Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VIVA E DEIXE MORRER
VIVA E DEIXE MORRER

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

 

 

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

CONTINUA

4.
A GRANDE MESA TELEFÔNICA

Depois que Dexter e o seu colega haviam partido, levando os restos da bomba, Bond pegou uma toalha úmida e limpou a mancha de fuligem na parede. Em seguida, chamou o garçom e, sem lhe dar explicação, mandou que pusesse o que fora quebrado na sua conta e recolhesse as coisas do café da manhã. Depois pegou seu casaco e chapéu e foi para a rua.

Passou a manhã na Quinta Avenida e na Broadway, perambulando sem rumo, olhando as vitrines e a multidão de passantes. Pouco a pouco assimilou a maneira de andar despreocupada do visitante de fora da cidade, e quando testou as reações das pessoas em certas lojas, percebeu que ninguém olhara para ele duas vezes.

Fez uma refeição tipicamente americana em um restaurante chamado Glory-fried Ham-N-Eggs (“os ovos que servimos amanhã ainda não foram postos hoje pelas galinhas”) na Lexter Avenue, e depois pegou um táxi até a chefatura da polícia, no centro, onde deveria se encontrar com Leiter e Dexter às 14h30.

Um certo Tenente Binswanger, de homicídios, policial desconfiado e ríspido de seus quarenta e muitos anos, declarou que o chefe de polícia, Monahan, ordenara a total cooperação do departamento. O que poderia fazer por eles? Examinaram a ficha de Mr. Big, que reproduzia mais ou menos as informações de Dexter, e puderam ver as fichas e as fotos da maioria de seus cúmplices conhecidos.

Foram examinar os relatórios do serviço de guarda costeira dos EUA sobre as idas e vindas do iate Secatur, e também os relatórios da alfândega americana, que mantinha uma severa vigilância sobre o barco toda vez que ele atracava em St. Petersburg.

Estes confirmaram que o iate costumava chegar a intervalos irregulares ao porto de St. Petersburg, durante os seis meses passados, e sempre atracava na doca da Ourobouros Worm and Bait Shippers Inc., uma empresa aparentemente inocente, cuja atividade principal era a venda de iscas vivas para os clubes de pesca em toda a Flórida, no Golfo do México e alhures. A empresa também tinha uma atividade paralela lucrativa de venda de conchas e corais para decoração de interiores, e outra ainda de venda de peixes tropicais de aquário — principalmente as espécies venenosas e raras — aos departamentos de pesquisa das fundações médicas e químicas.

De acordo com o proprietário, um pescador de esponjas grego da vizinha Tarpon Springs, o Secatur fazia grandes negócios com a sua empresa, trazendo carregamentos de “conchas de Madagascar” e outras conchas da Jamaica e também variedades preciosas de peixes tropicais. Tudo isto era comprado pela Ourobouros Inc., guardado nos seus armazéns e vendido no varejo e no atacado, em toda a extensão da costa. O nome do grego era Papagos. Ficha limpa na polícia.

O FBI, com a ajuda da inteligência naval, tentara fazer uma escuta no rádio do Secatur. Mas ele ficava fora do ar exceto por pequenas mensagens antes de zarpar de Cuba ou da Jamaica, transmitidas em uma língua não cifrada, mas desconhecida e totalmente ininteligível. A última anotação na ficha dizia que o operador de rádio falava em “língua”, a linguagem secreta do vodu usada apenas pelos iniciados, e que todos os esforços seriam feitos para contratar um perito do Haiti antes da próxima viagem.

“Tem aparecido mais ouro ultimamente”, comunicou o Tenente Binswanger, enquanto voltavam do departamento de identificação para a sua sala, do outro lado da rua. “Cerca de cem moedas por semana só no Harlem e em Nova York. Quer que a gente tome providências? Se estiver certo e esses forem fundos comunistas, eles estão chegando cada vez mais rápido, enquanto ficamos sentados nas nossas bundas sem fazer coisa alguma.”

“O chefe diz para esperar”, disse Dexter. “Espero que a gente não demore a poder agir.”

“Bem, o caso é todo de vocês”, disse Binswanger, meio a contragosto. “Mas o chefe de polícia não gosta de ver esse puto cagando na sua própria porta, enquanto o sr. Hoover fica sentado em Washington, fora do alcance do fedor. Por que não o prendemos por evasão de impostos, utilização criminosa dos correios ou estacionamento na frente de um hidrante, ou algo assim? Por que não levá-lo para as catacumbas e fazer um serviço nele? Se os federais não quiserem, estamos à disposição para o que der e vier.”

“Quer provocar uma sublevação racial?”, contestou Dexter, irritado. “Não temos nenhuma prova contra ele, e você sabe. Se não fosse libertado em meia hora por aquele rábula negro dele, os tambores do vodu começariam a batucar daqui até o coração do Sul. Quando eles ficam cheios dessas ideias, todos sabem o que acontece. Lembra-se de 1935 e 1943? Seria preciso chamar a Milícia. A gente não pediu para ficar com este caso. O presidente nos encarregou disso e precisamos aguentar firme.”

Estavam de volta à sala insossa de Binswanger. Pegaram seus casacos e chapéus.

“De qualquer maneira, obrigado pela ajuda, tenente”, disse Dexter, com cordialidade forçada ao se despedir. “Foi de grande valor.”

“Não tem de quê”, disse Binswanger, frio como uma pedra. “O elevador fica à direita.” Fechou a porta com força.

Leiter piscou para Bond por trás das costas de Dexter. Desceram em silêncio até a entrada principal em Center Street.

Na calçada, Dexter virou-se para eles.

“Recebi umas instruções de Washington esta manhã”, disse, friamente. “Parece que devo cuidar do Harlem e vocês dois devem ir a St. Petersburg amanhã. Leiter deve descobrir o que puder por lá e, em seguida, ir direto para a Jamaica com o senhor, sr. Bond. “Isto é, se o senhor quiser que ele vá. O território é seu.”

“Claro”, disse Bond. “Eu ia pedir que viesse, de qualquer maneira.”

“Ótimo”, exclamou Dexter. “Então direi a Washington que está tudo combinado. Há alguma outra coisa em que eu possa lhe ser útil? Todas as comunicações devem ser com o FBI, Washington, evidente. Leiter conhece os nomes de nossa gente na Flórida, conhece as rotinas dos códigos e assim por diante.”

“Se Leiter tiver interesse e se você não se importar”, disse Bond, “eu gostaria muito de ir ao Harlem esta noite para dar uma olhada. Talvez seja útil a gente ter uma ideia do quintal de Mr. Big.”

Dexter refletiu.

“Está bem”, acabou dizendo. “Provavelmente não há mal nisso. Mas não se mostrem demais. E não se machuquem”, acrescentou. “Não existe ninguém que os possa ajudar lá. E não causem problemas para nós. Este caso ainda não está maduro. Até agora nossa política com Mr. Big é ‘viva e deixe viver’.”

Bond deu um olhar perplexo para o Capitão Dexter.

“No meu trabalho”, afirmou, “quando tenho de enfrentar um sujeito assim, meu lema é outro: ‘Viva e deixe morrer’.”

Dexter deu de ombros. “Pode ser”, disse, “mas aqui o senhor está sob as minhas ordens, senhor Bond. Gostaria que se conformasse com isto.”

“Evidente”, disse Bond, “e obrigado por toda sua ajuda. Espero que tenha sorte com sua parte do serviço.”

Dexter fez sinal para um táxi. Apertaram as mãos.

“Até logo, pessoal”, disse Dexter, em poucas palavras. “Continuem vivos.” Seu táxi se misturou ao trânsito que ia para a zona residencial.

Bond e Leiter trocaram um sorriso.

“Sujeito capaz, eu diria”, disse Bond.

“São todos assim na sua organização”, falou Leiter. “Certa tendência a serem metidos. Muito suscetíveis quanto a suas prerrogativas. Vivem brigando com a gente ou com a polícia. Mas suponho que vocês devem ter o mesmo problema na Inglaterra.”

“Ah, é claro”, disse Bond. “A gente está sempre tendo atritos com o MI5. E eles vivem pisando nos calos do Special Branch da Scotland Yard”, explicou. “Então, que tal irmos ao Harlem hoje à noite?”

“Por mim, está bem”, respondeu Leiter. “Eu o deixo no St. Regis e o pego por volta das seis e meia. A gente se encontra no King Cole Bar, no térreo. Aposto que você quer dar uma olhada em Mr. Big”, sorriu. “Sim, eu também, mas não ficava bem falar isso para Dexter.” Fez sinal para um táxi amarelo.

“St. Regis Hotel, Quinta com a 55th Street.”

Embarcaram na lata velha superaquecida, fedendo a fumaça de charuto da semana anterior.

Leiter abriu a janela.

“O que você está querendo?”, disse o taxista por cima do ombro. “Que eu pegue uma pneumonia?”

“Exatamente”, respondeu Leiter, “se for necessário para que a gente se salve desta câmara de gás.”

“Engraçadinho, hein?”, disse o motorista, arranhando um pouco as marchas. Pegou um toco mastigado de charuto de trás da orelha e o mostrou. “Três por vinte e cinco cents”, falou, em um tom de voz magoado.

“Vinte e quatro cents mais caro do que valem”, disse Leiter. O resto da viagem transcorreu em silêncio.

Separaram-se no hotel e Bond foi para o seu quarto. Eram quatro horas. Pediu à telefonista para chamá-lo às seis. Durante um tempo ficou olhando pela janela do quarto. À esquerda, o sol se punha em um esplendor colorido. As luzes se acendiam nos arranha-céus, transformando a cidade inteira em uma colmeia dourada. Bem embaixo, as ruas eram rios de néon carmesim, verde, azul. O vento suspirava melancólico no crepúsculo aveludado, deixando o quarto mais quente, aconchegante, luxuoso. Fechou as cortinas e acendeu as luzes baixas sobre a cama. Em seguida se despiu e se enfiou entre os lençóis caros de percal. Pensou no tempo cruel das ruas de Londres, no chiado e no calor recalcitrante do aquecedor a gás da sua sala na sede do serviço, no cardápio escrito a giz de um pub por que passara em seu último dia em Londres: “Rã Gigante & 2 Veg.”

Espreguiçou-se sensualmente. Em pouquíssimo tempo já dormia.

Lá no Harlem, na grande mesa telefônica, “Cochicho” cochilava em cima de seus talões de aposta de turfe. Todas as linhas estavam mortas. De repente uma brilhou à direita do painel — uma luz importante.

“Sim, patrão”, falou em tom abafado no fone de ouvido. Não poderia ter falado mais alto, nem que quisesse. Nascera na “Quadra do Pulmão”, na Sétima Avenida com a 142th Street, onde a morte por tuberculose é duas vezes maior do que em qualquer outro canto de Nova York. Só lhe restara parte de um pulmão agora.

“Diga a todos os olheiros”, disse uma voz grave, “para ficar de alerta de agora em diante. Três sujeitos.” Fez uma breve descrição de Leiter, Bond e Dexter. “Talvez apareçam esta noite ou na próxima. Diga para ficarem especialmente de olho da Primeira à Oitava Avenida, e nas outras. Nos locais noturnos também, no caso de não serem vistos chegando. Não devem ser molestados. Ligue para mim quando tiver uma informação segura. Compreendeu?”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu Cochicho, com a respiração acelerada. A voz se calou. O operador pegou todos os cabos e em breve o painel pulsava, cheio de luzes piscantes. E ele entrou pela noite a cochichar com urgência.

Às seis horas Bond acordou com a campainha suave do telefone. Tomou uma chuveirada fria e se vestiu. Pôs uma gravata listrada berrante e deixou uma grande ponta do lenço para fora do bolso de cima do paletó. Enfiou o coldre de camurça por cima da camisa de modo a ficar oito centímetros abaixo da axila esquerda. Armou e desarmou a Beretta até que as oito balas caíssem em cima da cama. Em seguida, recarregou o pente, enfiou-o na arma, apertou a trava de segurança e a colocou no coldre.

Pegou o par de mocassins e os sopesou, depois de apertá-los. Em seguida, enfiou o braço debaixo da cama e puxou um par dos próprios sapatos, que retirara da valise cheia de suas coisas que o FBI lhe confiscara naquela manhã.

Calçou-os e se sentiu mais bem preparado para enfrentar a noite.

Sob o couro, as biqueiras dos sapatos eram revestidas de aço.

Às seis e vinte e cinco desceu até o King Cole Bar e escolheu uma mesa contra a parede, perto da entrada. Alguns minutos depois chegava Felix Leiter. Bond mal o reconheceu. Sua cabeleira cor de palha era agora preta como breu, e ele vestia um terno azul deslumbrante, camisa branca e uma gravata branca de bolinhas pretas.

Leiter se sentou com um largo sorriso.

“De repente resolvi levar esse pessoal a sério”, explicou. “É apenas uma rinsagem. Sairá amanhã de manhã. Espero”, acrescentou.

Leiter pediu martínis meio secos com uma lasca de casca de limão. Estipulou que o gim fosse House of Lords e o vermute, Martini Rossi. O gim americano, muito mais forte que o inglês, parecia áspero ao paladar de Bond. Pensou que precisava ter cuidado com o que bebesse naquela noite.

“Devemos ficar antenados nesse lugar a que nós vamos”, disse Felix Leiter, repetindo os pensamentos de Bond. “O Harlem é uma selva hoje em dia. As pessoas não costumam mais ir até lá como faziam. Antes da guerra, era onde a gente costumava esticar a noite, como se faz em Montmartre, em Paris. O pessoal gostava muito de nossa grana. Costumávamos ir ao Savoy Ballroom e ficar olhando os dançarinos. Talvez pegássemos uma piranha, arriscando a conta do médico depois. Agora isso tudo mudou. O Harlem não gosta mais de ser observado. A maioria dos lugares fechou, e as pessoas vão a outros, rigorosamente por condescendência. Muitas vezes você leva um pé na bunda só por ser branco. E não pense que terá a simpatia da polícia.”

Leiter tirou a casca de limão do martíni e mastigou-a, pensativamente. O bar estava enchendo. Era quente e acolhedor — que distância, pensou Leiter, do clima carregado e inamistoso dos locais da vida noturna no bairro negro em que iriam beber mais tarde.

“Felizmente”, prosseguiu Leiter, “gosto dos negros e eles, de certo modo, sabem disso. Eu costumava ser bastante fã do Harlem. Escrevi alguns artigos sobre o jazz Dixieland para o Amsterdam News, um dos jornais locais. Fiz uma série deles para a cadeia North American Newspaper Alliance sobre o teatro negro na época em que Orson Welles montou seu Macbeth, com um elenco só negro, no Lafayette. Por isso, lá, sei onde piso. E admiro a maneira como eles estão se virando no mundo, embora, Deus saiba, mal possa esperar que isso tudo acabe.”

Terminaram seus drinques e Leiter pediu a conta.

“É claro que existem alguns que são maus”, disse. “Os piores dos piores. O Harlem é a capital do mundo negro. Em qualquer meio milhão de pessoas, de qualquer raça, sempre existe uma porção de escrotos. O problema com nosso amigo Mr. Big é que ele é um técnico de mão cheia, graças a seu treinamento na OSS e em Moscou. E deve estar muito bem organizado por lá.

Leiter pagou. Sacudiu os ombros.

“Vamos”, disse. “Vamos nos divertir um pouco e tentar voltar inteiros. Afinal de contas, é para isso que somos pagos. Tomaremos um ônibus na Quinta Avenida. Não é fácil encontrar táxis dispostos a ir ao Harlem depois do anoitecer.”

Saíram do hotel aquecido e deram poucos passos até o ponto de ônibus na avenida.

Chovia. Bond levantou a gola do casaco e olhou à direita para a avenida, na direção do Central Park e da cidadela escura que abrigava o Big Man.

As narinas de Bond se dilataram levemente. Almejava ir pegá-lo. Sentia-se forte, compacto e confiante. A noite o esperava, para ser aberta e lida, página por página, palavra por palavra.

Diante dele a chuva caía em rápidas rajadas diagonais — caligrafia itálica na capa preta fechada, escondendo as horas incertas à sua frente.


5.
NIGGER HEAVEN

No ponto de ônibus da Quinta Avenida com a Cathedral Parkway, três negros permaneciam calados sob um poste de luz. Pareciam molhados e entediados. Estavam. Observavam o trânsito na Quinta desde a ordem dada às quatro e meia.

“Agora é sua vez, Baleia”, falou um deles quando o ônibus chegou no meio da chuva, parando com um suspiro de seus freios a ar.

“Tô morto”, respondeu o sujeito atarracado na capa de chuva. Mas abaixou a aba do chapéu e embarcou, inseriu suas moedas e subiu o corredor do ônibus observando os usuários. Piscou, ao ver os dois brancos, deu mais um passo e se instalou no assento logo atrás deles.

Estudou as suas nucas, seus casacos e chapéus, seus perfis. Bond estava sentado na janela. O negro viu o reflexo de sua cicatriz no vidro escuro.

Levantou-se e foi para a frente do ônibus, sem olhar para trás. Desceu no ponto seguinte e foi direto para a farmácia mais próxima. Trancou-se na cabine telefônica.

Cochicho interrogou-o com ansiedade e, em seguida, encerrou a ligação.

Enfiou o cabo no lado direito da mesa.

“Sim?”, disse a voz grave.

“Patrão, um dos caras acabou de chegar à Quinta Avenida. O inglês com a cicatriz. Tá com um amigo, com uma pinta que não parece com a de nenhum dos dois outros caras.” Cochicho transmitiu a descrição exata de Leiter. “Estão vindo para o norte, os dois.” Ele deu o número e a provável hora de chegada do ônibus.

Fez-se uma pausa.

“Certo”, disse a voz baixa. “Ligue para todos os olheiros nas outras avenidas. Avise as boates que um deles está na área e faça esta informação chegar a Tee-Hee Johnson, McThing, Falastrão Foley, Sam Miami e o Flanela...”

A voz falou por cinco minutos.

“Compreendeu? Repita.”

“Sim senhor, patrão”, respondeu Cochicho. Consultou seu talão de anotações estenográficas e cochichou de modo fluente e ininterrupto no bocal.

“Certo.” A linha ficou morta.

Com os olhos brilhantes, Cochicho pegou um punhado de cabos e começou a se comunicar com a cidade.

Do momento em que Bond e Leiter entraram sob o toldo do Sugar Ray’s na Sétima Avenida com a 123rd Street, havia uma equipe de homens e mulheres observando-os ou à espera de observá-los, falando baixo com Cochicho na grande mesa telefônica em Riverside Exchange, seguindo-os até o lugar de encontro. Em um mundo em que naturalmente seriam o centro das atenções, Bond e Leiter sequer perceberam a engrenagem oculta, nem sentiram a tensão à sua volta.

Na famosa boate os bancos do bar estavam cheios, mas havia um pequeno reservado contra a parede, vago, e Bond e Leiter ocuparam os dois assentos apertados, tendo uma pequena mesa ao meio.

Pediram uísque e soda — Haig and Haig, garrafa côncava. Bond examinou a turma. Quase toda de homens. Havia dois ou três brancos, fãs de boxe ou colunistas esportivos de Nova York, concluiu Bond. A atmosfera era mais calorosa, mais espalhafatosa, do que no centro da cidade. As paredes estavam cobertas por fotos de boxe, principalmente de Sugar Ray Robinson, das cenas de suas grandes lutas. Lugar animado, de grande frequência.

“É um sujeito ajuizado o Sugar Ray”, disse Leiter. “Espero que a gente saiba parar quando chegar a hora. Guardou bastante dinheiro e agora está ficando mais rico ainda com as casas de espetáculo. Sua porcentagem aqui deve render muito dinheiro, e é dono de muitos imóveis na região. Ainda dá duro, mas não o tipo de trabalho que faz você ficar cego ou ter um derrame. Largou o negócio enquanto tinha saúde.”

“Provavelmente vai investir em um show da Broadway e perder tudo”, disse Bond. “Se eu parasse agora e fosse cultivar frutas em Kent, provavelmente ficaria na pior das piores, acabaria duro. É impossível calcular tudo.”

“Pode-se tentar”, disse Leiter. “Mas sei o que quer dizer — melhor um pássaro na mão do que cem voando. Esta vida não é má quando se resume a ficar sentado em um bar confortável, bebendo bom uísque. Como é, está gostando deste cantinho da selva?” Ele se inclinou para a frente. “Escute só o casal atrás de você. Pelo que ouvi, parece saído daquele romance Nigger Heaven.”

Bond olhou com cautela por cima do ombro.

No reservado atrás havia um jovem negro bonito, trajando um terno caro, castanho-amarelado, com ombreiras exageradas. Estava encostado na parede com um dos pés no banco ao seu lado. Cortava as unhas da mão esquerda com um pequeno canivete de prata, olhando de vez em quando, com ar entediado, para o burburinho no bar. Sua cabeça descansava na divisória do reservado, logo atrás de Bond, exalando um cheiro de alisante caro. Bond notou bem o repartido artificial, feito com uma navalha, do lado esquerdo da cabeça, no cabelo quase liso, graças à aplicação constante do pente quente que sua mãe fazia nele desde criança. A gravata preta simples e a camisa branca eram de bom gosto.

Do lado oposto, inclinada com um ar preocupado no seu belo rosto, estava uma negra pequena e sexy, com um leve toque de sangue branco. Seus cabelos, pretos como breu, tão lustrosos quanto qualquer tipo de cabelo com permanente, serviam de moldura a um bonito rosto em forma de amêndoa, com olhos ligeiramente rasgados sob sobrancelhas belamente delineadas. Era sensacional a cor púrpura de seus lábios, sensuais e entreabertos, em contraste com o bronzeado da pele. Bond conseguiu apenas distinguir em sua roupa o corpete justo e preto de um vestido de noite de cetim, revelando seus seios pequenos e firmes. Usava um colar e uma braçadeira simples em cada pulso esguio, todos de ouro.

Discutia, ansiosa, e não deu atenção ao rápido olhar abrangente de Bond.

“Escute e veja se compreende”, disse Leiter. “É puro Harlem — o Sul caipira misturado a Nova York.”

Bond pegou o cardápio e se recostou no reservado, examinando o frango frito de $ 3,75.

“Vamo, bem”, tentava persuadir a garota. “Por que cê parece tão cansado hoje à noite?”

“Acho que fico cansado só de ouvir você”, disse o sujeito, lânguido. “Por que não cala essa boca e me deixa quieto, em paz.”

“Quer que eu me mande, bem?”

“Você é que sabe, doçura.”

“Ah, bem”, suplicou a garota. “Não fica zangado comigo. Eu tava pensando em te dar um trato essa noite. Te levar pro Small Paradise, quem sabe. Pra ver aquelas piranhas todas rebolando. Birdie Johnson, o maître, me arranja uma mesa de frente na hora que eu quiser.”

A voz do homem se tornou de repente mais aguda. “O que esse Birdie significa pra você, hein?”, perguntou, desconfiado. “Quero saber exatamente”, fez uma pausa para que ela absorvesse a palavra comprida, “exatamente o que anda rolando entre você e esse crioulo safado? Tá transando com ele, não é? Acho que eu preciso examinar essa parada entre você e Birdie Johnson. Quem sabe descolar uma garota mais legal pra mim. Quer saber? Não me amarro em ninguém que pula a cerca quando tô na pior. É isso aí, neguinha. Preciso estudar esse lance aí.” Fez uma pausa ameaçadora. “Estudar mesmo”, acrescentou.

“Ah, amor”, a garota estava ansiosa. “Não adianta ficar puto comigo. Eu não fiz nada pra tu me esculhambar. Só pensei que cê curtisse uma mesa de frente na Paradise, em vez de ficar aqui sentado só contando miséria. Presta atenção, amor, cê sabe que eu nunca seria enrolada por Birdie Johnson. Essa não. Ele não significa nada pra mim. É o pior cara do Harlem, Deus me livre. Só que ele me arranja os melhores lugares naquele seu muquifo, e eu acho que a gente deve ir na onda, beber umas cervejas e se divertir. Vamos, amor. Vamos vazar daqui. Você tá tão bonito que quero que minhas amigas vejam a gente junto.”

“Você mesma tá nos trinques, doçura”, disse o sujeito, amolecido pelo elogio à sua elegância, “juro. Mas, olha só, tu tem que ficar juntinha de mim e tirar os olhos daquele bunda-mole naquelas calças de palhaço. E vou dizer o seguinte”, acrescentou ameaçadoramente, “se eu te pegar dando mole pra aquele escroto, tiro o couro do teu lombo.”

“Tá bem, amor”, sussurrou a garota, toda excitada.

Bond ouviu o barulho arrastado do pé do sujeito, quando ele o tirou do banco e o pôs no chão.

“Vamos, amor. Garçom!”

“Já peguei o sentido”, disse Bond, largando o cardápio. “Parece que estão interessados nas mesmas coisas que todo mundo — sexo, diversão e se comparar aos vizinhos. Ainda bem que não são afetados.”

“Alguns são”, disse Leiter. “Xícaras de chá, jardineiras nas janelas e biquinhos para lá e para cá. A igreja metodista domina. O Harlem está cheio de distinções sociais, do mesmo modo que qualquer grande cidade, mas com o acréscimo de todos os matizes de cor. Vamos lá”, sugeriu, “vamos comer alguma coisa.”

Terminaram seus drinques e Bond pediu a conta.

“Hoje à noite a despesa é toda minha”, falou. “Preciso me livrar de um dinheirão e trouxe trezentos dólares por causa disso.”

“Por mim, está ótimo”, comentou Leiter, que sabia sobre os mil dólares de Bond.

Quando o garçom pegava a gorjeta, Leiter de repente disse: “Sabe onde Big Man está trabalhando hoje à noite?”

O garçom revirou os olhos.

Inclinou-se e bateu com o guardanapo na mesa.

“Tenho mulher e filhos, patrão”, murmurou do canto da boca. Empilhou os copos na bandeja e voltou para o bar.

“Mr. Big tem a melhor proteção possível”, disse Leiter. “O medo.”

Foram para a Sétima Avenida. A chuva parara, mas o Hawkins, o vento gélido do norte, que os negros saúdam com um respeitoso “Hawkins chegou”, viera esvaziar as ruas da multidão de sempre. Leiter e Bond andavam atrás de um punhado de casais na calçada. Receberam olhares de desprezo, ou francamente hostis. Um ou dois sujeitos cuspiram na sarjeta depois que eles haviam passado.

Bond de repente sentiu a força do que Leiter lhe contara. Eram invasores em território estrangeiro. Simplesmente não eram bem-vindos. Bond sentiu a mesma inquietação que sentira tantas vezes durante a guerra, quando estivera trabalhando por algum tempo atrás das linhas inimigas. Afastou de si essa sensação.

“Vamos ao Ma Frazier’s, mais acima na avenida”, propôs Leiter. “A melhor comida do Harlem, ou pelo menos costumava ser.”

No caminho Bond olhou para as vitrines.

Ficou espantado com a quantidade de barbeiros e salões de beleza. Todos anunciavam uma variedade de fórmulas para esticar o cabelo — “Apex Glossatina, para usar com o pente quente”, “Silky Strate. Não deixa vermelhidão, nenhuma queimadura” – ou fórmulas secretas para embranquecer a pele. O segundo lugar em quantidade pertencia aos armarinhos, lojas de roupas com sapatos masculinos fantásticos de couro de cobra, camisas com estamparia de pequenos aviões, calças de boca estreita, ternos de malandro. Todas as livrarias estavam cheias de livros de autoajuda — aprenda como fazer isso ou aquilo — e revistas em quadrinhos. Havia várias lojas dedicadas a amuletos da sorte e vários ocultismos — As sete chaves para o poder, “O livro mais estranho jamais escrito”, com subtítulos como “Se você for amaldiçoado, mostre como desfazer e devolver a maldição”, “Cante seus desejos na Língua Silenciosa”, “Enfeitice qualquer um, em qualquer lugar”, “Faça qualquer pessoa te amar”. Entre os amuletos havia “High John, a raiz das conquistas amorosas”, “Óleo de primeira, para arranjar dinheiro”, “Pós em sachês, para descarrego”, “Incenso para remover feitiços” e “Feitiço de mão Whamie, protege do mal. Confunde e engana os inimigos”.

Bond refletiu que não era de espantar que Big Man encontrasse no vodu uma arma tão poderosa para dominar as cabeças de gente que ainda fugia de uma pena branca de galinha, ou de dois gravetos cruzados em uma encruzilhada — bem no meio da capital reluzente do mundo ocidental.

“Foi bom a gente ter vindo”, disse Bond. “Estou começando a perceber o elemento em que Big Man funciona. Não conseguimos ter ideia disto em um país feito a Inglaterra. Somos uma gente supersticiosa — especialmente os celtas —, mas aqui se ouve o batuque dos tambores.”

Leiter resmungou. “Ficarei contente de voltar para minha cama”, observou. “Mas precisamos avaliar esse cara antes de resolver como enfrentá-lo.”

Ma Frazier era um alegre contraste com a tristeza das ruas. Comeram um excelente prato de mexilhões de Little Neck e frango frito de Maryland, com bacon e milho-doce. “Precisamos pedir isso”, dissera Leiter. “É o prato nacional.”

O ambiente era muito civilizado no restaurante aquecido. O garçom parecia contente em vê-los e indicou várias celebridades presentes, mas, quando Leiter fez uma súbita pergunta sobre Mr. Big, fingiu não ouvir. Manteve-se afastado até que eles pedissem a conta.

Leiter repetiu a pergunta.

“Desculpe, senhor”, respondeu rápido o garçom. “Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome.”

Quando deixaram o restaurante eram dez e meia e a avenida estava quase deserta. Pegaram um táxi até o Savoy Ballroom, tomaram um uísque com soda e ficaram observando os dançarinos.

“A maioria das danças modernas foi inventada aqui”, disse Leiter. “Isso mostra como é bom. A Lindy Hop, Truckin, a Susie Q, a Shag. Tudo começou nesta pista de dança. Toda grande banda americana tem orgulho de já ter tocado aqui — Duke Ellington, Louis Armstrong, Cab Calloway, Noble Sissle, Fletcher Henderson. É a meca do jazz e da dança.”

Pegaram uma mesa perto da balaustrada que circundava o enorme piso. Bond ficou fascinado. Achou muitas garotas bonitas. A batida da música acabou se confundindo com o ritmo de suas pulsações, até fazê-lo quase se esquecer do motivo de estar ali.

“É contagiante, não é?”, falou Leiter, por fim. “Eu poderia ficar aqui a noite inteira. Mas é melhor ir andando. Senão perderemos o Small Paradise. Bem parecido com isto aqui, mas não chega a ter a mesma categoria. Acho que o levarei ao Yeah Man, lá na Sétima Avenida. Depois disso precisamos ir a uma das espeluncas do próprio Mr. Big. O problema é que só abrem depois de meia-noite. Farei uma visita ao banheiro enquanto você paga a conta. Tentarei conseguir uma pista de onde ele estará esta noite. Não quero ir a todos os seus estabelecimentos.”

Bond pagou a conta e encontrou Leiter embaixo, no vestíbulo estreito.

Saíram juntos e andaram pela rua à procura de um táxi.

“Custou vinte paus”, falou Leiter, “mas disseram que ele estará no Boneyard. Um lugar pequeno na Lenox Avenue. Bem perto de seu quartel-general. O striptease mais quente da cidade. Tem uma garota chamada G-G Sumatra. Vamos tomar outro drinque no Yeah Man e ouvir o piano. Sairemos por volta de meia-noite e vinte.”

A grande mesa telefônica estava agora a apenas poucos quarteirões, e quase silenciosa. Os dois tinham sido observados entrando e saindo do Sugar Ray’s, do Ma Frazier’s e do Savoy Ballroom. Viram-nos entrar no Yeah Man. À meia-noite e meia houve a última ligação e a mesa silenciou.

Mr. Big falou no telefone interno. Primeiro para o garçom-chefe.

“Tem dois brancos chegando dentro de cinco minutos. Dê-lhes a mesa Z.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu o garçom-chefe. Atravessou correndo a pista de dança até uma mesa bem à direita, oculta do salão por uma larga pilastra. Era ao lado da entrada de serviço, mas tinha uma boa visão da pista e da banda, do lado oposto.

Estava ocupada por um grupo de quatro, dois homens e duas garotas.

“Desculpe, pessoal”, disse o garçom-chefe. “Houve um engano. Esta mesa estava reservada. Jornalistas do centro.”

Um dos sujeitos começou a discutir.

“Sai, cara”, disse o garçom com rispidez. “Lofty, leve estes senhores à mesa F. Os drinques serão por conta da casa, Sam”, falou chamando outro garçom, “limpe a mesa. Dois couverts.” O grupo de quatro se mudou docilmente, apaziguado pela perspectiva das bebidas gratuitas. O garçom-chefe colocou uma placa de “reservada” na mesa Z, examinou-a e voltou para seu posto junto ao gráfico de reserva das mesas, na escrivaninha alta ao lado da entrada coberta por cortinas.

Enquanto isso, Mr. Big fez mais duas ligações no telefone interno. Uma para o mestre de cerimônias.

“Apague as luzes no final do ato de G-G.”

“Sim, senhor, patrão”, respondeu imediatamente o MC.

O outro telefonema foi para quatro sujeitos que jogavam dados no porão. Uma longa ligação, cheia de detalhes.


6.
A MESA Z

À meia-noite e quarenta e cinco, Bond e Leiter pagaram o táxi e entraram sob a placa de néon verde e violeta que anunciava “The Boneyard”.

A batida surda do ritmo e o cheiro agridoce os fizeram balançar quando empurraram a cortina pesada depois da porta de vaivém. Os olhos pidões das garotas da chapelaria brilharam.

“O senhor tem reserva?”, perguntou o garçom-chefe.

“Não”, respondeu Leiter. “Não nos importamos de ficar sentados no bar.”

O garçom-chefe consultou o seu esquema de mesas. Pareceu decidir. Pousou seu lápis com firmeza em um ponto embaixo da cartela.

“Tem um grupo que não apareceu. Acho que não posso guardar sua reserva a noite inteira. Por aqui, por favor.” Segurava a cartela acima da cabeça e conduziu-os em volta da pequena pista de dança. Puxou uma das cadeiras e retirou o cartão da reserva.

“Sam”, disse, chamando um garçom. “Cuide destes senhores.” E foi embora.

Pediram uísque com soda e sanduíches de frango.

Bond deu uma fungada. “Maconha”, comentou.

“A maioria do pessoal realmente descolado gosta de baseados”, explicou Leiter. “Não seria permitido na maioria dos estabelecimentos.”

Bond olhou em volta. A música cessara. O pequeno quarteto de clarinete, baixo, guitarra e bateria saía pelo canto do outro lado. Meia dúzia aproximada de casais voltava, alguns com passos de dança, para as suas mesas, e a luz púrpura, sob a pista de dança de vidro, foi desligada. No lugar dela acenderam-se feixes de luz, finos como lápis, que vinham do teto, batendo em globos multifacetados de vidro, maiores que bolas de futebol, suspensos a intervalos em volta da parede. Eram de várias tonalidades: azul, dourado, verde, violeta, vermelho, e luziam como sóis coloridos ao serem atingidos pelos raios. As paredes pretas envernizadas refletiam seu brilho, como o suor nos rostos de ébano dos homens. Às vezes alguém sentado no meio de dois reflexos mostrava faces de cores diferentes: uma verde, outra vermelha. A iluminação tornava impossível distinguir as feições de alguém, a não ser que estivesse a menos de um metro. Algumas luzes tornavam o batom nos lábios das garotas preto, outras iluminavam o rosto inteiro, com um brilho quente de um lado e, do outro, com uma luminosidade de afogado.

A cena inteira era lívida e macabra, como se El Greco houvesse pintado, ao luar, a exumação de uma sepultura em uma cidade em chamas.

A sala não era grande, talvez setenta metros quadrados. Havia cerca de cinquenta mesas e os clientes se apertavam como sardinha em lata. Fazia calor e o ar estava abafado, com o cheiro doce e animal de duzentos corpos negros. O barulho era terrível — no fundo o falatório dos negros se divertindo sem reservas, pontuado por ruídos altos e repentinos, gritos, risadinhas agudas e vozes altas se chamando através da sala.

“Nossa, olha quem tá aqui...”

“Onde você se meteu, garota...”

“Deus do céu, se não for Pinkus... Oi, Pinkus...”

“Venham pra cá...”

“Me deixa... me deixa, estou te dizendo...” (o barulho de um tapa).

“Onde tá a G-G? Dá-lhe G-G. Vem mostrar o que sabe...”

De vez em quando um homem ou uma mulher surgia na pista e começava uma dança solo louca. Os amigos batiam palmas em ritmo. Uma porção de assobios estridentes e gritos o incentivava. Se fosse uma garota, com gritos de “tira, tira, tira”, “rebola, rebola”, “bota pra quebrar”, até que o MC chegasse e esvaziasse a pista, entre gemidos e resmungos contrariados.

O suor começou a se acumular em gotas na testa de Bond. Leiter se inclinou e falou com as mãos em concha: “Três saídas. Da frente. De serviço, atrás de nós. E atrás do lugar da banda.” Bond balançou a cabeça. Naquele instante achava que não tinha importância. Aquilo ali não era novidade para Leiter, mas para Bond era um close da matéria-prima de Big Man, o barro que ele trabalhava com as mãos. A noite revestia de carne a ossatura dos dossiês que ele lera em Londres e Nova York. Se ela acabasse agora, sem que tivessem visto Big Man de perto, ainda assim Bond achava que sua informação referente ao caso estava completa. Tomou um longo gole de uísque. Houve uma salva de palmas. O MC surgira na pista de dança, um negro alto em um fraque impecável, com um cravo vermelho na lapela. Estava de pé, com os braços erguidos. A luz branca de um único holofote o recobria. O resto da sala ficou escuro.

Fez-se silêncio.

“Gente”, anunciou o MC, com um largo sorriso de dentes brancos e dourados. “Chegou a hora.”

Uma salva de palmas excitadas.

Virou-se para a esquerda da pista, bem defronte a Leiter e Bond.

Estendeu a mão esquerda. Outro foco de luz surgiu.

“Senhor Jungles Japhet e seus atabaques.”

Aplausos estrondosos, gritos, assobios.

Apareceram quatro negros sorridentes com camisas cor de fogo e calças brancas de boca estreita, agachados em cima de quatro cilindros de madeira afunilados, tapados com couro cru. Eram de tamanhos diferentes os atabaques. Os negros eram magros e musculosos. O que estava sentado em cima do surdo ergueu-se por um instante e apertou as próprias mãos, dirigindo-se à plateia.

“Batuqueiros de vodu, do Haiti”, sussurrou Leiter.

Houve silêncio. Com as pontas dos dedos, os tocadores começaram uma batida lenta, quebrada, de uma rumba arrastada e suave.

“E agora, amigos”, anunciou o MC, ainda virado para os tambores, “G-G...”, pausa, “SUMATRA”.

A última palavra foi gritada. O MC começou a aplaudir. Houve pandemônio na sala, um frenesi de palmas. A porta atrás dos atabaques se abriu de repente e dois negros enormes, nus, a não ser por tangas douradas, correram até a pista carregando entre eles uma pequena figura, com os braços passados atrás dos seus ombros, totalmente coberta por penas pretas de avestruz, e os olhos tapados por um véu preto.

Largaram-na no meio da pista. Inclinaram-se ao lado dela até que suas testas tocassem o chão. Ela deu dois passos à frente. Com os spots que antes os iluminaram, desligados, os dois negros sumiram na penumbra, depois pela porta.

O MC desaparecera. Fez-se silêncio absoluto, salvo pela batida cava dos atabaques.

A garota levou a mão à garganta e a túnica de penas pretas caiu da frente de seu corpo e se abriu em um leque de um metro e meio. Girou-o lentamente até que aparecesse, atrás dela, como uma cauda de pavão. Estava nua, exceto por um pequeno tapa-sexo de renda preta e uma estrela preta de lantejoulas em cada seio, além do fino véu tapando os olhos. Os atabaques tocavam mais alto. Seu corpo era pequeno, bronzeado, firme, belo. Levemente untado, brilhava na luz branca.

A plateia fazia silêncio. Os tambores começaram a acelerar a batida. O surdo no ritmo exato do pulso humano.

A barriga nua da garota começou lentamente a se contorcer, acompanhando o ritmo. Ela passou o leque pela frente, empinando-o de novo atrás, e seus quadris começaram a remexer no ritmo do surdo. A parte de cima de seu corpo permaneceu imóvel. As penas pretas passaram de novo, e agora seus pés e seus ombros também se remexiam. Os tambores tocaram mais alto. Cada parte de seu corpo parecia acompanhar um ritmo diferente. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. As narinas começaram a se dilatar. Via-se o olhar esbraseado por trás das fendas amendoadas. O rosto era sexy, parecido com o de uma cadela pug — chienne foi a única palavra que Bond conseguiu evocar.

Os atabaques batiam mais rápido, vários ritmos entrelaçados. A garota jogou o grande leque no chão, ergueu os braços acima da cabeça. Todo o seu corpo começou a tremer. Sua barriga se contorcia mais depressa. Girando sem parar, para dentro e para fora. As pernas se abriram. Os quadris começaram a rebolar em um largo círculo. De repente ela arrancou a estrela de lantejoulas do seio direito, atirando-a na plateia. Esta se manifestou pela primeira vez, com um leve rugido. Em seguida, silêncio de novo. Os tambores começaram a rufar e roncar. Escorria suor dos tocadores. Suas mãos se sacudiam como se fossem panos cinza sobre os couros claros. Olhos arregalados, distantes. As cabeças levemente inclinadas de um lado, para ouvir. Mal olhavam para a garota. A plateia prendia o fôlego ligeiramente, com os olhos líquidos a girar.

Ela agora brilhava toda de suor. Os seios e a barriga estavam luzidios. Irrompeu em grandes tremores. Abriu a boca e gritou baixinho. Baixou as mãos serpenteantes para os lados e de repente havia arrancado a tanguinha de renda. Jogou-a na plateia. Agora só restava um fio preto. Os atabaques criaram um furacão de ritmos eróticos. Ela gritou baixinho várias vezes e então, com os braços estendidos como uma balança, começou a baixar o corpo até o chão e a erguê-lo de novo. Cada vez mais depressa. Bond podia ouvir a plateia grunhindo ofegante, como porcos na pocilga. Sentiu as próprias mãos agarrarem a toalha. A boca seca.

A plateia começou a gritar. “Dá-lhe, G-G! Tira, garota! Bota pra quebrar!”

Ela caiu de joelhos e o ritmo foi diminuindo lentamente, enquanto os últimos tremores também a percorriam, acompanhados de miados discretos.

A batida dos tambores se reduziu a um batuque lento e arrastado. A plateia uivava, pedindo seu corpo. Choviam obscenidades pesadas de vários cantos da sala.

O MC apareceu na pista, com um spot em cima.

“Está bem, gente, está bem.” O suor pingava de seu queixo. Estendeu os braços, vencido.

“G-G DISSE SIM!”

Houve um uivo de deleite na plateia. Agora ela ficaria totalmente nua. “Tira, G-G! Mostra o que cê tem, garota! Vamo lá, vamo!”

Os atabaques troavam e repicavam baixinho.

“Porém, meus amigos”, gritou o MC, “ela exige que seja no ESCURO!”

Um grande gemido de frustração percorreu a plateia. A sala inteira mergulhou na escuridão.

“Deve ser uma velha piada”, pensou Bond.

De repente todos os seus sentidos se puseram em alerta.

O gemido da multidão diminuía rapidamente. Ao mesmo tempo, ele sentiu um ar frio no rosto. Teve a sensação de estar afundando.

“Ei”, gritou Leiter. Sua voz estava próxima, mas parecia cavernosa.

“Céus”, pensou Bond.

Algo se fechou com um baque acima de sua cabeça. Estendeu a mão para trás. Ela tocou em uma parede em movimento, a trinta centímetros de suas costas.

“Luzes”, disse uma voz, baixinho.

Ao mesmo tempo, agarraram seus dois braços. Empurraram-no com força para baixo, na cadeira.

Em frente, ainda na mesa, estava sentado Leiter, com um negro enorme agarrando o seu cotovelo. Encontravam-se em uma pequena cela quadrada. À direita e à esquerda havia mais dois negros, com armas apontadas para eles.

Houve um sibilo agudo de elevador de garagem e a mesa pousou tranquilamente no chão. Bond olhou para cima. Havia o discreto recorte de um largo alçapão poucos metros acima de suas cabeças. Nenhum ruído vinha dele.

Um dos negros deu um sorriso.

“Calma, pessoal. Gostaram da viagem?”

Leiter soltou um único palavrão. Bond relaxou os músculos, à espera.

“Qual é o inglês?”, perguntou o negro que falara. Parecia o encarregado. A pistola que apontava indolentemente para o coração de Bond era toda trabalhada. Via-se um brilho de madrepérola entre seus dedos na coronha, e o longo cano octogonal era belamente cinzelado.

“Esse aqui, acho”, respondeu o negro que segurava o braço de Bond. “Tem a cicatriz.”

O negro agarrava o braço de Bond com uma força terrível. Era como se lhe tivessem aplicado dois torniquetes apertados acima dos cotovelos. Suas mãos estavam começando a ficar dormentes.

O sujeito da pistola trabalhada deu a volta na mesa. Enfiou o cano da arma na barriga de Bond. O cão estava puxado.

“É difícil errar desta distância”, disse Bond.

“Cala a boca”, gritou o negro. Revistou Bond com competência, usando a mão esquerda — nas pernas, coxas, costas, lados. Tirou a arma de Bond e entregou-a para o outro sujeito armado.

“Dá isso aqui pro patrão, Tee-Hee”, falou. “Leva o inglês lá pra cima. Vai junto. O outro cara fica comigo.”

“Sim senhor”, disse o homem chamado Tee-Hee, um negro pançudo vestindo uma camisa cor de chocolate e calças de boca estreita, lavanda.

Bond foi puxado para se levantar. Estava com um pé preso na perna da mesa. Deu uma arrancada para cima. Ouviu-se o barulho de copos quebrados e de talheres. Ao mesmo tempo, Leiter chutou para trás, contornando a perna da cadeira. Houve um belo “clonque” quando seu pé acertou o tornozelo do guarda. Bond fez o mesmo, mas errou. Houve um momento caótico, mas nenhum dos guardas relaxou o aperto. O guarda de Leiter levantou-o da cadeira, como se ele fosse uma criança, colocou-o de face com a parede e empurrou-o com força contra ela. Quase arrebentou seu nariz. O guarda virou-o. O sangue escorria pela sua boca.

As duas armas ainda estavam firmemente apontadas para eles. Fora um esforço inútil, mas por um átimo haviam reconquistado a iniciativa e reagido ao choque da captura.

“Não desperdiça fôlego”, aconselhou o negro que dava as ordens. “Leva o inglês”, disse, dirigindo-se ao guarda de Bond. “Mr. Big tá esperando.” Virou-se para Leiter: “Melhor se despedir do teu amigo”, avisou. “Não é provável que se vejam de novo.”

Bond sorriu para Leiter: “Sorte termos combinado com a polícia para nos encontrar aqui às duas. A gente se vê na acareação.”

Leiter devolveu o sorriso. Seus dentes estavam tingidos de sangue. “O chefe Monahan vai ficar contente com essa turma. Até breve.”

“Merda nenhuma”, disse o negro, convicto. “Vamo andando.”

O guarda de Bond virou-o com força e o empurrou contra uma parte da parede. Esta girou sobre um pino, dando para um longo corredor vazio. O sujeito chamado Tee-Hee abriu passagem, empurrando, e foi de guia na frente.

A porta voltou a se fechar depois que passaram.

 

 

 

                                                                  CONTINUA