, foi até o console. Colocou um punhado de cubos de gelo já meio derretidos em um copo alto, serviu oito centímetros de Haig and Haig, sacudiu a mistura no copo para esfriá-la e diluí-la. Depois bebeu a metade em um longo gole. Pousou o copo e se livrou do casaco. A mão esquerda estava tão inchada que mal conseguia passar pela manga. Seu dedo mínimo ainda estava torcido para trás e doeu terrivelmente ao raspar no tecido. O dedo estava quase preto. Puxou a gravata para baixo e desabotoou a parte de cima da camisa. Em seguida, pegou o copo, deu outro grande gole e voltou ao telefone.
Leiter respondeu de imediato.
“Graças a Deus”, disse Leiter, com genuína emoção. “Qual foi o prejuízo?”
“Dedo quebrado”, respondeu Bond. “E o seu?”
“Golpe de cassetete. Desacordado. Nada sério. Começaram inventando uma porção de coisas engenhosas. Queriam me acoplar ao compressor de ar da garagem. Começar pelos ouvidos e passar a outros orifícios. Quando não receberam instruções de Big Man, ficaram entediados e comecei a conversar sobre os valores mais nobres do jazz com Boca de Trombone, o dono da arma toda sofisticada. Chegamos a Duke Ellington e concordamos que os líderes das grandes bandas deviam ser percussionistas, e não músicos de sopro. Concordamos também que o piano ou a bateria dava uma unidade muito melhor à banda do que qualquer outro instrumento — Jellyroll Morton, por exemplo. A propósito do Duke, contei a ele a piada sobre o clarinete — ‘um instrumento de sopro cruel, que ninguém sabe soprar direito’. Isso o fez morrer de rir. De repente ficamos amigos. O outro sujeito — acho que se chamava Flanela — ficou aborrecido e Boca de Trombone disse que então tirasse uma folga, pois ele cuidaria de mim. Então Big Man telefonou.”
“Eu estava lá nessa hora”, comentou Bond. “Não me pareceu nada divertido.”
“Boca de Trombone ficou preocupado à beça. Andava pela sala falando sozinho. De repente me deu um golpe forte de cassetete, e apaguei. A primeira coisa que percebi é que estávamos do lado de fora do Bellevue Hospital. Mais ou menos às três e meia. Boca de Trombone se desculpou muito, disse que era o mínimo que poderia fazer. Acreditei. Pediu que eu não o entregasse. Disse que contaria que me deixou meio morto. Evidentemente, prometi que inventaria detalhes os mais escabrosos. A gente se separou nos melhores termos. Fui atendido na emergência e voltei para casa. Fiquei preocupado demais com você, mas depois de algum tempo o telefone começou a tocar. A polícia e o FBI. Parece que Big Man se queixou de que dera a louca em um inglês idiota no The Boneyard, cedo de madrugada. Chumbou três de seus homens — dois motoristas e um garçom, meu amigo James —, roubou um de seus carros e fugiu, deixando o chapéu e o casaco na chapelaria. Big Man está gritando que quer providências. É claro que avisei os tiras e o FBI, mas eles estão mais do que putos conosco e precisamos sair da cidade imediatamente. Sentirei falta das manhãs, mas os programas vespertinos, o rádio e a TV já cobriram a notícia. Além disso, Mr. Big vem atrás de você como um enxame de vespas. Aliás, fiz alguns planos. Agora conte você, e Deus sabe como estou contente em ouvir sua voz!”
Bond contou em detalhes tudo o que acontecera. Não se esqueceu de nada. Quando acabou, Leiter deu um assobio baixo.
“Cara”, disse com admiração, “você certamente amassou a máquina de Big Man. Mas teve sorte. Essa garota, Solitaire, com certeza salvou a sua pele. Acha que podemos utilizá-la?”
“Poderíamos, se pudéssemos nos aproximar dela”, respondeu Bond. “Acho que ele a mantém sob grande controle.”
“Precisamos pensar nisso noutro dia”, disse Leiter. “Agora é melhor a gente se mandar. Vou desligar e volto a ligar dentro de poucos minutos. Primeiro, chamarei o cirurgião da polícia para atender você logo. Estarei aí dentro de mais ou menos quinze minutos. Em seguida, eu mesmo falarei com o chefe de polícia para ajeitar as coisas na sua área. Podem ganhar um pouco de tempo achando o carro. O FBI terá de dar umas dicas para o pessoal do rádio e da TV, para a gente pelo menos apagar o seu nome disso aí e parar com essa falação sobre o inglês. Senão o embaixador britânico será tirado da cama e haverá manifestações da Sociedade Nacional pelo Progresso dos Homens de Cor, e Deus sabe mais o quê.” Leiter deu uma risada no telefone. “É melhor dar uma palavrinha com o seu chefe em Londres. São mais ou menos dez e meia, hora de lá. Vai precisar de um pouco de proteção. Eu posso cuidar da CIA, mas o FBI está tendo ataques de ‘eu não disse’ esta manhã. Precisará de mais roupas. Cuidarei disso. Fique acordado. Já basta o que dormirá na sua sepultura. Daqui a pouco chego aí.”
Desligou. Bond sorriu. Ouvir a voz animada de Leiter e saber que ele estava cuidando de tudo acabara com a sua exaustão e suas negras recordações.
Pegou o fone e falou com a telefonista de interurbano. “Dez minutos de espera”, ela avisou.
Bond entrou no quarto e conseguiu um jeito de se despir. Tomou uma ducha muito quente, depois uma gelada. Barbeou-se e conseguiu vestir uma camisa e calças limpas. Botou um pente novo na Beretta, embrulhou o Colt na sua camisa usada e colocou-o na valise. Estava no meio da arrumação da mala quando o telefone tocou.
Ouviu o zumbido e o eco da linha, a conversa de telefonistas distantes, os trechos do Morse de aviões e navios no mar, rapidamente suprimidos. Podia ver o grande prédio cinzento perto de Regent’s Park e imaginar a mesa telefônica ocupada, as xícaras de chá e uma garota dizendo: “Sim, é da Universal Export”, o endereço dado por Bond, uma das fachadas que os agentes usavam para ligações de emergência, em linhas abertas, do exterior. Ela chamaria o supervisor, que atenderia a ligação.
“O senhor está na linha”, informou a telefonista do interurbano. “Pode falar, por favor. Nova York chamando Londres.”
Bond ouviu a voz inglesa tranquila: “Universal Export. Quem fala, por favor?”
“Posso falar com o gerente administrativo?”, disse Bond. “É seu sobrinho James, falando de Nova York.”
“Um momento, por favor.” Bond podia ver a ligação sendo transferida para a srta. Moneypenny, que apertaria uma tecla no interfone. “É Nova York, senhor”, ela diria. “Acho que é 007.” “Ponha-o na linha”, diria M.
“Sim?”, disse a voz fria que Bond apreciava e seguia.
“É James”, falou Bond. “Talvez eu precise de uma ajudinha em relação a uma incumbência difícil.”
“Pode falar”, disse a voz.
“Ontem à noite fui ver o nosso cliente principal”, explicou Bond. “Três de seus melhores empregados passaram mal quando eu estava lá.”
“Mal? Como?”, perguntou a voz.
“Mal como o diabo”, respondeu Bond. “Aqui tem uma onda de gripe.”
“Espero que não tenha pegado.”
“Estou com um pequeno resfriado”, respondeu Bond, “mas nada que mereça muita preocupação. Escreverei sobre isso. O problema é que com essa gripe toda a Federação acha melhor eu deixar a cidade.” (Bond sorriu consigo mesmo, imaginando o sorriso de M.) “Então estou de saída imediata com Felícia.”
“Quem?”, perguntou M.
“Felícia”, soletrou Bond. “Minha nova secretária de Washington.”
“Ah, sim.”
“Pensei em tentar a fábrica que o senhor aconselhou em San Pedro.”
“Boa ideia.”
“Mas a Federação é de outra opinião e gostaria que o senhor me desse o seu apoio.”
“Compreendo perfeitamente”, disse M. “Como vão os negócios?”
“Prometem. Mas a coisa está dura. Felícia vai datilografar meu relatório completo hoje.”
“Ótimo”, disse M. “Mais alguma coisa?”
“Não, é só. Obrigado pelo apoio.”
“Tudo bem. Olhe a saúde. Até logo.”
“Até logo.”
Bond recolocou o fone no gancho. Sorriu. Podia imaginar M ligando para o chefe de gabinete. “007 já se indispôs com o FBI. O idiota foi ao Harlem ontem à noite e apagou três homens de Mr. Big. Machucou-se, mas parece que não muito. Precisa sair da cidade com Leiter, o sujeito da CIA. Vão para St. Petersburg. Melhor avisar A e C. Não demora para que Washington comece a buzinar nos nossos ouvidos, antes do final do dia. Diga a A que ela tem toda a minha simpatia, mas que tenho plena confiança em 007 e que ele agiu em legítima defesa. Não acontecerá de novo, e assim por diante. Compreendeu?” Bond sorriu de novo ao pensar na vaselina que Damon teria de gastar com Washington, quando provavelmente havia muitos outros desentendimentos anglo-americanos para resolver.
O telefone tocou. Era Leiter de novo.
“Agora, ouça”, pediu. “Todo mundo está se acalmando um pouco. Parece que os sujeitos que você acertou eram um trio da pesada — Tee-Hee Johnson, Sam Miami e um cara chamado McThing. Todos procurados por vários crimes. O FBI está acobertando-o. A contragosto, evidente, e a polícia está se esquivando para burro. Os chefões do FBI já pediram ao meu chefe que mande você para casa — tiraram-no da cama, sim, senhor — em grande parte por ciumada — mas já resolvemos isso tudo. Ao mesmo tempo, precisamos ambos sair da cidade imediatamente. Isso também já é certo. Não podemos ir juntos, por isso você vai de trem e eu de avião. Anote aí.”
Bond segurou o telefone com o ombro e estendeu a mão para pegar lápis e papel. “Pode falar”, disse.
“Pennsylvania Station. Plataforma 14. Dez e meia da manhã de hoje. ‘O Fantasma de Prata’. Trem direto para St. Petersburg, via Washington, Jacksonville e Tampa. Arranjei uma cabine para você. Muito luxuosa. Vagão 245, cabine H. O bilhete estará no trem. Estará com o condutor. Em nome de Bryce. Vá simplesmente para a plataforma 14, embarque e se tranque na cabine, até o trem partir. Vou pegar um voo dentro de uma hora pela Eastern, de modo que você estará entregue a si mesmo de agora em diante. Se tiver qualquer problema, ligue para Dexter, mas não se espante se ele pisar a sua cabeça. O trem chega por volta de meio--dia amanhã. Pegue um táxi e vá para o Everglades Cabanas, Gulf Boulevard West, em Sunset Beach. Fica em um lugar chamado Treasure Island, onde estão todos os hotéis que dão para a praia. É ligado a St. Petersburg por um elevado. O taxista conhece.
“Estarei à sua espera. Compreendeu tudo? E, pelo amor de Deus, tome cuidado. Falo sério. Big Man fará todo o possível para pegá-lo, e uma escolta policial até o trem só o denunciaria. Pegue um táxi e fique na moita. Estou lhe mandando outro chapéu e uma capa de chuva castanha. A conta já está paga no St. Regis. É só. Alguma pergunta?”
“Parece ótimo”, disse Bond. “Falei com M e ele vai ajeitar as coisas com Washington, se houver qualquer problema. Tome cuidado também”, acrescentou. “Você é o próximo da lista, depois de mim. Vejo-o amanhã. Até logo.”
“Tomarei”, disse Leiter. “Até logo.”
Eram seis e meia quando Bond abriu as cortinas da saleta de estar e contemplou o amanhecer que chegava sobre a cidade. Ainda estava escuro nas grutas lá embaixo, mas as pontas das grandes estalagmites de concreto já estavam rosadas e o sol acendia as janelas andar por andar, como se um exército de zeladores descesse o prédio trabalhando e acendendo as luzes.
Chegou o cirurgião da polícia, ficou uns dolorosos quinze minutos e foi embora.
“Fratura direta”, dissera. “Levará alguns dias para consolidar. Como aconteceu?”
“Prendi na porta”, respondeu Bond.
“É melhor ficar longe das portas”, comentou o cirurgião. “São perigosas. Deviam ser proibidas. Sorte sua não ter espremido o pescoço nessa aí.”
Depois que ele se foi, Bond acabou de arrumar as suas coisas. Estava pensando se já poderia pedir o café da manhã, quando o telefone tocou.
Bond esperava uma voz dura da polícia ou do FBI. Ao contrário, uma voz de garota, baixa e urgente, pediu para falar com o senhor Bond.
“Quem fala?”, perguntou Bond, para ganhar tempo. Sabia a resposta.
“Sei que é você”, disse a voz, e Bond sentiu que ela estava falando bem junto do bocal. “É Solitaire.” O nome mal foi sussurrado.
Bond esperou, com todos os sentidos alertas e abertos para a cena que poderia estar se desenrolando no outro lado da linha. Estaria sozinha? Será que falava tolamente em um telefone residencial, com extensões, nas quais outros ouvintes estariam agora colados, prestando atenção? Ou estaria em um quarto, com os olhos de Mr. Big dirigidos meticulosamente a ela, dispondo de um lápis e um bloco de anotações ao lado, de modo que pudesse induzir a sua próxima pergunta?
“Escute”, disse a voz. “Preciso ser rápida. Você tem que confiar em mim. Estou em uma drugstore, mas preciso voltar logo para meu quarto. Por favor, acredite em mim.”
Bond tirou o lenço. Falou através dele. “Se eu puder me comunicar com o senhor Bond, o que devo lhe dizer?”
“Ah, dane-se”, falou a garota, com o que parecia ser um verdadeiro toque de histeria. “Juro pela minha mãe, pelos meus filhos ainda não nascidos. Eu preciso fugir. E você também. Precisa me levar. Vou ajudá-lo. Conheço muitos segredos dele. Mas seja rápido. Estou arriscando a minha vida aqui, falando com você.” Deu um soluço de pânico e desespero. “Pelo amor de Deus, confie em mim. Você precisa confiar. Precisa!”
Bond mantinha-se calado. Sua mente funcionava a todo vapor.
“Escute”, ela voltou a falar, mas desta vez desanimada, quase sem esperança. “Se você não me levar junto, eu me mato. E agora, você me leva? Quer me matar?”
Se fosse uma representação, era boa demais. Mesmo assim, ainda era um risco imperdoável, mas Bond decidiu. Falou diretamente no telefone, com a voz baixa.
“Se for uma armadilha, Solitaire, eu a pego e mato, ainda que seja a última coisa que faça. Tem papel e lápis?”
“Espere”, disse a garota com entusiasmo. “Sim, sim.”
Se tivesse sido um plano, ela já estaria com isso tudo pronto.
“Esteja na Pennsylvania Station às dez e meia em ponto. O Fantasma de Prata para...”, hesitou, “... para Washington. Vagão 245, cabine H. Diga que é a sra. Bryce. O condutor está com o bilhete no caso de eu ainda não ter chegado. Vá direto para a cabine e me espere. Compreendeu?”
“Sim”, respondeu a garota, “obrigada, obrigada.”
“Não seja vista”, disse Bond. “Use um véu ou algo assim.”
“Claro”, disse a garota. “Eu prometo. Prometo mesmo. Preciso ir.” Desligou.
Bond olhou para o aparelho mudo e, em seguida, colocou-o no gancho. “Bem”, falou em voz alta. “Agora, ou vai ou racha.”
Levantou-se e se espreguiçou. Andou até a janela e olhou para fora, sem ver nada. Seus pensamentos galopavam. Em seguida, deu de ombros e se voltou de novo para o telefone. Olhou para o relógio. Eram sete e meia.
“Serviço de quarto, bom dia”, falou a voz alegre.
“Café da manhã, por favor”, pediu Bond. “Suco de abacaxi, duplo. Cornflakes e creme. Ovos mexidos com bacon. Um expresso duplo. Torradas e geleia de laranja.”
“Sim, senhor”, disse a atendente. Repetiu o pedido. “Não demora.”
“Obrigado.”
“Não há de quê.”
Bond sorriu.
“O condenado tomou um café da manhã reforçado”, pensou. Sentou-se ao lado da janela e olhou para o céu claro, para o futuro.
Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, Cochicho falava de novo com a cidade, transmitindo a descrição de Bond a todos os olheiros. “Todas as estradas, todos os aeroportos. Quinta Avenida com 55th Street, portas do St. Regis. Mr. Big diz que temos chance nas autoestradas. Transmitam isso para a frente. Todas as estradas, todos os aeroportos...”
10.
O FANTASMA DE PRATA
Bond, com a gola da nova capa de chuva levantada até as orelhas, escapou saindo pela entrada da drugstore St. Regis, na 55th Street, que tinha uma porta interligada ao hotel.
Esperou na entrada e pulou dentro de um táxi que passava, segurando a porta com o polegar em gancho da mão machucada, jogando sua valise leve na frente. O táxi mal foi notado. O negro com a caixa de coleta para os veteranos negros da Coreia, e seu colega que futucava embaixo do capô do carro enguiçado, ficaram no serviço até que foram chamados, muito mais tarde, por um sujeito que passou de carro e deu duas buzinadas curtas e uma longa.
Mas Bond foi imediatamente avistado ao deixar o táxi na entrada de carros da Pennsylvania Station. Um negro que vagava por ali com uma cesta de vime entrou rápido em uma cabine telefônica. Eram dez e quinze.
Faltavam apenas quinze minutos no entanto, um pouco antes de o trem partir, um dos garçons do vagão-restaurante se declarou doente e foi substituído às pressas por um homem que recebera um pacote de instruções meticulosas pelo telefone. O chefe jurou que havia algo estranho, mas o novato lhe disse uma ou duas palavras que o fizeram arregalar os olhos e calar a boca, tocando às escondidas uma fava da sorte que pendia de um barbante no pescoço.
Bond caminhara depressa pela enorme passagem envidraçada e passara pelo portão 14, até o trem.
Lá estava ele, seiscentos metros de vagões prateados, esperando tranquilamente na penumbra da estação subterrânea. Na frente, os geradores auxiliares das unidades gêmeas, diesel e elétrica, de 4.000 cavalos, estalavam diligentemente. Sob as lâmpadas nuas as faixas horizontais, púrpuras e douradas, cores da Seaboard Railroad, brilhavam nas locomotivas como sinais de realeza. O maquinista e o foguista, que levariam o trem na sua primeira etapa de trezentos e vinte quilômetros rumo ao sul, estavam à toa na cabine de alumínio, quatro metros acima dos trilhos, observando o relógio da pressão do ar e o amperímetro, prontos para partir.
Fazia silêncio na grande caverna de concreto sob a cidade, e todo barulho provocava um eco.
Não havia muitos passageiros. Embarcariam mais em Newark, Filadélfia, Baltimore e Washington. Bond caminhou cem metros, suas passadas reverberando na plataforma vazia, antes de encontrar o vagão 245, em direção à traseira do trem. Um porteiro do Pullman estava na porta. Usava óculos. Seu rosto negro demonstrava tédio, mas era amistoso. Embaixo das janelas do vagão, em grandes letras marrons e douradas, lia-se “Richmond, Fredericksburg e Potomac”; e, debaixo delas, “Bellesylvania”, o nome do vagão-dormitório. Uma dupla coluna fina de vapor se erguia do engate do aquecimento central, perto da porta.
“Cabine H”, disse Bond.
“Senhor Bryce? A senhora Bryce acabou de embarcar. Pode ir direto em frente no vagão.”
Bond entrou no trem e virou no corredor verde sem graça, forrado com um grosso tapete. Como sempre, nos trens americanos, um cheiro de charuto velho pairava no ar. Lia-se em uma placa: “Precisa de um segundo travesseiro? Para qualquer conforto adicional, chame o seu atendente Pullman. Seu nome é”; em seguida, um cartão impresso: “Samuel D. Baldwin.”
A cabine H passava do meio do vagão. Havia um casal americano respeitável na E. Fora isso, as cabines estavam vazias. A porta da H estava fechada. Tentou abri-la, mas estava trancada.
“Quem é?”, perguntou uma voz ansiosa de mulher.
“Sou eu”, respondeu Bond.
A porta se abriu. Bond passou, arriou a bagagem e trancou a porta.
Ela usava um vestido preto feito sob medida. De um pequeno chapéu preto de palha pendia um véu de tule. Uma mão enluvada tocava a garganta, e através do véu Bond pôde perceber a palidez de seu rosto e os olhos arregalados de medo. Parecia um tanto francesa e era muito bonita.
“Graças a Deus”, disse.
Bond deu uma olhada rápida em volta da cabine. Abriu a porta do banheiro e espiou dentro. Estava vazio.
Uma voz gritou na plataforma lá fora: “Partida!” Houve um barulho metálico quando o atendente recolheu a escada de ferro e depois o trem começou a rodar silenciosamente pelos trilhos. Um toque de campainha sinalizou a passagem pelo sinal automático. Ouviu-se um ligeiro clangor das rodas quando atravessaram uns desvios, e o trem começou a pegar velocidade. Estavam a caminho, para o que desse e viesse.
“Em que assento gostaria de ficar?”, perguntou Bond.
“Qualquer um”, respondeu ela, ansiosa. “Escolha você.”
Bond deu de ombros e sentou-se de costas para a locomotiva. Preferia ficar voltado para a frente.
Ela se sentou, nervosa, diante dele. Ainda estavam no longo túnel que leva as linhas de Filadélfia para fora da cidade.
Tirou o chapéu e despregou o véu largo de tule, pondo-os no assento ao seu lado. Também tirou uns pregadores de cabelo de trás da cabeça, sacudindo-a para que seus cabelos pretos e pesados caíssem para a frente. Pelas olheiras azuis sob os olhos, Bond concluiu que ela também não devia ter dormido naquela noite.
Havia uma mesa entre eles. De repente, ela estendeu o braço e puxou a mão direita dele em sua direção, em cima da mesa. Segurou-a entre suas duas mãos e inclinou-se para beijá-la. Bond franziu o cenho, tentando recolher a mão, mas por um momento ela a manteve segura, apertando-a entre as suas.
Olhou para cima e seus olhos azuis fitaram os dele com candura.
“Obrigada”, disse. “Obrigada por confiar em mim. Sei que foi difícil para você.” Soltou a mão dele, recostando-se.
“Estou contente por ter confiado”, respondeu Bond de modo um tanto desajeitado, procurando usar a cabeça para poder enfrentar o mistério dessa mulher. Enfiou a mão no bolso para pegar cigarros e o isqueiro. Era um maço novo de Chesterfields, e ele lutou com a mão direita para rasgar o celofane.
Ela estendeu a mão e pegou o maço. Rasgou-o com a unha do polegar, tirou um cigarro, que acendeu e passou para ele. Bond pegou-o e sorriu, olhando bem dentro de seus olhos, sentindo o vestígio do batom de sua boca.
“Fumo cerca de três maços por dia”, avisou. “Ficará ocupada.”
“Só o ajudarei com os maços novos”, disse. “Não se preocupe: não vou mimá-lo durante a viagem toda até St. Petersburg.”
Bond estreitou os olhos e o sorriso se dissipou de seu rosto.
“Acha que eu acreditei que fosse só até Washington?”, disse ela. “Não te achei muito desperto no telefone hoje de manhã. E, aliás, Mr. Big tinha certeza de que você iria para a Flórida. Escutei-o avisando o pessoal dele de lá sobre a sua chegada. Falou com um sujeito chamado ‘o Ladrão’, por interurbano. Disse para vigiarem os aeroportos e os trens. Talvez devêssemos desembarcar antes, em Tarpon Springs ou em uma das pequenas estações no litoral. Você foi visto embarcando no trem?”
“Não que eu saiba”, respondeu Bond. Seus olhos voltaram a se descontrair. “E você? Teve algum problema na hora de fugir?”
“Era o dia da minha lição de canto. Ele está tentando me transformar em uma cantora de cabaré. Quer que eu atue em The Boneyard. Um de seus homens me levou à minha professora, como de costume, e deveria me apanhar ao meio-dia. Não suspeitou nada daquela aula tão cedo. Muitas vezes eu já tomara o café da manhã com minha professora, só para escapar de Mr. Big. Ele espera que eu faça todas as minhas refeições com ele.” Ela consultou o relógio. Ele notou com malícia que era um relógio caro — diamantes e platina, imaginou Bond. “Vão dar falta de mim dentro de mais ou menos uma hora. Esperei até que o carro tivesse ido embora e, em seguida, saí e telefonei para você. Imediatamente peguei um táxi até o centro. Comprei uma pasta de dentes e algumas outras coisas em uma drugstore. Fora isto, só tenho minhas joias e o dinheiro que sempre escondi dele. Cerca de cinco mil dólares. De modo que não serei um ônus financeiro.” Ela sorriu. “Sempre achei que minha chance chegaria um dia.” Fez um gesto em direção à janela. “Você me proporcionou uma nova vida. Faz quase um ano que estou trancada com ele e seus gângsteres negros. Isso aqui é o paraíso.”
O trem corria pelas planícies áridas e abandonadas, e os pântanos, entre Nova York e Trenton. Não era uma paisagem atraente. Lembrava a Bond alguns trechos do itinerário do Tran-siberiano de antes da guerra, exceto pelos enormes cartazes solitários anunciando os espetáculos da Broadway, e o ocasional ferro-velho com pilhas de motores de carro inutilizados.
“Espero poder achar algo melhor para você do que isso aqui”, disse ele, sorrindo. “Mas não me agradeça. Estamos quites agora. Salvou a minha vida na noite passada. Isto é”, e olhou-a com curiosidade, “se você realmente for vidente”.
“Sou, sim”, afirmou ela. “Tenho este poder, ou algo muito parecido. Muitas vezes consigo prever o futuro, especialmente em relação a outras pessoas. É evidente que bordo em cima dessa capacidade e, quando vivia disso, no Haiti, foi fácil transformá-la em um bom ato de cabaré. Lá existem tantas superstições e o vodu, que acreditavam mesmo que eu fosse bruxa. Mas juro que quando o vi pela primeira vez naquela sala, sabia que fora enviado para me salvar. Eu”, ela corou, “vi todo tipo de coisas”.
“Que tipo de coisas?”
“Ah, não sei”, disse, com um olhar fugidio. “Apenas coisas. De qualquer maneira, veremos. Será difícil”, acrescentou com uma expressão séria, “e perigoso. Para nós dois.” Fez uma pausa. “Então, você promete cuidar direito da gente?”
“Farei o possível”, prometeu Bond. “A primeira coisa que devemos fazer é dormir. Vamos tomar um drinque, comer uns sanduíches de frango e pedir ao cabineiro para abaixar as nossas camas. Não precisa se sentir envergonhada”, acrescentou, ao observar o movimento de acanhamento nos seus olhos. “Estamos nisso juntos. Precisamos passar vinte e quatro horas em uma cabine de casal, e não adianta ser melindrosa. De qualquer modo, você é a senhora Bryce”, ele sorriu, “e precisa agir direitinho como ela. Até certo ponto, pelo menos”, acrescentou.
Ela riu.
Os olhos dele ficaram pensativos. Não disse nada e tocou a campainha sob a janela.
O condutor chegou, junto com o cabineiro do Pullman. Bond pediu Old Fashioneds, exigindo Bourbon Old Grandad, sanduíches de frango e café descafeinado Sanka, de modo a não atrapalhar o sono deles.
“Preciso receber outra passagem do senhor, senhor Bryce”, disse o condutor.
“Claro”, concordou Bond. Solitaire fez menção de pegar sua bolsa. “Deixe, querida”, disse Bond, puxando a carteira. “Esqueceu que me deu o dinheiro para guardar antes de sairmos de casa?”
“Aposto que a senhora vai precisar dele para os seus vestidos de verão”, comentou o condutor. “As lojas são muito caras em St. Pete. Também faz muito calor. Já estiveram na Flórida?”
“Sempre vamos nesta época do ano”, mentiu Bond.
“Espero que façam boa viagem”, falou o condutor.
Depois que ele saiu e fechou a porta, Solitaire deu uma risada, satisfeita.
“Não adianta, você não consegue me envergonhar”, disse. “Pensarei em algo realmente terrível. Cuidado. Para início de conversa, vou ali”, fez um gesto para a porta atrás da cabeça de Bond. “Devo estar com um aspecto horrível.”
“Vá, querida”, Bond riu, enquanto ela desaparecia.
Bond virou para a janela e observou as belas casas de madeira à medida que se aproximavam de Trenton. Adorava trens e antecipava, ansioso, o resto da viagem.
O trem diminuía a velocidade. Passaram por desvios cheios de vagões de carga vazios ostentando nomes de todos os cantos dos Estados Unidos — Lackawanna, Chesapeake e Ohio, Lehigh Valley, Seaboard Fruit Express, e o animado Acheson, Topeka e Santa Fe — nomes que irradiavam toda a aura romântica das ferrovias americanas.
“British Railways?”, pensou Bond. Deu um suspiro e voltou seus pensamentos para a aventura que estava vivendo.
Resolvera aceitar Solitaire para o que desse e viesse, ou melhor, na maneira fria dele, para aproveitá-la ao máximo. Havia muitas perguntas esperando respostas, mas agora não era o momento de fazê-las. O importante era que mais um golpe havia sido desferido contra Mr. Big — onde mais doía, na sua vaidade.
Quanto à garota, enquanto garota, pensou que ia ser divertido brincar de implicar com ela e também sofrer suas implicâncias. Estava satisfeito de já terem ultrapassado algumas barreiras e entrado em certa camaradagem, para não falar em intimidade.
Seria verdade o que Big Man dissera, que ela não queria nada com homens? Duvidava. Parecia aberta ao amor, ao desejo. De qualquer maneira, sabia que ela não o rejeitava. Queria que voltasse a se sentar diante dele para poder olhá-la, brincar com ela e descobri-la lentamente. Solitaire. Nome atraente. Não era de espantar que a tivessem batizado assim nas boates vagabundas de Port-au-Prince. Mesmo na perspectiva presente de uma atitude calorosa em relação a ele, ainda lhe restava muita coisa retraída e misteriosa. Ele pressentiu uma infância solitária em alguma plantação decadente, um casarão cheio de ecos se deteriorando lentamente, sufocado pela exuberância tropical. A morte dos pais, a venda da propriedade. A companhia de um ou dois empregados e a vida ambígua nos aposentos na cidade grande. A beleza, seu único capital, e a luta contra as propostas dúbias de emprego como governanta, secretária, acompanhante, que significavam uma prostituição respeitável. Em seguida, os passos dúbios e incertos no mundo do espetáculo. O pequeno trabalho noturno na boate com o número misterioso que, entre gente dominada pela magia, deve ter afastado muito as pessoas dela e a transformado em alguém a ser temida. E então, certa noite, o sujeito enorme de rosto cinzento, sentado sozinho em uma mesa. A promessa de fazê-la atuar na Broadway. A alternativa de uma vida nova, de fugir do calor, da sujeira e da solidão.
Bond afastou-se bruscamente da janela. Um retrato romântico, talvez. Mas deve ter sido algo parecido.
Ouviu a porta sendo destravada. A garota voltou e sentou-se diante dele. Parecia revigorada e alegre. Estudou-o com cuidado.
“Andou pensando sobre mim”, disse. “Eu sinto. Não se preocupe, não há nada tão ruim a ser revelado. Contarei tudo algum dia. Quando tivermos tempo. Agora quero esquecer o passado. Vou apenas lhe dizer meu verdadeiro nome. Simone Latrelle, mas pode me chamar como quiser. Tenho vinte e cinco anos. E agora estou feliz. Gosto desta pequena cabine. Mas estou com fome e com sono. Que cama você quer?”
Bond sorriu diante da pergunta. Pensou.
“Não é muito cavalheiresco”, disse, “mas acho melhor ficar com a de baixo. Prefiro ficar mais próximo do chão — só por precaução. Não que haja algo que possa nos preocupar”, acrescentou, ao ver que ela franzira a testa, “mas Mr. Big parece ter tentáculos muito compridos, especialmente no universo negro. E isso inclui as ferrovias. Você se importa?”
“Claro que não”, respondeu. “Ia sugerir isso. Você não poderia subir na cama de cima com sua mão machucada.”
O almoço deles chegou, trazido do restaurante por um garçom negro preocupado. Parecia ansioso para receber e voltar ao trabalho.
Quando haviam terminado e Bond chamou o porteiro do Pullman, também ele parecia esquivo, evitando olhar para Bond. Demorou a fazer as camas. Fez um teatro da falta de espaço para se mexer.
Finalmente, pareceu tomar coragem.
“Talvez a senhora Bryce queira sentar no compartimento ao lado enquanto arrumo a cabine”, sugeriu, olhando por cima da cabeça de Bond. “A cabine ao lado vai ficar vazia durante todo o percurso até St. Pete.” Tirou uma chave e abriu a porta de comunicação, sem esperar pela resposta de Bond.
A um gesto de Bond, Solitaire entendeu a insinuação. Ele ouviu-a trancar a porta do corredor. O negro fechou a porta de comunicação.
Bond esperou um instante. Lembrava-se do nome do sujeito.
“Tem algo a me dizer, Baldwin?”, perguntou.
Aliviado, o atendente se virou e olhou bem para ele.
“É verdade mesmo, senhor Bryce. Tenho sim senhor.” Uma vez começado, as palavras jorraram como uma torrente: “Eu não devia contar isso, senhor Bryce, mas vai haver um sururu danado nesta viagem. O senhor tem um inimigo neste trem, patrão. Ouço coisas que eu não gosto nem um pouco. Não posso falar muito. Senão vou me dar mal. Mas os senhores tomem cuidado. Tem certo sujeito que está com o dedo apontado pro senhor, patrão, e esse cara é uma desgraça. Melhor ficar com isso aqui”, ele enfiou a mão no bolso e tirou duas cunhas de madeira, da janela. “Enfie esses cavacos debaixo das portas”, disse. “Não posso fazer mais nada além disso. Senão cortam a minha garganta. Não gosto que mexam com os clientes do meu carro. Não, senhor.”
Bond pegou as cunhas dele. “Mas...”
“Não posso ajudá-lo mais do que isto, patrão”, disse o negro em caráter decisivo, com a mão na porta. “Se o senhor tocar a capainha esta noite, eu trago o jantar. Não deixe mais ninguém entrar na cabine.”
Estendeu a mão para pegar a nota de vinte dólares. Amarrotou-a e botou-a no bolso.
“Farei o que for possível, patrão”, disse. “Mas eles me pegam se eu não tomar cuidado. É verdade, sim senhor.” Saiu, fechando a porta rapidamente.
Bond pensou um instante e, em seguida, abriu a porta de comunicação. Solitaire lia.
“Ele arrumou tudo”, disse. “Demorou muito. Queria me contar a história da sua vida também. Vou ficar no meu canto até você subir para o seu ninho. Chame quando estiver pronta.”
Ficou sentado na cabine ao lado, no assento que ela deixara, contemplando os subúrbios tristes da Filadélfia a mostrar, como mendigos, suas feridas para o trem de luxo.
Não havia necessidade de amedrontá-la antes da hora. Mas a nova ameaça viera antes do esperado, e o perigo que ela correria, se o olheiro no trem descobrisse sua identidade, seria igual ao seu.
Ela chamou e ele foi.
A cabine estava escura, exceto pela luz de cabeceira que ela acendera.
“Durma bem”, ela disse.
Bond tirou o casaco. Enfiou as cunhas em silêncio, mas com firmeza, debaixo das duas portas. Em seguida, deitou-se com cuidado no seu lado direito, na cama confortável e, sem nenhuma preocupação quanto ao futuro, caiu em um sono profundo, embalado pelo galope cadenciado do trem.
A alguns vagões de distância, no restaurante deserto, um garçom negro relia o que escrevera em um papel de telegrama, à espera da parada de dez minutos na Filadélfia.
11.
ALLUMEUSE
O trem especial prosseguiu disparado pela tarde luminosa em direção ao sul. Deixaram para trás a Pensilvânia e Maryland. Houve uma longa parada em Washington, onde Bond ouviu, em meio a seus sonhos, os toques cadenciados das campainhas de aviso das locomotivas em manobras, e o suave e insistente falatório do sistema de som da estação. Em seguida, prosseguiram, entrando na Virgínia. Aqui o ar já era mais delicado e o crepúsculo, a apenas cinco horas do bafo radiante e gelado de Nova York, cheirava quase a primavera.
Um grupo ocasional de negros, voltando para casa do campo, ouviria o troar distante sobre os trilhos mudos e prateados, e um deles tiraria o relógio do bolso e, depois de consultá-lo, anunciaria: “Evém o Fantasma de Prata. Seis horas. Acho que meu relógio deve estar certo.” “Verdade”, diria outro, à medida que a cadência forte das locomotivas se aproximava e os vagões iluminados desfilavam velozes em direção à Carolina do Norte.
Eles acordaram pelas sete horas com o tilintar apressado da campainha do alarme de uma passagem de nível, enquanto a grande composição ia emergindo do campo para entrar nos subúrbios de Raleigh. Bond tirou as cunhas sob as portas, antes de acender as luzes e chamar o cabineiro.
Pediu dois dry martínis, e quando surgiram as duas garrafinhas “personalizadas”, os copos e o gelo, pareciam tão insuficientes que fez um pedido imediato de mais quatro.
Discutiram sobre o cardápio. A descrição do peixe dizia que era “feito de tenros filés sem espinhas em massa folhada” e o frango, “deliciosamente dourado à francesa, servido aos pedaços”.
“Pura tapeação”, disse Bond, e acabaram pedindo ovos mexidos com salsichas e bacon, salada, um pouco do Camembert nacional, que era uma das surpresas mais bem-vindas nos cardápios americanos.
Eram nove horas quando Baldwin veio tirar os pratos. Perguntou se queriam algo mais.
Bond andara pensando. “A que horas chegamos a Jacksonville?”, perguntou.
“Por volta das cinco da manhã, patrão.”
“Tem passagem subterrânea na plataforma?”
“Sim senhor. Este vagão para bem ao lado dela.”
“Você poderia abrir a porta e descer a escada muito rápido?”
O negro sorriu. “Sim, patrão. Posso cuidar disso.”
Bond passou-lhe uma nota de dez dólares. “No caso de não encontrar você quando chegarmos a St. Petersburg”, disse.
O negro abriu um sorriso. “Muita bondade sua, patrão. Boa noite, senhor. Boa noite, madame.”
Saiu e fechou a porta.
Bond se levantou e enfiou as cunhas com firmeza sob as duas portas.
“Compreendi”, disse Solitaire. “Então foi isso.”
“Sim”, respondeu Bond. Contou-lhe sobre o aviso que recebera de Baldwin.
“Não me surpreende”, disse a garota, quando ele terminou. “Devem ter visto você entrando na estação. Ele tem uma equipe inteira de espiões. Chama-os de olheiros. Quando são acionados, é quase impossível escapar de sua vigilância. Eu me pergunto quem ele terá neste trem. Pode ter certeza de que é negro, ou cabineiro do Pullman ou alguém no restaurante. Consegue fazer com que essa gente faça absolutamente tudo o que ele quer.”
“Parece que sim”, falou Bond. “Mas como funciona? Qual é o poder que ele tem sobre essa turma?”
Ela olhou pela janela, para o túnel que o trem iluminado furava na escuridão em seu caminho trovejante. Em seguida, desviou o olhar para os olhos cinza-azulados, tranquilos e separados do agente inglês. Pensou: como explicar a alguém com essa segurança de espírito, com esse passado de senso comum, criado com boas roupas e calçados, no meio de casas aconchegantes e ruas iluminadas? Como explicar a alguém que não viveu perto do coração oculto dos trópicos, à mercê da ira, do veneno e da dissimulação destilados por ele; que não viveu o mistério dos tambores, que não testemunhou a ação rápida da magia e o temor que ela inspira? O que poderá saber sobre a catalepsia, a transferência de pensamentos e a intuição especial dos peixes, dos pássaros, dos negros; o significado mortífero da pena de uma galinha branca, de gravetos cruzados na estrada, de uma pequena sacola cheia de ossos e ervas? Sem falar no Mialismo, no roubo de sombras, na morte por inchaço e por definhamento?
Ela teve um calafrio, envolta por uma porção de memórias sombrias. Sobretudo, lembrou-se da primeira vez que sua babá negra a levara ao Houmfor. “Não vai te fazer mal, menina. Isso é um feitiço bom e poderoso. Vai te proteger pelo resto da vida.” E do velho nojento e da bebida imunda que ele lhe dera. De como a babá segurara sua boca aberta até que ela tivesse bebido até a última gota e de como passara toda noite, durante uma semana inteira, gritando, sem conseguir dormir. E de como sua babá ficara preocupada e de como de repente ela conseguira dormir bem, até que, semanas mais tarde, ao sentir algo duro no seu travesseiro, ela o removera da fronha e tirara de dentro dele um pequeno pacote de sujeira. Jogara-o pela janela, mas de manhã não conseguira encontrá-lo. Continuara a dormir bem e sabia que a babá devia tê-lo encontrado e escondido em algum lugar sob as tábuas do assoalho.
Anos depois, descobrira de que era feita a bebida do vodu — uma mistura de rum, pólvora, barro de sepultura e sangue humano. Quase vomitou ao se lembrar do gosto.
O que poderia este homem saber dessas coisas e da fé pela metade que ela depositava nelas?
Olhou para cima e encontrou o olhar fixo e questionador de Bond sobre ela.
“Você acha que eu não compreenderei”, disse ele. “E tem razão até certo ponto. Mas sei o que o medo pode fazer às pessoas e sei que pode ser provocado por muitas coisas. Já li a maioria dos livros sobre vodu e acredito que funcione. Não acho que funcionaria comigo, porque perdi o medo do escuro quando era criança e não sou suscetível à sugestão nem à hipnose. Mas conheço o jargão e não pense que rirei dele. Os cientistas e médicos, autores destes livros, não acharam graça.”
Solitaire sorriu. “Está certo. Então só é preciso lhe dizer que eles acreditam que Mr. Big é o zumbi do Baron Samedi. Os zumbis já são em si mesmos maus. São cadáveres com vida, obrigados a ressuscitar e a obedecer às ordens de quem os controla. O Baron Samedi é o espírito mais horrendo de todo o voduísmo. É o espírito das trevas e da morte. Por isso, quando o Baron Samedi controla o seu próprio zumbi, estamos diante da pior concepção possível. Você conhece a aparência de Mr. Big. Enorme e cinzento, e possuidor de uma grande força psíquica. Não é difícil para os negros acreditarem que ele é um zumbi; aliás, muito mau. O passo para o Baron Samedi é simples. Mr. Big encoraja esta história tendo sempre o fetiche do Baron ao seu lado. Você o viu na sua sala.”
Fez uma pausa. Logo em seguida prosseguiu, quase sem fôlego: “Posso lhe dizer que funciona e praticamente não existe negro algum que o tenha visto e ouvido sua história que não acredite nela e sinta um pavor absoluto dele. E eles têm razão”, acrescentou. “E você também diria o mesmo se soubesse como ele trata quem não lhe obedece totalmente. A maneira como são torturados e mortos.”
“E onde Moscou entra nisso?”, perguntou Bond. “É verdade que ele é um agente da SMERSH?”
“Não sei o que é SMERSH”, respondeu a garota, “mas sei que trabalha para a Rússia, pelo menos já o ouvi falando russo com umas pessoas que aparecem de vez em quando. Vez por outra ele me chamava para aquela sala e depois me perguntava o que eu achava de suas visitas. Geralmente me parecia que elas estavam falando a verdade, embora não compreendesse o que diziam. Mas não esqueça que só o conheço há um ano e ele é muito reservado. Se Moscou o utiliza, conseguiu a adesão de um dos homens mais poderosos da América. Consegue descobrir praticamente o que quiser, e, se não obtém o que deseja, alguém acaba morrendo.”
“Por que ninguém o mata?”, perguntou Bond.
“Não se pode matá-lo”, ela disse. “Já está morto. É um zumbi.”
“Sim, compreendo”, disse Bond, lentamente. “É um esquema bastante impressionante. Você tentaria?”
Ela olhou pela janela e, em seguida, para ele.
“Como último recurso”, confessou a contragosto. “Mas não esqueça que sou do Haiti. Meu cérebro me diz que consigo matá-lo, mas...”, fez um gesto de impotência, “meu instinto diz que não”.
Sorriu docilmente para ele. “Você deve me achar uma idiota completa.”
Bond refletiu. “Não depois de ter lido todos esses livros”, admitiu. Estendeu a mão para cobrir a dela em cima da mesa. “Quando chegar a hora”, falou, sorrindo, “farei uma cruz na minha bala. Costumava funcionar nos velhos tempos”.
Ela pareceu pensativa. “Acho que se alguém puder consegui-lo, esse alguém será você”, afirmou. “Você o golpeou duramente ontem à noite em reação ao que ele lhe fez.” Pegou a mão dele entre as suas e apertou-a. “Agora me diga o que devo fazer.”
“Cama”, respondeu Bond. Consultou seu relógio. Eram dez horas. “É melhor a gente dormir o máximo possível. Vamos abandonar o trem em Jacksonville, mas corremos o risco de sermos vistos. Precisamos descobrir outro caminho até a costa.”
Levantaram-se. Ficaram face a face no trem balouçante.
De repente, Bond estendeu o braço e agarrou-a com a mão direita. Os braços dela envolveram seu pescoço e eles se beijaram apaixonadamente. Ele apertou-a contra a parede que balançava e segurou-a naquela posição. Ela pegou seu rosto ofegante com as duas mãos e manteve-o afastado. Seus olhos brilhavam, ardentes. Em seguida puxou o rosto e os lábios dele contra os seus, novamente, dando-lhe um longo beijo lascivo, como se fosse o homem e ele a mulher.
Bond praguejou contra o dedo quebrado que o impedia de explorar o seu corpo, de possuí-la. Livrou a mão direita e colocou-a entre seus dois corpos, sentindo seus seios firmes, cada um com seu mamilo enrijecido de desejo. Deslizou-a por suas costas, até chegar ao sulco na base da coluna, e deixou-a permanecer aí, segurando com força o meio do seu corpo até que tivessem se beijado o suficiente.
Ela tirou os braços do pescoço dele e afastou-o.
“Um dia eu esperava beijar um homem deste modo”, disse. “E logo que o vi, sabia que seria você.”
Com os braços pendentes dos lados, o corpo dela permanecia ali, aberto a ele, pronto para ele.
“Você é muito bonita”, disse Bond. “Beija do modo mais maravilhoso do que qualquer outra garota que conheci.” Olhou para as ataduras na mão esquerda. “Maldito braço. Não posso segurá-la direito ou fazer amor. Dói muito. É mais uma coisa que Mr. Big vai me pagar.”
Ela riu.
Pegou um lenço na bolsa e limpou o batom da boca de Bond. Em seguida, tirou o cabelo da testa dele, beijando-o de novo, de leve, com ternura.
“Ainda bem”, disse ela. “Temos coisas demais na cabeça.”
O balanço do trem o empurrou de novo contra ela.
Pôs a mão no seio esquerdo e beijou seu pescoço branco. Depois a beijou na boca.
Sentiu que seu sangue pulsava mais suave. Pegou-a pela mão e a levou até o meio da pequena cabine balouçante.
Sorriu. “Talvez você tenha razão. Quando chegar o momento, quero que fiquemos sozinhos com tempo de sobra. Aqui há pelo menos um sujeito que pode perturbar a nossa noite. E teremos que acordar às quatro da madrugada, de qualquer modo. Por isso, simplesmente não há tempo para começar a fazermos amor agora. Prepare-se para dormir. Subirei na sua cama, depois de você, para um beijo de boa-noite.”
Beijaram-se mais uma vez e então ele se afastou lentamente.
“Vamos apenas ver se temos companhia na cabine ao lado”, disse.
Retirou a cunha sob a porta de comunicação devagarzinho e virou a maçaneta delicadamente. Sacou a Beretta do coldre, destravou-a e fez um gesto para que ela puxasse a porta e ficasse atrás dela. Deu o sinal e ela abriu rapidamente a porta. A cabine vazia bocejava sarcasticamente na cara deles.
Bond sorriu para ela, sacudindo os ombros.
“Chame quando estiver pronta”, disse, entrando e fechando a porta.
A porta do corredor estava trancada. A cabine era idêntica à deles. Bond examinou-a com cuidado à procura de pontos vulneráveis. Havia só o duto do ar-condicionado no teto e Bond, que estava aberto a qualquer eventualidade, dispensou a hipótese do uso de gás no sistema. Mataria todos os demais ocupantes do vagão. Havia apenas os canos de esgoto do pequeno banheiro e, embora pudessem ser usados por alguém que inserisse algum mecanismo mortífero a partir da parte de baixo do trem, o autor desta façanha teria que ser um acrobata audaz e muito bem treinado. Não havia duto de ventilação dando para o corredor.
Bond deu de ombros. Se viesse alguém, seria através das portas. Ele simplesmente teria de permanecer acordado.
Solitaire o chamou. A cabine cheirava a ‘Vent Vert’ de Balmain. Ela estava apoiada no cotovelo, olhando para ele do beliche superior.
Os lençóis estavam puxados em volta dos ombros e Bond imaginou que ela estivesse nua. Seus cabelos pretos caíam em uma cascata negra sobre os ombros. Com apenas a luz de leitura atrás, seu rosto estava na penumbra. Bond subiu a pequena escada de alumínio e se inclinou em sua direção. Ela se inclinou para ele e de repente os lençóis caíram de seus ombros.
“Sua danada”, disse Bond. “Você...”
Ela tapou a boca dele com a mão.
“Allumeuse é a palavra certa para isto. É tão divertido poder excitar um homem tão forte e calado. Você arde com uma chama tão zangada. Mas é o único jogo que posso jogar com você, e não poderei jogá-lo por muito mais tempo. Serão necessários quantos dias para que sua mão fique boa?”
Bond deu uma mordida forte na mão que tapava sua boca. Ela deu um pequeno grito.
“Não faltam muitos”, respondeu Bond. “E aí, um dia, quando você estiver jogando esse seu jogo, vai acabar presa por um alfinete, como uma borboleta.”
Ela o envolveu em seus braços e eles se beijaram longa e apaixonadamente.
Finalmente, ela se deixou cair nos travesseiros.
“Fique bom depressa”, pediu. “Já estou cansada do meu jogo.”
Bond desceu e puxou as cortinas do beliche dela.
“Agora procure dormir. Amanhã teremos um longo dia pela frente.”
Ela resmungou algo e ele ouviu-a se virar. Depois desligou a luz.
Bond se certificou de que as cunhas estavam bem enfiadas sob as portas. Em seguida, tirou o casaco e a gravata e deitou no beliche de baixo. Desligou a sua luz e ficou deitado, pensando em Solitaire e ouvindo o galope constante das rodas debaixo da cabeça e os pequenos ruídos reconfortantes na cabine, os delicados rangidos, tremores e gemidos na carroceria, que provocam nos viajantes de trem um sono tão rápido à noite.
Eram sete horas e o trem se encontrava no longo trecho entre Colúmbia e Savannah, na Geórgia. Faltavam mais ou menos seis horas para Jacksonville, ainda seis horas de escuridão, durante a qual Big Man certamente teria instruído seu agente a agir, enquanto o trem inteiro dormia e qualquer um podia usar os corredores sem interferência.
A grande composição serpenteava no escuro, devorando os quilômetros de planícies vazias e os míseros povoados da Geórgia, o “estado do pêssego”, enquanto o gemido zangado de sua buzina de ar comprimido, de quatro tons, espalhava seu uivo sobre a vasta savana, e o longo feixe de seu único farol rasgava o tecido negro da noite.
Bond tornou a ligar a luz e leu um pouco, mas seus pensamentos eram por demais insistentes e logo desistiu, desligando-a. Mas ficou pensando em Solitaire e no futuro, na perspectiva mais imediata de St. Petersburg e de tornar a ver Leiter.
Muito mais tarde, perto de uma hora da madrugada, cochilava à beira do sono mais profundo, quando um ruído metálico suave, bem perto da cabeça, o fez acordar totalmente, com a mão sobre a arma.
Havia alguém na porta do corredor, tentando abrir silenciosamente a fechadura.
Bond se levantou de um pulo, movendo-se de pés descalços. Tirou devagarzinho a cunha sob a porta da cabine ao lado e girou a maçaneta com delicadeza, abrindo-a. Passou para a outra cabine e começou a abrir em silêncio a porta do corredor.
Houve um clique alto quando a lingueta voltou. Escancarou a porta violentamente e irrompeu no corredor, distinguindo apenas uma figura em fuga, já próxima do final do vagão.
Se tivesse as duas mãos livres, poderia ter atirado no sujeito, mas para abrir a porta fora obrigado a enfiar a pistola na cintura. Bond sabia que qualquer perseguição seria inútil. Havia demasiados compartimentos vazios nos quais o homem poderia entrar e fechar silenciosamente a porta. Bond já pensara em tudo isso antes. Sabia que sua única chance seria a surpresa, um tiro rápido ou a rendição do sujeito.
Deu alguns passos até a cabine H. O canto pequeno de um papel era visível no corredor, sob a porta.
Voltou para a cabine deles, fechando as portas depois de passar.
Acendeu sua luz de leitura em silêncio. Solitaire ainda dormia. O restante do papel, uma única folha, jazia no tapete, ao lado da porta do corredor. Apanhou-a e sentou-se na beira da cama.
Era uma folha de papel barato pautado. Cobriam-no linhas irregulares de maiúsculas toscas, em tinta vermelha. Bond segurou-a com cuidado, sem esperança de que tivesse muitas impressões digitais. Essa gente não era de fazer isso.
Oh bruxa [leu ele] não me mates,
Poupe-me. O corpo pertence a ele.
O divino batuqueiro declara que
Quando acordar na aurora
Tocará seus tambores para VOCÊ ao amanhecer
Cedo, cedinho, cedo, cedinho, cedo, cedinho.
Oh bruxa que mata os filhos dos humanos antes que amadureçam totalmente
Oh bruxa que mata os filhos dos humanos antes que amadureçam totalmente
O divino batuqueiro declara que
Quando acordar na aurora
Tocará seus tambores para VOCÊ ao amanhecer
Cedo, cedinho, cedo, cedinho, cedo, cedinho.
A VOCÊ nos dirigimos
E VOCÊ compreenderá.
Bond se deitou na cama e pensou.
Em seguida, dobrou o papel e botou-o na sua agenda.
Deitou-se de bruços e ficou olhando o vazio, à espera do amanhecer.