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ZORRO - O começo da lenda / Isabel Alende
ZORRO - O começo da lenda / Isabel Alende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ZORRO - O começo da lenda

Primeira Parte

 

Nascido no sul da Califórnia no século XVIII, Diego de La Vega é um rapaz preso entre dois mundos. O pai, um militar aristocrata espanhol, é um importante latifundiário. A mãe, por outro lado, é uma guerreira da tribo indígena Shoshone. Da avó materna, Coruja Branca, aprende os costumes da sua gente, enquanto do pai aprende a arte da esgrima e como marcar o gado. Durante a infância, cheia de traquinices e aventuras, Diego é testemunha das brutais injustiças que os indígenas norte-americanos enfrentam pela parte dos colonos europeus, e sente pela primeira vez um conflito interior em relação à sua herança. Aos 16 anos, Diego é enviado a Barcelona para receber uma educação europeia. Num país oprimido pela corrupção do domínio Napoleónico, o jovem decide seguir o exemplo do seu célebre professor de esgrima, e adere "A Justiça", um movimento clandestino de resistência, que se dedica a ajudar os pobres e indefesos. Imerso num mundo de um ambiente de revolta e desordem, enfrenta pela primeira vez um grande rival que vem de um mundo de privilégio. Entre a Califórnia e Barcelona, o novo mundo e o velho continente, forma-se a personagem do Zorro, nasce um grande herói e começa a lenda. Depois de muitas aventuras - duelos ao amanhecer, violentas batalhas marítimas com piratas e resgates impossíveis - Diego de La Vega, conhecido também como Zorro, regressa à América para reclamar a propriedade onde cresceu, em busca de justiça para todos aqueles que não podem lutar por si próprios.

 

 

                                   Califórnia, 1790-1810

 

Comecemos pelo princípio, por um acontecimento sem o qual Diego de La Vega não teria nascido. Sucedeu na Alta Califórnia, na Missão San Gabriel, no ano de Nosso Senhor de 1790. Naquele tempo quem dirigia a missão era o padre Mendoza, um franciscano com umas costas de lenhador, mais novo de aspecto que os seus quarenta anos bem vividos, enérgico e mandão, para quem a maior dificuldade do seu ministério era imitar a humildade e doçura de São Francisco de Assis. Na Califórnia havia vários outros religiosos em vinte e três missões, encarregados de propagar a doutrina de Cristo entre vários milhares de gentios das tribos Chumash, Shoshone e outras, que nem sempre se prestavam de bom grado a recebê-la. Os nativos da costa da Califórnia tinham uma rede de trocas e comércio que funcionava havia milhares de anos. O seu ambiente era muito rico em recursos naturais e as tribos desenvolviam diferentes especialidades. Os Espanhóis estavam impressionados com a economia Chumash, cuja complexidade comparavam com a da China. Os índios usavam conchas como moeda e organizavam regularmente feiras, onde, além do intercâmbio de bens, se ajustavam os casamentos.

Os índios ficavam confundidos com o mistério do homem torturado numa cruz que os brancos adoravam, e não compreendiam a vantagem de sofrer neste mundo para gozar de um hipotético bem-estar noutro. No paraíso cristão podiam instalar-se numa nuvem e tocar harpa com os anjos, mas na realidade a maioria deles preferia, depois da morte, caçar ursos com os antepassados nas terras do Grande Espírito. Tão-pouco compreendiam que os estrangeiros espetassem uma bandeira no solo, marcassem linhas imaginárias, o declarassem propriedade sua e se ofendessem se alguém entrasse perseguindo um veado. A ideia de possuir a terra era para eles tão inverosímil como a de dividir o mar. Quando chegou ao padre Mendoza notícia de que várias tribos se tinham sublevado, comandadas por um guerreiro com cabeça de lobo, este elevou as suas preces pelas vítimas, mas não se preocupou demasiado, porque estava certo de que San Gabriel se encontrava a salvo. Pertencer à sua missão era um privilégio, como demonstravam as famílias indígenas que acorriam a solicitar a sua protecção a troco do baptismo e de bom grado ficavam sob o seu tecto; nunca tivera de empregar militares para recrutar futuros conversos. Atribuiu a recente insurreição, a primeira que ocorria na Alta Califórnia, aos abusos da soldadesca espanhola e à severidade dos seus irmãos missionários. As tribos, divididas em pequenos grupos, tinham costumes diversos e comunicavam entre si por meio de um sistema de sinais; nunca haviam chegado a acordo para coisa nenhuma, excepto para o comércio, e nunca certamente para a guerra. Segundo ele, aquelas pobres gentes eram inocentes cordeiros de Deus, que pecavam por ignorância e não por vício; deviam existir razões ponderosas para que se levantassem contra os colonizadores.

O missionário trabalhava sem descanso, lado a lado com os índios, nos campos, no curtimento de peles, na moagem do milho. De tarde, quando os outros descansavam, ele tratava feridas de acidentes menores ou arrancava algum dente podre. Além disso, dava lições de catecismo e de aritmética, para que os neófitos - como chamavam aos índios convertidos - pudessem contar as peles, as velas e as vacas, mas não de leitura ou escrita, conhecimentos sem aplicação prática naquele lugar. À noite fazia vinho, tratava das contas, escrevia nos seus cadernos e rezava. Ao amanhecer tocava o sino para chamar a sua congregação à missa e, depois do ofício, supervisionava o pequeno--almoço com olhar atento, para que ninguém ficasse sem comer. Por tudo isso, e não por excesso de confiança em si próprio ou vaidade, estava convencido de que as tribos em pé de guerra não atacariam a sua missão. Não obstante, como as más notícias continuassem a chegar semana após semana, acabou por lhes dar atenção. Mandou um par de homens de toda a confiança averiguar o que se estava a passar no resto da região; estes não tardaram a localizar os índios em guerra e a apurar os pormenores, porque foram recebidos como compadres pelos próprios sujeitos que iam espiar. Regressaram para contar ao missionário que um herói, surgido das profundezas do bosque e possuído pelo espírito de um lobo, tinha conseguido juntar várias tribos para expulsarem os Espanhóis das terras dos seus antepassados, onde sempre tinham caçado sem autorização. Os índios não possuíam uma estratégia clara; limitavam-se a assaltar as missões e as povoações no impulso do momento, incendiavam tudo quanto encontravam à sua passagem e seguidamente retiravam-se tão depressa como haviam chegado. Acrescentaram os homens do padre Mendoza que o chefe Lobo Cinzento tinha San Gabriel na mira, não por rancor particular contra o missionário, ao qual nada se podia censurar, mas sim porque lhes ficava em caminho. Em vista disso, o sacerdote teve de tomar medidas. Não estava disposto a perder o fruto do seu trabalho de anos e ainda menos a permitir que lhe arrebatassem os seus índios, que longe da sua tutela sucumbiriam ao pecado e voltariam a viver como selvagens. Escreveu uma mensagem ao capitão Alejandro de La Vega pedindo-lhe imediato socorro. Receava o pior, dizia, porque os insurrectos se encontravam muito perto, com intenções de atacar a qualquer momento, e ele não se poderia defender sem reforços militares adequados. Mandou duas missivas idênticas ao forte de San Diego por cavaleiros expeditos, que usaram diferentes percursos, de modo que, se um fosse interceptado, o outro alcançaria o seu propósito.

Uns dias mais tarde, o capitão Alejandro de La Vega chegou a galope à missão. Desmontou de um salto no pátio, desfez-se da pesada casaca do uniforme, do lenço e do chapéu, e mergulhou a cabeça na artesa onde as mulheres enxaguavam a roupa. O cavalo estava coberto de suor espumoso, porque tinha carregado por várias léguas o cavaleiro com o seu equipamento de dragão do Exército espanhol: lança, espada, escudo de couro duplo e carabina, além dos arreios. De La Vega era acompanhado por um par de homens e vários cavalos que transportavam as provisões. O padre Mendoza saiu a recebê-lo com os braços abertos, mas, ao ver que só o acompanhavam dois soldados andrajosos e tão extenuados como as cavalgaduras, não pôde dissimular a frustração.

- Lamento, padre, não disponho de mais soldados do que este par de bravos homens. O resto do destacamento ficou na povoação de La Reina de los Angeles, que também está ameaçada pela sublevação - desculpou-se o capitão, limpando a cara com as mangas da camisa.

- Que Deus nos ajude, visto que Espanha o não faz - retrucou entre dentes o sacerdote.

- Sabe quantos índios atacarão?

- Há muito poucos aqui que saibam contar com rigor, capitão, mas, segundo os meus homens averiguaram, podem chegar a quinhentos.

- Isso significa que não serão mais de cento e cinquenta, padre. Podemos defender-nos. Com que contamos? - inquiriu Alejandro de La Vega.

- Comigo, que fui soldado antes de ser padre, e com outros dois missionários, que são jovens e corajosos. Temos três soldados adstritos à missão, que vivem cá. Também vários mosquetes e carabinas, munições, um par de sabres e a pólvora que utilizamos na pedreira.

- Quantos neófitos?

- Sejamos realistas, meu filho: a maioria não combaterá contra gente da sua raça - explicou o missionário. - Quando muito, conto com meia dúzia de jovens criados aqui e algumas mulheres que nos podem ajudar a carregar as armas. Não posso arriscar as vidas dos meus neófitos; são como crianças, capitão. Trato deles como se fossem meus filhos.

- Bem, padre, mãos à obra, em nome de Deus. Pelo que vejo, a igreja é o edifício mais sólido da missão. Defender-nos-emos lá - disse o capitão.

Durante os dias seguintes ninguém descansou em San Gabriel; até as crianças de tenra idade foram postas a trabalhar. O padre Mendoza, bom conhecedor da alma humana, não podia confiar na lealdade dos neófitos uma vez que se vissem rodeados de índios livres. Consternado, notou um certo brilho selvagem nos olhos de alguns deles e a falta de vontade com que cumpriam as suas ordens: deixavam cair as pedras, rasgavam-se-lhes os sacos de areia, enredavam-se nas cordas, entornavam-se-lhes os baldes de pez. Forçado pelas circunstâncias, violou o seu próprio regulamento de compaixão e, sem que lhe tremesse a vontade, condenou um par de índios ao cepo e a um terceiro aplicou dez chicotadas, para servir de exemplo. Depois mandou reforçar com tábuas a porta do dormitório das mulheres solteiras, construído como uma prisão, de modo que as mais audazes não saíssem para passear ao luar com os respectivos apaixonados. Era um edifício rotundo, de grosso adobe, sem janelas e com a vantagem adicional de se poder trancar por fora com uma barra de ferro e cadeados.

Ali encerraram a maior parte dos neófitos do sexo masculino, agrilhoados pelos tornozelos, a fim de evitar que na hora da batalha colaborassem com o inimigo.

- Os índios têm medo de nós, padre Mendoza. Julgam que possuímos uma magia muito poderosa - afirmou o capitão De La Vega, dando uma palmada na coronha da sua carabina.

- Esta gente conhece de sobra as armas de fogo, embora ainda não tenha descoberto o seu funcionamento. O que na verdade os índios temem é a cruz de Cristo - retorquiu o missionário, apontando para o altar.

- Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora - riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano.

Encontravam-se na igreja, onde tinham colocado barricadas de sacos de areia por dentro, diante da porta, e haviam disposto ninhos com as armas de fogo em locais estratégicos. Na opinião do capitão De La Vega, enquanto mantivessem os atacantes a uma certa distância, para que pudessem carregar as carabinas e os mosquetes, a balança penderia a seu favor, mas em combate corpo a corpo a sua desvantagem seria tremenda, visto que os índios os superavam em número e ferocidade.

O padre Mendoza admirou a audácia do homem. De La Vega tinha à volta de trinta anos e era já um soldado veterano, curtido nas guerras de Itália, donde regressara marcado com orgulhosas cicatrizes. Era o terceiro filho de uma família de fidalgos, cuja linhagem remontava a Cid, o Campeador. Os seus antepassados haviam lutado contra os Mouros sob os estandartes católicos de Isabel e Fernando, mas de tanta coragem exaltada e de tanto sangue derramado por Espanha não lhes ficara fortuna, apenas honra. Por morte do pai, o filho mais velho herdara a casa da família, um centenário edifício de pedra incrustado num pedaço de terra seca em Castela. O segundo irmão fora reclamado pela Igreja, e a ele tocara-lhe ser soldado: não havia outro destino para um jovem do seu sangue. Em paga da coragem demonstrada em Itália, recebera uma pequena bolsa de dobrões de ouro e autorização para ir até ao Novo Mundo, a fim de melhorar o seu destino. Assim, fora parar à Alta Califórnia, onde chegara acompanhando Dona Eulália de Callís, a esposa do governador Pedro Fages, apodado o Urso devido ao seu mau génio e ao número desses animais caçados por sua própria mão.

O padre Mendoza tinha ouvido os boatos sobre a épica viagem de Dona Eulália, uma dama de temperamento tão fogoso como o do marido. A sua caravana demorara seis meses a percorrer a distância entre a Cidade do México, onde vivia como uma princesa, e Monterrey, a inóspita fortaleza militar onde o marido a aguardava. Avançava a passo de tartaruga, arrastando um comboio de carroças de bois e uma fila interminável de mulas com a bagagem; além disso, em cada lugar onde acampavam, organizava uma festa cortesã que costumava durar vários dias. Diziam que era excêntrica, que lavava o corpo com leite de burra e pintava o cabelo, que lhe chegava aos calcanhares, com os unguentos avermelhados das cortesãs de Veneza; que, por simples esbanjamento, e não por virtude cristã, se desfazia dos seus vestidos de seda e brocado para cobrir os índios nus que lhe saíam ao caminho; e acrescentavam que, para cúmulo do escândalo, se enamorara do bem-parecido capitão Alejandro de La Vega.

- Enfim, quem sou eu, um pobre franciscano, para julgar essa senhora - concluiu o padre Mendoza, observando De La Vega de soslaio e perguntando a si mesmo com curiosidade, muito a contragosto, quanto haveria de verdadeiro nos rumores.

Nas suas cartas ao director das missões no México, os missionários queixavam-se de que os índios preferiam viver nus, em palhotas, armados de arco e flecha, sem educação, governo, religião ou respeito pela autoridade e completamente entregues à satisfação dos seus desavergonhados apetites, como se a água milagrosa do baptismo nunca lhes tivesse lavado os pecados. A teimosia dos índios em se aferrarem aos seus costumes tinha de ser obra de Satanás, não havia outra explicação, pelo que iam caçar os desertores com laço e, seguidamente, os chicoteavam para lhes ensinarem a sua doutrina de amor e perdão. O padre Mendoza, porém, tivera uma juventude bastante dissipada antes de se tornar sacerdote, e a ideia de satisfazer apetites desavergonhados não lhe era alheia, pelo que simpatizava com os indígenas. Aliás, sentia uma secreta admiração pelas ideias progressistas dos seus rivais, os jesuítas. Ele não era como outros religiosos, inclusivamente a maior parte dos seus irmãos franciscanos, que faziam da ignorância uma virtude. Uns anos antes, quando se preparava para tomar conta da Missão San Gabriel, lera com extremo interesse o relatório de um tal Jean François de La Pérouse, um viajante que descrevera os neófitos da Califórnia como seres tristes, sem personalidade, privados de espírito, que lhe recordavam os traumatizados escravos negros das plantações das Caraíbas. As autoridades espanholas atribuíram as opiniões de La Pérouse ao lamentável facto de o homem ser francês, mas estas causaram uma profunda impressão ao padre Mendoza. No fundo da sua alma confiava quase tanto na ciência como confiava em Deus, pelo que decidiu que converteria a missão num exemplo de prosperidade e justiça. Propôs-se ganhar adeptos por meio da persuasão e retê-los com boas acções, em lugar de chicotadas. Conseguiu-o de maneira espectacular. Sob a sua direcção, a existência dos índios melhorou tanto que, se La Pérouse tivesse passado por lá, teria ficado admirado. O padre Mendoza podia gabar-se - embora nunca o fizesse - de que o número de baptizados em San Gabriel triplicara, nenhum se escapava por muito tempo e os escassos fugitivos regressavam sempre arrependidos.

Apesar do trabalho duro e das restrições sexuais, voltavam porque ele os tratava com clemência e porque, até então, nunca tinham disposto de três refeições diárias e de um telhado sólido para se refugiarem das tempestades.

A missão atraía viajantes do resto da América e de Espanha, que se dirigiam àquele remoto território para aprenderem o segredo do êxito do padre Mendoza. Ficavam muito bem impressionados com os campos de cereais e legumes; as vinhas que produziam bom vinho; o sistema de irrigação inspirado nos aquedutos romanos; as cavalariças e os currais; os rebanhos a pastar nos cerros até perder de vista; as adegas a abarrotarem de peles curtidas e tonéis de banha. Maravilhavam-se com a paz em que os dias decorriam e com a mansidão dos neófitos, que estavam a adquirir fama para além das fronteiras com a sua fina cestaria e os seus produtos de couro. «A barriga cheia, coração contente», era o lema do padre Mendoza, que vivia obcecado com a nutrição desde que ouvira dizer que, às vezes, os marinheiros morriam de escorbuto, quando um limão podia prevenir a doença. «É mais fácil salvar a alma se o corpo estiver são», pensava, pelo que a primeira coisa que fizera ao chegar à missão fora substituir as eternas papas de milho, base da dieta, por estufado de carne, verduras e banha para as tortilhas. Providenciava leite para as crianças com enorme esforço, porque cada balde do espumante líquido se obtinha à custa de uma batalha com as vacas bravas. Eram precisos três homens corpulentos para ordenhar cada uma delas e amiudadas vezes era a vaca que ganhava. Mendoza combatia a repugnância das crianças pelo leite com o mesmo método com que as purgava uma vez por mês para lhes tirar os vermes intestinais: amarrava-as, apertava-lhes o nariz e introduzia-lhes um funil na boca. Tanta determinação tinha de dar resultados. À força de funis, as crianças cresciam fortes e de carácter temperado.

A população de San Gabriel estava isenta de vermes e era a única livre das fatídicas pestes que dizimavam outras colónias, embora às vezes um resfriado ou uma diarreia comum enviassem os neófitos directamente para o outro mundo.

Na quarta-feira ao meio-dia os índios atacaram. Aproximaram-se sigilosamente, mas, quando invadiram os terrenos da missão, já eram esperados. A primeira impressão dos inflamados guerreiros foi que o lugar se encontrava deserto: apenas um par de cães magros e uma galinha distraída os receberam no pátio. Não encontraram vivalma em sítio algum, não ouviram vozes, nem viram fumo nas lareiras das palhotas. Alguns dos índios vestiam peles e montavam a cavalo, mas na sua maioria vinham nus e a pé, armados de arcos e flechas, maças e lanças. À frente galopava o misterioso chefe, pintado às listas vermelhas e negras, vestido com uma curta túnica de pele de lobo e adornado com uma cabeça completa do mesmo animal à laia de chapéu. Mal se lhe via a cara, que assomava entre as fauces do lobo, envolta numa longa cabeleira escura.

Em poucos minutos os assaltantes percorreram a missão, deitaram fogo às palhotas e espatifaram os cântaros de barro, os tonéis, as ferramentas, os teares e tudo o restante ao seu alcance, sem encontrarem a menor resistência. Os seus pavorosos uivos de combate e a sua tremenda pressa impediram-nos de ouvir os chamamentos dos neófitos, fechados a tranca e cadeado no barracão das mulheres. Encorajados, dirigiram-se à igreja e lançaram uma chuva de flechas, mas estas embateram inutilmente contra as firmes paredes de adobe. A uma ordem do chefe Lobo Cinzento investiram sem método nem concerto contra as grossas portas de madeira, que estremeceram com o impacte, mas não cederam. A gritaria e os alaridos aumentavam de volume a cada empenho do grupo em arrombar a porta, enquanto alguns guerreiros mais atléticos e audazes procuravam forma de trepar até aos estreitos postigos e ao campanário.

Dentro da igreja, a tensão tornava-se mais intolerável a cada empurrão que a porta sofria. Os defensores - quatro missionários, cinco soldados e oito neófitos - estavam colocados aos lados da nave, protegidos por sacos de areia e secundados por raparigas encarregadas de carregar as armas. De La Vega treinara-as o melhor possível, mas não se podia esperar demasiado de raparigas aterrorizadas que nunca tinham visto um mosquete de perto. A tarefa consistia numa série de movimentos que qualquer soldado executava sem pensar, mas que o capitão levou horas a explicar-lhes. Uma vez pronta a arma, a jovem entregava-a ao homem encarregado de a disparar, enquanto ela preparava outra. Ao accionar o gatilho, uma faísca inflamava o explosivo do fuzil que, por sua vez, detonava o canhão. A pólvora húmida, a pederneira desgastada e os canos obstruídos provocavam numerosas falhas de fogo, além do que era frequente esquecerem-se de retirar a vareta do cano antes de disparar.

- Não desanimem, a guerra é sempre assim, só barulho e turbulência. Se uma arma encrava, a seguinte tem de estar pronta para continuar a matar - foram as instruções de Alejandro de La Vega.

Numa casa atrás do altar encontrava-se o resto das mulheres e todas as crianças da missão, que o padre Mendoza jurara proteger com a vida. Os defensores do local, com os dedos apertados nos gatilhos e metade da cara protegida por um lenço ensopado em água com vinagre, esperavam em silêncio a ordem do capitão, o único imperturbável diante da gritaria dos índios e do estrondo dos seus corpos a arremessarem-se contra a porta. Friamente, De La Vega calculava a resistência da madeira. O êxito do seu plano dependia de agir no momento oportuno e em perfeita coordenação. Não tivera ocasião de combater desde as campanhas de Itália, vários anos antes, mas estava lúcido e tranquilo; o único indício de apreensão era o formigueiro nas mãos que sentia sempre antes de disparar.

Daí a pouco, os índios cansaram-se de bater na porta e retrocederam para recuperar forças e receber instruções do seu chefe. Um silêncio ameaçador substituiu o tumulto anterior. Foi esse o momento que De La Vega escolheu para dar o sinal. O sino da igreja começou a repicar furiosamente, enquanto os neófitos incendiavam trapos untados de pez, produzindo uma fumarada espessa e fétida. Outros dois levantaram a pesada tranca da porta. As badaladas devolveram a energia aos índios, que se reagruparam para se lançarem de novo ao ataque. Desta vez, a porta cedeu ao primeiro contacto e caíram uns por cima dos outros na maior confusão, embatendo contra uma barreira de sacos de areia e pedras. Vinham ofuscados pela luz de fora e depararam-se com a penumbra e a fumarada do interior. Dez mosquetes dispararam em uníssono dos lados, ferindo vários índios, que caíram soltando alaridos. O capitão acendeu a mecha e em poucos segundos o fogo alcançou os sacos de pólvora misturada com gordura e projécteis que tinham disposto à frente da barricada. A explosão abalou os alicerces da igreja, lançou uma saraivada de partículas de metal e pedregulhos contra os índios e arrancou pela raiz a grande cruz de madeira que havia por cima do altar. Os defensores sentiram o sopro quente, que os impeliu para trás, e o barulho espantoso, que os ensurdeceu, mas conseguiram ver os corpos dos índios projectados como marionetas numa nuvem avermelhada. Protegidos atrás das suas barricadas, tiveram tempo de se recuperar, carregar as armas e disparar pela segunda vez, antes que as primeiras flechas voassem pelos ares. Vários índios jaziam pelo solo e os que ainda permaneciam de pé tossiam e lacrimejavam com o fumo, sem poderem apontar com os seus arcos, sendo, em contrapartida, alvo fácil para as balas.

Três vezes conseguiram carregar os mosquetes antes que o chefe Lobo Cinzento, seguido pelos seus mais valentes guerreiros, lograsse galgar a barricada e invadir a nave, onde foi recebido pelos espanhóis. No caos da batalha, o capitão Alejandro de La Vega nunca perdeu de vista o chefe índio e, mal conseguiu libertar-se dos inimigos que o rodeavam, saltou-lhe em cima, enfrentando-o com um rugido de fera, de sabre na mão. Descarregou o aço com todas as forças, mas acertou no vazio, porque o instinto do chefe Lobo Cinzento o avisou do perigo um segundo antes e conseguiu furtar o corpo, atirando-se para o lado. O brutal impulso empregado na estocada desequilibrou o capitão, que tombou para a frente, tropeçou e caiu de joelhos, ao mesmo tempo que a espada embatia contra o chão, partindo-se ao meio. Com um grito de triunfo, o índio levantou a lança para trespassar o espanhol de lado a lado, mas não conseguiu completar o gesto, porque uma coronhada na nuca o prostrou de borco, deixando-o imóvel.

- Que Deus me perdoe! - exclamou o padre Mendoza, que esgrimia um mosquete pelo cano e distribuía golpes à esquerda e à direita com prazer feroz.

Um charco escuro alastrou rapidamente em torno do chefe e a altiva cabeça de lobo do seu toucado tornou-se vermelha, ante a surpresa do capitão De La Vega, que já se dava a si próprio como morto. O padre Mendoza coroou a sua imprópria alegria com um bom pontapé no corpo inerte do desfalecido. Tinha-lhe bastado cheirar a pólvora para voltar a ser o soldado sanguinário que fora na juventude.

Em questão de minutos correu a notícia entre os índios de que o chefe tinha caído e começaram a retroceder, primeiro com dúvidas e depois à desfilada, perdendo-se na distância. Os vencedores, banhados de suor e meio asfixiados, esperaram que a poeira da retirada do inimigo assentasse para saírem, a fim de respirarem ar puro. Ao repique demencial do sino da igreja somaram-se uma salva de tiros para o ar e as intermináveis aclamações dos que tinham salvo a vida, dominando os queixumes dos feridos e o pranto histérico das mulheres e das crianças, ainda encerradas atrás do altar e imersas na fumarada.

O padre Mendoza arregaçou a sotaina ensopada de sangue e entregou-se à tarefa de devolver a sua missão à normalidade, sem se aperceber de que tinha perdido uma orelha e o sangue não era dos adversários, mas sim seu. Contou as suas reduzidas baixas e elevou ao céu uma dupla prece para agradecer o triunfo e pedir perdão por ter perdido de vista a compaixão cristã no entusiasmo da peleja. Dois dos seus soldados sofreram ferimentos menores e um dos missionários tinha um braço trespassado por uma flecha. A única morte a lamentar fora a de uma das raparigas que carregavam as armas, uma indiazinha de quinze anos que ficara estendida de barriga para cima, com o crânio desfeito por uma paulada e uma expressão de surpresa nos grandes olhos sombrios. Enquanto o padre Mendoza organizava os seus para apagarem os incêndios, cuidar dos feridos e enterrar os mortos, o capitão Alejandro de La Vega, com um sabre alheio na mão, percorria a nave da igreja à procura do cadáver do chefe índio, com a ideia de enfiar a cabeça num pique e enterrá-la à entrada da missão, para desanimar qualquer um que acalentasse a ideia de lhe seguir o exemplo. Encontrou-o onde tinha caído. Não passava de um fardo patético encharcado no seu próprio sangue. Com uma palmada, arrancou-lhe a cabeça de lobo e com a ponta do pé fez rebolar o corpo, muito mais pequeno do que parecia quando arvorava uma lança. O capitão, ainda cego de raiva e ofegando pelo esforço do combate, pegou no chefe pela comprida cabeleira e levantou o sabre para o decapitar de um só golpe, mas, antes que conseguisse baixar o braço, o prostrado abriu os olhos e fitou-o com uma inesperada expressão de curiosidade.

- Santa Maria Virgem, está vivo! - exclamou De La Vega, dando um passo atrás.

Não o surpreendeu tanto que o seu inimigo ainda respirasse, como a beleza dos seus olhos cor de caramelo, alongados, de pestanas bastas, os olhos diáfanos de um veado naquele rosto coberto de sangue e pinturas de guerra. De La Vega largou o sabre, ajoelhou-se e meteu-lhe a mão por debaixo da nuca, erguendo-o com cuidado. Os olhos de veado fecharam-se e escapou-se-lhe da boca um longo gemido. O capitão deu uma olhadela em redor e compreendeu que estavam sozinhos naquele recanto da igreja, muito perto do altar. Obedecendo a um impulso, levantou o ferido com a intenção de o pôr ao ombro, mas descobriu-o muito mais leve do que esperava. Carregou-o nos braços como uma criança, evitou os sacos de areia, as pedras, as armas e os corpos dos mortos, que ainda não tinham sido retirados pelos missionários, e saiu da igreja para a luz daquele dia de Outono, que recordaria para o resto da vida.

- Está vivo, padre - anunciou, depositando o ferido no solo.

- Em má hora, capitão, porque teremos na mesma de o justiçar - redarguiu o padre Mendoza, que agora tinha uma camisa enrolada à volta da cabeça, como um turbante, para estancar o sangue da orelha cortada.

Alejandro de La Vega nunca conseguiu explicar por que razão, em vez de se aproveitar daquele momento para decapitar o seu inimigo, partiu em busca de água e de uns trapos para o lavar. Ajudado por uma neófita, afastou a cabeleira negra e enxaguou o longo corte, que em contacto com a água voltou a sangrar profusamente. Apalpou o crânio com os dedos, verificando que havia uma ferida inflamada, mas o osso estava intacto. Na guerra tinha visto coisas muito piores.

Pegou numa das agulhas curvas para fazer colchões e nas crinas de cavalo, que o padre Mendoza tinha posto de molho em tequila para remendar os feridos, e coseu o couro cabeludo. Depois lavou o rosto do chefe, verificando que a pele era clara e as feições delicadas. Com a adaga, rasgou a ensanguentada túnica de pele de lobo para ver se havia outras feridas e nessa altura escapou-se-lhe um grito do peito.

- É uma mulher! - exclamou, espantado.

O padre Mendoza e os demais acorreram depressa e ficaram a contemplar, mudos de assombro, os peitos virginais do guerreiro.

- Agora vai ser muito mais difícil dar-lhe a morte... - suspirou, por fim, o padre Mendoza.

O seu nome era Toypurnia e tinha apenas vinte anos. Conseguira que os guerreiros de várias tribos a seguissem porque era precedida de uma mítica lenda. A sua mãe era Coruja Branca, xamã e curandeira de uma tribo de índios Gabrielenhos, e o pai era um marinheiro desertor de um navio espanhol. O homem vivera vários anos escondido no meio dos índios, até que uma pneumonia o mandara desta para melhor, quando a filha já era adolescente. Toypurnia aprendera com o pai os fundamentos da língua castelhana, e com a mãe o uso de plantas medicinais e as tradições do seu povo. O seu extraordinário destino manifestou-se poucos meses depois de nascer, na tarde em que a mãe a deixou a dormir debaixo de uma árvore, enquanto tomava banho no rio, e um lobo se aproximou do fardo envolto em peles, o colheu nas fauces e o levou de rastos até ao bosque. Desesperada, Coruja Branca seguiu as pegadas do animal por vários dias, sem encontrar a filha. Durante o resto desse Verão, a mãe ficou com os cabelos brancos, e a tribo procurou a menina sem parar, até que se esfumou a última esperança de a recuperarem; nessa altura realizaram as cerimónias para a guiar até às vastas planícies do Grande Espírito. Coruja Branca negou-se a participar no funeral e continuou a perscrutar o horizonte, porque sentia nos ossos que a filha estava viva. Uma madrugada, no princípio do Inverno, viram surgir do nevoeiro uma criatura esquálida, imunda e nua, que avançava a gatinhar, com o nariz colado à terra. Era a menina perdida, que chegava grunhindo como um cão e com cheiro a fera. Chamaram-lhe Toypurnia, que na língua da sua tribo quer dizer Filha de Lobo, e criaram-na como os rapazes, com arco, flecha e lança, porque tinha voltado do bosque com um coração indómito.

De tudo isto soube Alejandro de La Vega nos dias seguintes pela boca dos índios prisioneiros, que lamentavam as suas feridas e a sua humilhação, encerrados nos barracões dos missionários. O padre Mendoza decidira soltá-los à medida que se iam restabelecendo, visto que não podia mantê-los cativos por tempo indefinido e, sem o chefe, pareciam ter voltado à indiferença e à docilidade de antes. Não quis açoitá-los, como estava certo de que mereciam, porque o castigo só provocaria mais rancor, e tão-pouco procurou convertê-los à sua fé, porque lhe pareceu que nenhum tinha queda para cristão; seriam como maçãs podres a contaminar a pureza do seu rebanho. Não escapou ao missionário que a jovem Toypurnia exercia um verdadeiro fascínio sobre o capitão De La Vega, que procurava pretextos para se deslocar a toda a hora à gruta subterrânea onde se envelhecia o vinho e onde tinham instalado a cativa. Dois motivos tivera o missionário para escolher a adega como cela: podia-se manter fechada à chave e a escuridão daria a Toypurnia ocasião para meditar sobre as suas acções. Como os índios asseguravam que a sua chefe se transformava em lobo e podia fugir de onde quer que fosse, tomou a precaução adicional de a imobilizar com correias de couro sobre as toscas tábuas que lhe serviam de beliche.

A jovem debateu-se durante vários dias entre a inconsciência e os pesadelos, encharcada em suor febril, alimentada com colheres de leite, vinho e mel, pela mão do capitão Alejandro de La Vega. De vez em quando, acordava nas trevas absolutas e receava ter ficado cega, mas outras vezes abria os olhos à luz trémula de uma candeia e distinguia o rosto de um desconhecido a chamá-la pelo nome.

Uma semana mais tarde, Toypurnia dava os seus primeiros passos clandestinos apoiada no garboso capitão, que decidira ignorar as ordens do padre Mendoza de mantê-la amarrada e às escuras. Por essa altura, os dois jovens podiam comunicar entre si, porque ela se lembrava do fragmentário castelhano que o pai lhe ensinara e ele fez o esforço de aprender umas palavras na língua dela. Quando o padre Mendoza os surpreendeu de mão dada, decidiu que já era tempo de dar a prisioneira por curada e julgá-la. Nada mais longe das suas intenções do que executar quem quer que fosse; na verdade, nem sequer sabia como o fazer, mas era ele o responsável pela segurança da missão e dos seus neófitos e, de uma maneira ou de outra, aquela mulher tinha causado várias mortes. Recordou tristemente ao capitão que em Espanha a pena por crimes de rebelião, como o de Toypurnia, consistia em nada menos que a morte lenta no garrote vil, onde o supliciado perdia a respiração à medida que um torniquete de ferro lhe apertava o pescoço.

- Não estamos em Espanha - retrucou o capitão, estremecendo.

- Suponho que concordais comigo, capitão, que, enquanto ela estiver viva, todos corremos perigo, porque voltará a sublevar as tribos. Nada de garrote, é demasiado cruel, mas com dor de alma haverá que enforcá-la; não há alternativa.

- Aquela mulher é mestiça, padre, tem sangue espanhol. O senhor tem jurisdição sobre os índios a seu cargo, mas não sobre ela. Só o governador da Alta Califórnia pode condená-la - volveu o capitão.

O padre Mendoza, para quem a ideia de ter a morte de outro ser humano às costas era um fardo pesado de mais, agarrou-se imediatamente àquele argumento. De La Vega ofereceu-se para ir pessoalmente a Monterrey para que Pedro Fages decidisse o destino de Toypurnia, e o missionário aceitou com um fundo suspiro de libertação.

Alejandro de La Vega chegou a Monterrey em menos tempo do que precisava um cavaleiro em circunstâncias normais para cobrir aquela distância, porque ia com pressa de cumprir a sua incumbência e porque tinha de evitar os índios sublevados. Viajou sozinho e a galope, parando nas missões ao longo do caminho para mudar de cavalo e dormir umas horas. Tinha feito o trajecto outras vezes e conhecia-o bem, mas ficava sempre maravilhado com aquela natureza pródiga de bosques intermináveis, as mil variedades de animais e pássaros, os ribeiros e nascentes doces, a areia branca das praias do Pacífico. Não teve encontros com os índios, porque estes vagueavam pelos cerros sem chefe e sem rumo fixo, desmoralizados. Se as predições do padre Mendoza se revelassem correctas, o entusiasmo tinha desaparecido por completo e levariam anos a voltarem a organizar-se.

O presídio de Monterrey, construído num promontório isolado, a setecentas léguas da Cidade do México e a meio mundo de distância de Madrid, era um edifício fúnebre como uma masmorra, uma monstruosidade de pedra e argamassa, onde estava estacionado um pequeno contingente de soldados, única companhia do governador e da sua família. Nesse dia um nevoeiro húmido amplificava o fragor das ondas contra as rochas e o alvoroço das gaivotas.

Pedro Fages recebeu o capitão numa sala quase nua, cujos postigos mal deixavam entrar luz, mas por onde se infiltrava a ventania gelada do mar. As paredes mostravam cabeças dissecadas de ossos, sabres, pistolas e o brasão de armas de Dona Eulália de Callís bordado a ouro, mas já deteriorado e descolorido. À guisa de mobiliário havia uma dúzia de cadeiras de braços sem estofo, um enorme armário e uma mesa militar. Os tectos, negros de fuligem, e o chão de terra batida eram próprios do mais rude quartel. O governador, um notável corpulento e com um vozeirão colossal, tinha a rara virtude de ser imune à lisonja e à corrupção. Exercia o poder com a recôndita certeza de que o seu maldito destino era tirar a Alta Califórnia da barbárie fosse a que preço fosse. Comparava-se com os primeiros conquistadores espanhóis, gente como Hernán Cortes, que ganharam tanto mundo para o império. Cumpria a sua obrigação com um sentido histórico, embora, na verdade, tivesse preferido gozar a fortuna da sua mulher em Barcelona, como ela lhe pedia sem cessar. Uma ordenança serviu-lhes vinho tinto em copos de cristal da Boémia, trazidos de longe nos baús de Eulália de Callís, que contrastavam com o rudimentar mobiliário do forte. Os homens brindaram pela pátria distante e pela sua amizade, comentando a revolução em França, que tinha levantado o povo em armas. O facto ocorrera havia mais de um ano, mas a notícia acabava de chegar a Monterrey. Foram unânimes em achar que não havia razão para se alarmarem; por esta altura, já certamente, se teria restabelecido a ordem naquele país e o rei Luís XVI estaria de novo no seu trono, apesar de o considerarem um homem pusilânime, indigno de pena. No fundo, alegravam-se por os Franceses se estarem a matar uns aos outros, mas as boas maneiras impediam-nos de o expressarem em voz alta. De longe vinha um som abafado de vozes e gritos, que foi aumentando de intensidade, até que se tornou impossível continuar a ignorá-lo.

- Desculpai, capitão, são assuntos de mulheres - disse Pedro Fages, com um gesto de impaciência.

- Sua Excelência Dona Eulália encontra-se bem? - inquiriu Alejandro de La Vega, corando até à ponta dos cabelos.

Pedro Fages trespassou-o com o seu olhar de aço, tentando adivinhar-lhe as intenções. Estava ao corrente das murmurações das pessoas sobre aquele garboso capitão e a sua mulher; não era surdo. Ninguém percebera, muito menos ele próprio, que Dona Eulália levasse seis meses a chegar a Monterrey, quando a distância se podia percorrer em muito menos tempo; diziam que a viagem se alongara de propósito, porque eles não se queriam separar. A esses boatos somara-se a versão exagerada de um assalto de bandidos no qual, supostamente, De La Vega arriscara a vida para salvar a dela. A verdade era outra, mas Pedro Fages nunca a soube. Os atacantes tinham sido apenas meia dúzia de índios alvoroçados pelo álcool, que fugiram a sete pés mal ouviram os primeiros tiros, nada mais, e, quanto à ferida que De La Vega sofrera numa perna, não fora em defesa de Dona Eulália de Callís, mas sim devida a uma leve cornada de vaca. Pedro Fages prezava-se de ser bom juiz das pessoas; não era em vão que exercia o poder havia tantos anos e, depois de examinar Alejandro de La Vega, decidiu que não valia a pena desperdiçar suspeitas nele; estava certo de que lhe entregara a esposa com a fidelidade intacta. Conhecia a sua mulher a fundo. Se aqueles dois se tivessem apaixonado, nenhum poder humano ou divino teria dissuadido Eulália de deixar o amante para voltar ao marido. «Talvez tenha havido uma afinidade platónica entre eles, mas nada que me possa tirar o sono», concluiu o governador. Era homem de honra e sentia-se em dívida para com aquele oficial, que, tendo tido seis meses para seduzir Eulália, não o fizera. Atribuía-lhe o mérito completo, porque considerava que, se bem que se possa confiar às vezes na lealdade de um homem, nunca se deve confiar na das mulheres, seres volúveis por natureza, sem aptidão para a fidelidade.

Entretanto, a azáfama de criados a correrem pelos corredores, o bater de portas e os gritos abafados continuavam. Alejandro de La Vega conhecia, como toda a gente, as discussões daquele casal, tão épicas como as suas reconciliações. Tinha ouvido dizer que, nos seus arrebatamentos, os Fages atiravam com a baixela à cabeça um do outro e que, em mais de uma ocasião, Dom Pedro tinha desembainhado o sabre contra ela, mas depois fechavam-se durante dias a fazer amor. O corpulento governador deu um murro na mesa, fazendo dançar os copos, e confessou ao hóspede que Eulália estava fechada nos seus aposentos havia cinco dias com uma virulenta fúria.

- Sente a falta do refinamento a que está habituada - disse, ao mesmo tempo que um uivo da lunática abanava as paredes.

- Talvez se sinta um pouco só, Excelência - disse De La Vega entre dentes, para dizer alguma coisa.

- Prometi-lhe que dentro de três anos voltaremos para o México ou para Espanha, mas não quer ouvir razões. Esgotou-se-me a paciência para ela, capitão De La Vega. Vou mandá-la para a missão mais próxima, a fim de que os frades a ponham a trabalhar com os índios, a ver se aprende a respeitar-me! - rugiu Fages.

- Permite-me que troque umas palavras com a senhora? - pediu o capitão.

Durante aqueles cinco dias de fanico, a governadora tinha-se negado a receber inclusivamente o seu filho de três anos. O garoto chorava enrodilhado no chão e urinava-se de medo quando o pai arremetia contra a porta com inúteis bengaladas. Apenas uma índia cruzava o umbral para levar comida e recolher o bacio, mas quando Eulália soube que Alejandro de La Vega tinha aparecido de visita e queria vê-la, arrefeceu-lhe a histeria num minuto. Lavou a cara, ajeitou a trança ruiva e vestiu-se de seda cor de alfazema com todas as suas pérolas postas. Pedro Fages viu-a entrar tão vistosa e sorridente como nos seus bons tempos e antecipou com saudade o calor de uma possível reconciliação, apesar de não estar disposto a perdoar-lhe com demasiada prontidão: a mulher merecia algum castigo. Nessa noite, durante a austera refeição, numa casa de jantar tão lúgubre como o salão de armas, Eulália de Callís e Pedro Fages atiraram à cara um do outro as recriminações que lhes empeçonhavam a alma, tomando o seu hóspede por testemunha. Alejandro de La Vega refugiou-se num incómodo silêncio até ao momento da sobremesa, quando adivinhou que o vinho fizera efeito e a ira dos esposos começava a ceder, anunciando então o motivo da sua visita. Explicou o facto de Toypurnia ter sangue espanhol, descreveu a sua coragem e inteligência, embora omitisse a sua beleza, e pediu ao governador que fosse indulgente com ela, fazendo jus à sua fama de compassivo e em nome da amizade mútua. Pedro Fages não se fez rogado, porque o rubor no decote de Eulália tinha conseguido distraí-lo, e consentiu em alterar a pena de morte para vinte anos de prisão.

- Na prisão essa mulher tornar-se-á uma mártir aos olhos dos índios. Bastará invocar o seu nome para pôr de novo as tribos em pé de guerra - interrompeu-o Eulália. - Ocorre-me uma solução melhor. Antes de mais nada, deve ser baptizada, como Deus manda; depois trazei-ma aqui e eu me encarregarei do problema. Aposto convosco que num ano terei convertido essa Toypurnia, a Filha de Lobo, a índia brava, numa dama cristã e espanhola. Assim destruiremos para sempre a sua influência entre os índios.

- E, de caminho, terás com que te entreter e alguém que te faça companhia - acrescentou o marido, de bom humor.

Assim se fez. Foi ao próprio Alejandro de La Vega que coube ir buscar a prisioneira a San Gabriel e conduzi-la a Monterrey, ante o alívio do padre Mendoza, que tinha pressa de se desfazer dela. A jovem era um vulcão pronto a explodir na missão, onde os neófitos ainda não se tinham recomposto do tumulto da guerra.

Toypurnia recebeu no baptismo o nome de Regina Maria de La Inmaculada Concepción, mas esqueceu imediatamente a maior parte e ficou só com Regina. O padre Mendoza vestiu-a com o saial de tecido grosseiro dos neófitos, pendurou-lhe uma medalha da Virgem ao pescoço, ajudou-a a subir para o cavalo, porque estava de mãos atadas, e deu-lhe a bênção. Mal os baixos edifícios da missão ficaram para trás, o capitão De La Vega desatou as mãos da cativa e, mostrando-lhe com um gesto a imensidão do horizonte, convidou-a a fugir. Regina pensou por uns minutos e deve ter calculado que, se voltassem a aprisioná-la, não haveria perdão para si, porque negou com a cabeça. Ou talvez não fosse só temor, mas sim o mesmo ardente sentimento que ofuscava a mente do espanhol. Em qualquer caso, seguiu-o sem assomo de rebelião durante a jornada, que ele retardou o mais possível, porque imaginava que não voltariam a ver-se. Alejandro de La Vega saboreou cada passo do Camino Real com ela, cada noite em que dormiram sob as estrelas sem se tocarem, cada ocasião em que se banharam ambos no mar, ao mesmo tempo que travava um obstinado combate contra o desejo e a imaginação. Sabia que um fidalgo De La Vega, um homem da sua honra e linhagem, não podia sequer sonhar em unir-se a uma mestiça. Se esperava que aqueles dias a cavalo com Regina pelas solidões da Califórnia lhe esfriassem o amor, apanhou um balde de água fria, porque, quando inevitavelmente chegaram ao presídio de Monterrey, estava apaixonado como um adolescente. Teve de lançar mão da sua longa disciplina de soldado para se despedir da jovem e jurar porfiadamente a si mesmo que nunca mais tentaria comunicar com ela.

Três anos mais tarde, Pedro Fages cumpriu a promessa feita à esposa e renunciou ao seu cargo de governador da Alta Califórnia, a fim de regressar à civilização. No fundo estava feliz com essa resolução, porque o exercício do poder lhe tinha parecido sempre uma tarefa ingrata. O casal carregou as recuas de mulas e os carros de bois com os seus baús, reuniu a sua pequena corte e empreendeu a marcha em direcção ao México, onde Eulália de Callis tinha mandado mobilar um palácio barroco com o fausto próprio da sua categoria. Paravam forçosamente em todas as povoações e missões do caminho, para recuperarem forças e deixarem-se agasalhar pelos colonos. Apesar do mau génio de ambos, os Fages eram estimados, porque ele havia governado com justiça e ela tinha fama de doida generosa. As gentes de La Reina de los Angeles juntaram os seus recursos aos da vizinha Missão San Gabriel, a mais próspera da província, a quatro léguas de distância, para oferecer aos viajantes uma recepção condigna. A povoação, fundada ao estilo das cidades coloniais espanholas, era um quadrado com uma praça central, bem planeada para crescer e prosperar, embora naquele momento apenas contasse quatro ruas principais e uma centena de casas de cana-brava. Também havia uma taberna, cujos fundos serviam de armazém, uma igreja, uma prisão e meia dúzia de edifícios de adobe, pedra e telha, onde residiam as autoridades. Apesar da escassa população e da pobreza generalizada, os colonos eram famosos pela sua hospitalidade e pelas rondas de festejos que as famílias ofereciam ao longo do ano. As noites animavam-se com guitarras, trombetas, violinos e pianos, e aos sábados e domingos dançava-se o fandango. A chegada dos governadores foi o melhor pretexto que tinham tido, desde a sua fundação, para celebrar. Levantaram arcos com estandartes e flores de papel em redor da praça, puseram mesas compridas com toalhas brancas, e toda a gente capaz de tocar um instrumento foi recrutada para o sarau, incluindo um par de presos, que se livraram do cepo quando se soube que eram capazes de dedilhar uma guitarra. Os preparativos demoraram vários meses, e durante esse tempo não se falou de outra coisa. As mulheres fizeram vestidos de gala, os homens arearam os botões e as fivelas de prata, os músicos ensaiaram danças chegadas do México, as cozinheiras afadigaram-se no banquete mais sumptuoso que se tinha visto por ali. O padre Mendoza compareceu com os seus neófitos, munido de vários tonéis do seu melhor vinho, duas vacas e vários porcos, galinhas e patos, que foram sacrificados para a ocasião.

Ao capitão Alejandro de La Vega calhou encarregar-se da ordem durante a estada dos governadores na povoação. Desde o instante em que soube da sua vinda, a imagem de Regina atormentou-o sem lhe dar trégua. Perguntava a si mesmo que teria sido feito dela naqueles três «séculos» de separação, como teria sobrevivido no sombrio presídio de Monterrey, se porventura se lembraria dele. As dúvidas dissiparam-se-lhe na noite da festa, quando, à luz dos archotes e ao som da orquestra, viu chegar uma jovem deslumbrante, vestida e penteada à moda europeia, e reconheceu de imediato aqueles olhos cor de açúcar queimado. Ela também o distinguiu na multidão e avançou sem vacilar, postando-se em frente dele com a expressão mais séria do mundo. O capitão, com a alma a ponto de se desfazer em pedaços, quis estender a mão, a fim de a convidar para dançar, mas em vez disso perguntou-lhe aos borbotões se queria casar-se com ele. Não foi um impulso descontrolado; tinha-o pensado durante três anos e chegara à conclusão de que mais valia manchar a sua impecável linhagem do que viver sem a jovem. Dava-se conta de que nunca poderia apresentá-la à sua família ou à sociedade em Espanha, mas isso não lhe importava, porque, por ela, estava disposto a criar raízes na Califórnia e nunca mais arredar pé do Novo Mundo. Regina aceitou-o, porque o amava em segredo desde os tempos em que ele a trouxera de volta à vida, quando ela agonizava na adega do padre Mendoza.

E foi assim que a brilhante visita dos governadores a La Reina de los Angeles foi coroada pela boda do capitão com a misteriosa dama de companhia de Eulália de Callís. O padre Mendoza, que tinha deixado crescer o cabelo até aos ombros para disfarçar a horrenda cicatriz da orelha cortada, realizou a cerimónia, apesar de, até ao último momento, ter tentado dissuadir o capitão de se casar. Não o incomodava que a noiva fosse mestiça - havia muitos espanhóis que se casavam com índias -, mas sim a suspeita de que, sob a impecável aparência de menina europeia de Regina, espreitasse intacta Toypurnia, Filha de Lobo. Foi Pedro Fages em pessoa que entregou a noiva no altar, porque estava convencido de que ela salvara o seu casamento, visto que, na ânsia de a educar, Eulália tinha suavizado o génio e deixara de o atormentar com as suas fúrias. Considerando que, além disso, devia a vida da mulher a Alejandro de La Vega, como asseguravam os boatos, decidira que aquela era uma boa ocasião para se mostrar generoso. De uma penada, atribuiu ao flamante casal os títulos de propriedade de um rancho e vários milhares de cabeças de gado, já que fazia parte das suas competências distribuir terras pelos colonos. Traçou o contorno num mapa, seguindo o impulso do lápis, e depois, quando averiguaram os limites reais do rancho, verificou-se que eram muitas léguas de pastagens, cerros, bosques, rios e praia. Eram precisos vários dias para percorrer a propriedade a cavalo: era a maior e mais bem localizada da região. Sem o ter pedido, De La Vega viu-se convertido num homem rico. Umas semanas mais tarde, quando as pessoas começaram a chamar-lhe Dom Alejandro, renunciou ao exército do rei para se dedicar por inteiro a prosperar naquela terra nova. Um ano mais tarde foi eleito alcaide de La Reina de los Angeles.

De La Vega construiu uma moradia ampla, sólida e sem pretensões, de adobe, com telhados de telha e pavimentos de grosseira laje de greda.

Decorou a casa com pesados móveis, fabricados na povoação por um carpinteiro galego, sem nenhuma consideração pela estética, apenas pela durabilidade. A localização era privilegiada, muito perto da praia, a poucos quilómetros de La Reina de los Angeles e da Missão San Gabriel. A grande casa de adobe, ao estilo das fazendas mexicanas, achava-se sobre um promontório e a sua orientação oferecia uma vista panorâmica da costa e do mar. A curta distância ficavam os sinistros depósitos naturais de pez, dos quais ninguém se aproximava de bom grado, porque ali penavam as almas dos mortos presos no alcatrão. Entre a praia e a fazenda havia um labirinto de grutas, lugar sagrado dos índios, tão temido como os charcos de pez. Os índios não iam lá, por respeito pelos antepassados, e os espanhóis tão-pouco, por causa das frequentes derrocadas e porque era muito fácil uma pessoa perder-se lá dentro.

De La Vega instalou várias famílias de índios e de vaqueiros mestiços na sua propriedade, marcou o seu gado e propôs-se criar cavalos de raça a partir de exemplares que mandou vir do México. No tempo que lhe sobrava instalou uma pequena fábrica de sabão e dedicou-se a fazer experiências na cozinha para encontrar a fórmula perfeita de fumar carne preparada com pimentão. Pretendia obter uma carne seca, mas saborosa, que durasse meses sem se estragar. Esta experiência consumia as suas horas e enchia o céu de uma fumarada vulcânica, que o vento arrastava várias léguas mar adentro, alterando o comportamento das baleias. Calculava que, se obtivesse o justo equilíbrio entre o bom sabor e a durabilidade, poderia vender o produto ao exército e aos navios. Parecia-lhe um desperdício tremendo arrancar as peles e a gordura do gado e perder montes de boa carne. Enquanto o marido multiplicava o número de bovinos, ovelhas e cavalos do rancho, dirigia a política da povoação e fazia negócio com os navios mercantes, Regina ocupava-se em atender às necessidades dos índios da fazenda.

Não tinha interesse pela vida social da colónia e respondia com olímpica indiferença aos comentários que circulavam sobre ela. Nas suas costas comentava-se o seu carácter áspero e depreciativo, as suas origens mais que duvidosas, as suas escapadas a cavalo, os seus banhos, nua, no mar. Como chegara protegida pelos Fages, a minúscula sociedade da povoação, que agora tinha abreviado o seu nome e se chamava simplesmente Pueblo de Los Angeles, dispôs-se, ao princípio, a aceitá-la no seu seio sem fazer perguntas, mas foi ela própria que se excluiu. Não tardou que os vestidos, que usava sob a influência de Eulália de Callís, acabassem devorados pela traça nos armários. Sentia-se mais à vontade descalça e com a tosca roupa dos neófitos. Assim passava o dia. De tarde, quando calculava que Alejandro estava para voltar a casa, lavava-se, enroscava a cabeleira num rolo improvisado e punha um vestido simples, que lhe dava a inocente aparência de uma noviça. O marido, cego de amor e ocupado com os seus negócios, desprezava os indícios delatores do estado de espírito de Regina; desejava vê-la feliz e nunca lhe perguntou se o era, com medo de que ela lhe respondesse com a verdade. Atribuía as singularidades da mulher à sua inexperiência de recém-casada e ao seu carácter hermético. Preferia não pensar que a senhora de boas maneiras, que se sentava com ele à mesa, era o mesmo guerreiro pintalgado que atacara a Missão San Gabriel poucos anos antes. Julgava que a maternidade curaria a sua mulher dos últimos ressaibos do passado, mas, apesar dos longos e frequentes retouços na cama de quatro colunas que compartilhavam, o filho tão desejado não chegou senão em 1795.

Durante os meses de gravidez, Regina tornou-se ainda mais silenciosa e selvagem. Com o pretexto de estar à vontade, não se voltou a vestir nem a pentear à europeia. Tomava banho no mar com os golfinhos, que apareciam aos milhares para acasalar perto da praia, acompanhada por uma neófita doce, de nome Ana, que o padre Mendoza lhe mandara da Missão. A jovem também estava grávida, mas não tinha marido e negara-se tenazmente a confessar a identidade do homem que a seduzira. O missionário não queria aquele mau exemplo entre os seus índios, mas como tão-pouco lhe chegara a severidade para a expulsar da missão, acabara por a entregar como criada à família De La Vega. Fora uma boa ideia, porque entre Regina e Ana surgiu, de imediato, uma muda cumplicidade muito conveniente para as duas, pois, assim, a primeira obteve companhia e a segunda protecção. Ana tomou a iniciativa de se banhar com os golfinhos, seres sagrados que nadam em círculos para manter o mundo seguro e em ordem. Os nobres animais sabiam que as duas mulheres estavam grávidas e passavam por elas roçando os grandes corpos aveludados, para lhes darem força e ânimo no momento do parto.

Em Maio desse ano, Ana e Regina deram à luz no decurso da mesma semana, que coincidiu com a célebre semana dos incêndios, registada nas crónicas de Los Angeles como a mais catastrófica desde a sua fundação. Todos os Verões havia que resignar-se a ver arder alguns bosques, porque uma faísca atingia os pastos secos. Não era grave, porque assim desbravavam-se abrolhos e criava-se espaço para os rebentos tenros da Primavera seguinte, mas nesse ano os incêndios ocorreram cedo na estação e, segundo o padre Mendoza, foram castigo de Deus por tanto pecado sem arrependimento na colónia. As chamas abrasaram vários ranchos, destruindo à passagem as instalações humanas e o gado, que não encontrou para onde fugir. No domingo, os ventos mudaram e o incêndio deteve-se a um quarto de légua da fazenda De La Vega, o que foi interpretado pelos índios como excelente augúrio para as duas crianças nascidas na casa.

O espírito dos golfinhos ajudou Ana a parir, mas não tanto a Regina. Enquanto a primeira teve o seu bebé em quatro horas, de cócoras em cima de uma manta no chão e com uma indiazinha adolescente da cozinha por única ajuda, Regina passou cinquenta horas a parir o seu, suplício que suportou, estóica, com um pedaço de madeira entre os dentes. Alejandro de La Vega, desesperado, mandou chamar a única parteira de Los Angeles, mas esta deu-se por vencida ao compreender que Regina tinha a criança atravessada no ventre e já não lhe restavam forças para continuar a lutar. Então, Alejandro recorreu ao padre Mendoza, a coisa mais parecida com um médico que havia nos arredores. O missionário pôs os criados a rezar o rosário, salpicou Regina com água benta e a seguir dispôs-se a tirar a criança à mão. Por pura determinação, conseguiu pescá-la às cegas pelos pés e puxou-a para a luz sem demasiadas considerações, porque o tempo urgia. O bebé vinha azul e com o cordão enrolado à volta do pescoço, mas, à força de orações e bofetadas, o padre Mendoza conseguiu obrigá-lo a respirar.

- Que nome lhe vamos pôr? - perguntou, quando o colocou nos braços do pai.

- Alejandro, como eu, o meu pai e o meu avô - indicou este.

- Chamar-se-á Diego - interrompeu-o Regina, consumida pela febre e pelo constante fio de sangue que lhe ensopava os lençóis.

- Diego porquê? Na família De La Vega ninguém se chama

assim.

- Porque é esse o seu nome - retrucou.

Alejandro tinha padecido com ela o longo suplício e receava mais que nada no mundo perdê-la. Viu que Regina se estava a esvair em sangue e faltou-lhe coragem para a contradizer. Concluiu que, se no seu leito de agonia ela escolhia aquele nome para o seu primogénito, devia ter muito boas razões, de modo que autorizou o padre Mendoza a baptizar a criança à pressa, porque parecia tão débil como a mãe e corria o risco de ir parar ao limbo, se falecesse antes de receber o sacramento.

Regina levou várias semanas a recuperar-se da tareia do parto e conseguiu-o unicamente graças à mãe, Coruja Branca, que chegou a pé, descalça e com o seu saco de plantas medicinais ao ombro, quando já estavam preparados os círios para o funeral. A curandeira índia não via a filha havia sete anos, quer dizer, desde os tempos em que esta fora para o bosque, a fim de sublevar os índios de outras tribos. Alejandro atribuiu a estranha aparição da sogra ao sistema de correio dos indígenas, um mistério que os brancos não conseguiam descobrir. Uma mensagem enviada do presídio de Monterrey demorava duas semanas, a mata-cavalos, a chegar à Baixa Califórnia, mas quando chegava, a notícia já era velha para os índios, que a haviam recebido dez dias antes por obra de magia. Não existia outra explicação para que a mulher surgisse do nada sem ser chamada, precisamente quando mais precisa era. Coruja Branca impôs a sua presença sem dizer palavra. Tinha pouco mais de quarenta anos, era alta, forte, bonita, curtida pelo sol e pelo trabalho. O seu rosto jovem, de olhos de mel, como os da filha, era emoldurado por uma mata indómita de cabelo cor de fumo, ao qual devia o nome. Entrou sem pedir licença, deu um empurrão a Alejandro de La Vega quando este procurou averiguar quem era, percorreu sem vacilar a complicada geografia da mansão e postou-se diante do leito da filha. Chamou-a pelo seu nome verdadeiro, Toypurnia, e falou-lhe na língua dos antepassados, até que a moribunda abriu os olhos. A seguir, extraiu do saco as ervas medicinais para a sua salvação, fê-las ferver numa panela em cima de um braseiro e deu-lhas a beber. A casa inteira ficou impregnada de cheiro a salva.

Entretanto, Ana, com a sua habitual boa vontade, tinha posto ao seio o filho de Regina, que chorava de fome; assim, Diego e Bernardo começavam a vida com o mesmo leite e nos mesmos braços. Isso converteu-os em irmãos da alma para o resto das suas vidas.

 

Assim que Coruja Branca verificou que a filha se podia pôr de pé e comia sem repugnância, enfiou as suas plantas e as suas coisas no saco, lançou um olhar a Diego e Bernardo, que dormiam lado a lado no mesmo berço, sem manifestar o menor interesse em averiguar qual dos dois era o seu neto, e foi-se embora sem se despedir. Alejandro de La Vega viu-a partir com grande alívio. Agradecia-lhe que tivesse salvo Regina de uma morte certa, mas preferia mantê-la longe, porque sob o influxo daquela mulher sentia-se constrangido e, além disso, os índios do rancho agiam com insolência. De manhã apareciam para o trabalho com as caras pintalgadas, à noite dançavam como sonâmbulos ao som de lúgubres ocarinas e, em geral, ignoravam as suas ordens, como se tivessem esquecido o castelhano.

A normalidade regressou à fazenda à medida que Regina recuperava a saúde. Na Primavera seguinte, todos, menos Alejandro de La Vega, tinham esquecido que ela estivera com um pé na cova. Não eram precisos conhecimentos de medicina para adivinhar que não poderia ter mais filhos. Sem que ele mesmo se apercebesse, esta circunstância começou a afastar Alejandro da mulher. Sonhava com uma família numerosa, como as de outros senhores da região. Um dos seus amigos gerara trinta e seis filhos legítimos, para além dos bastardos que não entravam nas suas contas. Tinha vinte do primeiro casamento no México e dezasseis do segundo, os últimos cinco nascidos na Alta Califórnia, um por ano. O temor de que acontecesse alguma coisa má a esse seu filho insubstituível, como a tantas crianças que morriam antes de aprender a andar, fazia Alejandro ficar acordado de noite. Ganhou o costume de rezar em voz alta, ajoelhado junto ao berço do filho, clamando protecção ao céu.

Impávida, com os braços cruzados sobre o peito, Regina observava, do umbral da porta, o seu marido humilhado. Naqueles momentos julgava odiá-lo, mas depois encontravam-se os dois entre os lençóis, onde o calor e o cheiro da intimidade os reconciliavam por algumas horas. Ao amanhecer, Alejandro vestia-se e descia ao seu escritório, onde uma índia lhe servia o chocolate espesso e amargo, como ele gostava. Começava o dia reunindo com o mordomo para lhe dar as ordens pertinentes ao rancho, após o que se encarregava dos seus múltiplos deveres como alcaide. Os esposos passavam o dia separados, cada um nas suas ocupações, até que o pôr do Sol marcava a hora de se reencontrarem. No Verão jantavam no terraço das buganvílias, sempre acompanhados por alguns músicos que tocavam as suas canções preferidas; no Inverno faziam-no na sala de costura, onde nunca ninguém cosera nem um só botão, devendo-se o seu nome ao quadro de uma holandesa a bordar à luz de uma candeia. Com frequência, Alejandro ficava em Los Angeles a passar a noite, porque se fazia tarde numa festa ou a jogar as cartas com outros senhores. As rondas de bailes, cartas, serões musicais e tertúlias ocupavam todos os dias do ano; não havia outra coisa para fazer, à parte os desportos ao ar livre, que homens e mulheres praticavam por igual. Regina não participava em nada disso, era uma alma solitária e desconfiava por princípio de todos os espanhóis, menos do marido e do padre Mendoza. Tão-pouco mostrava interesse por acompanhar Alejandro nas suas viagens de visita aos navios americanos do contrabando; nunca tinha subido a nenhum para negociar com os marinheiros. Pelo menos uma vez por ano, Alejandro ia em negócios ao México, ausências que costumavam durar um par de meses e das quais regressava carregado de presentes e ideias novas, que não conseguiam comover demasiado a mulher.

Regina voltou às suas longas cavalgadas, agora com o filho numa cesta amarrada às costas, e perdeu toda a inclinação pelos assuntos domésticos, que foram delegados em Ana. Recuperou o seu antigo costume de visitar os índios, incluindo os que não pertenciam ao seu rancho, com a intenção de averiguar as suas misérias e, se possível, aliviá-las. Ao repartirem as terras e subjugarem as tribos da região, os brancos haviam estabelecido um sistema de serviço obrigatório, que só se diferenciava da escravatura no facto de os índios também serem súbditos do rei de Espanha e, em teoria, gozarem de certos direitos. Na prática eram notoriamente pobres, trabalhavam a troco de comida, álcool, trabalho e autorização para criarem alguns animais. Em geral, os rancheiros eram patriarcas benevolentes, mais ocupados com os seus prazeres e paixões do que com a terra e os jornaleiros, mas às vezes calhava algum de mau carácter; então, a indiada, como lhe chamavam, passava fome ou apanhava chicotadas. Os neófitos da missão eram igualmente pobres, viviam com as suas famílias em palhotas redondas feitas de paus e palha, trabalhavam de sol a sol e dependiam por completo dos frades para a sua subsistência. Alejandro de La Vega procurava ser bom patrão, mas mortificava-o que Regina pedisse sempre mais para os índios. Tinha-lhe explicado mil vezes que não podia haver diferença no tratamento que os seus e os de outros ranchos recebiam, porque isso gerava problemas na colónia.

O padre Mendoza e Regina, unidos pela mesma ânsia de proteger os índios, acabaram por se tornar amigos; ele perdoou-lhe ter atacado a missão, e ela agradecia-lhe que tivesse trazido Diego ao mundo. Os patrões evitavam-nos, porque o missionário tinha autoridade moral e ela era a mulher do alcaide. Nas ocasiões em que Regina iniciava uma das suas campanhas de justiça, vestia-se de espanhola, penteava-se com um carrapito severo, punha uma cruz de ametista ao peito e usava uma elegante carruagem de passeio, presente do marido, em vez da égua brava que habitualmente montava em pelo. Recebiam-na secamente, porque não era uma dos seus.

Nenhum rancheiro admitia ter antepassados indígenas, professavam-se de pura cepa espanhola, gente branca e de bom sangue. Não perdoavam a Regina que nem sequer tentasse disfarçar as suas origens, embora isso fosse o que o padre Mendoza mais admirava nela. Quando se soube com certeza que era de mãe índia, a colónia espanhola virou-lhe as costas, mas ninguém se atreveu a fazer-lhe uma desfeita na cara, por respeito à posição e à fortuna do marido. Continuaram a convidá-la para tertúlias e festarolas com a tranquilidade de que não a veriam: o marido aparecia sozinho.

De La Vega não dispunha de muito tempo para a família, atarefado como estava com a gestão da povoação, da sua fazenda, dos seus negócios e a dirimir litígios, que nunca faltavam entre os povoadores. Quartas e quintas-feiras, sem falta, ia a Los Angeles cumprir as suas tarefas políticas, cargo prestigioso com mais deveres que satisfações, mas ao qual não renunciava por espírito de missão. Não era ganancioso nem abusava do poder. Possuía um dom natural de autoridade, mas não era homem de grande visão. Raras vezes punha em causa as ideias herdadas dos seus antepassados, embora elas não se coadunassem com a realidade da América. Para ele, tudo se reduzia a uma questão de honra, ao orgulho de ser quem era - irrepreensível fidalgo católico - e andar de cabeça erguida. Preocupava-o que Diego, demasiado apegado à mãe, a Bernardo e à criadagem indígena, não assumisse a posição que lhe correspondia por nascimento, mas calculava que ainda era muito criança e haveria tempo para o endireitar. Fez o propósito de dirigir a sua formação viril assim que fosse possível, mas esse momento era sempre adiado, pois havia outros assuntos mais urgentes a tratar. Amiudadas vezes, o desejo de proteger o filho e fazê-lo feliz comovia-o até às lágrimas. O seu amor por aquela criança deixava-o perplexo, era como a dor de uma estocada. Traçava soberbos planos para ele: seria valente, bom cristão e leal ao rei, como todo o gentil-homem De La Vega, e mais rico do que algum dos seus parentes havia sido, dono de terras vastas e férteis, com clima temperado e água em abundância, onde a natureza era generosa e a vida doce, não como nos ermos solos da sua família em Espanha. Teria mais rebanhos de vacas, ovelhas e porcos que o rei Salomão, criaria os melhores touros de lide e os mais elegantes cavalos mouros, converter-se-ia no homem mais influente da Alta Califórnia, chegaria a governador. Mas isso seria mais tarde; primeiro, teria de temperar-se na universidade ou na escola militar em Espanha. Contava que, na época em que Diego tivesse idade para viajar, a Europa estivesse em melhor pé. Paz não se podia esperar, visto que nunca a houvera no Velho Continente, mas podia supor que as pessoas teriam voltado à sanidade. As notícias eram desastrosas. Assim explicava a Regina, mas ela não compartilhava as suas ambições para o filho e ainda menos a sua preocupação com os problemas do outro lado do mar. Não concebia o mundo para além dos limites que o cavalo podia percorrer, e muito menos conseguiam comovê-la os assuntos de França. O marido contara-lhe que em 1793, justamente o ano em que se haviam casado, tinham decapitado o rei Luís XVI em Paris diante de uma populaça ávida de desforra e sangue. José Díaz, um comandante de navio amigo de Alejandro, oferecera-lhe uma guilhotina em miniatura, brinquedo pavoroso que lhe servia para cortar as pontas dos charutos e, de caminho, explicar como voavam as cabeças dos nobres em França, um terrível exemplo, que, na sua opinião, poderia mergulhar a Europa no caos mais absoluto. A ideia parecia tentadora a Regina, porque supunha que, se os índios dispusessem de uma máquina assim, os brancos lhes ganhariam respeito, mas tinha o bom senso de não compartilhar estas lucubrações com o marido. Entre os dois já existiam suficientes motivos de amargura; não valia a pena acrescentar mais um. Ela própria se admirava da maneira como mudara, olhava-se ao espelho e não conseguia encontrar nem rasto de Toypurnia: via apenas uma mulher de olhos duros e lábios apertados. A necessidade de viver fora do seu meio e evitar problemas tinha-a tornado prudente e dissimulada; raras vezes fazia frente ao marido, preferindo agir nas suas costas. Alejandro de La Vega não suspeitava de que ela falava com Diego na sua língua; por isso teve uma desagradável surpresa quando as primeiras palavras que a criança disse foram de índio. Se tivesse sabido que a mulher aproveitava cada uma das suas ausências para o levar a visitar a tribo da mãe, ter-lho-ia proibido.

Quando Regina aparecia na aldeia dos índios com Diego e Bernardo, a avó Coruja Branca abandonava os seus afazeres para se dedicar por inteiro a eles. A tribo tinha-se reduzido com as doenças mortais e os homens recrutados pelos Espanhóis. Restavam apenas umas vinte famílias, cada vez mais miseráveis. A índia enchia as cabeças dos miúdos de mitos e lendas do seu povo, limpava-lhes a alma com o fumo de pasto-doce empregado nas suas cerimónias e levava-os a apanhar plantas mágicas. Mal se conseguiram suster com firmeza nas duas pernas e empunhar um pau, arranjou maneira de os homens os ensinarem a lutar. Aprenderam a pescar, trespassando os peixes com varinhas afiadas, e a caçar. Receberam de presente uma pele de cervo completa, inclusivamente com a cabeça e os cornos, para se cobrirem durante a caça, atraindo assim os veados. Esperavam imóveis até a presa se aproximar e nessa altura disparavam as flechas. A invasão dos Espanhóis tinha tornado os índios submissos, mas na presença de Toypurnia-Regina esquentava-se-lhes de novo o sangue com a lembrança da guerra de honra que ela conduzira. O assombrado respeito que por ela professavam traduzia-se em afeição por Diego e Bernardo. Julgavam que eram ambos seus filhos.

Foi Coruja Branca que levou as crianças a percorrer as grutas próximas da fazenda De La Vega, as ensinou a ler os símbolos esculpidos havia mil anos nas paredes e lhes indicou a forma de os usar para se guiarem no interior. Explicou-lhes que as grutas estavam divididas em Sete Direcções Sagradas, mapa fundamental para as viagens espirituais, pelo que, em tempos antigos, os iniciados ali iam à procura do centro de si próprios, que devia coincidir com o centro do mundo, onde se gera a vida. Quando essa concomitância acontecia, informou-os a avó, surgia uma chama incandescente do fundo da terra, que bailava no ar durante um longo pedaço, banhando o iniciado de luz e calor sobrenatural. Advertiu-os de que as grutas eram templos naturais e estavam protegidas por uma energia superior, pelo que só se devia entrar nelas com disposição pura. «A quem entra com maus propósitos, as grutas engolem-no vivo e depois cospem-lhe os ossos», disse-lhes ela. Acrescentou que, tal como manda o Grande Espírito, se uma pessoa ajudar os outros, se abrir um espaço no corpo para receber bênçãos, essa é a única forma de se preparar para o Okahué.

- Antes de os brancos chegarem, vínhamos a estas grutas procurar harmonia e alcançar o Okahué, mas agora ninguém cá vem - contou-lhes Coruja Branca.

- O que é o Okahué! - perguntou Diego.

- São as cinco virtudes essenciais: honra, justiça, respeito, dignidade e coragem.

- Eu quero-as todas, avó.

- Para isso tens de passar muitas provas sem chorar - redarguiu secamente Coruja Branca.

A partir desse dia, Diego e Bernardo começaram a explorar as grutas sozinhos. Antes que conseguissem memorizar os petróglifos para se guiarem, como a avó lhes indicara, marcavam o caminho com pedrinhas. Inventavam as suas próprias cerimónias, inspiradas no que tinham visto e ouvido na tribo e nas histórias de Coruja Branca.

Pediam ao Grande Espírito dos índios e ao Deus do padre Mendoza que lhes permitissem obter Okahué, mas nunca viram labareda alguma surgir espontaneamente e bailar no ar, como esperavam. Em contrapartida, a curiosidade conduziu-os por uma passagem natural, que acharam por acaso ao mover umas pedras para marcarem uma Roda Mágica no solo, como as que a avó desenhava: trinta e seis pedras em círculo e uma ao centro, donde saíam quatro caminhos rectos. Ao tirarem um pedregulho redondo, que pensavam pôr ao centro da Roda, desmoronaram-se vários, deixando à vista uma pequena entrada. Diego, mais magro e ágil, arrastou-se lá para dentro e descobriu um comprido túnel, que não tardava a alargar-se o suficiente para ele se pôr de pé. Regressaram com velas, picaretas e pás e, nas três semanas subsequentes, ampliaram-no. Um dia, a ponta da picareta de Bernardo abriu um buraco por onde se filtrou um raio de luz e os dois miúdos compreenderam então, encantados, que tinham desembocado em cheio na imensa lareira do salão da fazenda De La Vega. Umas badaladas fúnebres do imponente relógio deram-lhes as boas-vindas. Muitos anos mais tarde, souberam que Regina sugerira a localização da casa precisamente pela sua proximidade das grutas sagradas. A partir dessa descoberta, dedicaram-se a consolidar o túnel com tábuas e pedras, porque as paredes de argila costumavam esmigalhar-se, e, além disso, abriram uma portinhola dissimulada entre os tijolos da lareira para ligar as grutas à casa. A lareira era tão alta, larga e funda, que cabia lá dentro uma vaca de pé, como competia à dignidade daquele salão que nunca se usava para agasalhar hóspedes, mas, de tarde em tarde, se utilizava para as reuniões políticas de Alejandro de La Vega. Os móveis, toscos e incómodos, tal como os do resto da casa, alinhavam-se contra as paredes, como se estivessem à venda, acumulando pó e aquele cheiro a manteiga rançosa dos trastes velhos. O mais visível era um enorme óleo de Santo António, já velho e escanzelado, coberto de pústulas e andrajos, no acto de repelir as tentações de Satanás, um daqueles mamarrachos encomendados por centímetro quadrado a Espanha, muito apreciados na Califórnia. Num canto de honra, onde pudessem ser admirados, expunham-se o bastão e os paramentos de alcaide, que o dono da casa usava nos actos oficiais. Esses actos incluíam desde assuntos importantes, como o traçado das ruas, até às minúcias, como autorizar as serenatas, porque, caso se deixassem ao arbítrio dos senhoritos apaixonados, ninguém poderia dormir em paz na povoação. Pendia do tecto, sobre uma grande mesa de mezquite, um candeeiro de ferro do tamanho de um cedro, com cento e cinquenta velas intactas, porque ninguém tinha coragem de arriar aquela geringonça e acendê-las; das poucas vezes que a sala se abria, usavam candeeiros de azeite. Tão-pouco se acendia a lareira, embora estivesse sempre preparada com vários troncos grossos. Diego e Bernardo adquiriram o costume de encurtar caminho da praia através das grutas. Usavam o túnel secreto para surgirem como fantasmas no escuro buraco da lareira. Tinham jurado, com a solenidade das crianças absortas nas suas brincadeiras, que nunca compartilhariam esse segredo com outros. Também haviam prometido a Coruja Branca que só entrariam nas grutas com bons propósitos e não para traquinices, mas para eles tudo o que lá faziam era parte do treino para alcançarem o sonho do Okahué.

Mais ou menos na mesma época em que Coruja Branca se esmerava em alimentar as raízes indígenas das crianças, Alejandro de La Vega começou a educar Diego como fidalgo. Foi o ano em que chegaram os dois baús que Eulália de Callís mandou de presente da Europa. O antigo governador, Pedro Fages, morrera no México, fulminado por uma das suas fúrias.

Caíra como um fardo aos pés da mulher, no meio de uma discussão, arruinando-lhe para sempre a digestão, porque ela se culpou de o ter matado. Depois de ter passado a vida a discutir com ele, Eulália mergulhou na maior tristeza ao ver-se viúva, porque compreendeu a falta que aquele rotundo marido lhe faria. Sabia que ninguém poderia substituir aquele homem estupendo, caçador de ursos e grande soldado, o único capaz de a enfrentar sem dobrar a cerviz. A ternura que não sentira por ele em vida abateu-se sobre ela como uma praga, ao vê-lo no caixão, e continuou a martirizá-la para sempre com lembranças aperfeiçoadas pelo tempo. Por último, cansada de chorar, seguiu o conselho das suas amizades e do seu confessor e regressou com o filho a Barcelona, a sua cidade natal, onde contava com o apoio da sua fortuna e da sua poderosa família. De vez em quando, lembrava-se de Regina, que considerava sua protegida, e escrevia-lhe em papel egípcio com o seu brasão de armas impresso a ouro. Por uma dessas cartas souberam que o filho dos Fages morrera de peste, deixando Eulália ainda mais desolada. Os dois baús chegaram bastante maltratados, porque tinham saído de Barcelona quase um ano antes e navegado por muitos mares antes de alcançarem Los Angeles. Um estava cheio de vestidos de cerimónia, sapatos de salto alto, chapéus emplumados e bijutarias, que Regina raras vezes teria ocasião de usar. O outro, destinado a Alejandro de La Vega, continha uma capa negra forrada a seda com botões toledanos de prata lavrada, umas garrafas do melhor xerez espanhol, um jogo de pistolas de duelo com incrustações de nácar, um florete italiano e O Tratado de Esgrima e Prontuário do Duelo, do mestre Manuel Escalante. Tal como se explicava na primeira página, era um compêndio das «utilíssimas instruções para nunca vacilar quando haja mister de se bater em lances de honra com sabre espanhol ou florete».

Eulália de Callís não poderia ter mandado um presente mais apropriado. Havia anos que Alejandro de La Vega não praticava a espada, mas graças ao manual pôde refrescar os seus conhecimentos para ensinar esgrima ao filho, que ainda nem se sabia assoar. Mandou fabricar um florete, um colete acolchoado e uma máscara em miniatura para Diego e, a partir desse momento, adquiriu o hábito de treinar com ele um par de horas por dia. Diego demonstrou para a esgrima o mesmo talento natural que tinha para todas as actividades atléticas, mas não a levava a sério, como o pai pretendia; para ele era apenas mais uma brincadeira das muitas que compartilhava com Bernardo. Essa cumplicidade permanente dos pequenos preocupava Alejandro de La Vega, parecia-lhe uma debilidade de carácter do filho, que estava em idade de assumir o seu destino. Sentia afecto por Bernardo e distinguia-o entre os índios da criadagem - fosse como fosse, tinha-o visto nascer -, mas não esquecia as diferenças que separam as pessoas. Sem essas diferenças, impostas por Deus com um fim claro, reinaria o caos neste mundo, sustentava. O seu exemplo favorito era a França, onde estava tudo de pernas para o ar por causa da execrável revolução. Nesse país já não se sabia quem era quem, o poder passava de mão em mão como uma moeda. Alejandro rezava para que uma coisa assim nunca acontecesse em Espanha. Apesar de uma sucessão de monarcas ineptos ir mergulhando, irremissivelmente, o império na ruína, nunca pusera em dúvida a divina legitimidade da monarquia, tal como não questionava a ordem hierárquica, na qual ele se formara, e a superioridade absoluta da sua raça, da sua nação e da sua fé. Opinava que Diego e Bernardo tinham nascido diferentes, nunca seriam iguais e quanto mais cedo o compreendessem, menos problemas teriam no futuro. Bernardo tinha-o assumido sem que ninguém lho repisasse, mas era um assunto que arrancava lágrimas a Diego quando o pai lho lembrava. Longe de secundar o marido nos seus propósitos didácticos, Regina continuava a tratar Bernardo como se fosse também seu filho. Na sua tribo ninguém era superior a outro por nascimento, somente por coragem e sabedoria e, segundo ela, ainda era muito cedo para saber qual dos dois rapazes era o mais corajoso ou o mais sábio.

Diego e Bernardo só se separavam à hora de dormir, quando cada um ia para a cama com a mãe. Foram os dois mordidos pelo mesmo cão, picados pelas abelhas do mesmo cortiço e apanharam sarampo ao mesmo tempo. Quando um fazia uma travessura, ninguém se dava ao trabalho de identificar o culpado; obrigavam-nos a agacharem-se lado a lado, aplicavam-lhes o mesmo número de chibatadas no traseiro e eles sofriam o castigo sem protestar, porque lhes parecia de uma justiça sem par. Todos, menos Alejandro de La Vega, os consideravam irmãos, não só porque eram inseparáveis, como porque, à primeira vista, se pareciam um com o outro. O sol queimara-lhes a pele do mesmo tom de madeira; Ana fazia-lhes calças iguais de linho; Regina cortava-lhes o cabelo ao estilo dos índios. Era preciso olhar para eles com atenção para ver que Bernardo tinha nobres feições de índio, ao passo que Diego era alto e delicado, com os olhos cor de caramelo da mãe. Nos anos subsequentes aprenderam a manejar o florete segundo as últimas instruções do mestre Escalante, a galopar sem arreios, a usar o chicote e o laço; a pendurarem-se no beiral da casa pelos pés, como morcegos. Os índios ensinaram-nos a mergulhar no mar para arrancar mariscos das rochas, a seguir uma presa durante dias até lhe dar caça, a fabricar arcos e flechas, a suportar a dor e o cansaço sem queixumes.

Alejandro de La Vega levava-os ao rodeo na época de marcar o gado, cada um com a sua reata ou laço, para ajudarem na tarefa. Era a única ocupação manual de um fidalgo, mais desporto que trabalho. Os senhores da região juntavam-se com os filhos, vaqueiros e índios, cercavam os animais, separavam-nos e punham-lhes as suas marcas, que depois se registavam num livro para evitar confusões e roubos. Era também o tempo da matanza, quando era preciso recolher as peles, salgar a carne e preparar a banha. Os nuqueadores, fabulosos cavaleiros capazes de matar de uma punhalada na nuca um touro em plena corrida, eram os reis do rodeo e costumavam ser contratados para essa faina com um ano de antecedência. Vinham do México e das pradarias americanas com os seus cavalos adestrados e as suas adagas de duplo gume. À medida que as reses tombavam, caíam-lhes em cima os peladores para lhes esfolarem a pele, que tiravam inteira em poucos minutos, os tasajeros, encarregados de cortar a carne, e, por último, as índias, cuja humilde tarefa era juntar a banha, derretê-la em enormes caldeiros e depois armazená-la em odres feitos de bexigas, tripas ou peles cosidas. Era também a elas que competia curtir as peles, raspando-as com pedras afiadas, num interminável labor feito de joelhos. O cheiro do sangue enlouquecia o gado e nunca faltavam cavalos estripados e um ou outro vaqueiro pisado ou morto por uma cornada. Havia que ver o monstro de milhares de cabeças a resfolegar em corrida num inferno de pó suspenso no ar; havia que admirar os vaqueiros, com os seu chapéus brancos, colados aos seus corcéis, com os braços a bailar por cima das cabeças e as refulgentes facas à cinta; havia que ouvir o trepidar do gado no solo, os gritos dos homens exaltados, os relinchos dos cavalos, os latidos dos cães; havia que sentir a exalação da espuma nos animais, o suor dos vaqueiros, o cheiro tépido e secreto das índias, que perturbava os homens para sempre.

No final do rodeo, a povoação comemorava o trabalho bem executado numa farra de vários dias, na qual participavam pobres e ricos, brancos e índios, jovens e os poucos velhos da colónia. Sobrava comida e álcool, dançava-se até os pares caírem aturdidos ao som dos músicos vindos do México, cruzavam-se apostas em combates de homens, de ratazanas, de galos, de cães, de ursos com touros. Podia-se perder numa noite o que se ganhara no rodeo. A festa culminava ao terceiro dia com uma missa celebrada pelo padre Mendoza, que incitava os bêbedos com um chicote rumo à igreja e obrigava, de mosquete na mão, os sedutores das donzelas neófitas a casarem-se, porque tinha feito as contas de que, nove meses depois de cada rodeo, nascia um ror de crianças sem pai conhecido.

Durante um ano de seca foi preciso sacrificar os cavalos selvagens para deixar o pasto ao gado. Diego acompanhou os vaqueiros, mas desta vez Bernardo recusou-se a ir com ele, porque sabia do que se tratava e não podia suportá-lo. Cercavam as manadas de cavalos, espantavam-nas com pólvora e cães, perseguiam-nas a todo o galope, conduzindo-as até aos despenhadeiros, onde se precipitavam numa cega debandada. Caíam no vazio às centenas, uns por cima dos outros, partindo a cabeça ou quebrando as patas no fundo do barranco. Os mais afortunados morriam com o embate; outros agonizavam durante dias numa nuvem de moscas e numa fetidez de carne macerada que atraía ursos e abutres.

Duas vezes por semana, Diego tinha de empreender a viagem até à Missão San Gabriel para receber rudimentos de escolaridade do padre Mendoza. Bernardo acompanhava-o sempre e o missionário acabou por o aceitar na aula, apesar de achar desnecessário e até perigoso educar demasiado os índios, porque lhes metia ideias atrevidas no cérebro. O miúdo não possuía a mesma rapidez mental de Diego e costumava ficar para trás, contudo era obstinado e não desistia, embora passasse as noites a queimar as pestanas à luz das velas. Tinha um carácter reservado e quieto, que contrastava com a alegria explosiva de Diego. Secundava o amigo com uma lealdade inquestionável em todas as travessuras que a este ocorriam e, a dar-se o caso, resignava-se sem estardalhaços a ser castigado por uma coisa que não fora ideia sua, mas sim de Diego. Desde que se pudera ter de pé assumira o papel de proteger o seu irmão de leite, que julgava destinado a grandes proezas, como os heróicos guerreiros do repertório mitológico de Coruja Branca.

Diego, para quem estar sossegado e de portas adentro era um tormento, arranjava amiúde maneira de se escapulir da tutela do padre Mendoza e sair para o ar livre. As lições entravam-lhe por um ouvido e recitava-as à pressa, antes de lhe saírem pelo outro. Com a sua desenvoltura conseguia enganar o padre Mendoza, mas depois tinha de ensiná-las letra por letra a Bernardo e, assim, só de as repetir, acabava por aprendê-las. Estava tão empenhado em brincar, como Bernardo em estudar. Ao cabo de muito braço-de-ferro chegaram a um acordo, segundo o qual instruiria Bernardo a troco de este praticar o laço, o chicote e a espada com ele.

- Não vejo para que é que nos havemos de esmerar a aprender coisas que não nos servirão para nada - reclamou Diego, um dia que estava a repetir a mesma lengalenga em latim havia horas.

- Tudo serve, mais tarde ou mais cedo - retrucou Bernardo. - É como a espada. Provavelmente, nunca serei um dragão, mas não se perde nada em aprender a usá-la.

Muito poucos sabiam ler e escrever na Alta Califórnia, salvo os missionários, que, sendo homens rudes, quase todos de origem camponesa, tinham, pelo menos, um verniz de cultura. Não havia livros disponíveis, e nas raras ocasiões em que chegava uma carta, era garantido que continha uma má notícia, de modo que o destinatário não se apressava demasiado a levá-la a um frade para lha decifrar; porém, Alejandro de La Vega tinha a mania da educação e lutou durante anos para trazer um professor do México. Ao tempo, Los Angeles era algo mais que a povoação de quatro ruas que ele vira nascer; tinha-se convertido em passagem obrigatória dos viajantes, em lugar de descanso para os marinheiros dos navios mercantes, em centro de comércio da província. Monterrey, a capital, ficava tão longe que a maioria dos assuntos de governo se debatia em Los Angeles. À parte as autoridades e os oficiais militares, a população era mista e chamava-se a si própria gente de razão, para se distinguir dos índios puros e dos serviçais. Classe à parte eram os espanhóis de bom sangue. A povoação já contava com praça de touros e um flamante prostíbulo composto por três mestiças de virtude negociável e uma mulata opulenta do Panamá, cujo preço era fixo e bastante elevado. Havia um edifício especial para as reuniões do alcaide e dos regedores, que também servia de tribunal e teatro, onde se costumavam apresentar zarzuelas, obras morais e actos patrióticos. Na Plaza de Armas construiu-se um coreto para músicos, que animavam as tardes à hora do passeio, quando os jovens solteiros de ambos os sexos, vigiados pelos pais, se exibiam em grupos, as meninas caminhando num sentido e os rapazes no contrário. Hotel, em contrapartida, ainda não existia; na realidade, passariam dez anos antes que se criasse o primeiro; os viajantes alojavam-se nas casas abastadas, onde nunca faltavam comida e camas para receber os que solicitassem hospitalidade. Em vista de tanto progresso, Alejandro de La Vega achou indispensável que também houvesse uma escola na povoação, embora ninguém compartilhasse a sua inquietude. Com o seu próprio dinheiro, sozinho e a pulso, conseguiu fundar a primeira da província, que por muitos anos havia de ser a única.

A escola abriu as portas precisamente quando Diego fez nove anos e o padre Mendoza anunciou que já lhe tinha ensinado tudo o que sabia, menos dizer missa e exorcizar demónios. Era um barracão tão escuro e poeirento como a prisão, situado numa esquina da praça principal, munido de uma dúzia de bancos de ferro e de um chicote de nove rabos pendurado ao pé do quadro. O professor calhou ser um daqueles homenzinhos insignifícantes que o menor pedaço de autoridade converte em seres brutais. Diego teve o azar de ser um dos seus primeiros alunos, juntamente com um punhado de outros rapazes, rebentos das famílias veneráveis da povoação. Bernardo não pôde frequentá-la, apesar de Diego ter suplicado ao pai que lhe permitisse estudar. Alejandro de La Vega achou louvável a ambição de Bernardo, mas decidiu que não se podiam abrir excepções, porque, se fosse aceite, teria de se dar entrada a outros como ele e o professor anunciara, com meridiana clareza, a sua intenção de se ir embora, caso algum índio assomasse o nariz ao seu «digno estabelecimento do saber», como lhe chamava. A necessidade de ensinar Bernardo, mais que o chicote de nove rabos, motivou Diego a prestar atenção nas aulas.

Entre os alunos contava-se Garcia, filho de um soldado espanhol e da dona da taberna, um miúdo sem grandes luzes, gorducho, com o pé chato e um sorriso apatetado, vítima favorita do professor e dos outros alunos, que o atormentavam sem trégua. Por um anseio de justiça, que ele próprio não conseguia explicar, Diego converteu-se no seu defensor, conquistando a admiração fanática do gordo.

Nas fadigas de cultivar a terra, tocar o gado e cristianizar os índios, o padre Mendoza foi passando os anos sem arranjar o tecto da igreja, danificado desde o ataque de Toypurnia. Nessa ocasião haviam travado os índios com uma explosão de pólvora, que sacudira o edifício até à medula. Ao elevar a hóstia para a consagrar na missa, o seu olhar poisava invariavelmente nas vigas periclitantes e, alarmado, o missionário prometia a si mesmo repará-las antes que se desmoronassem sobre a sua pequena congregação, mas depois tinha de cuidar de outros assuntos e esquecia os seus propósitos até à missa seguinte.

Entretanto, as térmitas foram devorando as madeiras e, por fim, ocorreu o acidente que o padre Mendoza tanto temia. Por sorte não sucedeu quando o recinto estava cheio, o que teria sido catastrófico, mas sim num dos muitos tremores de terra que costumavam abalar a terra na zona: por alguma coisa o rio se chamava Jesus de los Temblores. O tecto caiu em cima de uma única vítima, o padre Alvear, santo homem que viera do Peru para conhecer a Missão San Gabriel. O estrépito do desmoronamento e a nuvem de pó atraíram os neófitos, que apareceram a correr e de imediato lançaram mãos à tarefa de afastar os escombros para desenterrarem o desditoso visitante. Acharam-no esmigalhado como uma barata debaixo de uma viga mestra. Segundo toda a lógica devia ter morrido, porque demoraram uma boa parte da noite a resgatá-lo, enquanto o pobre homem se esvaía em sangue sem consolo; mas Deus fez um milagre, como explicou o padre Mendoza, e quando, por fim, o extraíram das ruínas ainda respirava. Bastou uma olhadela ao padre Mendoza para se aperceber de que os seus escassos conhecimentos de medicina não conseguiriam salvar o ferido, por muito que o poder divino ajudasse. Sem mais delongas mandou um neófito com dois cavalos buscar Coruja Branca. Nesses anos tinha podido verificar que a veneração dos índios por aquela mulher era plenamente justificada.

Por casualidade, Diego e Bernardo chegaram à missão no dia seguinte ao terramoto, conduzindo uns corcéis de pura raça que Alejandro de La Vega tinha mandado de presente aos missionários. Como ninguém saísse a recebê-los nem a agradecer-lhes, porque toda a gente estava atarefada a recolher os destroços do sismo e a cuidar da agonia do padre Alvear, os miúdos amarraram os cavalos e ficaram a participar no inédito espectáculo. Foi assim que estiveram presentes quando, por fim, chegou Coruja Branca a galope, seguindo o neófito que fora procurá-la. Apesar do seu rosto sulcado por novas rugas e da sua cabeleira ainda mais branca, mudara muito pouco naqueles anos; era a mesma mulher forte e extremamente jovem que comparecera dez anos atrás na fazenda De La Vega para salvar Regina da morte. Desta vez vinha numa missão similar e também trazia o seu saco de plantas medicinais. Como a índia se negava a aprender castelhano e o vocabulário do padre Mendoza na língua dela era muito reduzido, Diego ofereceu-se para traduzir. Tinham posto o paciente em cima da grande mesa de madeira por encerar da sala de jantar e à volta dela haviam-se congregado os habitantes de San Gabriel. Coruja Branca examinou atentamente as feridas, que o padre Mendoza ligara, mas não se atrevera a coser, porque por baixo estavam os ossos feitos em pedaços. A curandeira apalpou com os seus dedos experimentados o corpo inteiro e fez um inventário das reparações que se deviam efectuar.

- Diz ao branco que tudo tem remédio, menos esta perna, que está podre. Primeiro corto-a, e depois trato do resto - anunciou ela ao neto.

Diego traduziu sem tomar a precaução de baixar a voz, porque, fosse como fosse, o padre Alvear estava quase defunto, mas, mal repetiu o diagnóstico da avó, o moribundo abriu de par em par uns olhos de fogo.

- Prefiro morrer de uma vez, maldição - disse, com a maior certeza.

Coruja Branca ignorou-o, ao mesmo tempo que o padre Mendoza abria à força a boca do pobre homem, como fazia com as crianças que se negavam a beber leite, e lhe introduzia o famoso funil. Por ali lhe enfiaram um par de colheradas de um espesso xarope cor de óxido, que Coruja Branca extraiu do saco. No que demoraram a lavar com lixívia uma serra de cortar madeira e a preparar uns trapos para ligadura, o padre Alvear estava mergulhado num sono profundo, do qual viria a acordar dez horas mais tarde, lúcido e sereno, quando o coto da perna já deixara de sangrar havia um pedaço.

Coruja Branca tinha remendado o resto do corpo com uma dezena de costuras e amortalhara-o em teias de aranha, unguentos misteriosos e panos. Por seu turno, o padre Mendoza determinou que os neófitos se revezassem para rezar sem pausa, dia e noite, até que o enfermo se curasse. O método deu resultado. Contra todas as expectativas, o padre Alvear restabeleceu-se com bastante rapidez e sete semanas mais tarde, transportado numa liteira, pôde regressar de barco ao Peru.

Bernardo nunca esqueceria o espanto da perna amputada do padre Alvear, e Diego nunca esqueceria o fabuloso poder do xarope da sua avó. Nos meses subsequentes, visitou-a amiúde na sua aldeia para lhe pedir que lhe revelasse o segredo daquela poção, mas ela negou-se uma e outra vez com o argumento lógico de que um remédio tão mágico não podia cair nas mãos de um miúdo travesso, que com certeza a utilizaria para um mau propósito. Num impulso, como tantos que depois pagava com tareias, Diego roubou uma cabaça com o elixir do sono, prometendo a si mesmo que não o utilizaria para amputar membros humanos, mas sim para um bom fim; porém, mal teve o tesouro em seu poder, começou a planear formas de tirar proveito dele. A ocasião apresentou-se-lhe num quente meio-dia de Junho, quando voltava com Bernardo de nadar, único desporto em que este lhe levava folgada vantagem, porque tinha mais resistência, calma e força. Enquanto Diego se esgotava dando ansiosas pancadas contra as ondas, Bernardo mantinha durante horas o ritmo pausado da respiração e das braçadas, deixando-se levar pelas correntes misteriosas do fundo do mar. Se os golfinhos apareciam, não tardavam a rodear Bernardo, como os cavalos faziam, mesmo os mais indómitos. Quando mais ninguém se atrevia a aproximar-se de um potro embravecido, ele abeirava-se dele com cuidado, colava-lhe a cara à orelha e murmurava-lhe palavras secretas, até o aplacar. Não havia em toda a zona quem domasse mais rapidamente e melhor um potro do que aquele rapaz índio. Naquela tarde ouviram de longe os gritos de terror de Garcia, torturado uma vez mais pelos ferrabrases da escola. Eram cinco, guiados por Carlos Alcázar, o aluno mais velho e mais temível de todos. Tinha a capacidade intelectual de um piolho, mas chegava-lhe para inventar métodos de crueldade sempre inéditos. Desta vez, tinham despido Garcia e haviam-no atado a uma árvore e untado de cima a baixo com mel. Garcia berrava a plenos pulmões, enquanto os seus cinco verdugos observavam fascinados a nuvem de mosquitos e as filas de formigas que começavam a atacá-lo. Diego e Bernardo fizeram uma rápida avaliação das circunstâncias e compreenderam que estavam em indubitável desvantagem. Não podiam bater-se com Carlos e os seus sequazes; tão-pouco era questão de irem procurar ajuda, porque teriam feito papel de cobardes. Diego aproximou-se deles sorrindo, enquanto nas suas costas Bernardo cerrava os dentes e os punhos.

- Que estão a fazer? - perguntou, como se não fosse evidente.

- Nada que te interesse, idiota, a menos que queiras acabar como o Garcia - redarguiu Carlos, acompanhado pelas gargalhadas do seu grupo.

- Não me interessa nada, mas pensava usar este gordo como carniça para ursos. Seria uma pena perder essa boa banha nas formigas - disse Diego, indiferente.

- Urso? - grunhiu Carlos.

- Troco-te o Garcia por um urso - propôs Diego com ar lânguido, enquanto limpava as unhas com um palito.

- Onde vais tu buscar um urso? - perguntou o ferrabrás.

- Isso é cá comigo. Penso trazê-lo vivo e com um chapéu posto. Posso oferecer-to, se é isso que queres, Carlos, mas para isso preciso do Garcia - volveu Diego.

Os rapazes conferenciaram em murmúrios, enquanto Garcia suava gelo e Bernardo coçava a cabeça, calculando que, desta vez, Diego tinha ido longe de mais. O método habitual para apanhar ursos vivos, que se usavam para as lutas com touros, requeria força, destreza e bons cavalos. Vários cavaleiros experientes laçavam o animal e seguravam-no com os corcéis, enquanto outro vaqueiro, que servia de engodo, se punha à frente, provocando o. Conduziam-no assim a um curral, mas a diversão costumava custar cara, porque às vezes o urso, capaz de correr mais depressa do que qualquer cavalo, conseguia soltar-se e lançava-se contra quem estivesse mais próximo.

- Quem é que te vai ajudar? - perguntou Carlos.

- O Bernardo.

- Esse índio bronco?

- O Bernardo e eu somos capazes de o fazer sozinhos, desde que tenhamos o Garcia como isco - declarou Diego.

Em dois minutos fecharam o acordo e os desalmados foram-se embora, enquanto Diego e Bernardo soltavam Garcia e o ajudavam a tirar o mel e o ranho no rio.

- Como é que vamos caçar um urso vivo? - perguntou Bernardo.

- Ainda não sei, tenho de pensar - respondeu Diego, e o irmão não teve dúvida de que acharia a solução.

O resto da semana passou-se a preparar os elementos necessários para a travessura que iam cometer. Encontrar um urso era o menos, pois estes juntavam-se às dezenas nos sítios onde matavam as reses, atraídos pelo cheiro da carniça, mas não se podiam confrontar com mais do que um, sobretudo se se tratasse de fêmeas com crias. Tinham de encontrar um urso solitário, o que tão-pouco se tornava difícil, porque abundavam no Verão. Garcia declarou-se doente e passou vários dias sem sair de casa, mas Diego e Bernardo obrigaram-no a acompanhá-los com o argumento imbatível de que, se não o fizesse, iria parar novamente às mãos da seita de Carlos Alcázar. Gracejando, Diego disse-lhe que, na verdade, iam utilizá-lo como engodo, mas ao ver que os joelhos de Garcia fraquejavam, deu-lhe parte do plano traçado com Bernardo.

Os três rapazitos anunciaram às mães que passariam a noite na missão, onde o padre Mendoza celebrava, como todos os anos, a festa de São João. Saíram muito cedo numa carroça puxada por um par de mulas velhas, munidos das suas reatas. Garcia ia morto de medo, Bernardo preocupado e Diego a assobiar. Assim que deixaram para trás a casa da fazenda e abandonaram a estrada principal, internaram-se no Sendero de las Astillas que os índios acreditavam estar assombrado. A idade das mulas e as irregularidades do terreno obrigavam-nos a avançar com parcimónia, o que lhes dava tempo para se guiarem pelas pegadas no solo e pelas arranhaduras nas cascas das árvores. Estavam a chegar à serração de Alejandro de La Vega, que fornecia madeira para as casas e barcos em reparação, quando os zurros das mulas espavoridas avisaram da presença de um urso. Os lenhadores tinham ido à festa de São João e não se via vivalma nas proximidades, apenas as serras e machados abandonados e as pilhas de troncos em torno de uma rústica construção de tábuas. Desatrelaram as mulas e levaram-nas aos puxões até ao barracão, para as proteger; depois, Diego e Bernardo puseram-se a instalar a sua armadilha, enquanto Garcia vigiava a curta distância do refúgio. Tinha trazido uma abundante merenda e, como os nervos lhe davam fome, não parava de mastigar desde que haviam saído de manhã. Entrincheirado no seu esconderijo, observou os outros, que passaram cordas aos ramos mais grossos de um par de árvores, colocaram os laços, como tinham visto fazer aos vaqueiros, e ao meio acomodaram o melhor possível uns ramos cobertos de pele de cervo, que usavam quando iam caçar com os índios. Debaixo da pele puseram a carne fresca de um coelho e uma bola de sebo embebido em xarope de dormideira.

A seguir, foram para o barracão compartilhar a merenda de Garcia.

Os compinchas tinham-se preparado para passarem ali um par de dias, mas não tiveram de aguardar tanto, porque, pouco mais tarde, apareceu o urso, anunciado pelos zurros das mulas. Era um macho velho bastante grande. Avançava como uma massa trémula de banha e pele escura, bamboleando-se de um lado para o outro com inesperada agilidade e graça. Os rapazes não se deixaram enganar pela atitude de mansa curiosidade da fera, sabendo do que era capaz, e rezaram para que a brisa não lhe levasse o cheiro humano e o das mulas. Se o urso investisse contra o barracão, a porta não resistiria. O animal deu um par de voltas pelos arredores e de repente viu aquilo que parecia um veado imóvel. Ergueu-se sobre duas patas e levantou os braços; nessa ocasião as crianças puderam vê-lo inteiro: tratava-se de um gigante de dois metros de altura. Soltou um grunhido pavoroso, esbracejou de modo ameaçador e, seguidamente, precipitou-se com a imensidade do seu peso sobre a pele, esmagando a ligeira armação que a sustinha. Viu-se estatelado no chão sem saber o que tinha acontecido, mas recompôs-se de imediato e pôs-se de pé. Voltou a atacar o falso veado com as garras e então descobriu a carniça oculta por baixo, devorando-a com duas dentadas. Estraçalhou a pele à procura de algum alimento mais consistente e, como não o encontrasse, voltou a pôr-se de pé, confuso. Deu um passo em frente e pisou completamente os laços, activando a armadilha. Num instante, as cordas retesaram-se e o urso ficou pendurado de cabeça para baixo entre as duas árvores. Os rapazes celebraram em altos gritos um triunfo muito breve, porque o peso do animal a baloiçar quebrou os ramos. Espantados, Diego, Bernardo e Garcia entrincheiraram-se no barracão com as mulas, procurando alguma coisa com que se defenderem, enquanto lá fora o urso, esparramado no chão, procurava soltar a pata direita do laço, que ainda o prendia a um dos ramos quebrados da árvore.

Debateu-se durante um bom pedaço, cada vez mais enredado e iracundo, e, como não conseguisse soltar-se, avançou arrastando o ramo.

- E agora? - perguntou Bernardo, com fingida calma.

- Agora esperamos - respondeu Diego.

Ao notar uma coisa quente entre as pernas e ver que a mancha se estendia pelas calças, Garcia perdeu a cabeça e pôs-se a soluçar a plenos pulmões. Bernardo saltou sobre ele e tapou-lhe a boca, mas já era tarde. O urso tinha-os ouvido. Virou-se para o barracão e deu umas palmadas na porta, sacudindo de tal forma a frágil construção que se desprenderam umas tábuas do tecto. Lá dentro, Diego esperava frente à porta com o chicote na mão e Bernardo brandia uma vareta de ferro que achara no barracão. Para sorte deles, a fera estava magoada pela queda da árvore e constrangida pelo ramo atado à pata. Desferiu um último murro na porta, sem muito entusiasmo, e afastou-se cambaleando para o bosque, mas não chegou longe, porque o ramo se prendeu no meio de uns troncos da serração, detendo-o de chofre. As crianças já não o conseguiam ver, mas ouviram os seus rugidos desesperados durante um bom bocado, até que se foram espaçando em suspiros resignados e por último cessaram de todo.

- E agora? - voltou a perguntar Bernardo.

- Agora é preciso pô-lo na carroça - anunciou Diego.

- Estás doido? Não podemos sair daqui! - bradou Garcia, agora com as calças borradas e fétidas.

- Não sei durante quanto tempo ficará a dormir. É muito grande e suponho que a poção de sono da minha avó está calculada para o tamanho de um homem. Temos de o fazer rapidamente, porque se acordar estamos tramados - ordenou Diego.

Bernardo seguiu-o sem pedir mais explicações, como fazia sempre, mas Garcia ficou para trás, encolhido no charco da sua própria porcaria e a choramingar com o pouco fôlego que lhe restava.

Encontraram o urso de costas, tal como tinha caído com a martelada da droga, a curta distância do armazém. O plano de Diego contemplava que o animal adormecesse pendurado na armadilha entre as árvores, para que eles pudessem pôr a carroça por baixo e deixá-lo cair. Agora teriam de içar o gigante para a carroça. Tentearam-no de longe com um pau e, como não se movesse, atreveram-se a aproximar-se. Era mais velho do que pensavam: faltavam-lhe duas garras numa das patas, tinha vários dentes quebrados, estava salpicado de peladas e antigas cicatrizes. O hálito de dragão deu-lhes na cara, mas estava fora de causa retroceder; puseram-se a amarrar-lhe o focinho e as quatro patas com cordas. Ao princípio improvisavam precauções, que teriam sido inúteis se a fera acordasse, mas quando se convenceram de que estava como morta, apressaram-se. Não tardou que tivessem o urso imobilizado; foram então buscar as pobres mulas, paralisadas de terror. Bernardo usou com elas o método de sussurrar-lhes ao ouvido, como fazia com os cavalos bravos, e assim obedeceram-lhe. Garcia aproximou-se com cautela, depois de se certificar de que o ressonar do urso era legítimo, mas tiritava e estava tão hediondo que o mandaram lavar-se e enxaguar as calças num regato. Bernardo e Diego usaram o método habitual dos vaqueiros para içar tonéis: prenderam duas reatas num extremo da carroça inclinada, enfiaram-nas por baixo do animal, passaram-nas por cima em sentido contrário e depois prenderam as mulas aos extremos e fizeram-nas puxar. À segunda tentativa conseguiram movê-lo rodando e assim o foram içando aos poucos para a carroça. Ficaram esbaforidos devido ao brutal esforço, mas tinham conseguido o seu propósito. Abraçaram-se dando saltos de lunáticos, orgulhosos como nunca antes haviam estado. Atrelaram as mulas à carroça e dispuseram-se a regressar à povoação; entretanto, Diego foi buscar um tarro com alcatrão, que tinha arranjado nos depósitos de pez próximos da sua casa, e com isso colou um chapéu mexicano à cabeça do urso.

Estavam exaustos, ensopados de suor e impregnados da pestilência da fera; por seu turno, Garcia era um feixe de nervos, mal se conseguia ter de pé, ainda cheirava a chiqueiro e tinha a roupa encharcada. A tarefa tinha-lhes ocupado grande parte da tarde, mas quando, por fim, fizeram as mulas meter pelo Sendero de las Astillas, ainda lhes restava um par de horas de luz. Alargaram o passo e conseguiram chegar ao Camino Real, à justa antes de escurecer; dali em diante as estafadas mulas continuaram por instinto, enquanto o urso resfolegava na sua prisão de cordas. Tinha acordado do letargo produzido pela droga de Coruja Branca, mas ainda estava confundido.

Quando entraram em Los Angeles era noite cerrada. À luz de um par de candeias de azeite soltaram as patas traseiras do animal, mas deixaram-lhe as dianteiras e o focinho amarrados e açularam-no até que ele saiu da carroça, se pôs de pé, tonto, mas com a fúria intacta. Começaram a chamar aos gritos; não tardou que assomassem pessoas das suas casas com candeias e archotes. A rua encheu-se de curiosos a admirarem o mais insólito espectáculo: Diego de La Vega vinha à frente, puxando com um laço um urso de tamanho descomunal, que se bamboleava em duas patas com um chapéu na cabeça, enquanto Bernardo e Garcia o espicaçavam por trás. Os aplausos e aclamações ficariam durante semanas a soar aos ouvidos dos três rapazes. Por essa altura, já haviam tido tempo de sobra para medirem a gravidade da sua imprudência e recomporem-se do merecido castigo que sofreram. Nada conseguiu ofuscar a radiosa vitória daquela aventura. Carlos e os seus sequazes não voltaram a incomodá-los.

A proeza do urso, exagerada e adornada até ao impossível, passou de boca em boca e, com o tempo, atravessou o estreito de Bering, levada pelos comerciantes de peles de lontra, e chegou até à Rússia. Diego, Bernardo e Garcia não se salvaram da tareia aplicada pelos pais, mas ninguém lhes pôde discutir o título de campeões. Abstiveram-se, claro está, de mencionar a poção de dormideira de Coruja Branca. O seu troféu esteve num curral, exposto às zombarias e pedradas dos curiosos durante uns dias, enquanto procuravam o melhor touro para o combater, mas Diego e Bernardo tiveram pena do urso prisioneiro e na noite anterior ao combate puseram-no em liberdade. Em Outubro, quando ainda não se falava de outra coisa na povoação, os piratas atacaram. Apareceram de súbito, com a experiência de muitos anos de maldade, aproximando-se da costa, sem serem vistos, num bergantim armado de catorze canhões ligeiros, que tinha feito a viagem da América do Sul, desviando-se pelo Havai para aproveitar os ventos que os impeliram até à Alta Califórnia. Andavam à caça de navios carregados de tesouros da América, que se destinavam aos cofres reais de Espanha. Raras vezes atacavam em terra firme, porque as cidades importantes se podiam defender, enquanto as outras eram demasiado pobres; contudo, havia uma eternidade que andavam a navegar sem sorte e a tripulação precisava de água fresca e de queimar um pouco de energia. O comandante decidiu visitar Los Angeles, embora não esperasse encontrar lá nada de interessante: apenas alimentos, álcool e motivo de diversão para os seus rapazes. Contavam que não houvesse resistência, porque os precedia a má fama que eles próprios se encarregavam de pôr a correr, histórias horripilantes de sangue e cinza, de como cortavam os homens em pedaços, estripavam as mulheres grávidas, enfiavam as crianças em ganchos e as penduravam nos mastros como troféus. Convinha-lhes a reputação de bárbaros. Nos assaltos bastava anunciarem-se com uns quantos tiros de canhão ou aparecerem soltando uivos, para que a população fugisse a sete pés, e assim eles recolhiam o saque sem o incómodo de lutar. Largaram ferro e prepararam-se para atacar. Os canhões do bergantim tornavam-se neste caso inúteis, porque não alcançavam Los Angeles. Desembarcaram em lanchas, com as facas entre os dentes e os sabres nas mãos, como uma horda de demónios. A meio caminho toparam com a fazenda De La Vega. A grande casa de adobe, com os seus telhados vermelhos, as suas buganvílias arroxeadas a trepar pelas paredes, o seu jardim de laranjeiras, o seu ar aprazível de prosperidade e paz, tornou-se irresistível para aqueles grosseiros navegantes, que se alimentavam havia muito tempo de água esverdeada, hedionda carne seca, bolachas bichosas e duras como pedra calcinada. Nada conseguiu o comandante bramando que o objectivo era a povoação: os seus homens precipitaram-se sobre a fazenda, pisando os cães e disparando à queima-roupa contra o par de índios jardineiros que tiveram o azar de sair-lhes ao caminho. Nesse momento, Alejandro de La Vega encontrava-se na Cidade do México, a comprar móveis mais graciosos que os mamarrachos da sua casa, veludo dourado para fazer cortinas, talheres de prata maciça, louça inglesa e copos de cristal da Áustria. Com esse presente de faraó pensava comover Regina, para ver se, de uma vez por todas, deixava os seus hábitos de índia e se inclinava para o refinamento europeu que ele pretendia para a sua família. Os seus negócios iam de vento em popa e podia dar a si próprio o prazer de viver pela primeira vez como competia a um homem da sua linhagem. Não podia suspeitar que, enquanto ele regateava o preço dos tapetes turcos, a sua casa era violada por trinta e seis desalmados.

Regina acordou com os estrepitosos latidos dos cães. O seu quarto ficava num pequeno torreão, única audácia na arquitectura chã e pesada da casa. A luz tímida daquela hora matinal iluminava o céu de tons alaranjados e entrava-lhe pela janela, que não tinha cortinas ou persianas.

Embrulhou-se num xaile e saiu descalça à varanda para ver o que se passava com os cães, precisamente quando os primeiros assaltantes forçavam o portão de madeira do jardim. Não lhe ocorreu que fossem piratas, porque nunca os tinha visto, mas não se deteve a averiguar a sua identidade. Diego, que aos dez anos ainda compartilhava a cama com a mãe quando o pai não estava, viu-a passar a correr em camisa de dormir. Regina agarrou de passagem num sabre e numa adaga pendurados na parede, que não eram usados desde que o marido deixara a carreira militar, mas se mantinham afiados, e desceu a escada chamando a criadagem aos gritos. Diego saltou também da cama e seguiu-a. As portas da casa eram de carvalho e na ausência de Alejandro de La Vega trancavam-se por dentro com uma pesada barra de ferro. O ímpeto dos piratas embateu contra esse obstáculo invulnerável, o que deu tempo a Regina de distribuir as armas de fogo guardadas nos baús e organizar a defesa.

Diego, ainda por espertar de todo, viu-se perante uma mulher desconhecida, que apenas tinha um vago ar familiar. A mãe transformara-se em poucos segundos em Filha de Lobo. Tinha-se-lhe eriçado o cabelo, um brilho feroz nos olhos dava-lhe um aspecto de alucinada e mostrava os dentes, deitando espuma pela boca como um cão raivoso, enquanto ladrava ordens aos empregados em língua de índios. Brandia um sabre numa mão e uma adaga na outra quando as persianas que protegiam as janelas do andar principal cederam e os primeiros piratas irromperam na casa. Apesar do estrondo do assalto, Diego conseguiu ouvir um alarido, que mais pareceu de júbilo que de terror, sair da terra, percorrer o corpo da mãe e fazer estremecer as paredes. A visão daquela mulher coberta apenas pelo fino tecido de uma camisa de dormir, que lhes saía ao encontro arvorando duas armas brancas com um ímpeto impossível em alguém do seu tamanho, surpreendeu os assaltantes por uns segundos. Isso deu tempo aos empregados que dispunham de armas para dispararem.

Dois flibusteiros caíram de bruços com os fogachos e um terceiro cambaleou, mas mal houve tempo de carregar as armas, já outra dezena trepava pelas janelas. Diego agarrou num candelabro de ferro e saiu em defesa da mãe, enquanto esta retrocedia para o salão. Tinha perdido o sabre e agarrava a adaga com as duas mãos, desferindo cutiladas às cegas contra os vândalos que a cercavam. Diego meteu o candelabro entre as pernas de um, atirando-o ao chão, mas não conseguiu pregar-lhe uma bordoada, porque um brutal pontapé no peito o projectou contra a parede. Nunca soube quanto tempo ficou ali aturdido, porque as versões do assalto, que correram mais tarde, eram contraditórias. Uns atribuíram-lhe horas, mas outros disseram que em poucos minutos os piratas mataram ou feriram quantos se atravessaram no seu caminho, deram cabo daquilo que não conseguiram roubar e, antes de se encaminharem para Los Angeles, deitaram fogo aos móveis.

Quando Diego recuperou o conhecimento, ainda os malfeitores percorriam a casa à procura do que levar e já o fumo do incêndio se infiltrava pelos resquícios. Pôs-se de pé com uma dor tremenda no peito, que o obrigava a respirar aos golinhos, e avançou aos tropeções, tossindo e chamando pela mãe. Encontrou-a debaixo da mesa grande do salão, com a camisa de noite de cambraia ensopada de sangue, mas lúcida e com os olhos abertos. «Esconde-te, filho!», ordenou-lhe ela com a voz firme, após o que desmaiou. Diego pegou-lhe pelos braços e, com um esforço titânico, porque tinha as costelas partidas pelo pontapé sofrido, puxou-a, aos arrancos, na direcção da lareira. Conseguiu abrir a porta secreta, cuja existência só ele e Bernardo conheciam, e arrastou-a até ao túnel. Fechou a tampa do outro lado e ficou ali, na escuridão, com a cabeça da mãe entre os joelhos, mamã, mamã, chorando e pedindo a Deus e aos espíritos da sua tribo que não a deixassem morrer.

Bernardo estava também na cama quando se iniciou o assalto. Dormia com a mãe num dos quartos destinados à criadagem, no outro extremo da mansão. O deles era mais amplo do que os cubículos sem janelas dos demais criados, porque também era utilizado para passar a ferro, tarefa da qual Ana não prescindia. Alejandro de La Vega exigia que as dobras das suas camisas ficassem perfeitas e ela tinha orgulho em passá-las pessoalmente. À parte uma acanhada cama com colchão de palha e um estafado baú onde guardavam os seus magros pertences, o compartimento continha uma mesa comprida para o trabalho e um recipiente de ferro para as brasas dos ferros, além de um par de enormes cestos com roupa lavada, que Ana pensava passar a ferro no dia seguinte. O chão era de terra; um poncho de lã, pendurado no lintel, servia de porta; a luz e o ar entravam por dois postigos.

Bernardo não acordou com os alaridos dos piratas, nem com os disparos do outro lado da casa, mas sim com o safanão que Ana lhe deu. Pensou que a terra estava a tremer, como outras vezes, mas ela não lhe deu tempo de especular; pegou-lhe por um braço, levantou-o com a força de um vendaval e, com uma passada, conduziu-o ao outro lado do compartimento. Encafuou-o com um empurrão brutal dentro de um dos grandes cestos. «Aconteça o que acontecer, não te mexas, percebeste bem?» O seu tom era tão terminante que pareceu a Bernardo que lhe falava com um ódio recôndito. Nunca a tinha visto alterada. A mãe era de uma doçura lendária, sempre dócil e contente, apesar de não lhe sobrarem motivos para a felicidade. Entregava-se sem escrúpulos à tarefa de adorar o filho e servir os seus patrões, conforme com a sua existência humilde e sem inquietudes na alma; não obstante, nesse momento, o último que compartilharia com Bernardo, endureceu-se com a solidez do gelo.

Pegou num fardo de roupa e cobriu o rapaz, achatando-o no fundo do cesto. Dali, envolvido nas brancas trevas dos trapos, sufocado pelo cheiro a goma e pelo terror, Bernardo ouviu os gritos, palavrões e gargalhadas dos homens que entraram no quarto, onde Ana os esperava, com a morte já escrita na testa, disposta a distraí-los durante o tempo necessário para que não encontrassem o filho.

Os piratas tinham pressa e bastou-lhes uma vista de olhos para se darem conta de que naquele quarto de criada não havia nada de valor. Talvez tivessem assomado ao umbral e dado meia volta, mas estava ali aquela jovem indígena a desafiá-los com os braços na cintura e uma determinação suicida, com o seu rosto redondo, com o manto nocturno do seu cabelo, com as suas ancas generosas e os seus seios firmes. Durante um ano e quatro meses tinham percorrido o oceano sem ponto fixo e sem o consolo de poisarem os olhos numa mulher. Por um instante julgaram encontrar-se diante de uma miragem, como tantas que os atormentavam no mar alto, mas depois sentiram o cheiro açucarado de Ana e esqueceram a pressa. Com um safanão, arrancaram a grosseira camisa de noite de linho que lhe cobria o corpo e precipitaram-se sobre ela. Ana não se debateu. Suportou num silêncio sepulcral tudo o que lhes apeteceu fazer com ela. Ao cair por terra, avassalada pelos homens, a sua cabeça ficou tão perto do cesto de Bernardo, que este pôde contar um a um os débeis queixumes da mãe, abafados pelo ofegar brutal dos seus atacantes.

O garoto não se moveu em nenhum momento por baixo do molho de trapos que o cobria; ali viveu o suplício completo da mãe, paralisado de horror. Estava aninhado no cesto, com a mente em branco, a suar bílis, sacudido pelas náuseas. Passado um tempo infinito, apercebeu-se do silêncio absoluto e do cheiro a fumo. Deixou passar um bocado, até não poder mais, porque estava a sufocar, e chamou baixinho por Ana. Ninguém respondeu.

Voltou a chamá-la um par de vezes em vão e, por fim, atreveu-se a assomar a cabeça. Pelo vão da porta entravam rajadas de fumo, mas o incêndio da casa não chegava até ali. Entorpecido pela tensão e pela imobilidade, Bernardo teve de fazer um esforço para sair do cesto. Viu a mãe no preciso lugar onde os homens a tinham prostrado, nua, com o comprido cabelo preto aberto como um leque no chão e o pescoço cortado de orelha a orelha. O garoto sentou-se ao seu lado e pegou-lhe na mão, quieto e calado. Durante muitos anos não voltaria a dizer palavra.

Assim o encontraram, mudo e manchado com o sangue da mãe, horas mais tarde, quando os piratas já navegavam longe. A população de Los Angeles estava a contar os seus mortos e a apagar os seus incêndios; ninguém se lembrou de ir ver o que tinha acontecido na fazenda De La Vega, até que o padre Mendoza, alertado por uma premonição tão vívida que não a conseguiu ignorar, apareceu com meia dúzia de neófitos para tomar conta do lugar. As chamas tinham queimado o mobiliário e lambido algumas das vigas, mas a casa era sólida; quando ele chegou, o fogo estava a apagar-se sozinho. O assalto deixara um saldo de vários feridos e cinco mortos, incluindo Ana, que encontraram tal como os seus assassinos a haviam abandonado.

- Que Deus nos proteja - exclamou o padre Mendoza ao deparar-se com aquela tragédia.

Cobriu o corpo de Ana com um cobertor e ergueu Bernardo nos seus braços robustos. O garoto estava petrificado, com o olhar fixo e um espasmo na cara que lhe cerrava os maxilares.

- Onde estão Dona Regina e Diego? - perguntou o missionário, mas Bernardo não deu mostras de o ouvir. Deixou-o nas mãos de uma índia da criadagem, que o aninhou nos braços, embalando-o como um bebé ao som de uma triste litania na sua língua, enquanto ele percorria de novo a casa a chamar pelos que faltavam.

 

O tempo decorreu sem alterações no túnel, porque a luz do dia não entrava até lá, sendo impossível calcular as horas naquelas trevas eternas. Diego não pôde adivinhar o que acontecia na casa, porque ali tão-pouco chegavam os sons do exterior nem o fumo do incêndio. Esperou sem saber o que esperava, enquanto Regina entrava e saía do desmaio, extenuada. Imóvel, a fim de não perturbar a mãe, apesar do martírio do pontapé que lhe cravava punhais no peito a cada inspiração, e da comichão atroz entre as pernas dormentes, o garoto aguardava. Em alguns momentos a fadiga vencia-o, mas logo acordava, rodeado de sombras, entontecido de sofrimento. Sentiu que ia gelando e várias vezes tentou sacudir os membros, mas invadia-o uma preguiça sem remédio e voltava a cabecear, mergulhando na algodoenta névoa. Nesse letargo transcorreu uma boa parte do dia, até que, por fim, Regina soltou um queixume e se mexeu, e nessa altura ele acordou sobressaltado. Ao verificar que a mãe estava viva, recuperou de chofre o ânimo e uma vaga de felicidade banhou-o da cabeça aos pés, ao mesmo tempo que se inclinava para lhe cobrir a cara de beijos delirantes. Diego pegou-lhe com infinito cuidado na cabeça, que tinha ficado da cor do mármore, e ajeitou-a no chão. Levou vários minutos a recuperar o movimento das pernas, até que conseguiu gatinhar à procura das velas que Bernardo e ele escondiam para as suas invocações de Okahué. A voz da avó perguntou-lhe na língua dos índios quais eram as cinco virtudes essenciais, mas não conseguiu lembrar-se de nenhuma, a não ser da coragem.

À luz da vela, Regina abriu os olhos e deu por si sepultada numa caverna com o filho. Não lhe chegaram as forças para lhe perguntar o que acontecera, nem para o consolar com falsas palavras; pôde apenas indicar-lhe que lhe rasgasse a camisa de noite e com ela ligasse a ferida do peito.

Diego fê-lo com dedos trémulos, vendo que a mãe tinha uma facada profunda debaixo do ombro. Não soube o que fazer e continuou à espera.

- Estou a esvair-me, Diego, tens de ir procurar ajuda - murmurou Regina passado um pedaço.

O garoto calculou que pelas grutas podia alcançar a praia e dali podia correr sem ser visto para pedir socorro, mas isso levar-lhe-ia tempo. Num impulso, decidiu que valia a pena correr o risco de assomar pelo alçapão da lareira para averiguar como estava a situação em casa. A portinhola achava-se bem dissimulada atrás da pilha de troncos da lareira e poderia dar uma vista de olhos sem ser visto, mesmo que houvesse gente no salão.

A primeira coisa de que se apercebeu ao abrir o alçapão foi o cheiro acre a chamuscado e a rabanada da fumaceira, que o fizeram retroceder, mas logo compreendeu que isso lhe permitia ocultar-se melhor. Silencioso como um gato, passou pela porta secreta acaçapando-se atrás de uns troncos. As cadeiras e a carpete estavam tisnadas, o óleo de Santo António queimara-se por completo, as paredes e as vigas do tecto fumegavam, mas as chamas tinham-se apagado. Reinava uma quietude anormal na casa e supôs que já não estivesse lá ninguém, o que lhe deu coragem para avançar. Deslizou cauteloso ao longo das paredes, lacrimejando e tossindo, e percorreu uma a uma as divisões do andar principal. Não podia imaginar o que tinha acontecido, se porventura estavam todos mortos ou haviam conseguido escapar. Nas ruínas do vestíbulo viu uma desordem de naufrágio e manchas de sangue, mas não estavam lá os corpos dos homens que ele mesmo tinha visto cair de madrugada. Atordoado pelas dúvidas, imaginou que estava mergulhado num pesadelo espantoso, do qual acordaria com a voz carinhosa de Ana a anunciar o pequeno-almoço. Continuou a explorar em direcção aos quartos dos criados, sufocado pela bruma cinzenta do incêndio que, ao abrir uma porta ou contornar uma esquina, surgia em fagulhas.

Lembrou-se da mãe, a morrer sem ajuda; decidiu que não havia mais nada a perder e, esquecendo toda a cautela, desatou a correr pelos intermináveis corredores da fazenda, quase às cegas, até que embateu de súbito contra um corpo sólido e dois braços poderosos o apresaram. Gritou de susto e da dor nas costelas quebradas, sentiu que lhe voltavam as náuseas e estava a ponto de desmaiar.

- Diego! Bendito seja Deus! - ouviu o vozeirão do padre Mendoza e farejou a sua velha sotaina, sentindo as suas faces mal barbeadas contra a sua testa, e nessa altura abandonou-se, como a criança que ainda era, chorando e vomitando sem consolo.

O padre Mendoza enviara os sobreviventes para a Missão San Gabriel. A única explicação que lhe ocorreu para a ausência de Regina e do filho foi que tivessem sido raptados pelos piratas, embora nunca tivesse sabido de coisa semelhante por aqueles lados. Sabia que noutros mares faziam reféns para obter resgate ou vendê-los como escravos, mas nada disso sucedia naquela remota costa da América. Não podia imaginar como daria a notícia a Alejandro de La Vega. Ajudado pelos outros dois franciscanos, que viviam na missão, fizera o possível por aliviar os feridos e consolar as restantes vítimas do assalto. No dia seguinte teria de ir a Los Angeles, onde o esperava a pesada tarefa de enterrar os mortos e fazer um inventário dos destroços. Estava extenuado, mas sentia-se tão inquieto, que não conseguiu ir-se embora com os outros para a missão e preferiu ficar, a fim de passar uma vez mais revista à casa. Era o que fazia quando Diego lhe apareceu à frente.

Regina sobreviveu graças ao facto de o padre Mendoza a ter embrulhado em cobertores, metido no seu desconjuntado calhambeque e levado para a missão. Não houve tempo de chamar Coruja Branca, porque continuava a jorrar sangue do corte profundo, e Regina debilitava-se a olhos vistos. À luz de umas candeias, os missionários entregaram-se a embebedá-la primeiro com rum e depois a lavar a ferida e extrair, com as tenazes de torcer arame, a ponta do punhal do pirata, incrustada no osso da clavícula. Depois cauterizaram a ferida com um ferro incandescente, enquanto Regina mordia um pedaço de madeira, como tinha feito durante o parto. Diego tapava os ouvidos para não ouvir os seus gemidos sufocados, oprimido pela culpa e pela vergonha de ter desperdiçado numa travessura de fedelho a poção do sono, que poderia ter poupado aquele tormento a Regina. A dor da mãe foi o seu terrível castigo por ter roubado o remédio mágico.

Ao despir a camisa a Diego, verificaram que o pontapé lhe tinha deixado a carne pisada desde o pescoço até à virilha. O padre Mendoza calculou que devia ter várias costelas arrombadas e ele próprio lhe fez um corpete de couro de vaca, reforçado com varas de cipó, para o imobilizar. O garoto não se podia agachar nem levantar os braços, mas graças ao corpete recuperou em poucas semanas o uso completo dos pulmões. Bernardo, em contrapartida, não se curou dos ferimentos, que eram muito mais profundos que os de Diego. Passou vários dias no mesmo estado pétreo em que o padre Mendoza o encontrara, com o olhar fixo e os dentes tão apertados que tiveram de recorrer ao funil para o alimentar com papas de milho. Assistiu ao funeral colectivo das vítimas dos piratas e presenciou sem uma lágrima o arriar, para uma cova na terra, do caixão que continha o corpo da mãe. Quando os outros vieram a dar-se conta de que Bernardo não falava havia semanas, Diego, que o tinha acompanhado de noite e de dia sem o deixar um só instante, já tinha assumido o facto irrefutável de que talvez nunca mais o fizesse. Os índios disseram que tinha engolido a língua.

O padre Mendoza começou por obrigá-lo a fazer gargarejos com vinho da missa e mel de abelha; depois pincelou-lhe a garganta com borato de sódio, pôs-lhe emplastros quentes no pescoço e deu-lhe a comer escaravelhos moídos. Como nenhum dos seus improvisados remédios contra a mudez desse resultado, optou pelo recurso extremo de o exorcizar. Nunca lhe tinha calhado expulsar demónios e não se sentia capacitado para tão indigna tarefa, embora conhecesse o método, mas não havia por aqueles lados mais ninguém que o pudesse fazer. Para encontrar um exorcista autorizado pela Inquisição era preciso ir ao México e, francamente, o missionário considerou que não valia a pena. Estudou a fundo os textos pertinentes, jejuou por dois dias à guisa de preparação, depois fechou-se com Bernardo na igreja a lutar corpo a corpo com Satanás. Não serviu de nada. Derrotado, o padre Mendoza concluiu que o trauma tinha embrutecido o pobre garoto e deixou de lhe prestar atenção. Delegou a uma neófita a maçada de o alimentar com um funil e voltou à sua vida. Andava entretido com os seus deveres da missão, com a tarefa espiritual de ajudar a população de Los Angeles a recuperar das suas desgraças e com as minúcias burocráticas que os seus superiores do México lhe exigiam, sempre o mais aborrecido do seu ministério. As pessoas já tinham posto Bernardo de parte como idiota sem remédio, quando Coruja Branca apareceu na missão, a fim de o levar para a sua aldeola. O missionário entregou-lho, porque não sabia o que lhe havia de fazer, embora não esperasse que as magias da índia alcançassem a cura que ele não conseguira com exorcismos. Diego estava morto por acompanhar o seu irmão de leite, mas não teve coragem de deixar a mãe, que ainda não se levantava do seu leito de convalescente, e, além disso, o padre Mendoza não lhe permitiu montar a cavalo com o corpete. Pela primeira vez desde que haviam nascido, as crianças separaram-se.

Coruja Branca verificou que Bernardo não engolira a língua - tinha-a intacta na boca - e diagnosticou que a sua mudez era uma forma de luto: não falava porque não queria. Calculou que por debaixo da ira surda que devorava o garoto havia um insondável oceano de tristeza. Não procurou consolá-lo ou curá-lo, porque, na sua opinião, Bernardo tinha todo o direito do mundo de ficar calado, mas ensinou-o a comunicar com o espírito da mãe, por meio da observação das estrelas, e com os seus semelhantes valendo-se da linguagem dos signos que os índios de diferentes tribos usavam para comerciar. Também o ensinou a tocar uma delicada flauta de cana. Com o tempo e a prática, o garoto chegaria a arrancar àquele singelo instrumento quase tantos sons como os da voz humana. Mal o deixaram em paz, Bernardo espevitou. O primeiro sintoma foi um apetite voraz, deixando de haver necessidade de o alimentar com métodos cruéis, e o segundo foi a tímida amizade que estabeleceu com Raio na Noite. A menina era dois anos mais velha do que ele e tinha esse nome porque nascera numa noite de tempestade. Era diminuta para a idade e possuía a expressão amável de um esquilo. Acolheu Bernardo com naturalidade, sem se dar por achada com o seu impedimento de falar, e converteu-se na sua companheira permanente, substituindo, sem o saber, Diego. Não se separavam a não ser à noite, quando ele tinha de ir dormir na palhota de Coruja Branca e ela na da sua família. Raio na Noite levava-o ao rio, onde se despia completamente e se atirava de cabeça à água, enquanto ele procurava com que se distrair para não a olhar de frente, porque, aos dez anos, já lhe tinham causado impressão os ensinamentos do padre Mendoza sobre as tentações da carne. Bernardo seguia-a sem despir as calças, espantado por ela ter a mesma resistência que ele para nadar como um peixe na água gelada.

Raio na Noite sabia de cor a história mítica do seu povo e não se cansava de lha contar, tal como ele não se cansava de a escutar. A voz da menina era um bálsamo para Bernardo; ouvia-a deslumbrado, sem se aperceber de que o amor por ela começava a derreter o glaciar do seu coração. Voltou a portar-se como qualquer rapazinho da sua idade, embora não falasse e não chorasse. Juntos acompanhavam Coruja Branca, ajudando-a nos seus afazeres de curandeira e xamã, colhendo plantas curativas e preparando poções. Quando Bernardo voltou a sorrir, a avó considerou que já não podia fazer mais por ele; tinha chegado o momento de o mandar de regresso para a fazenda De La Vega. Ela devia ocupar-se dos ritos e cerimónias que marcariam a primeira menstruação de Raio na Noite, que nessa altura entrou de supetão na adolescência. Essa súbita transição não distanciou a menina de Bernardo; pelo contrário, pareceu aproximá-los mais. À guisa de despedida, levou-o mais uma vez ao rio e com o seu sangue menstrual pintou numa rocha pássaros em voo.

- Somos nós, havemos de voar sempre juntos - disse-lhe ela. Num impulso, Bernardo beijou-a na cara e a seguir desatou a correr, com o corpo em chamas.

Diego, que tinha esperado Bernardo com uma tristeza de cão órfão, viu-o vir ao longe e correu a dar-lhe as boas-vindas com gritos de júbilo, mas quando o teve na sua frente compreendeu que o seu irmão de leite era outra pessoa. Vinha num cavalo emprestado, com a sua trouxa ao ombro, maior e mais tosco, com o cabelo comprido, cara de índio adulto e a luz inconfundível de um amor secreto nas pupilas. Diego parou atordoado; nessa altura, Bernardo desmontou e abraçou-o, erguendo-o no ar sem esforço, e voltaram a ser os gémeos inseparáveis de antigamente. Diego sentiu que tinha recuperado metade da alma. Não lhe fazia diferença nenhuma que Bernardo não falasse, porque nenhum dos dois tinha precisado alguma vez de palavras para saber o que o outro pensava.

Bernardo ficou surpreendido por, naqueles meses, terem reconstruído por completo a casa ardida no incêndio.

Alejandro de La Vega propusera-se apagar todos os vestígios da passagem dos piratas e aproveitar aquela desgraça para melhorar a sua residência. Quando regressara à Alta Califórnia, seis semanas depois do assalto, com o seu carregamento de utensílios de luxo para surpreender a mulher, deparara-se com o facto de não haver sequer um cão para lhe ladrar; a moradia estava abandonada, o seu conteúdo feito em cinzas e a família ausente. A única pessoa que viera recebê-lo fora o padre Mendoza, que o pusera ao corrente do sucedido e o levara para a missão, onde Regina começava a dar os primeiros passos de convalescente, ainda envolvida em ligaduras e com um braço ao peito. A experiência de ter assomado ao lado de lá da morte arrebatara a frescura a Regina de uma penada. Alejandro tinha deixado uma esposa jovem e pouco depois quem o recebera fora uma mulher de trinta e cinco anos apenas, mas já madura, com algumas madeixas grisalhas no cabelo, que não demonstrara o menor interesse pelos tapetes turcos, nem pelos talheres de prata lavrada que ele comprara.

As notícias eram más, mas, tal como disse o padre Mendoza, poderiam ser muito piores. De La Vega decidiu virar a página, visto que não havia possibilidade de castigar aqueles foragidos, que deviam estar a meio caminho em direcção ao mar da China, e meteu mãos à obra para reparar a fazenda. No México tinha visto como as pessoas de linhagem viviam e decidira imitá-las, não por jactância, mas sim para que, no futuro, Diego herdasse a mansão e a enchesse de netos, como dizia à guisa de desculpa pelo esbanjamento. Encomendou materiais de construção e mandou procurar artesãos à Baixa Califórnia - ferreiros, ceramistas, cinzeladores, pintores - que em pouco tempo acrescentaram outro andar, longos corredores com arcos, chãos de azulejos, uma varanda na sala de jantar e um coreto no pátio para os músicos, pequenas fontes mouriscas, grades de ferro forjado, portas de madeira lavrada, janelas com vidros pintados.

No jardim principal instalou estátuas, bancos de pedra, gaiolas com pássaros, vasos de flores e uma fonte de mármore coroada por Neptuno e três sereias, que os índios cinzeladores copiaram, exacta, de uma pintura italiana. Quando Bernardo chegou, a mansão já tinha as telhas encarnadas postas, a segunda demão de tinta cor de pêssego nas paredes e começavam a abrir os volumes trazidos do México para a decorar. «Assim que a Regina se curar, vamos inaugurar a casa com um sarau que o povo há-de recordar durante cem anos», anunciou Alejandro de La Vega; mas esse dia tardou a chegar, porque não faltaram à mulher renovados pretextos para adiar a festa.

Bernardo ensinou a Diego a linguagem de signos dos índios, que ambos enriqueceram com sinais de sua invenção, usando-os para se entenderem quando a telepatia ou a música de flauta lhes falhavam. Às vezes, se se tratava de assuntos mais complicados, recorriam a giz e ardósia, mas tinham de o fazer dissimuladamente para isso não ser entendido como presunção da sua parte. Valendo-se do chicote de nove rabos, o professor da escola conseguia ensinar o alfabeto a uns quantos rapazes privilegiados da povoação, mas daí à leitura fluente havia um abismo e, em qualquer caso, nenhum índio era admitido na escola. Diego, muito a contragosto, acabou por se tornar um bom aluno, tendo percebido então, pela primeira vez, a mania do pai com a educação. Começou a ler tudo o que lhe vinha parar às mãos. O Tratado de Esgrima e Prontuário do Duelo, do mestre Manuel Escalante, revelou-se-lhe um compêndio de ideias notavelmente parecidas com o Okahué dos índios, porque também era sobre honra, justiça, respeito, dignidade e coragem. Anteriormente, tinha-se limitado a assimilar as lições de esgrima do pai e a imitar os movimentos desenhados nas páginas do manual, mas quando começou a lê-lo soube que a esgrima não é só habilidade no manejo do florete, da espada e do sabre, mas também uma arte espiritual. Nessa altura, o capitão José Díaz ofereceu a Alejandro de La Vega um caixote de livros, que um passageiro tinha deixado esquecido num navio por altura do Equador. Chegou a casa fechado a martelo, mas ao ser aberto revelou um fabuloso conteúdo de poemas épicos e romances, volumes amarelecidos, muito manuseados, com cheiro a mel e cera. Diego devorou-os com ânsia, apesar de o pai desprezar o romance como género menor, pejado de inconsistências, erros fundamentais e dramas pessoais que não eram da sua incumbência. Aqueles livros foram um vício para Diego e Bernardo; leram-nos tantas vezes que acabaram por memorizá-los. O mundo em que viviam tornou-se acanhado; começaram a sonhar com outros países e aventuras para lá do horizonte.

Aos treze anos, Diego parecia ainda uma criança, mas Bernardo, como muitos rapazes da sua raça, atingiu o tamanho definitivo que teria em adulto. A impavidez do seu rosto acobreado dulcificava-se nos momentos de cumplicidade com Diego, quando acariciava os cavalos e nas numerosas ocasiões em que se escapava para ir visitar Raio na Noite. A rapariga cresceu pouco nesse tempo; era de baixa estatura e magra, com um rosto inesquecível. A sua alegria e beleza deram-lhe notoriedade e quando fez quinze anos era disputada pelos melhores guerreiros de várias tribos. Bernardo vivia aterrorizado, tremendo de que ao visitá-la um dia ela não estivesse, porque tinha partido com outro. A aparência do rapaz enganava; não era demasiado alto nem musculoso, mas tinha uma força inesperada e uma resistência de touro para o trabalho físico. A sua mudez enganava também, não só porque as pessoas pensavam que era pateta, como porque, além disso, parecia triste. Na realidade não o era, mas contavam-se pelos dedos da mão as pessoas com acesso à sua intimidade, que o conheciam a fundo e tinham ouvido o seu riso.

Vestia sempre as calças e a camisa dos neófitos, com uma faixa tecida à cintura, e um poncho de várias cores no Inverno. Uma fita na testa afastava para trás o basto cabelo entrançado, que lhe dava pelo meio das costas. Tinha orgulho na sua raça. Diego, em contrapartida, possuía o aspecto enganoso de um senhorito, apesar dos seus gestos atléticos e da sua tez queimada pelo sol. Da mãe herdara os olhos e a rebeldia; do pai, os ossos largos, as feições cinzeladas, a elegância natural e a curiosidade pelo conhecimento. De ambos obtivera uma impulsiva valentia que, por vezes, raiava a demência; mas ninguém sabia onde fora buscar a ironia zombeteira, que nenhum dos seus antepassados, gente bastante taciturna, alguma vez demonstrara. Ao contrário de Bernardo, que era de uma serenidade pasmosa, Diego não era capaz de passar muito tempo quieto; ocorriam-lhe tantas ideias ao mesmo tempo que não lhe chegava a vida para as pôr em prática. Naquela idade já vencia o pai nos duelos de esgrima e não havia quem o superasse no manejo do chicote. Bernardo tinha-lhe feito um de pele de touro entrançada, que ele trazia sempre num rolo pendurado à cinta. Não perdia ocasião de se exercitar. Com a ponta do chicote era capaz de arrancar uma flor intacta ou apagar uma vela; também conseguia tirar o charuto da boca ao pai sem lhe tocar a cara, mas tal atrevimento nunca lhe passara pela mente. A sua relação com Alejandro de La Vega era de temeroso respeito: tratava-o sempre por Vossa Mercê e nunca questionava a sua autoridade de frente, embora quase sempre arranjasse maneira de fazer nas suas costas o que lhe parecia, mais por ser travesso do que por ser rebelde, visto que admirava cegamente o pai e assimilara as suas severas lições de honra. Tinha orgulho de ser descendente de Cid, o Campeador, fidalgo de pura cepa, mas nunca negava a sua parte indígena, porque também sentia orgulho no passado guerreiro da mãe. Enquanto Alejandro de La Vega, sempre consciente da sua classe social e da pureza do sangue, procurava ocultar a mestiçagem do filho, este aceitava-a de cabeça levantada. A relação de Diego com a mãe era íntima e carinhosa, mas não a conseguia enganar, como fazia de vez em quando com o pai. Regina possuía um terceiro olho na nuca para ver o invisível e uma firmeza de pedra para se fazer obedecer.

O seu cargo de alcaide obrigava Alejandro de La Vega a deslocar-se com frequência à sede da governação em Monterrey. Regina aproveitou uma das suas ausências para levar Diego e Bernardo à aldeia de Coruja Branca, porque considerou que já estavam em idade de se fazerem homens; mas essa, como tantas outras, foi uma coisa que não contou ao marido, para evitar problemas. Com os anos, as diferenças entre ambos tinham-se acentuado; já não bastavam os abraços nocturnos para se reconciliarem. Só a nostalgia do antigo amor os ajudava a permanecerem juntos, apesar de viverem em mundos muito distantes e já pouco terem a dizer um ao outro. Nos primeiros anos, era tão urgente o entusiasmo amoroso de Alejandro que, por mais de uma vez, fizera meia volta numa das suas viagens e galopara várias léguas sozinho para estar mais um par de horas com a mulher. Não se cansava de admirar a sua real beleza, que lhe alvoroçava sempre o espírito e lhe inflamava o desejo, mas, ao mesmo tempo, a sua condição de mestiça envergonhava-o. Por orgulho fingia ignorar que a mesquinha sociedade colonial a rejeitava, todavia, com o tempo, começou a culpá-la por essas desfeitas; a sua mulher nada fazia para se fazer perdoar do seu sangue misturado, era arisca e desafiadora. Regina tinha-se esforçado, ao princípio, por se acomodar aos costumes do marido, ao seu idioma de consoantes ásperas, às suas ideias fixas, à sua obscura religião, às grossas paredes da casa, à roupa apertada e aos botins de pelica, mas a tarefa revelava-se hercúlea e acabou dando-se por vencida. Por amor tentara renunciar às suas origens e converter-se em espanhola; porém, não o conseguira, porque continuava a sonhar na sua própria língua.

Regina não contou a Diego e Bernardo as razões da viagem à aldeia dos índios, pois não quis assustá-los antes de tempo, mas eles adivinharam que se tratava de uma coisa especial e secreta, que não podiam compartilhar com ninguém, muito menos com Alejandro de La Vega.

Coruja Branca esperava-os a meio caminho. A tribo tivera de partir para mais longe, empurrada para as montanhas pelos brancos, que continuavam a açambarcar terra. Os colonos eram cada vez mais numerosos e insaciáveis. O imenso território virgem da Alta Califórnia começava a tornar-se pequeno para tanto gado e tanta ganância. Antigamente, os cerros estavam cobertos de pasto sempre verde e da altura de um homem, havia nascentes e regatos por todo o lado, na Primavera os campos cobriam-se de flores, mas as vacas dos colonos patinharam o solo e os cerros secaram. Coruja Branca vira o futuro nas suas viagens xamânicas: sabia que não haveria maneira de deter os invasores e que, brevemente, o seu povo desapareceria. Aconselhara a tribo a procurar outras pastagens, longe dos brancos, e ela própria dirigira a transferência da sua aldeia para várias léguas mais longe. A avó tinha preparado para Diego e Bernardo um ritual mais completo do que as provas de fanfarronice dos guerreiros. Não lhe pareceu indispensável pendurá-los de uma árvore com ganchos atravessados nos peitorais, porque eram demasiado jovens para isso e, além disso, não precisava de pôr a sua coragem à prova. Propôs-se, em contrapartida, pô-los em contacto com o Grande Espírito, para que este revelasse os seus destinos. Regina despediu-se dos rapazes com a sua habitual sobriedade, indicando que voltaria para os buscar dentro de dezasseis dias, quando tivessem completado as quatro etapas da sua iniciação.

Coruja Branca pôs ao ombro o saco do seu ofício, onde trazia instrumentos musicais, cachimbos, plantas medicinais e relíquias mágicas, e começou a andar a largas passadas de caminhante em direcção aos cerros virgens. Os rapazinhos, levando como única bagagem umas mantas de lã, seguiram-na sem fazer perguntas. Na primeira etapa da viagem andaram quatro dias pelo mato sustentados apenas por uns goles de água, até que a fome e a fadiga lhes provocaram um estado anormal de lucidez. A natureza revelou-se-lhes em toda a sua misteriosa glória; perceberam pela primeira vez a imensa variedade do bosque, o concerto da brisa, a presença próxima dos animais selvagens, que às vezes os acompanhavam por longo trecho. Ao princípio, sofriam com os arranhões e golpes nos ramos, com o cansaço sobrenatural dos ossos, com o vazio insondável no estômago, mas ao quarto dia andavam a flutuar na névoa. Então, a avó decidiu que estavam prontos para a segunda fase do rito e ordenou-lhes que cavassem um buraco de meio corpo de profundidade por um de diâmetro. Enquanto ela fazia uma fogueira para aquecer pedras, os rapazes cortaram e descascaram delgados ramos de árvores e com eles montaram uma cúpula sobre o buraco, que cobriram com as mantas. Nessa residência redonda, símbolo da Mãe-Terra, deveriam purificar-se e realizar a viagem em busca de uma visão, guiados pelos espíritos. Coruja Branca alimentou um fogo sagrado rodeado de pedras, em representação da força criadora da vida. Os três beberam água, comeram um punhado de nozes e frutos secos; a seguir, a avó ordenou-lhes que se despissem e, ao som do seu tambor e da sua matraca, fê-los dançar freneticamente durante horas e horas, até que caíram prostrados. Conduziu-os ao refúgio, onde tinham colocado as pedras aquecidas, e deu-lhes uma beberagem de toloache. Os jovens mergulharam no vapor das pedras húmidas, no fumo dos cachimbos, no cheiro das ervas mágicas e nas imagens que a droga suscitava.

Nos quatro dias subsequentes saíram de vez em quando para respirarem ar fresco, renovarem o fogo sagrado, reaquecerem as pedras e alimentarem-se com uns grãos de cereal. Por momentos adormeciam, suando. Diego sonhava que nadava em águas geladas com os golfinhos e Bernardo sonhava com o riso contagioso de Raio na Noite. A avó guiou-os em orações e cantos, enquanto lá fora os espíritos de todos os tempos rondavam a cova. Durante o dia aproximavam-se veados, lebres, pumas e ursos; de noite uivavam lobos e coiotes. Uma águia planava no céu, vigiando-os incansável, até estarem preparados para a terceira parte do ritual; nessa altura, desapareceu.

A avó entregou uma faca a cada um, permitiu-lhes que levassem as mantas e enviou-os em direcções contrárias, um para leste e o outro para oeste, com instruções de se alimentarem do que conseguissem encontrar ou caçar, menos cogumelos de qualquer espécie, e de regressarem dentro de quatro dias. «Se o Grande Espírito assim determinar», disse ela «encontrarão a vossa visão nesse prazo; caso contrário, não ocorrerá nesta ocasião e terão de deixar passar quatro anos, antes de o tentarem de novo.» No regresso disporiam dos últimos quatro dias para descansarem e se reintegrarem numa vida normal, antes de voltarem à aldeia. Diego e Bernardo tinham-se consumido tanto nas primeiras etapas do rito que, ao verem-se à luz magnífica do alvorecer, não se reconheceram. Estavam desidratados, com os olhos afundados nas órbitas, o olhar ardente de alucinados, a pele cinzenta estirada sobre os ossos e um ar de tal desolação que, apesar da gravidade da despedida, desataram a rir. Abraçaram-se comovidos e partiram cada um para seu lado.

Caminharam sem rumo, sem saber o que procuravam, famintos e assustados, alimentando-se de raízes tenras e sementes, até que a fome os incitou a caçarem ratos e pássaros com arco e flecha, feitos com varas. Quando a escuridão os impedia de continuarem a avançar, faziam uma fogueira e punham-se a dormir, tiritando de frio, rodeados de espíritos e de animais silvestres. Acordavam inteiriçados pela escarcha e doridos até ao último osso, com aquela pasmosa clarividência que costuma vir com a extrema fadiga.

Passadas poucas horas de caminho, Bernardo apercebeu-se de que o seguiam, mas quando se voltava a olhar para trás não via mais que as árvores a vigiarem-no como quietos gigantes. Estava no bosque, abraçado por fetos de folhas brilhantes, rodeado de retorcidos carvalhos e fragrantes abetos, um espaço quieto e verde, iluminado por manchas de luz, que se coavam por entre as folhas. Era um lugar sagrado. Haveria de decorrer grande parte desse dia até que o seu tímido acompanhante se revelasse. Era um potro sem mãe, tão novo que ainda se lhe vergavam as patas, negro como a noite. Apesar da sua delicadeza de recém-nascido e da sua imensa solidão de órfão, podia-se adivinhar o animal soberbo que viria a ser. Bernardo compreendeu que era um animal mágico. Os cavalos andam em manadas, sempre nas pradarias; o que fazia ele sozinho no bosque? Chamou-o com os melhores sons da sua flauta, mas o animal parou a uma certa distância, o olhar desconfiado, as narinas abertas, as patas trémulas, e não se atreveu a aproximar-se. O rapaz apanhou um punhado de pasto húmido, sentou-se em cima de um penedo, meteu-o na boca e começou a mastigá-lo, após o que o ofereceu ao animalzinho na palma da mão. Passou um bom pedaço antes que este se decidisse a dar uns passos vacilantes. Por fim, esticou o pescoço e aproximou-se para farejar aquela massa verde, observando o rapaz com o olhar puro dos seus olhos castanhos, medindo as suas intenções, calculando a sua retirada em caso de apuro. Devia ter gostado do que viu, porque não tardou que o seu focinho aveludado tocasse a mão estendida para provar o estranho alimento. «Não é a mesma coisa que o leite da tua mãe, mas também serve», sussurrou Bernardo. Eram as primeiras palavras que pronunciava desde havia três anos.

Sentiu que cada uma se lhe formava no ventre, subia como uma bola de algodão pela garganta, ficava a dar-lhe voltas na boca um pedaço e depois saía entre os dentes, mastigada, como o pasto para o potro. Houve qualquer coisa que se quebrou dentro do seu peito, uma pesada vasilha de greda, e toda a sua raiva, a sua culpa e os seus juramentos de pavorosa vingança se derramaram numa torrente incontível. Caiu de joelhos em terra, chorando, vomitando um barro verde e amargo, sacudido pela recordação pertinaz daquela manhã fatídica em que perdera a mãe e, com ela, também a infância. Os vómitos viraram-lhe o estômago do avesso e deixaram-no vazio e limpo. O potro retrocedeu, assustado, mas não se foi embora, e quando, por fim, Bernardo se tranquilizou, pôde pôr-se de pé e procurar um charco de água para se lavar, seguiu-o de perto. Desde esse momento nunca mais se separaram durante os três dias seguintes. Bernardo ensinou-o a escarvar com os cascos para encontrar os pastos mais tenros, susteve-o até se lhe afirmarem bem as patas e conseguir começar a trotar, dormiu abraçado a ele de noite para lhe dar calor, entreteve-o com a sua flauta. «Chamar-te-ás Tornado, se é que te agrada o nome, para que corras como o vento», propôs-lhe com a flauta, porque depois daquela única frase tinha voltado a refugiar-se no silêncio. Pensou que o domaria para o oferecer a Diego, pois não lhe ocorreu sorte mais apropriada para aquela nobre criatura, mas, quando acordou ao quarto dia, o potro tinha-se ido embora. O nevoeiro levantara e o sol lambia os cerros com a luz branca do amanhecer. Bernardo procurou em vão Tornado, chamando-o com voz rouca por falta de uso, até que compreendeu que o animal não tinha aparecido ao seu lado para ter dono, mas sim com o propósito de lhe mostrar o caminho a seguir na vida. Nessa altura adivinhou que o seu espírito-guia era o cavalo e que tinha de desenvolver as suas virtudes: lealdade, força e resistência. Decidiu que a sua estrela seria o Sol e o seu elemento as colinas, onde, certamente, Tornado trotava nesse momento para se reunir à sua manada.

Diego tinha menos sentido de orientação do que Bernardo e perdeu-se rapidamente; tinha também menos habilidade para caçar e só conseguiu um rato diminuto que, uma vez esfolado, ficou reduzido a um molho de ossinhos patéticos. Acabou a devorar formigas, vermes e lagartixas. Estava extenuado pela fome, pelas exigências dos dias anteriores e não lhe chegavam as forças para prever os perigos que o espreitavam, mas estava resolvido a não se deixar tentar pelo impulso de retroceder. Coruja Branca tinha-lhe explicado que o propósito daquela longa prova era deixar para trás a infância e converter-se num homem, e ele não pensava deixar a avó ficar mal a meio caminho; não obstante, a vontade de desatar a chorar ia levando a melhor sobre a sua determinação. Não conhecia a solidão. Tinha crescido junto de Bernardo, rodeado de amigos e de gente que o aplaudia; nunca lhe tinha faltado a presença incondicional da mãe. Pela primeira vez, encontrava-se sozinho e logo lhe calhara isso justamente no meio daquela natureza selvagem. Receou não encontrar o caminho de volta ao minúsculo acampamento de Coruja Branca, ocorreu-lhe que podia passar os quatro dias seguintes sentado sob a mesma árvore, mas a sua impaciência natural impeliu-o em frente. Não tardou que se encontrasse perdido na imensidão dos cerros. Deu com uma nascente e aproveitou para beber e tomar banho, após o que se alimentou de frutos desconhecidos, arrancados das árvores. Três corvos, aves veneradas pela tribo da mãe, passaram voando várias vezes muito próximo da sua cabeça: atribuiu-o a um sinal de augúrio favorável e isso deu-lhe ânimo para continuar. Ao cair a noite encontrou uma cova protegida por dois penedos, acendeu lume, embrulhou-se na manta e adormeceu de imediato, rezando para que não lhe faltasse a boa estrela que, segundo Bernardo, o iluminava sempre, porque não teria a menor graça ter chegado tão longe para morrer nas garras de um puma. Acordou de noite cerrada com o refluxo ácido dos frutos que comera e uns uivos próximos de coiotes. Do lume só restavam tímidas brasas, que alimentou com uns paus, calculando que aquela ridícula fogueira não bastaria para manter as feras à distância. Lembrou-se de que nos dias anteriores tinha visto várias espécies de animais, que os rondavam sem os atacarem, e elevou uma prece para que não o fizessem agora, quando se achava sozinho. Nesse momento, viu claramente à luz das chamas uns olhos coloridos a observá-lo com uma fixidez espectral. Empunhou a faca, julgando que fosse um lobo atrevido, mas ao pôr-se de pé viu melhor, apercebendo-se de que se tratava de uma raposa. Pareceu-lhe curioso que não se mexesse; parecia um gato a aquecer-se ao rescaldo da fogueira. Chamou-a, mas o animal não se aproximou e, quando ele o quis fazer, retrocedeu com cautela, mantendo sempre a mesma distância entre ambos. Diego vigiou o fogo durante um bocado, até que o cansaço o venceu e voltou a adormecer, apesar dos insistentes uivos dos coiotes longínquos. De vez em quando acordava de súbito, sem saber onde se encontrava, e via a estranha raposa no mesmo sítio, como um espírito vigilante. A noite pareceu-lhe eterna, até que, por fim, as primeiras luzes do amanhecer revelaram o perfil das montanhas. A raposa já ali não estava.

Nos dias subsequentes, nada sucedeu que Diego pudesse interpretar como uma visão, salvo a presença da raposa, que chegava com o cair da noite e ficava com ele até de madrugada, sempre quieta e atenta. Ao terceiro dia, aborrecido e a desfalecer de fome, tentou encontrar o caminho de regresso, mas não foi capaz de se orientar. Decidiu que seria impossível dar com Coruja Branca, mas, se descesse os cerros, mais tarde ou mais cedo chegaria ao mar e ali encontraria o Camino Real. Pôs-se em marcha, pensando na frustração da avó e da mãe quando soubessem que o descomunal esforço desses dias não lhe proporcionara uma visão reveladora do seu destino, mas apenas desalento, e perguntou a si próprio se Bernardo teria tido mais sorte que ele. Não conseguiu chegar longe, porque, ao passar por cima de um tronco caído, poisou o pé sobre uma serpente. Sofreu uma mordedura no calcanhar; haveria de decorrer um par de segundos antes de ouvir o chocalhar inconfundível da cascavel e se aperceber bem do sucedido. Não lhe restou dúvida: a bicha tinha o pescoço fino, a cabeça triangular e as pálpebras franzidas. O espanto atingiu-o no estômago como o inesquecível pontapé do pirata. Retrocedeu vários passos, afastando-se da cobra, ao mesmo tempo que fazia uma recapitulação dos seus vagos conhecimentos sobre a cascavel. Sabia que o veneno nem sempre é mortal, que depende da quantidade injectada, mas ele estava debilitado e encontrava-se tão longe de qualquer tipo de ajuda, que a morte parecia muito provável, se não do veneno, de inanição. Tinha visto um vaqueiro despachado para o outro mundo por um daqueles répteis; o homem estendera-se num palheiro a dormir a sua bebedeira e não acordara mais. Segundo o padre Mendoza, Deus levara-o para o Seu santo seio, onde não voltaria a bater na mulher, por meio da perfeita combinação de peçonha e álcool. Lembrou-se também dos tratamentos caseiros para aqueles casos: cortar-se a fundo com uma faca ou queimar-se com uma brasa acesa. Viu que a perna se lhe punha roxa, sentiu que se lhe ensalivava a boca, tinha formigueiros nas mãos, era sacudido por calafrios. Compreendeu que começava a desvairar de pânico e devia tomar rapidamente uma resolução, antes que se lhe acabassem de enevoar os pensamentos: se se movesse, a peçonha da víbora circular-lhe-ia mais depressa pelo corpo e, se não o fizesse, morreria ali mesmo. Preferiu seguir em frente, apesar de se lhe vergarem os joelhos e lhe terem inchado tanto as pálpebras que não conseguia ver. Começou a trotar pelo cerro abaixo, chamando pela avó com voz de sonâmbulo, enquanto as últimas forças se lhe consumiam irremissivelmente.

Diego caiu de borco. Com um esforço lento e longo conseguiu virar-se e ficar de barriga para o ar, sob o sol refulgente da manhã. Ofegava, atormentado por uma sede súbita, e suava cal viva, enquanto, ao mesmo tempo, tiritava com o gelo da sepultura. Maldisse o Deus cristão por o abandonar, e o Grande Espírito que, em vez de o premiar com uma visão, como fora o contrato, zombava dele com aquela patifaria indigna. Perdeu o contacto com a realidade e perdeu também o medo. Começou a flutuar num quente vendaval, como se prodigiosas correntes o elevassem em espiral em direcção à luz. Sentiu-se subitamente alvoroçado ante a possibilidade da morte e abandonou-se com uma imensa paz. O torvelinho ardente em que flutuava ia atingindo o céu, quando os ventos se inverteram, lançando-o como um penhasco no fundo de um abismo. Antes de mergulhar num total desvario, viu num relâmpago de consciência os olhinhos coloridos da raposa, a olhá-lo da morte.

Nas horas subsequentes, Diego chapinhou no alcatrão dos seus pesadelos; quando, por fim, conseguiu soltar-se e vir à superfície, só se lembrava da sede infinita e dos olhos imóveis da raposa. Encontrou-se embrulhado numa manta, iluminado pelas chamas de uma fogueira e acompanhado por Bernardo e Coruja Branca. Tardou um pedaço a voltar ao corpo, fazer um inventário das suas dores e chegar a uma conclusão.

- A cascavel matou-me - disse, mal conseguiu encontrar

a voz.

- Não estás morto, filho, mas pouco faltou - sorriu Coruja Branca.

- Não passei a prova, avó - disse o rapaz.

- Passaste-a, sim, Diego - informou-o ela.

Bernardo tinha-o encontrado e levado até ali. O rapaz índio estava pronto para regressar para junto de Coruja Branca, quando lhe aparecera uma raposa. Não duvidou de que se tratava de um sinal, porque lhe pareceu insólito que aquele animal de hábitos nocturnos se lhe atravessasse entre as pernas em plena luz do Sol. Em vez de obedecer ao instinto de lhe dar caça, deteve -se a observá-lo. Em lugar de fugir, a raposa instalou-se a poucas varas de distância a olhá-lo, por sua vez, com as orelhas alerta e o focinho trémulo. Noutra circunstância, Bernardo ter-se-ia limitado a tomar nota do estranho comportamento do animal, mas encontrava-se num estado de alucinação, com os sentidos em sobressalto e o coração aberto aos presságios. Sem vacilar, começou a segui-la por onde a raposa o quis levar, até que, um pedaço mais tarde, tropeçou com o corpo inerte de Diego. Viu a perna do irmão monstruosamente inchada e soube de imediato o que acontecera. Não podia perder nem um instante; pô-lo ao ombro como um fardo e empreendeu marcha forçada até ao sítio onde estava Coruja Branca, que aplicou as suas ervas na perna do neto e o fez suar o veneno até ele abrir os olhos.

- Foi a raposa que te salvou. É o teu animal totémico, o teu guia espiritual - explicou-lhe. - Tens de cultivar a sua habilidade, a sua astúcia, a sua inteligência. A tua mãe é a Lua e a tua casa são as grutas. Como a raposa, caber-te-á descobrir o que se oculta na escuridão, dissimular, esconderes-te de dia e agir de noite.

- Para quê? - perguntou Diego, confundido.

- Um dia o saberás, não se pode apressar o Grande Espírito. Entretanto, prepara-te para estares pronto quando esse dia chegar- instruiu-o a índia.

Por prudência, os rapazes mantiveram em segredo o rito conduzido por Coruja Branca.

A colónia espanhola considerava as tradições dos índios como disparatados actos de ignorância, quando não de selvajaria. Diego não queria que chegassem comentários aos ouvidos do pai. Confessou a Regina a estranha experiência com a raposa, sem lhe dar pormenores. A Bernardo ninguém fez perguntas, porque a mudez o tinha tornado invisível, condição insuspeitamente vantajosa. As pessoas falavam e agiam diante dele como se não existisse, dando-lhe oportunidade de observar e aprender sobre a duplicidade da condição humana. Começou a praticar a habilidade de ler a expressão corporal e assim descobriu que nem sempre as palavras correspondem às intenções. Concluiu que os ferrabrases se revelavam, regra geral, fáceis de vergar, que os veementes eram os menos sinceros, que a arrogância era própria dos ignorantes, que os aduladores costumavam ser ruins. Por meio da observação sistemática e dissimulada aprendeu a decifrar o carácter alheio e aplicou esses conhecimentos para proteger Diego, que era de natureza confiante, porque lhe custava muito imaginar noutros os defeitos que ele não tinha. Os rapazes não voltaram a ver o potro negro nem a raposa. Bernardo julgou vislumbrar uma ou outra vez Tornado a galopar no meio de uma manada selvagem e, num dos seus passeios, Diego encontrou uma cova com raposinhos recém-nascidos; mas não puderam relacionar nada disso com as visões atribuídas ao Grande Espírito.

Em qualquer caso, o rito de Coruja Branca marcou uma etapa. Ambos tiveram a impressão de ter cruzado um umbral e deixado a infância para trás. Não se sentiam ainda homens, mas sabiam que estavam a dar os primeiros passos no árduo caminho da virilidade. Acordaram juntos para as exigências peremptórias do desejo carnal, muito mais intoleráveis do que a doce e vaga atracção que Bernardo sentia desde os dez anos por Raio na Noite. Não lhes ocorreu satisfazerem as suas ânsias entre as complacentes índias da tribo de Coruja Branca, onde não imperavam as restrições impostas pelos missionários às neófitas, porque Diego era contido por um respeito absoluto pela avó, e Bernardo era refreado pelo seu amor de cachorro por Raio na Noite. Bernardo não aspirava a ser correspondido; apercebia-se de que ela era uma mulher feita, cortejada por meia dúzia de homens que vinham de longe para lhe trazerem presentes, ao passo que ele era um adolescente desajeitado, sem nada para oferecer e, ainda por cima, mudo como um pato. Nenhum dos dois foi tão-pouco às mestiças ou à mulata formosa da casa de pândega de Los Angeles, porque lhes tinham mais terror que a um touro solto; eram criaturas de outra espécie, com as bocas pintadas de batom e uma penetrante fragrância de jasmins mortos. Como todos os outros miúdos da sua idade - menos Carlos Alcázar, que se gabava de ter passado a prova - olhavam aquelas mulheres de longe, com veneração e espanto. Diego ia com outros filhos de fidalgos à Plaza de Armas à hora do passeio. Em cada volta ao redor da praça cruzavam-se com as mesmas raparigas da sua classe social e idade, que mal sorriam, olhando de soslaio, meia cara oculta por um leque ou uma mantilha, enquanto eles suavam um amor impossível nos seus fatos domingueiros. Não se falavam, mas alguns, os mais atrevidos, pediam licença ao alcaide para irem fazer serenatas debaixo das varandas das meninas, ideia que estremecia Diego de vergonha, em parte porque o alcaide era o seu pai. Não obstante, punha a hipótese de se ver obrigado a recorrer a esse método no futuro, razão pela qual praticava diariamente canções românticas no seu bandolim.

Alejandro de La Vega viu com enorme satisfação que aquele filho, que achava um doidivanas incorrigível, se estivesse finalmente a converter no herdeiro com que sonhava desde que o vira nascer. Renovou os planos de o educar como um cavalheiro, que haviam sido adiados no torvelinho de reconstruir a fazenda. Pensou em metê-lo num colégio religioso no México, visto que a situação na Europa continuava a ser instável, mas Regina armou tal alvoroço diante da ideia de se separar de Diego que não se voltou a falar no assunto durante dois anos. Entretanto, Alejandro incluiu o filho na gestão da fazenda e viu que era muito mais esperto do que as suas notas na escola permitiam supor. Não só decifrou à primeira vista o enxame de anotações e números dos livros de contabilidade, como aumentou os rendimentos da família aperfeiçoando a fórmula do sabão e da receita para fumar carne, que o pai tinha conseguido após inumeráveis defumaduras. Diego suprimiu a soda cáustica do sabão, juntou-lhe nata de leite e sugeriu dá-lo a experimentar às damas da colónia, que adquiriam esses artigos aos marinheiros americanos, violando as restrições impostas por Espanha ao comércio das colónias. Que fosse contrabando não importava: toda a gente fazia vista grossa; o inconveniente consistia em que os navios se faziam esperar demasiado. Os sabonetes de leite revelaram-se um êxito e o mesmo sucedeu com a carne fumada, quando Diego conseguiu atenuar a fetidez a suor de mula que a caracterizava. Alejandro de La Vega começou a tratar o filho com respeito e a consultá-lo em certas matérias.

Por essa altura, Bernardo contou a Diego, na sua língua privada de signos e anotações na ardósia, que um dos rancheiros, Juan Alcázar, pai de Carlos, estendera as suas terras para além dos limites assinalados nos papéis. O espanhol invadira com o seu gado os montes onde se refugiava uma das muitas tribos deslocadas pelos colonos. Diego acompanhou o irmão e chegaram a tempo de ver os capatazes queimarem as palhotas, secundados por um destacamento de soldados. Da povoação não restou senão cinza. Apesar do terror que a cena lhes provocava, Diego e Bernardo precipitaram-se a correr para intervirem. Sem se combinarem, num só impulso, colocaram-se entre os cavalos dos agressores e os corpos das vítimas. Teriam sido pisados sem misericórdia se um deles não reconhecesse o filho de Dom Alejandro de La Vega. De qualquer modo, afastaram-nos à chicotada.

A uma certa distância, os rapazes presenciaram, espantados, como os poucos índios que se rebelaram foram domados com chicotadas, e o chefe, um ancião, foi enforcado numa árvore, para servir de advertência aos outros. Sequestraram os homens capazes de trabalhar nos campos ou de servir no exército e levaram-nos amarrados como animais. Os anciãos, as mulheres e crianças ficaram condenados a vaguear pelos bosques, famintos e desesperados. Nada disto era novidade; acontecia com frequência cada vez maior, sem que ninguém se atrevesse a intervir, excepto o padre Mendoza, mas os seus protestos caíam nas orelhas moucas da lenta e remota burocracia de Espanha. Os documentos navegavam durante anos, perdiam-se nas poeirentas secretárias de juizes que nunca tinham posto os pés na América, enredavam-se em subterfúgios de leguleios e, no fim, embora os magistrados decidissem a favor dos indígenas, não havia quem fizesse valer a justiça deste lado do oceano. Em Monterrey, o governador ignorava as reclamações porque os índios não eram a sua prioridade. Os oficiais encarregados dos presídios eram parte do problema, porque punham os seus soldados ao serviço dos colonos brancos. Não duvidavam da superioridade moral dos Espanhóis que, como eles, tinham chegado de muito longe com o propósito de civilizar e cristianizar aquela terra selvagem. Diego foi falar com o pai. Encontrou-o, como sempre estava de tarde, a estudar batalhas antigas nos seus calhamaços, único resquício ainda vigente das ambições militares da sua juventude. Sobre uma comprida mesa dispunha os seus exércitos de soldados de chumbo de acordo com as descrições dos textos, paixão que nunca conseguiu inculcar em Diego. O rapaz contou às golfadas o que acabava de viver com Bernardo, mas a sua indignação esbarrou contra a indiferença de Alejandro de La Vega.

- Que propondes que eu faça, filho?

- Vossa Mercê é o alcaide...

- A distribuição de terras não é da minha jurisdição, Diego, e careço de autoridade para controlar os soldados.

- Mas o senhor Alcázar matou e sequestrou índios! Vossa Mercê perdoe a minha insistência, mas como pode permitir estes abusos? - balbuciou Diego, sufocado.

- Falarei com Dom Juan Alcázar, mas duvido que me escute - tornou Alejandro, movendo uma linha dos seus soldadinhos sobre o tabuleiro.

Alejandro de La Vega cumpriu a sua promessa. Fez mais do que falar com o rancheiro: foi queixar-se ao quartel, escreveu um relatório ao governador e enviou uma denúncia a Espanha. Manteve o filho informado de cada diligência, porque o fazia só por ele. Conhecia de sobra o sistema de classes para albergar alguma esperança de reparar o mal. Pressionado por Diego, tentou ajudar as vítimas, convertidas em miseráveis vagabundos, oferecendo-lhes protecção na sua própria fazenda. Tal como supunha, as suas diligências junto das autoridades de pouco serviram. Juan Alcázar anexou as terras dos índios às suas, a tribo desapareceu sem deixar rasto e não se voltou a falar do assunto. Diego de La Vega nunca esqueceu a lição; o mau sabor da injustiça ficou-lhe para sempre no mais recôndito da memória e voltaria a emergir uma e outra vez, determinando o curso da sua vida.

A comemoração dos quinze anos de Diego originou a primeira festa na grande casa da fazenda. Regina, que sempre se tinha oposto a abrir as suas portas, decidiu que aquela era a ocasião perfeita para tapar a boca à gentinha que, durante tantos anos, se comprazera em desprezá-la. Não só aceitou que o marido convidasse quem lhe desse na veneta, como ela própria se encarregou de organizar os festejos. Pela primeira vez na vida, visitou os navios do contrabando para se munir do necessário e pôs uma dezena de mulheres a coser e a bordar. Diego não deixou passar que era também o aniversário de Bernardo, mas Alejandro de La Vega fez-lhe ver que, apesar de o rapazinho ser como um membro da família, não se podia ofender os convidados sentando-os à mesa com ele. Por uma vez, Bernardo teria de ocupar o seu lugar entre os índios da criadagem, determinou. Não houve necessidade de discutir mais, porque Bernardo solucionou o assunto sem apelo, escrevendo na sua ardósia que pensava visitar a aldeia de Coruja Branca. Diego não tentou fazê-lo mudar de opinião, porque sabia que o irmão queria ver Raio na Noite, e tão-pouco podia esticar demasiado a corda com o pai, que tinha aceite que Bernardo fosse com ele para Espanha. Os planos de mandar Diego para o colégio no México haviam-se alterado com a chegada de uma carta de Tomás de Romeu, o mais velho amigo de Alejandro de La Vega. Na juventude tinham feito juntos a guerra em Itália e durante mais de vinte anos mantiveram-se em contacto com esporádicas cartas. Enquanto Alejandro cumpria o seu destino na América, Tomás casara-se com uma herdeira catalã e dedicara-se à boa vida, até que ela morrera ao dar à luz, não lhe restando então outra alternativa senão assentar e cuidar das duas filhas e do que restava da fortuna da mulher. Na sua carta, Tomás de Romeu comentava que Barcelona continuava a ser a cidade mais interessante de Espanha e que aquele país oferecia a melhor educação para um jovem. Viviam-se tempos fascinantes. Em 1808, Napoleão tinha invadido Espanha com cento e cinquenta mil homens, raptara o legítimo rei e induzira-o a abdicar a favor do seu próprio irmão, José Bonaparte, tudo isto parecendo um inconcebível atropelo a Alejandro de La Vega, até receber a carta do amigo. Tomás explicava que só o patriotismo de uma populaça ignorante, atiçada pelo baixo clero e por uns quantos fanáticos, podia opor-se às ideias liberais dos Franceses, que pretendiam acabar com o feudalismo e a opressão religiosa.

A influência dos Franceses, dizia, era como um vento fresco de renovação, que varria instituições medievais, como a Inquisição e os privilégios de nobres e militares. Na carta, Tomás de Romeu oferecia-se para hospedar Diego na sua casa, onde seria tratado e querido como um filho, para que pudesse completar a sua educação no Colégio de Humanidades, que, apesar de ser religioso - e ele não era amigo de sotainas -, tinha excelente reputação. Acrescentava, como chave de ouro, que o jovem poderia estudar com o famoso mestre de esgrima Manuel Escalante, que se radicara em Barcelona, depois de percorrer a Europa ensinando a sua arte. Bastou isto a Diego para suplicar ao pai com tal tenacidade que lhe permitisse fazer a viagem, que no fim Alejandro cedeu mais por cansaço do que por convicção, já que nenhum argumento do seu amigo Tomás podia atenuar a repugnância de saber a sua pátria invadida por estrangeiros. Pai e filho guardaram-se bem de contar a Regina que, além disso, Espanha estava assolada por guerrilhas, cruenta fórmula de luta inventada pelo povo para combater as tropas de Napoleão, a qual, conquanto não servisse para recuperar territórios, picava como vespas o inimigo, esgotando-lhe os recursos e a paciência.

O sarau de aniversário iniciou-se com uma missa do padre Mendoza, corridas de cavalos e uma tourada, na qual o próprio Diego fez vários passes de capa, antes de o matador profissional entrar na arena; prosseguiu com um espectáculo de acrobatas itinerantes e culminou com fogo-de-artifício e baile. Houve comida durante três dias para quinhentas pessoas, separadas por classes sociais: os espanhóis de pura cepa nas mesas principais com toalhas bordadas em Tenerife, debaixo de uma latada carregada de uvas, a gente de razão com as suas melhores galas nas mesas laterais à sombra, a indiada à torreira do sol nos pátios, onde se assava a carne, se tostavam as tortilhas e ferviam as panelas de chili e mole. Os convidados acorreram dos quatro pontos cardeais e pela primeira vez na história da província houve congestão de carruagens no Camino Real. Não faltou nem uma só menina de família respeitável, pois todas as mães tinham em mira o único herdeiro de Alejandro de La Vega, apesar do seu quarto de sangue índio. Entre elas contava-se Lolita Pulido, sobrinha de Dom Juan Alcázar, uma criatura de catorze anos, suave e coquete, muito diferente do primo Carlos Alcázar, que estava apaixonado por ela desde a infância. Apesar de Alejandro de La Vega detestar Juan Alcázar desde o incidente com os índios, teve de convidá-lo com toda a sua família, porque era um dos homens notáveis da povoação. Diego não cumprimentou o rancheiro nem o seu filho Carlos, mas foi atencioso com Lolita, pois considerou que a menina não tinha culpa dos pecados do tio. Além disso, havia um ano que ela lhe enviava recados de amor pela ama, a que ele não respondera por timidez e porque preferia manter-se o mais longe possível de qualquer membro da família Alcázar, mesmo que fosse uma sobrinha. As mães das donzelas casadoiras apanharam um balde de água fria ao verificarem que Diego não estava, nem remotamente, pronto para pensar em namoradas; era muito mais criança do que os seus quinze anos faziam supor. Na idade em que outros filhos de senhores cultivavam o bigode e faziam serenatas, Diego ainda não fazia a barba e perdia a voz diante de uma rapariga. O governador veio de Monterrey, trazendo consigo o conde Orloff, parente da czarina da Rússia e encarregado dos territórios do Alasca. Media quase dois metros de altura, tinha os olhos de um azul impossível e apresentou-se ataviado com o vistoso uniforme dos hussardos, todo de escarlate, com jaqueta afestoada de pele branca pendurada ao ombro, o peito atravessado de cordões dourados e bicórnio emplumado. Era, sem dúvida, o homem mais bonito que jamais se vira por aqueles lados. Orloff ouvira falar em Moscovo de um par de ursos brancos, que Diego de La Vega apanhara vivos e vestira com roupas de mulher, quando tinha apenas oito anos de idade. Não pareceu oportuno a Diego corrigir-lhe o engano, mas Alejandro, com a sua desnecessária ânsia da exactidão, apressou-se a explicar que não eram dois ursos, mas sim um e de cor escura, pois não havia outros na Califórnia; que Diego não o tinha caçado sozinho, mas sim com dois amigos; que lhe tinham colado um chapéu com pez, e que nessa época o rapaz tinha dez anos e não oito, como rezava a lenda. Carlos e a sua seita, por essa altura convertidos em ferrabrases notáveis, passaram quase despercebidos no aglomerado de convidados, mas não assim Garcia, que bebeu vários copos a mais e chorava publicamente de desconsolo pela partida próxima de Diego. Nesses anos, o filho do taberneiro tinha acumulado mais gordura que um búfalo, mas era ainda o mesmo menino assustado de antigamente, continuando a sentir por Diego o mesmo deslumbramento. A presença do esplêndido nobre russo e o esbanjamento do ágape calaram temporariamente as más-línguas da colónia. Regina teve o prazer de ver as mesmas enfatuadas pessoas, que antigamente a desdenhavam, inclinarem-se para lhe beijarem a mão. Alejandro de La Vega, completamente alheio a tais mesquinhezes, passeava-se entre os hóspedes ufano da sua posição social, da sua fazenda, do seu filho e, por uma vez, orgulhoso também da mulher, que se apresentou na festa trajada de duquesa, com um vestido de veludo azul e uma mantilha de renda de Bruxelas. Bernardo tinha galopado dois dias montanha acima até à aldeia da sua tribo para se despedir de Raio na Noite. Ela estava à sua espera, porque o correio dos índios difundira a notícia da sua viagem com Diego de La Vega. Pegou-lhe pela mão e levou-o ao rio para lhe perguntar o que havia para além do mar e quando pensava voltar. O rapaz fez-lhe um grosseiro desenho no chão com um pauzinho, mas não foi capaz de a fazer compreender as imensas distâncias que separavam a sua aldeia da Espanha mítica, porque ele próprio não conseguia imaginá-las.

O padre Mendoza mostrara-lhe um mapa-múndi, mas aquela bola pintada não lhe conseguia dar uma ideia da realidade. Quanto ao regresso, explicou-lhe por sinais que não sabia ao certo, mas seriam muitos anos.

- Nesse caso, quero que leves uma coisa minha de recordação - disse Raio na Noite.

Com os olhos brilhantes e um olhar de milenar sabedoria, a rapariga despojou-se dos colares de sementes e plumas, da faixa vermelha da cintura, das suas botas de coelho, da sua túnica de pele de cabrito, e ficou nua à luz dourada que se filtrava em pontinhos por entre as folhas das árvores. Bernardo sentiu que o sangue se lhe convertia em melaço, que sufocava de assombro e agradecimento, que a alma se lhe escapava em suspiros. Não sabia o que fazer diante daquela criatura extraordinária, tão diferente dele, tão bonita, que se lhe oferecia como o mais extraordinário presente. Raio na Noite tomou-lhe uma mão e pô-la sobre um dos seios, tomou-lhe a outra e pô-la na cintura, após o que ergueu os braços e começou a desfazer a trança dos cabelos, que lhe caíram como uma cascata de penas de corvo sobre os ombros. Bernardo soltou um soluço e murmurou o seu nome, Raio na Noite, a primeira palavra que ela lhe ouvia. A jovem recolheu com um beijo o som do seu nome e continuou a beijar Bernardo e a banhar-lhe o rosto de lágrimas antecipadas, porque antes de ele partir já estava a sentir saudades dele. Horas mais tarde, quando Bernardo acordou da felicidade absoluta em que o amor o mergulhara e conseguiu voltar a pensar, atreveu-se a sugerir a Raio na Noite o impensável: que ficassem juntos para sempre. Ela respondeu-lhe com uma gargalhada alegre e fez-lhe ver que ainda era um garoto; talvez a viagem o ajudasse a fazer-se um homem.

Bernardo passou várias semanas com a tribo dela; nesse tempo sucederam acontecimentos essenciais na sua vida, mas não quis contar-mos. O pouco que sei sobre este assunto foi-me dito por Raio na Noite.

Embora possa imaginar o resto sem problemas, não o farei, por respeito pelo temperamento reservado de Bernardo. Não quero ofendê-lo. Regressou à fazenda a tempo de ajudar Diego a arrumar as suas coisas para a travessia nos mesmos baús enviados por Eulália de Callís muitos anos antes. Mal Bernardo lhe apareceu à frente, Diego soube que algo fundamental tinha mudado na vida do seu irmão de leite, mas quando o quis averiguar deparou-se com um olhar de pedra que o atalhou de chofre. Adivinhou então que o segredo estava relacionado com Raio na Noite e não fez mais perguntas. Pela primeira vez nas suas vidas havia uma coisa que não podiam compartilhar.

Alejandro de La Vega tinha encomendado no México um enxoval de príncipe para o filho, que completou com as pistolas de duelo com incrustações de nácar e a capa preta forrada de seda com botões de prata toledana, presentes de Eulália. Diego acrescentou o seu bandolim, instrumento muito útil para o caso de superar a sua timidez diante das mulheres, o florete que fora do pai, o seu chicote de pele de touro e o livro do mestre Manuel Escalante. Por contraste, a bagagem de Bernardo consistia na roupa que levava no corpo, um par de mudas sobressalentes, uma negra manta de Castela e botas adequadas para os seus pés largos, obséquio do padre Mendoza, que considerou que em Espanha não devia andar descalço.

No dia anterior à partida dos jovens apareceu Coruja Branca para se despedir. Negou-se a entrar na casa, porque sabia que Alejandro de La Vega se envergonhava de tê-la por sogra e preferiu não fazer passar um mau bocado a Regina. Reuniu-se com os dois rapazes no pátio, longe de ouvidos alheios, e entregou-lhes os presentes que trouxera para eles. A Diego deu um frasco impressionante de xarope de dormideira, com a advertência de que só podia usá-lo para salvar vidas humanas. Pela sua expressão, Diego compreendeu que a avó sabia que ele tinha roubado a poção mágica cinco anos antes e, rubro de vergonha, assegurou-lhe que podia estar descansada: tinha aprendido a lição, cuidaria da beberagem como um tesouro e não voltaria a roubar. Para Bernardo, a índia trouxera um saquinho de couro que continha uma trança de cabelo preto. Raio na Noite tinha-lho enviado com um recado: que partisse em paz e se fizesse homem sem pressa, porque ainda passariam muitas luas; no seu regresso estaria à espera dele com o amor intacto. Comovido até à medula, Bernardo perguntou por gestos à avó como era possível que a jovem mais bela do universo o amasse precisamente a ele, que era um piolho, e ela respondeu-lhe que não sabia, as mulheres eram estranhas a esse ponto. Depois acrescentou, com uma piscadela de olho travessa, que qualquer mulher sucumbiria diante de um homem que só fala para ela. Bernardo pôs o saquinho ao pescoço por baixo da camisa, perto do coração.

Os esposos De La Vega, com os seus criados, e o padre Mendoza, com os seus neófitos, foram despedir-se dos rapazes à praia. Veio buscá-los um bote para os levar à goleta Santa Maria, de três mastros, sob o comando do comandante José Díaz, que tinha prometido conduzi-los sãos e salvos ao Panamá, primeira parte da longa viagem até à Europa. A última coisa que Diego e Bernardo viram antes de embarcarem no navio foi a figura altiva de Coruja Branca, com o seu manto de pele de coelho e o cabelo indómito ao vento, a dizer-lhes adeus com a mão num promontório de rochedos, perto das grutas sagradas dos índios.

 

                             Barcelona, 1810-1812

 

Abalanço-me a continuar com passo ligeiro, visto que lestes até aqui. O que vem é mais importante do que aquilo que antecede. A meninice de uma personagem não é fácil de contar, mas tinha de o fazer para vos dar uma ideia exacta do Zorro. A infância é uma época desgraçada, cheia de temores infundados, como o medo de monstros imaginários e do ridículo. Do ponto de vista literário, não tem suspense, já que, salvo excepções, as crianças costumam ser um pouco desenxabidas. Além disso, não têm poder - os adultos decidem por elas e fazem-no mal, inculcam-lhes as suas próprias ideias erróneas sobre a realidade e depois os miúdos passam o resto das suas vidas a tentar livrarem-se delas. Não foi, contudo, o caso de Diego de La Vega, o nosso Zorro, porque desde cedo fez mais ou menos o que lhe dava na veneta. Teve a sorte de as pessoas em seu redor, preocupadas com as suas paixões e assuntos, descurarem a sua vigilância. Chegou aos quinze anos sem grandes vícios e virtudes, excepto uma desproporcionada ânsia de justiça, que não sei se pertence à primeira ou à segunda categoria; digamos que é simplesmente um traço inseparável do seu carácter. Poderia acrescentar que outro traço é a vaidade, mas seria antecipar-me muito: isso desenvolveu-se mais tarde, quando se apercebeu de que aumentavam os seus inimigos, o que é sempre bom sinal, e os seus admiradores, sobretudo do sexo feminino. Agora é um homem jeitoso - pelo menos assim me parece -, mas aos quinze anos, quando chegou a Barcelona, era ainda um rapazote de orelhas salientes, que até não tinha acabado de mudar de voz. O problema das orelhas foi a razão pela qual lhe ocorreu a ideia de usar uma máscara, que desempenha a dupla função de ocultar tanto a sua identidade como aqueles apêndices de fauno. Se Moncada os tivesse visto ao Zorro, teria deduzido de imediato que o seu detestado rival era Diego de La Vega.

E agora, se mo permitis, prosseguirei com a minha narração que nesta altura se torna interessante, pelo menos para mim, porque foi nesta época que conheci o nosso herói.

O navio mercante Santa Lucía - a que os marinheiros chamavam Adelita por afecto e porque estavam fartos de embarcações com nomes de santas - fez o trajecto entre Los Angeles e a cidade do Panamá numa semana. Havia dez anos que o comandante José Díaz percorria a costa americana do Pacífico e nesse tempo tinha acumulado uma pequena fortuna, com a qual pensava arranjar uma esposa trinta anos mais nova do que ele e retirar-se para a sua aldeia em Múrcia dentro de um prazo breve. Alejandro de La Vega confiou-lhe o seu filho Diego com algum receio, porque o considerava homem de moral flexível; dizia-se que tinha feito o seu dinheiro com contrabando e tráfico de mulheres de reputação alegre. A panamenha fenomenal, cujo descontraído gozo pela vida iluminava as noites dos cavalheiros em Los Angeles, tinha chegado a bordo do Santa Lucía; mas não valia a pena ser comichoso, decidiu Alejandro: Diego estava melhor nas mãos de uma pessoa conhecida, por ruim que fosse, do que navegando sozinho através do mundo. Diego e Bernardo seriam os únicos passageiros a bordo e julgava que o comandante cuidaria zelosamente deles. Conduziam a goleta doze afeitos tripulantes, divididos em dois turnos, chamados bombordo e estibordo para os diferenciar, embora neste caso os nomes nada significassem. Enquanto uma equipa trabalhava o seu turno de quatro horas, a outra descansava e jogava às cartas. Uma vez que Diego e Bernardo conseguiram controlar o enjoo e se acostumaram ao balanço da navegação, puderam integrar-se na vida normal de bordo. Fizeram-se amigos dos marinheiros, que os tratavam com afecto protector, e repartiram o tempo nas mesmas actividades que eles. O comandante passava a maior parte do dia fechado no seu camarote a retouçar com uma mestiça e nem se apercebia de que os jovens a seu cargo saltavam como macacos nos mastros, com risco de partirem a cabeça.

Diego revelou-se tão hábil para fazer acrobacias nos cabos pendurado por uma mão ou por uma perna, como para as cartas. Tinha sorte ao jogo e um talento espantoso para fazer batota. Com uma cara da maior inocência esfolou aqueles experientes jogadores que, se tivessem apostado moedas, teriam ficado desconsolados, mas só usavam grãos-de-bico ou conchas. O dinheiro era proibido a bordo, para evitar que os tripulantes se massacrassem uns aos outros por causa de dívidas de jogo. Para Bernardo revelou-se uma faceta até então desconhecida do seu irmão de leite.

- Não passaremos fome na Europa, Bernardo, porque há-de haver sempre a quem ganhar ao jogo e, nessa altura, será com dobrões de ouro e não com grãos-de-bico, que me dizes? Não olhes para mim assim, homem, por Deus, quem visse diria que sou um criminoso. O teu mal é seres tão santinho. Não vês que, por fim, somos livres? Já cá não está o padre Mendoza para nos mandar para o inferno - riu-se Diego, acostumado como estava a falar com Bernardo e a responder a si próprio. Por altura de Acapulco, os marinheiros começaram a suspeitar que Diego os enganava e ameaçaram lançá-lo à água, nas costas do comandante, mas as baleias distraíram-nos.

Chegaram às dúzias, colossais criaturas que sussurravam de amor em coro e agitavam o mar com as suas apaixonadas rabanadas. Surgiam de repente à superfície e rodeavam o Santa Lucía tão de perto que se podiam contar os pedregosos e amarelados crustáceos agarrados ao lombo. A pele, escura e cheia de crostas, tinha impressa a história completa de cada um daqueles gigantes e a dos seus antepassados de séculos e séculos. De repente havia alguma que se erguia no ar, dava uma volta de saca-rolhas e caía com graciosidade. Os seus jorros salpicavam o barco com uma fina e fresca chuva. No esforço de fazer o quite às baleias e na excitação do porto de Acapulco, os marinheiros perdoaram a Diego, mas advertiram-no de que tivesse cuidado, porque é mais fácil morrer por ser batoteiro do que na guerra. Além disso, Bernardo não o deixava em paz com os seus escrúpulos telepáticos e teve de lhe prometer que não utilizaria aquela nova destreza para se tornar rico à custa da ruína de outros, como estava a projectar.

O mais útil da travessia de barco, à parte conduzi-los aonde iam, foi a liberdade que os rapazes tiveram para se exercitarem em proezas atléticas que só os marinheiros curtidos e os fenómenos de feira podem cometer. Na infância, penduravam-se no beiral da casa de cabeça para baixo, pendurados pelos pés, desporto que Regina e Ana procuraram inutilmente desencorajar à vassourada. No navio não havia quem lhes proibisse correr riscos, por isso aproveitaram para desenvolver a habilidade que tinham latente desde muito pequenos e que tanto haveria de servir-lhes neste mundo. Aprenderam a fazer cabriolas de trapezista, a trepar pelo cordame como aranhas, a baloiçar-se a vinte e quatro metros de altura, a descer do galope do mastro abraçados aos cabos, e a deslizar ao longo de um cabo folgado para contender com as velas. Ninguém lhes prestava atenção e ninguém queria realmente saber se partiam o crânio numa queda. Os marinheiros deram-lhes algumas lições muito importantes.

Ensinaram-nos a fazer diversos nós, a cantar para multiplicar a força em qualquer tarefa, a bater nas bolachas para soltar os bichos do gorgulho, a nunca assobiar no mar alto, porque altera o vento, a dormir aos bocadinhos, como os recém-nascidos, e a beber rum com pólvora para provar a virilidade. Nenhum dos dois passou esta última prova: Diego por pouco não se ficou de náuseas e Bernardo chorou toda a noite, porque lhe apareceu a mãe. O imediato, um escocês de nome McFerrin, muito mais experimentado em matérias de navegação que o comandante, deu-lhes o conselho mais importante: uma mão para navegar, a outra para ti. A todo o momento, inclusivamente em águas calmas, deviam andar bem agarrados. Bernardo esqueceu-o por um instante, quando assomava à popa para ver se os tubarões os seguiam. Não se viam em parte nenhuma, mas tinham a intuição de aparecer assim que o cozinheiro atirava os desperdícios pela borda. Estava nisso, distraído a observar a superfície do oceano, quando um balanço inesperado o atirou à água. Era muito bom nadador e para sua sorte alguém o viu cair e deu o alarme, senão ali ficava, porque nem sequer nessas circunstâncias conseguiu arranjar voz para gritar. Isto causou um incidente desagradável. O comandante José Díaz considerou que não valia a pena parar e mandar um bote buscá-lo, com as consequentes maçadas e perda de tempo. Se fosse o filho de Alejandro de La Vega, talvez não tivesse hesitado tanto, mas tratava-se apenas de um índio mudo e, na sua opinião, também pateta. Devia sê-lo para ir pela borda fora, argumentou. Enquanto o comandante vacilava, pressionado por McFerrin e pelo resto da tripulação, para quem resgatar o infeliz que cai ao mar é um princípio inalienável da navegação, Diego lançou-se atrás do irmão. Fechou os olhos e saltou sem pensar demasiado porque, vista de cima, a altura parecia enorme. Tão-pouco esquecia os tubarões que, embora não estivessem ali naquele momento, nunca andavam demasiado longe. O choque com a água deixou-o atordoado por uns segundos, mas Bernardo alcançou-o com umas quantas braçadas e susteve-o com o nariz acima da superfície. Em vista de que o seu passageiro principal corria o risco de acabar devorado, se não se decidisse rapidamente, José Díaz autorizou o salvamento. O escocês e outros três homens já tinham arriado o bote quando apareceram os primeiros tubarões, que começavam uma alegre dança em círculos à roda dos náufragos. Diego gritava até se esganiçar e engolia água, enquanto Bernardo agarrava calmamente o amigo com um braço e nadava com o outro. McFerrin disparou um tiro de pistola sobre o esqualo mais próximo e a água tingiu-se imediatamente de uma ondulante pincelada cor de óxido. Aquilo serviu de distracção aos restantes animais, que se atiraram ao ferido com claras intenções de o servir para o almoço, e deu tempo aos marinheiros de socorrer os rapazes. Um coro de aplausos e apupos da tripulação celebrou a manobra.

Entre arriar o bote, localizar os náufragos, dar pancadas com os remos nos tubarões mais audazes e regressar a bordo, perdeu-se um bom bocado. O comandante considerou um insulto pessoal que Diego se tivesse atirado à água, forçando-lhe a mão, e, como represália, proibiu-o de subir aos mastros, mas já era tarde, porque se encontravam em frente do Panamá, onde devia deixar os passageiros. Os jovens despediram-se com pesar da tripulação do Santa Lucía e desembarcaram com a sua bagagem, bem armados com as pistolas de duelo, a espada e o chicote de Diego, tão mortífero como um canhão, além da faca de Bernardo, arma de muitos usos, desde limpar as unhas e fatiar o pão até caçar presas maiores. Alejandro de La Vega tinha-os advertido de que não confiassem em ninguém. Os nativos tinham fama de ladrões; por conseguinte, deviam revezar-se para dormir, sem perder de vista os baús em nenhum momento.

Diego e Bernardo acharam a cidade do Panamá magnífica, porque qualquer coisa comparada com a povoaçãozinha de Los Angeles certamente o era. Por ali passavam, desde havia três séculos, as riquezas da América rumo às arcas reais de Espanha. Do Panamá eram transportados em recuas de mulas através das montanhas e depois em botes pelo rio Chagres até ao mar das Caraíbas. A importância daquele porto, assim como a de Portobelo, na costa atlântica do istmo, tinha diminuído na mesma medida em que o ouro e a prata das colónias escassearam. Também se podia chegar do oceano Pacífico ao Atlântico dando a volta ao continente pelo extremo sul, no cabo Horn, mas bastava dar uma olhadela ao mapa para perceber que era um trajecto eterno. Tal como explicara o padre Mendoza aos rapazes, o cabo Horn fica onde acaba o mundo de Deus e começa o mundo dos espectros. Atravessando a estreita cintura do istmo do Panamá, uma viagem que requer apenas um par de dias, poupam-se meses de navegação, razão pela qual o imperador Carlos I(*) sonhava, já em 1534, abrir um canal para ligar os dois oceanos, ideia descabelada, como tantas que ocorrem a certos monarcas. O maior inconveniente do lugar eram os miasmas, ou emanações gasosas, que se soltavam da vegetação podre da selva e dos lodaçais dos rios, dando origem a horripilantes pragas. Um número aterrador de viajantes morria fulminado pela febre-amarela, pela cólera e pela disenteria. Tão-pouco faltava quem enlouquecesse, segundo diziam, mas suponho que se tratava de gente imaginativa, pouco apta para andar solta nos trópicos. Nas epidemias morriam tantos que os coveiros não tapavam as valas comuns onde se empilhavam os cadáveres, porque sabiam que chegariam mais nas próximas horas. Para proteger Diego e Bernardo desses perigos, o padre Mendoza entregou a um e outro uma medalha de São Cristóvão, patrono de viajantes e navegantes. Estes talismãs deram milagrosos resultados e ambos sobreviveram.

 

* Provavelmente trata-se de Carlos V. (N. do D.)

 

Ainda bem, porque de outro modo não teríamos esta história. O calor da fogueira impedia-os de respirar e tinham de matar os mosquitos à sapatada, mas, de resto, passaram muito bem. Diego estava encantado naquela cidade, onde ninguém os vigiava e havia tantas tentações para escolher. Só a beatice de Bernardo o impediu de acabar numa casa de tavolagem ou nos braços de uma mulher de boa vontade e má reputação, onde talvez tivesse perecido de uma punhalada ou de exóticas doenças. Bernardo não pregou olho nessa noite, não tanto para se defender dos bandidos, como para olhar por Diego.

Os irmãos de leite jantaram numa casa de pasto do porto e pernoitaram no dormitório comum de uma hospedaria, onde os viajantes se acomodavam como podiam em enxergões no chão. Mediante pagamento a dobrar, conseguiram macas e mosquiteiros emporcalhados, ficando assim mais ou menos a salvo de ratos e baratas. No dia seguinte atravessaram as montanhas para se dirigirem a Cruces por uma boa estrada empedrada, da largura de duas mulas, a que, com a sua característica falta de inventiva para os nomes, os Espanhóis chamavam Camino Real. Nas alturas, o ar era menos denso e húmido que nas terras baixas e a vista que se estendia aos seus pés era um verdadeiro paraíso. No verde absoluto da selva brilhavam, como prodigiosas pinceladas, aves de plumagem adornada e borboletas multicores. Os nativos revelaram-se pessoas extremamente decentes e, em vez de se aproveitarem da inocência dos jovens viajantes, como correspondia à sua má fama, ofereceram-lhes peixe com banana frita e nessa noite hospedaram-nos numa palhota infestada de bichos, mas onde, pelo menos, estavam protegidos das chuvas torrenciais. Aconselharam-nos a evitar as tarântulas e certos sapos verdes, que cospem para os olhos e deixam as pessoas cegas, assim como uma variedade de noz que queima o esmalte dos dentes e produz cãibras mortais no estômago.

Em alguns trechos, o rio Chagres parecia um pântano espesso, mas noutros era de águas límpidas. Percorria-se em canoas ou em botes chatos, com capacidade para oito ou dez passageiros com a respectiva bagagem. Diego e Bernardo tiveram de aguardar um dia inteiro, até se juntarem pessoas suficientes para encher uma embarcação. Quiseram dar um mergulho no rio para se refrescarem - o calor pesado aturdia as cobras e silenciava os macacos - mas, mal introduziram um pé na água, acordaram os caimões, que dormitavam sob a superfície, mimetizados com o lodo. Os garotos retrocederam à pressa, no meio das gargalhadas dos nativos. Não se atreveram a beber a água esverdeada com peixes-cabeçudos que os seus amáveis anfitriões lhes ofereciam, e aguentaram a sede, até que outros viajantes, rudes comerciantes e aventureiros, compartilharam com eles as suas garrafas de vinho e cerveja. Aceitaram tão ansiosos e beberam com tanto prazer que depois nenhum dos dois foi capaz de recordar essa parte da travessia, salvo a peculiar forma de navegar dos nativos. Seis homens, munidos de compridas varas, iam de pé em cima de duas plataformas de ambos os lados da embarcação. Começando pela popa, enterravam as pontas das varas no leito do rio e caminhavam o mais depressa que podiam até à proa, empurrando com todo o corpo, e assim avançavam, mesmo contra a corrente. Devido ao calor, iam nus. O percurso demorou mais ou menos dezoito horas, que Diego e Bernardo fizeram num estado de alucinação etílica, esparramados debaixo do toldo que os protegia do sol de lava ardente sobre as suas cabeças. Ao chegar ao destino, os outros viajantes, entre cotoveladas e risos, desembarcaram-nos do bote aos empurrões. Assim perderam, nas onze léguas de caminho entre a desembocadura do rio e a cidade de Portobelo, um dos baús com grande parte do enxoval de príncipe adquirido por Alejandro de La Vega para o filho. Foi um acontecimento bastante afortunado, porque ainda não tinha chegado à Califórnia a última moda no vestir. Os fatos de Diego eram francamente para rir.

Portobelo, fundada em 1500 no golfo de Darién, era uma cidade fundamental, porque ali embarcavam os tesouros para Espanha e chegava a mercadoria europeia à América. Na opinião dos antigos comandantes, não existia nas índias um porto mais capaz e seguro. Contava com vários fortes para a defesa, além de inexpugnáveis recifes. Os Espanhóis construíram as fortalezas com corais extraídos do fundo do mar, maleáveis quando estavam húmidos, mas tão resistentes ao secarem que as balas dos canhões mal lhes faziam mossa. Uma vez por ano, quando chegava a frota do tesouro, organizava-se uma feira de quarenta dias e, então, a população aumentava com milhares e milhares de visitantes. Diego e Bernardo tinham ouvido dizer que na Casa Real do Tesouro os lingotes de ouro se empilhavam como lenha, porém tiveram uma desilusão, porque nos dois últimos anos a cidade decaíra, em parte pelos ataques dos piratas, mas mais ainda devido ao facto de as colónias já não serem tão rentáveis para Espanha como antigamente haviam sido. As moradias de madeira e pedra estavam desbotadas pela chuva, os edifícios públicos e adegas invadidos de ervas daninhas, as fortalezas languesciam numa sesta eterna. Apesar disso, havia vários barcos no porto e um enxame de escravos a carregar metais preciosos, algodão, tabaco, cacau, e a descarregar fardos para as colónias. Entre as embarcações distinguia-se o Madre de Dios, na qual Diego e Bernardo atravessariam o Atlântico.

Esse navio, construído cinquenta anos atrás, mas ainda em excelente estado, tinha três mastros e velas quadradas. Era maior, mais lento e mais pesado que a goleta Santa Lucía e prestava-se melhor para viagens através do oceano. Coroava-o uma espectacular figura de proa em forma de sereia. Os marinheiros acreditavam que os seios nus acalmavam o mar e os daquela esfinge eram opulentos.

O comandante, Santiago de León, demonstrou ser um homem de personalidade singular. Era de baixa estatura, enxuto, com as feições cortadas à faca num rosto curtido por muitos mares. Coxeava, devido a uma desgraçada operação para lhe tirar uma bala da perna esquerda, que o cirurgião não conseguira extrair, mas, na tentativa, deixara-o inutilizado e dorido para o resto dos seus dias. O homem não era atreito a queixar-se, cerrava os dentes, medicava-se com láudano e procurava distrair-se com a sua colecção de fantasiosos mapas. Neles figuravam lugares que tenazes viajantes procuraram durante séculos sem êxito, como El Dorado, a cidade de ouro puro; a Atlântida, o continente submerso cujos habitantes são humanos, mas têm escamas, como os peixes; as ilhas misteriosas de Luquebaralideaux, no mar Selvagem, povoadas por enormes salsichas de aguçados dentes, mas sem ossos, que circulam em manadas e se alimentam da mostarda que flui nos regatos e, segundo se julga, pode curar mesmo as piores feridas. O comandante entretinha-se a copiar os mapas e a acrescentar sítios de sua própria invenção, com pormenorizadas explicações, após o que os vendia a preço de ouro aos antiquários de Londres. Não pretendia enganar; assinava-os sempre pelo seu próprio punho e acrescentava uma hermética frase, que qualquer entendido conhecia: Obra numerada da Enciclopédia de Desejos, versão integral.

Na sexta-feira, a carga estava a bordo, mas o Madre de Dios não largou porque Cristo morrera numa sexta-feira. É um mau dia para iniciar a navegação. No sábado, os quarenta homens da tripulação negaram-se a partir, porque passara por eles no molhe um sujeito de cabelo ruivo e um pelicano caíra morto sobre a ponte do barco, dois péssimos augúrios. Por fim, no domingo, Santiago de León conseguiu que a sua gente desfraldasse as velas. Os únicos passageiros eram Diego, Bernardo, um auditor, que regressava do México à pátria, e a sua filha de trinta anos, feia e lamurienta. A rapariga apaixonou-se por cada um dos rudes marinheiros, mas estes fugiam dela como do demónio, porque toda a gente sabe que as mulheres honestas a bordo atraem o mau tempo e outras calamidades. Deduziram que era honesta por falta de oportunidades de pecar, mais do que por virtude natural. O auditor e a filha dispunham de um camarote diminuto, mas Diego e Bernardo, como a tripulação, dormiam em macas suspensas na malcheirosa coberta inferior. O camarote do comandante, na popa, servia de escritório, gabinete de comando, casa de jantar e sala de recreio para oficiais e passageiros. A porta e os móveis dobravam-se conforme necessário, como a maior parte das coisas a bordo, onde o espaço constituía o maior luxo. Durante várias semanas no mar alto os rapazes nunca dispuseram de um momento de privacidade; até as funções mais elementares eram levadas a cabo à vista dos outros num balde, se havia ondulação, ou, em caso contrário, sentados numa tábua com um buraco directamente sobre o mar. Ninguém soube como se arranjou a pudica filha do auditor, porque nunca a viram despejar um bacio. Os marinheiros trocavam apostas a esse respeito, primeiro mortos de riso e depois assustados, porque uma obstipação tão perseverante parecia coisa de bruxaria. À parte o movimento constante e a promiscuidade, o mais notável era o barulho. As madeiras rangiam, os metais chocavam, os tonéis rolavam, os cabos gemiam e a água fustigava o navio. Para Diego e Bernardo, habituados à solidão, ao espaço e ao silêncio imensos da Califórnia, a adaptação à vida de navegantes não foi fácil.

Diego resolveu sentar-se em cima dos ombros da figura de proa, lugar perfeito para perscrutar a linha infinita do horizonte, salpicar-se de água salgada e saudar os golfinhos. Abraçava-se à cabeça da donzela de madeira e apoiava os pés nos seus mamilos. Dadas as condições atléticas do rapaz, o comandante limitou-se a exigir-lhe que se segurasse com um cabo à cintura, porque, se caísse dali, o navio passar-lhe-ia por cima; mas, mais tarde, quando o surpreendeu encarrapitado na ponta do mastro grande, a mais de trinta metros de altura, não lhe disse nada. Decidiu que, se estava destinado a morrer cedo, ele não o poderia impedir. Havia sempre actividade no navio, que não parava de noite, mas o grosso do trabalho realizava-se de dia. Marcava-se o primeiro turno com badaladas ao meio-dia, quando o Sol estava no zénite e o comandante fazia a primeira medição para se localizar. A essa hora, o cozinheiro distribuía uma pinta de limonada por homem, para prevenir o escorbuto, e o oficial imediato repartia o rum e o tabaco, únicos vícios permitidos a bordo, onde apostar dinheiro, lutar, apaixonar-se e inclusivamente blasfemar era proibido. Ao crepúsculo náutico, essa hora misteriosa do entardecer e da alva em que as estrelas titilam no firmamento, mas a linha do horizonte ainda é visível, o comandante fazia novas medições com o sextante, consultava os seus cronómetros e o almanaque de efemérides celestes, que indica onde se encontram os astros em cada momento. Para Diego esta operação geométrica revelou-se fascinante, porque todas as estrelas lhe pareciam iguais e para onde quer que olhasse via apenas o mesmo mar de aço e o mesmo céu branco, mas depressa aprendeu a observar com olhos de navegante. O comandante também vivia suspenso do barómetro, porque as mudanças de pressão no ar lhe anunciavam as tempestades e os dias em que a perna lhe doeria mais.

Nos primeiros dias dispuseram de leite, carne e vegetais, mas antes de decorrida uma semana tiveram de limitar-se a legumes, arroz, frutos secos e a eterna bolacha dura como mármore e carregada de bicho. Também tinham carne salgada, que o cozinheiro demolhava um par de dias em água com vinagre antes de a deitar na panela, para lhe tirar a consistência de sela de cavalo. Diego pensou que o pai podia fazer um estupendo negócio com a sua carne fumada, mas Bernardo fez-lhe ver que levá-la em quantidade suficiente para Portobelo era um sonho. À mesa do comandante, para a qual Diego, o auditor e a filha estavam sempre convidados, mas não Bernardo, servia-se, além disso, língua de vaca de escabeche, azeitonas, queijo manchego e vinho. O comandante pôs à disposição dos passageiros o seu tabuleiro de xadrez e as suas cartas de jogar, assim como um pacote de livros, que só interessaram a Diego, entre os quais encontrou um par de ensaios sobre a independência das colónias. Diego admirava o exemplo dos Norte-Americanos, que se tinham libertado do jugo inglês, mas não lhe ocorrera que as aspirações de liberdade das colónias espanholas na América eram também louváveis, até ler as publicações do comandante.

Santiago de León revelou-se um interlocutor tão interessante que Diego sacrificou horas de alegres acrobacias no cordame para conversar com ele e estudar os seus mapas fantásticos. O comandante, um solitário, descobriu o prazer de compartilhar os seus conhecimentos com uma mente jovem e inquisitiva. Era um leitor incansável; trazia consigo caixotes de livros, que trocava por outros em cada porto. Dera várias vezes a volta ao mundo, conhecia terras tão estranhas como as descritas nos seus fabulosos mapas e tinha estado tantas vezes a ponto de morrer que perdera o medo à vida. O mais revelador para Diego, acostumado a verdades absolutas, foi que aquele homem de mentalidade renascentista duvidava de quase tudo o que constituía o fundamento intelectual e moral de Alejandro de La Vega, do padre Mendoza e do seu professor na escola. Às vezes, surgiam perguntas a Diego sobre os rígidos esquemas martelados no seu cérebro desde o nascimento, mas nunca ousara desafiá-los em voz alta. Quando as regras o incomodavam demasiado, esquivava-se dissimuladamente a elas, nunca se revelava abertamente. Com Santiago de León atreveu-se a falar de assuntos que nunca teria abordado com o pai. Descobriu, maravilhado, que havia um sem-fim de maneiras diversas de pensar.

De León fez-lhe ver que não eram só os Espanhóis que se diziam superiores ao resto da humanidade, todos os povos sofriam da mesma miragem; que na guerra os Espanhóis cometiam exactamente as mesmas atrocidades que os Franceses ou qualquer outro exército: violavam, roubavam, torturavam, assassinavam; que cristãos, mouros e judeus sustentavam por igual que o seu Deus era o único verdadeiro e desprezavam as outras religiões. O comandante era partidário da abolição da monarquia e da independência das colónias, dois conceitos revolucionários para Diego, que fora formado na crença de que o rei era sagrado, e a obrigação natural de todo o espanhol era conquistar e cristianizar outras terras. Santiago de León defendia exaltadamente os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa, apesar de não aceitar que os Franceses tivessem invadido Espanha. Nesse assunto deu mostras de um feroz patriotismo: preferia ver a sua pátria mergulhada no obscurantismo da Idade Média, disse, a ver o triunfo das ideias modernas, se fossem impostas por estrangeiros. Não perdoava a Napoleão que tivesse obrigado o rei de Espanha a abdicar e colocado no seu lugar o irmão, José Bonaparte, que o povo tinha apodado de Pepe Botellas.(1)

- Toda a tirania é abominável, meu jovem - concluiu o comandante. - Napoleão é um tirano. De que serviu a revolução se o rei foi substituído por um imperador? Os países devem ser governados por um conselho de homens ilustrados, responsáveis pelas suas acções perante o povo.

- A autoridade dos reis é de origem divina, comandante - alegou debilmente Diego, repetindo as palavras do pai, sem perceber bem o que dizia.

- Quem o assegura? Que eu saiba, jovem De La Vega, Deus não se pronunciou a esse respeito.

 

*1 Zé-Garrafas. (N. do T.)

 

- Segundo as Sagradas Escrituras...

- Leste-las? - interrompeu-o, enfático, Santiago de León. - Em nenhum sítio as Sagradas Escrituras dizem que os Bourbons hão-de reinar em Espanha ou Napoleão em França. Aliás, as Sagradas Escrituras nada têm de sagradas, foram escritas por homens e não por Deus.

Era de noite e passeavam na ponte. O mar estava calmo e entre os eternos rangidos do navio ouvia-se com alucinante nitidez a flauta de Bernardo, procurando Raio na Noite e a mãe nas estrelas.

- Credes que Deus existe? - perguntou-lhe o comandante.

- Com certeza, comandante!

Santiago de León apontou com um gesto amplo o escuro firmamento salpicado de constelações.

- Se Deus existe, não se interessa certamente por designar os reis de cada astro celestial... - disse.

Diego de La Vega soltou uma exclamação de espanto. Duvidar de Deus era a última coisa que lhe passaria pela cabeça, mil vezes mais grave do que duvidar do mandato divino da monarquia. Por muito menos do que isso a temida Inquisição tinha queimado gente em infames fogueiras, o que não parecia preocupar nem um pouco o comandante.

Cansado de ganhar grãos-de-bico e conchinhas às cartas aos marinheiros, Diego resolveu assustá-los com histórias horripilantes, inspiradas nos livros do comandante e nos mapas fantásticos, que enriqueceu lançando mão da sua inesgotável imaginação, onde figuravam polvos gigantescos, capazes de despedaçar com os seus tentáculos um navio tão grande como o Madre de Dios, salamandras carnívoras do tamanho de baleias e sereias que, de longe, pareciam sensuais donzelas, mas na realidade eram monstros com línguas em forma de cobra. Nunca ninguém se devia aproximar delas, advertiu-os, porque estendiam os seus braços delicados, abraçavam os incautos, beijavam-nos e então as suas línguas mortíferas introduziam-se pela garganta da desventurada vítima e devoravam-na por dentro, deixando apenas o esqueleto coberto de pele.

- Já vistes aquelas luzes que às vezes brilham sobre o mar, aquelas a que chamam fogos-fátuos! Sabeis, certamente, que anunciam a presença dos mortos-vivos. São marinheiros cristãos que naufragaram em assaltos de piratas turcos. Não conseguiram obter a absolvição dos seus pecados e as suas almas não encontram o caminho para o Purgatório. Estão presos com os restos dos seus navios no fundo do mar sem saberem que já estão mortos. Em noites como esta, essas almas penadas sobem à superfície. Se por desgraça um barco se encontra por ali, os mortos-vivos trepam a bordo e roubam o que encontram, a âncora, o leme, os instrumentos do comandante, os cabos e até os mastros. Isso não é o pior, amigos: é que também precisam de marinheiros. Arrastam aquele que conseguem agarrar até às profundezas do oceano para que os ajude a resgatar os seus barcos e navegar até praias cristãs. Se aparecerem silenciosas figuras negras, podeis estar seguros de que são os mortos-vivos. Reconhecê-los-eis pelas capas que usam para disfarçar o chocalhar dos seus pobres ossos.

Verificou, encantado, que a sua eloquência produzia pavor colectivo. Contava as suas histórias de noite, depois do jantar, à hora a que as pessoas saboreavam a sua pinta de rum e mastigavam o seu tabaco, porque na penumbra se lhe tornava muito mais fácil eriçar-lhes os cabelos de espanto. Depois de preparar o terreno durante vários dias de arrepiantes narrações, aprestou-se a dar o golpe de misericórdia. Completamente vestido de preto, com luvas e a capa de botões toledanos, efectuava aparições súbitas nos recantos mais escuros. Com essa indumentária tornava-se quase invisível de noite, excepto pela cara, mas Bernardo teve a ideia de a cobrir com um lenço também preto, no qual abriu dois buracos para os olhos. Vários marinheiros viram pelo menos um morto-vivo. Correu a notícia num instante de que o barco estava enfeitiçado e culparam a filha do auditor, que devia estar endemoninhada, visto que não usava o bacio. Só ela podia ser responsável por ter atraído os espectros. O rumor chegou à nervosa solteirona e provocou-lhe uma enxaqueca tão brutal que o comandante teve de a aturdir durante dois dias com doses generosas de láudano. Ao tomar conhecimento do sucedido, Santiago de León reuniu os marinheiros na ponte e ameaçou suprimir-lhes o álcool e o tabaco, a todos por igual, se continuassem a propagar patetices. Os fogos-fátuos, disse, eram um fenómeno natural provocado por gases emanados pela decomposição de algas, e as aparições que julgavam ver eram apenas produto da sugestão. Ninguém o acreditou, mas o comandante impôs a ordem. Uma vez restaurada uma aparência de calma entre a sua gente, conduziu Diego por um braço até ao seu camarote e a sós advertiu-o de que, se qualquer morto-vivo voltasse a rondar o Madre de Dios, não teria escrúpulos em aplicar-lhe umas chicotadas.

- Tenho direito de vida e de morte no meu navio, e, por maioria de razão, de vos marcar as costas para sempre. Estamos entendidos, jovem De La Vega? - disse-lhe entre dentes, acentuando cada palavra.

Era claro como o meio-dia, mas Diego não respondeu, porque se distraiu a observar um medalhão de ouro e prata gravado com estranhos símbolos, pendurado ao pescoço do comandante. Ao perceber que Diego o tinha visto, Santiago de León apressou-se a escondê-lo e a abotoar a casaca. Foi tão brusca a sua acção que o rapaz não se atreveu a perguntar-lhe o significado da jóia. Depois de desabafar, o comandante amansou.

- Se tivermos sorte com os ventos e não depararmos com piratas, esta viagem durará seis semanas. Tereis ocasião de sobra para vos aborrecerdes, jovem. Sugiro-vos que, em vez de assustar a minha gente com traquinices infantis, vos dediqueis a estudar. A vida é curta, falta sempre tempo para aprender.

Diego calculou que tinha lido quase tudo o que havia de interessante a bordo e já dominava o sextante, os nós de marinheiro e as velas, mas assentiu sem vacilar, porque tinha outra ciência em mente. Dirigiu-se ao sufocante porão do navio, onde o cozinheiro estava a preparar a sobremesa dos domingos, um pudim de melaço e nozes, que a tripulação aguardava todas as semanas com ansiedade. Era um genovês embarcado na marinha mercante espanhola para escapar à prisão, onde em justiça devia estar por ter matado a mulher à machadada. Tinha um nome inadequado para um navegante: Galileo Tempesta. Antes de se converter no cozinheiro do Madre de Dios, Tempesta fora mágico e ganhava a vida percorrendo mercados e feiras com os seus truques de ilusionismo. Possuía um rosto expressivo, olhos dominadores e mãos de virtuoso, com dedos como tentáculos. Era capaz de fazer desaparecer uma moeda com tal destreza que, a um palmo de distância, era impossível descobrir como diabo o fazia. Aproveitava os momentos de trégua nos seus labores da cozinha para se exercitar; quando não estava a manusear moedas, cartas de jogar e adagas, cosia compartimentos secretos em chapéus, botas, forros e punhos de casacos, para esconder lenços multicores e coelhos vivos.

- O comandante mandou-me cá, senhor Tempesta, para que me ensineis tudo o que sabeis - anunciou-lhe Diego à queima-roupa.

- Não sei lá muito de cozinha, jovem.

- Refiro-me é à magia...

- Isto não se aprende a falar, aprende-se fazendo - redarguiu Galileo Tempesta.

Durante o resto da viagem dedicou-se a ensinar-lhe os seus truques, pela mesma razão que o comandante lhe contava as suas viagens e lhe mostrava os seus mapas: porque aqueles homens nunca tinham desfrutado de tanta atenção como a que Diego lhes oferecia. No final da travessia, quarenta e um dias mais tarde, Diego era capaz, entre outras proezas inusitadas, de engolir um dobrão de ouro e extraí-lo intacto por uma das suas notáveis orelhas.

O Madre de Dios deixou a cidade de Portobelo e, aproveitando as correntes do golfo, meteu para norte, bordejando a costa. Por altura das Bermudas, atravessou o Atlântico e, umas semanas mais tarde, deteve-se nas ilhas dos Açores para se abastecer de água e alimentos frescos. O arquipélago de nove ilhas vulcânicas, pertencentes a Portugal, era passagem obrigatória de baleeiros de diversas nacionalidades. Aportaram à ilha das Flores, apropriadamente chamada, pois estava coberta de hortênsias e rosas, justamente num feriado nacional. A tripulação fartou-se de vinho e da robusta sopa típica do local, após o que se divertiu um bocado em rixas ao murro com baleeiros americanos e noruegueses e, para completar um fim-de-semana perfeito, saiu em massa a participar na pândega generalizada dos touros. A população masculina da ilha, mais os marinheiros visitantes, lançou-se à frente dos touros pelas empinadas ruas da povoação, gritando as obscenidades que o comandante Santiago de León proibia a bordo. As bonitas mulheres da localidade, adornadas com flores no cabelo e nos decotes, animavam a prudente distância, enquanto o padre e um par de freiras preparavam ligaduras e sacramentos para cuidar dos feridos e moribundos. Diego sabia que qualquer touro é sempre mais rápido que o mais veloz ser humano, mas, como investe cego de raiva, é possível enganá-lo. Tinha visto tantos na sua curta vida, que não o temia demasiado. Graças a isso, salvou por uma unha negra Galileo Tempesta, quando um par de cornos se dispunham a trespassá-lo pelo traseiro. O rapazinho correu a bater na fera com uma vara para a obrigar a mudar de rumo, enquanto o mágico se atirava de cabeça para uma moita de hortênsias, entre aplausos e gargalhadas da assistência. Depois, calhou a vez a Diego de fugir como um gamo, com o touro nos calcanhares. Embora tivesse havido número suficiente de magoados e contusos, ninguém morreu colhido nesse ano. Era a primeira vez na história que isso sucedia, e a gente dos Açores não soube se era bom augúrio ou sinal de fatalidade. Isso estava para se ver. Em qualquer caso, os touros converteram Diego em herói. Galileo Tempesta, agradecido, ofereceu-lhe uma adaga marroquina munida de uma mola disfarçada, que permitia recolher a lâmina dentro do cabo.

O navio continuou a sua travessia por mais umas semanas, impelido pelo vento, costeou Espanha, passando frente a Cádis sem parar, e aproou ao estreito de Gibraltar, porta de acesso ao mar Mediterrâneo, controlado pelos Ingleses, aliados de Espanha e inimigos de Napoleão. Seguiu sem sobressaltos de maior ao longo da costa, sem tocar nenhum porto, e chegou por fim a Barcelona, onde terminava a viagem de Diego e Bernardo. O antigo porto catalão apresentou-se aos seus olhos como um bosque de mastros e velames. Havia embarcações das mais variadas procedências, formas e tamanhos. Se os jovens tinham ficado impressionados com a povoaçãozinha do Panamá, imagine-se a impressão que Barcelona lhes causou. O perfil da cidade recortava-se soberbo e maciço contra um céu de chumbo, com as suas muralhas, campanários e torreões. Da água parecia uma cidade magnífica, mas nessa noite o céu fechou-se e o aspecto de Barcelona mudou. Não conseguiram desembarcar até à manhã seguinte, quando Santiago de León arriou os botes para transportar a impaciente tripulação e os seus passageiros.

Centenas de chalupas circulavam entre os barcos, num mar oleoso e milhares de gaivotas que enchiam o ar com os seus grasnidos.

Diego e Bernardo despediram-se do comandante, de Galileo Tempesta e dos restantes homens de bordo, que se empurravam para ocupar os botes, pressurosos como estavam de gastar o seu vencimento em álcool e mulheres, enquanto o auditor sustinha nos seus braços de ancião a filha, desmaiada por causa da hediondez do ar. Não era caso para menos. Ao chegarem, esperava-os um porto bonito e bem vivido, mas insalubre, coberto de lixo, por onde pululavam ratazanas do tamanho de cães entre as pernas de uma apressada multidão. Pelas valetas abertas corria a água de despejos, onde chapinhavam crianças descalças, e das janelas dos andares altos atiravam à rua o conteúdo dos bacios ao grito de água-vai! Os transeuntes tinham de se afastar para não ficarem ensopados de urina. Barcelona, com cento e cinquenta mil habitantes, era uma das cidades mais densamente povoadas do mundo. Encerrada por grossas muralhas, vigiada pelo sinistro forte da Cidadela e presa entre o mar e as montanhas, não tinha para onde crescer, a não ser em altura. Acrescentavam-se sótãos às casas e subdividiam-se os compartimentos em quartinhos acanhados, onde os inquilinos se amontoavam sem ventilação nem água limpa. Andavam nos molhes estrangeiros em diversas indumentárias, que se insultavam uns aos outros em línguas incompreensíveis, marinheiros de barrete frígio na cabeça e papagaio ao ombro, estivadores reumáticos devido à faina de carregar fardos, grosseiros comerciantes apregoando carne salgada e biscoitos, mendigos infestados de piolhos e pústulas, farroupilhas com navalhas prontas e olhos desesperados. Não faltavam prostitutas de baixo estofo, enquanto as mais presunçosas se passeavam em carruagens, competindo em esplendor com damas distintas. Os soldados franceses andavam em grupos, empurrando os passantes com as coronhas dos mosquetes por mera ânsia de provocar.

Nas suas costas, as mulheres faziam o gesto de maldizer com os dedos e cuspiam para o chão. Não obstante, nada conseguia impedir a elegância incomparável da cidade banhada pela luz prateada do mar. Ao pisar o porto, Diego e Bernardo quase caíram ao chão, tal como lhes acontecera na ilha das Flores, porque tinham perdido o hábito de andar em terra. Tiveram de arrimar-se um ao outro até conseguirem controlar o tremor dos joelhos e focar a vista.

- E agora que fazemos, Bernardo? Estou de acordo contigo em que a primeira coisa será procurar um coche de aluguer e tratar de localizar a casa de Dom Tomás de Romeu. Dizes que antes devemos recuperar o que resta da nossa bagagem? Claro, tens razão...

Assim, abriram caminho conforme puderam, Diego falando sozinho e Bernardo um passo atrás alerta, porque receava que arrebatassem a bolsa ao seu distraído irmão. Passaram no sítio do mercado, onde umas mulheraças ofereciam produtos do mar, encharcadas em tripas e cabeças de peixe, que maceravam no chão no meio de uma nuvem de moscas. Nisto, foram interceptados por um homem alto, com perfil de abutre, vestido de felpa azul, que aos olhos de Diego devia ser um almirante, a julgar pelos galões dourados do casaco e do tricórnio sobre a branca peruca. Cumprimentou-o com uma profunda inclinação, varrendo o empedrado com o seu chapéu californiano.

- Senhor Dom Diego de La Vega? - inquiriu o desconhecido, visivelmente desconcertado.

- Para vos servir, cavalheiro - retrucou Diego.

- Não sou um cavalheiro; sou Jordi, o cocheiro de Dom Tomás de Romeu. Mandaram-me esperar-vos. Mais tarde virei buscar a vossa bagagem - esclareceu o homem com um olhar turvo, porque pensou que o fedelho das índias fazia troça dele.

Diego ficou com as orelhas da cor da beterraba e, enterrando o chapéu na cabeça, dispôs-se a segui-lo, enquanto Bernardo sufocava de riso.

Jordi conduziu-os ao coche, um tanto estafado, com dois cavalos, onde os esperava o mordomo da família. Percorreram ruas tortuosas e empedradas, afastaram-se do porto e não tardaram a chegar a um bairro de mansões senhoriais. Entraram no pátio da residência de Tomás de Romeu, um casarão de três andares que se erguia entre duas igrejas. O mordomo comentou que as badaladas a horas intempestivas já não o incomodavam, porque os Franceses tinham tirado os badalos aos sinos, como represália contra os padres que acicatavam a guerrilha. Diego e Bernardo, intimidados com o tamanho da casa, nem se aperceberam de como estava decadente. Jordi conduziu Bernardo ao sector dos criados e o mordomo guiou Diego pela escada exterior até ao andar nobre ou principal. Atravessaram salões em eterna penumbra e corredores gelados, onde estavam penduradas tapeçarias esfiampadas e armas do tempo das Cruzadas. Por fim, chegaram a uma poeirenta biblioteca, mal iluminada por umas quantas candeias e um lume pobretana na lareira. Ali aguardava Tomás de Romeu, que recebeu Diego com um abraço paternal, como se o conhecesse desde sempre.

- Honra-me que o meu bom amigo Alejandro me tenha confiado o filho - proclamou. - Desde este instante pertenceis à nossa família, Diego. As minhas filhas e eu velaremos pela vossa comodidade e satisfação.

Era um homem sanguíneo e pançudo, dos seus cinquenta anos, de voz estrondosa, patilhas e sobrancelhas bastas. Os seus lábios arqueavam-se para cima num sorriso involuntário, que dulcificava o seu aspecto um tanto altaneiro. Fumava um charuto e tinha um copo de xerez na mão. Fez algumas perguntas de cortesia sobre a viagem e a família que Diego deixara na Califórnia, após o que puxou um cordão de seda para chamar às badaladas o mordomo, ao qual ordenou em catalão que conduzisse o hóspede aos seus aposentos.

- Jantaremos às dez. Não é preciso vestir-se de etiqueta, estaremos em família - disse.

Nessa noite na casa de jantar, uma sala imensa com vetustos móveis que tinham servido várias gerações, Diego conheceu as filhas de Tomás de Romeu. Bastou-lhe um simples olhar para decidir que Juliana, a mais velha, era a mulher mais formosa do mundo. Possivelmente exagerava, mas, em qualquer caso, a jovem tinha fama de ser uma das beldades de Barcelona, tal como tivera no seu tempo a célebre Madame de Récamier em Paris, segundo diziam. O seu porte elegante, as suas feições clássicas e o contraste entre o cabelo retinto, a pele de leite e os olhos verdes de jade, tornava-se inesquecível. Os seus pretendentes eram tantos que a família e os curiosos lhes tinham perdido a conta. As más-línguas comentavam que tinham sido todos rejeitados, porque o seu ambicioso pai esperava subir na escala social casando-a com um príncipe. Estavam enganados; Tomás de Romeu não era capaz de tais cálculos. Além dos seus admiráveis atributos físicos, Juliana era culta, virtuosa e sentimental, tocava harpa com trémulos dedos de fada e praticava obras de caridade entre os indigentes. Quando apareceu na casa de jantar com o seu vestido branco de musselina estilo Império, apanhado debaixo dos seios com um laço de veludo cor de melancia, que expunha o longo pescoço e os redondos braços de alabastro, com sapatilhas de cetim e um diadema de pérolas entre os negros caracóis, Diego sentiu que se lhe vergavam os joelhos e lhe falhava o entendimento. Inclinou-se no gesto de beijar-lhe a mão e, no atordoamento de a tocar, salpicou-a de saliva. Horrorizado, tartamudeou uma desculpa, enquanto Juliana sorria como um anjo e limpava disfarçadamente as costas da mão ao seu vestido de ninfa.

Isabel, em contrapartida, era tão pouco notável que não parecia do mesmo sangue que a sua deslumbrante irmã. Tinha onze anos e suportava-os bastante mal: os dentes ainda não lhe assentavam nos sítios e assomavam-lhe ossos por vários ângulos. De vez em quando, fugia-lhe um olho para um lado, o que lhe dava uma expressão distraída e enganosamente doce, porque era de carácter mais atrevido que outra coisa. O seu cabelo castanho era um matagal rebelde, que mal se podia controlar com meia dúzia de fitas; o vestido amarelo ficava-lhe apertado e, para completar o seu aspecto de órfã, calçava botins. Como diria Diego a Bernardo mais tarde, a pobre Isabel parecia um esqueleto com quatro cotovelos e tinha cabelo que chegava para duas cabeças. Diego lançou-lhe apenas um olhar em toda a noite, obnubilado com Juliana, mas Isabel observou-o sem disfarçar, fazendo um inventário rigoroso do seu fato antiquado, do seu estranho sotaque, das suas maneiras tão passadas de moda como a roupa e, claro está, das suas protuberantes orelhas. Concluiu que aquele jovem das índias estava demente se pretendia impressionar a irmã, como se tornava óbvio pela sua cómica conduta. Isabel suspirou pensando que Diego era um projecto a longo prazo, seria preciso mudá-lo quase por completo, mas felizmente dispunha de boa matéria-prima: simpatia, um corpo bem proporcionado e aqueles olhos cor de âmbar.

O jantar consistiu em sopa de cogumelos, um suculento prato de mar e montanha, em que o peixe rivalizava com a carne, saladas, queijos e para finalizar creme catalão, tudo regado com um tinto das vinhas da família. Diego calculou que com aquela dieta Tomás de Romeu não chegaria a velho e as filhas acabariam gordas como o pai. O povo passava fome em Espanha naqueles anos, mas a mesa da gente abastada esteve sempre bem abastecida. Depois do jantar passaram a um dos inóspitos salões, onde Juliana os deleitou até depois da meia-noite com a harpa, acompanhada a custo pelos gemidos que Isabel arrancava a um desafinado cravo. Àquela hora, cedo para Barcelona e tardíssimo para Diego, chegou Nuria, a ama, a sugerir às meninas que deviam retirar-se. Era uma mulher de uns quarenta anos, de espinha direita e nobres feições, desfeada por um ar duro e pela tremenda severidade da sua indumentária. Trazia um vestido preto com gola engomada e uma capota da mesma cor, atada com um laço de cetim sob o queixo. O roçar das anáguas, o tilintar das chaves e o rangido das botas anunciavam a sua presença com antecedência. Cumprimentou Diego com uma reverência quase imperceptível, depois de o examinar da cabeça aos pés com uma expressão reprovadora.

- Que devo fazer àquele a que chamam Bernardo, o indiano das Américas? - perguntou a Tomás de Romeu.

- Se fosse possível, senhor, desejaria que Bernardo compartilhasse o meu quarto. Na verdade, somos como irmãos - interveio Diego.

- Com certeza, jovem. Determina o que for preciso, Nuria - ordenou De Romeu, algo surpreendido.

Mal Juliana se foi, Diego sentiu a martelada da fadiga acumulada e o peso do jantar no estômago, mas teve de permanecer mais uma hora a ouvir as ideias políticas do seu anfitrião.

- José Bonaparte é um homem ilustrado e sincero; bastará dizer-vos que até fala castelhano e assiste às touradas - disse De Romeu.

- Mas usurpou o trono do legítimo rei de Espanha - alegou Diego.

- O rei Carlos IV demonstrou ser indigno descendente de homens tão notáveis como alguns dos seus antepassados. A rainha é frívola, e o herdeiro, Fernando, um inepto em que nem os próprios pais confiam. Não merecem reinar. Os Franceses, por outro lado, trouxeram as ideias modernas. Se permitissem a José I governar, em vez de lhe fazerem guerra, este país sairia do atraso. O Exército francês é invencível; em contrapartida, o nosso está em ruínas: não há cavalos, armas, botas, os soldados alimentam-se de pão e água...

- Não obstante, o povo espanhol resistiu à ocupação durante dois anos - interrompeu-o Diego.

- Há bandos de civis armados que conduzem uma guerra demente. São açulados por fanáticos e por clérigos ignorantes. A populaça luta às cegas, não tem ideias, só rancores.

- Falaram-me da crueldade dos Franceses.

- Cometem-se atrocidades de ambos os lados, jovem De La Vega. Os guerrilheiros não só assassinam franceses, como também os civis espanhóis que lhes recusam ajuda. Os catalães são os piores, não se imagina a crueldade de que são capazes. O mestre Francisco Goya pintou esses horrores. A obra dele é conhecida na América?

- Não me parece, senhor.

- Deveis ver os seus quadros, Dom Diego, para compreenderdes que nesta guerra não há bons, apenas maus - suspirou De Romeu, prosseguindo com outros assuntos, até que se fecharam os olhos a Diego.

Nos meses subsequentes, Diego de La Vega teve um vislumbre de quão volátil e complexa se tinha tornado a situação em Espanha e quão atrasados de notícias estavam em sua casa. O pai reduzia a política a preto e branco, porque era assim na Califórnia, mas na confusão da Europa predominavam os tons de cinzento. Na sua primeira carta, Diego contou ao pai a viagem e as suas impressões de Barcelona e dos catalães, que descreveu como ciosos da sua liberdade, explosivos de temperamento, susceptíveis em matérias de honra e trabalhadores como mulas de carga. Eles próprios cultivavam a fama de avarentos, dizia, mas na intimidade eram generosos. Acrescentava que não havia nada de que se ressentissem mais do que dos impostos e muito mais quando obrigados a pagá-los aos Franceses. Também descreveu a família De Romeu, omitindo o seu descabelado amor por Juliana, que podia ser interpretado como um abuso da hospitalidade recebida.

Na segunda carta tentou explicar-lhe os acontecimentos políticos, embora suspeitasse de que, quando o pai a recebesse, dentro de vários meses, tudo teria mudado.

Vossa Mercê: Encontro-me bem e estou a aprender muito, especialmente filosofia e latim no Colégio de Humanidades. Há-de agradar-lhe saber que o mestre Manuel Escalante me acolheu na sua academia e me distingue com a sua amizade, uma honra imerecida, por sinal. Permita-me contar-lhe alguma coisa sobre a situação que se vive aqui. O seu dilecto amigo, Dom Tomás de Romeu, é um «afrancesado». Há outros liberais como ele, que compartilham as mesmas ideias políticas, mas detestam os Franceses. Receiam que Napoleão transforme Espanha num satélite de França, o que, aparentemente, Dom Tomás de Romeu veria com bons olhos. Tal como Vossa Mercê me ordenou, visitei Sua Excelência, Dona Eulália de Callís. Por ela me inteirei de que a nobreza, como a Igreja Católica e o povo, espera o regresso do rei Fernando VII, a quem chamam «o Desejado». O povo, que desconfia por igual de Franceses, liberais, nobres e qualquer mudança, propôs-se expulsar os invasores e luta com aquilo que tem à mão: machados, garrotes, facas, chuços e enxadões.

Estes assuntos eram para ele interessantes - não se falava de outros no Colégio de Humanidades e na casa de Tomás de Romeu -, mas não lhe tiravam o sono. Estava ocupado com mil assuntos diferentes, sendo o principal deles a contemplação de Juliana. Naquele casarão enorme, impossível de iluminar ou aquecer, a família usava apenas alguns salões do andar nobre e uma ala do segundo piso. Bernardo surpreendeu mais de uma vez Diego pendurado como uma mosca na varanda para espiar Juliana, quando ela cosia com Nuria ou estudava as suas lições. As raparigas tinham-se livrado do convento, onde eram educadas as filhas de famílias de gabarito, graças à antipatia do pai pelos religiosos. Dizia Tomás de Romeu que, por detrás das gelosias dos conventos, as pobres donzelas eram pasto de freiras malévolas, que lhes enchiam a cabeça de demónios, e de clérigos pervertidos, que as apalpavam com o pretexto de as confessarem. Designou-lhes um preceptor, um mirrado fulano com a cara marcada pela varíola, que desfalecia na presença de Juliana e que Nuria vigiava de perto, como um falcão. Isabel assistia às aulas, embora o professor a ignorasse ao ponto de nunca ter aprendido o seu nome.

Juliana relacionava-se com Diego como com um amalucado irmão mais novo. Tratava-o pelo nome próprio e por tu, seguindo o exemplo de Isabel, que desde o princípio lhe concedeu um tratamento carinhoso e íntimo. Muito depois, quando se complicou a vida a todos e passaram dificuldades juntos, Nuria também o tratava por tu, porque acabou por gostar dele como um sobrinho, mas nessa época ainda o tratava por Dom Diego, visto que a fórmula familiar só se usava entre parentes ou ao dirigir-se a uma pessoa inferior. Juliana passou semanas sem suspeitar que tinha despedaçado o coração a Diego, tal como nunca se apercebeu de que fizera o mesmo ao seu infeliz preceptor. Quando Isabel lho fez notar, desatou a rir, alvoroçada; felizmente, ele só o soube vários anos mais tarde.

Diego levou muito pouco tempo a compreender que Tomás de Romeu não era nem tão nobre, nem tão rico como ao princípio lhe parecera. A mansão e as suas terras tinham pertencido à falecida esposa, única herdeira de uma família de burgueses, que fizera fortuna na indústria da seda. Por morte do sogro, Tomás ficara à frente dos negócios, mas não era pessoa de grandes iniciativas comerciais e principiara a perder o que herdara. Ao contrário da reputação dos catalães, sabia gastar dinheiro com galhardia, mas não o sabia ganhar. Ano a ano, as suas receitas tinham diminuído e, a esse ritmo, depressa se veria obrigado a vender a casa e baixar de nível social. Entre os numerosos pretendentes de Juliana contava-se Rafael Moncada, um nobre de considerável fortuna.

Uma aliança com ele resolveria os problemas de Tomás de Romeu, mas devemos dizer em sua honra que nunca pressionou a filha para que aceitasse Moncada. Diego calculou que a fazenda do pai na Califórnia valia várias vezes mais que as propriedades de Tomás de Romeu e perguntou a si mesmo se Juliana estaria disposta a ir com ele para o Novo Mundo. Colocou o assunto a Bernardo e este fez-lhe ver, no seu idioma pessoal, que, se não se apressasse, outro candidato mais maduro, bem-parecido e interessante lhe arrebataria a donzela. Habituado aos sarcasmos do irmão, Diego não desmoralizou, mas decidiu apressar ao máximo a sua educação. Não via a hora de adquirir dignidade de fidalgo acabado. Familiarizou-se com o catalão, língua que lhe parecia muito melodiosa, frequentava o Colégio e ia diariamente às aulas na Academia de Esgrima para Instrução de Nobres e Cavalheiros do mestre Manuel Escalante.

A ideia que Diego fazia do célebre mestre não coincidiu nada com a realidade. Depois de ter estudado até à última vírgula o manual escrito por Escalante, imaginava-o como Apoio, um compêndio de virtudes e beleza viril. Revelou-se um homenzinho desagradável, meticuloso, asseado, de rosto ascético, lábios desdenhosos e bigodinho engomado, para quem a esgrima parecia ser a única religião válida. Os seus alunos eram nobres de pura cepa, menos Diego de La Vega, que aceitou não tanto pela recomendação de Tomás de Romeu, como pelo facto de ter passado com distinção no exame de admissão.

- En garde, monsieur! - ordenou o mestre.

Diego adoptou a posição segunda: o pé direito a curta distância do outro, as pontas a formar ângulo recto, os joelhos ligeiramente flectidos, o corpo perfilado e a prumo sobre os quadris, olhando em frente, os braços descontraídos.

- Mudança de guarda à frente! A fundo! Mudança de guarda atrás! Unhas para dentro! Guarda terça! Extensão do braço! Coupé!

Não tardou que o mestre deixasse de lhe dar instruções. Das fintas passaram rapidamente aos ataques, estocadas afundo, talhas e reveses, como uma violenta e macabra dança. Diego entusiasmou-se e começou a bater-se como se tivesse a vida em xeque, com um ímpeto próximo da ira. Escalante sentiu que, pela primeira vez em muitos anos, lhe corria o suor pela testa e lhe ensopava a camisa. Estava satisfeito e principiava a perfilar-se um esboço de sorriso nos seus lábios finos. Nunca prodigalizava louvores a ninguém, mas ficou impressionado com a velocidade, precisão e força do jovem.

- Onde diz ter aprendido esgrima, cavalheiro? - perguntou depois de cruzar os floretes com ele durante uns minutos.

- Com o meu pai, na Califórnia, mestre.

- Califórnia?

- Ao norte do México...

- Não é preciso explicar-mo, eu vi um mapa - interrompeu-o secamente Manuel Escalante.

- Desculpe, mestre. Estudei o seu livro e pratiquei durante anos... - balbuciou Diego.

- Bem vejo. É um aluno com aproveitamento, segundo parece. Precisa de controlar a impaciência e adquirir elegância. Tem o estilo de um corsário, mas isso pode-se remediar. Primeira lição: calma. Nunca se deve combater com raiva. A firmeza e a estabilidade do aço dependem da equanimidade do espírito. Não o esqueça. Recebê-lo-ei de segunda a sábado às oito da manhã em ponto; se faltar uma única vez, é escusado voltar. Boa tarde, cavalheiro.

Com isto, despediu-se dele. Diego teve de se controlar para não guinchar de alegria, mas uma vez na rua dava saltos em torno de Bernardo, que o esperava à porta junto dos cavalos.

- Converter-nos-emos nos melhores espadachins do mundo, Bernardo. Sim, irmão, ouviste-me bem, aprenderás o mesmo que eu. Estou de acordo, o mestre não te aceitará, é muito comichoso.

Se soubesse que tenho um quarto de sangue índio, correr-me-ia à bofetada da sua academia. Mas não te preocupes, penso ensinar-te tudo o que aprender. Diz o mestre que me falta estilo. Que será isso?

Manuel Escalante cumpriu a promessa de polir Diego e este cumpriu a sua de passar os seus conhecimentos a Bernardo. Praticavam esgrima diariamente num dos grandes salões vazios da casa de Tomás de Romeu, quase sempre com Isabel. Segundo Nuria, aquela menina tinha uma curiosidade satânica por coisas de homens, mas encobria as suas travessuras porque a tinha criado desde que perdera a mãe ao nascer. Isabel conseguiu que Diego e Bernardo a ensinassem a manejar o florete e a montar a cavalo escarranchada, como faziam as mulheres na Califórnia. Com o manual do mestre Escalante, passava horas a praticar sozinha diante de um espelho, ante o olhar paciente da irmã e de Nuria, que bordavam tapeçarias a ponto de cruz. Diego resignou-se à companhia da garota por interesse: ela convencera-o de que podia interceder em seu favor junto de Juliana, coisa que nunca fez. Bernardo, em contrapartida, dava sempre mostras de estar encantado com a sua presença.

Bernardo ocupava um lugar impreciso na hierarquia da casa, onde viviam à volta de oitenta pessoas, entre criados, empregados, secretários e aparentados, como se chamava aos parentes pobres que Tomás de Romeu albergava sob o seu tecto. Dormia num dos três quartos postos à disposição de Diego, mas não tinha acesso aos salões da família, a não ser que fosse chamado, e comia na cozinha. Não tinha funções determinadas e sobrava-lhe tempo para percorrer a cidade. Acabou por conhecer a fundo os diferentes rostos da buliçosa Barcelona, desde mansões senhoriais dos nobres da Catalunha até aos apinhados quartos cheios de ratazanas e piolhos do povo mais humilde, onde, inevitavelmente, se desencadeavam rixas e epidemias; desde o antigo bairro da catedral, construído sobre ruínas romanas, com o seu labirinto de tortuosas vielas por onde mal passava um burro, até aos mercados populares, às lojas dos artesãos, às vendas de bugigangas dos turcos e aos molhes, sempre pejados de uma multidão variegada. Aos domingos, à saída da missa, ficava a vaguear por perto das igrejas para admirar os grupos que dançavam delicadas sardanas, que lhe pareciam um perfeito reflexo da solidariedade, da ordem e da falta de ostentação dos Barceloneses. Como Diego, aprendeu catalão, para tomar conhecimento do que acontecia à sua volta. Empregavam-se o castelhano e o francês para o Governo e na alta sociedade, latim para os assuntos académicos e religiosos, e catalão para o resto. O silêncio e o ar de dignidade que irradiava conquistaram-lhe o respeito da gente da casa. A criadagem, que lhe chamava carinhosamente «o indiano», não averiguou se era surdo ou não; assumiu que o era e, por conseguinte, falava diante dele sem se precatar, o que lhe permitia ficar a saber muitas coisas. Tomás de Romeu nunca deu mostras de dar pela sua existência; para ele, os criados eram invisíveis. Nuria ficava intrigada com o facto de ele ser índio, o primeiro que via cara a cara. Julgando que não a entendia, durante os primeiros dias dirigia-se a ele com gai fonas de símio e gestos teatrais, mas, quando soube que não era surdo, começou a falar com ele. E, mal se inteirou de que era baptizado, ganhou-lhe simpatia. Nunca tivera um ouvinte mais atento. Segura de que Bernardo não podia trair as suas confidências, encetou o costume de lhe contar os seus sonhos, verdadeiras epopeias fantásticas, e de o convidar para ouvir as suas leituras em voz alta a Juliana, à hora do chocolate. Por seu turno, Juliana dirigia-se a ele com a mesma suavidade que prodigalizava a toda a gente. Percebeu que ele não era criado de Diego, mas sim seu irmão de leite, mas não fez o esforço de comunicar com ele, porque partiu do princípio de que não teriam muito que dizer um ao outro. Para Isabel, em contrapartida, Bernardo converteu-se no melhor amigo e aliado.

Aprendeu a linguagem de sinais dos índios e a interpretar as inflexões da sua flauta, mas nunca conseguiu participar nos diálogos telepáticos que este mantinha, sem esforço, com Diego. Em qualquer caso, como não precisavam de palavras, entendiam-se perfeitamente. Acabaram por gostar tanto um do outro que, com os anos, Isabel disputava com Diego o segundo lugar no coração de Bernardo. O primeiro lugar foi sempre detido por Raio na Noite.

Na Primavera, quando o ar da cidade cheirava a mar e a flores, apareciam as tunas a deleitar a noite com música e os apaixonados a fazer serenatas, vigiados à distância pelos soldados franceses, porque até essa inocente diversão podia ocultar sinistros propósitos da guerrilha. Diego ensaiava canções no seu bandolim, mas seria ridículo instalar-se debaixo da janela de Juliana para lhe fazer uma serenata, quando moravam na mesma casa. Quis acompanhá-la nos concertos de harpa a seguir ao jantar, mas ela era uma verdadeira virtuosa e ele tão sucateiro no seu instrumento como Isabel o era no cravo, de modo que os serões deixavam os ouvintes com dores de cabeça. Teve de se limitar a entretê-la com os truques de magia aprendidos com Galileo Tempesta, ampliados e aperfeiçoados por meses de prática. No dia em que engoliu a adaga marroquina de Galileo Tempesta, Juliana teve um chilique e esteve a ponto de cair desamparada, enquanto Isabel examinava a arma à procura da mola que escondia a lâmina no cabo. Nuria advertiu Diego de que, se voltasse a tentar semelhante artimanha de nigromante na presença das suas meninas, ela mesma lhe enfiaria aquela faca de turco pelo gasganete. Nas primeiras semanas, a mulher tinha declarado uma surda guerra de nervos a Diego, porque, de alguma maneira, soube que era mestiço. Pareceu-lhe o cúmulo que o seu amo aceitasse na intimidade da família aquele jovem que não era de bom sangue e, além disso, tinha o descaramento de se apaixonar por Juliana. Não obstante, mal Diego a tal se propôs, conquistou o árido coração da ama com as suas pequenas atenções: maçapão, uma estampa de santos, uma rosa que lhe surgia da manga por obra de magia. Embora ela continuasse a responder-lhe com resmungos e sarcasmos, não conseguia evitar rir à socapa quando ele a provocava com alguma palhaçada.

Uma noite, Diego passou o mau bocado de ouvir Rafael Moncada fazer uma serenata na rua, acompanhado por um conjunto de vários músicos. Verificou, indignado, que o seu rival não só possuía uma voz acariciadora de tenor, como, além disso, cantava em italiano. Tentou ridicularizá-lo aos olhos de Juliana, mas a sua estratégia não resultou, porque pela primeira vez ela pareceu comovida por um avanço de Moncada. Aquele homem inspirava na jovem sentimentos confusos, um misto de desconfiança instintiva e de recatada curiosidade. Na sua presença sentia-se aflita e nua, mas também a atraía a segurança que dele emanava. Não gostava da expressão de desdém ou crueldade que às vezes lhe surpreendia no rosto, expressão que não correspondia à generosidade com que distribuía moedas pelos mendigos postados à saída da missa. Fosse como fosse, o galã tinha vinte e três anos e havia meses que a cortejava; em breve seria preciso dar-lhe uma resposta. Moncada era rico, de linhagem impecável, e causava boa impressão em toda a gente, menos na sua irmã Isabel, que o detestava sem disfarces nem explicação. Havia sólidos argumentos a favor daquele pretendente; só a refreava um inexplicável pressentimento de desgraça. Entretanto, ele continuava o seu assédio com delicadeza, receoso de que ao menor constrangimento ela se espantasse. Viam-se na igreja, em concertos e peças de teatro, em passeios, em parques e ruas. Com frequência, fazia-lhe chegar presentes e ternas missivas, mas nada de comprometedor. Não tinha conseguido que Tomás de Romeu o convidasse para sua casa, nem que a sua tia Eulália de Callís aceitasse incluir os De Romeu entre os seus companheiros de tertúlia. Ela tinha-lhe manifestado, com a sua firmeza habitual, que Juliana era uma péssima escolha.

- O pai é um traidor, um afrancesado; essa família não tem categoria nem fortuna, nada para oferecer - foi o seu lapidar juízo.

Mas Moncada tinha Juliana em mira havia tempos, vira-a florescer e determinara que era a única mulher digna dele. Pensava que, com o tempo, a sua tia Eulália cederia perante as inegáveis virtudes da jovem; era tudo questão de conduzir o assunto com diplomacia. Não estava disposto a renunciar a Juliana, nem tão-pouco à sua herança, mas nunca duvidou de que conseguiria ambas.

Rafael Moncada não tinha idade para serenatas e era demasiado orgulhoso para esse tipo de exibição, mas encontrou a forma de o fazer com humor. Quando Juliana assomou à varanda, viu-o mascarado de príncipe florentino, de brocado e seda da cabeça aos pés, com gibão adornado de pele de lontra, penas de avestruz no chapéu e um alaúde nas mãos. Vários moços iluminavam-no com elegantes candeias de cristal e, ao seu lado, os músicos, ataviados como pajens de opereta, arrancavam melódicos acordes aos seus instrumentos. O melhor do espectáculo foi sem dúvida a voz extraordinária de Moncada. Escondido atrás de uma cortina, Diego suportou a humilhação, sabendo que Juliana estava na sua varanda a comparar aqueles trinados perfeitos de Moncada com o vacilante bandolim com que ele tentava impressioná-la. Resmungava imprecações a meia voz, quando chegou Bernardo indicando-lhe que o seguisse e que se armasse da sua espada. Conduziu-o ao andar dos criados, onde Diego nunca pusera os pés, apesar de morar naquela casa havia quase um ano, e dali até à rua por uma portinhola de serviço. Cosidos com a parede, chegaram sem ser vistos ao sítio onde o seu rival se tinha postado a exibir-se com as suas baladas em italiano. Bernardo apontou para um portal atrás de Moncada; nessa altura, Diego sentiu que a fúria se lhe transformava em diabólica satisfação, porque não era o seu rival que cantava, mas sim outro homem escondido nas sombras.

Diego e Bernardo esperaram pelo fim da serenata. O grupo dispersou, partindo num par de coches, enquanto o último moço entregava umas moedas ao verdadeiro tenor. Depois de se assegurar de que o cantor estava sozinho, os jovens interceptaram-no de surpresa. O desconhecido soltou um assobio de serpente e quis deitar a mão à faca curva que trazia pronta à cintura, porém Diego pôs-lhe a ponta da espada na garganta. O homem retrocedeu com pasmosa agilidade, mas Bernardo pregou-lhe uma rasteira e atirou-o ao chão. Escapou-se-lhe uma blasfémia dos lábios quando sentiu outra vez a ponta do aço de Diego a picar-lhe o pescoço. Àquela hora, a luz da rua provinha de uma lua tímida e dos candeeiros da casa, suficiente para ver que se tratava de um cigano moreno e forte, todo músculos, fibra e ossos.

- Que diabo queres de mim? - disparou-lhe, insolente, com uma expressão feroz.

- O teu nome, mais nada. Podes ficar com esse dinheiro mal ganho - redarguiu Diego.

- Para que queres o meu nome?

- O teu nome! - exigiu Diego, premindo a espada até lhe arrancar umas gotas de sangue.

- Pelayo - disse o cigano.

Diego recolheu o aço e o homem deu um passo atrás, para, a seguir, desaparecer nas sombras da rua, com o silêncio e a velocidade de um felino.

- Fixemos aquele nome, Bernardo. Creio que voltaremos a encontrar-nos com este velhaco. Não posso contar nada disto a Juliana, porque pensará que o faço por mesquinhez ou ciúme. Tenho de encontrar outra forma de lhe revelar que aquela voz não é de Moncada.

Tens alguma ideia? Bom, quando tiveres, dizes - concluiu Diego.

Uma das visitas assíduas da casa de Tomás de Romeu era o encarregado dos assuntos de Napoleão em Barcelona, o cavaleiro Roland Duchamp, conhecido como o «Chevalier». Era a eminência parda por detrás da autoridade oficial, mais influente, segundo diziam, que o próprio rei José I. Napoleão tinha vindo a tirar poder ao irmão, porque já não precisava dele para perpetuar a dinastia Bonaparte: agora tinha um filho, um enfermiço bebé apodado o Aguioto e assoberbado desde tenra idade com o título de rei de Roma. O Chevalier geria uma vasta rede de espiões, que o informava dos planos dos seus inimigos antes mesmo de estes os formularem. Tinha a categoria de embaixador, mas na realidade até os altos comandos do exército lhe prestavam contas. A sua vida naquela cidade, onde os Franceses eram detestados, não era agradável. A alta sociedade votava-o ao ostracismo, embora ele adulasse as famílias abastadas com bailes, recepções e peças de teatro, da mesma maneira que procurava conquistar a arraia-miúda distribuindo pão e autorizando touradas que dantes eram proibidas. Ninguém queria fazer figura de afrancesado. Os nobres, como Eulália de Callís, não se atreviam a deixar de lhe falar, mas tão-pouco aceitavam os seus convites. Tomás de Romeu, em contrapartida, honrava-se com a sua amizade, porque admirava tudo o que vinha de França, desde as ideias filosóficas e o requinte até ao próprio Napoleão, que comparava com Alexandre Magno. Sabia que o Chevalier estava ligado à polícia secreta, mas não dava crédito aos rumores segundo os quais era responsável por torturas e execuções na Cidadela. Parecia-lhe impossível que uma pessoa tão fina e culta estivesse envolvida nas barbaridades que se atribuíam aos militares.

Discutiam sobre arte, sobre livros, sobre as novas descobertas científicas, sobre os avanços da astronomia; comentavam a situação das colónias da América, como a Venezuela, o Chile e outras que tinham declarado a independência.

Enquanto os dois cavalheiros compartilhavam horas prazenteiras com os seus cálices de conhaque francês e os seus charutos cubanos, Agnès Duchamp, a filha do Chevalier, entretinha-se com Juliana, lendo romances franceses às escondidas de Tomás de Romeu, que nunca teria consentido tais leituras. Afligiam-se mortalmente com os amores contrariados das personagens e suspiravam de alívio com os finais felizes. O romantismo ainda não estava na moda em Espanha e, antes do aparecimento de Agnès na sua vida, Juliana só tinha acesso a certos autores clássicos da biblioteca familiar, seleccionados pelo pai com critério didáctico. Isabel e Nuria assistiam às leituras. A primeira troçava, mas não perdia palavra, e Nuria chorava como uma madalena. Tinham-na esclarecido de que nada daquilo acontecia na realidade, que eram apenas mentiras do autor, mas ela não acreditava. As desgraças das personagens chegaram a preocupá-la de tal maneira que as jovens alteravam o argumento dos romances para não lhe amargarem a existência. A ama não sabia ler, mas sentia um respeito sacramental por todo o material impresso. Comprava com o seu salário uns folhetos ilustrados com vidas de mártires, verdadeiros compêndios de selvajaria, que as raparigas tinham de ler uma e outra vez. Estava certa de que todos eles eram desventurados compatriotas supliciados pelos mouros em Granada. Era inútil explicar-lhe que o Coliseu romano ficava onde o seu nome indica, em Roma. Também estava convencida, como boa espanhola, de que Cristo morrera na cruz pela humanidade em geral, mas pela Espanha em particular. Para ela, o mais imperdoável de Napoleão e dos Franceses era a sua condição de ateus; por isso salpicava com água benta, após cada visita, o cadeirão que o Chevalier tinha ocupado.

Explicava o facto de o seu amo tão-pouco acreditar em Deus como uma consequência da morte prematura da mulher, a mãe das raparigas. Tinha a certeza de que Dom Tomás padecia de uma condição temporária; no seu leito de morte recuperaria o juízo e clamaria por um confessor que lhe perdoasse os pecados, como, no fim de contas, todos faziam, por muito ateus que se declarassem quando de saúde.

Agnès era miúda, risonha e vivaz, com uma cútis diáfana, olhar malicioso e covinhas nas faces, nos nós dos dedos e nos cotovelos. Os romances tinham-na amadurecido antes do tempo e, numa idade em que as outras raparigas não saíam das suas casas, ela fazia vida de mulher adulta. Usava a moda mais atrevida de Paris para acompanhar o pai aos eventos sociais. Ia aos bailes com o vestido molhado, para que o tecido se lhe colasse ao corpo e ninguém deixasse de apreciar as suas ancas redondas e os seus mamilos de virgem atrevida. Reparou desde o primeiro encontro em Diego, que durante esse ano deixou para trás os dissabores da adolescência e deu um salto de potro; estava da altura de Tomás de Romeu e, por intermédio da impressionante dieta catalã e dos mimos de Nuria, tinha aumentado de peso, coisa de que bem precisava. As suas feições fixaram-se de forma definitiva e, por sugestão de Isabel, usava o cabelo cortado solto para tapar as orelhas. Agnès achava que ele não era nada malparecido, era exótico; conseguia imaginá-lo nos territórios selvagens da América rodeado de índios submissos e nus. Não se cansava de o interrogar sobre a Califórnia, que confundia com uma ilha misteriosa, quente, como aquela onde tinha nascido a inefável Josefina Bonaparte, que procurava imitar com os seus vestidos translúcidos e o seu aroma de violetas. Conhecera-a em Paris, na corte de Napoleão, quando era uma criança de dez anos. Enquanto o imperador estava ausente numa guerra qualquer, Josefina tinha distinguido o Chevalier Duchamp com uma amizade quase amorosa.

Ficara gravada na memória de Agnès a imagem daquela mulher, que, sem ser jovem nem bonita, o parecia pela sua forma ondulante de andar, a sua voz sonolenta e a sua fragrância efémera. Já lá iam mais de quatro anos. Josefina já não era a imperatriz de França, porque Napoleão a substituíra por uma insípida princesa austríaca, cuja única graça, segundo Agnès, era ter tido um filho. Que ordinária é a fertilidade! Ao saber que Diego era o único herdeiro de Alejandro de La Vega, dono de um rancho do tamanho de um pequeno país, não lhe custou nada ver-se convertida na castelã daquele fabuloso território. Esperou o momento apropriado e sussurrou-lhe, atrás do seu leque, que fosse visitá-la, para poderem conversar a sós, visto que em casa de Tomás de Romeu estavam sempre vigiados por Nuria; em Paris ninguém tinha ama, esse costume era o cúmulo do antiquado, acrescentou. Para selar o convite entregou-lhe um lenço de linho e renda com o seu nome completo bordado pelas freiras e perfumado de violetas. Diego não soube o que lhe responder. Durante uma semana tentou fazer ciúmes a Juliana, falando-lhe de Agnès e agitando o lenço no ar, mas saiu-lhe o tiro pela culatra, porque a bela se ofereceu amavelmente para o ajudar nos seus amores. Além disso, Isabel e Nuria zombaram dele sem misericórdia, de modo que acabou por deitar o lenço no lixo. Bernardo apanhou-o e guardou-o, fiel à sua teoria de que tudo pode servir no futuro. Diego encontrava-se amiúde com Agnès Duchamp, porque a rapariga se tinha tornado visita assídua da casa. Era mais nova que Juliana, mas deixava-a atrás em esperteza e experiência. Se as circunstâncias fossem diferentes, Agnès não se teria rebaixado a cultivar uma amizade com uma rapariga tão simplória como Juliana, todavia, a posição do pai tinha-lhe fechado muitas portas e privado de amigas. Além disso, Juliana tinha a seu favor a sua fama de formosura e, embora em princípio Agnès evitasse esse tipo de competição, depressa se deu conta de que o simples nome de Juliana de Romeu atraía o interesse do cavalheiro e de fugida ela tirava partido disso. Para fugir às insinuações sentimentais de Agnès Duchamp, que iam aumentando de intensidade e frequência, Diego tentou modificar a imagem que a jovem formara dele. Nada de rico e bravo rancheiro galopando com a espada à cinta nos vales da Califórnia; em vez disso, comentava umas supostas cartas do pai que anunciavam, entre outras calamidades, a iminente ruína económica da família. Não sabia nesse momento quão perto da verdade estariam essas mentiras dentro de poucos anos. Para rematar, imitava os modos mimosos e as calças justas do professor de dança de Juliana e Isabel. Aos olhares romanescos de Agnès respondia com melindres e súbitas dores de cabeça, até instilar na jovem a suspeita de que era um tanto efeminado. Este jogo de fingimentos adaptava-se perfeitamente à sua personalidade histriónica. «Para que é que te armas em idiota?», perguntou-lhe mais de uma vez Isabel que, desde o princípio, o tratara com uma franqueza a roçar a brutalidade. Juliana, distraída como estava sempre no seu mundo romanesco, nunca pareceu dar pela maneira como Diego mudava na presença de Agnès. Comparada com Isabel, para quem os actos teatrais de Diego se tornavam transparentes, Juliana era de uma inocência desconsoladora.

Tomás de Romeu encetou o costume de convidar Diego para beber um digestivo com o Chevalier depois de jantar, porque se apercebeu de que este se interessava pelo seu jovem hóspede. O Chevalier perguntava pelas actividades dos estudantes do Colégio de Humanidades, pelas tendências políticas da juventude, pelos rumores da rua e da criadagem, mas Diego conhecia a sua reputação e tinha muito cuidado com as respostas. Se contasse a verdade podia pôr em apertos uma porção de pessoas, sobretudo os colegas e professores, inimigos encarniçados dos Franceses, embora a maioria estivesse de acordo com as reformas por eles impostas. Como precaução, fingiu diante do Chevalier os mesmos modos afectados e cérebro de mosquito que adoptava com Agnès Duchamp, com tanto êxito que este acabou por o considerar um mequetrefe sem espinha dorsal. O francês tinha dificuldade em perceber o interesse da filha por De La Vega. Na sua opinião, a hipotética fortuna do jovem não compensava a sua angustiante frivolidade. O Chevalier era um homem de ferro - caso contrário, nunca teria podido estrangular a Catalunha como fazia - e não tardou a aborrecer-se com as trivialidades de Diego. Deixou de o interrogar e às vezes fazia comentários na sua presença que, se tivesse melhor opinião dele, teria evitado.

- Ao vir ontem de Gerona, vi corpos cortados aos bocados pendurados nas árvores ou trespassados por chuços pelos guerrilheiros. Os abutres banqueteavam-se. Não consegui livrar-me da pestilência... - comentou o Chevalier.

- Como sabe que foi obra de guerrilheiros e não de soldados franceses? - perguntou Tomás de Romeu.

- Estou bem informado, meu amigo. Na Catalunha a guerrilha é feroz. Por esta cidade passam milhares de armas de contrabando, há arsenais até nos confessionários das igrejas. Os guerrilheiros cortam as vias de abastecimento e a população passa fome, porque não lhe chegam verduras nem pão.

- Que comam biscoito, então - sorriu Diego, imitando a célebre frase da rainha Maria Antonieta, ao mesmo tempo que metia um bombom de amêndoas na boca.

- A situação é séria, não se presta a graças, jovem - retorquiu o Chevalier, aborrecido. - A partir de amanhã é proibido andar com candeias à noite, porque se servem delas para fazer sinais, e o uso da capa, porque por baixo escondem trabucos e punhais. Basta dizer-vos, cavalheiros, que existem planos para infectar com varíola as prostitutas que servem as tropas francesas!

- Por favor, Chevalier Duchamp! - exclamou Diego com ar escandalizado.

- Mulheres e padres escondem armas na roupa e empregam as crianças para transportar mensagens e incendiar paióis. Teremos de assaltar o hospital, porque escondem armas debaixo da roupa de cama de supostas parturientes.

Uma hora mais tarde, Diego de La Vega tinha arranjado maneira de avisar o director do hospital de que os Franceses chegariam de um momento para o outro. Graças à informação que o Chevalier lhe facultava, conseguiu salvar alguns colegas do Colégio de Humanidades ou vizinhos em perigo. Por outro lado, fez chegar um recado anónimo ao Chevalier quando soube que tinham envenenado o pão destinado a um quartel. A sua intervenção frustrou o atentado, salvando trinta soldados inimigos. Diego não tinha a certeza das suas razões; detestava toda e qualquer forma de traição e perfídia e, além disso, gostava do jogo e do risco. Sentia a mesma repugnância pelos métodos dos guerrilheiros como pelos das tropas de ocupação.

- É inútil procurar justiça neste caso, Bernardo, porque não a há em lado nenhum. Só podemos evitar mais violência. Estou farto de tanto horror, de tantas atrocidades. Nada há de nobre ou generoso na guerra - comentou ao irmão.

A guerrilha fustigava sem trégua os Franceses e inflamava o povo. Camponeses, forneiros, pedreiros, artesãos, comerciantes, gente vulgar durante o dia, lutava de noite. A população civil protegia-os, facultava-lhes abastecimentos, informações, correio, hospitais e cemitérios clandestinos. A tenaz resistência popular desgastava as tropas de ocupação, mas também tinha o país em ruínas, porque ao lema espanhol de guerra e navalha, os Franceses respondiam com idêntica crueldade.

As lições de esgrima constituíam a actividade mais importante para Diego e nunca chegou atrasado a uma aula, porque sabia que o professor o expulsaria para sempre. Às oito menos um quarto postava-se à porta da academia; cinco minutos depois, um criado abria-lhe a porta e às oito em ponto estava com o florete na mão diante do seu mestre. No final da lição este costumava convidá-lo para ficar mais uns minutos e conversavam sobre a nobreza da arte da esgrima, o orgulho de cingir a espada, as glórias militares de Espanha, a imperiosa necessidade de todo o cavalheiro com pundonor se bater em duelo em defesa do seu nome, apesar de os duelos serem proibidos. Desses assuntos derivavam para outros mais profundos, e aquele homenzinho soberbo, com a aparência engomada e meticulosa de um peralvilho, susceptível até raiar o absurdo quando se tratava da sua honra e dignidade, foi revelando o outro lado do seu carácter. Manuel Escalante era filho de um comerciante, mas salvara-se de um destino modesto, como o dos irmãos, porque era um génio com a espada. A esgrima elevara-o de categoria, permitira-lhe inventar uma nova personalidade e percorrer a Europa, ombreando com nobres e cavalheiros. A sua obsessão não eram as estocadas históricas nem os títulos de nobreza, como parecia à primeira vista, mas sim a justiça. Adivinhou que Diego compartilharia o seu próprio desvelo, embora, por ser demasiado jovem, ainda não soubesse nomeá-lo. Então sentiu que, por fim, a sua vida tinha um propósito elevado: guiar aquele jovem para que seguisse os seus passos, convertê-lo em paladino de causas justas. Tinha ensinado esgrima a centenas de cavalheiros, mas nenhum provara ser digno dessa distinção. Faltava-lhes a chama incandescente que reconheceu imediatamente em Diego, porque ele também a tinha. Não quis deixar-se levar pelo entusiasmo inicial, decidiu conhecê-lo melhor e pô-lo à prova, antes de lhe dar a conhecer os seus segredos. Nessas breves conversas à hora do café, sondou-o. Diego, sempre disposto a abrir-se, contou-lhe, entre outras coisas, a sua infância na Califórnia, a travessura do urso com o chapéu, o ataque dos piratas, a mudez de Bernardo e aquela ocasião em que os soldados incendiaram a aldeia dos índios. Tremia-lhe a voz ao recordar como enforcaram o velho chefe da tribo, açoitaram os homens e os levaram, a fim de trabalharem para os brancos.

Numa das suas visitas de cortesia ao palacete de Eulália de Callís, Diego encontrou-se com Rafael Moncada. Visitava a dama de vez em quando por encomenda dos pais, mais que por sua própria iniciativa. A residência ficava na Rua Santa Eulália e, ao princípio, Diego julgou que tivessem baptizado a rua por causa daquela senhora. Passou um ano antes que averiguasse quem era a mítica Eulália, santa predilecta de Barcelona, virgem martirizada, à qual, segundo a lenda, tinham cortado os seios e feito rolar dentro de um tonel com pedaços de vidro, antes de a crucificarem. A propriedade da antiga governadora da Califórnia era uma das jóias arquitectónicas da cidade e o seu interior estava decorado com um luxo excessivo, que chocava os sóbrios catalães, para os quais a ostentação era sinal indubitável de mau gosto. Eulália vivera muito tempo no México e tinha sido contagiada pelos arrebiques barrocos. Na sua corte privada havia várias centenas de pessoas que viviam basicamente do cacau. Antes de morrer de um fanico no México, o marido de Dona Eulália estabelecera um negócio nas Antilhas para abastecer as chocolatarias de Espanha, o que aumentara a fortuna da família. Os títulos de Eulália não eram muito antigos nem muito impressionantes, mas o seu dinheiro compensava generosamente o que lhe faltava em estirpe. Enquanto a nobreza perdia as suas rendas, privilégios, terras e prebendas, ela continuava a enriquecer graças ao inesgotável rio aromático de chocolate que fluía directamente da América para as suas arcas. Noutros tempos, os nobres de mais prosápia, aqueles que podiam afiançar sangue azul anterior a 1400, teriam desprezado Eulália, que pertencia à plebe nobiliária, mas a situação já não estava para minúcias aristocráticas. Agora era o dinheiro que contava, mais que a linhagem, e ela tinha muito. Outros terras-tenentes queixavam-se de que os seus camponeses se recusavam a pagar impostos e rendas, mas ela não sofria desse problema, porque contava com um selecto grupo de valentões encarregados das cobranças. Aliás, a maior parte dos seus rendimentos provinha do estrangeiro. Eulália chegou a ser uma das personagens mais conspícuas da cidade. Deslocava-se sempre, até quando ia à igreja, com um séquito de criados e cães em várias carruagens. A sua criadagem vestia libré azul-celeste com chapéus emplumados, que ela mesma desenhara inspirada na ópera. Com os anos aumentara de peso e perdera originalidade; estava transformada numa matriarca enlutada, glutona, rodeada de padres, beatas e cães chihuahua, uns animais que pareciam ratos pelados e urinavam nas cortinas. Tinha-se emancipado por completo das boas paixões que a haviam atormentado na sua magnífica juventude, quando pintava o cabelo de vermelho e tomava banho em leite. Agora, os seus interesses reduziam-se a defender a sua linhagem, vender chocolate, garantir um lugar no paraíso depois da morte e propiciar por todos os meios possíveis o regresso de Fernando VII ao trono de Espanha. Aborrecia as reformas liberais.

Por ordens do pai e em agradecimento pela maneira como aquela dama se tinha portado com Regina, a sua mãe, Diego de La Vega fez o propósito de a visitar de tanto em tanto tempo, apesar de essa obrigação lhe pesar como um sacrifício. Não tinha nada a dizer à viúva, salvo quatro frases corteses de rigor, e nunca sabia a ordem pela qual competia utilizar as colherinhas e garfos da sua mesa. Sabia que Eulália de Callís detestava Tomás de Romeu por duas razões de peso: primeiro, pela sua condição de afrancesado e, segundo, por ser o pai de Juliana, por quem, infelizmente, Rafael Moncada, o seu sobrinho predilecto e principal herdeiro, estava apaixonado. Eulália vira Juliana na missa e tinha de admitir que não era feia, mas ela tinha planos muito mais ambiciosos para o sobrinho. Estava a negociar discretamente uma aliança com uma das filhas do duque de Medinaceli. O desejo de evitar que Rafael se casasse com Juliana era a única coisa que Diego tinha em comum com a dama.

Na sua quarta visita ao palacete de Dona Eulália, vários meses depois do incidente da serenata sob a janela de Juliana, Diego teve ocasião de conhecer melhor Rafael Moncada. Tinha-o encontrado algumas vezes em eventos sociais e desportivos, mas à parte cumprimentarem-se com uma inclinação de cabeça, não tinham relações. Moncada considerava que Diego era um rapazote destituído de interesse, cuja única graça consistia em viver sob o mesmo tecto que Juliana de Romeu. Não havia outra razão para o distinguir sobre o desenho da carpete. Nessa noite, Diego surpreendeu-se ao ver que a mansão de Dona Eulália estava profusamente iluminada e dezenas de carruagens se alinhavam nos pátios. Até então, ela só o tinha convidado para tertúlias de artistas e um jantar íntimo em que o interrogara sobre Regina. Diego julgava que ela se envergonhava dele, não tanto por vir das colónias, mas por ser mestiço. Eulália tratara muito bem a sua mãe na Califórnia, apesar de Regina ter mais de índia que de branca, mas desde que vivia em Espanha tinha-se-lhe pegado o desprezo pela gente do Novo Mundo. Dizia-se que, devido ao clima e à mistura com os indígenas, os crioulos possuíam uma predisposição natural para a barbárie e a perversão. Antes de o apresentar às suas selectas amizades, Eulália quis ter uma ideia exacta dele. Não queria levar com um balde de água fria; por isso, assegurou-se de que ele fosse branco na aparência, andasse bem vestido e tivesse maneiras adequadas.

Nessa ocasião, Diego foi conduzido a um salão esplêndido, onde estava reunida a nata da nobreza catalã, presidida pela matriarca, sempre de veludo preto, como luto perene por Pedro Fages, e coberta de diamantes, instalada num cadeirão com baldaquino de bispo. Outras viúvas enterravam-se em vida sob um véu escuro, que as cobria da touca até aos cotovelos, mas não era o seu caso. Eulália ostentava as suas jóias sobre uma opulenta peitaça de galinha bem nutrida. O decote deixava ver o despontar de uns seios enormes e moles, como melões em pleno Verão, dos quais Diego não conseguia despregar a vista, entontecido pelo brilho dos diamantes e pela abundância de carne. A dama estendeu-lhe uma mão gorducha, que ele beijou como competia, perguntou-lhe pelos pais e, sem esperar pela resposta, despachou-o com um gesto vago.

A maior parte dos cavalheiros conversava sobre política e negócios em salões separados, enquanto os pares jovens dançavam ao som da orquestra, vigiados pelas mães das donzelas. Numa das salas havia várias mesas de jogo, a diversão mais popular das cortes europeias, onde não existiam outras formas de combater o tédio, à parte a intriga, a caça e os amores fugazes. Apostavam-se fortunas, e os jogadores profissionais andavam de palácio em palácio para esfolar os nobres ociosos, que, se não achassem companheiros de tertúlia da sua classe para perder dinheiro, o faziam entre meliantes em casas de jogo clandestinas e tugúrios, que havia às centenas em Barcelona. Numa das mesas, Diego viu Rafael Moncada a jogar o vinte-e-um real com outros cavalheiros. Um deles era o conde Orloff. Diego reconheceu-o de imediato, pelo seu esplêndido porte e aqueles olhos azuis que inflamaram a imaginação de tantas mulheres na sua visita a Los Angeles, mas não esperava que o nobre russo o reconhecesse a ele. Tinha-o visto uma única vez, quando era miúdo.

- De La Vega! - exclamou Orloff e, pondo-se de pé, abraçou-o efusivamente. Surpreendido, Rafael Moncada levantou a vista das suas cartas e pela primeira vez apercebeu-se inteiramente da existência de Diego.

Mediu-o de cima a baixo, enquanto o bem-parecido conde contava em voz alta como aquele jovem tinha caçado vários ursos quando era apenas um malandrim de tenra idade. Desta vez não estava lá Alejandro de La Vega para corrigir a sua épica versão. Os homens aplaudiram amavelmente e logo voltaram às suas cartas. Diego postou-se perto da mesa para observar os pormenores da partida, sem se atrever a pedir licença para participar, embora fossem jogadores medíocres, porque não dispunha das quantias que ali se apostavam. O pai mandava-lhe dinheiro regularmente, mas não era generoso; considerava que as privações temperam o carácter. Bastaram cinco minutos a Diego para se aperceber de que Rafael Moncada fazia batota, porque ele próprio sabia perfeitamente como a fazer, e outros cinco para decidir que, embora não o pudesse desmascarar sem armar um escândalo, o que Dona Eulália não lhe perdoaria, pelo menos podia impedi-lo. A tentação de humilhar o rival revelou-se-lhe irresistível. Plantou-se ao pé de Moncada a observá-lo com tal fixidez que este acabou por se incomodar.

- Porque não vai dançar com as bonitas jovens do outro salão? - perguntou Moncada, sem disfarçar a insolência.

- Interessa-me grandemente a sua maneira muito peculiar de jogar, Excelência, posso sem dúvida aprender muito consigo... - volveu Diego, sorrindo com a mesma insolência do outro.

O conde Orloff captou de imediato a intenção daquelas palavras e, cravando os olhos em Moncada, fez-lhe saber, num tom tão gelado como as estepes do seu país, que a sua sorte às cartas se afigurava verdadeiramente prodigiosa. Rafael Moncada não respondeu, mas a partir desse momento não pôde continuar a fazer batota, porque os outros jogadores o examinavam com óbvia atenção. Durante a hora seguinte, Diego não arredou pé do seu lado, vigiando-o, até ser dada por terminada a partida.

O conde Orloff cumprimentou batendo os calcanhares e retirou-se com uma pequena fortuna na bolsa, disposto a passar o resto da noite a dançar. Sabia muito bem que não havia uma única mulher na festa que não tivesse reparado no seu porte galhardo, nos seus olhos de safira e no seu espectacular uniforme imperial.

Numa daquelas noites plúmbeas de Barcelona, frias e húmidas, Bernardo aguardava Diego no pátio, compartilhando a sua botija de vinho e o seu queijo duro com Joanet, um lacaio dos muitos que tratavam das carruagens. Aqueciam ambos os pés sapateando nas pedras da calçada. Joanet, conversador incorrigível, tinha encontrado, por fim, uma pessoa que o ouvisse sem o interromper. Identificou-se como criado de Rafael Moncada, coisa que Bernardo já sabia e por motivo da qual o tinha abordado, e desatou a contar uma história eterna cheia de mexericos, cujos pormenores Bernardo classificava e guardava na memória. Tinha verificado que toda a informação, até a mais trivial, pode ser útil em algum momento. Nisto, saiu Rafael Moncada de muito mau humor e pediu a sua carruagem.

- Já te proibi de falares com outros criados! - disparou a Joanet.

- É só um índio das Américas, Excelência, o criado de Dom Diego de La Vega.

Num impulso de desforra contra Diego, que o tinha posto em apuros na mesa de jogo, Rafael Moncada voltou atrás, levantou a bengala e descarregou-a nas costas de Bernardo, que caiu de joelhos, mais surpreendido que outra coisa. Do solo, Bernardo ouviu-lhe ordenar a Joanet que procurasse Pelayo. Moncada não chegou a instalar-se na sua carruagem, porque Diego aparecera no pátio a tempo de ver o sucedido. Afastou o lacaio para o lado, agarrou na portinhola do coche e enfrentou Moncada.

- Que deseja? - perguntou este, desconcertado.

- Bateu a Bernardo! - exclamou Diego, lívido.

- A quem? Refere-se àquele índio? Faltou-me ao respeito, levantou-me a voz.

- Bernardo não consegue levantar a voz nem ao próprio diabo, porque é mudo. Deve-lhe uma desculpa, cavalheiro - exigiu Diego.

- Perdeu a razão! - gritou o outro, incrédulo.

- Ao agredir Bernardo, o senhor injuriou-me. Deve retractar-se, caso contrário receberá os meus padrinhos - volveu Diego.

Rafael Moncada desatou a rir com vontade. Não podia acreditar que aquele crioulo sem educação nem classe estivesse disposto a bater-se com ele. Fechou a portinhola de supetão e ordenou ao cocheiro que partisse. Bernardo tomou Diego por um braço e deteve-o de chofre, suplicando-lhe com o olhar que se acalmasse, que não valia a pena fazer tanto alvoroço, mas Diego estava fora de si, tremendo de indignação. Desprendeu-se do irmão, montou no seu cavalo e dirigiu-se a galope à residência de Manuel Escalante.

Apesar do inoportuno daquela hora da madrugada, Diego bateu à porta de Manuel Escalante com a bengala até lhe vir abrir o mesmo velho criado que servia o café depois da lição. Conduziu-o ao segundo andar, onde teve de aguardar meia hora antes de o mestre aparecer. Escalante estava na cama havia já um pedaço, mas apresentou-se com o seu esmero habitual, vestindo um roupão de noite e com o bigode colado de pomada. Diego contou-lhe aos borbotões o sucedido e rogou-lhe que lhe servisse de padrinho. Dispunha de vinte e quatro horas para formalizar o duelo, e a diligência devia fazer-se com discrição, às ocultas das autoridades, porque era punido como qualquer homicídio.

Só a aristocracia podia bater-se sem consequências, pois os seus crimes contavam com uma certa impunidade, que ele não tinha.

- O duelo é um assunto sério, que toca à honra dos gentis-homens. Tem uma etiqueta e normas muito estritas. Um cavalheiro não se bate em duelo por um criado - declarou Manuel Escalante.

- Bernardo é meu irmão, mestre, não é meu criado. Mas, mesmo que o fosse, não é justo que Moncada maltrate uma pessoa indefesa.

- Não é justo, diz? Pensa realmente que a vida é justa, senhor De La Vega?

- Não, mestre, mas penso fazer o que estiver na minha mão para que o seja - retrucou Diego.

O procedimento revelou-se mais complexo do que Diego supunha. Primeiro, Manuel Escalante fê-lo redigir uma carta a pedir explicações, que levou pessoalmente a casa do ofensor. A partir desse momento, o mestre entendeu-se com os padrinhos de Moncada, que fizeram o possível para evitar o duelo, como era seu dever, mas nenhum dos adversários quis retractar-se. Além dos padrinhos de ambas as partes, eram necessários um médico discreto e duas testemunhas imparciais, com sangue-frio e conhecimento das regras, que Manuel Escalante se encarregou de conseguir.

- Quantos anos tem, Dom Diego? - perguntou o mestre.

- Quase dezassete.

- Então não tem idade suficiente para se bater.

- Mestre, rogo-lhe, não façamos uma montanha desse grãozinho de areia. Que importam uns meses a mais ou a menos? A minha honra está em jogo, e isso não tem idade.

- Está bem, mas Dom Tomás de Romeu deve ser informado disto, caso contrário seria uma ofensa, visto que ele o distinguiu com a sua confiança e hospitalidade.

Foi assim que De Romeu foi designado como segundo padrinho de Diego. Fez o possível por dissuadi-lo, porque, se o desenlace fosse fatal para o jovem, não teria como o explicar a Dom Alejandro de La Vega, mas não conseguiu. Tinha presenciado um par de aulas de esgrima de Diego na academia de Escalante e confiava na destreza do jovem, mas a sua relativa tranquilidade foi por água abaixo quando os padrinhos de Moncada os notificaram de que este tinha torcido, recentemente, um tornozelo e não poderia bater-se à espada. O duelo seria à pistola.

Marcaram encontro no bosque de Montjuic às cinco da manhã, quando já havia alguma luz e se podia circular na cidade, porque àquela hora era levantado o recolher. Desprendia-se da terra uma bruma ténue e a delicada luz do amanhecer coava-se por entre as árvores. A paisagem era tão aprazível que aquele combate se tornava ainda mais grotesco, mas nenhum dos presentes, excepto Bernardo, dava por isso. Na sua condição de criado, o índio mantinha-se a uma certa distância, sem participar no rigoroso ritual. Em obediência ao protocolo, os adversários cumprimentaram-se, após o que as testemunhas lhes revistaram o corpo para se certificarem de que não levavam protecção contra os disparos. Deitaram sortes para ver quem ficava de cara para o sol e Diego perdeu, mas pensou que a sua boa vista seria suficiente para compensar essa desvantagem. Por ser o ofendido, Diego pôde escolher as pistolas e optou pelas que Eulália de Callís enviara ao pai para a Califórnia muitos anos antes, limpas e acabadas de lubrificar para a ocasião. Sorriu ante a ironia de ser justamente o sobrinho de Eulália o primeiro a usá-las. As testemunhas e os padrinhos inspeccionaram as armas e carregaram-nas. Tinham acordado que não seria um duelo ao primeiro sangue; ambos os combatentes teriam direito a disparar à vez, mesmo que estivessem feridos, desde que o médico o autorizasse. Moncada escolheu a pistola antes, porque as armas não eram suas, após o que tornaram a deitar-se sortes para decidir quem disparava primeiro - também Moncada - e se mediram os quinze passos de distância que haviam de separar os adversários.

Rafael Moncada e Diego de La Vega enfrentaram-se, por fim. Nenhum dos dois era cobarde, mas estavam pálidos, com as camisas empapadas de suor gelado. Diego tinha chegado àquele ponto por raiva e Moncada por orgulho; já era tarde, não podiam considerar a possibilidade de retroceder. Nesse momento compreenderam que iam jogar a vida sem estarem seguros da causa. Tal como Bernardo fizera ver a Diego, o duelo não era pela bengalada que Moncada lhe aplicara, mas sim por Juliana, e, embora Diego o tivesse negado enfaticamente, no fundo sabia que ele tinha razão. Uma carruagem fechada esperava a duzentas varas para levar com a maior discrição possível o cadáver do vencido. Diego não pensou nos pais nem em Juliana. No instante em que tomava posição, com o corpo de perfil para apresentar menor superfície ao seu contendor, a imagem de Coruja Branca acudiu-lhe à mente com tal clareza que a viu ao pé de Bernardo. A sua estranha avó estava de pé, com a mesma atitude e o mesmo manto de pele de coelho com que se despedira deles, quando haviam partido da Califórnia. Coruja Branca levantou o seu bastão de xamã num gesto altivo, que ele a vira fazer muitas vezes, e sacudiu-o no ar com firmeza. Nessa altura sentiu-se invulnerável, o medo desapareceu por encanto e pôde olhar Moncada no rosto.

Uma das testemunhas, nomeada director do combate, bateu as palmas uma vez para se prepararem. Diego respirou fundo e enfrentou sem pestanejar a pistola do outro, que se elevava até à posição de tiro. As mãos do director bateram palmas duas vezes para apontarem. Diego sorriu a Bernardo e à avó, preparando-se para o disparo. As mãos bateram três palmas e Diego viu o clarão, ouviu a explosão de pólvora e sentiu simultaneamente a dor escaldante no braço esquerdo.

O jovem vacilou e, por um longo instante, pareceu que ia cair, enquanto a manga da camisa se lhe encharcava de sangue. Naquele brumoso amanhecer, uma ténue aguarela, onde os contornos de árvores e homens se esfumavam, a mancha vermelha brilhava como laca. O director indicou a Diego que dispunha só de um minuto para responder ao disparo do adversário. Ele disse que sim com a cabeça e colocou-se em posição de disparar com a mão direita, enquanto lhe gotejava sangue da esquerda, que pendia inerte. Em frente dele, Moncada, transtornado, a tremer, virou-se de perfil, de olhos fechados. O director bateu uma vez as palmas e Diego levantou a arma; duas e apontou; três. A quinze passos de distância, Rafael Moncada ouviu o disparo e o seu corpo sofreu o impacte de um tiro de canhão. Caiu de joelhos no chão e passaram vários segundos antes que se desse conta de que estava ileso: Diego disparara para o chão. Nessa altura vomitou, tiritando como quem tivesse febre. Os seus padrinhos, envergonhados, aproximaram-se para o ajudar a levantar-se e adverti-lo em voz baixa de que tinha de se controlar. Entretanto, Bernardo e Manuel Escalante ajudavam o médico a rasgar o tecido da camisa de Diego, que se mantinha de pé, aparentemente sereno. A bala tinha roçado a parte de trás do braço sem tocar o osso e sem danificar demasiado o músculo. O médico aplicou-lhe uma compressa e ligou-o para estancar o sangue, até poder lavá-lo e cosê-lo com comodidade mais tarde. Tal como exigia a etiqueta do duelo, os combatentes apertaram a mão. Tinham lavado a honra, não havia ofensas pendentes.

- Agradeço ao céu que a sua ferida seja leve, cavalheiro - disse Rafael Moncada, já no pleno domínio dos nervos. - E peço-lhe desculpas por ter batido no seu criado.

- Aceito-as, senhor, e lembro-lhe que Bernardo é meu irmão - respondeu Diego.

Bernardo amparou-o pelo braço são e levou-o quase ao colo para o coche. Mais tarde, Tomás de Romeu perguntou-lhe para que tinha desafiado Moncada se não estava disposto a disparar sobre ele. Diego respondeu-lhe que nunca pretendera ficar com um morto na memória, que lhe arruinaria o sono; só queria humilhá-lo.

Acordaram que nada se diria do duelo a Juliana e Isabel - era assunto de homens e não se devia ofender a sensibilidade feminina -, mas nenhuma das raparigas acreditou na versão de que Diego tinha caído do cavalo. Isabel tanto massacrou Bernardo que este acabou por lhe contar com uns quantos sinais o sucedido. «Nunca percebi isso da honra masculina. É preciso ser bem tolo para arriscar a vida por uma insignificância», comentou a rapariga, mas estava impressionada, conforme Bernardo pôde apreciar, porque com as emoções fortes ficava vesga. A partir desse instante, Juliana, Isabel e até Nuria lutavam pelo privilégio de levar a comida a Diego. O médico tinha-lhe ordenado descanso por uns dias, para evitar complicações. Foram os quatro dias mais felizes da vida do jovem; de bom grado se teria batido em duelo uma vez por semana contanto que tivesse a atenção de Juliana. O seu quarto enchia-se de uma luz sobrenatural quando ela entrava. Esperava-a com um elegante roupão de noite, recostado num cadeirão, com um livro de sonetos nos joelhos, fingindo ler, embora, na realidade, tivesse estado a contar os minutos da sua ausência. Nessas ocasiões doía-lhe tanto o braço que Juliana tinha de lhe dar a sopa à boca, enxaguar-lhe a testa com água de flor de laranjeira e entretê-lo durante horas com a harpa, leituras e jogos de damas.

Distraído pelo ferimento de Diego, que sem ser de gravidade era de cuidado, Bernardo não voltou a pensar que tinha ouvido Rafael Moncada referir Pelayo a não ser vários dias mais tarde, quando soube pela boca de criados que o conde Orloff fora assaltado na própria noite da festa de Eulália de Callís.

O nobre russo tinha ficado no palacete até muito tarde, após o que tomara a sua carruagem para voltar à residência que alugara durante a sua breve estada na cidade. No trajecto, um grupo de foragidos armados de trabucos interceptara o coche numa viela, dominara sem problemas os quatro lacaios e, depois de aturdir o conde com uma tremenda pancada, tirara-lhe a bolsa, as jóias e a capa de pele de chinchila que levava vestida. Atribuiu-se o assalto à guerrilha, embora essa não tivesse sido até então a sua maneira de operar. O comentário geral foi que se tinha perdido todo o resquício de ordem em Barcelona. De que servia ter um salvo-conduto para o recolher obrigatório, se as pessoas de bem já não podiam andar pelas ruas? Era o cúmulo que os Franceses não fossem capazes de manter um mínimo de segurança! Bernardo fez saber a Diego que a bolsa roubada continha o ouro que o conde Orloff ganhara a Rafael Moncada na mesa de jogo. - Tens a certeza de que ouviste Moncada nomear Pelayo? Sei o que estás a pensar, Bernardo. Pensas que Moncada está envolvido no assalto ao conde. É uma acusação demasiado séria, não achas? Faltam-nos provas, mas concordo contigo que é muita coincidência. Mesmo que Moncada não tenha nada a ver com este assunto, de qualquer maneira é um batoteiro. Não quereria vê-lo perto de Juliana, mas não sei como o impedir - comentou Diego.

 

Em Março de 1812, os Espanhóis aprovaram, na cidade de Cádis, uma Constituição liberal baseada nos princípios da Revolução Francesa, mas com a diferença de que proclamava o catolicismo como religião oficial do país e proibia o exercício de qualquer outra. Tal como disse Tomás de Romeu, não havia razão para lutar tanto contra Napoleão, se, ao fim e ao cabo, estavam de acordo no essencial. «Ficará só no papel, porque Espanha não está preparada para ideias ilustradas», foi a opinião do Chevalier, que acrescentou com um gesto de impaciência que faltavam cinquenta anos a Espanha para entrar no século XIX.

Enquanto Diego passava longas horas a estudar nas vetustas salas do Colégio de Humanidades, a praticar esgrima e a inventar novos truques de magia para seduzir a inalterável Juliana, que tinha voltado a tratá-lo como irmão mal ele se curara do ferimento, Bernardo percorria Barcelona arrastando as pesadas botas do padre Mendoza, às quais nunca chegou a habituar-se. Trazia sempre pendurada ao peito a sua bolsa mágica, onde ia a trança negra de Raio na Noite que já tinha o calor e cheiro da sua pele, fazia parte do seu próprio corpo, era um apêndice do seu coração. A mudez que a si próprio tinha imposto apurara-lhe os outros sentidos; era capaz de se guiar pelo olfacto e pelo ouvido. Era por natureza solitário e na sua qualidade de estrangeiro estava ainda mais sozinho, mas isso agradava-lhe. A multidão não o oprimia, porque no meio do tumulto encontrava sempre um lugar sereno para a sua alma. Sentia saudades dos espaços abertos em que sempre vivera antes, mas também gostava daquela cidade com a patina de séculos, as suas ruas acanhadas, os seus edifícios de pedra, as suas escuras igrejas, que lhe recordavam a fé do padre Mendoza. Preferia o bairro do porto, onde podia olhar o mar e comunicar com os golfinhos de águas remotas. Passeava sem rumo, silencioso, invisível, misturado com as pessoas, tomando o pulso a Barcelona e ao país. Numa dessas vagas excursões voltou a ver Pelayo.

À entrada de uma taberna tinha-se postado uma cigana, suja e formosa, a tentar os passantes com a revelação dos seus destinos, que ela era capaz de discernir nas cartas ou no mapa das mãos, como proclamava num castelhano arrevesado. Momentos antes tinha predito a um marinheiro bêbedo, para o consolar, que numa praia distante o aguardava um tesouro, embora na realidade tivesse visto nas suas palmas da mão a cruz da morte. Pouco mais adiante, o homem deu-se conta de que lhe faltava a bolsa com o dinheiro e deduziu que a zíngara lha roubara. Regressou disposto a recuperar o que era seu. Tinha o olhar cinzento e deitava espumaradas de cão raivoso quando agarrou a suposta ladra pelos cabelos e começou a sacudi-la. Aos seus berros e maldições saíram os fregueses da taberna e puseram-se a aplaudi-lo com apupos endemoninhados, porque se havia coisa que unisse toda a gente era o ódio cego contra os boémios e, além disso, naqueles anos de guerra bastava o mais pequeno pretexto para que a chusma cometesse tropelias. Acusavam-nos de quantos vícios a humanidade conhece, inclusivamente o de roubarem crianças espanholas para as venderem no Egipto. Os avós ainda se lembravam das animadas festas populares em que a Inquisição queimava por igual hereges, bruxas e ciganos. No instante em que o marinheiro abria a sua navalha para marcar a cara da mulher, Bernardo interveio com um empurrão de mula e atirou-o ao chão, onde ele ficou a espernear nos vapores tenazes do álcool. Antes que a assistência reagisse, Bernardo deu a mão à cigana e correram ambos, perdendo-se rua abaixo. Não pararam até ao bairro da Barceloneta, onde estavam mais ou menos a salvo da multidão enraivecida. Ali, Bernardo soltou-a e fez menção de se despedir, mas ela insistiu para que ele a seguisse vários quarteirões, até um carroção pintalgado de arabescos e signos zodiacais, amarrado a um triste cavalo percherão de largas patas, que estava postado numa ruela lateral. Por dentro, aquele veículo, desengonçado pelo abuso de várias gerações de nómadas, era uma caverna de turco, atulhada de objectos estranhos, com uma data de lenços de cor, uma confusão de guizos e um museu de almanaques e imagens religiosas colados até no tecto. Aquilo cheirava a um misto de pachuli e trapos sujos.

Um colchão com pretensiosas almofadas de brocado desbotado constituía o mobiliário. Com um gesto, ela indicou a Bernardo que se instalasse e a seguir sentou-se defronte dele com as pernas encolhidas, a observá-lo com o seu ar duro. Agarrou numa garrafa de álcool, bebeu um gole e passou-lha, ainda agitada pela corrida. Tinha a pele morena, o corpo musculoso, os olhos ferozes e o cabelo tingido com alfena. Estava descalça, vestida com duas ou três compridas saias de folhos, blusa desbotada, colete curto apertado à frente com laços cruzados, xaile de franjas pelos ombros e um pano amarrado à cabeça, sinal das mulheres casadas da sua tribo, embora ela fosse viúva. Nos seus pulsos tilintava uma dúzia de pulseiras, nos tornozelos vários guizos de prata e na testa umas moedas de ouro cosidas ao lenço.

Usava o nome de Amália entre os gadje, quer dizer, os que não eram ciganos. Recebera da mãe outro nome à nascença, que só ela conhecia e cuja finalidade era enganar os maus espíritos, mantendo a verdadeira identidade da menina em segredo. Tinha também um terceiro nome, que empregava entre os membros da sua tribo. Ramón, o homem da sua vida, fora assassinado à paulada por uns lavradores num mercado de Lérida, acusado de roubar galinhas. Amara-o desde criança. As famílias de ambos combinaram o casamento quando ela tinha apenas onze anos. Os sogros pagaram um elevado preço por ela, porque possuía boa saúde e carácter firme, estava bem treinada para os trabalhos domésticos e, além disso, era uma verdadeira drabardi: tinha nascido com o dom natural de adivinhar a sorte e curar com encantamentos e ervas. Com essa idade parecia um gato esquálido, mas a beleza não contava nada na escolha de uma esposa. O marido teve uma agradável surpresa quando aquele montão de ossos se converteu numa mulher atraente, mas, por outro lado, sofreu a grave desilusão de que Amália não podia ter filhos. O seu povo considerava as crianças uma bênção e um ventre seco era motivo de divórcio, mas Ramón amava-a demasiado.

A morte do marido mergulhara-a num longo luto, do qual nunca viria a recompor-se. Não devia mencionar o nome do defunto, para não o chamar do outro mundo, mas em segredo chorava todas as noites por ele.

Havia séculos que o seu povo vagueava pelo mundo, perseguido e odiado. Os antepassados da sua tribo tinham saído da índia mil anos antes e atravessado toda a Europa e a Ásia antes de irem parar a Espanha, onde os tratavam tão mal como em outros sítios, mas o clima prestava-se um pouco melhor à vida errante. Estabeleceram-se no Sul, onde restavam poucas famílias transumantes como a de Amália. Aquela gente tinha aguentado tantas desilusões que já não confiava nem na própria sombra, pelo que a inesperada intervenção de Bernardo comoveu a alma da cigana. Só podia ter contactos com um gadje para fins comerciais, caso contrário punha em perigo a pureza da sua raça e as suas tradições. Por elementar prudência, os boémios mantinham-se marginalizados, nunca confiavam em estrangeiros e reservavam a sua lealdade apenas para o clã, mas ela achou que aquele jovem não era exactamente um gadje: vinha de outro planeta, era forasteiro em todo o lado. Talvez fosse cigano de uma tribo perdida.

Calhou Amália ser irmã de Pelayo, conforme Bernardo viria a descobrir nesse mesmo dia ao entrar no carroção. Pelayo não reconheceu o índio, porque na noite em que fora surpreendido a cantar em italiano para Juliana, por encomenda de Moncada, só tivera olhos para Diego, cuja espada lhe aguilhoava o pescoço. Amália explicou o acontecido a Pelayo, em romani, a sua língua de sons quebradiços, derivada do sânscrito. Pediu-lhe desculpa por ter violado o tabu de não se relacionar com gadjes. Essa grave falta podia conduzi-la a marimé, estado de impureza, que merecia o repúdio da sua comunidade, mas esperava que as normas se tivessem relaxado desde o começo da guerra. O clã sofrera muito nesses anos e as famílias tinham-se dispersado.

Pelayo chegou à mesma conclusão e, em vez de increpar a irmã, como era costume, agradeceu a Bernardo sem estardalhaços. Estava tão surpreendido como ela perante a bondade do índio, porque nunca nenhum estranho os tinha tratado bem. Os irmãos aperceberam-se de que Bernardo era mudo, mas não caíram no erro comum de o considerarem também surdo ou atrasado. Faziam parte de um grupo que se sustentava a custo, com qualquer ocupação que lhes viesse parar às mãos, quase sempre vendendo e domando cavalos, curando-os também se estivessem doentes ou acidentados. Ganhavam a vida com as suas pequenas forjas, trabalhando metais, ferro, ouro e prata. Fabricavam desde ferraduras até espadas e jóias. A guerra deslocava-os com frequência, mas, por outro lado, isso convinha-lhes porque, no furor de se matarem uns aos outros, tanto Franceses como Espanhóis os ignoravam. Aos domingos e outros dias feriados montavam uma esburacada barraca nas praças e faziam números de circo. Bernardo viria a conhecer muito em breve o resto do grupo, no qual avultava Rodolfo, um gigante coberto de tatuagens, que enrolava uma cobra grossa ao pescoço e levantava um cavalo nos braços. Tinha mais de sessenta anos, sendo o mais velho da numerosa família e, por conseguinte, o de maior autoridade. Petrina contribuía com o número forte do patético circo dominical. Era uma minúscula menina de nove anos, que se dobrava como um lenço para se introduzir, toda ela, numa barrica de guardar azeitonas. Pelayo fazia acrobacias a galope sobre um dos cavalos, e outros membros da família deleitavam o público lançando adagas uns aos outros de olhos vendados. Amália vendia rifas, lia o horóscopo e adivinhava a sina numa clássica bola de cristal com tão certeira intuição que ela própria se assustava com a sua lúcida pontaria, sabendo que a capacidade de decifrar o futuro costuma ser uma maldição; visto que não se pode mudar o que há-de acontecer, mais vale ignorá-lo.

 

Mal Diego de La Vega soube que Bernardo tinha feito amizade com os ciganos, insistiu em conhecê-los, porque pretendia averiguar os contratos de Pelayo com Rafael Moncada. Não imaginou que ia afeiçoar-se a eles e sentir-se tão bem na sua companhia. Nessa época, em Espanha, a maior parte das tribos do povo Rom, como a si próprios se chamam os boémios, viviam de maneira sedentária. Estabeleciam os seus acampamentos nos arrabaldes de povoações e cidades. Pouco a pouco, começavam a fazer parte da paisagem, até que a população local se acostumava a eles e deixava de os perseguir, embora nunca os aceitasse. Na Catalunha, em contrapartida, não havia acampamentos fixos; os Rom da zona eram nómadas. A tribo de Pelayo e Amália era a primeira que se instalava com a intenção de ficar; havia três anos que estava no mesmo lugar. Diego apercebeu-se desde o primeiro momento de que não convinha fazer-lhes perguntas sobre Moncada nem sobre qualquer outro assunto, porque aquela gente tinha muito boas razões para ser desconfiada e guardar os seus segredos. Uma vez completamente cicatrizada a costura do braço e obtido o perdão de Pelayo pela picada que lhe fizera no pescoço com a espada, Diego conseguiu que ele lhe permitisse participar com Bernardo no improvisado circo. Fizeram uma breve demonstração, que não saiu tão vistosa como esperavam, porque Diego ainda tinha o braço fraco, mas foi suficiente para que os integrassem como acrobatas. Com a ajuda do resto da companhia fabricaram um engenhoso emaranhado de postes, cordas e trapézios, inspirado no cordame do Madre de Dios. Os jovens apareciam na pista de capa negra, que despiam com um gesto olímpico, para ficarem em colas da mesma cor. Nessa figura voavam pelos ares sem precauções de maior, porque o tinham feito antes no velame dos barcos, ao dobro da altura e balançando sobre as ondas.

Diego também fazia desaparecer uma galinha morta, que a seguir tirava viva do decote de Amália, e com o chicote apagava uma vela colocada sobre a cabeça do gigantesco Rodolfo, sem lhe perturbar os cabelos. Estas actividades nunca eram comentadas fora do âmbito dos ciganos, porque a tolerância de Tomás de Romeu tinha limites e não as teria certamente aprovado. Eram muitas as coisas que aquele cavalheiro ignorava sobre o seu jovem hóspede.

Um desses domingos, Bernardo assomou pela cortina dos artistas e viu que Juliana e Isabel, acompanhadas pela ama, se achavam entre o público. Ao voltarem da missa, onde Nuria insistia em levá-las, apesar de a ideia não ser do agrado de Tomás de Romeu, as meninas tinham visto o circo e insistiram em entrar. A barraca, feita de pedaços amarelecidos de velas abandonadas no porto, tinha uma pista central coberta de palha, umas banquetas de pau para os espectadores de qualidade e um espaço ao fundo para a chusma de pé. Era no círculo de palha que o gigante levantava o cavalo, Amália enfiava Petrina na barrica de azeitonas e Diego e Bernardo subiam aos trapézios. Era ali mesmo que se levavam a cabo, de noite, as lutas de galos que Pelayo organizava. Não era lugar onde Tomás de Romeu tivesse querido ver as filhas, mas Nuria era incapaz de resistir quando Juliana e Isabel se aliavam para lhe vergar a vontade.

- Se Dom Tomás sabe que estamos metidos nisto, manda-nos de volta para a Califórnia no primeiro navio disponível - sussurrou Diego a Bernardo ao ver as meninas sob a barraca.

Nessa altura, Bernardo recordou-se da máscara que tinha usado para assustar os marinheiros do Madre de Dios. Fez uns buracos para os olhos em dois lenços de Amália e com eles taparam as caras, rezando para que as irmãs De Romeu não os reconhecessem. Diego decidiu abster-se das suas demonstrações de magia, porque as executara muitas vezes na presença delas. De qualquer modo, ficou com a impressão de que o haviam reconhecido, até que nessa mesma tarde ouviu Juliana comentar os pormenores do espectáculo com Agnès Duchamp. Falou-lhe em cochichos, às escondidas de Nuria, dos intrépidos acrobatas vestidos de preto, que arriscavam a vida nos trapézios, e acrescentou que daria um beijo a cada um só para lhes ver as caras.

Diego não teve a mesma sorte com Isabel. Estava a festejar a partida com Bernardo, quando a rapariguinha entrou no seu quarto sem se anunciar, como costumava fazer, apesar da estrita proibição do pai de confraternizar com Diego. Postou-se diante deles com os braços na cintura e anunciou-lhes que conhecia a identidade dos trapezistas e estava pronta a revelá-la, a menos que, no domingo seguinte, a levassem a conhecer a companhia dos boémios. Desejava certificar-se da autenticidade das tatuagens do gigante, que pareciam pintadas, e da letárgica cobra, que podia muito bem estar embalsamada.

Nos meses seguintes, Diego, cujo sangue ardia com o ímpeto dos dezassete anos, encontrou alívio no regaço de Amália. Encontravam-se às escondidas com um risco imenso. Ao fazer amor com um gadje ela violava um tabu fundamental, que podia pagar muito caro. Casara-se virgem, como era costume entre as mulheres do seu povo, e fora fiel ao marido até à morte deste. A viuvez tinha-a deixado num estado suspenso, em que ainda era nova, mas recebia o tratamento de uma avó, até que Pelayo, encarregado de lhe arranjar outro marido quando ela enxugasse as últimas lágrimas do luto, cumprisse o seu encargo. No clã a vida decorria à vista dos outros. Amália não dispunha de tempo ou espaço para estar sozinha, mas às vezes conseguia marcar encontro com Diego em qualquer viela afastada, e então aninhava-o nos braços, sempre com a ansiedade insuportável de serem surpreendidos. Não o enredava com exigências românticas, porque o grosseiro assassínio do marido a tinha resignado para sempre à solidão. Tinha o dobro da idade de Diego e estivera casada durante mais de vinte anos, mas não era entendida em assuntos amorosos. Com Ramón compartilhara uma ternura profunda e fiel, sem repentes de paixão. Tinham-se desposado com um rito singelo em que compartilharam um pedaço de pão barrado com umas gotas de sangue de ambos. Não era preciso mais. O simples facto de tomarem a decisão de viver juntos santificava a união, mas ofereceram um generoso banquete de núpcias, com música e dança, que durou três dias inteiros. Depois, instalaram-se a um canto da tenda comunal. A partir desse momento não se voltaram a separar, percorreram os caminhos da Europa, passaram fome nos tempos de mais pobreza, fugiram de muitas agressões e festejaram os bons momentos. Tal como Amália contou a Diego, a sua vida tinha sido boa. Sabia que Ramón a aguardava intacto em qualquer lado, milagrosamente recuperado do seu martírio. Desde que vira o seu corpo despedaçado pelos chuços e pás dos assassinos, apagara-se em Amália a chama que, antigamente, a iluminava por dentro e não voltara a pensar no gozo dos sentidos ou no consolo de um abraço. Decidira convidar Diego para o seu carroção por simples amizade. Vira-o alvoroçado por falta de mulher e ocorrera-lhe aliviá-lo, nada mais. Corria o risco de que o espírito do seu marido aparecesse, transformado em mulo, para a castigar por aquela infidelidade póstuma, mas esperava que Ramón compreendesse as suas razões: ela não o fazia por lascívia, mas sim por generosidade. Revelou-se uma amante pudica, que fazia amor às escuras, sem tirar a roupa. Às vezes chorava em silêncio. Nessa altura, Diego enxugava-lhe as lágrimas com beijos delicados, comovido até aos ossos, e assim aprendeu a decifrar alguns dos recônditos mistérios do coração feminino. Apesar das severas normas sexuais da sua tradição, talvez Amália tivesse feito o mesmo favor a Bernardo por desinteressada simpatia, se ele lho tivesse insinuado, mas este nunca o fez, porque vivia acompanhado pela lembrança de Raio na Noite.

 

Manuel Escalante observou demoradamente Diego de La Vega antes de se decidir a falar-lhe do assunto que mais lhe importava na vida. Ao princípio desconfiara da simpatia arrebatadora do jovem. Para ele, homem de uma seriedade fúnebre, a ligeireza de Diego constituía uma falha de carácter, mas viu-se obrigado a rever essa opinião quando presenciou o duelo contra Moncada. Sabia que o propósito do duelo não é vencer, mas sim enfrentar a morte com nobreza para descobrir a qualidade da própria alma. Para o mestre, a esgrima - e por maioria de razão um duelo - era uma fórmula infalível para conhecer os homens. Na febre do combate ficavam expostas as essências fundamentais da personalidade: de pouco valia ser um especialista no manejo do aço, se não se estivesse revestido de coragem e serenidade para arrostar com o perigo. Deu-se conta de que nos vinte e cinco anos que levava de ensino da sua arte nunca tivera um aluno como Diego. Vira outros com talento e dedicação similares, mas nenhum com o coração tão firme como a mão que empunhava o sabre. A admiração que sentia pelo jovem tornou-se em afecto, e a esgrima converteu-se numa desculpa para o ver diariamente. Esperava por ele, pronto, muito antes das oito, mas por disciplina e orgulho não aparecia na sala nem um minuto antes dessa hora. A lição realizava-se sempre com a maior formalidade e quase em silêncio; contudo, nas conversas que mantinham a seguir, compartilhava com Diego as suas ideias e as suas íntimas aspirações. Terminada a aula, lavavam-se com uma toalha molhada, mudavam de roupa e subiam ao segundo andar, onde o mestre morava. Juntavam-se numa divisão escura e modesta, sentados em incómodas cadeiras de madeira trabalhada, rodeados de livros em antigas estantes e armas polidas expostas nas paredes. O mesmo criado velho que murmurava sem cessar, como em eterna prece, servia-lhes café retinto em chavenazinhas de porcelana rococó. Depressa passaram dos assuntos relacionados com a esgrima a outros. A família do mestre, espanhola e católica havia quatro gerações, não podia, contudo, gabar-se de limpeza de sangue, porque era de origem judaica. Os bisavôs tinham-se convertido ao catolicismo e mudado de nome para escaparem às perseguições. Tão bem o fizeram, que conseguiram enganar o desapiedado acosso da Inquisição, mas no processo perderam a fortuna acumulada em mais de cem anos de bons negócios e temperança no viver. Quando Manuel nascera, apenas existia a vaga lembrança de um passado de bem-estar e requinte; nada restava das propriedades, das obras de arte, das jóias. O pai ganhava a vida num armazém menor das Astúrias, dois dos irmãos eram artesãos e o terceiro perdera-se no Norte de África. O facto de os parentes próximos se dedicarem ao comércio e a ofícios manuais envergonhava-o. Considerava que as únicas ocupações dignas de um senhor são improdutivas. Não era o único. Na Espanha daqueles anos só os pobres camponeses trabalhavam; cada um deles alimentava mais de trinta ociosos. Diego tomou conhecimento do passado do mestre muito mais tarde. Quando este lhe falou de La Justicia e lhe mostrou pela primeira vez o seu medalhão, nada lhe disse das suas origens judaicas. Nesse dia estavam, como todas as manhãs, na sala a tomar café. Manuel Escalante tirou do pescoço uma fina corrente com uma chave, dirigiu-se a um cofre de bronze, que havia em cima da sua secretária, abriu-o solenemente e mostrou o conteúdo ao seu aluno: um medalhão de ouro e prata.

- Já vi isto antes, mestre... - murmurou Diego, reconhecendo-o.

- Onde?

- Trazia-o Santiago de León, o comandante do navio que me trouxe para Espanha.

- Eu conheço o comandante De León. Pertence, como eu, a La Justicia.

Era outra das muitas sociedades secretas que havia na Europa naquela época. Fora fundada duzentos anos atrás como reacção contra o poder da Inquisição, temível braço da Igreja que, desde 1478, defendia a unidade espiritual dos católicos, perseguindo judeus, luteranos, hereges, sodomitas, blasfemos, feiticeiros, adivinhos, invocadores do demónio, bruxos, astrólogos e alquimistas, assim como os que liam livros proibidos. Os bens dos condenados passavam para as mãos dos seus acusadores, de modo que muitas vítimas arderam numa pira por serem ricos e não por outras razões. Durante mais de trezentos anos o fervor religioso do povo celebrou os autos-de-fé, públicas orgias de crueldade nas quais se executavam os condenados; contudo, no século xviii, iniciou-se a decadência da Inquisição. Os processos continuaram por uns tempos, mas à porta fechada, até que foi abolida. O trabalho de La Justicia tinha consistido em salvar os acusados, tirá-los do país e ajudá-los a começar uma nova vida noutro lado. Distribuíam alimentos e roupa, arranjavam documentos falsos e, quando era possível, pagavam resgate. Na época em que Manuel Escalante recrutou Diego, a orientação de La Justicia tinha mudado: já não combatia só o fanatismo religioso, como também outras formas de opressão, como a dos Franceses em Espanha e a escravatura no estrangeiro. Tratava-se de uma organização hierárquica, com uma disciplina militar, onde não havia lugar para mulheres. Os graus de iniciação marcavam-se com cores e símbolos, as cerimónias eram levadas a cabo em lugares ocultos, e a única maneira de ser admitido era por intermédio de outro membro, que servia de padrinho. Os participantes juravam colocar as suas vidas ao serviço das nobres causas abraçadas por La Justicia, não aceitar pagamento algum pelos seus serviços e obedecer às ordens dos superiores. O juramento era de uma elegante simplicidade: procurar a justiça, alimentar o faminto, vestir o nu, proteger viúvas e órfãos, hospedar o estrangeiro e não derramar sangue de inocentes.

Manuel Escalante não teve dificuldade em convencer Diego de La Vega a candidatar-se a La Justicia. O mistério e a aventura eram tentações irresistíveis para ele; a sua única dúvida referia-se à obediência cega, mas, quando se convenceu de que ninguém lhe ordenaria nada contra os seus princípios, superou esse escolho. Estudou os textos cifrados que o mestre lhe deu e submeteu-se ao treino de uma forma única de combate que exigia agilidade mental e extraordinária destreza física. Consistia numa série precisa de movimentos com espada e adagas, que era levada a cabo sobre um plano marcado no chão, chamado Círculo do Mestre. O mesmo desenho estava reproduzido nos medalhões de ouro e prata que identificavam os membros da organização. Primeiro, Diego aprendeu a sequência e a técnica do combate, após o que se dedicou durante meses a praticar com Bernardo, até ser capaz de lutar sem pensar. Tal como lhe indicara Manuel Escalante, só estaria pronto quando pudesse agarrar com a mão uma mosca em pleno voo, com um só gesto casual. Não havia outra forma de vencer um membro antigo de La Justicia, como teria de fazer para ser aceite.

Chegou, por fim, o dia em que Diego ficou preparado para a cerimónia de iniciação. O mestre de esgrima conduziu-o por lugares ignorados até de arquitectos e construtores que se gabavam de conhecer a cidade como as palmas das mãos. Barcelona crescera sobre camadas sucessivas de ruínas; por ela passaram Fenícios e Gregos sem deixar demasiados vestígios, chegando depois os Romanos, que impuseram o seu selo e foram substituídos por Godos; finalmente, os Sarracenos conquistaram-na, nela tendo permanecido durante vários séculos. Todos eles contribuíram para a sua complexidade; do ponto de vista arqueológico, Barcelona era uma tarte de mil-folhas. Os Hebreus cavaram moradias, residências e túneis para se refugiarem dos agentes da Inquisição. Abandonadas pelos judeus, estas passagens misteriosas converteram-se em cavernas de bandidos, até que, pouco a pouco, La Justicia e outras seitas secretas se apoderaram das entranhas profundas da cidade. Diego e o seu mestre percorreram um labirinto de sinuosas ruelas, internaram-se no bairro antigo, cruzaram portais ocultos, desceram escadarias desgastadas pelo tempo, introduziram-se em meandros subterrâneos, penetraram em cavernosas ruínas e atravessaram canais, onde não corria água, mas sim um líquido viscoso e escuro que cheirava a fruta podre. Por fim, encontraram-se diante de uma porta marcada com sinais cabalísticos, que se abriu diante deles quando o mestre deu a contra-senha, e entraram numa sala com pretensões de templo egípcio. Diego viu-se rodeado por uma vintena de homens ataviados com vistosas túnicas de cores e adornados com símbolos diversos. Todos traziam medalhões similares ao do mestre Escalante e ao de Santiago de León. Estava no tabernáculo da seita, no coração mesmo de La Justicia. O rito prolongou-se por toda a noite e durante essas longas horas Diego superou uma a uma as provas a que foi submetido. Num recinto adjacente, talvez as ruínas de um templo romano, estava o Círculo do Mestre gravado no chão. Um homem adiantou-se para se confrontar com Diego e os outros colocaram-se em volta, como juízes. Apresentou-se como Júlio César, o seu nome de código. Despojaram-se ambos das camisas e do calçado, ficando apenas de calças. A luta exigia precisão, velocidade e sangue-frio. Atacavam-se com afiados punhais, como se a intenção fosse ferir de morte. Cada estocada era a fundo, mas na última fracção de segundo tinham de deter o golpe no ar. A menor arranhadura no corpo do outro equivalia a ser imediatamente eliminado. Não podiam sair do desenho inscrito no pavimento. A vitória pertencia a quem conseguisse assentar ambos os ombros do outro no solo, mesmo ao centro do círculo.

Diego treinara-se durante meses e tinha grande confiança na sua agilidade e resistência, mas, mal se iniciou o combate, deu-se conta de que não possuía nenhuma vantagem sobre o seu contendor. Júlio César tinha uns quarenta anos, era magro e mais baixo que Diego, mas muito forte. Postado com os pés e os cotovelos afastados, o pescoço tenso, todos os músculos do torso e braços à vista, as veias inchadas, a adaga a brilhar na mão direita, mas o rosto em completa calma, era um adversário temível. A uma ordem começaram os dois a girar dentro do círculo, procurando o melhor ângulo para atacar. Diego foi o primeiro a fazê-lo, lançando-se de frente, mas o outro deu um salto, uma volta no ar, como se voasse, e caiu atrás dele, mal lhe dando tempo para se voltar e agachar-se, a fim de evitar o gume da arma que se abatia sobre si. Três ou quatro passes depois, Júlio César passou a adaga para a mão esquerda. Diego também era ambidextro, mas nunca lhe calhara confrontar-se com ninguém que o fosse e, por um instante, ficou desconcertado. O seu contendor aproveitou para dar um salto e atirar-lhe um pontapé ao peito que o deitou por terra; Diego ressaltou de imediato e, utilizando o impulso, assestou-lhe uma facada directa à garganta, que, caso se tratasse de uma luta real, o teria degolado, mas a sua mão deteve-se tão próximo do seu objectivo que julgou tê-lo cortado. Como os juízes não intervieram, supôs que não o ferira, mas não o pôde verificar, porque o opositor tinha caído sobre ele. Enredaram-se numa luta corpo a corpo, defendendo-se ambos da mão com a adaga que o outro empunhava, enquanto com as pernas e o braço livre procuravam dar a volta ao inimigo e deitá-lo de costas. Diego conseguiu soltar-se e voltaram a rodar, preparando-se para novo embate. Diego sentiu que ardia, estava vermelho, coberto de suor, mas o seu adversário nem sequer ofegava e o seu rosto continuava tão sereno como no início. Vieram-lhe à ideia as palavras de Manuel Escalante: nunca combater com ira. Respirou fundo um par de vezes, dando a si mesmo tempo para acalmar, sem perder de vista cada movimento de Júlio César. Desanuviou-se-lhe a mente e deu-se conta de que, tal como ele não estava preparado para um lutador ambidextro, o membro de La Justicia tão-pouco o estava. Mudou a adaga de mão, com a mesma rapidez exigida para os truques de magia de Galileo Tempesta, e atacou antes que o outro se apercebesse do sucedido. Apanhado de surpresa, este deu um passo atrás, mas Diego meteu-lhe um pé entre as pernas, fazendo-o perder o equilíbrio. Assim que caiu, Diego precipitou-se sobre ele e espalmou-o, carregando-lhe no peito com o braço direito, enquanto se defendia com a mão esquerda da adaga inimiga. Por um minuto empenharam-se com todas as suas forças, os músculos retesados como cabos de aço, os olhos cravados nos do outro, os dentes cerrados. Diego não só tinha de o manter no solo, como de o arrastar até ao centro do círculo, tarefa difícil, porque o outro não estava disposto a permiti-lo. Pelo canto do olho calculou a distância, que lhe pareceu imensa; nunca uma vara fora tão comprida. Não havia mais que uma forma de o fazer. Girou sobre si mesmo e Júlio César ficou por cima dele. O homem não conseguiu evitar um grito de triunfo, porque se viu em vantagem definitiva. Com um esforço sobre-humano, Diego rodou de novo e o seu contendor ficou exactamente sobre a marca no chão que assinalava o centro do círculo. A serenidade de Júlio César alterou-se de forma quase imperceptível, mas foi suficiente para que Diego percebesse que tinha ganho. Com um último empurrão conseguiu assentar-lhe ambos os ombros no solo.

- Bem feito - disse Júlio César com um sorriso, largando a sua adaga.

Depois, teve de enfrentar outros dois com a espada. Amarraram-lhe uma mão às costas, para dar vantagem aos seus adversários, porque nenhum daqueles homens sabia tanto de esgrima como ele. Manuel Escalante tinha-o preparado muito bem e conseguiu vencê-los em menos de dez minutos. Às provas físicas seguiram-se as intelectuais. Depois de demonstrar que conhecia bem a história de La Justicia, apresentaram-lhe complicados problemas, para os quais tinha de propor soluções originais, que exigiam astúcia, coragem e conhecimento. Por último, quando ultrapassou com êxito todos os obstáculos, conduziram-no a um altar. Estavam ali expostos os símbolos que deveria venerar: um pão, uma balança, uma espada, um cálice e uma rosa. O pão significava o dever de ajudar os pobres; a balança representava a determinação de lutar pela justiça; a espada encarnava a coragem; o cálice continha o elixir da compaixão; a rosa recordava aos membros da sociedade secreta que a vida não é só sacrifício e trabalho, também é bela e, por isso, deve ser defendida. Ao concluir a cerimónia, o mestre Manuel Escalante, na sua qualidade de padrinho, colocou um medalhão a Diego.

- Qual será o seu nome de código? - perguntou o Sublime Defensor do Templo.

- Zorro - replicou Diego sem vacilar.

Não tinha pensado nisso, mas naquele mesmo instante recordou com clareza absoluta os olhos coloridos da raposa que vira noutro rito de iniciação, muitos anos antes, nos bosques da Califórnia.

- Bem-vindo, Zorro - disse o Sublime Defensor do Templo, e todos os membros repetiram o seu nome em uníssono.

Diego de La Vega estava tão eufórico pelas provas superadas, tão confundido pela solenidade dos membros da seita e tão entontecido com os complicados passos da cerimónia e os altissonantes nomes da hierarquia - Cavaleiro do Sol, Templário do Nilo, Mestre da Cruz, Guardião da Serpente - que não conseguia pensar com clareza. Concordava com os postulados da seita e honrava-o ter sido admitido. Só mais tarde, ao recordar os pormenores e contá-los a Bernardo, acharia o rito um pouco infantil.

Procurou fazer troça de si mesmo por tê-lo levado tão a sério, mas o irmão não se riu, fazendo-lhe ver, ao invés, quão parecidos eram os princípios de La Justicia com o Okahué da sua tribo.

Um mês depois de ser aceite pelo conselho de La Justicia, Diego surpreendeu o seu mestre com uma ideia descabelada: pretendia libertar um grupo de reféns. Cada ataque dos guerrilheiros desencadeava de imediato uma represália dos Franceses. Faziam uma série de reféns, equivalente a quatro vezes a das suas próprias baixas, e enforcavam-nos ou fuzilavam-nos num local público. Este método expedito não dissuadia os Espanhóis, apenas atiçava o ódio, mas feria o próprio coração das desgraçadas famílias apanhadas pelo conflito.

- Desta vez trata-se de cinco mulheres, dois homens e um menino de oito anos, que terão de pagar pela morte de dois soldados franceses, mestre. O padre do bairro já foi morto à porta da sua igreja. Têm-nos no forte e vão fuzilá-los no domingo ao meio-dia - explicou Diego.

- Bem sei, Dom Diego, vi os editais por toda a cidade - respondeu Escalante.

- É preciso salvá-los, mestre.

- Tentá-lo seria uma loucura. A Cidadela é inexpugnável. Além do mais, no caso hipotético de conseguir esse objectivo, os Franceses executariam o dobro ou o triplo de reféns, garanto-lhe.

- Que faz La Justicia numa situação como esta, mestre?

- Às vezes, só resta resignarmo-nos perante o inevitável. Na guerra morrem muitos inocentes.

- Recordá-lo-ei.

Diego não estava disposto a resignar-se, porque, entre outras razões, Amália era um dos condenados e não podia abandoná-la à sua sorte. Por um daqueles erros do destino, de que as suas cartas se esqueceram de a avisar, a cigana encontrava-se na rua durante a rusga dos Franceses e fora detida juntamente com outras pessoas tão inocentes como ela. Quando Bernardo lhe levou a má notícia, Diego não contemplou os obstáculos que teria de enfrentar; apenas a necessidade de intervir e o prazer irresistível da aventura.

- Visto que é impossível uma pessoa introduzir-se na Cidadela, Bernardo, entrarei no palacete do Chevalier Duchamp. Pretendo ter uma conversa privada com ele. Que achas? Vejo que não te agrada a ideia, mas não me ocorre outra. Sei o que pensas: que esta é uma fanfarronice como a do urso, quando éramos crianças. Não, desta vez é a sério, há vidas humanas pelo meio. Não podemos permitir que fuzilem a Amália. É nossa amiga. Bom, no meu caso é mais do que amiga, mas não se trata disso. Infelizmente, não conto com La Justicia, de modo que precisarei da tua ajuda, irmão. É perigoso, mas não tanto como parece. Ouve-me...

Bernardo ergueu as mãos no gesto de se render e preparou-se para o secundar, como sempre tinha feito. Às vezes, nos momentos de maior cansaço e solidão, pensava que era tempo de regressar à Califórnia e assumir o facto irrevogável de que a infância terminara para ambos. Diego tinha ar de ser um eterno adolescente. Perguntava a si próprio como podiam ser tão diferentes e, contudo, gostarem tanto um do outro. Enquanto a ele o destino lhe pesava nas costas, o irmão tinha a leveza de uma calhandra. Amália, que sabia decifrar os enigmas dos astros, dera-lhes uma explicação para as suas personalidades opostas. Dissera que pertenciam a signos zodiacais diferentes, embora tivessem nascido no mesmo sítio e na mesma semana. Diego era Gémeos e ele era Touro, o que determinava os seus temperamentos. Bernardo ouviu o plano de Diego com a sua habitual paciência, sem manifestar as dúvidas que o assaltavam, porque, no fundo, confiava na inconcebível sorte do irmão. Contribuiu com as suas próprias ideias e puseram-se logo em acção.

Bernardo arranjou maneira de entabular amizade e a seguir embriagar um soldado francês até o deixar inconsciente. Despiu-lhe o uniforme e vestiu-o, casaca azul-escura com colarinho alto encarnado, calção e peitilho branco, polainas pretas e barrete alto. Introduziu-se assim nos jardins do palacete conduzindo um par de cavalos, sem chamar a atenção dos guardas-nocturnos. A vigilância na sumptuosa residência do Chevalier não era extrema, porque a ninguém ocorreria atacá-la. De noite postavam-se guardas com candeias, mas no decurso entediante das horas relaxava-se-lhes a vontade. Diego, vestido com o seu fato preto de acrobata, capa e máscara, indumentária a que ele chamava o seu disfarce de Zorro, aproveitou as sombras para se aproximar do edifício. Numa centelha de inspiração tinha colado um bigode, obtido na arca dos disfarces do circo, uma pincelada negra por cima da boca. A máscara só lhe cobria a parte superior do rosto e receou que o Chevalier pudesse reconhecê-lo; o fino bigode desempenhava a função de distrair e confundir. Serviu-se do chicote para trepar à varanda do segundo andar e, uma vez lá dentro, não lhe foi difícil localizar a ala dos aposentos privados da família, porque tinha acompanhado Juliana e Isabel em várias visitas. Era por volta das três da madrugada, hora tardia a que já não circulavam criados e os guardas cabeceavam nos seus postos. A mansão nada tinha da sobriedade espanhola; estava mobilada à moda francesa, com tantos cortinados, móveis, plantas e estátuas que Diego podia atravessá-la inteira sem ser visto. Teve de percorrer inúmeros corredores e abrir uma vintena de portas antes de dar com o aposento do Chevalier, que se revelou de uma simplicidade inesperada para alguém do seu poder e estirpe.

O representante de Napoleão dormia numa dura cama de soldado, num quarto quase nu, iluminado por um candelabro de três luzes a um canto. Diego sabia, por comentários indiscretos de Agnès Duchamp, que o pai sofria de insónias e recorria ao ópio para descansar. Uma hora antes, o seu criado tinha-o ajudado a despir-se, levara-lhe um xerez e o seu cachimbo de ópio, a seguir instalara-se num cadeirão no corredor, como sempre fazia, para o caso de o seu amo precisar dele de noite. Tinha o sono leve, mas nunca soube que alguém havia passado ao seu lado, roçando-o. Uma vez dentro do quarto do Chevalier, Diego procurou exercer o controlo mental dos membros de La Justicia, porque tinha o coração a galope e a testa molhada. Nas masmorras da Cidadela os presos políticos desapareciam para sempre; era melhor não pensar nas histórias de tortura que circulavam. De repente, a lembrança do pai assaltou-o com a força de um murro. Se ele morresse, Alejandro de La Vega nunca saberia porquê; saberia apenas que o filho fora surpreendido como um vulgar ladrão em casa alheia. Esperou um minuto, até se tranquilizar, e, quando ficou seguro de que não lhe vacilariam a vontade, a voz ou a mão, aproximou-se do catre onde Duchamp descansava no letargo do ópio. Apesar da droga, o francês acordou de imediato, mas, antes que conseguisse gritar, Diego tapou-lhe a boca com a mão enluvada.

- Silêncio, ou morrerá como uma ratazana, Excelência - sussurrou.

Pôs-lhe a ponta da espada no peito. O Chevalier soergueu-se até onde a espada lhe permitiu e indicou com uma inclinação de cabeça que tinha compreendido. Diego expôs-lhe num murmúrio o que pretendia.

- Atribui-me demasiado poder. Se eu ordenar a libertação desses reféns, amanhã o comandante da praça fará outros - redarguiu o Chevalier no mesmo tom.

- Se isso acontecesse, seria uma pena. A sua filha Agnès é uma rapariga linda e não queremos fazê-la sofrer, mas, como Vossa Excelência sabe, na guerra morrem muitos inocentes - declarou Diego.

Levou a mão ao colete de seda, tirou o lenço de renda bordado com o nome de Agnès Duchamp que Bernardo tinha apanhado no lixo e agitou-o diante da cara do Chevalier, que não teve dificuldade em o reconhecer pelo aroma inconfundível a

violetas.

- Sugiro-lhe que não chame os guardas, Excelência, porque neste momento os meus homens já estão no quarto da sua filha. Se me acontecer alguma coisa, não voltará a vê-la com vida. Só se retirarão ao receber o meu sinal - disse Diego no tom mais amável do mundo, cheirando o lenço e guardando-o no colete.

- Poderá sair com vida esta noite, mas apresá-lo-emos; nessa altura lamentará ter nascido. Sabemos onde o procurar - resmungou o Chevalier.

- Não me parece, Excelência, porque não sou guerrilheiro e tão-pouco tenho a honra de ser um dos seus inimigos pessoais - sorriu Diego.

- Quem é, então?

- Chiu! Não levante a voz, lembre-se de que Agnès está em boa companhia... O meu nome é Zorro, para o servir - murmurou Diego.

Obrigado pelo seu captor, o francês dirigiu-se à sua mesa e escreveu uma breve nota no seu papel pessoal, ordenando a libertação dos reféns.

- Agradecer-lhe-ia que pusesse o seu selo oficial, Excelência - indicou-lhe Diego.

A contragosto, o outro cumpriu o que lhe era exigido, após o que chamou o seu criado, que assomou ao umbral. Atrás da porta, Diego visava-o com o seu aço, pronto para trespassá-lo à primeira suspeita.

- Manda um guarda com isto à Cidadela e diz-lhe que deve trazer-mo de imediato assinado pelo chefe da praça, para ter a certeza de que serei obedecido. Entendeste? - ordenou o Chevalier.

- Sim, Excelência - tornou o homem, e partiu à pressa. Diego aconselhou o Chevalier a regressar ao seu leito, não fosse arrefecer; a noite estava fria e a espera podia ser longa. Lamentava ter de se impor daquela maneira, acrescentou, mas teria de lhe fazer companhia até lhe devolverem a carta assinada. Não tinha um jogo de xadrez ou de cartas para passar o tempo? O francês não se dignou responder-lhe. Furioso, introduziu-se debaixo das suas cobertas, vigiado pelo mascarado, que se acomodou aos pés da cama como se estivessem entre amigos íntimos. Suportaram-se mutuamente em silêncio por mais de duas horas e, quando Diego começava a temer que alguma coisa tivesse corrido mal, o criado bateu à porta com os nós dos dedos, entregando ao amo o papel assinado por um tal capitão Fuguet.

- Até à vista, Excelência. Peço-lhe que dê os meus cumprimentos à bela Agnès - despediu-se o Zorro.

Esperava que o Chevalier acreditasse na sua ameaça e não armasse alvoroço antes do previsto, mas por precaução amarrou-o e amordaçou-o. Traçou uma grande letra Z com a ponta da espada na parede, após o que disse adeus com uma reverência zombeteira e deslizou pela varanda. Encontrou o cavalo, com os cascos envolvidos em trapos para os silenciar, à sua espera onde Bernardo o escondera. Desapareceu sem provocar alarme, porque àquela hora ninguém circulava pelas ruas de Barcelona. No dia seguinte, os soldados afixaram editais nas paredes dos edifícios públicos anunciando que, como sinal de boa vontade das autoridades, os reféns tinham sido perdoados. Ao mesmo tempo, desencadeou-se uma caçada secreta para dar com o atrevido que dava pelo nome de Zorro. A última coisa que os dirigentes da guerrilha esperavam era um indulto gratuito para os reféns e foi tal o seu desconcerto que durante uma semana não se registaram novos atentados contra os Franceses na Catalunha.

O Chevalier não pôde evitar que corresse a notícia, primeiro entre criados e guardas do palacete, depois por todo o lado, de que um insolente bandido tinha entrado no seu próprio quarto. Os catalães riram-se às gargalhadas do sucedido e o nome do misterioso Zorro andou de boca em boca durante vários dias, até que outros assuntos ocuparam a atenção do povo e ele foi esquecido. Diego ouviu-o no Colégio de Humanidades, nas tabernas e em casa da família De Romeu. Mordia a língua para não se gabar em público e não confessar a sua proeza a Amália. A cigana julgava que se salvara graças ao poder milagroso dos talismãs e amuletos que trazia sempre consigo e à intervenção oportuna do espírito do marido.

 

                           Barcelona, 1812-1814

 

Não posso dar-vos mais pormenores sobre a relação de Diego com Amália. O amor carnal é um aspecto da lenda do Zorro que ele não me autorizou a divulgar, não tanto por receio das zombarias ou de ser desmentido, como por um mínimo de galanteria. É bem sabido que nenhum homem bem-amado pelas mulheres se gaba das suas conquistas. Aqueles que o fazem, mentem. Por outro lado, não gosto de esquadrinhar a intimidade alheia. Se esperais das minhas páginas coisas picantes, defraudar-vos-ei. Só posso dizer que na época em que Diego retouçava com Amália, o seu coração estava inteiramente entregue a Juliana. Como eram esses abraços com a cigana viúva? Só se pode imaginá-los. Talvez ela fechasse os olhos e pensasse no marido assassinado, enquanto ele se abandonava a um prazer fugaz com a mente em branco. Esses encontros clandestinos não turvavam o límpido sentimento que a casta Juliana inspirava a Diego; eram compartimentos separados, linhas paralelas que nunca se cruzavam. Receio que, amiúde, tenha sido esse o caso ao longo da vida do Zorro. Observei-o durante três décadas e conheço-o quase tão bem como Bernardo, por isso me atrevo a fazer esta afirmação. Graças ao seu encanto natural - que não é pouco - e à sua pasmosa sorte, foi amado, inclusivamente sem tal se propor, por dúzias de mulheres. Uma vaga insinuação, um olhar de soslaio, um dos seus radiosos sorrisos, bastam em geral para que até aquelas com fama de virtuosas o convidem para trepar à sua varanda nas horas enigmáticas da noite.

Não obstante, o Zorro não se afeiçoa a elas, porque prefere os romances impossíveis. Juraria que, mal desce da varanda e pisa terra firme, esquece a dama que momentos antes abraçava. Nem ele próprio sabe quantas vezes se bateu em duelo com um marido despeitado ou um pai ofendido, mas eu tenho as contas feitas, não por inveja ou ciúme, mas sim por minúcia de cronista. Diego só recorda as mulheres que o martirizaram com a sua indiferença, como a incomparável Juliana. Muitas das suas proezas desses anos foram frenéticas tentativas de chamar a atenção da jovem. Perante ela não assumia o papel de alfenim pusilânime com que enganava Agnès Duchamp, o Chevalier e outras pessoas; pelo contrário, na sua presença enfunava todas as suas penas de pavão real. Teria enfrentado um dragão por ela, mas não os havia em Barcelona, e teve de conformar-se com Rafael Moncada. Já que o mencionamos, parece-me justo prestar homenagem a esta personagem. Em todas as histórias, o vilão é fundamental, porque não há heróis sem inimigos à sua altura. O Zorro teve a sorte imensa de se deparar com Rafael Moncada, caso contrário eu não teria muito que contar nestas páginas.

Juliana e Diego dormiam sob o mesmo tecto, mas levavam vidas separadas e não abundavam ocasiões de se verem naquela mansão de tantos compartimentos vazios. Raras vezes se achavam sozinhos, porque Nuria vigiava Juliana, e Isabel espiava Diego. Às vezes, ele esperava horas para a surpreender sozinha num corredor e acompanhá-la uns quantos passos sem testemunhas. Encontravam-se na casa de jantar à hora da refeição da noite, no salão durante os concertos de harpa, na missa aos domingos e no teatro quando havia peças de Lope de Vega e comédias de Molière, que Tomás de Romeu adorava. Tanto na igreja como no teatro, homens e mulheres sentavam-se separados, de maneira que Diego tinha de se limitar a observar de longe a nuca da sua amada. Morou na mesma casa que a jovem durante mais de quatro anos, perseguindo-a com infinita tenacidade de caçador, sem resultados que valha a pena referir, até que a tragédia atingiu a família e a balança se inclinou a favor de Diego. Antes disso, Juliana recebia as suas atenções com um sentimento tão plácido que era como se não o visse, mas ele precisava de muito pouco para alimentar as suas ilusões. Julgava que a indiferença dela era um estratagema para dissimular os seus verdadeiros sentimentos. Alguém lhe tinha dito que as mulheres costumam fazer essas coisas. Metia pena vê-lo, pobre homem; melhor seria que Juliana o odiasse. O coração é um órgão caprichoso que costuma dar a volta completa, mas um tíbio afecto de irmã é praticamente irrevogável.

Os De Romeu davam passeios a Santa Fé, onde tinham uma propriedade meio abandonada. A casa patriarcal era uma construção quadrada na ponta de um penhasco, onde os avós da falecida esposa de Tomás de Romeu tinham reinado sobre os seus filhos e vassalos. A vista era magnífica. Antigamente, aquelas colinas haviam estado plantadas com vinhas que produziam um vinho capaz de competir com os melhores de França, mas nos anos da guerra ninguém se ocupara delas e agora eram uns troncos ressequidos e roídos da traça. A casa estava invadida pelos famosos ratos de Santa Fé, uns animais corpulentos e de mau carácter que, em tempos de muita necessidade, os camponeses cozinhavam. Com alho-porro, são gostosos. Duas semanas antes de lá ir, Tomás mandava um esquadrão de criados para fumigar os quartos, única forma de fazer retroceder temporariamente os roedores. Essas excursões fizeram-se menos frequentes porque os caminhos se tornaram demasiado inseguros. O ódio do povo sentia-se no ar, como uma respiração pesada, um arquejo de mau agouro que eriçava o couro cabeludo. Tomás de Romeu, como muitos proprietários de terras, não se atrevia a sair da cidade e ainda menos tentava cobrar as rendas dos seus inquilinos devido ao risco de ser degolado. Ali, Juliana lia, tocava música e tentava aproximar-se, como fada benfazeja, dos camponeses para conquistar o seu afecto, com poucos resultados. Nuria lutava contra os elementos e queixava-se de tudo. Isabel entretinha-se pintando aguarelas da paisagem e retratos de pessoas. Referi que era boa desenhadora? Parece que o esqueci, imperdoável omissão, visto que era o seu único talento. Em geral, isso ganhava-lhe mais simpatia entre os humildes que todas as obras de caridade de Juliana. Conseguia a parecença de maneira notável, mas aperfeiçoava os seus modelos, punha-lhes mais dentes, menos rugas e uma expressão de dignidade que raramente possuíam.

Mas voltemos a Barcelona, onde Diego passava o tempo ocupado com as suas aulas, La Justicia, as tabernas onde se reunia com outros estudantes e as suas aventuras «de capa e espada», como lhes chamava por anseio romântico. Entretanto, Juliana levava a vida ociosa das meninas desses anos. Não podia sair, nem para se confessar, sem pau-de-cabeleira; Nuria era a sua sombra. Tão-pouco podia ser vista a falar a sós com homens menores de sessenta anos. Ia aos bailes com o pai e às vezes Diego acompanhava-os, sendo apresentado como o primo das índias. Juliana não manifestava a menor pressa em se casar, apesar de os apaixonados fazerem bicha. O pai tinha o dever de lhe arranjar um bom casamento, mas não sabia como escolher um genro digno da sua maravilhosa filha. Faltava-lhe um par de anos para perfazer os vinte, idade limite para conseguir noivo; se nessa altura ainda o não tivesse, a eventualidade de se casar diminuiria de mês para mês. Com o seu invencível optimismo, Diego fazia os mesmos cálculos e concluía que o tempo agia a seu favor, porque, quando ela visse que estava a murchar, casar-se-ia com ele para não ficar solteirona. Com este curioso argumento procurava convencer Bernardo, o único munido de paciência para o ouvir divagar a toda a hora sobre o seu desesperado amor.

Em finais do ano de 1812, Bonaparte foi derrotado na Rússia. O imperador invadira aquele imenso país com o seu grande exército de quase duzentos mil homens. As invencíveis tropas francesas tinham uma disciplina férrea e deslocavam-se em marcha forçada, muito mais depressa do que os seus inimigos, porque transportavam pouco peso e viviam da terra conquistada. À medida que avançavam para o interior da Rússia, as terras despovoavam-se, os seus ocupantes esfumavam-se, os camponeses queimavam as colheitas. À passagem de Napoleão a terra ficava arrasada. Os invasores entraram triunfantes em Moscovo, onde foram recebidos pela fumarada de um monumental incêndio e pelos fogachos isolados de franco-atiradores ocultos nas ruínas, dispostos a morrer matando. Os Moscovitas, imitando o exemplo dos bravos camponeses, tinham queimado os seus bens antes de evacuarem a cidade. Não ficou ninguém atrás para entregar as chaves a Napoleão, nem um único soldado russo a quem humilhar, apenas algumas prostitutas resignadas a agasalhar os vencedores, já que os seus clientes habituais haviam desaparecido. Napoleão viu-se isolado no meio de um monte de cinzas. Esperou, sem saber o que esperava, e assim passou o Verão. Quando decidiu voltar a França, tinham começado as chuvas e não tardou que o solo russo ficasse coberto de neve dura como granito. O imperador nunca imaginara as terríveis provações que os seus homens teriam de suportar. À flagelação dos cossacos e às emboscadas dos camponeses somaram-se a fome e um frio lunar, que nenhum daqueles soldados alguma vez experimentara. Milhares de franceses, convertidos em estátuas de gelo eterno, ficaram postados ao longo do ignominioso caminho da retirada. Tiveram de comer os cavalos, as botas, por vezes até os cadáveres dos seus companheiros. Só dez mil homens, destroçados pelas privações e pelo desalento, regressaram à pátria. Napoleão soube que a estrela que o alumiara na sua prodigiosa ascensão ao poder começava a apagar-se. Teve de recolher as suas tropas, que ocupavam uma boa parte da Europa. Dois terços das colocadas em Espanha foram retiradas. Os Espanhóis vislumbravam, por fim, um final vitorioso, após anos de cruenta resistência, mas esse triunfo só chegaria dezasseis meses mais tarde.

Nesse ano, na mesma época em que Napoleão lambia as feridas da derrota no regresso a França, Eulália de Callís enviou o sobrinho, Rafael Moncada, às Antilhas, com a missão de expandir o negócio do cacau. Pensava vender chocolate, pasta de amêndoa, conservas de nozes e açúcar aromático a pasteleiros e fabricantes de bombons finos na Europa e nos Estados Unidos. Tinha ouvido dizer que os Americanos gostam muito de doces. A missão do sobrinho consistia em tecer uma rede de contactos comerciais nas cidades mais importantes, de Washington até Paris. Moscovo ficou para segundas núpcias, porque estava em ruínas, mas Eulália confiava que depressa se dissiparia a fumarada da guerra e a capital russa seria reconstruída com o mesmo esplendor de antes. Rafael partiu numa travessia de onze meses, cruzando mares e moendo os rins em eternas cavalgadas, para estabelecer a aromática irmandade do chocolate imaginada por Eulália.

Sem dizer uma palavra sobre as suas intenções, Rafael pediu uma audiência a Tomás de Romeu antes de partir para as Antilhas. Este não o recebeu em sua casa, mas sim no terreno neutro da Sociedade Geográfica e Filosófica, da qual era sócio e onde havia um excelente restaurante no segundo andar. A admiração de Tomás de Romeu pela França não era extensiva à sua requintada cozinha; nada de línguas de canário, ele preferia robustos pratos catalães: escudella, um cozido de levantar um morto, estofai de toro, uma bomba de carne, e a inefável butifarra del obispo, um chouriço de sangue mais preto e gordo que outros. Rafael Moncada, sentado à mesa, defronte do seu anfitrião e de uma montanha de carne e gordura, estava um pouco pálido. Mal provou a comida, porque era delicado de estômago e porque estava nervoso. Esboçou a sua situação pessoal ao pai de Juliana, desde os seus títulos até à sua solvência económica.

- Lamento muito, senhor De Romeu, que nos conhecêssemos na infeliz ocasião do duelo com Diego de La Vega. É um jovem impulsivo e, devo admiti-lo, eu também costumo sê-lo. Excedemo-nos nas palavras e acabámos no campo de honra. Por sorte não teve consequências graves. Espero que isso não pese negativamente na opinião que Vossa Mercê tem de mim... - disse o aspirante a genro.

- De maneira nenhuma, cavalheiro. O propósito de um duelo é lavar a mancha. Uma vez que dois gentis-homens se bateram, não há lugar a rancor entre eles - respondeu o outro com amabilidade, embora não tivesse esquecido os pormenores do sucedido.

À hora do manjar-branco, que naquele restaurante continha tanto açúcar que se colava aos dentes, Moncada expressou o seu desejo de obter a mão de Juliana no regresso da sua viagem. Tomás observara durante longo tempo, sem intervir, a estranha relação entre a filha e aquele tenaz pretendente. Era avesso a falar de sentimentos e nunca fizera o esforço de aproximar-se das filhas; os assuntos femininos desconcertavam-no e preferia delegá-los em Nuria. Vira Juliana tropeçar pelos corredores de pedra da sua gelada casa quando era pequena, mudar os dentes, dar um salto e navegar pelos desengraçados anos da puberdade. Um dia, aparecera diante dele com tranças infantis e corpo de mulher, com o vestido a rebentar pelas costuras; então, ele ordenara a Nuria que lhe fizesse roupa adequada, contratara um professor de dança e não a perdera de vista um só momento.

Agora, Rafael Moncada, entre outros cavalheiros de boa posição, abordava-o para lhe pedir Juliana em casamento e ele não sabia o que responder. Uma aliança assim era ideal; qualquer pai na sua situação ficaria satisfeito, mas não simpatizava com Moncada, não tanto por divergirem nas suas posturas ideológicas como pelos boatos pouco tranquilizadores que tinha ouvido sobre o carácter desse homem. A opinião geral era que o casamento consiste num arranjo social e económico, no qual os sentimentos não são fundamentais e se vão acomodando, mas ele não estava de acordo. Casara-se por amor e fora muito feliz, tanto que nunca pudera substituir a esposa. Juliana tinha o seu próprio carácter e, além disso, enchera a cabeça de novelas românticas. Seria preciso fazê-la dar o braço a torcer para que aceitasse casar-se sem amor, e ele não se achava capaz de o fazer; desejava que fosse feliz e duvidava que Moncada pudesse contribuir para isso. Tinha de colocar o assunto a Juliana, mas não sabia como fazê-lo, porque a sua beleza e as suas virtudes o intimidavam. Sentia-se mais à vontade com Isabel, cujas notáveis imperfeições a tornavam muito mais acessível. Compreendeu que não se podia adiar o assunto, portanto nessa mesma noite comunicou-lhe a proposta de Moncada. Ela encolheu os ombros e, sem perder o ritmo da agulha no seu ponto de cruz, comentou que muita gente morria de malária nas Antilhas, pelo que não havia necessidade de se precipitar a tomar uma decisão.

Diego estava feliz. A viagem daquele perigoso rival apresentava-lhe uma oportunidade única de ganhar terreno na corrida pela mão de Juliana. A rapariga não se perturbou perante a ausência de Moncada e nem se deu por achada frente aos avanços de Diego. Continuou a tratá-lo com o mesmo afecto tolerante e distraído de sempre, sem demonstrar a menor curiosidade pelas misteriosas actividades do jovem. Tão-pouco a impressionavam os seus poemas, custava-lhe levar a sério os dentes de pérola, olhos de esmeralda e lábios de rubi. Procurando pretextos para passar mais tempo com ela, Diego decidiu participar nas aulas de dança e chegou a ser um bailarino elegante e animoso. Conseguiu induzir inclusivamente Nuria a abanar os ossos ao som de um fandango, embora não lograsse que intercedesse por ele diante de Juliana; nesse ponto, a boa mulher mostrou-se sempre tão insensível como Isabel. Com o propósito de captar a admiração das mulheres da casa, Diego cortava velas ao meio com um golpe de florete, com tal precisão que a chama não vacilava e a parte decepada permanecia no seu lugar. Também era capaz de as apagar com a ponta do chicote. Aperfeiçoou a ciência que Galileo Tempesta lhe ensinara e chegou a realizar prodígios com as cartas. Também efectuava malabarismos com tochas acesas e saía sem ajuda de um baú fechado a cadeado. Quando se lhe esgotaram esses truques, tentou impressionar a amada com as suas aventuras, incluindo aquelas que prometera a Bernardo ou ao mestre Manuel Escalante nunca mencionar. Num momento de fraqueza chegou a insinuar-lhe a existência de uma sociedade secreta à qual só certos homens escolhidos pertenciam. Ela felicitou-o, julgando que se referia a uma tuna das que andavam pelas ruas a tocar música sentimental. A atitude de Juliana não era desdém, porque o estimava muito, nem maldade, da qual era incapaz, mas sim distracção novelesca. Aguardava o herói dos seus livros, valente e trágico, que a salvaria do tédio quotidiano, e não lhe passava pela cabeça que ele pudesse ser Diego de La Vega. Tão-pouco era Rafael Moncada.

A situação política principiava a mudar em Espanha. Cada dia se tornava mais evidente que o fim da guerra estava próximo. Eulália de Callís preparava-se para esse momento com impaciência, enquanto o sobrinho firmava os negócios no estrangeiro. A malária não resolveu o problema de Juliana acerca de Moncada que, em Novembro de 1813, regressou mais rico que antes, porque a tia lhe concedera uma elevada percentagem do negócio dos bombons. Tivera êxito nos melhores salões da Europa, e nos Estados Unidos conhecera nada menos que Thomas Jefferson, ao qual sugerira a ideia de plantar cacau na Virgínia. Mal se libertou da poeira do caminho, Moncada entrou em contacto com Tomás de Romeu para lhe reiterar a sua intenção de cortejar Juliana. Havia anos que esperava que ela se pronunciasse e não estava disposto a aceitar outra resposta evasiva. Duas horas mais tarde, Tomás chamou a filha à biblioteca, onde resolvia a maior parte dos seus assuntos e esclarecia as suas dúvidas existenciais com a ajuda de um cálice de conhaque, e transmitiu-lhe a mensagem do seu apaixonado.

- Um casamento infeliz é pior que a morte para uma mulher, senhor. Não há saída. A ideia de obedecer e servir a um homem é terrível se não existir confiança e afecto.

- Isso cultiva-se depois do casamento, Juliana.

- Nem sempre, senhor. Além disso, temos de considerar as vossas necessidades e o meu dever. Quem cuidará de vós quando fordes velho? A Isabel não tem carácter para isso.

- Por Deus, Juliana! Nunca sugeri que as minhas filhas devam tratar de mim na velhice. O que desejo são netos e ver-vos a ambas bem colocadas. Não posso morrer sossegado sem vos deixar protegidas.

- Não sei se Rafael Moncada será o homem para mim. Não consigo imaginar nenhuma espécie de intimidade com ele - murmurou ela, ruborizando-se.

- Nisso não diferis das outras donzelas, filha. Qual a jovem virtuosa que pode imaginar isso? - volveu Tomás de Romeu, tão afogueado como ela.

Era um assunto do qual esperava nunca falar com as filhas. Supunha que, chegado o momento, Nuria lhes explicaria o necessário, embora a ama fosse decerto tão ignorante a esse respeito como as raparigas. Não sabia que Juliana falava disso com Agnès Duchamp e se informara dos pormenores nos seus romancecos de amor.

- Preciso de um pouco mais de tempo para me decidir, senhor - suplicou Juliana.

Tomás de Romeu pensou que nunca lhe fizera mais falta a sua defunta esposa, que teria resolvido as coisas com sabedoria e mão firme, como as mães costumam fazer. Estava cansado de tanto braço-de-ferro. Falou com Rafael Moncada para lhe solicitar outro adiamento; este não teve outro remédio senão aceder. Depois ordenou a Juliana que se aconselhasse com a almofada e, se não tivesse uma resposta dentro de duas semanas, ele aceitaria a proposta de Moncada e ponto final. Era a sua última palavra, concluiu, mas a sua voz não estava firme. Por essa altura, o longo assédio de Moncada tinha atingido níveis de desafio pessoal, comentava-se tanto em salões da alta como em pátios de criados que aquela jovem sem fortuna nem títulos humilhava o melhor partido de Barcelona. Se a filha continuasse a fazer-se rogada, Tomás de Romeu enfrentava um sério litígio com Moncada, mas certamente teria continuado a fazer render o assunto, se um estranho acontecimento não houvesse precipitado o desenlace.

Naquele dia, as duas meninas De Romeu tinham ido com Nuria distribuir esmolas, como faziam sempre nas primeiras sextas-feiras do mês. Havia mil e quinhentos mendigos reconhecidos na cidade e vários milhares mais de pobres e indigentes, que ninguém se dava ao incómodo de contabilizar. Desde havia cinco anos, sempre no mesmo dia e à mesma hora, podia-se ver Juliana, flanqueada pela figura tesa da sua ama, a visitar as casas de caridade. Por decoro e para não ofender com sinais de ostentação, cobriam-se dos pés à cabeça com mantilhas e abafos escuros e percorriam o bairro a pé; Jordi esperava-as com o calhambeque numa praça próxima, consolando-se do tédio com a sua garrafa de álcool. Nessa excursão levavam toda a tarde, porque, além de socorrer os pobres, visitavam as freiras encarregadas dos hospícios. Nesse ano, Isabel, que aos quinze anos já estava em idade de praticar a compaixão, em vez de perder o tempo a espiar Diego e a bater-se em duelo consigo mesma diante do espelho, como dizia Nuria, começou a acompanhá-las. Tinham de andar por vielas apertadas em bairros de pobreza crua, onde nem os gatos se distraíam, com medo de serem caçados e vendidos por lebres. Juliana submetia-se com exemplar rigor àquela penitência heróica, mas Isabel ficava doente, não só porque a aterrorizavam as chagas e furúnculos, os andrajos e as muletas, as bocas desdentadas e os narizes roídos pela sífilis daquela desgraçada multidão, de que a irmã cuidava como uma missionária, mas também porque essa forma de caridade lhe parecia um logro. Calculava que as moedas de cinco pesetas da bolsa de Juliana não serviam de nada diante da imensidade da miséria.

- Mais vale pouco do que nada - replicava a irmã.

Tinham iniciado o percurso meia hora antes e haviam visitado apenas um orfanato, quando, ao chegarem a uma esquina, lhes saíram ao encontro três homens de aspecto patibular. Mal se lhes viam os olhos, porque levavam chapéus enfiados até às sobrancelhas e lenços amarrados na cara. Apesar da proibição oficial de usar capa, o mais alto deles estava embrulhado numa manta. Era a hora letárgica da sesta, quando muito pouca gente circulava pela cidade. A viela estava flanqueada pelas maciças muralhas de pedra de uma igreja e um convento; não havia nem uma porta próxima onde se refugiarem. Nuria pôs-se a gritar, aterrorizada, mas um bofetão na cara, aplicado por um dos fulanos, atirou-a ao chão e deixou-a muda. Juliana tentou esconder debaixo do abafo a bolsa com o dinheiro da caridade, enquanto Isabel lançava olhares de soslaio à procura da maneira de conseguir ajuda. Um dos assaltantes arrebatou a bolsa a Juliana e outro dispunha-se a arrancar-lhe os brincos de pérolas, quando, subitamente, os cascos de um cavalo os puseram em guarda. Isabel gritou a plenos pulmões e um instante mais tarde fez a sua aparição providencial nada menos que Rafael Moncada. Numa cidade tão densamente povoada como aquela, a sua chegada equivalia a pouco menos que um prodígio. Bastou uma vista de olhos a Moncada para avaliar a situação, desembainhar com presteza a espada e confrontar aqueles diabos de baixo estofo. Dois deles já tinham deitado a mão a punhais curvos, mas um par de cutiladas e a atitude decidida de Moncada fê-los vacilar. Parecia enorme e nobre sobre o corcel, as botas negras reluzentes nos estribos de prata, as calças alvas e justas, a jaqueta de veludo azul-escuro com canhões de astracã, a longa espada com os redondos copos gravados a ouro. Lá do alto podia ter despachado mais de um adversário sem grandes diligências, mas parecia gozar intimidando-os. Com um sorriso feroz nos lábios e a espada a cintilar nos ares, poderia ser a figura central de um quadro de batalha. Os outros resfolegavam, enquanto ele os aguilhoava lá de cima sem lhes dar trégua. O cavalo, encabritado pela sarrafusca, ergueu-se nas patas traseiras e, por um momento, pareceu que desmontaria o cavaleiro, mas este aferrou-se com as pernas. Parecia uma estranha e violenta dança. No centro do círculo de punhais, o corcel girava sobre si mesmo, relinchando de pavor, enquanto Moncada o dominava com uma mão e arvorava a arma com a outra, cercado pelos meliantes, que procuravam o momento de o esfaquearem, mas não se atreviam a pôr-se ao seu alcance. À gritaria de Isabel somou-se a de Nuria; não tardou que assomassem várias pessoas à rua, mas, ao verem os ferros a refulgir à luz pálida do dia, mantiveram-se à distância. Um rapaz saiu a correr para ir chamar os aguazis, porém não havia esperança de que voltasse a tempo com auxílio.

Isabel aproveitou a confusão para arrancar com um puxão a bolsa das mãos do homem da manta, após o que agarrou a irmã com um braço e Nuria com o outro para as obrigar a fugir, mas não conseguiu movê-las: estavam ambas pregadas às pedras da calçada. O confronto demorou apenas uns minutos, que decorreram com a lentidão impossível dos pesadelos; no fim, Rafael Moncada conseguiu fazer saltar a adaga a um dos homens e com isso os três assaltantes perceberam que mais valia empreenderem a retirada. O cavaleiro fez menção de os perseguir, mas desistiu ao ver a aflição das mulheres e saltou da sua cavalgadura para as ajudar. Uma mancha vermelha alastrava sobre o branco tecido das suas calças. Juliana correu a refugiar-se nos seus braços, tremendo como um coelho.

- Estais ferido? - exclamou ao ver-lhe o sangue na perna.

- É só um arranhão - retorquiu ele.

Eram demasiadas emoções para a jovem. Enevoou-se-lhe a vista e fraquejaram-lhe os joelhos, mas, antes que caísse ao chão, os atentos braços de Moncada levantaram-na no ar. Isabel comentou impaciente que só faltava aquilo para completar o quadro: um chilique da irmã. Moncada ignorou o sarcasmo e, coxeando um pouco, mas sem tropeçar, conduziu Juliana em braços até à praça. Nuria e Isabel seguiam atrás, levando o cavalo pela brida, rodeadas pelos curiosos que se haviam juntado, cada um dos quais tinha uma opinião particular sobre o sucedido e querendo todos dizer a última palavra a esse respeito. Ao ver aquela procissão, Jordi desceu da boleia e ajudou Moncada a colocar Juliana dentro da carruagem. Ergueu-se um aplauso cerrado entre os mirones. Raramente acontecia alguma coisa tão quixotesca e romântica nas ruas de Barcelona. Haveria assunto para vários dias. Vinte minutos mais tarde, Jordi chegava ao pátio da casa De Romeu seguido por Moncada a cavalo. Juliana chorava de nervos, Nuria contabilizava com a língua os dentes soltos pelo bofetão e Isabel lançava faíscas abraçada à bolsa.

Tomás de Romeu não era homem que se impressionasse demasiado com apelidos de linhagem, porque aspirava a que a nobreza fosse abolida da face da terra, nem com a fortuna de Moncada, porque era de natureza desprendida, mas comoveu-se até às lágrimas ao saber que aquele cavalheiro, que tinha sofrido tantas desfeitas por parte de Juliana, arriscara a vida para proteger as suas filhas de um dano irreparável. Embora se dissesse ateu, manifestou o seu pleno acordo com Nuria em que a Divina Providência tinha enviado Moncada a tempo de as salvar. Insistiu para que o herói da jornada descansasse, enquanto Jordi ia procurar um médico para lhe tratar do ferimento, mas ele preferiu retirar-se discretamente. À parte uma certa agitação ao respirar, nada denunciava o seu sofrimento. Todos comentaram que o seu sangue-frio perante a dor era tão admirável como a sua coragem diante do perigo. Isabel foi a única que não deu mostras de agradecimento. Em vez de se juntar ao extravasamento emocional do resto da família, permitiu-se uns depreciativos estalos com a língua, que foram muito mal recebidos. O pai mandou-a ficar fechada no quarto sem pôr o nariz de fora até que se desculpasse pela vulgaridade.

Diego teve de ouvir com forçada paciência o relato pormenorizado do assalto pela boca de Juliana, além das especulações sobre o que teria sucedido se o salvador não interviesse a tempo. Nunca acontecera à jovem nada de tão perigoso; a figura de Rafael Moncada cresceu aos seus olhos, adornada de virtudes que até então não tinha detectado: era forte e bem-parecido, possuía mãos elegantes e uma farta cabeleira ondulada. Um homem com bom cabelo tem muito terreno ganho nesta vida. Notou de repente que se parecia com o toureiro mais popular de Espanha, um cordovês de pernas compridas e olhos de fogo.

Não era nada de se deitar fora, o seu pretendente, decidiu. Apesar disso, a refrega fez-lhe febre e foi para a cama cedo. Nessa noite o médico teve de a sedar, antes de ministrar pílulas de arnica a Nuria, que tinha ficado com a cara como uma cabaça. Visto que não veria a bela ao jantar, Diego também se retirou para as suas instalações, onde Bernardo o esperava. Por decência, as raparigas não podiam aproximar-se da ala da casa onde ficavam os aposentos dos homens; a única excepção fora quando Diego convalescia do ferimento do duelo, mas Isabel nunca fizera grande caso dessa regra, tal como não obedecia ao pé da letra aos castigos impostos pelo pai. Naquela noite ignorou a ordem de ficar isolada no seu quarto e apareceu no dos rapazes sem se anunciar, como fazia amiúde.

- Não te disse já para bateres à porta? Um dia ainda me apanhas nu - repreendeu-a Diego.

- Não me parece que fique com uma impressão memorável - tornou ela.

Sentou-se na cama de Diego com a expressão velhaca de quem possui informações e não pretende dá-las, à espera de que lho peçam, mas, por princípio, ele procurava não ceder aos seus ardis; quanto a Bernardo estava distraído a fazer nós com uma corda. Passou um longo minuto; por fim, ela sucumbiu à vontade de lhes comentar, na florida linguagem que empregava longe dos olhos de Nuria, que, se a irmã não desconfiava de Moncada, devia ser uma parva de merda. Acrescentou que tudo aquilo cheirava a esturro, porque um dos três assaltantes era Rodolfo, o gigante do circo. Diego deu um salto de macaco e Bernardo largou a corda em que estava a fazer nós.

- Tens a certeza? Não disseram que esses rufiões tinham a cara tapada? - increpou-a Diego.

- Sim, além disso, aquele estava embrulhado numa manta, mas era enorme e quando lhe arranquei a bolsa vi-lhe os braços. Tinha-os tatuados.

- Podia ser um marinheiro. Há muitos que têm tatuagens, Isabel - alegou Diego.

- Eram as mesmas tatuagens do cigano do circo, não tenho dúvida nenhuma, de maneira que o melhor é acreditares em mim - replicou ela.

Dali a deduzir que os zíngaros estavam implicados não ia mais de um passo, que Diego e Bernardo deram de imediato. Sabiam, havia uma porção de tempo, que Pelayo e os seus amigos faziam trabalhinhos sujos para Moncada, mas não podiam prová-lo. Nunca ousaram abordar o assunto com o cigano, que, de qualquer modo, era hermético e nada lhes teria confessado. Amália tão-pouco cedia ante os interrogatórios assolapados de Diego; mesmo nos momentos de maior intimidade guardava os segredos da família. Diego não podia dirigir-se com semelhante suspeita a Tomás de Romeu, sem provas e sem se ver obrigado a admitir os seus próprios contactos furtivos com a tribo boémia, mas decidiu intervir. Tal como dissera Isabel, não podiam permitir que a jovem acabasse casada com Moncada por infundada gratidão.

No dia seguinte conseguiram convencer Juliana a levantar-se da cama, dominar os nervos e acompanhá-los ao bairro onde Amália se costumava instalar a ler a sina aos transeuntes. Nuria foi com eles, porque era o seu dever, apesar de a sua cara ter muito pior aspecto que no dia anterior. Uma face estava roxa e tinha as pálpebras tão inchadas que parecia um sapo. Levaram menos de meia hora a dar com Amália. Enquanto as raparigas e a ama esperavam na carruagem, Diego suplicou à cigana, com uma eloquência que nem ele mesmo conhecia, que salvasse Juliana de um destino fatal.

- Uma palavra tua pode evitar a tragédia de um casamento sem amor entre uma donzela inocente e um desalmado. Tens de lhe dizer a verdade - alegou dramaticamente.

- Não sei do que me estás a falar - retorquiu Amália.

- Sabes, sim. Os tipos que as assaltaram eram da tua tribo. Sei que um deles era o Rodolfo. Creio que Moncada preparou a cena para fazer figura de herói perante as meninas De Romeu. Estava tudo combinado, não é verdade? - insistiu Diego.

- Estás apaixonado por ela? - perguntou Amália sem malícia.

Ofuscado, Diego teve de admitir que sim, que estava. Ela tomou-lhe as mãos, examinou-lhas com um sorriso enigmático e depois molhou um dedo em saliva e traçou-lhe o sinal da cruz nas palmas.

- Que fazes? Isso é alguma maldição? - perguntou Diego, assustado.

- É um prognóstico. Nunca te casarás com ela.

- Queres dizer que Juliana se casará com Moncada?

- Isso não sei. Farei o que me pedes, mas não tenhas ilusões, porque essa mulher tem de cumprir o seu destino, tal como tu tens de cumprir o teu, e nada que eu diga pode alterar o que está escrito no céu.

Amália subiu para a carruagem, cumprimentou com um gesto Isabel, que tinha visto algumas vezes, e instalou-se no assento diante de Juliana. Nuria continha a respiração, espantada, porque estava convencida de que os boémios eram descendentes de Caim e ladrões profissionais. Juliana despachou a ama e Isabel, que se apearam do coche a contragosto. Quando ficaram sós, as duas mulheres observaram-se mutuamente durante um minuto inteiro. Amália fez um rigoroso inventário de Juliana: o rosto clássico emoldurado por caracóis negros, os olhos verdes de gata, o pescoço fino, o chapéu de pele, os delicados botins de pelica. Por sua vez, Juliana examinou a cigana com curiosidade, porque nunca tinha visto nenhuma tão de perto. Se amasse Diego, o instinto dir-lhe-ia que era sua rival, mas essa ideia não lhe passava pela cabeça. Gostou do seu cheiro a fumo, do seu rosto de pómulos marcados, das suas saias amplas, do tilintar das suas jóias de prata. Pareceu-lhe belíssima. Num impulso carinhoso descalçou as luvas e tomou-lhe as mãos.

- Obrigada por falar comigo - disse-lhe simplesmente. Desarmada pela espontaneidade do gesto, Amália decidiu violar a regra fundamental do seu povo: nunca confiar num gadje e muito menos se isso pusesse em perigo o seu clã. Em poucas palavras descreveu o lado obscuro de Moncada, revelou-lhe que, com efeito, o assalto fora planeado, a irmã e ela nunca tinham estado em perigo, a mancha nas calças de Moncada não provinha de um ferimento, mas sim de um pedaço de tripa cheio de sangue de galinha. Disse que alguns homens da tribo cumpriam de vez em quando incumbências de Moncada, em geral assuntos de pouca monta; só em escassas ocasiões tinham cometido uma falta séria, como o assalto ao conde Orloff.

- Não somos criminosos - explicou Amália, acrescentando que lamentavam ter agredido o russo e Nuria, porque na sua tribo era proibida a violência. Como golpe de misericórdia informou-a de que era Pelayo quem cantava as serenatas, porque Moncada desafinava como um pato. Juliana ouviu a confissão completa sem fazer perguntas. As duas mulheres despediram-se com um leve gesto e Amália desceu da carruagem; nessa altura, Juliana irrompeu em pranto.

Nessa mesma tarde, Tomás de Romeu recebeu formalmente na sua residência Rafael Moncada, que manifestara, por meio de uma breve missiva, achar-se refeito da perda de sangue e com vontade de apresentar os seus respeitos a Juliana. De manhã, um lacaio tinha trazido um ramo de flores para ela e uma caixa de torrão de amêndoas para Isabel, atenções delicadas e nada ostentosas, que Tomás anotou em favor do pretendente. Moncada chegou vestido com impecável elegância e apoiado numa bengala. Tomás recebeu-o no salão principal, limpo em honra do futuro genro, ofereceu-lhe um xerez e, uma vez instalados, agradeceu-lhe uma vez mais a sua oportuna intervenção.

Seguidamente mandou chamar as filhas. Juliana apareceu macilenta e com um vestido monástico, pouco apropriado para uma ocasião tão importante. Sua irmã Isabel, com os olhos ardentes e um ricto zombeteiro, amparava-a por um braço com tal firmeza que parecia levá-la de rastos. Rafael Moncada atribuiu o mau parecer de Juliana aos nervos.

- Não é caso para menos, depois da terrível agressão que sofrestes... - conseguiu comentar, antes que ela o interrompesse para lhe anunciar com a voz trémula, mas a vontade de ferro, que nem morta se casaria com ele.

Em vista da rotunda negativa de Juliana, Rafael Moncada retirou-se daquela casa lívido, embora senhor das suas boas maneiras. Nos seus vinte e sete anos de vida tinha tropeçado com alguns obstáculos, mas nunca tivera um fracasso. Não pensava dar-se por vencido; ainda lhe restavam vários recursos na manga, para o que contava com posição social, fortuna e ligações. Absteve-se de perguntar as razões a Juliana, porque a intuição o advertiu de que alguma coisa correra muito mal na sua estratégia. Ela sabia mais do que a conta e ele não podia correr o risco de se ver exposto. Se Juliana suspeitava de que o assalto na rua fora uma farsa, só podia existir uma razão: Pelayo. Não lhe parecia que o homem se houvesse atrevido a traí-lo, porque nada ganhava com isso, mas podia ter cometido uma indiscrição. Ali não se podia guardar um segredo por demasiado tempo; os criados formavam uma rede de informações muito mais eficaz que a dos espiões franceses na Cidadela. Bastaria um comentário fora de lugar de qualquer dos implicados para que chegasse aos ouvidos de Juliana. Tinha empregado os ciganos em várias ocasiões justamente porque eram nómadas, iam e vinham sem se relacionarem com ninguém fora da sua tribo, não possuíam amigos nem conhecidos em Barcelona, eram necessariamente discretos. Durante o tempo em que andara de viagem perdera o contacto com Pelayo e, de certa forma, sentira-se aliviado por isso. A relação com aquela gente incomodava-o. Ao regressar, imaginou que poderia fazer tábua rasa, esquecer pecadilhos do passado e começar do zero, longe daquele mundo subterrâneo de maldade a soldo, mas a intenção de se regenerar durou-lhe apenas uns dias. Quando Juliana pediu outras duas semanas para responder à sua proposta matrimonial, Moncada teve uma reacção de pânico muito rara nele, que se prezava de dominar até os monstros dos seus pesadelos. Durante a sua ausência tinha-lhe escrito várias cartas, a que ela não respondera. Atribuíra esse silêncio à timidez, porque, numa idade em que outras mulheres já eram mães, Juliana se comportava como uma noviça. Aos seus olhos essa inocência constituía a melhor qualidade da jovem, pois lhe garantia que, quando se lhe entregasse, o faria sem reservas. A sua segurança fraquejou, porém, com o novo adiamento por ela imposto, e nessa altura decidiu pressioná-la. Uma acção romântica, como as dos livros de amor de que Juliana gostava, seria o mais eficiente para os seus propósitos, calculou, mas não podia esperar que a ocasião se lhe apresentasse sozinha; tinha de a propiciar. Obteria o que desejava sem prejudicar ninguém; não se tratava, na realidade, de um embuste, porque a dar-se o caso de Juliana - ou qualquer outra mulher decente - ser atacada por vagabundos, ele sairia sem vacilar em sua defesa. Não lhe pareceu necessário fornecer estes argumentos a Pelayo, evidentemente; apenas lhe deu as suas ordens, que este cumpriu sem tropeços. A cena que os boémios montaram revelou-se mais breve do que o planeado, porque largaram a correr passados poucos minutos, quando suspeitaram que a espada de Moncada era a sério. Não lhe deram ocasião de se exibir com o esplendor dramático que ele pretendia; por isso, quando Pelayo veio receber, ele achou justo regatear o preço combinado.

Discutiram e Pelayo acabou por aceitar o desconto, mas Rafael Moncada ficou com um sabor amargo na boca; o homem sabia de mais e podia cair na tentação de fazer chantagem consigo. Definitivamente, concluiu, não convinha que um sujeito daquela laia, sem lei nem moral, tivesse poder sobre ele. Tinha de se livrar dele assim que possível, dele e de toda a sua tribo.

Por seu lado, Bernardo conhecia bem o apertado tecido de mexericos que as pessoas da classe de Moncada tanto temiam. Com o seu silêncio sepulcral, o seu ar de índio digno e a sua boa vontade para fazer favores, tinha-se congraçado com muita gente - vendedeiras do mercado, estivadores do porto, artesãos dos bairros, cocheiros, lacaios e criadas das casas dos ricos. Armazenava informações na sua prodigiosa memória, dividida em compartimentos, como um imenso arquivo, onde guardava os dados ordenados e prontos para usar no momento necessário. Conhecera Joanet, um dos criados de Moncada, no pátio da mansão de Eulália de Callís, na noite em que Moncada o agredira com a bengala. No seu arquivo, essa noite não era recordada pela bengalada sofrida, mas sim pelo assalto ao conde Orloff. Manteve-se em contacto com Joanet; assim, podia vigiar de longe Moncada. O homem era de muito poucas luzes e detestava quem quer que não fosse catalão, mas tolerava Bernardo porque não o interrompia e tinha sido baptizado. Visto que Amália admitira os contactos de Moncada com os ciganos, Bernardo decidiu averiguar mais sobre aquela personagem. Fez uma visita a Joanet, levando-lhe de presente o melhor conhaque de Tomás de Romeu, que Isabel lhe facultara ao saber que a garrafa seria empregada para um fim altruísta. O homem não precisava do álcool para soltar a língua, mas agradeceu-o da mesma maneira e daí a pouco estava a contar-lhe as últimas novas: ele mesmo tinha levado uma missiva do amo ao chefe militar da Cidadela, na qual Moncada acusava a tribo de ciganos de introduzir armas de contrabando na cidade e conspirar contra o Governo.

- Os ciganos estão amaldiçoados para sempre, porque fizeram os cravos da cruz de Cristo. Merecem que os queimem a todos sem misericórdia na fogueira, é o que eu digo - foi a conclusão de Joanet.

Bernardo sabia onde encontrar Diego àquela hora. Encaminhou-se sem vacilar para o descampado nos extramuros de Barcelona, onde os ciganos tinham as suas tendas e carroções desconjuntados. Nos três anos que ali haviam passado estabelecidos, o acampamento adquirira o aspecto de uma aldeia de trapos. Diego de La Vega não reatara os seus amores com Amália, porque esta receava deitar a perder para sempre a sua própria sorte. Salvara-se de ser executada pelos Franceses, prova sobeja de que o espírito de Ramón, o seu marido, a protegia do Além. Não lhe convinha provocar a sua ira indo para a cama com o jovem gadje. Também influía no seu estado de espírito o facto de Diego ter confessado o seu amor por Juliana, visto que, nesse caso, estavam os dois a ser infiéis, ela à memória do defunto e ele à casta rapariga. Tal como Bernardo calculava, Diego fora ao acampamento para ajudar os amigos a preparar a barraca do circo dominical, que nessa ocasião não ficaria numa praça, como era habitual, mas sim ali mesmo. Dispunham de um par de horas pela frente, porque o espectáculo começava às quatro da tarde. Estava com outros homens a puxar cordas para retesar as lonas, ao som de uma das canções que aprendera com os marinheiros do Madre de Dios, quando chegou Bernardo. Era capaz de lhe sentir o pensamento de longe e estava à espera dele. Não precisou de ver a expressão taciturna do irmão para saber que alguma coisa corria mal. Apagou-se-lhe o sorriso que sempre lhe bailava na cara ao ouvir o que Bernardo averiguara por intermédio de Joanet e reuniu de imediato a tribo.

- Se a informação é correcta, estais em grave perigo. Pergunto a mim mesmo porque não vos prenderam ainda - disse-lhes.

- Certamente virão durante a função, quando estivermos todos aqui e houver público. Os Franceses gostam de dar exemplo; isso mantém a população atemorizada, e nada melhor do que fazerem-no connosco - respondeu Rodolfo.

Juntaram as crianças e os animais e, em silêncio, com o sigilo de séculos de perseguição e vida errante, fizeram uns embrulhos com o indispensável, montaram nos cavalos e, antes de meia hora passada, tinham desaparecido em direcção às montanhas. Ao despedir-se, Diego disse-lhes que mandassem alguém na manhã seguinte à catedral do bairro antigo.

- Terei uma coisa para vós - disse-lhes, acrescentando que procuraria entreter os soldados para lhes dar tempo de fugir. Os ciganos perdiam tudo. Para trás ficou o acampamento desolado, com a triste barraca do circo, os carroções sem cavalos, as fogueiras ainda fumegantes, as tendas abandonadas e um desconcerto de cacos, colchões e trapos. Entretanto, Diego e Bernardo desfilaram pelas ruas adjacentes com chapéus de palhaços e rufar de tambores, para chamarem o público, que começou a segui-los até ao circo. Não tardou que houvesse suficientes espectadores a aguardar debaixo da barraca. Uma assuada impaciente acolheu Diego, que apareceu na pista vestido de Zorro, com máscara e bigode, atirando ao ar três tochas acesas, que apanhava em voo e passava por entre as pernas e por detrás das costas antes de voltar a atirá-las. O público não pareceu grandemente impressionado e começou a gritar-lhe zombarias. Bernardo levou as tochas e Diego pediu um voluntário para um truque de grande suspense, como anunciou. Um marinheiro corpulento e desafiador deu um passo em frente e, seguindo as instruções, colocou-se a cinco passos de distância com um cigarro nos lábios.

Diego fez estalar o chicote no solo um par de vezes antes de lhe assestar um golpe certeiro. Ao sentir o assobio na cara, o homem enrubesceu de ira, mas, quando o cigarro voou pelos ares sem que o chicote lhe tocasse a pele, soltou uma gargalhada, com a qual a assistência fez coro. Nesse momento, alguém se lembrou da história que tinha circulado pela cidade sobre um tal Zorro, vestido de negro e mascarado, que se atrevera a arrancar o Chevalier da cama para salvar uns reféns. O Zorro?... Raposa?... Qual raposa?... - correu a voz num abrir e fechar de olhos. Alguém apontou para Diego, que cumprimentou com uma profunda reverência e, com um salto, trepou pelas cordas até ao trapézio. No mesmo instante em que Bernardo lhe fazia um sinal, ouviu cascos de cavalos. Estava à espera deles. Deu uma cambalhota no balance, ficando pendurado pelos pés, a baloiçar-se no ar por cima das cabeças do público.

Minutos depois, um grupo de soldados franceses entrou de baionetas caladas atrás de um oficial que bramava ameaças. Estalou o pânico, enquanto as pessoas tentavam sair, momento que Diego aproveitou para baixar à terra deslizando por uma corda. Soaram vários disparos e armou-se uma balbúrdia monumental; os espectadores empurravam-se para sair, atropelando os soldados. Diego escapuliu-se como uma doninha, antes que pudessem alcançá-lo, e pôs-se a cortar as cordas que seguravam a barraca por fora, ajudado por Bernardo. O pano caiu sobre as cabeças da assistência presa no interior, soldados e público por igual. A confusão deu tempo aos jovens para montarem nas suas cavalgaduras e meter a galope rumo a casa de Tomás de Romeu. Em cima da montada, Diego despojou-se da capa, do chapéu, da máscara e do bigode. Calcularam que os soldados levariam um bom bocado a sacudir a barraca de cima, aperceber-se de que os ciganos tinham fugido e organizar-se para os perseguir. Diego sabia que no dia seguinte o nome do Zorro estaria outra vez em todas as bocas. Do seu cavalo, Bernardo dirigiu-lhe um eloquente olhar de censura: a fanfarronice podia custar-lhe caro, visto que os Franceses revolveriam céus e terra à procura da misteriosa personagem. Chegaram ao seu destino sem chamar a atenção, entrando por uma porta de serviço; pouco mais tarde, tomavam chocolate com biscoitos na companhia de Juliana e Isabel. Não sabiam que nesse mesmo momento o acampamento dos ciganos se desfazia em fumo. Os soldados tinham deitado fogo à palha da pista, que ardera como acendalha, atingindo em poucos minutos as velhas lonas.

No dia seguinte ao meio-dia, Diego postou-se numa nave da catedral. O rumor da segunda aparição do Zorro tinha dado a volta completa por Barcelona e já chegara aos seus ouvidos. Num só dia, o enigmático herói conseguiu captar a imaginação popular. A letra Z apareceu talhada à faca em várias paredes, obra de rapazes inflamados de entusiasmo por imitar o Zorro.

- É disso que precisamos, Bernardo, de muitas raposas que distraiam os caçadores - opinou Diego.

A essa hora a igreja estava vazia, à excepção de um par de sacristães que mudavam as flores no altar principal. Reinava a penumbra fria e queda de um mausoléu; ali não chegava a luz brutal do Sol nem o barulho da rua. Diego esperou sentado num banco, rodeado de santos de vulto, aspirando o inconfundível odor metálico do incenso que impregnava as paredes. Através dos antigos vitrais penetravam tímidos reflexos coloridos, que banhavam o recinto de uma luz irreal. A calma do momento trouxe-lhe a recordação da mãe. Nada sabia dela, era como se se tivesse esfumado. Estranhava que nem o pai, nem o padre Mendoza a mencionassem nas suas cartas e que ela própria nunca lhe houvesse enviado umas linhas, mas não estava preocupado. Julgava que, se acontecesse algum mal à mãe, ele o sentiria nos ossos. Uma hora mais tarde, quando estava prestes a sair, convencido de que já ninguém compareceria ao encontro, surgiu ao seu lado, como um fantasma, a figura magra de Amália. Cumprimentaram-se com um olhar, sem se tocarem.

- Partiremos até que as coisas acalmem; depressa se esquecerão de nós - retorquiu ela.

- Incendiaram o acampamento, ficastes sem nada.

- Não é nenhuma novidade, Diego. Nós, os Rom estamos habituados a perder tudo; já nos aconteceu antes e há-de acontecer de novo.

- Voltarei a ver-te, Amália?

- Não sei, não tenho a minha bola de cristal - sorriu ela,

encolhendo os ombros.

Diego deu-lhe o que lograra juntar naquelas poucas horas: a maior parte do dinheiro que restava da recente remessa enviada pelo pai e o que as meninas De Romeu tinham conseguido, uma vez que souberam do sucedido. Por encomenda de Juliana, entregou-lhe um volume embrulhado num lenço.

- Juliana pediu-me que te desse isto como recordação -

disse Diego.

Amália desatou o lenço e viu que continha um delicado diadema de pérolas, o mesmo que Diego tinha visto Juliana usar várias vezes; era a sua jóia de mais valor.

- Porquê? - perguntou a mulher, surpreendida.

- Suponho que deve ser porque a salvaste de se casar com

Moncada.

- Isso não é certo. Talvez o seu destino seja casar-se com

ele, seja como for...

- Nunca! Agora Juliana sabe o género de canalha que ele é

- interrompeu-a Diego.

- O coração é caprichoso - redarguiu ela. Escondeu a jóia na bolsa, entre as pregas das suas largas saias sobrepostas, fez um gesto de adeus a Diego com os dedos e retrocedeu, perdendo-se nas sombras geladas da catedral. Instantes mais tarde, corria pelas ruelas do bairro até às Ramblas.

Pouco depois da fuga dos ciganos e antes do Natal, chegou uma carta do padre Mendoza. O missionário escrevia de seis em seis meses para dar notícias da família e da missão. Contava, por exemplo, que os golfinhos tinham voltado à costa, que o vinho dessa temporada saíra ácido, que os soldados haviam detido Coruja Branca, pois arremetera contra eles à bastonada em defesa de um índio, mas através da intervenção de Alejandro de La Vega a tinham soltado. Desde então, acrescentava, não haviam visto a curandeira por aqueles lados. Com o seu estilo preciso e enérgico conseguia comover Diego muito mais do que Alejandro de La Vega, cujas cartas eram sermões salpicados de conselhos morais. Diferiam pouco do tom estabelecido por Alejandro na relação com o filho. Nessa ocasião, porém, a breve missiva do padre Mendoza não era para Diego, mas sim para Bernardo, e vinha selada com lacre. Bernardo quebrou o selo com uma faca e instalou-se ao pé da janela a lê-la. Diego, que o observava a poucos passos de distância, viu-o mudar de cor à medida que os seus olhos percorriam a angulosa escrita do missionário. Bernardo leu-a duas vezes e a seguir passou-a ao irmão.

 

Ontem, dois de Agosto do ano de mil oitocentos e treze, veio visitar-me à missão uma jovem indígena da tribo de Coruja Branca. Trazia o filho, de pouco mais de dois anos, ao qual chama simplesmente «Menino». Propus baptizá-lo, como é devido, e expliquei-lhe que de outro modo a alma daquele inocente corre perigo, visto que, se Deus decidir levá-lo, não poderá ir para o céu e ficará preso no limbo. A índia negou-se ao baptismo. Disse que esperará o regresso do pai para que ele escolha o nome. Também recusou ouvir a palavra de Cristo e integrar-se na missão, onde ela e o filho teriam uma vida civilizada. Deu-me o mesmo argumento: que, quando o pai do menino regressar, tomará uma decisão a esse respeito. Não insisti, porque aprendi a aguardar com paciência que os índios aqui compareçam de sua própria vontade. O nome da mulher é Raio na Noite. Que Deus te abençoe e guie sempre os teus passos, meu filho.

Abraça-te em Cristo Nosso Senhor, Padre Mendoza.

 

Diego devolveu a carta a Bernardo e ambos ficaram em silêncio, enquanto a luz do dia se apagava na janela. Bernardo, que por necessidade de comunicar tinha um rosto muito expressivo, parecia naquele momento esculpido em granito. Começou a tocar uma melodia triste, refugiando-se na flauta para não dar explicações. Diego não lhas pediu, porque sentia no seu próprio peito as pancadas do coração do irmão. Tinha chegado o momento de se separarem. Bernardo não podia continuar a viver como um rapaz; as suas raízes reclamavam-no, desejava regressar à Califórnia e assumir as suas novas responsabilidades. Nunca se sentira à vontade longe da sua terra. Vivera vários anos a contar os dias e as horas, naquela cidade de pedra e de gelados Invernos, devido à férrea lealdade que o unia a Diego, mas já não podia mais...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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