Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A ABADIA DE NORTHANGER
Catarina Morland nascera para heroína. Aos quinze anos começou a frisar o cabelo e a ansiar pelos bailes. A sua primeira entrada na vida de sociedade, a sua primeira experiência neste campo é digna de nota. Catarina acordou para a vida com olhos diferentes dos da maioria das meninas da sua idade e do seu meio. Catarina possuía um coração puro e uma alma ardente e amorosa; e desconhecia as maldadezinhas e as perfídias de certo meio; via a vida cor-de-rosa, tudo Lhe parecia belo – as pessoas e as coisas. Mas a existência nem sempre sorriu à pequena Catarina, que se encontra, de súbito, envolvida na complicada teia de uma sociedade provinciana, que não tem outro passatempo senão falar da vida alheia, dos vestidos e dos namorados das outras, das leviandades e dos caprichos dos maridos das amigas. Mais do que uma história de amor, este livro é um romance de costumes, digamos, uma caricatura de costumes. As meninas encontram nele um pouco da sua vida, dos seus anseios, da sua juventude. Os bailes, os passeios com as amigas e os irmãos das amigas, os namoricos, os defeitos das pessoas crescidas - tudo nos é pintado deliciosamente pela autora e vivido por Catarina Morland. E a acrescentar a isto um enredo ao gosto da época, com mistérios e fantasmas...
Quem tivesse visto Catarina Morland em criança, nunca poderia supor que nascera para heroína. A sua situação na vida, o caráter do pai e da mãe, a sua própria pessoa e temperamento, tudo parecia contra ela. O pai era padre; mas como nunca se mostrara desmazelado ou pobre, todos o respeitavam, embora se chamasse Ricardo e nunca tivesse sido bonito.
Possuía considerável independência que lhe vinha de duas boas freguesias. Nunca tivera por costume cercear a liberdade das filhas. A mãe era uma mulher de senso prático, de bom gênio, e, o mais importante, de boa constituição física. Quando Catarina nasceu já ela tinha três filhos; em vez de morrer ao dar à luz o último, como qualquer pessoa esperaria, continuou a viver. Viveu para ter mais seis filhos, para os ver crescer à sua volta e gozar de excelente saúde.
Uma família de dez filhos será sempre considerada uma bela família, porque há cabeças, braços e pernas em número suficiente para a distinguir. Porém com os Morlands não se dava isso, porque, em geral, eram muito feios e Catarina durante muito tempo da sua vida fora tão feia como todos eles.
Era magra e malfeita, tinha a pele macilenta e pálida, o cabelo escuro e liso e as feições acentuadas de mais para a idade. O seu espírito não se inclinava para o heroísmo. Gostava de todos os jogos de rapazes e preferia o cricket, não só às bonecas, mas a todos os divertimentos próprios da infância - tratar de um arganaz, dar de comer a um canário ou regar uma roseira. Na verdade não tinha gosto pelo jardim e se colhia algumas flores era apenas pelo prazer de as estragar - pelo menos assim se deduzia do fato de preferir sempre as que lhe proibiam mexer. Estas eram as suas inclinações; as suas habilidades igualmente extraordinárias. Nunca fora capaz de aprender ou compreender qualquer coisa a não ser ao fim de muito tempo; e por vezes nem assim, porque frequentemente estava distraída e às vezes estúpida. A mãe levou três meses a ensinar-lhe a ”Súplica do pobre” e, no fim de contas, a irmã a seguir, Sally, dizia-a melhor do que ela. Não que Catarina fosse sempre estúpida; de maneira alguma. Aprendeu a fábula “A lebre e muitos amigos”, tão depressa como qualquer menina em Inglaterra. A mãe queria que ela aprendesse música e Catarina tinha a certeza de que havia de gostar, porque sentia muito prazer em tocar nas teclas do velho piano abandonado; por isso começou a aprender aos oito anos. Estudou durante um ano, mas contrariada; e a senhora Morland, como não insistia com as filhas para serem prendadas desde que não tivessem jeito nem gosto, deu licença a Catarina para pôr de parte a música. O dia em que despediram o professor foi dos mais felizes para Catarina.
O gosto pelo desenho não era maior, mas, apesar disso, sempre que podia apanhar um sobrescrito da mãe ou outro qualquer bocado de papel, esforçava-se por desenhar casas e árvores, galinhas e pintinhos, saindo todos iguais uns aos outros. O pai ensinava-lhe a escrever e contar e a mãe o francês, mas o seu aproveitamento não era notável em qualquer deles e fugia às lições sempre que podia.
Que caráter tão estranho e inexplicável! Com todos estes sintomas de desregramento aos dez anos, não tinha, todavia, nem mau coração nem mau gênio; raras vezes se mostrava teimosa, quase nunca desordeira, era muito boa para os mais pequenos e só raras vezes despótica com eles; era essencialmente barulhenta e impulsiva, odiava a prisão e a limpeza, e de nada gostava mais do que rebolar-se pela verde encosta que havia atrás da casa.
Assim era Catarina naquela idade. Aos quinze, o aspeto começou a melhorar, frisava o cabelo e suspirava por bailes. Desenvolvera-se, as feições tinham-se suavizado e tomado cor, os olhos ganharam vida, e a sua figura produzia melhor impressão. A falta de asseio deu lugar à inclinação para o luxo e assim se tornou asseada à medida que se tornava elegante.
Muitas vezes era com alvoroço que ouvia falar ao pai e à mãe da sua transformação: Catarina está a fazer-se uma menina engraçada, quase bonita, eram palavras que ouvia de vez em quando (e que alegria lhe davam!).
Ser quase bonita dá mais prazer a uma menina que foi feia durante os primeiros quinze anos da sua vida, do que a outra que já o seja desde o berço.
A senhora Morland era uma excelente senhora e queria que os seus filhos obtivessem os maiores êxitos, mas tinha o tempo tão ocupado com os partos e com o ensino dos mais pequenos, que as filhas mais velhas ficaram inevitavelmente abandonadas a si próprias. Por isso não era para admirar que Catarina, que, por natureza, nada tinha de heróica, preferisse, aos catorze anos, o cricket e baseball, montar a cavalo e correr pelos campos, aos livros, pelo menos aos livros de estudo, porquanto, desde que deles se não tirasse nenhum conhecimento útil e que fossem de histórias e não de erudição, não lhes opunha objeções. Mas dos quinze aos dezessete anos preparava-se para ser uma heroína. Lia todas as obras que as heroínas devem ler para enriquecer os seus conhecimentos com aqueles assuntos que tanto auxílio e alívio prestam nas vicissitudes das suas vidas tão cheias de acontecimentos.
De Pope aprendeu a censurar aqueles que: ostentam o fingimento da dor[1]. De Gray, que muitas flores nascem para florir na sombra e espalhar o seu odor no ar deserto[2]. De Thomson, que é uma tarefa deliciosa saber disparar a idéia nova[3]. E em Shakespeare adquiriu um grande manancial de conhecimentos, entre os quais que ninharias leves como o vento são para os ciumentos confirmações absolutas como as provas da Sagrada Escritura[4], que o pobre escaravelho que pisamos sofre uma dor corpórea tão grande como quando um gigante morre[5] e que uma donzela apaixonada se parece sempre com a Paciência a sorrir à Dor, num monumento fúnebre[6].
Até então a sua cultura era suficiente, e desempenhava extremamente bem muitos trabalhos. Embora não soubesse escrever sonetos, começou a lê-los; ainda que não conseguisse entusiasmar os ouvintes com um prelúdio de piano da sua autoria, era capaz de ouvir sem grande enfado as outras pessoas tocarem. A sua maior deficiência estava no desenho: não tinha dele a menor noção, nem sequer para fazer o esboço do perfil do namorado, de forma que tivesse algumas semelhanças. Neste capítulo sentia-se absolutamente incompetente, mas, não lhe fazia diferença porque ainda não tinha namorado para desenhar. Chegara aos dezessete anos sem ter visto nenhum rapaz simpático, sem inspirar uma verdadeira paixão, nem mesmo ter provocado qualquer admiração, por muito moderada ou passageira que fosse. Isto era sem dúvida estranho! Mas as coisas estranhas podem geralmente explicar-se, se a sua causa for bem averiguada. Não havia nenhum lorde ou barão na vizinhança. Entre as famílias conhecidas nenhuma tinha adotado e educado qualquer órfão ou rapaz de origem desconhecida. O pai não tinha nenhum pupilo e o fidalgo da freguesia não tinha filhos.
Mas quando a menina quer ser heroína, nem a maldade de quarenta famílias a pode impedir. Algo fará e alguma coisa há de acontecer que lhe depare um herói. O senhor Allen, que possuía a maior parte das propriedades de Fullerton, a aldeia de Wiltshire onde viviam os Morlands; foi aconselhado a ir para Bath a fim de tratar da gota. A esposa, uma senhora alegre e amiga de Catarina Morland, sabendo que quando a uma menina, na sua terra, não acontecem aventuras as tem de procurar fora, convidou-a a ir com eles. O casal Morland concordou de boa vontade e Catarina sentiu-se felicíssima.
Além do que se disse acerca dos predicados pessoais e morais de Catarina, antes de entrar propriamente em contato com as dificuldades e perigos que lhe poderia trazer uma estada de seis semanas em Bath, acrescente-se, para melhor informação do leitor - se as páginas seguintes lhe não derem uma idéia mais clara do seu caráter do que se pretende -, que era efetuosa, alegre e franca, sem a mais leve vaidade ou afetação, e que se tornara sociável, ela que fora uma menina tão acanhada e tão tímida. O seu aspeto era agradável e, quando bem arranjada, chegava a ser bonita. O seu espírito, porém, mostrava-se tacanho e ignorante, o que geralmente sucede com qualquer menina aos dezessete anos.
Era de supor que, à medida que se aproximava a hora da partida, aumentassem as preocupações da senhora Morland, e que mil pressentimentos alarmantes, motivados pela separação da sua querida Catarina, lhe enchessem o coração de tristeza, e a fizessem chorar nos últimos dois dias que estiveram juntas; e que na hora da separação, quando estivessem no seu quarto, ela prudentemente lhe desse os melhores conselhos, para a precaver dos fidalgos e barões que se divertem a forçar as meninas a ir para alguma quinta afastada. Era assim que, nesse momento, deveria aliviar o coração. Quem é que não pensaria deste modo? Mas a senhora Morland sabia tão pouco de lordes e barões que não tinha a mínima idéia da sua maldade, nem suspeitava do perigo que daí pudesse advir para a sua filha. As suas advertências limitaram-se a isto:
- Catarina, vê lá se agasalhas bem a garganta quando vieres à noite dos salões. Gostava que apontasses todas as tuas despesas. Para isso toma lá este livrito.
Sally, ou antes Sara (pois qual é a menina de família chique, que chega aos dezesseis anos sem mudar o nome o mais que pode?), deveria ser nesta altura a amiga íntima e a confidente da irmã. No entanto, não pediu que lhe escrevesse todas as vezes que houvesse correio, nem a obrigou a prometer que lhe descreveria todos os seus novos conhecimentos, nem a contar-lhe pormenorizadamente todas as conversas interessantes que tivesse em Bath.
Tudo o que dizia respeito a esta importante viagem fez-se por parte dos Morlands com certa moderação e compostura, mais compatíveis com os sentimentos normais da vida humana do que com as susceptibilidades apuradas, as emoções ternas, que a primeira separação duma heroína sempre devem provocar: O pai, em vez de lhe dar ordem para levantar dinheiro no banco quando quisesse, ou mesmo lhe dar uma nota de cem libras, entregou-lhe apenas dez guinéus, prometendo-lhe mais, logo que precisasse.
Realizada a separação com tão pouco favoráveis auspícios, começou a viagem, que decorreu com sossego e segurança. Nem ladrões, nem tempestades, nem qualquer acidente feliz aconteceu, de modo que se lhe deparasse um herói.
Nada ocorreu de alarmante, a não ser um susto que a senhora Allen teve ao julgar que deixara os sapatos numa estalagem, o que afinal se verificou não ter fundamento.
Chegaram a Bath. Catarina estava satisfeitíssima; olhava para todos os lados, à medida que se aproximavam dos belos arredores e atravessavam as ruas para o hotel. Viera para ser feliz e começava já a sê-lo.
Em breve se instalaram em Pulteney Street, em aposentos confortáveis.
É conveniente dizer agora alguma coisa da senhora Allen, para que o leitor possa avaliar de que maneira a sua interferência vai contribuir para o ambiente triste da obra, e como ela talvez vá fazer sofrer Catarina (o que encheria mais um volume), quer pela imprudência, grosseria, ou ciúme, quer por lhe interceptar as cartas, dizer mal dela ou expulsá-la. A senhora Allen era daquelas muitas mulheres cuja convivência consegue surpreender, se pensarmos que houve um homem que pudesse gostar dela, a ponto de a desposar. Não era uma beleza nem uma inteligência; não tinha talento nem maneiras finas. Foi o seu porte senhoril, uma bondade pacífica e inativa e certa propensão para a frivolidade que fizeram dela a escolhida de um homem inteligente e sensato, como o senhor Allen. De certa maneira, estava realmente talhada para introduzir uma menina na sociedade, porque gostava de ir a toda a parte e de ver tudo como se ainda fosse jovem. Os vestidos eram a sua paixão. Tinha grande prazer em andar sempre bem posta; por isso a apresentação da nossa heroína na sociedade não se pôde fazer antes de ter comprado um vestido da última moda para a sua protegida, depois de ambas passarem três ou quatro dias a saber o que mais se usava. Catarina fez também algumas compras para si, e quando tudo estava pronto, chegou a importante noite que a havia de levar aos Upper Rooms. O melhor cabeleireiro arranjou-lhe o cabelo, e vestiu-se com tanto esmero que a criada e a senhora Allen afirmaram que estava muito bem. Com estas apreciações, Catarina esperava que, ao menos, ninguém a criticasse. Se a admirassem, sentiria satisfação mas enfim, isso não lhe importava muito.
A senhora Allen demorou tanto tempo a vestir-se, que só muito tarde entraram na sala de baile. A época estava concorrida a sala cheia, e as duas senhoras lá foram entrando como puderam. O senhor Allen dirigiu-se logo à sala de jogo e deixou-as sozinhas a contas com o aperto. Com mais cuidados no seu vestido de noite do que no bem-estar da protegida á senhora Allen lá foi abrindo caminho, tão depressa quanto lho permitiam as suas precauções; contudo, Catarina ia sempre a seu lado segurando-lhe bem o braço, para não se separar da amiga no meio dos embates da multidão agitada. Mas, com grande espanto seu, a senhora Allen descobriu que a melhor maneira de se desenvencilharem não era continuarem a andar pela sala, porque, ao contrário do que tinha imaginado, cada vez o aperto aumentava mais e, uma vez lá dentro, esperava encontrar, com facilidade, bons lugares donde pudessem ver o baile. Isto, porém, estava muito longe de acontecer, porquanto, ainda que com porfiados esforços tivessem chegado ao topo da sala, a sua situação continuava na mesma. Dos pares que dançavam, viam apenas as altas plumas de algumas senhoras. Continuaram a andar, na esperança de encontrar melhor lugar, e, lutando sempre, alcançaram, por fim, um espaço menos ocupado por trás dos bancos mais altos. Aqui havia menos gente do que em baixo, e Catarina Morland pôde apreciar a multidão que estava na sala e avaliar os perigos por que tinham passado para a atravessar. Era um aspeto magnífico; sentia-se pela primeira vez, naquela noite, num baile; queria dançar, mas não havia ali ninguém conhecido. A senhora Allen fez tudo o que se pode fazer em tais casos, dizendo-lhe, muito calma, de vez em quando:
- Quem me dera que fosses dançar, minha filha; oxalá arranjasses um par!
Durante algum tempo Catarina agradeceu-lhe estas atenções, mas, ouvindo repeti-las tantas vezes, sempre sem resultado, acabou por se aborrecer e não lhe agradecer mais. Não poderem gozar mais tempo o lugar privilegiado que tanto Ihes custara a arranjar! Toda a gente ia para o salão de chá, e elas tiveram de fazer o mesmo. Catarina começou a sentir-se desapontada; estava aborrecida por ser continuadamente empurrada por pessoas que geralmente tinham umas caras sem interesse e com as quais não tinha as mínimas relações. Não podia, portanto, de modo algum, falar sequer com qualquer dos seus companheiros de suplício para assim aliviar um pouco aquele tédio de prisão. Por fim chegaram à sala de chá, mas lá sentiu ainda mais o inconveniente de não pertencer a nenhum grupo, de não ter alguém conhecido, nem cavalheiro que as auxiliasse. Não viram o senhor Allen e, depois de tentarem arranjar, em vão, lugar mais adequado, foram obrigadas a sentar-se na extremidade de uma mesa, onde se encontrava já um grande grupo, sem ali terem que fazer, nem com quem falar. A senhora Allen, logo que se sentaram, ficou satisfeita ao ver que não tinha estragado o vestido.
Seria muito aborrecido se o tivesse rasgado - disse ela -, não te parece? É de musselina tão fina; ainda não vi em toda a sala nada de que gostasse tanto.
- Que aborrecido não conhecermos aqui ninguém! – disse Catarina, em seguida.
- Lá isso é - respondeu a senhora Allen. - Na verdade é muito aborrecido.
- Que havemos de fazer? Estes cavalheiros e senhoras olham para nós como se quisessem perguntar-nos porque viemos para aqui, dá a impressão que nos metemos à força no seu grupo.
- E verdade. Isto é muito desagradável. Quem me dera ter aqui bastante gente conhecida!
- Eu queria ter alguma; alguém com quem se pudesse falar.
- Com certeza, minha querida; se conhecêssemos alguém, iríamos ter com ele imediatamente. Os Skinners estiveram cá o ano passado. Quanto desejava que eles estivessem agora aqui!
- Não seria melhor irmo-nos embora? Veja, não há chá para nós.
- Pois não; mas que irritante! No entanto será melhor ficarmos sentadas, porque, se nos metemos numa multidão destas, amarrotamos os vestidos. Que tal está o meu penteado, querida? Deram-me um tal encontrão que receio que se tenha desarranjado.
- Oh, não; está muito bem! Mas, minha querida senhora Allen, tem a certeza de que não conhece ninguém no meio de toda esta gente? Julgo que há-de conhecer alguém.
- Palavra de honra que não conheço, embora muito o desejasse. Como gostava de ter aqui muita gente conhecida para te poder arranjar um par! Ficaria tão satisfeita se fosses dançar! Ali vai uma senhora bastante esquisita. Que vestido tão excêntrico ela tem! Tão fora de moda! Olha para as costas!
Passado algum tempo um dos vizinhos ofereceu-lhes chá; aceitaram, agradecendo muito, o que deu lugar a uma ligeira conversa com o cavalheiro. Foi esta a única vez que alguém lhes falou durante a noite, até que apareceu o senhor Allen que se lhes veio juntar no fim do baile.
- Então divertiste-te muito, Catarina? - perguntou ele, logo que chegou.
- Muito, mesmo - respondeu ela, tentando em vão esconder o bocejo.
- Gostava que ela tivesse dançado - disse a esposa. - Gostava muito de lhe termos podido arranjar um par. Já lhe disse que preferia que os Skinners tivessem vindo este ano em vez do ano passado; se os Parrys ao menos tivessem vindo, como diziam; ela podia ter dançado com Jorge Parry. Tenho tanta pena de que ela não tivesse arranjado par!
- Para a outra vez teremos mais sorte - disse o senhor Allen, querendo confortá-la.
A multidão começou a dispersar-se logo que acabou o baile, deixando assim algum espaço livre para os retardatários poderem andar à vontade. Era agora a ocasião duma heroína, que até então não desempenhara papel importante nos acontecimentos da noite, ser notada e admirada. Cada cinco minutos em que se afastava uma pessoa aumentavam as probabilidades de se revelarem os seus encantos. Podia agora ser vista por muitos rapazes que até aí tinham estado longe dela. Contudo, nem um só mostrou qualquer admiração ao contemplá-la, nenhum sussurro de curiosidade percorreu a sala, nem lhe chamaram beldade uma única vez. No entanto, Catarina estava muito bonita, e, se aquelas pessoas a tivessem visto há três anos, julgá-la-iam agora extremamente bela.
Apesar de tudo, ouvira dizer a dois rapazes que era uma menina bonita. Estas palavras produziram o seu efeito, pois julgava já a noite mais agradável do que fora até ali. A sua ingênua vaidade sentiu-se lisonjeada, e, intimamente, estava mais reconhecida aos dois rapazes, por terem dito este simples galanteio, do que aconteceria a uma heroína verdadeira a quem tivessem dedicado quinze sonetos, louvando os seus encantos.
Subiu para o carro, pensando bem de todos e muito satisfeita pelo quinhão de atenção que lhe tinham dispensado.
Passavam todas as manhãs nas mesmas ocupações: faziam compras, percorriam alguns pontos da cidade, iam até à Fonte onde passeavam durante uma hora, olhando para toda a gente e não falando com ninguém. A idéia fixa da senhora Allen continuava a ser a de desejar ter muitas pessoas conhecidas em Bath; e repetia-a todas as manhãs e todas as manhãs uma nova prova a vinha convencer de que afinal não conhecia ninguém.
Apareceram nos Lower Rooms. Aqui a nossa heroína teve mais sorte. O mestre-de-cerimónias apresentou-lhe para par, um rapaz muito distinto chamado Tilney. Devia ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos, tinha olhos vivos e inteligentes, e bastante bem parecido, embora não fosse muito bonito. Sabia conversar, e Catarina em breve se sentiu bem disposta. Enquanto dançavam, pouco falaram, mas ao chá ela verificou que era na verdade muito simpático. Falava com muito à-vontade e graça e na sua maneira de expor adivinhava-se certa finura de espírito que encantava embora Catarina não o compreendesse muito bem. Depois de falarem algum tempo sobre coisas vulgares, ele disse-lhe de repente:
- Peço-lhe desculpa de ainda não ter tido para com V. Exa. as atenções próprias dum par; ainda nem lhe perguntei há quanto tempo está em Bath; se já cá esteve alguma vez; se já foi aos Upper Rooms, ou ao teatro; se assistiu a algum concerto e se gosta de cá estar. Fui bastante descuidado, mas quer agora satisfazer a minha curiosidade? Se quer.
- Não vale a pena incomodar-se.
- Não é incómodo nenhum.
E, com um sorriso muito amável, e a voz afetadamente doce, perguntou:
- Já está há muito tempo em Bath?
- Há uma semana aproximadamente - respondeu Catarina, esforçando-se por não rir.
- Ah! sim! - disse ele com um espanto fingido.
- Então porque se admira?
- Ora porquê?! - disse no seu tom de voz natural. – porque pela sua resposta transparece que é mais fácil fingir-se surpresa do que qualquer outra emoção. Mas continuemos. Nunca tinha cá estado?
- Não.
Mas já honrou os Upper Rooms com a sua presença?
- Já; estive lá na segunda-feira passada.
- Já foi ao teatro?
- Fui, sim; fui à sessão de terça-feira.
- E ao concerto?
- Fui na quarta-feira.
- Gosta de Bath?
- Muito.
- Agora posso rir-me, para depois tornarmos a falar a sério.
Catarina virou a cabeça, não sabendo se deveria rir também.
- Eu bem sei o que pensa de mim - disse ele, sério; - farei uma triste figura no seu diário.
- No meu diário!?
- Sim; eu bem sei que vai escrever: Sexta-feira fui aos Lower Rooms; trazia o meu vestido de musselina estampada, guarnecido de azul, e sapatos pretos. Fazia boa figura, mas um sujeito excêntrico e com pretensões a espirituoso fez-me dançar com ele e aborreceu-me com os seus disparates.
- Mas eu não escreverei tal coisa!
- Quer então que lhe diga o que havia de escrever?
- Pois diga.
- Dancei com um rapaz muito simpático que o senhor King apresentou; falámos muito; ele parece ter grande talento; gostava de o conhecer melhor. Era isto minha senhora, que eu desejava que escrevesse.
- Mas talvez eu não tenha um diário.
- Sim; talvez não esteja aqui sentada, nem eu ao seu lado; a dúvida é igualmente admissível. Não ter um diário! Como é que as suas primas ausentes haviam de saber o que se passa em Bath? Como poderia contar as amabilidades e galanteios que todos os dias lhe dirigem, se não os escrevesse todas as noites no seu diário? Como havia de se lembrar dos seus vários vestidos, descrever as diferentes maneiras de frisar o cabelo, sem recorrer ao diário? Minha querida senhora, eu não percebo assim tão pouco, como julga, dos hábitos das meninas. É esse esplêndido costume de escrever tudo em diários que muito contribui para a felicidade de expressão que torna as senhoras tão célebres. Toda a gente concorda que cartas agradáveis só as escrevem as senhoras. Não é apenas um dom natural que as ajuda. Estou convencido de que o hábito de terem um diário, é sobretudo, o que faz com que escrevam bem.
- Já tenho pensado - disse Catarina duvidando - se é certo que as senhoras escrevem melhor do que os cavalheiros. Quer dizer, julgo que nem sempre a superioridade está do nosso lado.
- Até onde me é possível verificar, penso que o estilo usual das cartas entre as senhoras é perfeito, excepto em três pontos.
- Então quais são?
- Uma falta completa de assunto, desinteresse absoluto pela pontuação e erros ortográficos muito freqüentes.
- Palavra de honra! Não valia a pena recear que se recusasse lisonjear-nos. Pensando assim, não nos julga muito bem. Não quero com isto estabelecer, como regra geral, que as mulheres escrevam melhores cartas que os homens, nem, tão pouco, que cantem melhor os duetos ou que desenhem mais belas imagens. Em qualquer assunto, desde que exista gosto, o talento está igualmente distribuído pelos dois sexos.
Foram interrompidos pela senhora Allen:
- Minha querida Catarina, tira-me este alfinete da manga; oxalá não esteja já rota. Se assim for, lamento, pois é o meu vestido favorito, embora o metro custasse só nove xelins.
- Era isso mesmo que me estava a parecer, minha senhora - disse o senhor Tilney, observando o tecido.
- O senhor percebe alguma coisa de musselinas?
- Muito até; compro sempre as minhas gravatas, e dizem-me que tenho bom gosto. Minha irmã manda-me às vezes escolher-lhe os vestidos; outro dia comprei-lhe um, e todas as senhoras que o viram disseram que tinha sido uma compra esplêndida, uma pechincha. Imagine que dei só cinco xelins por metro, e era verdadeiro organdi da Índia!
A senhora Allen estava admirada com o seu talento.
- Os homens, geralmente, ligam muito pouca importância a estas coisas - disse ela. - O meu marido nunca repara se trago um vestido novo. O senhor deve ser um grande auxiliar da sua irmã.
- Creio que sim, minha senhora.
- Então diga-me, que tal lhe parece o vestido da menina Morland?
- Muito bonito, minha senhora - respondeu ele, examinando-o com cuidado -, mas parece-me que não deve ser bom de lavar.
- Como pode - disse Catarina a rir-se - ser tão... Esteve quase a dizer-lhe singular.
- Sou da sua opinião! - exclamou a senhora Allen – Isso mesmo disse à Catarina quando o comprou.
- Mas, minha senhora, a musselina serve sempre para qualquer coisa. A menina Morland pode aproveitá-la para um lenço, uma écharpe; ou um vestido curto. A musselina nunca se desperdiça. Muitas vezes o ouvi dizer a minha irmã, quando comprava mais do que precisava ou se a cortava à toa.
- Bath é uma terra encantadora; há aqui muito bons estabelecimentos. Na província estamos pessimamente servidas. Em Salisbury há já boas lojas, mas fica muito distante: oito milhas ainda é uma grande distância; o meu marido diz que são nove, e bem medidas, mas eu tenho a certeza de que não devem ser mais do que oito. A maçada é tanta, que venho de lá cansadíssima. Aqui pode sair-se de casa e comprar qualquer coisa em cinco minutos.
O senhor Tilney era suficientemente educado para se mostrar interessado com o que ela dizia. A senhora Allen continuou sempre a falar de musselinas até que o baile recomeçou.
Catarina pensava, ao ouvir aquela conversa, que ele tinha paciência demais para os pontos fracos dos outros.
- Em que está a pensar, assim tão séria? - perguntou ele, quando voltaram à sala de baile - Oxalá não seja no seu par, porque, pela maneira de abanar a cabeça, deduzo que os seus pensamentos não são agradáveis.
Catarina corou e disse:
- Não estava a pensar em nada.
- É uma resposta hábil e profunda, mas eu preferia que dissesse logo que não está disposta a dizer-mo.
- Pois bem, não quero.
- Muito obrigado; assim já nos conheceremos melhor, visto que posso aborrecê-la com este assunto todas as vezes que a encontre, que há de melhor para aumentar a nossa intimidade.
Dançaram outra vez, e, quando acabou o baile, despediram-se com uma grande vontade de continuarem o conhecimento, pelo menos por parte da menina. Se ela pensou no rapaz ao beber o vinho quente com água, quando se preparava para deitar e se sonhou com ele, isso não se sabe; mas creio que não pensou pela manhãzinha mais do que quando dormitava, a ser certo o que um escritor célebre afirma - que nenhuma menina se deve apaixonar por um rapaz antes de este lhe declarar o seu amor - não é próprio que uma menina sonhe com um rapaz, antes de saber que primeiro sonhou ele com ela. Se o senhor Tilney era um bom sonhador, ou um namorado apaixonado, não sabia ainda o senhor Allen, mas não se opunha a que ele conversasse com a sua protegida.
Já se tinha dado ao trabalho de tirar informações acerca dele e tinham-lhe dito que o senhor Tilney era sacerdote e pertencia a uma família muito respeitável de Gloucestershire.
No dia seguinte dirigiu-se Catarina, com mais ansiedade do que nunca, à Fonte, com a certeza de que não passaria a manhã sem ver o senhor Tilney a quem receberia com um sorriso; mas não foi preciso nenhum sorriso, porque o senhor Tilney não apareceu. Todas as pessoas que estavam em Bath apareciam sempre na sala, excepto ele; constantemente entravam e saiam, subiam e desciam as escadas pessoas que lhe eram indiferentes, que não tinha interesse em ver; só ele não aparecia.
- Bath são umas termas maravilhosas - disse a senhora Allen ao sentar-se ao pé do grande relógio depois de se terem cansado a andar pela sala. - Seria tão agradável que tivéssemos aqui alguém conhecido!
Dissera isto tantas vezes sem sorte, que a senhora Allen já não esperava ser melhor sucedida desta vez. Mas lá diz o ditado que nunca devemos desesperar de alcançar o fim que desejamos porque quem porfia mata caça e a perseverança com que ela todos os dias repetia a mesma coisa foi por fim recompensada. Mal tinham passado dez minutos depois de se sentarem, quando uma senhora de meia-idade, que estava ao seu lado, se lhe dirigiu:
- Se não estou enganada, minha senhora, pois há já muito tempo que não tenho o prazer de a ver, penso que é a senhora Allen, não?
Depois da resposta afirmativa a outra senhora disse que se chamava Thorpe. A senhora Allen reconheceu logo pelas feições a amiga íntima do colégio, que só tinha visto uma vez depois de casada, e já há muitos anos. A alegria de tal encontro foi grande, como se pode imaginar, visto que já se não viam há quinze anos.
Referiram-se mutuamente à sua boa aparência e, depois de recordarem como o tempo passara da última vez que se tinham encontrado, quão inesperado era agora aquele encontro, em Bath, e que prazer era voltarem a estar juntas como velhas amigas, começaram a falar das respetivas famílias, irmãs e primas, falando as duas ao mesmo tempo, preferindo contar a ouvir, sem se perceberem uma à outra. A senhora Thorpe tinha mais assunto do que a senhora Allen, pois era mãe de muitos filhos; e quando começou a referir-se ao talento dos filhos e à beleza das filhas a dizer as suas situações e projetos: que o João estava em Oxford, Eduardo no Merchant-Taylors e Guilherme na marinha, e que todos eram mais estimados e respeitados nas respetivas posições do que quaisquer outros, a senhora Allen não teve remédio senão calar-se e ouvir todas estas efusões maternas visto que não podia falar à amiga no mesmo assunto. Consolou-se no entanto, ao reparar (o que a sua vista perspicaz notou imediatamente) que a renda do casaco da senhora Thorpe não era tão bonita como a do seu.
- Ali vêm as minhas filhas - exclamou a senhora Thorpe, indicando três bonitas meninas que se aproximavam de braço dado. - Minha querida senhora Allen, dá-me licença que Ihas apresente? Vão ter muito prazer em conhecê-la. A mais alta é Isabel, a mais velha; não é uma linda menina? As outras duas são também muito interessantes, mas, para mim, Isabel é a mais bonita.
As meninas Thorpe foram-lhe apresentadas e Catarina Morland esquecida durante algum tempo, foi também apresentada. O seu nome pareceu chamar-lhes a atenção e, depois de se lhe dirigirem com muita delicadeza, a mais velha das irmãs disse em voz alta para as outras:
- A menina Morland parece-se tanto com o irmão!
- Mesmo o retrato dele - exclamou a mãe - e reconhecê-la-ia em toda a parte como irmã dele, repetiram todas, três ou quatro vezes. Catarina ficou surpreendida durante algum tempo; mas, mal a senhora Thorpe e as filhas começaram a contar a história do seu conhecimento com Jaime Morland, logo ela se lembrou de que o seu irmão mais velho conhecera ultimamente no mesmo colégio, um rapaz chamado Thorpe, e que tinha ido passar a última semana das férias do Natal com a família, que vivia perto de Londres. Depois de tudo se esclarecer, as meninas Thorpe disseram que teriam muito prazer em entrar em melhores relações com ela, podendo até considerar-se desde já amigas, devido à amizade que unia os irmãos.
Catarina ouviu tudo isto com prazer e respondeu-lhes com as palavras mais amáveis que lhe acudiram. E, em sinal de amizade, logo a mais velha das meninas Thorpe a convidou a ir dar uma volta com ela.
Catarina estava alegre por aumentar os seus conhecimentos em Bath e a conversar com Isabel Thorpe quase esquecera o senhor Tilney. A amizade é o melhor bálsamo para o sofrimento dum amor não correspondido. A conversa versou acerca daquilo que tornava mais íntima a convivência das duas meninas: vestidos, bailes, namoros e futilIdades.
Isabel Thorpe discutia melhor estes assuntos, porque tinha mais prática, pois era mais velha quatro anos do que Catarina. Estava em condições de poder comparar os bailes de Bath com os de Tunbridge; os costumes dali com os de Londres; de retificar a opinião da sua nova amiga acerca dos artigos de adorno; de descobrir o namoro dum cavalheiro com uma senhora, por uma simples troca de sorrisos; e de apontar uma ninharia no meio de grande multidão.
Catarina, que desconhecia inteiramente estas habilidades, estava muito espantada e a admiração que elas lhe inspiravam não contribuiria para fazer nascer entre elas uma grande familiaridade, se os modos alegres de Isabel Thorpe, não viessem atenuar um pouco a sua atitude de respeito, dando lugar a uma grande afeição. Esta amizade que aumentava cada vez mais, não se limitou a meia dúzia de voltas pela Fonte, mas, ao despedirem-se - obrigou Isabel Thorpe a ir acompanhar Catarina mesmo até à porta da casa do senhor Allen, e a separar-se dela com troca de cumprimentos muito demorados e afetuosos, depois de combinarem ver-se à noite no teatro e na manhã seguinte na igreja. Catarina subiu as escadas a correr e, da janela da sala de visitas, viu Isabel Thorpe e admirou a graça do seu andar, o seu ar distinto e a sua toilette, e abençoava o acaso que lhe deparara tal amiga.
A senhora Thorpe enviuvara e possuía poucos meios; era uma senhora boa e alegre, mas uma mãe muito condescendente. A filha mais velha era muito bonita, e as mais novas, pretendendo ser tão bonitas como ela, imitavam os seus modos e a sua maneira de vestir, e assim conseguiam não lhe ficar muito atrás.
Esta breve descrição da família Thorpe pretende evitar uma descrição minuciosa da senhora Thorpe, das suas aventuras doutros tempos e dos seus sofrimentos, o que ocuparia três ou quatro capítulos, em que sobressairia a falta de dignidade de lordes e procuradores, e seriam repetidas minuciosamente, as conversas passadas há vinte anos.
Naquela noite, no teatro, Catarina não ligava tanta importância aos sorrisos e acenos de Isabel Thorpe, embora neles perdesse bastante tempo, de forma a poder esquecer-se de procurar o senhor Tilney em todos os camarotes que conseguia lobrigar; no entanto tudo em vão. O senhor Tilney gostava tão pouco de ir ao teatro como de passear na Fonte. Não desanimou e esperou ter mais sorte no dia seguinte. Precisava de um dia bom. Sabia que um domingo de sol em Bath fazia sair todas as pessoas de casa para virem passear e dizerem umas às outras que o dia estava bonito.
Logo que acabou a missa, as famílias Thorpe e Allen juntaram-se. E depois de estarem na Fonte o tempo suficiente para verem que a multidão era tanta que mal se podia respirar - o que, toda a gente sabe acontece aos domingos em Bath - tomaram o caminho da Meia-Lua, para respirarem mais à vontade. Catarina e Isabel, de braço dado, começaram a conversar, saboreando as delícias da sua grande amizade; falaram muito e sempre bem dispostas. Porém, Catarina sentia fugir-lhe a esperança de tornar a ver o seu par. Não se encontrava em parte alguma; onde quer que procurasse, não o via, tanto nos passeios da manhã, como nas reuniões da noite; não ia aos bailes, nem aos Upper Rooms nem aos Lower Rooms, nem a bailes a rigor nem àqueles que não obrigavam a trajo de cerimónia, não passeava, não andava a cavalo, nem de carruagem; o seu nome não estava no livro da Fonte. A curiosidade não podia ir mais longe. Já não estaria em Bath. Contudo, ele não tinha dito que demoraria tão pouco tempo! Esta espécie de mistério que diz tão bem com o herói, fez que a imaginação de Catarina visse atrativos na sua pessoa e maneiras, e que aumentasse o desejo de o conhecer melhor.
Pelos Thorpe não podia informar-se, visto só terem chegado a Bath dois dias antes de se encontrarem com a senhora Allen. No entanto, era um assunto em que muito falava com a sua amiga, que a animava a continuar a pensar nele; o que não permitia portanto, que na sua fantasia se apagasse a sua imagem; Isabel tinha a certeza de que devia ser um rapaz muito simpático e que igualmente devia ter ficado tão fascinado com a sua querida Catarina, que voltaria depressa. Ela até gostava mais do rapaz por ser pastor, porque, confessava, tinha o seu fraco pela profissão, e, ao dizer isto, um suspiro lhe saía dos lábios. Talvez que Catarina tivesse feito mal em não lhe perguntar a causa daquela emoção, mas era pouco conhecedora de assuntos de amor e de deveres de amizade, para saber quanto é oportuna a ironia fina ou quando tem de se arrancar uma confidência.
A senhora Allen sentia-se agora felicíssima em Bath. Tinha encontrado uma pessoa conhecida. E mais: uma velha amiga muito querida; e, para maior sorte, ainda, viu que estas amigas não vestiam tão bem como ela. As suas palavras de todos os momentos já não eram: Quem me dera ter alguém conhecido em Bath! mas, simplesmente: Que satisfação ter encontrado a senhora Thorpe! e esforçava-se o mais que podia por estreitar as relações das duas famílias, como o faziam a sua jovem protegida e Isabel. Nunca se sentia satisfeita se não passasse a maior parte do dia a conversar com a senhora Thorpe, sem mudar no entanto, de assunto, porque esta senhora quase só falava dos filhos e a senhora Allen dos seus vestidos. A amizade de Catarina e Isabel progrediu e tão rápida quanto afetuosamente tinha começado. Em breve haviam passado por todas as fases da ternura, até já não terem nada de novo com que se mimosearem a si e aos outros. Tratavam-se pelo nome do baptismo, passeavam sempre de braço dado e prendiam uma à outra a cauda do vestido para dançarem e nunca se separavam; e, se uma manhã de chuva as privava de outros divertimentos, desafiavam o mau tempo e juntavam-se a ler romances. Sim, romances.
Não quero adoptar o costume mesquinho e imprudente, tão geral nos romancistas, de rebaixar, com uma crítica insolente, as obras literárias para que eles mesmos estão a contribuir, chamando-lhes os piores nomes com o apoio dos seus maldizentes inimigos, mal permitindo até que as próprias heroínas os leiam, porque, se por acaso fossem a pegar num dos seus romances, aborrecer-se-iam ao voltarem aquelas insípidas páginas. Se a heroína de um romance não for protegida pela heroína de outro, de quem poderá ela esperar protecção e estima? Deixemos que alguns críticos abusem à vontade dessas efusões de fantasia, e se critiquem naquele estilo tão estafado de banalidades com que os prelos agora gemem. Não nos abandonemos uns aos outros: somos um corpo doente. Embora as nossas obras tenham agradado muito mais e duma forma mais sincera do que as de qualquer agremiação literária do mundo, nenhuma foi tão censurada. Deram-nos quase tantos inimigos como leitores, devido ao orgulho, à ignorância, enquanto milhares de penas elogiam o talento daquele que pela milionésima vez resume a história de Inglaterra ou daquele que colige e publica algumas dúzias de versos de Milton, Pope e Prior juntamente com uma folha do Spetator e um capítulo de Sterne, há um propósito declarado e geral de apoucar o talento e o trabalho de um romancista, de desdenhar as obras que têm talento, graça e gosto que as recomenda. “Eu não leio romances. É raro olhar romances”. “Não julgue que está a ler menina”, costumam dizer, hipocritamente. “O que estás a ler?”, perguntam. “Oh, é um romance” - responde a menina, ao mesmo tempo com vergonha ou com fingida indiferença. “É apenas a Camila ou a Belinda”; ou, em suma, uma obra em que se revelam as maiores possibilidades de espírito, um conhecimento mais perfeito da natureza humana, os mais felizes esboços das suas variações, as mais vivas efusões de espírito e de graça, transmitidas ao mundo no mais belo estilo. Ora, se a mesma menina lesse um volume do Spetador em vez de uma obra dessas, que orgulho não teria ela em mostrar o livro, dizer o seu nome, embora seja duvidoso que uma menina de gosto se entretivesse com o assunto e estilo de qualquer passo duma obra tão volumosa, porque a maior parte dos artigos dos seus números constam de descrições de acontecimentos inverossímeis, de personagens fitícias, de conversas que já não dizem respeito aos vivos, numa linguagem por vezes tão rude que nos dá uma idéia nada lisonjeira da época que a conseguiu suportar.
A conversa seguinte, que teve lugar uma manhã, na Fonte, entre as duas amigas, que se conheciam há oito ou nove dias, servirá para pôr em evidência a sua afeição e ser um exemplo da finura, discrição, originalidade de pensamento e gosto literário que caraterizavam aquela amizade.
Combinaram encontrar-se. Isabel, que chegara cinco minutos antes logo se dirigiu à amiga nestes termos: “Minha querida, porque demoraste tanto? Há já um século que estou a tua espera.”
- Verdade? Que pena! Mas eu julgava que vinha muito a tempo. Deu mesmo agora uma hora. Ainda não estás aqui há muito, pois não?
- Oh, há já séculos! Parece-me que já estou aqui há meia hora. Mas deixemos isso e vamo-nos sentar ao fundo da sala e conversar. Tenho tanto que te contar! Primeiro tive muito receio de que chovesse esta manhã, pois, quando ia para sair, estava um céu tão carregado que parecia que ia chover. Oh que tristeza, que agonia se assim fosse. Sabes vi mesmo agora numa montra em Milsom Street um chapéu lindíssimo. Era mesmo parecido com o teu só com a diferença que tinha fitas vermelhas em vez de verdes. Quem me dera comprá-lo! Então, minha querida Catarina; o que fizeste esta manhã? Continuaste a ler o Udolfo?
- Assim que acordei comecei logo a lê-lo; cheguei ao véu negro.
- Já? Maravilhoso! Nem por tudo o que há no mundo te diria o que está por detrás do véu negro. Não estás mortinha por saber?
- Ora se estou! O que será? Mas não me digas. Por nada quero que mo digas. Eu sei, deve ser um esqueleto – o esqueleto de Laurentina. Oh, como gosto do livro! Passaria toda a minha vida a lê-lo. Podes acreditar; se não tivesse combinado vir ter contigo, não o largaria por nada deste mundo.
- Minha querida, quão agradecida te estou! Quando tiveres lido o Udolfo, havemos de ler as duas o italiano. Até já fiz uma lista de dez ou doze do mesmo género, para tu leres.
- Já? Que satisfação me dás! Quais são?
- Já te vou ler os títulos. Tenho-os escritos no meu caderno: O Castelo de Wolfenbach, Clermont, Avisos Misteriosos, Necromante da Floresta Negra, O Sino da Meia-Noite, O órfão do Reno e Os Mistérios Terríveis.
- Muito bem; mas todos são de meter medo, tens a certeza?
- Ora se tenho! Uma grande amiga minha, a menina Andrews, uma excelente menina, uma das melhores criaturas que conheço, já os leu todos. Muito gostava que a conhecesses. Havias de simpatizar com ela. Está a fazer um vestido lindíssimo não imaginas. Eu acho-a linda como um anjo; irrita-me tanto que os rapazes não olhem para ela! Farto-me de Ihes ralhar.
- Pois tu fazes isso? Tu repreende-los por não olharem para ela?
- Pois então! Não há nada que não faça por uma verdadeira amiga. Eu não costumo ficar a meio nas minhas amizades, não está no meu modo de ser. As minhas amizades são sempre muitíssimo firmes. No Inverno passado disse ao capitão Hunt, numa das nossas reuniões, que, se ele estivesse toda a noite a arreliar-me, não dançaria com ele, a não ser que fizesse com que a menina Andrews fosse a rainha da noite. Os homens pensam que é impossível existir entre nós uma amizade verdadeira. Por essa razão quero fazer-lhes ver a diferença. Por exemplo: se ouvisse alguém falar de ti com menos consideração, iria aos arames. Este não é o caso, porque tu és o género de menina que eles adoram.
- Oh, Isabel! - exclamou Catarina, corando - Como podes dizer isso?
- Sei-o muito bem. Tu tens viveza, que é precisamente o que falta à menina Andrews; isto é, ela tem um aspeto insípido. Oh, quero dizer-te, vi um rapaz olhar tão insistentemente para ti. Quer-me parecer que está apaixonado.
Catarina corou e disse mais uma vez que não. Isabel riu.
- Palavra de honra que é verdade, mas eu bem te percebo. Não te importas com a admiração de ninguém, excepto dum certo rapaz cujo nome não vem agora para aqui. Sim, não te censuro. - Pondo-se séria: - Os teus sentimentos são compreensíveis. Quando um coração está bem preso, sei que pouco ou nada ligamos à admiração dos outros. Tudo o que se não relacione com o objeto amado é tão insípido, tão sem interesse! Eu percebo bem a tua maneira de pensar.
- Mas não me queiras convencer de que penso a todo o momento no senhor Tilney. Talvez nunca mais o torne a ver.
- Não o tornas a ver? Oh, minha querida, não digas isso! Eu bem sei que te penalizaria pensar tal coisa.
- Não, não me importava. Não quero dizer que não goste dele, mas enquanto estiver a ler o Udolfo, parece que nada me fará sofrer. Oh, o terrível véu negro! Minha querida Isabel, tenho quase a certeza de que é o esqueleto de Laurentina que está por detrás.
- Tenho tanta pena de que não tivesses já lido o Udolfo! Mas parece-me que a senhora Morland é contra os romances.
- Não, não é muitas vezes lê Sir Charles Grandison, mas não lhe agradam livros modernos.
- Sir Charles Grandisonl Que livro tão horrível, não achas? Lembro-me de que a menina Andrews não chegou a ler o primeiro volume.
- Não é nada que se pareça com o Udolfo; mas acho-o muito interessante.
- Achas? Muito me admiro. Julguei que fosse insuportável. Mas, minha querida Catarina, já pensaste bem como te havias de pentear esta noite? Estou resolvida a ir arranjada exatamente como tu. Sabes, os homens às vezes reparam para essas coisas.
- Mas, não quer dizer nada, se eles repararem – disse Catarina, muito inocentemente.
- Não quer dizer nada? Por amor de Deus! É minha norma não ligar a menor importância ao que eles dizem. Muitas vezes são impertinentes ao máximo, se não lidarmos com eles com um certo espírito, e se não os conservarmos sempre a uma certa distância.
- Pois isso é verdade? Nunca observei tal coisa! Sempre me trataram com delicadeza.
- São muito fingidos! Julgam-se sempre as pessoas mais espirituosas do mundo, e as mais importantes! A propósito: já milhares de vezes tenho querido perguntar-te qual é o género de rapaz que preferes. Moreno ou louro?
- Nem sei bem. Nunca pensei a sério nisso. Talvez entre um e outro; moreno, mas não muito.
- Óptimo, Catarina. Precisamente ele. Não me esqueci da descrição que fizeste do senhor Tilney: tez morena olhos negros e cabelo bastante escuro. Os meus gostos são diferentes. Prefiro o contrário: olhos claros, e, quanto à tez, gosto mais da branca, da pálida. Não me traias, se um dia encontrares alguém das tuas relações que corresponda a esta descrição.
- Trair-te! Que queres dizer com isso?
- Nada não me atrapalhes. Parece-me que já disse mais do que devia. Ponhamos ponto final no assunto.
Catarina com certo espanto, condescendeu. Esteve algum tempo calada e ia para voltar a falar no assunto que mais lhe interessava, ou seja no esqueleto de Laurentina, quando a amiga, interrompendo-a, lhe disse:
- Por amor de Deus, saiamos daqui. Estão ali dois rapazes embirrentos que não têm feito outra coisa senão olhar para mim há mais de meia hora. Estão a fazer-me perder a linha. Vamos ver a lista dos banhistas que chegaram. Será difícil que nos sigam.
Lá se foram até ao livro. Enquanto Isabel examinava os nomes, Catarina ocupou-se a seguir a direcção que tomavam os rapazes que tanto cuidado lhe davam.
- Não vêm por aqui, pois não? Espero que não sejam tão impertinentes a ponto de nos seguirem. Diz-me, faz favor, se eles vêm. Estou resolvida a não olhar para lá.
Passados alguns momentos, Catarina, com alegria sincera, anunciou-lhe que já podia estar à vontade, porque os cavalheiros tinham acabado de sair.
- E que direcção tomaram? - perguntou Isabel, voltando-se repentinamente. - Um deles era muito simpático.
- Foram para os lados do cemitério.
- Estou satisfeitíssima por me ver livre deles. O que dizes, se formos até aos Armazéns Edgar para ver o meu chapéu novo? Disseste que querias vê-lo.
Catarina concordou imediatamente, mas disse:
- O pior é que podemos encontrar-nos com os dois rapazes.
- Oh, não penses nisso! Se formos depressa, em breve lhes passaremos à frente. Estou ansiosa por te mostrar o meu chapéu novo.
- Mas, se esperássemos alguns minutos, não haveria perigo de os encontrarmos.
- Não estou para ligar-lhes essa importância. Não tenho a menor preocupação com os homens. Isso que os estraga.
Catarina nada tinha a objetar, perante réplicas tão categóricas; por isso, e para se mostrar à altura da independência de Isabel Thorpe e da sua resolução de humilhar o outro sexo, começou a andar depressa, acompanhando a amiga, atrás dos dois rapazes.
Em meio minuto atravessaram o Jardim das Termas até chegarem em frente do Arco da União; aqui tiveram de parar. Toda a gente que conheça Bath deve recordar-se da dificuldade em atravessar Cheap Street, nesse lugar. É uma rua que embaraça, porque está infelizmente em comunicação com as estradas de Londres e Oxford; é a artéria dos principais hotéis da cidade, o que faz com que nunca passe um dia sem que as senhoras, mesmo que os seus afazeres sejam absorventes, como, por exemplo, ir a pastelarias ou a casas de modas, ou mesmo, como no caso presente, ir atrás de rapazes, não sejam detidas dum lado ou doutro, por carro, por homens a cavalo, por carroças. Desde a sua chegada a Bath, já Isabel sentira e lamentara, pelo menos três vezes por dia, este inconveniente; e agora mais uma vez tinha a confirmação da razão dos seus queixumes. Precisamente no momento em que chegavam em frente do Arco da União, viram os dois rapazes atravessarem a multidão, seguindo pelas valetas daquela interessante rua estreita. Mas elas foram obrigadas a parar, para deixar passar uma caleche guiada por um cocheiro tão perito que podia pôr em risco a sua própria vida e a do companheiro.
Que caleches detestáveis! - disse Isabel, olhando para cima. - Como me irritam!
Mas este grito de cólera, ainda que justificado, foi de curta duração, porque, ao voltar a olhar, exclamou:
- Esplêndido! Olha o senhor Morland e o meu irmão!
- Oh o Jaime! - exclamou Catarina, ao mesmo tempo.
Quando os dois jovens as viram, travaram com tal ímpeto que o cavalo empinou-se e quase caiu. O cocheiro mal teve a tempo de se pôr a salvo; os cavalheiros saíram e mandaram-no cuidar do carro.
Catarina, para quem esse encontro fora inesperado; recebeu o irmão com o mais sincero contentamento. Ele, que era bom rapaz e gostava muito da irmã, mostrou-se igualmente satisfeito tanto quanto lho permitiam os olhos vivos de Isabel Thorpe, que o desafiavam com insistência. Cumprimentou-a rapidamente, com um misto de alegria e de acanhamento, o que podia ter alertado Catarina e, se ela não estivesse muito absorvida pelos seus sentimentos, levá-la a notar que ele considerava a sua amiga tão bonita como ela própria.
João Thorpe que, entretanto, estivera a dar ordens acerca do cavalo, foi ter com elas. Catarina recebeu dele a compensação das cortesias que lhe eram devidas, porque, enquanto mal tocou na mão de Isabel, a ela fez-lhe as maiores reverências. Era um rapaz corpulento, estatura média, feio e desajeitado, que tinha receio de ser ultra-elegante, a não ser que usasse um fato de criado, ou de ser muito cavalheiresco, salvo se estivesse um pouco à vontade de mais, e insolente quando devia estar à vontade.
Tirou o relógio do bolso e perguntou:
- Quanto tempo julga, menina Morland, que levámos de Tetbury aqui?
- Não conheço o caminho.
O irmão disse-lhe que eram vinte e três milhas.
- Vinte e três milhas! - exclamou Thorpe. - Vinte e cinco, e bem medidas.
Morland protestou, alegando a autoridade de guias de estaipadeiros e de marcos. Mas o amigo não transigia; tinha um sentido natural das distâncias.
- Sei bem que devem ser vinte e cinco milhas - disse -, pelo tempo que demorámos. É meio-dia e meia hora; saímos de Tetbury quando batiam as onze; aposto com quem quiser que o meu cavalo não faz menos do que dez milhas por hora, o que prefaz precisamente vinte e cinco milhas.
- Não contaste uma hora - disse Morland -, eram dez horas quando saímos de Tetbury.
- Dez horas! Eram onze, palavra de honra! Contei-as bem. Este seu irmão, menina Morland; até me desconcerta; ora olhe para o meu cavalo: já alguma vez viu um animal tão bom corredor? (O criado tinha acabado de subir para a carruagem e pusera-a em andamento). Que bela estampa! Em três horas e meia percorreu vinte e três milhas! Olhe bem para ele e veja se é ou não verdade uma coisa dessas.
- Sim, está bem suado.
- Suado! Mas nem um bocadinho, pelo menos até chegarmos à igreja de Walcot; mas olhe para o focinho, olhe para a garupa! Veja como anda! Este cavalo não anda menos do que dez milhas por hora. Atem-lhe as patas e verão como continua a andar. O que me diz à minha caleche, menina Morland? É bonita, não acha? Parece feita na cidade. Ainda não a tenho há um mês. Foi feita para um sacerdote, um amigo meu e bom rapaz; usou-a algumas semanas, até que, creio eu, se aborreceu dela. Deu-se a coincidência de eu andar à procura de carros deste género, embora pensasse num cabriolé, mas encontrando-o, por acaso, na ponte da Madalena, quando o ano passado ia para Oxford, disse-me: Oh, Thorpe, não eras tu que querias uma coisa assim? Esta é esplêndida, mas já me aborreci dela. Oh, com mil diabos!, disse eu. Quando queres por ela? Quanto pensa que ele me pediu, menina Morland?
- Talvez não adivinhe.
- Parecida com um cabriolé; assentos, malas, estojo de espadas, guarda-lamas; lampiões com incrustações de prata, tudo completo; as ferramentas são tão boas como se fossem novas, ou melhores ainda. Pediu-me cinqüenta guinéus; fechei logo o negócio, entreguei-lhe o dinheiro e a carruagem ficou sendo desde logo minha.
- Sei tão pouco dessas coisas - disse Catarina -, que nem sei avaliar se foi barata se foi cara.
- Nem uma coisa nem outra; podia tê-la comprado por menos, mas eu não gosto de regatear, e o pobre Freeman precisava do dinheiro na ocasião.
- Isso é simpático da sua parte – disse Catarina, quase satisfeita.
- Com os diabos! Quando se pode ser útil a um amigo, detesto lamúrias.
Seguiu-se a combinação acerca do caminho a seguir pelas meninas. Ficou assente que os rapazes as acompanhariam aos Armazéns Edgar e depois iriam cumprimentar a senhora Thorpe. Jaime e Isabel iam à frente. Isabel, tão satisfeita ia com a sua sorte, tão ansiosamente desejava proporcionar um passeio agradável àquele que trazia a dupla recomendação de ser amigo do seu irmão e irmão da sua amiga, tão puros e sinceros eram os seus sentimentos que ao passar em Milsom Street, à frente dos dois rapazes enfadonhos, estava tão longe de procurar despertar-lhes a atenção que olhou para eles três vezes.
João Thorpe vinha com Catarina e, depois de alguns minutos de silêncio, voltou a falar-lhe na caleche.
- Para algumas pessoas, menina Morland, foi uma pechincha, pois logo no dia seguinte a podia ter vendido por mais dez guinéus; Jackson, de Oriel, ofereceu-me logo sessenta; o seu irmão estava comigo.
- Sim, estava - disse Morland, que ouvira - mas não dizes que o cavalo era também incluído.
- O meu cavalo! Oh, com os diabos! Não, nem por cem o venderia! Gosta duma carruagem aberta, menina Morland?
- Sim, gosto imenso, embora poucas vezes tenha andado nelas. Gosto mesmo muito.
- Muito prazer me dá qualquer dia hei-de levá-la na minha.
- Obrigada - disse Catarina, confusa, receando ser inconveniente ao aceitar tal convite. Amanhã levá-la-ei à Penha de Lansdow.
- Obrigada, mas o seu cavalo não precisará de descansar?
- Descansar! Se só fez hoje vinte e três milhas; era um contra-senso. Não há nada que mais estrague um cavalo do que o descanso; nada que os inutilize tão depressa. Não, não. Dar-lhe-ei exercício, pelo menos numa média de quatro horas por dia, enquanto cá estiver.
- Quê? - disse Catarina, muito séria. - Quarenta milhas por dia!
- Quarenta não, cinqüenta é o que tenciono. Pois, amanhã, levo-a até Lansdow; fica assente.
- Oh, isso seria esplêndido! - gritou Isabel, voltando-se - Minha querida Catarina, invejo tua sorte. É pena que não tenhas lugar para um terceiro.
- Para um terceiro! Está bem de ver que não. Não vim para Bath para andar a passear as minhas irmãs. Teria graça, não há dúvida! O Norland que ande convosco.
Isto deu lugar a uma troca de amabilidades entre Jaime e Isabel, mas Catarina não ouviu os pormenores nem as conclusões a que chegaram. A conversa do seu companheiro tinha esfriado; o entusiasmo vivo que até ali tivera resumia-se agora as observações curtas, de louvor ou desagrado, acerca das mulheres que passavam.
Catarina, depois de ouvir e concordar tanto quanto a boa educação e delicadeza duma menina o permitem e receando formular uma opinião sua, contrária à daquele homem tão obstinadamente agarrado às suas, especialmente no que dizia respeito à beleza do sexo feminino, ousou, por fim, mudar de assunto, perguntando pelo que há tanto tempo lhe não saía do pensamento.
- Já leu o Udolfo, senhor Thorpe?
- O Udolfo Por amor de Deus! Eu não, nunca leio romances; tenho mais que fazer.
Catarina, vencida, envergonhada, ia para defender a sua pergunta, mas ele impediu-a, dizendo:
- Os romances são, todos eles, compêndios de disparates e asneiras; desde o Tom Jones que ainda não apareceu nenhum decente; os outros são a coisa mais estúpida do mundo.
- Penso que havia de gostar do Udolfo, se o lesse; é muito curioso.
- Não hei-de ser eu! Se ler algum, há-de ser da Mrs. Radcliffe; os seus romances são bastante divertidos. Têm graça e vida.
- Mas o Udolfo foi escrito por Mrs. Radcliffe – disse Catarina, hesitando, com receio de o magoar.
- Foi? Ah! Sim, já me lembro; é verdade que foi. Estava a pensar em outro livro muito estúpido, escrito por aquela mulher de quem se fala tanto e que casou com um emigrante francês.
- Se não estou em erro, é a Camila.
- Sim, sim, é esse mesmo; que disparate! Tão inverossímil! Um velho a andar de balancé! Uma vez peguei no primeiro volume, passei-o pelos olhos, mas logo vi que não o era capaz de o ler; quer dizer, também logo vi do que havia de tratar, ainda antes de o ler. Assim que me disseram que ela tinha casado com um emigrante, disse logo que não conseguiria chegar ao fim.
- Nunca o li.
- Não perdeu nada, afianço-lhe; é a inverosimilhança mais absurda que pode imaginar-se; não tem mais nada do que um velho a andar de balancé e a aprender latim; palavra de honra, é este o seu único interesse.
Esta crítica, de cuja verdade Catarina não podia avaliar, serviu-lhes de assunto até casa da senhora Thorpe.
Os sentimentos do leitor criterioso e sem preconceitos de Camila mudaram em sentimentos de filho obediente e carinhoso logo que se encontraram com a senhora Thorpe, que os vira da janela.
- Então como tem passado? - disse-lhe ele dando-lhe um aperto de mão, com todo o afeto. - Onde foi desencantar esse chapéu tão esquisito que a torna parecida com uma bruxa. O Morland também veio comigo; passamos cá uns dias e já lá se nos arranja duas boas camas aí em qualquer parte.
Parece que estas palavras tinham satisfeito os desejos do coração materno, pois foram recebidas com um vivo e carinhoso afeto.
Às duas irmãs mostrou igual dose de amor fraternal, perguntando-lhe como tinham passado, e observando que estavam horrivelmente feias.
Estas maneiras não agradaram a Catarina; mas ele era amigo de Jaime e irmão de Isabel. A sua apreciação foi logo posta de parte, quando Isabel lhe afirmou, ao retirarem-se da sala, que João a julgava a menina mais encantadora do mundo e que, antes de se ir embora, a convidara para dançar com ele nessa noite. Fosse mais velha ou mais vaidosa, estes galanteios podiam ter pouco resultado; mas onde a inexperiência e a timidez se aliaram, é preciso uma firmeza de caráter excepcional para resistir à atracção de se ser considerada a menina mais encantadora do mundo e de se ser imediatamente convidada para dançar. Quando os dois irmãos, depois de terem estado duas horas com os Thorpes, foram para casa do senhor Allen, Jaime, logo que a porta se fechou atrás de si, perguntou:
- Então Catarina como achaste o meu amigo Thorpe?
Em vez de responder, como deveria, se não houvesse amizade ou lisonja no caso, dizendo não gostei nada dele, confessou imediatamente:
- Gostei muito dele; parece ser muito simpático.
- Um excelente camarada. Um pouco falador, mas julgo até ser uma qualidade que o recomenda ao sexo feminino. E a restante família, agrada-te?
- Muitíssimo, em especial Isabel.
- Muito prazer me dás com isso. Ela precisamente a menina com quem gostava de te ver acompanhar. Muitíssimo sensata, extremamente simples e amável sempre desejei que a conhecesses; parece gostar muito de ti. Referiu-se a ti nos termos mais lisonjeiros que podes imaginar. Ser apreciada por Isabel Thorpe, mesmo para ti, Catarina, é uma coisa de que muito te podes orgulhar - disse o rapaz, pegando-lhe com afeto na mão.
- E posso. Gosto a valer dela, e muita satisfação sinto por tu também gostares. Mal me falavas dela quando me escrevias, antes de vires.
- Porque pensava ver-te brevemente. Espero que estejam muitas vezes juntas, enquanto estiverem em Bath. Isabel é uma menina muito agradável, com uma inteligência superior. Toda a família a adora; é sem dúvida a favorita de todos; deve ser aqui muito admirada, não?
- Sim, creio que sim; o senhor Allen acha-a a menina mais bonita de Bath.
- Acredito que assim seja. Não conheço ninguém tão competente para a apreciar como o senhor Allen. Escusado perguntar se te sentes bem em Bath, minha querida Catarina; com uma companheira e amiga como Isabel Thorpe, será impossível o contrário. O casal Allen também deve ser todo atenções para ti.
- Sim, nunca me senti tão bem, e agora, que estás cá, ainda mais feliz me sentirei. Que bondade a tua, teres vindo de tão longe para me veres!
Jaime aceitou este tributo de gratidão e deixou que a sua consciência o aceitasse também, respondendo com verdadeira sinceridade.
- É verdade que te estimo muito, Catarina.
Chegaram a Pulteney Street, entre perguntas e informações acerca dos irmãos e irmãs, da presente situação de alguns, do desenvolvimento dos restantes e de outros assuntos de família, interrompidos por uma pequena divagação de Jaime, louvando Isabel Thorpe. Foi recebido com grande deferência pelo casal Allen: o marido convidou-o para jantar, e a senhora Allen perguntou-lhe se adivinhava o preço e computava o valor dum regalo novo e duma capa de peles.
Como tinha combinado encontrar-se nos Armazéns Edgar, e não aceitou o convite; e, mal pôde satisfazer as perguntas da senhora Allen, saiu.
Depois de aprazarem o encontro das duas famílias no Salão exagonal, Catarina ficou entregue ao fluir duma imaginação enlevada, inquieta e ansiosa sobre as páginas do Udolfo, esquecida de tudo o que fosse vestir e comer incapaz de minorar os receios da senhora Allen, por causa da demora da costura, e de dedicar um só minuto que fosse, numa hora, a pensar na sua própria felicidade, ou seja, em ter já par assegurado para aquela noite.
Apesar do Udolfo e da costureira, a família de Pulteney Street chegou a horas aos Upper Rooms. Os Thorpes e Jaime Morland tinham chegado havia já dois minutos. Isabel, sorridente e amável, veio ao encontro da amiga; como era seu costume, admirou-lhe o corte do vestido, e invejou-lhe o penteado. De braço dado, dirigiram-se para a sala de baile, cochichando uma com a outra, sempre que um pensamento lhes ocorria, e trocando apertões nos braços e sorrisos ternos.
O baile começou poucos minutos depois de se terem sentado. Jaime, comprometido há tanto tempo com a irmã, estava impaciente porque Isabel se levantasse. Porém, João tinha ido para a sala de jogo falar com um amigo, e Isabel por nada iria dançar, se a amiga não fosse também.
- Palavra de honra - disse ela -, não me levantarei sem a sua querida irmã ir também, pois, se assim não fosse, certamente não nos voltaríamos a encontrar em toda a noite.
Catarina aceitou esta delicadeza com gratidão e assim estiveram durante alguns minutos, até que Isabel, que estava voltada a falar com o Jaime, se virou para ela e lhe disse ao ouvido:
- Minha querida, estou a ver que tenho de te deixar. O teu irmão está ansioso por começar. Sei que não te importarás, se eu for dançar; creio que o João deve estar a vir e então depressa me encontrarás.
Catarina, embora ficasse um pouco surpreendida, teve a boa educação de não se opor. Jaime e Isabel levantaram-se e esta apenas teve tempo de apertar a mão a Catarina e de lhe dizer: “até à vista, meu amorzinho”, antes de desaparecer com o seu par.
As meninas Thorpe mais novas foram também dançar e Catarina ficou a mercê das senhoras Thorpe e Allen, sentada no meio das duas. Estava vexada por João Thorpe não aparecer, não só porque desejava dançar, mas também porque sabia bem que, não podendo ser conhecida a dignidade da sua situação, tinha de compartilhar da sorte de muitas outras meninas que ainda estavam sentadas, sofrendo por isso a mofa de não terem par. Ser humilhada aos olhos do mundo, ter aparência de infâmia quando o seu coração é todo pureza, as suas acções inocência, e a má conduta de outro a causa verdadeira da sua humilhação, é uma das caraterísticas próprias de uma heroína e a maneira resignada de a suportar, o que particularmente lhe dignifica o caráter.
Catarina tinha também fortaleza de alma; sofria e calava. Foi despertada deste estado de humilhação, ao fim de dez minutos, para uma sensação mais agradável, ao ver, não o senhor Thorpe, mas o senhor Tilney, a três metros de distância. Parecia dirigir-se-lhe, contudo não a viu; por isso o sorriso e o rubor que o seu aparecimento inesperado provocaram em Catarina passaram sem macular-lhe o valor heróico. Tilney estava na mesma, simpático e espirituoso, como sempre; falava entusiasmado com uma menina bem vestida e interessante que levava pelo braço e que Catarina logo supôs ser sua irmã. Assim, impensadamente, punha de lado, uma ocasião azada de o considerar perdido para sempre, julgando-o já casado. Guiada, porém, por um raciocínio simples e provável, nunca lhe tinha passado pela mente que o senhor Tilney fosse casado. Ele não se comportava nem falara como os outros homens casados com quem estava habituada a conviver; nunca se referia à esposa, apenas tinha falado de uma irmã. Por estes acontecimentos deduziu que era a irmã que ia a seu lado; por isso, em vez de se pôr amarela como a cera, a desmaiar no peito da senhora Allen, Catarina ficou perfeitamente bem disposta, só com as faces um pouco mais vermelhas do que era costume. O senhor Tilney e a companheira que continuavam a aproximar-se pouco a pouco, eram precedidos de uma senhora, amiga da senhora Thorpe.
Esta senhora parou a falar com ela, e eles como que pertencendo-lhe, igualmente pararam. Catarina olhou para o senhor Tilney, encontrou os seus olhos e imediatamente viu neles a prova de que a reconhecera. Retribuiu-a com satisfação. Henrique Tilney, aproximando-se mais, falou-lhe e à senhora Allen, por quem foi muito carinhosamente cumprimentado:
- Muito prazer em vê-lo outra vez; desconfiava que tivesse deixado Bath.
Tilney agradeceu-lhe os cuidados e explicou que tinha deixado Bath há uma semana, naquela manhã em que tivera o prazer de a ver.
- Ora muito bem. Suponho que não se arrependeu de ter vindo. Bath é a terra adequada à gente nova e até mesmo para quem o não seja. Quando o meu marido diz que está aborrecido, respondo-lhe sempre que não tem razão de se queixar, porque não há terra mais agradável; que é melhor estar aqui do que em casa, especialmente nesta época tão sensaborona do ano. Ainda lhe digo mais, que tem muita sorte, porque aproveita tratar da sua saúde.
- Oxalá, minha senhora, o senhor Allen goste da terra, uma vez que é um bem para a sua saúde.
- Muito obrigada. Não tenho dúvidas de que seja. O nosso vizinho, o Dr. Skinner, esteve aqui o Inverno passado e voltou muitíssimo melhor.
- Esse fato deve incutir-lhe muita confiança.
- Sim, não há dúvida. O Dr. Skinner e a família estiveram aqui três meses por isso sempre digo ao meu marido que não deve ter pressa de partir.
A senhora Thorpe interrompeu-os, pedindo que se apertassem um pouco mais, para a senhora Hughes e a menina Tilney se sentarem, pois tinham resolvido juntarem-se-lhes. Feito isto, de comum acordo, ficou o senhor Tilney ainda de pé à frente delas.
Depois de passarem alguns minutos, exigidos pela delicadeza, o jovem convidou Catarina para dançar. Este cumprimento, agradável como era, mortificou muito a menina. Recusando-o, exprimiu a sua tristeza de tal forma que Thorpe, que chegara um minuto antes, julgou, razoavelmente, excessiva a sua tristeza.
A maneira simples como ele lhe explicou a razão por que se demorara não a reconciliou com a sua sorte. As particularidades em que entrou, ainda de pé, acerca de cavalos e trens de um amigo com quem acabara de estar, da combinação duma troca de terriers, interessava tanto Catarina que não obstava a que ela olhasse muitas vezes para o lado onde deixara o senhor Tilney.
Da sua querida Isabel a quem tinha todo o empenho de indicar aquele cavalheiro, nada sabia. Estavam em quadrilhas diferentes: Separara-se do seu grupo e estava longe de todas as pessoas conhecidas. Mortificação após mortificação, tirou a lição de que ir para um baile já comprometida não aumenta necessariamente a dignidade e o prazer duma menina. Foi despertada destes raciocínios morais por alguém que lhe tocava no ombro. Voltando-se, viu a senhora Hughes, atrás dela, com a menina Tilney e um cavalheiro.
- Desculpe, menina Morland, esta liberdade - disse ela -, mas não consigo ver Isabel Thorpe, e a mãe afirmou-me que não se importaria de fazer companhia a esta menina.
A senhora Hughes não teria encontrado pessoa que se sentisse mais feliz por lhe ser agradável do que Catarina. As meninas foram apresentadas; Leonor Tilney exprimiu grande bondade, e Catarina Morland, com a delicadeza sincera de um caráter bondoso, declinou os cumprimentos; a senhora Hughes, satisfeita por ter assim entregado tão bem a sua jovem amiga, voltou para junto dos do seu grupo.
Leonor Tilney tinha boa figura, uma cara bonita e aspeto agradável e o seu porte, embora não tivesse a pretensa decisão e a agilidade resoluta de Isabel Thorpe, tinha mais elegância natural. As suas maneiras mostravam sensatez e bons princípios - não eram nem tímidas nem fingidamente livres. Parecia viva e atraente sem contudo pretender chamar a atenção dos rapazes que estivessem perto dela, ou alardear sentimentos exagerados de prazer estático ou de vergonha inacreditável a propósito do mais insignificante assunto. Catarina logo ficou interessada, não só por conhecê-la como também pelo parentesco que a ligava a Henrique Tilney. Desejava ardentemente familiarizar-se com ela e por isso dirigia-se-lhe sempre que pensava nalguma coisa e tinha a coragem e oportunidade para a formular em voz alta. Mas a falta constante de um ou mais destes motivos era obstáculo no caminho duma intimidade rápida, pois, impossibilitava-a de ir além das perguntas banais dum conhecimento recente isto é, informar-se se gostava de Bath, se admirava os seus edifícios e subúrbios, se desenhava, tocava ou cantava e se gostava de andar a cavalo.
Tinham acabado duas quadrilhas, quando Catarina sentiu o braço levemente apertado pela sua fiel Isabel, que muito satisfeita exclamou:
- Até que enfim que te encontrei! Minha querida já há uma hora que ando à tua procura. Que idéia foi essa de vires para este lado, se sabias que eu estava no outro? Tenho estado tão aborrecida sem ti!
- Minha querida Isabel, como é que eu podia ir contigo? Pois se nem sabia onde estavas!
- Isso mesmo disse eu ao teu irmão, mas ele não queria acreditar. Vá ver se a vê, senhor Morland - dizia-lhe eu; - mas tudo era inútil, nem se mexia. Não foi assim, senhor Morland? Os homens são todos uns preguiçosos! Fartei-me de lhe ralhar, minha querida Catarina. Se ouvisses, até te admiravas. Sabes, não estou com cerimônias com esta gente.
- Vês aquela menina com pérolas na cabeça? – segredou Catarina a amiga, afastando-se de Jaime. - a irmã do senhor Tilney.
- O quê?! Que dizes? Deixa-me olhar para ela. Que menina adorável! Nunca vi outra tão encantadora! Mas onde está o irmão, o conquistador incorrigível? Está aqui? Dize-me onde. Estou morta por vê-lo. O senhor Morland não tem licença de ouvir. Não estamos a falar de si.
- Mas a que propósito estão com tantos segredos? Que aconteceu?
- Ora aí está. Já sabia que havia de perguntar. Os homens têm uma curiosidade tão aguçada! E falam das mulheres! Não há dúvida! Contentem-se em nada saber.
- Então pensa que isso me satisfaz?
- Nunca conheci ninguém como o senhor. Que lhe importa o que estamos a dizer? Talvez estejamos a falar de si, por isso aviso-o de que não ouça. Às vezes pode não gostar.
Com esta conversa banal, que durou algum tempo, parecia que a causa principal fora completamente esquecida. Catarina, embora estivesse satisfeita por se ter posto de lado, não deixou de suspeitar o desejo impaciente de Isabel em ver o senhor Tilney. Quando a orquestra de novo começou a tocar, Jaime gostaria de voltar a dançar com o seu belo par, mas ela opôs-se-lhe.
- Já lhe disse senhor Morland, que por nada deste mundo farei tal coisa. Como pode ser tão arreliador? Imagina lá, querida Catarina, o que o teu irmão quer que eu faça! Quer que vá dançar outra vez com ele, se bem que já lhe tenha dito que é uma coisa imprópria e completamente contra as regras. Daríamos que falar, se não mudássemos de par.
- Pode estar convencida - disse Jaime - de que nestas reuniões públicas muitas vezes não se olha a isso.
- Ora, ora como pode dizer uma coisa dessas? Vocês, os homens, quando pensam fazer alguma coisa, não hesitam. Minha querida Catarina, ajuda-me a convencer o teu irmão de que é impossível. Diz-lhe que te incomodaria se me visses fazer isso; diz-lhe, sim? Ora vejam! - continuou Isabel. - Ouve o que a irmã lhe diz, e faz ouvidos de mercador. Bem, lembre-se de que a culpa não será minha, se pusermos todas as velhotas de Bath a cochichar. Por amor de Deus, querida Catarina, vem comigo e auxilia-me.
Dirigiram-se para o lugar onde antes tinham estado. João Thorpe, entretanto, desaparecera. Catarina, continuando a desejar dar ao senhor Tilney uma nova oportunidade para repetir o pedido agradável com que a tinha já lisonjeado dirigiu-se o mais depressa que pôde para onde estavam as senhoras Allen e Thorpe, esperando ainda encontrá-lo com elas. Esperança, cujo malogro considerou extremamente indesejável.
- Então, minha querida - disse a senhora Thorpe impaciente por gabar o filho - espero que o seu par a tenha divertido muito.
- Oh, muitíssimo, minha senhora!
- Muito prazer me dá. O João é encantador, não é?
- Não encontraste o senhor Tilney, minha querida? - perguntou a senhora Allen.
- Não, onde está?
- Esteve mesmo agora connosco, e disse que já se sentia tão aborrecido por nada fazer, que resolvia ir dançar. Pensei que te convidava se te encontrasse.
- Onde está ele? inquiriu Catarina, olhando à sua volta.
Ainda não tinha acabado de percorrer a sala com a vista, quando o viu convidar uma menina.
- Ah! Já arranjou par; gostava que dançasse contigo – disse a senhora Allen. Após um curto silêncio, ajuntou: - É um rapaz muito simpático.
- Lá isso é verdade, senhora Allen - respondeu a senhora Thorpe, rindo complacentemente. - Apesar de ser mãe dele, confesso que não conheço rapaz mais simpático.
Esta resposta descabida podia ser um enigma para a compreensão de muitas pessoas, mas não atrapalhou a senhora Allen, que depois de raciocinar uns segundos, disse baixinho a Catarina - Quer parecer-me que ela julgava que eu estava a falar do filho.
Catarina sentia-se desconsolada e vexada. Parecia-lhe que, em pouco tempo, tinha perdido o objeto dos seus pensamentos; e com esta convicção não pôde dar uma resposta graciosa a João Thorpe, quando ele, pouco depois, se lhe dirigiu:
- Menina Morland, se não se importa, podemos dar ainda umas voltas.
- Oh, não; agradeço-lhe muito, mas o nosso pato já acabou; além disso estou cansada e não tenciono dançar mais.
- Não? Então vamos passear e cortar na casaca dos outros. Venha comigo.
Catarina voltou a desculpar-se. Por fim foi ele sozinho criticar as irmãs. Catarina achou o resto da noite muito enfadonho. Ao chá, o senhor Tilney deixou a sua mesa para ir para a do seu par. Leonor Tilney, que pertencia também ao grupo, não se sentou a seu lado, e Jaime e Isabel andavam tão entusiasmados com a conversa, que esta só teve tempo de lhes sorrir uma vez, de lhe apertar o braço e dizer: minha querida Catarina.
A partir dos acontecimentos desta noite, a pouca sorte de Catarina aumentará, como veremos. Enquanto esteve na sala de baile, a primeira sensação que experimentou foi desagrado por todas as pessoas que estavam junto dela; depois este desagrado transformou-se em considerável mal-estar e num desejo ardente de voltar para casa. Tal desejo, ao chegarem a Pulteney Street, transformou-se numa fome devoradora, e, depois de ter comido bem, sentiu um anseio desesperado de ir para a cama; este foi o fim do seu mal. Deitou-se e logo caiu num sono profundo, que durou nove horas, do qual despertou perfeitamente restabelecida, de bom humor, com novas esperanças e novos projetos.
O primeiro desejo do seu coração foi estreitar relações com Leonor Tilney, e, para isso, a sua primeira resolução foi a de procurá-la, ao meio-dia na Fonte, que se encontra qualquer pessoa recém-chegada; ela já tivera a experiência de que aquele edifício era óptimo para descobrir a excelência feminina, estreitar relações, e especialmente adequado para conversas íntimas e confidências ilimitadas. Por isso se sentia muito satisfeita por ir encontrar outra amiga dentro daquelas paredes.
Assim traçado o plano da manhã, decidiu ler o livro depois do almoço, resolvida a ficar no mesmo local e na mesma tarefa até à uma hora.
Já por hábito, Catarina pouco se incomodava com as observações e exclamações da senhora Allen, cuja futilidade de espírito e incapacidade de raciocínio eram tais que, mesmo que não falasse muito, nunca podia estar calada: se estava sentada a trabalhar, se perdia a agulha ou partia a linha, se ouvia uma carruagem na rua, se via uma nódoa no vestido tudo comentava em voz alta, mesmo que não houvesse ninguém para responder. Ao meio-dia e meia hora, uma pancada forte fez a senhora Allen correr à janela; e quando ia para informar Catarina de que estavam à porta duas carruagens, uma com um criado, e outra com o irmão e Isabel, já João Thorpe subia as escadas a correr, dizendo:
- Cá estou, menina Morland. Há muito tempo que espera? Não pudemos vir mais cedo, porque o maldito cocheiro levou uma eternidade a consertar umas coisas, o que afinal não valeu de nada, porque se partiram novamente antes de virarmos a esquina. Como está, senhora Allen? Um baile estupendo o da noite passada, não foi? Venha depressa, menina Morland, os outros estão ansiosos por partir. Querem ir-se embora.
- O que diz? - volveu Catarina. - Para onde vão?
- Para onde vamos! Não quero crer que se tivesse esquecido da nossa combinação. Não combinamos ir passear esta manhã? Que cabecinha! Vamos a Claverton Down.
- Sim, falou-se nisso - disse Catarina, olhando para a senhora Allen, como a pedir a sua opinião. - Mas, a falar verdade, não os esperava.
- Não nos esperava! boa! Que barulho faria se eu não viesse!
O apelo silencioso que Catarina fizera à amiga não surtiu efeito, porque a senhora Allen, não tendo o hábito de transmitir qualquer opinião por olhares, não calculava que outras pessoas o fizessem. Catarina, cujo desejo de voltar a ver Leonor Tilney ainda podia ser adiado a favor dum passeio, e pensando que não seria impróprio ir com o senhor Thorpe, desde que Isabel ia também com Jaime, foi obrigada a falar mais claramente:
- Que diz, senhora Allen? Pode dispensar-me por uma hora ou duas?
- Faz como entenderes, minha querida - replicou a senhora Allen, com a mais tranqüila indiferença.
Catarina seguiu o conselho e correu a vestir-se. Passados poucos minutos voltou, mal tendo dado tempo a que os outros dois dissessem algumas frases em seu louvor, depois de Thorpe ter chamado a atenção da senhora Allen para a sua bela caleche. Despediram-se e apressaram-se a descer a escada.
- Oh, meu amor! - exclamou Isabel, a quem o dever de amizade obrigava a falar, antes de entrarem para a carruagem. - Estiveste pelo menos três horas a arranjar-te; julguei até que estivesses doente. Que baile maravilhoso o de ontem! Tenho tanta coisa para te contar, mas anda, entra depressa, porque estou mortinha por partir.
Catarina obedeceu e retirou-se, mas a tempo de ouvir a amiga dizer alto para Jaime: "Que menina tão amorosa! Gosto imenso dela."
- Não tenha medo, menina Morland - disse Thorpe, quando lhe dava a mão para subir -, se o cavalo se espantar ou começar a andar. É provável que dê uma ou duas quedas e demore um segundo a pôr-se outra vez de pé, mas depressa conhecerá o dono. É muito vivo, espantadiço, mas não tem manias.
Catarina não achava a descrição muito convidativa, mas era jovem demais para confessar que tinha medo e já muito tarde para recusar. Assim resignada com o destino e confiando que o cavalo conheceria o dono, que disso tanto se gabava, sentou-se calmamente e viu que Thorpe se sentava a seu lado. Quando tudo ficou em ordem, Thorpe, em voz imperiosa, ordenou ao criado que segurava o cavalo, para que o largasse. O carro arranca da maneira mais suave que se pode imaginar, sem tropeções ou quedas, ou qualquer outra coisa parecida. Catarina, satisfeita por ver que tudo correra bem, revelou a sua alegria com surpresa agradecida. O companheiro em breve lhe explicou o caso, afirmando que isso se devia à sua perícia em segurar as rédeas, ao critério seguro e à destreza com que dirigira o chicote. Catarina, embora se admirasse de que, com tão perfeito domínio do cavalo, ele julgasse necessário tê-la afligido com a narração das manias do animal, comprazia-se por estar ao cuidado dum cocheiro tão experimentado. Notando que o cavalo continuava na mesma, sem mostrar a mais leve inclinação para qualquer viveza desagradável, e considerando que neste passo cadenciado não fariam mais de dez milhas por hora, o que não seria excessivo, entregou-se com plena convicção de segurança, ao gozo saudável do ar e do exercício de um belo dia de Fevereiro.
A um curto diálogo seguiram-se alguns minutos de silêncio. Thorpe interrompeu-o, abruptamente, dizendo:
- O velho Allen é rico como um judeu não é?
Catarina não o percebeu. Ele repetiu a pergunta, acrescentando:
- O velho Allen, o sujeito com quem está.
- Ah, quer dizer o senhor Allen! Sim, creio que é muito rico.
- Não tem filhos, pois não?
- Não, não tem nenhum.
- Um bom negócio para os parentes mais próximos. É seu padrinho, não é?
- Meu padrinho! Que idéia!
- Mas está muitas vezes com eles?
- Sim, estou.
- Isso mesmo, era isso o que eu queria dizer. Parece ser um bom camarada e, se não estou em erro, devia ter sido um bon viveur. Divertiu-se bem no seu tempo; está sempre pronto para tudo, a gota não o impede. Bebe bem, não?
- Bebe bem! Não. Como pode pensar numa coisa dessas? É um homem muito sóbrio e não julgue que a noite passada estava ébrio.
- Oh, valha-me Deus! As mulheres pensam sempre que os homens estão ébrios. Porque é que pensam que os homens se transtornam bebendo? Estou persuadido de que se toda a gente bebesse bem, todos os dias, não haveria metade das desordens do mundo. Seria excelente para todos.
- Não me parece.
- Oh, por quem é! Seria a salvação de milhares de criaturas. Neste país não se consome a centésima parte do vinho que devia consumir-se. O nosso clima de nevoeiros exige auxílio.
- Já ouvi dizer que em Oxford se bebe muito vinho.
- Em Oxford! Não se bebe lá nada, asseguro-lhe. Ninguém bebe. Raro encontrar-se um homem que vá além de quatro quartilhos e meio. Agora, por exemplo, a última reunião no meu quarto foi uma coisa que deu que falar. Bebemos, em média, cinco quartilhos e meio por cabeça. Foi considerada uma excepção. O meu é coisa fina, claro. Será difícil encontrar outro igual em Oxford. Por isso bebemos tanto. Isto será suficiente para lhe dar uma idéia do que normalmente por lá se bebe.
- Sim, concordo - disse Catarina, com segundo sentido -, isto é, bebem mais do que pensava. Contudo, estou certa de que Jaime não bebe tanto.
Esta declaração provocou uma resposta atrapalhada, impossível de se compreender, à excepção de exclamações que quase chegavam a ser juras. Catarina, quando ela acabou, ficou absolutamente convencida de que bebiam muito em Oxford e satisfeita com a sobriedade do irmão. Depois a conversa de Thorpe dirigiu-se para os méritos da sua caleche, chamando a atenção de Catarina para a destreza e elegância com que o cavalo andava, para o ritmo do passo, para a cadência dos saltos que punham a carruagem em andamento. Ela seguiu a conversa tanto quanto lhe foi possível; ficar-lhe atrás ou ir mais além nos seus louvores, era impossível. Os conhecimentos dele, a ignorância dela, a rapidez com que ele falava e a timidez que ela sentia, tudo a desgostava. Nada acrescentava em seu abono, apenas repetia o que ele dizia ao acaso. Por fim ficou assente, sem a menor discussão, que a equipagem era a mais completa, a melhor no género que havia em Inglaterra; a caleche, a mais bonita; o cavalo, o melhor corredor; e ele o melhor cocheiro.
- Senhor Thorpe, a caleche do Jaime não quebra, pois não? - aventurou-se Catarina a dizer, considerando já o assunto posto de parte e querendo mudar de conversa.
- Quebrar? Credo! Porventura já viu coisa mais fragilzinha? Não tem nem um bocadinho de ferro. As rodas há já dez anos pelo menos que andam em serviço, e quanto ao resto... Até apostava que só com um dedo a desfazia. A coisa mais fraquinha que tenho visto. Nós, graças a Deus, sempre temos outra bem melhor. Apostava cinqüenta mil libras em como não andaria nela nem duas milhas.
- Oh, meu Deus - gritou Catarina, aflitíssima -, voltemos já para trás! Ainda lhes há-de acontecer algum desastre. Vamos para casa, senhor Thorpe; pare, vá avisar o meu irmão do perigo que corre.
- Perigo? Qual perigo? Só dariam um trambolhão, se partisse. Além disso há muita lama e a queda não os magoaria. Mas, cos diabos, se a souberem guiar, é bastante segura. Uma coisa daquelas dura bem vinte anos sem se estragar, em boas mãos. Ora Deus nos valha! Apostava cinco libras em como era capaz de ir e vir a Iorque sem lhe perder um parafuso.
Catarina ouvia espantada. Não sabia como conciliar estas duas opiniões tão diferentes, porque não fora educada a perceber os excessos de quem tem muito palavreado, nem a reconhecer as mil afirmações infundadas e as falsidades imprudentes a que um excesso de vaidade conduz. A sua família era de pessoas francas, que raras vezes se preocupavam em ser engraçadas: o pai não ia além dum trocadilho e a mãe aventurava um ou outro provérbio. Não tinham o hábito de dizer mentiras para se engrandecerem ou afirmarem uma coisa que logo a seguir contradissessem.
Durante muito tempo refletiu no assunto com bastante perplexidade e, mais de uma vez, esteve para pedir ao senhor Thorpe que lhe esclarecesse aquele seu modo de ver. Reprimiu-se porque lhe pareceu que não seria capaz de dar explicações mais claras, de tornar as coisas mais compreensíveis, ele que anteriormente as apresentara com tanta ambigüidade. A acrescentar a isto pensou que o irmão e a amiga não correriam realmente um perigo tão grande que Jaime não pudesse remediar; concluiu, por fim, que ele sabia bem que a carruagem era segura e ela, portanto, não precisava de se afligir mais.
Thorpe, porém, já se esquecera do assunto. O resto da conversa com ela, ou melhor, consigo próprio, começou e acabou acerca da sua pessoa e de coisas que lhe diziam respeito. Contou-lhe que comprara cavalos por uma ninharia e os vendera por somas espantosas; que nas corridas de cavalos a sua aposta era sempre infalível; que em caçadas era ele quem matava mais (mesmo sem ter muita sorte). Descreveu-lhe algumas caçadas famosas com os seus perdigueiros, em que o seu cálculo e habilidade na direcção dos cães tinha suprido os erros dos caçadores mais experimentados; falou-lhe do arrojo da sua arte de montar, que por vezes tinha atrapalhado os outros (embora nunca tivesse tido desastres), o que o levava a concluir que podia ter feito quebrar a cabeça a muitos.
Catarina, como estava pouco habituada a julgar os outros sem auxílio alheio e era tímida nas suas opiniões sobre o que os homens devem ser, não podia deixar de duvidar (enquanto suportava as efusões da sua vaidade ilimitada) de que ele fosse na verdade um rapaz simpático. Esta suspeita era ousada, porque se tratava do irmão de Isabel e além disso Jaime dissera-lhe que as suas maneiras agradavam a todas as meninas. Apesar disso invadiu-a tal enfado pela companhia de uma hora que, ao chegarem a Pulteney Street resolveu, ainda que delicadamente resistir a tanta autoridade e a desconfiar dos seus poderes de agradar a toda a gente.
Quando chegaram à porta da casa da senhora Allen, o espanto de Isabel mal se pode exprimir, ao notar que já era tão tarde: "Já passa das três! É inconcebível, inacreditável, impossível!" Não queria crer no seu relógio nem no do irmão nem do criado: nenhuma razão a convencia, até que Morland tirou o relógio do bolso e confirmou o fato. Duvidar agora, um momento mais, seria igualmente inconcebível, inacreditável e impossível. Agora só protestava, dizendo que era impossível que duas horas e meia se tivessem passado tão depressa, até que Catarina pôs termo à questão afirmando que assim fora. Catarina era incapaz de dizer uma mentira, nem mesmo que fosse para agradar a Isabel. Esta foi poupada ao desgosto de ouvir a negativa da amiga, porque não esperou pela resposta.
Mil pensamentos a absorviam por completo; a sua tristeza tornou-se insuportável ao ver que tinha de ir imediatamente para casa. Já há tanto tempo que não arranjava um momento para conversar com a sua querida Catarina! Embora sem muitas coisas que contar-lhe, parecia que nunca mais teriam ocasião de estar juntas; por isso, sorrindo tristemente, com um ar de desânimo fingido, despediu-se da amiga. Catarina foi para casa e a senhora Allen, que há pouco regressara dos seus afazeres fúteis da manhã, ao avistá-la, dirigiu-se-lhe nos seguintes termos:
- Então já vieste, minha querida? (uma verdade para ela bem evidente, sem motivos para controvérsia). Então o passeio foi bom?
- Foi sim, obrigada. Não podíamos ter melhor dia.
- A senhora Thorpe também mo disse; ficou muito satisfeita por terem ido todos.
- Então viu a senhora Thorpe?
- Vi. Logo que saíste fui para a Fonte e encontrei-a lá. Conversámos bastante. Disse-me que hoje no mercado era muito difícil arranjar carne, não havia quase nenhuma.
- Viu mais alguém?
- Vi. Resolvemos dar uma volta pela Meia-Lua e encontrámos a senhora Hughes e os irmãos Tilneys.
- Encontraram, a sério? Falaram com a senhora?
- Pois. Andámos a passear todos quase meia hora na Meia-Lua. Parecem pessoas simpáticas. A menina Tilney trazia um vestido de musselina estampada muito bonito, e parece-me, pelo que vejo, que ela veste muito elegantemente. A senhora Hughes falou-me muito da família.
- O que lhe disse?
- Oh, muita coisa; mal tocou noutro assunto.
- Disse-lhe de que região de Gloucestershire eram?
- Sim, mas já nem me lembro. São de boa gente e muito ricos. A senhora Tilney pertencia à família Drummond. Ela e a senhora Hughes foram companheiras de colégio. A menina Drummond tinha uma grande fortuna. Quando casou, o pai deu-lhe vinte mil libras, e quinhentas para o enxoval. A senhora Hughes viu-o quando veio do armazém.
- O senhor e a senhora Tilney estão em Bath?
- Creio que sim, mas não tenho a certeza. Quer dizer, se não estou em erro, parece-me que já morreu pelo menos a mãe; sim, a senhora Tilney já morreu, porque a senhora Hughes disse-me que o senhor Drummond tinha dado um lindo colar de pérolas à filha no dia do casamento, que a menina Tilney usa agora, porque lhe pertenceu por morte da mãe.
- O senhor Tilney, o meu par, é o único filho?
- Não te posso dizer ao certo, minha querida, mas parece-me que sim. Pelo menos é um rapaz muito simpático, como disse a senhora Hughes, e muito educado.
Catarina não perguntou mais nada. Ouvira o suficiente para perceber que a senhora Allen não possuía mais informações concretas para lhe dar e que fora bem pouca sorte ter perdido tão bela ocasião de se encontrar com os irmãos Tilneys.
Adivinhasse ela tal circunstância, e nada a teria induzido a sair com os outros. Enfim, como tal não aconteceu, só tinha de lamentar a sua pouca sorte, e pensar e repensar no que perdera, até que se lhe tornou evidente que o passeio afinal não tinha sido nada agradável e que João Thorpe era muito antipático.
As famílias Allen, Thorpe e Morland encontraram-se à noite no teatro. Catarina e Isabel ficaram sentadas uma ao lado da outra e tiveram então ocasião de falar. Isabel contou algumas das muitas centenas de coisas que guardara para lhe dizer, durante o incomensurável espaço de tempo que as separara.
- Oh, até que enfim, querida Catarina, te encontro! - foi o cumprimento de Isabel ao entrar no camarote de Catarina e ao sentar-se a seu lado. - Agora, senhor Morland, nem mais uma palavra para si, durante toda a noite; fica já prevenido portanto. Minha queridinha, como passaste este tempo todo? Mas nem preciso de to perguntar; estás esplêndida. Arranjaste um penteado divinal, como nunca te vi. Tu, minha mazinha, queres atrair toda a gente? Acredita, o meu irmão está já apaixonado por ti, e quanto ao senhor Tilney... Mas isso é uma coisa assente; nem mesmo a tua modéstia pode duvidar do seu amor; o ter voltado para Bath mostra-o bem. Oh, o que eu não daria para o ver! Estou em brasas. A minha mãe disse-me que é o rapaz mais simpático do mundo. Sabes, ela viu-o esta manhã, tens de apresentar-mo. Está cá? Olha lá, por amor de Deus! Afianço-te que morro, se o não vir.
- Não - disse Catarina -, não está; não o vejo em parte alguma.
- Oh, que pena! Nunca mais o hei-de conhecer? Gostas do meu vestido? Parece-me que não está mal; as mangas são idéia minha. Sabes? Estou imensamente farta de Bath. O teu irmão e eu concordámos, esta manhã, que embora se passem bem algumas semanas, não poderíamos por nada deste mundo viver aqui. Descobrimos logo que os nossos gostos são absolutamente iguais, pois preferimos o campo a qualquer outro lugar; na verdade as nossas opiniões são exatamente as mesmas, até chega a ser cómico! Não há um só ponto em que discordemos. Não queria que estivesses junto de nós; és tão perspicaz que estou convencida de que havias de dizer algumas das tuas.
- Oh, por amor de Deus!
- Oh, sim, sim; conheço-te melhor do que tu me conheces. Havias de dizer-nos que tínhamos nascido um para o outro, ou qualquer outra coisa no género, o que me atrapalharia deveras; as minhas faces ficariam vermelhas como as tuas rosas; não queria por nada deste mundo, que estivesses ao meu lado.
- Estás a ser injusta, nunca faria tal observação, credo! E o que é mais, nunca me passaria tal coisa pela mente.
Isabel riu desconsolada e falou o resto da noite com Jaime. O propósito de Catarina, de tentar encontrar-se com Leonor Tilney, dominou-a toda a noite. Até à hora habitual de ir para a Fonte, esteve sempre com receio de que ocorresse qualquer transtorno. Mas nada aconteceu. Não apareceram visitas que a demorassem e os três saíram a horas para a Fonte, lugar onde se passam os acontecimentos e as conversas habituais.
O senhor Allen depois de beber o seu copo de água, juntou-se a alguns cavalheiros para discutir os acontecimentos políticos do dia e compará-los com as notícias dos jornais. As senhoras andavam juntas a passear, reparando em todas as caras novas, e em quase todos os chapéus. A parte feminina da família Thorpe, acompanhada por Jaime Morland, apareceu entre a multidão, em menos de um quarto de hora. Catarina logo tomou lugar junto da amiga. Jaime, que andava agora sempre a seu lado, aí se conservou. Separaram-se os três dos restantes e andaram assim a passear algum tempo, até que Catarina começou a duvidar do êxito duma situação, que a restringia ao irmão e à amiga que não lhe ligavam importância, sempre ocupados com qualquer discussão sentimental ou disputa animada. Falavam tanto em surdina e riam com tanta animação, que mesmo quando Catarina era reclamada por qualquer dos dois a dar o seu parecer, nunca podia dar nenhum, porque não ouvira qualquer palavra. Contudo, por fim, foi obrigada a desligar-se da amiga, justificada pela necessidade de falar com Leonor Tilney, que acabava de entrar com a senhora Hughes. Juntou-se-lhes imediatamente, com o propósito firme de se relacionar com ela, coisa para que não teria coragem, se não tivesse sofrido o desgosto do dia anterior.
Leonor Tilney cumprimentou-a com grande amabilidade. Retribuiu os seus cumprimentos com igual gentileza, ficando ambas a conversar na sala. Possivelmente, nenhuma delas fez qualquer observação ou usou qualquer expressão que não tivesse sido já dita milhares de vezes, debaixo daquele teto, durante as épocas balneares de Bath. No entanto, o fato de terem falado com simplicidade e franqueza, sem vaidades pessoais, podia ser considerado qualquer coisa de invulgar.
- Que bem que o seu irmão dança - exclamou a ingênua Catarina, quase no fim da conversa, o que surpreendeu e divertiu a sua companheira.
- Henrique! - replicou ela, rindo. - Sim, dança muito bem.
- Ele devia ter achado ridículo que eu lhe dissesse estar comprometida, naquela noite do baile, e ver-me sentada. Mas era verdade, estava comprometida com o senhor Thorpe.
Leonor Tilney limitou-se a baixar a cabeça.
- Não calcula como me admirei - continuou Catarina, depois de um momento de silêncio -, por voltar a vê-lo. Estava tão convencida de que já se tivesse ido embora de vez.
- Quando Henrique teve o prazer de a encontrar, estava só por uns dias em Bath; vinha arranjar-nos casa.
- Tal coisa nunca me passou pela idéia; é claro, não o vendo mais, supus que já não voltasse. A menina que dançou com ele, na segunda-feira, não era uma tal menina Smith?
- Era uma menina conhecida da senhora Hughes.
- Ela devia estar muito satisfeita por dançar. Acha-a bonita?
- Não muito.
- Ela nunca vem passear à Fonte, pois não?
- Vem algumas vezes; hoje é que foi dar um passeio a cavalo com o pai.
A senhora Hughes aproximou-se delas, e perguntou a Leonor Tilney se queria ir-se embora.
- Espero voltar a vê-la em breve - disse Catarina. – Vai amanhã ao baile, ao cotilon?
- Certamente, iremos.
- Terei muito prazer em vê-la; nós lá estaremos todos.
O seu gesto de delicadeza foi retribuído, como era natural. Separaram-se. Leonor Tilney ficou a conhecer alguma coisa sobre os pensamentos da sua nova conhecida e Catarina sem a menor consciência de os ter revelado.
Dirigiu-se para casa muito satisfeita.
A manhã decorreu às mil maravilhas. Agora punha todas as suas esperanças na noite do dia seguinte. Andava já a pensar que vestido havia de levar e como se havia de pentear. Catarina sabia bem que não se devia ser vaidosa de mais; a tia tinha-lhe pregado uma lição de moral, no Natal passado, a esse respeito. Contudo, esteve sem poder dormir durante dez minutos, na quarta-feira à noite; a pensar se devia levar o vestido de seda estampada ou o de musselina bordada. Via bem que não tinha tempo, senão teria mandado fazer outro. Seria grande asneira, embora muita gente a fizesse. Só o irmão a poderia aconselhar bem a esse respeito, pois só eles sabem a pouca importância que os homens ligam aos vestidos novos. Que desgostosas ficariam algumas senhoras se soubessem como os homens ficam insensíveis perante coisas caras e novas! Que arrelia verificar que eles não se importam saber se o vestido é de musselina estampada ou bordada; se é de cambraia ou de cassa! A mulher enfeita-se só para sua satisfação. Nenhuma mulher gostará mais dela, nem nenhum homem a admirará mais por isso. Andar limpa e na moda é o que eles mais apreciam. Andar mal vestida é o que as mulheres mais gostam de ver nas outras.
A Catarina, porém, não lhe passava isto pela idéia. Quando quinta-feira, à noite, entrou na sala de baile, experimentou sensações bem diferentes das que sentira quando lá estivera na segunda-feira. Então estava satisfeitíssima por Thorpe a ter convidado para dançar; agora o que queria era fugir-lhe, com medo , de que a convidasse novamente. Porque, embora não ousasse esperar que o senhor Tilney a convidasse outra vez, desejava-o tanto, que intimamente estava convencida de que assim aconteceria. Todas as meninas devem compreender a nossa heroína neste momento crítico, pois é natural que já tenham experimentado as mesmas aflições. Todas devem ter tido alguém que desejam evitar; hão-de ter desejado ser alvo de atenções daquele a quem tanto gostariam de agradar.
Logo que os Thorpes chegaram, começaram as aflições de Catarina. Sobressaltava-se quando via que João Thorpe se dirigia para onde ela estava. Escondia-se quando podia, e, quando ele lhe falava, fingia que não o via.
Acabaram os cotilons, começaram as danças regionais, e os Tilney sem aparecerem.
- Não te assustes, minha querida Catarina - dizia-lhe Isabel -, eu vou dançar outra vez com o teu irmão. Isto não é nada bonito. Eu bem lhe digo que se deve envergonhar. Não nos percas de vista e, logo que o João venha, ide ter connosco.
Catarina não teve tempo nem disposição para responder. Os outros foram-se embora e ela viu aparecer João Thorpe. Julgou-se perdida. Para que ele não pensasse que o esperava, fixou os olhos no leque. E, julgando-se tola por pensar que ia encontrar os Tilneys no meio de tanta gente, começava a censurar-se a si mesma, quando o próprio senhor Tilney se lhe dirigiu e a convidou para dançar. É bem fácil imaginar como os seus olhos brilharam ao dizer-lhe que sim, e como o seu coração batia aceleradamente quando ele a conduziu de novo ao seu lugar. Ver-se livre de João e ser convidada pelo senhor Tilney para dançar! Parecia-lhe que não havia no mundo maior felicidade.
Mal tinham conseguido arranjar um lugar, logo João Thorpe, que estava mesmo atrás dela, lhe disse:
- Olá, menina Catarina! Que significa isto? Eu julgava que era o meu par desta noite.
- Como podia supor uma coisa dessas, se não me convidou?
- Eu convidei-a logo que vim, e ia convidá-la outra vez, mas quando cheguei já tinha desaparecido. É uma partida muito mal feita! Vim só para ter o prazer de dançar consigo, e pensava que desde segunda-feira era meu par. Já me lembro; pedi-lho quando estava no gabinete, à espera da sua capa. Tenho andado a dizer a toda a gente conhecida que ia dançar com a menina mais bonita que está aqui, e agora, quando a virem dançar com outro, vão arreliar-me e fazer troça de mim.
- Esteja descansado. Ninguém me reconhecerá como a pessoa que lhes descreveu.
- Se assim fosse, punha-os fora da sala a pontapés, por estúpidos. Quem é esse rapaz?
Catarina satisfez-lhe a curiosidade.
- Tilney! - repetiu ele. - Não conheço. Tem boa figura e boas maneiras. Não precisará de comprar um cavalo? Um amigo meu, o Sam Fletcher, tem um bom para vender. É um bom cavalo de trem, e vendo-o por quarenta guinéus. Muito barato. Eu queria comprá-lo, pois costumo comprar sempre um bom cavalo quando se me oferece ocasião, mas não posso, porque não serve para o trabalho do campo. Daria todo o meu dinheiro por um bom cavalo para caça. Agora tenho três, como nunca se viram melhores. Não os vendia nem que me dessem oitocentos guinéus por eles. Fletcher e eu tencionamos alugar uma casa em Leicestershire, na próxima época. Está-se muito mal numa pensão.
Foi esta a última frase com que maçou Catarina. Uma onda de gente arrastou-o e fê-lo desaparecer.
O senhor Tilney aproximou-se e disse:
- Aquele cavalheiro esgotava-me a paciência se tivesse estado consigo mais um minuto. Não tem o direito de me desviar do meu par. Fizemos um contrato, e portanto temos obrigação de nos mostrarmos agradáveis só um para o outro, esta noite. Nenhum de nós pode dispensar excessivas atenções a terceira pessoa, sem prejudicar os direitos do outro. Considero uma dança regional uma imagem do casamento. Fidelidade e benevolência são os deveres principais, tanto no casamento como na dança. E os que não querem dançar ou casar-se não têm nada que se vir meter com os pares ou com as esposas dos outros.
- Acho que são coisas tão diferentes...
- Que até julga que se não podem comparar?
- E não. Os que casam, nunca se separam, e vão os dois viver para a mesma casa. Os que dançam, estão ao pé um do outro não mais de meia hora.
- Então são essas as suas opiniões acerca do casamento e da dança! Vistas por esse lado, não têm realmente grande semelhança. Porém posso provar-lhe que a semelhança existe. Não pode negar que em ambos os casos: primeiro, o homem é que escolhe e a mulher tem só o direito de recusar; segundo, é um contrato entre homem e mulher, realizado para vantagem de ambos, e, uma vez realizado, pertencem exclusivamente um ao outro até que o contrato se anule; terceiro, é dever de ambos esforçarem-se por não terem motivos de queixa um do outro, nem estarem a reparar na beleza dos vizinhos, nem pensarem que teriam sido mais felizes com outro. Concorda que tudo isto é assim?
- Concordo, mas, mesmo assim; acho que as duas coisas são muito diferentes. Eu não sou capaz de ver nelas a mesma configuração nem admitir que tenham os mesmos deveres.
- Claro que há algumas diferenças. No casamento, o homem tem obrigação de prover ao sustento da mulher, e a mulher de contribuir para lhe tornar o lar agradável. Ele tem de ganhar a vida, e ela tem de sorrir. Na dança é o contrário: ele é que tem de se tornar agradável e ela dá o leque e o perfume. É isto, penso eu, o que faz com que as duas coisas lhe pareçam tão diferentes.
- Ainda não pensei nisso.
- Então não percebo. Há porém uma coisa que observo. Essa sua maneira de ver causa-me apreensões. Não concorda que os deveres são semelhantes. Portanto, tenho de concluir que as suas idéias acerca da dança não são tão rígidas como o seu par desejaria. Não terei razão para recear que, se esse cavalheiro que esteve a falar consigo voltasse agora, ou outro qualquer se lembrasse de vir ter consigo, nada a impediria de conversar com ele o tempo que lhe apetecesse?
- O senhor Thorpe é um amigo tão íntimo do meu irmão, que, se ele vier falar comigo, tenho de lhe prestar atenção. Quanto aos outros, não tenho receio, pois parece-me que não chego a conhecer aqui três rapazes.
- É essa então a minha única segurança? Pobre de mim! Pobre de mim!
- Pelo contrário, penso até que não pode ser melhor; porque, desde que não conheço mais ninguém na sala, é-me impossível falar com outro; além disso, também não me apetece.
- Agora é que me deu uma grande prova de segurança; agora já tenho coragem de continuar a falar. Acha Bath tão agradável como quando há tempos lho perguntei?
- Sim, acho; até mais ainda!
- Mais! Tome cuidado, porque se esquecerá de se aborrecer na devida altura. No fim de seis semanas é que isso deve acontecer.
- Julgo que não me aborreceria nem que tivesse de estar aqui seis meses.
- Bath, comparado com Londres, tem pouco movimento. Toda a gente o nota. Por seis semanas, concordo, que Bath seja suficientemente divertido, mas desde que exceda esse tempo é o lugar mais enfadonho que há no mundo. Ouvirá dizer o mesmo às pessoas que vêm para aqui todos os anos, que prolongam as seis semanas até dez ou doze e se vão embora por não poderem suportar estar aqui mais tempo.
- Sim, mas os outros fazem as suas apreciações no que lhes diz respeito, assim como aqueles que vão para Londres e que não dão valor a Bath. Mas eu, que vivo numa aldeia, no campo, não encontro grande semelhança entre esta terra e a minha, porque aqui há grande variedade de divertimentos, muitas coisas para se verem e fazerem durante o dia, o que lá não tenho.
- Já vejo que não gosta do campo.
- Não, gosto até muito. Sempre lá tenho vivido e sentido bem. Mas é claro que há muito mais monotonia na vida de campo do que na vida de Bath. Os dias no campo são invariavelmente iguais.
- Mas apesar disso, no campo passa-se o tempo em coisas mais úteis.
- O quê?
- Então não se passa?
- Não creio que haja muita diferença.
- Aqui anda todo o dia atrás de divertimentos.
- O mesmo faço em casa, com a diferença de que não há tantos. Aqui passeio e lá também, mas aqui vejo muito mais gente em todas as ruas, e lá só saio para ir a casa da senhora Allen.
O senhor Tilney estava muito divertido.
- Só sai para ir visitar a senhora Allen! - repetiu ele. - Que quadro de pobreza inteletual! Contudo, quando tornar a cair nesse abismo, já terá mais alguma coisa para dizer. Poderá falar de Bath e de tudo o que aqui fez.
- É claro que posso. Nunca mais me faltará assunto para conversar com a senhora Allen ou com qualquer outra pessoa. Quer-me parecer que, quando estiver em casa, não hei-de tratar de outra coisa. Gosto tanto de Bath! Se aqui estivessem o papá e a mamã e os meus outros irmãos, sentir-me-ia felicíssima. A vinda do Jaime (o meu irmão mais velho) nas condições em que se deu, pois a família com quem nos tínhamos relacionado já era sua conhecida, foi uma coisa maravilhosa. Oh! Quem é que se pode aborrecer de estar em Bath?
- Não aqueles que tenham sentimentos tão alegres como os da menina. Mas os papás, as mamãs, os irmãos, os amigos, já muitos se foram embora, bem como a maior parte dos freqüentadores de Bath. E o verdadeiro prazer dos bailes, dos teatros e dos passeios de todos os dias, terminou para eles.
Acabou aqui a conversa. A música, que começava agora, não deixava prender a atenção a outras coisas. Mal chegaram ao fundo da sala, Catarina notou que um cavalheiro, que estava entre os mirones, logo atrás de Tilney, olhava com insistência para ela. Era um cavalheiro elegante, de aspeto imponente, já de meia idade, mas bem conservado. Ao olhar para ele, viu que falou familiarmente ao senhor Tilney.
Atrapalhada por ele a ter notado, e corando pelo receio de que lhe tivesse encontrado algum defeito, voltou a cabeça. Enquanto ela fazia isto, o cavalheiro desapareceu e o seu par aproximou-se e disse:
- Veja se adivinha o que me perguntaram agora. Aquele cavalheiro sabe o seu nome, e, portanto também tem o direito de saber o dele. O general Tilney, o meu pai.
A resposta de Catarina foi só: "Oh!" Mas foi um oh que exprimiu tudo: atenção às suas palavras e uma confiança absoluta na sua veracidade. Com um verdadeiro interesse e uma admiração profunda, seguia agora com a vista o general, que atravessava a multidão. "Que família tão distinta!" foi a sua secreta apreciação.
Cavaqueando o resto da noite com Leonor Tilney, nova fonte de felicidade se abriu para ela. Catarina, desde que viera para Bath, não dera ainda um passeio pelo campo. A menina Tilney, para quem todos os arrabaldes mais conhecidos eram familiares, falou deles tão entusiasmada, que Catarina ficou ansiosa por visitá-los. E, ao declarar que não tinha ninguém que a acompanhasse, o irmão e a irmã ofereceram-lhe a sua companhia, quando por acaso combinassem um passeio.
- Terei muito prazer em ir! - disse ela - Não adiemos mais, vamos já amanhã.
Ficou resolvido, pois, o passeio para o dia seguinte, só com a condição, posta por Leonor Tilney, de que o mesmo se não realizaria se chovesse, o que não aconteceria, segundo a esperança de Catarina. Ao meio-dia iriam buscá-la a Pulteney Street, e, dizendo: "não se esqueça, ao meio-dia, ao meio-dia", despediu-se da amiga.
De Isabel, sua mais velha e mais antiga amiga, de cuja fidelidade e valor já tivera quinze dias de experiência, não soube nada durante toda a noite. Embora desejasse contar-lhe a sua felicidade, alegremente obedeceu à vontade da senhora Allen, que hoje os levava cedo para casa. O coração pulava-lhe, dançava enquanto a carruagem a levava para casa.
O dia seguinte trouxe uma prometedora manhã; o Sol fazia poucos esforços para se mostrar e Catarina viu que tudo era favorável aos seus desejos. Se a manhã fosse clara, em época tão temporã do ano, pensava ela, decerto traria chuva; mas, assim, de nevoeiro, anunciava bom tempo para o dia todo. Pediu ao senhor Allen a confirmação das suas esperanças, mas ele, sem o céu da sua terra e o seu barómetro, negou-se a afirmar se estaria um dia de sol. Perguntou à senhora Allen, que deu uma opinião mais positiva. Não tinha dúvidas de que o dia devia estar maravilhoso, se as nuvens desaparecessem e o Sol raiasse. Contudo, pelas onze horas, umas gotinhas de água nas janelas chamaram a atenção de Catarina.
- Oh, meu Deus, vai chover! - saiu-lhe da boca com uma entoação desoladíssima.
- Eu bem sabia que havia de chover - disse a senhora Allen.
- Lá vai o meu passeio! - suspirou Catarina - Mas talvez não seja nada, ou talvez passe antes do meio-dia.
- É possível, minha querida, mas haverá tanta lama!
- Oh, isso não faz mal; nunca me importei com a lama.
- É verdade - replicou a amiga, muito tranquilamente -, eu bem sei que nunca te importas com a lama.
- Chove cada vez mais - disse Catarina ainda à janela.
- Pois é. Se continuar a chover, as ruas hão-de ficar muito molhadas.
- Já passaram quatro guarda-chuvas. Que raiva me dá ver um guarda-chuva!
- São uns objetos muito incómodos. Eu prefiro alugar uma cadeirinha.
- Estava uma manhã tão linda! Estava mesmo convencida de que não choveria!
- Qualquer pessoa o pensaria. Deve haver pouca gente na Fonte, se estiver toda a manhã a chover. Oxalá o senhor Allen vista o capote quando sair, mas quer-me parecer que não o fará, porque detesta sair de capote! Admiro-me que não goste dele: deve ser tão quentinho!
A chuva continuou, mas menos torrencial. Catarina, de cinco em cinco minutos, olhava para o relógio, afirmando, todas as vezes que voltava, que, se continuasse a chover outros cinco minutos teria de desistir do projeto. O relógio deu meio-dia e a chuva continuava a cair.
- Não podes sair, minha querida.
- Ainda não desisto. Não desistirei antes de passar mais um quarto de hora. Não será preciso mais do que isso para o tempo levantar; pois me parece que está mais desanuviado. Quando passarem vinte minutos, então desisto. Oh, se tivéssemos o tempo do Udolfo ou pelo menos o tempo da Toscânia ou do Sul da França, na noite em que o pobre Santo Aubine morreu! Que belo tempo esse!
Ao meio-dia e vinte, quando a atenção expetante de Catarina tinha passado, e já não ansiava que o tempo melhorasse, o céu começou sensivelmente a aclarar. Um raio de sol apanhou-a de surpresa. Olhou à volta: as nuvens dispersavam e imediatamente voltou para a janela, alentando o seu feliz aparecimento. Mais dez minutos e era certo que uma tarde radiosa se seguiria, o que justificava a opinião da senhora Allen, a qual pensara sempre que havia de levantar.
Mas se Catarina ainda esperava os seus amigos, ou se Leonor Tilney se aventuraria a sair com um tempo daqueles, é que ainda se não sabia.
Havia lama por toda a parte; por isso, a senhora Allen não acompanhou o marido à Fonte. Este foi sozinho e Catarina chegou-se à janela para o ver. Logo avistou as mesmas duas carruagens abertas, as mesmas três pessoas que tanto a tinham surpreendido algumas manhãs antes.
- Isabel, o meu irmão e o senhor Thorpe! Naturalmente vêm buscar-me, mas eu não vou. É-me impossível ir, pois a Leonor Tilney pode ainda aparecer.
A senhora Allen concordou.
João Thorpe chegou e ainda antes dele a sua voz, pois das escadas já gritava à menina Morland para se apressar.
- Depressa, depressa. Ponha já o chapéu. Não se pode perder tempo. Vamos a Brístol. Como está, senhora Allen?
- A Brístol! E não é muito longe? Hoje não posso ir de maneira alguma convosco, pois já estou comprometida. Espero uns amigos a todo o momento.
Isto não era razão para ele, que pediu à senhora Allen que o ajudasse a convencê-la. Os outros entraram para também o apoiar.
- Minha querida Catarina, não achas que é uma idéia esplêndida? Vai ser um passeio divinal. Tens de agradecê-lo a mim e ao teu irmão. Lembrámo-nos ao almoço e parece-me que até ao mesmo tempo. Já teríamos partido há duas horas, se não fosse esta chuva aborrecida. Mas não faz mal; agora há sol. Estou encantada por lembrar-me de que vou respirar ar do campo. É muito melhor do que ir para os Lower Rooms. Vamos diretamente a Clifton e almoçamos lá. Logo depois do almoço se houver tempo, iremos a Kingsweston.
- Parece-me que não temos tempo para isso - disse Morland.
- Oh, que rabujento! - exclamou Thorpe - havemos de ter tempo para isso e para muito mais. Havemos de ir a Kingsweston, ao castelo de Blaize e a tudo que nos disserem que vale a pena. Mas a tua irmã diz que não vai.
- O castelo de Blaize! - murmurou Catarina. - Que é isso?
- O mais belo sítio de Inglaterra. Vale a pena andar cinqüenta milhas, nem que seja debaixo de chuva, só para o ver.
- E é realmente um castelo, um castelo antigo?
- O mais antigo da região.
- E é parecido com os que vêm descritos nos livros?
- Exatamente.
- Tem torres e longas galerias?
- Às dúzias.
- Se assim é, gostaria de o ver. Mas hoje não posso ir; é-me completamente impossível.
- Não podes ir! O que significa isso, minha querida?
- Não posso ir, porque... (baixou os olhos por causa de... Isabel) estou á espera da Leonor Tilney e do irmão para irmos dar um passeio pelo campo. Prometeram vir ao meio-dia, mas estava a chover. Agora, que já está bom tempo, tenho a certeza de que não demorarão.
- Eles não vêm - disse Thorpe - porque os vi quando passávamos em Broad Street. Não é ele que guia uma carruagem puxada a dois cavalos claros?
- Não sei.
- Mas sei-o eu, que o vi. Está a falar do rapaz com quem dançou ontem à noite, não é?
- É.
- Pois bem; vi-o virar para a estrada de Lansdown, com uma bonita menina.
- O quê, isso é verdade?
- Palavra de honra que é. Logo o reconheci. Parece que arranjou uma bonita cachopa.
- Parece impossível! E eu a supor que eles achariam o tempo mau para irmos passear!
- E era natural que assim julgassem, porque nunca na minha vida vi tanta lama. Tão impossível andar a pé como voar. Em todo o Inverno ainda não houve um dia tão lamacento. Enterra-se a gente até à cinta.
Isabel concordou.
- Minha querida Catarina, não calculas a lama que há. Vem, tens de vir. Não podes dizer que não.
- Eu gostava de ver o castelo. Mas, poderemos lá entrar, poderemos subir todas as escadas e entrar em todos os quartos?
- Pois! E bisbilhotar todos os cantos.
- Mas também se pode dar o caso de eles terem ido dar uma volta para ver se o tempo se compõe e depois me venham buscar.
- Não se apoquente, que isso não acontecerá. Ouvi dizer ao Tilney, para um homem que ia a cavalo, que iam até Wick Rocks.
- Então vou. Parece-lhe que devo ir, senhora Allen?
- Faze o que quiseres, minha querida.
- A senhora Allen tem de a convencer a ir - gritaram todos ao mesmo tempo.
A senhora Allen fez-lhes a vontade:
- Sim minha querida, suponho que deves ir.
E em dois minutos partiram.
O estado de espírito de Catarina, ao entrar para a carruagem, era muito confuso: dividia-se entre a tristeza de perder uma grande alegria, e a esperança de em breve gozar outra quase semelhante em quantidade, mas diferente em qualidade. Parecia-lhe que os Tilneys não tinham procedido bem para com ela, desistindo tão depressa do seu compromisso sem lhe mandarem qualquer desculpa. Passava apenas uma hora além do tempo combinado para o início do passeio e, apesar de ver a grande quantidade de lama que numa hora se tinha acumulado nas ruas, não pôde deixar de pensar que poderiam ter ido sem grandes inconvenientes. Sentir-se rebaixada por eles era uma coisa que lhe custava, por outro lado, o prazer de explorar um edifício, como no Udolfo - à sua fantasia, assim se representava o castelo de Blaize - era uma compensação tão equivalente, que quase a consolou por completo.
Atravessaram rapidamente Pulteney Street e Laura Place, sem trocarem muitas palavras. Thorpe falava para o cavalo e ela meditava, umas vezes em promessas não cumpridas, em arcos arruinados, outras vezes em cabriolés, em esconderijos secretos, em Tilneys, em alçapões. Quando entraram em Argyle Street o seu companheiro chamou-lhe a atenção:
- Quem? Onde está?
- Ao lado direito. Agora já não a vê.
Catarina olhou e viu Leonor Tilney, pelo braço do irmão, descendo vagarosamente a rua. Viu-os olhar para ela.
- Pare, pare, senhor Thorpe - gritou, impacientemente. - Olhe que é Leonor Tilney; é ela mesma, porque me disse que tinham saído? Pare, pare, quero ir ter com eles!
De que lhe serviu falar? Thorpe meteu o cavalo a trote. Os Tilneys, que tinham deixado de olhar para ela, desapareceram num momento à esquina de Laura Place, e, logo depois, meteram para Market Place.
Apesar disto, continuou a pedir-lhe que parasse.
- Pare, por favor, senhor Thorpe. Não posso nem quero continuar aqui. Tenho de ir ter com Leonor Tilney.
Mas o senhor Thorpe ria, chicoteava o cavalo e berrava-lhe, fazendo-o galopar mais. Catarina, zangada e vexada como estava, não podendo sair, foi obrigada a desistir e a submeter-se. Porém, não se poupou a recriminações.
- Porque me enganou, senhor Thorpe? Porque me disse que os tinha visto na estrada de Lansdown? Por nada queria que isto acontecesse. Hão-de pensar que é uma indelicadeza da minha parte. Passar por eles sem lhes dizer uma palavra! Não faz idéia como estou envergonhada! Não hei-de gostar de Clifton, nem de nada. Preferia mil vezes sair e ir ter com eles. Porque me disse que os tinha visto num cabriolé?
Thorpe defendeu-se como pôde. Declarou que na sua vida nunca vira dois homens tão parecidos e que ainda não estava convencido de que não vira o próprio Tilney.
O passeio, mesmo quando este assunto foi posto de parte, não prometia ser muito agradável. A benevolência de Catarina já não era o que fora no primeiro passeio. Ouvia-o com relutância, respondia-lhe por frases curtas. A única esperança era o castelo de Blaize. Por vezes, visionava-o com anseio. Embora estivesse aborrecida, por não se ter realizado o passeio e, muito mais, por ficar mal vista aos olhos dos Tilneys, preferia desistir do prazer que as suas paredes lhe poderiam dar, o prazer de atravessar inúmeras salas abobadadas com restos de mobílias majestosas, embora abandonadas há muitos anos, o prazer de ser obrigada a parar numa porta baixa e gradeada, que a impedisse de continuar a percorrer os corredores estreitos e labirínticos. Preferia até mesmo que a sua única luz se apagasse a uma rajada inesperada de vento e a deixasse numa escuridão profunda.
Entretanto o passeio prosseguia sem qualquer contratempo.
Estavam à vista da cidade de Keynsham, quando um grito de Morland, que ia atrás deles, fez levantar o amigo, que foi perguntar o que tinha acontecido. Os outros aproximaram-se também e Morland disse:
- É melhor voltarmos para trás. Thorpe. É já muito tarde.
A tua irmã tem a mesma opinião. Há já uma hora que partimos de Pulteney Street, andámos pouco mais de sete milhas, e parece-me que ainda nos faltam oito. Não pode ser. Partimos já muito tarde. Será melhor adiarmos para outro dia e voltarmos então.
- É-me indiferente - replicou Thorpe, um pouco zangado.
E, voltando imediatamente o cavalo, tomou a direcção de Bath.
- Se o seu irmão não tivesse trazido este diabo de animal - disse ele logo a seguir - podíamos ter feito a caminhada muito bem. O meu cavalo numa hora pôr-se-ia em Clifton, se o deixasse à vontade; já quase parti o braço a refreá-lo para que, acompanhe o passo daquela pileca sem forças. Morland é um parvo em não ter uma caleche e um cavalo.
- Não é, não... - atalhou logo Catarina - Jaime não os podia ter.
- E porque não?
- Porque não tem dinheiro suficiente.
- E de quem é a culpa?
- De ninguém, que eu saiba.
Thorpe disse então qualquer coisa, muito alto e duma forma disparatada, a que costumava recorrer, acrescentando que, era uma coisa levada dos diabos ser-se miserável; se as pessoas que nadavam em dinheiro não podiam comprar, não sabia quem havia de poder. Catarina não se preocupou em sabê-lo.
Aborrecida com o que devia ser a consolação da sua primeira arrelia, sentia-se cada vez menos disposta a mostrar-se atenciosa ou a considerar amável o seu companheiro. Assim chegaram a Pulteney Street sem que ela proferisse mais de vinte palavras.
Logo que entrou em casa, o porteiro disse-lhe que um cavalheiro e uma senhora tinham vindo procurá-la pouco depois de haver saído e que, quando ele lhes disse que tinha ido com o senhor Thorpe, a senhora lhe perguntara se não havia deixado nenhum recado para ela; e que, ao dizer-lhe que não, ela procurara um cartão, mas, não possuindo nenhum, se tinham ido embora.
Pensando nestas notícias que lhe dilaceravam o coração, Catarina subiu as escadas devagar.
Ao cimo encontrou o senhor Allen, que, ao dar conta do seu regresso tão rápido, disse:
- Ainda bem que o teu irmão teve juízo; estou satisfeito por teres voltado. Era um plano estranho e imprudente.
Passaram todos a noite em casa dos Thorpes. Catarina, inquieta e aborrecida; Isabel, porém, parecia ter encontrado um motivo de interesse, que a compensava, na companhia privada de Jaime Morland do ambiente tranqüilo e campestre duma hospedaria de Clifton. A sua satisfação era também baseada na resolução de não irem aos Lower Rooms, de que falou mais de uma vez:
- Tenho até pena das pessoas que lá vão! Estou mesmo satisfeita por me não encontrar entre elas. Desconfio que será um bom baile. A esta hora ainda não começaram a dançar. Por nada lá queria estar. Tão bom passar de vez em quando uma noite em casa! Não me parece que seja um grande baile. As Mitchells não devem estar lá, com certeza. Lamento francamente as pessoas que lá estão. Mas o senhor Morland gostava de ir, não? Tenho a certeza disso. E ninguém o impede. Até estou em dizer que passaremos muito bem sem o senhor. Isto, todos os homens se julgam imprescindíveis.
Catarina podia quase acusar Isabel de prestar pouca atenção à sua pessoa e às suas tristezas, tão pouco isso a preocupara e tão descabido fora o lenitivo que lhe oferecera:
- Não estejas tão tristonha, minha querida. Dilaceras-me o coração. É sem dúvida confrangedor, mas a atitude dos Tilneys é de criticar. Porque não foram pontuais? Havia lama, na verdade, mas que inconveniente tinha a lama? Eu e o João não nos teríamos importado. Eu não faço questão de ir a qualquer parte quando se trata de pessoas amigas; é este o meu lema e o João é exatamente como eu. Tem um caráter muito constante. Louvado seja Deus! Que mãos tão lindas tens! Palavra de honra, nunca fui tão feliz na minha vida. Prefiro cinqüenta vezes que tu as tenhas a tê-las eu.
E agora, tenho de despedir a minha heroína para a cama, que é o verdadeiro caminho duma heroína; mandá-la para o travesseiro, semeado de espinhos e molhado de lágrimas. Pode dar-se por satisfeita se nos três meses seguintes tiver o descanso doutra boa noite.
- Senhora Allen - informou Catarina no dia seguinte – haverá algum inconveniente em eu ir hoje visitar Leonor Tilney? Não descansarei enquanto não lhe explicar tudo.
- Pois sim, vai, minha querida. Mas leva um vestido branco; a menina Tilney anda sempre vestida de branco.
Catarina obedeceu, com alegria. Estava convenientemente vestida e mais do que nunca impaciente por chegar à Fonte, para aí se informar da rua onde morava o general Tilney, pois, embora julgasse que era em Milsom Street, não tinha a certeza, e as afirmativas hesitantes da senhora Allen ainda tornavam a questão mais duvidosa.
Dirigiu-se pois a Milsom Street. Como já sabia o número da casa, começou a andar apressadamente; o coração batia-lhe em desordem. Ia visitá-los para lhes explicar o seu procedimento e pedir-lhes desculpa. Passando a correr pelo adro da igreja, desviou resolutamente o olhar, para não ser obrigada a encontrar-se com a sua querida Isabel e com toda a família, que (tinha razões para o supor) deviam estar num estabelecimento muito perto. Chegou a casa dos Tilneys, sem qualquer contrariedade. Olhou para o número, bateu à porta e perguntou pela menina Leonor. Parecia ao porteiro que a menina estava em casa, mas não tinha bem a certeza. Podia ela ter a amabilidade de lhe dizer quem era? Deu o cartão. Alguns minutos depois o criado voltou e, com um olhar que não confirmava as palavras, disse que se tinha enganado, porque a menina não estava. Catarina corando de desgosto, deixou a casa. Deixou-a com a convicção de que Leonor Tilney estava, e muito ofendida ficou porque a não tivesse recebido.
Quando descia a rua, não resistiu à tentação de olhar para as janelas da sala de visitas, esperando vê-la aí, mas ninguém se mostrou. Ao fundo da rua voltou a olhar e então, não à janela, mas à porta, reconheceu a própria Leonor Tilney. Estava com um cavalheiro, que Catarina julgou ser o pai; ambos seguiram para os Armazéns Edgar.
Catarina, muito angustiada, continuou o seu caminho. Sentia-se indisposta com tal indelicadeza, mas reprimiu a idéia de vingança e lembrou-se da sua falta de experiência. Não sabia como classificavam uma ofensa como esta segundo as regras da boa educação mundana, e a que desculpa teria direito, ou a que rigores de indelicadeza podia chegar, que por sua vez a recompensassem.
Triste e abatida, pensou não ir nessa noite com os outros ao teatro; mas é bom confessar que estes pensamentos não duraram muito tempo, porque logo se lembrou de que, primeiro, não tinha nenhuma desculpa a apresentar que justificasse não sair de casa; segundo, que havia uma peça de teatro que não desejava perder.
Por isso foram todos ao teatro. Não apareceram Tilneys que a mortificassem ou lisonjeassem. Supunha que entre as muitas perfeições da família não se contasse a predilecção pelo teatro, porque talvez estivessem, como dissera Isabel, habituados a ver melhores desempenhos nos palcos de Londres, o que tornava tudo o mais absolutamente insuportável.
Catarina não se enganou quanto à sua expetativa de gostar da comédia. Prendeu-lhe tanto a atenção que, se alguém a observasse durante os quatro primeiros atos, concluiria que nada a afligia. Contudo, ao começar o quinto ato, o súbito aparecimento de Henrique Tílney e do pai, que se juntaram a um grupo no camarote fronteiro, trouxe-lhe de novo mortificação e tormento. O palco já não lhe despertava interesse tão intenso. Não podia já dedicar-lhe atenção; quase todos os seus olhares se dirigiam para o camarote da frente. Durante duas cenas inteiras observou Henrique Tilney, sem uma só vez lhe encontrar o olhar. Não se podia suspeitar de que ele não gostasse de teatro, pois não desviou a atenção do palco durante as duas cenas. Contudo, no fim, olhou para ela e baixou-lhe a cabeça. Mas que cumprimento! Sem um sorriso, sem continuar a observá-la, desviou imediatamente os olhos. Catarina ficou mais inquieta e triste; quereria correr ao camarote e obrigar o jovem a ouvir a sua explicação. Sensações mais naturais do que heróicas a oprimiam. Em vez de considerar a sua dignidade ofendida por esta rápida condenação, em vez de orgulhosamente se resolver, na sua inocência consciente, a mostrar ressentimento para com ele, que podia ficar em dúvida, de lhe deixar o encargo de procurar uma explicação, e de lhe dar a conhecer o que se passara, evitando o seu olhar ou flertando com outro aceitou para si toda a vergonha daquele procedimento, ou, pelo menos assim o aparentou desejando ansiosamente ter uma oportunidade para se explicar. A representação acabou, o pano desceu, já não viu Henrique Tilney; só o pai ficou. Talvez o jovem viesse ao seu camarote. Não se enganou. Alguns momentos depois apareceu ele, e, atravessando as filas estreitas, falou à senhora Allen e à amiga com uma delicadeza quase calma. Catarina, porém, não correspondeu dessa forma:
- Senhor Tilney, estava desejosa por lhe falar e apresentar as minhas desculpas. Deve ter-me julgado muito indelicada, mas a culpa não foi minha, não é verdade, senhora Allen? Não me disseram eles que o senhor Tilney e a irmã tinham saído de cabriolé? Que havia eu de fazer? Preferia mil vezes ter ido com os senhores! Não é verdade, senhora Allen?
- Minha querida, estás a amarrotar-me o vestido - foi a resposta da senhora Allen.
Contudo, a sua justificação, apesar de não corroborada, não foi inútil; trouxe um sorriso mais cordial e mais franco ao semblante do senhor Tilney, que replicou num tom de voz um pouco afetado:
- Muito lhe agradecemos o ter-nos desejado um passeio agradável, quando passou por nós em Argyle Street. Foi muito amável ter olhado para trás.
- Mas eu não lhes desejei um passeio agradável, nunca pensei em tal coisa. Pedi ao senhor Thorpe para parar; logo que os vi pedi-lhe, não é verdade, senhora Allen? Verdade, a senhora não estava lá, mas foi assim. Se o senhor Thorpe tivesse parado, eu teria descido do carro e teria ido a correr atrás dos senhores.
Haverá no mundo um Henrique que fique insensível a tal declaração? Henrique Tilney não ficou. Com um sorriso mais terno, disse tudo o que era conveniente dizer sobre a tristeza da irmã e a confiança que tinha em Catarina.
- Não diga que Leonor não ficou zangada - exclamou Catarina porque sei que sim. Não me quis receber esta manhã quando fui a sua casa; e vi-a sair, logo depois de eu ter voltado as costas. Fiquei aborrecida, mas não melindrada. Talvez o senhor nem saiba que estive lá.
- A essa hora não estava. Leonor contou-me, e disse-me que desejava muito falar consigo para lhe explicar tal indelicadeza; mas talvez eu o possa também fazer. Foi o meu pai, que estava para sair e com muita pressa, e não queria adiar mais uma visita, que a coagiu a mandar-lhe dizer que não estava. Pode ter a certeza de que o motivo foi só este. Ela sente-se muito envergonhada, e com muita vontade de lhe pedir desculpa, logo que seja possível.
Catarina ficou satisfeita com esta explicação; porém, ainda com um pouco de ressentimento, perguntou:
- Então, senhor Tilney, por que razão foi o senhor menos generoso que a sua irmã? Se ela sabia bem que eu não fiz isso por mal, porque é que o senhor se sentiu ofendido?
- Eu, senti-me ofendido?
- Quando entrou no camarote notei logo que estava zangado.
- Zangado!? Não tenho razão para isso.
- Quem o visse não diria tal.
A resposta do rapaz foi pedir a Catarina que lhe ajeitasse um lugar. Sentou-se ao seu lado e começaram a falar da representação. Esteve algum tempo ali, e portou-se de uma maneira tão simpática que Catarina ficou triste quando ele se foi embora. Antes porém, de se despedirem, ficou assente que o passeio projetado ficaria para a próxima ocasião em que fosse possível Embora triste por ele a ter deixado, Catarina julgou-se a pessoa mais afortunada do mundo.
Enquanto tinham estado a conversar reparou, bastante surpreendida, que João Thorpe, que até ali não estivera dez minutos no mesmo sítio, estava a falar com o general Tilney; e o que mais a surpreendeu foi compreender que era o alvo da conversa. Que teriam eles a dizer a seu respeito? Receava que o general não simpatizasse consigo. O fato de não ter querido adiar dez minutos a visita para recebê-la, provava-o sobejamente.
- Como é que o seu pai conheceu o senhor Thorpe? perguntou-lhe ela, indicando-os.
Tilney não sabia. O pai, como todos os oficiais, conhecia muita gente.
Quando a representação acabou, Thorpe acompanhou-as. Catarina era o objeto da sua galantaria. E, enquanto esperavam por um carro, Thorpe perguntou-lhe se o não tinha visto falar com o general Tilney.
- Um velho muito simpático, forte e ativo, palavra de honra! Parece da idade do filho. Acredite, tenho uma grande consideração por ele; um dos cavalheiros mais distintos que tenho conhecido.
- Mas como é que o conheceu?
- Como! Pouca gente haverá na cidade que eu não conheça. Desde que o conheci em Bedford, nunca mais me esqueci dele; e hoje, mal entrou na sala de bilhar, reconheci-o logo. E, a propósito, é um dos nossos melhores jogadores. Ainda jogamos os dois, embora a princípio estivesse com um certo receio dele; primeiro havia cinco-quatro a seu favor, e se lhe não dou o golpe mais certeiro que jamais se fez no mundo. Apanhei-lhe a bola em cheio, mas não lhe posso explicar bem, sem estar ao pé duma mesa. O que é certo é que lhe ganhei. Um sujeito muito simpático e, então, rico como um judeu. Gostaria imenso de jantar com ele; desconfio que deve dar uns jantares estupendos. Mas do que lhe parece que estivemos a falar? De si. O general diz que a Catarina é a menina mais interessante que está em Bath.
- Que disparate! Como se atreve a dizer uma coisa dessas?
- E que lhe parece que respondi? - e baixou a voz para continuar: - Sei Muito bem, senhor general, concordo com o senhor.
Ao ouvir isto, Catarina, que ficara muito mais contente com o elogio do general do que com o dele, gostou que a senhora Allen a chamasse. Contudo, Thorpe quis acompanhá-la até à carruagem, dirigindo-lhe sempre galanteios, apesar de ela o mandar calar.
Sentia grande prazer por saber que o general Tilney, em vez de não gostar dela, a admirava; e pensava agora que não havia ninguém, na família Tilney, com quem tivesse receio de se encontrar. A noite fora para ela muito mais proveitosa do que se poderia prever.
Já passaram em frente dos olhos do leitor a segunda, a terça, a quarta, a quinta, a sexta-feira e o sábado. Narraram-se com pormenor, os acontecimentos de todos os dias, todas as esperanças e receios, todos os desgostos e prazeres, faltando, agora, apenas descrever as angústias de domingo para completar a semana. O plano da ida a Clifton, que tinha ficado adiado, tornou a ventilar-se naquela tarde.
Isabel e Jaime tinham resolvido irem sós (como a primeira estava a contar com isso, o segundo desejava-o também só para lhe agradar), se o tempo estivesse bom no domingo de manhã; partiriam cedo, para voltarem a horas.
Estabelecido assim o plano e com a aprovação de Thorpe, faltava só comunicá-lo a Catarina. Esta tinha-os deixado por alguns momentos para ir falar com a menina Tilney. Entretanto o projeto assentou-se e, logo que ela chegou, pediram-lhe a sua adesão; mas, em vez da alegre aquiescência que Isabel esperava, Catarina ficou muito séria e disse que tinha imensa pena mas que não podia ir. O compromisso que a devia ter obrigado a ficar, na primeira tentativa da visita a Clifton, impedia-a agora de lhes fazer companhia.
Acabara precisamente de combinar com Leonor Tilney darem no dia seguinte o passeio projetado; estava tudo resolvido e de maneira alguma podia faltar. Mas os dois Thorpes foram de opinião que ela tinha e devia até faltar para ir com eles a Clifton, pois não o fariam e não iriam sem a sua companhia; que o passeio podia muito bem ser adiado, e que não queriam ouvir mais recusas. Catarina estava aborrecida, mas não houve nada que a convencesse.
- Escusas de teimar, Isabel. Estou comprometida com Leonor Tilney. Não posso ir convosco.
Mas isto de nada servia. Continuaram a aborrecê-la com os mesmos argumentos.
- É fácil dizer a Leonor Tilney que, quando combinou o passeio com ela, se não tinha lembrado de outro compromisso, e que o podem adiar para terça-feira.
- Não, é fácil. É-me impossível. Não me tinha comprometido anteriormente com ninguém.
Isabel continuava porém a tentar convencê-la, falando-lhe com o maior carinho, chamando-lhe os nomes mais ternos. Tinha a certeza de que a sua muito querida e boa Catarina não recusaria uma coisa tão insignificante a uma amiga que lhe queria! Ela bem lhe conhecia o coração bondoso! O temperamento dócil para que não fosse contra aqueles que amava.
Tudo, porém, foi inútil. Catarina sabia que tinha razão e, embora se comovesse com súplicas tão ternas e lisonjeiras, não se deixou vencer. Isabel tentou então outro processo: censurou-a por ter mais afeição a Leonor Tilney, que conhecia há tão pouco tempo, do que aos seus maiores e mais velhos amigos, e também por já não ser amiga dela.
- Eu não posso deixar de ter ciúmes Catarina, vendo-me desprezada em benefício de pessoas estranhas, eu, que te quero tanto Quando me afeiçôo a alguém, não há nada que me desvie. Creio que a minha amizade é mais forte do que a das outras pessoas, forte de mais para a minha tranqüilidade. Ver-me assim suplantada na tua amizade por outros, isso mata-me, confesso. Esses Tilneys parece que querem engolir tudo.
Catarina pensou que a censura era estranha e grosseira. Seria próprio de uma amiga expor assim os seus sentimentos à consideração dos outros? Isabel pareceu-lhe pouco generosa, egoísta, cuidando só das suas alegrias. Estes dolorosos pensamentos passaram-lhe pela mente embora nada dissesse. Isabel, entretanto, pusera o lenço nos olhos; e Morland, incomodado por vê-la assim, teve de dizer:
- Catarina, acho que não deves continuar a teimar. O sacrifício não é demais: e afligires assim uma pessoa tão tua amiga! És muito má se persistes na recusa.
Foi esta a primeira vez que o irmão se mostrou abertamente contra ela. Desejosa de evitar o seu desagrado, propôs um acordo. Se eles adiassem o passeio, o que fàcilmente podiam arranjar visto que dependia só deles, ela então podería ir e ficariam todos satisfeitos. Não, não, não - foi a resposta imediata. Isso não podia ser porque Thorpe não sabia se teria de ir, na terça-feira, à cidade.
Catarina sentia pena, mas nada podia resolver. Um curto silêncio se seguiu. Foi interrompido por Isabel que, numa voz de frio ressentimento, disse:
- Ora, lá se vai o passeio! Se Catarina não for, eu também não posso ir. Não posso ser a única menina. Por nada deste mundo faria uma coisa tão inconveniente.
- Tens de ir, Catarina - disse Jaime.
- Mas porque é que o senhor Thorpe não leva uma das irmãs? Estou convencida de que qualquer delas há-de gostar de ir.
- Obrigado - gritou Thorpe -, mas eu não vim para Bath para andar a passear as minhas irmãs e fazer de bobo. Não, se não for, diabos me levem, se eu vou. Só irei, para a levar na minha caleche.
- É um cumprimento que não me agrada.
Estas palavras não foram ouvidas por João Thorpe, que se voltou bruscamente.
Os outros três ficaram ainda a passear, aborrecidos, o que afligia Catarina. Por vezes nem uma palavra diziam; outras, incomodavam-na com novas súplicas e censuras. Isabel continuava a agarrar-lhe o braço, mas os corações de ambas estavam em luta. Às vezes parecia calma, outras irritava-se; sempre acabrunhada, mas inflexível.
- Nunca pensei que fosses tão teimosa, Catarina - disse Jaime. Não é costume ser preciso tanta insistência para te persuadir: eras a irmã mais bondosa e adorável que tinha.
- Creio que hoje não o sou menos - replicou ela muito sentida - mas, de verdade, não posso acompanhar-vos. Se procedo mal penso que tenho razão.
- Desconfio - tornou Isabel em voz baixa - que não há grande motivo para isso.
O coração de Catarina sobressaltou-se. Desprendeu o braço de Isabel, que não insistiu. Assim decorreram dez longos minutos até que Thorpe se lhes juntou de novo. Aproximando-se com o ar mais prazenteiro, disse:
- Pois bem, já resolvi o assunto, e amanhã poderemos ir todos com o coração em paz. Estive com Leonor Tilney e apresentei-lhe as suas desculpas.
- O senhor não fez tal! - gritou Catarina.
- Palavra que fiz. Venho mesmo agora de estar com ela. Disse-lhe que a menina me tinha lá mandado para dizer-lhe que se lembrara dum compromisso anterior, e que vai amanhã connosco a Clifton, não podendo por isso ter o prazer de sair senão na terça-feira. Ela respondeu que estava certo, que terça-feira também lhe convinha. Assim resolvi todas as dificuldades. Uma boa saída, a minha, não acham? - o rosto de Isabel era agora todo risos, e Jaime parecia estar também satisfeito.
- Uma saída esplêndida, divinal! Agora, minha querida Catarina, todas as preocupações passaram. Estás livre, de forma airosa e nós podemos dar um excelente passeio.
- Não pode ser - volveu Catarina - não me convenço. Tenho de ir falar com Leonor Tilney e explicar-lhe as coisas.
Porém, Isabel agarrou-lhe um braço, Thorpe o outro e dos três choveram repreensões. O próprio Jaime ficou muito zangado. Agora que tudo estava resolvido, que Leonor Tilney concordara, seria ridículo, completamente absurdo, teimar.
- Não me importo. O senhor Thorpe não tinha nada que inventar tais recados. Se eu julgasse que era uma atitude correta, teria eu mesmo falado diretamente com ela. É simplesmente uma grosseria. E quem me diz a mim que o senhor Thorpe se não voltou a enganar? Já na sexta-feira passada me fez ser descortês por causa dum equívoco seu. Deixe-me, senhor Thorpe! Isabel, larga-me!
Thorpe afirmou-lhe que seria inútil ir atrás dos Tilneys; iam a virar para Brock Street, quando ele os conseguira alcançar; a estas horas já estariam em casa.
- Irei procurá-los - disse Catarina - onde quer que estejam. Não vale a pena estar com mais discussões. Se nunca fosse persuadida a fazer o que julgo mal, nunca teria nada a sofrer.
E com estas palavras desprendeu os braços e deitou a correr. Thorpe teria ido ainda atrás dela, se Jaime não o impedisse.
- Deixa-a, deixa-a ir, já que o quer.
- É teimosa como uma.
Thorpe nunca acabava o símile, porque geralmente era grosseiro.
Catarina caminhava tão ligeira quanto lho permitia a multidão; o receio de ser perseguida não a obrigava a deixar de persistir no seu intento. À medida que andava, refletia no que se tinha passado. Custara-lhe tê-los aborrecido e desgostado especialmente ao irmão, mas não tinha também de se arrepender da sua oposição. Pondo mesmo de lado a sua inclinação particular, não era bonito faltar pela segunda vez a um compromisso com Leonor Tilney, desistir de uma promessa feita cinco minutos antes e voluntariamente, só pela apresentação de um argumento falso. Catarina não lutava apenas com os seus princípios, nem examinava mesmo a conveniência que daí lhe podia advir: a própria excursão em si e ir admirar o castelo de Blaize. Nada disso. Pensava só no que era sua obrigação para com os outros e na apreciação que podiam fazer do seu caráter. Porém, a convicção de estar a proceder corretamente não a acalmava até que falasse com Leonor Tilney. Apressando o passo ao avistar a Meia-Lua, atravessou, quase a correr, a distância que a separava de Milsom Street. Tão rápidos foram os seus movimentos que, apesar dos Tilneys irem à frente, os alcançou quando entravam em casa. Ao criado que tinha ainda a porta aberta apenas disse que precísava urgentemente de falar à menina Tilney e subiu as escadas atrás dele. Então, abrindo a primeira porta que encontrou achou-se na sala de visitas em frente do general Tilney, do filho e da filha.
As suas primeiras palavras de explicação foram confusas, por causa da excitação dos nervos e da falta de fôlego. Mas, no fim de contas, não se justificou melhor.
- Vim a correr. É um mal-entendido. Nunca prometi ir. Logo disse que não podia ser. Vim a correr para lhe explicar. Não me importa o que pensem de mim. Não esperei o criado.
Embora a situação não ficasse bem explicada com estas palavras, em breve deixou de ser um mistério. Catarina viu que Thorpe dera o recado porque Leonor Tilney não teve escrúpulo em se mostrar ofendida; se o irmão ainda estaria mais (instintivamente Catarina tanto se dirigia a um como ao outro); não o sabia.
O que antes da sua chegada fora ressentimento, transformara-se, com as suas desculpas convincentes, em boa disposição e conversa amiga, tão agradável quanto ela podia desejar.
Arrumando o assunto, Catarina foi apresentada ao pai de Leonor que a recebeu com um delicadeza tão franca e atraente que lhe vieram logo à idéia as informações de Thorpe. Logo o considerou como uma pessoa em quem se pode ter confiança. A tais extremos o general levou a delicadeza que, não tendo percebido a precipitação da entrada da jovem, ficou muito zangado com o criado por tê-la obrigado a abrir a porta da sala.
- Quais seriam as intenções de Guilherme? Iria informar-se disso.
E, se Catarina não tivesse defendido veementemente a sua inculpabilidade, parecia que Guilherme ia perder para sempre as graças do amo e até mesmo o lugar por causa da sua precipitação.
Depois de estar um quarto de hora com eles, levantou-se para sair, mas ficou agradavelmente surpreendida quando o general lhe pediu a honra de jantar com a filha e passar o resto do dia com ela. Leonor corroborou o pedido do pai. Catarina agradeceu-lhe muito, mas era coisa que não podia resolver. O senhor Allen e a esposa ficariam à sua espera. O general disse que não podia insistir mais, que as conveniências do senhor Allen e de sua esposa tinham de ser tomadas em consideração, que um dia, assim o esperava, não deixariam de a dispensar à sua a amiga.
Oh, não! Catarina tinha a certeza de que eles não teriam qualquer objecção a opor, e ela teria muito prazer em vir. O general acompanhou-a até à porta, tecendo-lhe muitos elogios, admirando a sua maneira graciosa de andar, que tanto correspondia ao seu modo de dançar. E quando se separaram, fez-lhe o mais elegante dos cumprimentos.
Satisfeita com o que se passara, Catarina prosseguiu alegremente para Pulteney Street. Parecia-lhe que andava com graciosidade, embora até ali nunca tivesse pensado em tal coisa. Chegou a casa sem saber nada do seu grupo. E agora que tinha triunfado, que tinha alcançado o seu objetivo e assegurado o passeio, começou a pensar, à medida que a sua agitação se acalmava, se realmente havia procedido bem. Um sacrifício era sempre uma acção nobre. Se tivesse cedido às súplicas deles, não teria agora a afligi-la a idéia de ter desgostado uma amiga, de ter feito zangar o irmão e de lhes ter talvez roubado alguns momentos de felicidade. Para aliviar o espírito e saber a opinião que uma pessoa desinteressada teria do seu procedimento, falou ao senhor Allen no projeto do irmão e dos Thorpes para o dia seguinte. O senhor Allen atalhou logo:
- Está bem, também pensas ir?
- Não. Quando eles me falaram nisso tinha já combinado ir passear com Leonor Tilney. Portanto não podia ir, pois não?
- Com certeza que não. Estou satisfeito por isso. Esses passeios assim, não nos convêm. Andarem rapazes e meninas a passear pelo campo em carruagens abertas, não é bonito. Por aqui, vá lá, mas verem-nos por lugares públicos e estalagens! Não acho bem; até me admiro de que a senhora Thorpe consinta numa coisa dessas. Apraz-me saber que não pensas ir, pois tenho a certeza de que a tua mãe não gostaria. Não concordas comigo mulher? Não achas que estes passeios são muito inconvenientes?
- É claro. As carruagens abertas estão muito sujeitas ao pó. Não se pode ter um vestido limpo cinco minutos. Enchemo-nos de lama com as subidas e descidas; o vento despenteia-nos e leva-nos os chapéus. Não gosto nada de carruagens abertas.
- Disso bem sei que não gostas, mas agora não me queria referir a isso. Não achas que é esquisito ver meninas acompanhadas por rapazes, que muitas vezes nem sequer são da família?
- Realmente é assim. Não tolero tal coisa.
- Minha querida senhora Allen - exclamou Catarina porque não mo tinha já dito? Se eu soubesse que havia qualquer inconveniente, nunca teria saído com o senhor Thorpe. Sempre esperei que me avisasse todas as vezes que me visse fazer qualquer coisa imprópria.
- Podes ter a certeza de que o faria, minha querida, pois logo disse à tua mãe à despedida, que tomaria conta de ti. Mas não devemos ser exigentes demais. Os novos são sempre novos, como diz a tua mãe. Tu bem sabes que, quando chegámos, não queria que comprasses aquele vestido de musselina bordado, e tu compraste. A gente nova não gosta que a contrariem muito.
- Mas isto podia ter más conseqüências. Julgo que não lhe seria muito difícil convencer-me.
- Até aqui não houve perigo - disse o senhor Allen -, o que te aconselho é que, de futuro, não acompanhes com o senhor Thorpe.
- Era isso mesmo que eu ia dizer - acrescentou a senhora Allen.
Catarina, embora ficasse aliviada, estava aborrecida por causa de Isabel. E, depois de pensar algum tempo, perguntou ao senhor Allen se não seria bom escrever a Isabel e explicar-lhe que não era bonito sair acompanhada por rapazes, o que talvez ela também não soubesse. Se não escrevesse, receava que Isabel: apesar do que se tinha dado, teimasse em ir a Clifton no dia seguinte. Porém o senhor Allen dissuadiu-a disso.
- É melhor deixá-la. Já tem idade suficiente para saber o que lhe fica bem e, se não sabe, a mãe que a aconselhe. A senhora Thorpe é condescendente de mais, mas, mesmo assim, é melhor não te meteres na sua vida. Ela e o teu irmão querem ir, e se lhes vais dizer alguma coisa, não ficam satisfeitos.
Catarina concordou. E, embora lhe custasse que Isabel não procedesse bem, senti-se acalmada por o senhor Allen aprovar a sua conduta. E regozijou-se verdadeiramente com os seus conselhos que a impediam de cair em erro. Ter escapado de ser um dos componentes do grupo Clifton, fora uma verdadeira fuga. Se fosse com eles, que pensariam os Tilneys por faltar ao prometido e fazer precisamente aquilo que era inconveniente? E se ela por um lado se tornava culpada só para não ser acusada pelo outro?
A manhã seguinte estava bonita e Catarina pensava mesmo que novas súplicas do grupo a viriam afligir. Com o senhor Allen do seu lado já nada receava; mas gostaria que a poupassem a novas discussões em que a própria vitória lhe era igualmente penosa. Por isso, ficou muito satisfeita por não os ver, nem deles ouvir falar. Os Tilneys vieram buscá-la à hora combinada. Sem nenhuma dificuldade a impedi-los, nenhuma lembrança súbita, nenhuma chamada inesperada, nem qualquer intruso que transtornasse os planos, a nossa heroína estava pouco disposta a cumprir o prometido, embora fosse com o próprio herói.
Resolveram passear pela Roek Beechen, aquela bela colina, que a verdura e arvoredo tornavam um dos sítios mais aprazíveis de Bath.
- Nunca olho para ela - disse Catarina, quando seguiam pela beira do rio -, que me não lembre logo do Sul da França.
- Então já esteve no estrangeiro? - perguntou Henrique, um pouco surpreendido.
- Oh, não! É só pelo que tenho lido. Vem-me logo à idéia a região que Emília e o pai atravessaram em Os mistérios de Udolfo. Mas o senhor nunca leu romances, pois não?
- E porque não?
- Porque não são livros bons para si. Os homens lêem livros melhores.
- Toda a pessoa, cavalheiro ou senhora, que não gostar de um bom romance, tem uma grande falta de gosto. Eu já li todas as obras de Mrs. Radcliffe, e a maior parte delas com imenso prazer. Quando comecei a ler Os Mistérios de Udolfo, não parei até ao fim. Lembro-me de que o li em dois dias e sempre com os cabelos em pé.
- É verdade! acrescentou Leonor. - Lembro-me até de que começaste a lê-lo alto para eu ouvir, e de uma vez que tive de me retirar só por cinco minutos, tu, em vez de esperares por mim, foste lê-lo para a Avenida da Ermida. E eu tive de esperar até que acabasses.
- Obrigado, Leonor. És uma boa testemunha. Já vê que se enganou, menina Catarina. Tão interessado estava que não esperei cinco minutos pela minha irmã, faltando à promessa que lhe tinha feito de lho ler em voz alta, e a deixei suspensa na parte mais interessante, fugindo com o livro, que por sinal, era dela. Veja bem, era só dela! Tenho orgulho em pensar nisto e creio que ficará agora com uma opinião mais favorável a meu respeito.
- Realmente gostei de o ouvir falar assim. Nunca mais me envergonharei de dizer que gostei do Udolfo. Sempre julguei que os rapazes fizessem muita troça dos romances, uma troça espantosa.
- Isso é espantoso; o que poderia causar admiração era que o fizesse porque os rapazes lêem tanto como muitas senhoras.
- Eu tenho lido centenas e centenas deles. Não pense que rivaliza comigo em conhecer Júlias e Luísas. Se descermos a pormenores e entrarmos no interrogatório e no inacabável do já leu isto? Já leu aquilo? Em breve a deixaria tão longe como a, que hei de eu dizer? Queria uma boa comparação, como a sua amiga Emília deixou o desgraçado Valancourt quando foi com a tia para Itália. Lembre-se dos anos que lhe levo de dianteira. Quando comecei a estudar em Oxford, era a Catarina uma pequenita que começava a pegar na agulha, e muito boazinha.
- Não era lá muito boa. Mas, com franqueza, não acha que Udolfo é o livro mais bonito que há?
- Quando diz o mais bonito, quer dizer o mais bem feito. Isso depende da encadernação.
- És muito impertinente, Henrique - disse Leonor Tilney. Se a falar consigo como se fosse com a irmã. Está sempre a fazer troça de mim por qualquer incorrecção de linguagem, e agora tomou a mesma liberdade para consigo. A palavra bonito, na acepção que a empregou, não lhe agrada. É melhor substituí-la, senão aborrece-nos todo o caminho com Johnson e Blair.
- Parece me - comentou Catarina - que não disse nada de mal. Mas para mim é um livro bonito, porque é que não lhe hei-de chamar assim?
- É verdade disse Henrique - e hoje está um bonito dia, damos um bonito passeio e as duas são bonitas meninas. Oh! É uma palavra muito bonita, sem dúvida! Serve para tudo. Originariamente talvez só fosse aplicada para exprimir: elegância, propriedade, delicadeza ou esmero. As pessoas ficavam bonitas com os seus vestidos, eram bonitas nos seus sentimentos, nas suas preferências. Mas, agora, qualquer elogio que se faça a isto ou aquilo, tudo se resume a essa única palavra.
- Ainda que só a ti - gritou a irmã - se pudesse aplicar sem lisonja. Tu és mais bonito que esperto. Vamos, menina Morland, deixemo-lo meditar nos nossos erros a propósito da propriedade de linguagem, enquanto nós apreciamos o Udolfo com os adjetivos que nos aprouver. É uma obra muito interessante. Gosta de ler coisas desse género?
- Para dizer a verdade, não há nada de que tanto goste.
- Sim?
- Quer dizer, também gosto de ler poesia, teatro e coisas assim. Não desgosto também de livros de viagens. Mas a história, a história verdadeira, não me interessa. E a Leonor, gosta?
- Gosto, gosto.
- Quem me dera também gostar! Eu só a leio por dever, e não me diz nada que não me aflija ou aborreça. As disputas entre papas e reis, as guerras e pestes em todas as páginas, homens que não têm interesse, e sem mulheres, a maior parte das vezes. É uma coisa muito enfadonha. Por vezes, até me ponho a pensar como é possível haver uma coisa tão sensaborona, desde que grande parte deve ser obra de imaginação. Os discursos que põem na boca dos heróis, os seus pensamentos e projetos, a maior parte das vezes devem ser inventados; e a imaginação, afinal, é o que mais me agrada nos outros livros.
- É que os historiadores - tornou Leonor Tilney - não são felizes nos seus vôos de imaginação. Exibem fantasia, sem despertarem interesse. Eu gosto muito de histórias e contento-me em tomar o falso pelo verdadeiro. Para os fatos principais recorrem a fontes de informação de histórias antigas a memórias, em que se pode ter confiança, embora não estejam à nossa observação direta. Quanto os arrebiques de que fala, não passam disso, e eu aprecio-os como tais. Se um discurso é bem deduzido, leio-o com prazer, sem me importar com o nome do autor, ou melhor, há mais probabilidades de me interessar, se for feito pelo senhor Hume ou pelo senhor Robertson, do que se forem as verdadeiras palavras de Caratacus, de Agrícola ou de Alfredo, o Grande.
- Gostas de história? O senhor AIIen e o meu pai também, assim como dois dos meus irmãos, que não desgostam. Tantos exemplos entre os meus poucos conhecidos é de estranhar. Já não lastimarei mais os historiadores. Se há gente que gosta de ler os seus livros, compreendo; mas ter o trabalho de encher grossos volumes que, como eu pensava, ninguém de boa vontade abriria, é trabalho que só serve para tormento das crianças. Sempre me impressiono! Isso como resultado duma triste sorte. Embora saiba que é uma coisa muito útil e necessária, sempre me sensibilizou ver a coragem das pessoas que se dão a esse trabalho.
- Que martirizam as crianças - disse Henrique - é o que ninguém pode negar, pelo menos aqueles que conhecem a natureza humana num estado de civilização adiantada. Mas, em nome dos nossos mais notáveis historiadores, temos de confessar que eles podiam ser mal julgados se se supusesse que não haviam tido o desejo de ir mais além; e que com o seu método e estilo são igualmente bem qualificados se se disser que também martirizam os leitores da mais lúcida inteligência e experiência da vida. Emprego o verbo martirizar, como vejo que é vosso costume, em vez de instruir, supondo que também seja agora admitido como sinónimo. Há-de pensar mal de mim por chamar à instrução um tormento; mas, se estivesse habituado a ouvir as pobres crianças a juntar as letras, depois a aprender a soletrá-las; se pudesse ver as caras estúpidas que elas têm durante toda a manhã, e que cansada fica a minha mãe, no fim, como eu todos os dias vejo em minha casa, havia de concordar que martirizar e instruir podiam algumas vezes usar-se como sinónimos.
- É muito provável. Mas os historiadores não têm culpa das dificuldades de aprendizagem da leitura. E mesmo a Catarina, que parece ser pouco inclinada a estudos muito sérios e intensos, havia de concordar que, vale a pena ser martirizado durante dois ou três anos, para depois se poder ler tudo. Ora pense: se não lhe tivessem ensinado a ler, a escritora Radcliffe teria escrito em vão os seus romances, ou talvez que nem os tivesse escrito.
Catarina concordou e com um caloroso panegírico dos méritos daquela senhora pôs termo à questão. Os Tilneys em breve se ocuparam de outra coisa, ao que ela nada tinha a dizer. Admiravam a paisagem com olhos de pessoas habituadas a pintar e avaliavam a possibilidade de se poder transmudá-la para quadros, com a sua preocupação de bom gosto. Agora é que Catarina nada percebia. Não conhecia nada acerca de pintura nem de bom gosto. Ouvia-os com atenção, sem daí tirar grande proveito, pois eles usavam frases que mal lhe sugeriam qualquer idéia. O pouco que podia compreender parecia contrariar as parcas noções que possuía. Julgava que um bom panorama se não desfrutava do cimo de uma alta colina e que um céu claro não era sinal de um dia bom. Estava sinceramente confrangida com a sua ignorância - uma vergonha incalculável.
Quem desejar agradar deve mostrar-se sempre ignorante. Apresentar-se com espírito bem informado é apresentar-se com a incapacidade de agradar à vaidade dos outros, o que uma pessoa sensível deseja sempre evitar. Uma mulher, especialmente, se tem a infelicidade de saber alguma coisa, deve ocultá-lo tanto quanto puder. As vantagens da ignorância natural duma bonita menina já foram apresentadas pela cena excelente de uma escritora do meu tempo; e ao focar o problema, acrescentarei, fazendo justiça aos homens, que, para a maior parte do sexo frívolo a imbecilidade realça nas mulheres os encantos pessoais, há também alguns deles, muito sensatos e cultos, que desejariam ver na sua mulher alguma coisa mais do que ignorância.
Mas Catarina não conhecia as suas próprias vantagens. Não sabia que uma menina simpática, com um coração afetuoso e um espírito muito inculto, não podia deixar de atrair um homem inteligente, a não ser que as circunstâncias fossem muito desfavoráveis. No caso atual, ela confessava e lamentava a sua falta de conhecimentos. Declarou que daria tudo por saber desenhar, e logo uma lição sobre pintura se seguiu; as indicações foram tão claras que ela começou logo a compreender a beleza de tudo; que ele admirava. A sua atenção era tão forte que ele ficou muito satisfeito por ver que nela existia um bom gosto natural. Falou de fundos, distâncias e segundas distâncias, de perfis, de perspetivas, de luz. Catarina era uma aluna que prometia tanto, que mal chegaram ao cimo da Rock de Beechen, espontaneamente excluiu toda a cidade de Bath como indigna de fazer parte da paisagem. Satisfeito com o progresso dela e temendo aborrecê-la, ensinando-lhe muita coisa de uma só vez, Henrique pôs de lado aquele tema e, a propósito duma rocha e dum carvalho velho que estava quase no cimo, divagou para carvalhos em geral, para florestas, para as suas vedações, para terras incultas e terras da coroa; reparou que tinha chegado a assuntos políticos, e daqui ao silêncio foi um curto passo. A pausa geral, que se seguiu à sua leve observação a propósito do estado do país, foi cortada por Catarina, que, num tom de voz um pouco solene, pronunciou estas palavras:
- Ouvi dizer que qualquer coisa de extraordinário vai acontecer em Londres.
Leonor Tilney, para quem isto fora principalmente dirigido, ficou assustada e retorquiu logo:
- Ah, sim? E que é?
- Isso não sei, nem tão pouco sei quem é o ator. Só ouvi dizer que será a coisa mais horrível que sa tem visto.
- Credo! Onde ouviu dizer semelhante coisa?
- Um amigo meu recebeu ontem uma carta de Londres referindo-se a isso. Será uma coisa terrível, nunca vista. Estou à espera de mortes e coisas semelhantes.
- Fala com uma calma espantosa. Espero, porém, que as informações do seu amigo sejam exageradas. Se tal projeto é já conhecido antecipadamente, o governo tomará as devidas precauções e evitará a sua eclosão.
- O governo disse Henrique, tentando não sorrir – nem quer nem ousa intrometer-se em tais negócios. Mesmo que haja mortes, o governo não se importa com isso.
Elas olhavam-se assustadas. Ele riu e continuou:
- Vamos lá ver se terei de fazer com que se compreendam uma à outra, ou deixá-las matutar até encontrarem uma explicação. Não: vou ser franco. Provarei que sou um homem, não só pela generosidade da minha alma como também pela clareza do meu espírito. Não tenho paciência para ver certos homens que desdenham ver-se rebaixados pela compreensão de vocês. Talvez as habilidades da mulher não sejam tão grandes nem tão apuradas, nem rigorosas ou perspicazes; talvez lhes falte observação, discernimento, decisão, gênio, talento e espírito.
- Menina Catarina, não ligue importância ao que ele diz, mas tenha a gentileza de satisfazer a minha curiosidade. Diga-me tudo o que sabe acerca dessa terrível revolução.
- Revolução! Que Revolução?
- Minha querida Leonor, a revolução existe só na tua cabeça! Aí é que a confusão é enorme. A menina Catarina referia-se à nova publicação que vai aparecer em três volumes, em corpo doze, de 276 páginas cada um, tendo desenhadas na capa duas sepulturas e uma lanterna. Compreendes? A minha estúpida irmã, menina Morland, não soube interpretar as suas expressões tão vivas. Falou de horrores esperados em Londres, e ela, em vez de pensar que se referia a alguma livraria em voga – o que qualquer pessoa bem equilibrada faria -, lembrou-se imediatamente duma revolução, com três mil homens reunidos no campo de S. Jorge, o banco assaltado, a Torre ameaçada, as ruas de Londres nadando em sangue, um destacamento do regimento de infantaria 12, de Northampton - o forte do país para apaziguar os revoltosos, e o galante capitão Frederico Tilney, comandando o batalhão, deitado abaixo do cavalo por um pedaço de tijolo atirado duma janela. Desculpe a ingenuidade dela. Os receios da irmã juntaram-se às fraquezas da mulher. Contudo, nem sempre é assim tão simplória.
Catarina ficou muito séria.
- E agora, Henrique - disse Leonor - já que fizeste com que nos compreendêssemos, deves fazer com que a menina Catarina te entenda para que não te considere grosseiro para a tua irmã e com pouca consideração pelas mulheres em geral. A menina Morland ainda não está habituada às tuas maneiras extravagantes.
- Terei muito prazer que se habitue a elas.
- Não o duvido. Mas isso não é nenhuma explicação.
- Então que hei-de fazer?
- Tu bem sabes o que tens de fazer. Justifica-te perante ela. Diz-lhe que tens uma grande consideração pela inteligência da mulher.
- Menina Catarina afianço-lhe que tenho uma grande consideração pela inteligência das mulheres muito principalmente pela daquelas - sejam elas quais forem – que estejam ao meu lado.
- Isso não basta. Diz isso mais sério.
- Menina Morland, ninguém tem mais consideração pela inteligência das mulheres do que eu. Na minha opinião, a natureza foi tão pródiga para com elas, que até só precisam de utilizar metade.
- Agora não conseguiremos que ele fale a sério. Está muito trocista. Mas pode ter a certeza de que é incapaz de ser injusto para qualquer mulher ou pouco gentil para comigo.
A Catarina não custou a acreditar que Henrique Tilney nunca deixasse de ser delicado. As suas palavras poderiam às vezes enganar um pouco, mas a sua intenção devia ser sempre justa. Além disso estava pronta a admirar tanto o que entendia como o que não compreendia.
Todo o passeio foi maravilhoso, e, embora acabasse muito depressa, o certo é que teve um bom final. Os amigos acompanharam-na até casa e Leonor Tilney antes de se separarem, pediu à senhora Allen, com a maior delicadeza, que deixasse Catarina ir jantar com ela, dali a dois dias. A senhora Allen não pôs nenhuma dificuldade e Catarina só difìcilmente conseguiu ocultar o excesso de alegria que isso lhe causava.
Passara tão deliciosamente a manhã que nem sequer uma vez durante o passeio se lembrara de Isabel ou de Jaime. Quando os Tilneys se despediram, tornou-se muito atenciosa, mas de pouco valeu, porque a senhora Allen nada lhe disse que lhe acalmasse a ansiedade: nada soubera deles.
Contudo, ao fim da manhã, Catarina lembrou-se de que tinha de ir comprar uns metros de fita, da qual precisava com bastante urgência e saiu. Dirigindo-se aos Armazéns Edgar, encontrou-se, em Bond Street com a segunda menina Thorpe, que andava a passear no meio de duas bonitas meninas que lhe tinham feito companhia durante toda a manhã. Por ela soube que tinham ido a Clifton.
- Partiram esta manhã, às oito - disse Ana -, e não lhes invejo o passeio. Nós é que tivemos sorte em ter ficado. Clifton deve ser muito aborrecido nesta altura do ano; não há lá nem vivalma. A Bela foi com o seu irmão e o João com a Maria.
Catarina patenteou o júbilo que verdadeiramente experimentara ao ouvir as últimas palavras.
- Sim - continuou Ana -, a Maria também foi. Estava mesmo mortinha por ir. Pensava ela que seria um passeio excelente. Não posso dizer que lhe admire os gostos. Quanto a mim, resolvi logo não ir, nem que me pedisse, por tudo quanto há no mundo.
Catarina, duvidando muito, não pôde deixar de responder:
- Também gostava que a menina tivesse ido. Foi pena não terem podido ir todos.
- Muito obrigada mas, isso para mim era indiferente. Não tinha interesse nenhum em ir. Estava mesmo a contar isso à Emilia e à Sofia, quando a menina chegou.
Catarina não se convenceu. Mas, satisfeita por Ana ter duas amigas que a consolassem, despediu-se dela e voltou para casa bem disposta.
Contente por se ter realizado o passeio, apesar da sua recusa, do fundo do coração desejava que fosse muito agradável e que Isabel e Jaime viessem tão satisfeitos que não se lembrassem mais da sua resistência.
Logo no dia seguinte de manhã, Catarina recebeu um bilhetinho de Isabel, muito terno e conciliador, em que lhe pedia que fosse imediatamente ter com ela, para lhe falar de um assunto da máxima importância. Catarina, feliz e ansiosa por saber o segredo, foi, logo que pôde, aos Armazéns Edgar.
As duas meninas Thorpes mais novas estavam sozinhas na sala; e, quando Ana se levantou para ir chamar a irmã, Catarina aproveitou a ocasião para pedir, a Maria, pormenores do passeio do dia anterior.
O maior prazer de Maria era falar nisso. Catarina logo soube que decorrera muito bem. Ninguém podia imaginar como tinha sido encantador. Fora até mais agradável do que todos esperavam. Eis as informações que lhe deu, durante os primeiros cinco minutos. Depois, foram mais pormenorizadas: que tinham ido diretamente ao Hotel lorque, tinham comido alguma coisa e encomendado o jantar para mais cedo; que tinham descido à Fonte, provado da água e gasto alguns escudos em recordações; dali tinham ido tomar gelados a uma pastelaria, regressando depois ao hotel, onde comeram o jantar à pressa para não chegarem de noite; que o regresso fora magnífico; que só tinha sido pena não haver luar e chover um pouco, e o cavalo do senhor Morland estar tão cansado, que lhe custou a chegar a casa.
Catarina escutava com sincera satisfação. Parecia que nem sequer tinham pensado no Castelo de Blaize. Do resto não tinha pena absolutamente nenhuma. Maria terminou dizendo que lhe custara imenso não ter levado também Ana.
- Tenho a certeza de que ela nunca me perdoará, mas, diga-me: que havia de fazer? O João quis antes que fosse eu; jurou que não a levaria, por ela ser muito gorda. Aposto que nem daqui a um mês lhe passará a zanga. Mas estou resolvida a não lhe ligar. Não é qualquer coisa insignificante que me incomoda.
Isabel entrava agora na sala com passo tão apressado e com uma cara tão radiante que logo atraiu a atenção de Catarina. Mandou Maria embora e, abraçando Catarina, disse-lhe:
- Sim, minha querida Catarina, é isso mesmo: a tua perspicácia não te enganou. Esses olhos espertos vêem tudo.
A resposta de Catarina foi um olhar de quem nada está a perceber.
- Minha querida Catarina - continuou a outra - sossega. Como vês, estou muitíssimo agitada. Vamos sentar-nos e falar à vontade. Logo adivinhaste, assim que recebeste o meu bilhetinho, não foi? Oh, minha espertalhona! Só tu que me conheces bem, minha querida amiga, podes compreender quanto me sinto feliz. O teu irmão é um rapaz encantador. O que eu desejava era ser digna dele. Mas que dirão os teus queridos pais? Oh, meu Deus! Quando penso neles, fico tão nervosa!
Catarina começou a compreender; de repente fez-se luz no seu espírito. E, com a vergonha natural de uma emoção para ela tão nova, gritou:
- Meu Deus! Que queres dizer com isso, minha querida Isabel? É verdade que amas o Jaime?
Com esta pergunta ousada, compreendeu ao mesmo tempo em que ficara apenas em meio. A simpatia ardente que observou em todos os olhares e acções de Isabel, durante a reunião do dia anterior, recebia a retribuição agradável de um amor igual. Tinha dado o coração e a alma a Jaime. Nunca Catarina ouvira nada que tivesse tanto interesse, admiração e alegria. O irmão e a amiga noivos! Desconhecendo as circunstâncias, a sua importância apresentou-se-lhe como um daqueles grandes acontecimentos que a vida comum raras vezes proporciona. Não tinha palavras que traduzissem a intensidade dos seus sentimentos, mas a atitude que tomou satisfez a amiga. A felicidade de ter uma irmã assim foi a sua primeira manifestação de alegria. As duas lindas meninas abraçaram-se e choraram de satisfação.
O regozijo de Catarina pelo próximo casamento era grande, mas, diga-se de passagem, muito ultrapassado por Isabel, que fazia projetos felizes.
- Oh, querida Catarina, ainda gostarei mais de ti que da Ana ou da Maria; parece que ainda me hei-de dar melhor com a família do meu querido Jaime do que com a minha.
Isto ultrapassava a amizade de Catarina; não estava no seu modo de ser mostrar-se tão amiga.
- Pareces-te tanto com teu irmão - continuou Isabel - que logo gostei de ti mal te vi. É uma coisa que me acontece muitas vezes; logo à primeira me decido. No Natal passado, no próprio dia em que o Jaime chegou a nossa casa, assim que o vi, o meu coração ficou irremediàvelmente preso. Ainda me lembro: envergava um vestido amarelo e andava de tranças. Quando entrei na sala de visitas e o João mo apresentou, vi logo que nunca tinha encontrado um rapaz mais bonito.
Ao ouvir isto, Catarina, avaliou o poder do amor, porque, embora fosse muito amiga do irmão, e portanto parcial na apreciação dos seus predicados, nunca o julgara bonito.
- Lembro-me também de que nessa noite a menina Andrews tomou chá em nossa casa. Trazia um vestido de tafetá castanho. Estava tão bonita, que logo pensei que o teu irmão se apaixonaria por ela. Nem pude dormir toda a noite a cismar nisso. Oh, Catarina, quantas noites passei em claro, por causa do teu irmão! Não desejo que sofras metade do que eu sofri. Estou magríssima, bem sei. Mas não te quero afligir com a descrição das minhas preocupações. Já viste bastante. Eu bem sei que estou a descobrir continuamente, falando com tanta franqueza da minha preferência pela igreja. Mas estou certa de que o meu segredo não passará de ti.
Catarina pensava que nada podia estar mais seguro; mas, envergonhada por mostrar uma ignorância que não era de esperar, não ousou discutir o assunto nem passar por não ter uma sagacidade aguda e uma amizade afetuosa como Isabel julgava que lhe dedicava. Compreendeu que o irmão se preparava para ir com freqüência a Fullerton anunciar a situação e pedir o consentimento dos pais; aqui está o verdadeiro motivo da agitação do espírito de Isabel. Catarina esforçou-se por convencê-la, como ela o estava, de que os pais não se oporiam aos desejos do filho.
- É impossível - exclamou ela - haver pais mais benévolos ou que mais desejem a felicidade dos filhos. Não tenho a menor dúvida de que consentirão imediatamente.
- O Jaime diz a mesma coisa - replicou Isabel - e, contudo, nem assim ouso esperar; a minha fortuna é tão pequena que nem devem consentir. O teu irmão que podia casar com quem quisesse.
Catarina voltou a compreender o poder do amor.
- Isabel, tu és modesta de mais. Diferenças de fortuna nada querem dizer.
- Oh, minha querida Catarina, para o teu coração generoso bem sei que nada significa; mas não podemos julgar que todos tenham o mesmo desinteresse! Quanto a mim, bem gostava que as nossas situações se invertessem. Tivesse eu milhões, fosse eu a senhora de todo o mundo, o teu irmão seria o meu escolhido.
Estes sentimentos sensatos, e que só nos romances se vêem, lembraram a Catarina todas as heroínas do seu conhecimento. Nunca vira a amiga tão bela como agora, que proferia conceito tão sublime.
- Tenho a certeza de que eles hão-de consentir - era a sua afirmação constante -, tenho a certeza de que vão ficar encantados contigo.
- As minhas pretensões - disse Isabel - são tão pequenas que o rendimento mais ínfimo do mundo me bastaria. Quando se está verdadeiramente enamorado, a própria pobreza é riqueza; detesto a magnificência, nem por nada viveria em Londres. Uma casinha em qualquer pobre aldeia seria o meu ideal. Há umas casinhas tão lindas em Richmond.
- Em Richmond! - exclamou Catarina. - Tem que ir viver para perto de Fullerton. Têm que ficar junto de nós.
- Terei muita pena, se assim não for, podes ter a certeza. Se pudesse ao menos ficar ao pé de ti, já me contentaria. Mas tudo isto são castelos no ar. Não quero pensar em tais coisas, sem ter o consentimento de teu pai. O Jaime disse que, indo esta noite por Salisbury, amanhã já poderíamos receber resposta. Amanhã! Já sei que não hei-de ter coragem de abrir a carta. Ai, que aflições!
Um devaneio sucedeu a esta convicção; Isabel tornou a falar para resolver como havia de ser o seu vestido de noiva. A conversa foi interrompida pela entrada do próprio noivo que vinha despedir-se, antes de partir para Wiltshire.
Catarina queria dar-lhe os parabéns, mas não sabia o que havia de dizer: a eloqüência fìxou-se-lhe nos olhos. Os oito termos do discurso evidenciaram-se expressivamente e Jaime pôde juntá-los com facilidade. Impaciente como estava pela realização do que calculava iria passar-se em casa, despediu-se sem grandes demoras, e mais depressa o teria feito se a sua querida o não tivesse detido por mais de uma vez. Já à porta, duas vezes teve de voltar atrás pela preocupação que ela tinha de o ver partir.
- Oh, Jaime, estou a ver que sou forçada a mandar-te embora! Olha que tens ainda muito que andar. Não quero que estejas com tantas demoras. Por amor de Deus, não percas mais tempo. Vai, vai, peço-te por tudo.
As duas amigas agora mais unidas do que nunca, estiveram todo o dia juntas. Em projetos de felicidade fraterna passaram as horas. A senhora Thorpe e o filho, que sabiam tudo e que parecia só esperarem pelo consentimento do senhor Morland para considerarem o noivado de Isabel como o acontecimento mais feliz da família, tiveram licença para acrescentar os seus conselhos e juntar a sua parte de olhares significativos e expressões indecifráveis para as irmãs mais novas, excluídas do segredo.
Para a consciência simples de Catarina, esta estranha espécie de reservas não lhe parecia justa nem segura; teria declarado a sua injustiça, se a timidez a não impedisse. Porém, Ana e Maria em breve se satisfizeram, proclamando, insinuantemente, já sabemos do que se trata. Assim se passou a tarde, numa espécie de estado de guerra; de um lado agudezas de espírito, do outro exibição de ingenuidade familiar; de um lado o mistério, o segredo fingido, do outro a descoberta imprecisa. E de ambos igual perspicácia.
Catarina passou o dia seguinte com a amiga, tentando animá-la durante as horas de tédio, antes de vir o correio. Novos esforços tinha de empregar à medida que a hora da chegada se aproximava, porque Isabel estava cada vez mais desanimada, e, antes da carta chegar, tinha conseguido um estado de espírito de verdadeira angústia. Mas quando a leu, para onde foi a sua angústia?
Não tive a menor dificuldade em obter o consentimento dos meus pais. Prometeram-me que fariam tudo o que estivesse ao seu alcance, para que apressasse a minha felicidade. Eram estas as três primeiras linhas, e num momento tudo se transformou em segurança feliz. O brilho mais vivo espalhou-se imediatamente pelas feições de Isabel; todo o cuidado e preocupação pareciam ter desaparecido; a sua alegria tornou-se tão grande que em breve atingiu um grau de impossível domínio chamando-se a si mesma sem hesitações, a mais feliz das mulheres.
A senhora Thorpe com lágrimas nos olhos, abraçava a filha, o filho, Catarina, e teria até abraçado todos os habitantes de Bath com a mesma alegria. O seu coração transbordava de ternura. Era o querido João, a querida Catarina a todo o momento; a querida Ana e a querida Maria, que compartilhavam também agora da sua felicidade. E, para Isabel, era querida em duplicado, e, mesmo assim, nada era para o que aquela querida filha agora merecia.
O próprio João não escondia o seu contentamento e dizia entusiasticamente que Jaime Morland era um dos rapazes mais simpáticos do mundo.
A carta, de que provinha toda esta felicidade, era curta, referindo-se a pouco mais que à notícia do consentimento; os pormenores ficavam adiados até nova carta. Mas com isso Isabel já se não importava. O principal estava na promessa do senhor Morland; a sua consciência havia de o dirigir para que não se levantassem dificuldades. Donde proviriam os seus bens, se de terras ou de dinheiro, isso não passava pelo seu espírito desinteressado. Sabia o bastante para pensar que tinha assegurado um casamento bom e rápido e dava asas à imaginação que a levava a sonhar com a felicidade futura. Via-se, ao fim de poucas semanas, alvo da admiração dos seus novos conhecimentos de Fullerton, motivo de inveja de todas as pessoas amigas de Putney, com carruagem à porta, nome novo nos cartões, exibindo com profusão belos anéis. Depois de lerem a carta, João Thorpe, que esperava só por ela para ir para Londres, preparou-se para partir.
- Bem, menina Morland - disse ele quando a encontrou sozinha na sala -, venho dizer-lhe adeus.
Catarina desejou-lhe boa viagem. Fingindo que não ouvia, o rapaz ia até à janela, andava de um lado para o outro, cantarolava, e parecia muito preocupado.
- Não chegará atrasado a Devízes? - perguntou Catarina.
Ele não respondeu; só passado um minuto disse:
- Palavra de honra este casamento é esplêndido! Foi uma boa idéia da Bela e do Jaime. Que lhe parece a si, menina Morland? A mim parece-me que não é nada mau.
- Acho até muito bem.
- Ora graças a Deus! Gostei de saber que não é contra o casamento. Conhece a velha cantiga Atrás de um casamento, outro casamento vem? Espero que vá ao casamento da Bela.
- Sim, prometi acompanhar a sua irmã, se puder.
- Então - disse ele muito atrapalhado, com um riso parvo -, veremos se fala verdade a velha cantiga.
- Ah sim, quer? Mas eu não canto. Desejo-lhe boa viagem. Como vou hoje jantar com Leonor Tilney, tenho de sair já.
- Ora não tenha assim tanta pressa. Sabe-se lá quando nos tornaremos a ver! Que eu não me demorarei mais de quinze dias. E que longos me vão parecer!
- Então porque se demora tanto? - disse Catarina, vendo que ele esperava uma resposta.
- Isso é muita gentileza e bondade da sua parte, que não esquecerei facilmente. A menina é melhor que ninguém. Não é só estupendamente bondosa, é tudo, tudo o que há de melhor. E depois tem um tal, palavra de honra, não conheço ninguém como a menina.
- Oh, meu Deus, há tanta gente como eu e muito melhor! Bom dia, senhor Thorpe.
- Mas, menina Catarina, se não lhe for desagradável, irei qualquer destes dias a Fullerton.
- Faz favor. Os meus pais gostarão muito de o ver lá.
- E espero, espero, menina Morland, que também não se aborrecerá com isso.
- Oh, absolutamente nada! Muito poucas pessoas haverá que eu não goste de ver. Ter convivência é sempre agradável.
- É precisamente esse o meu modo de ver. Muitas vezes digo que me deixem estar ao pé de quem amo, que me deixam estar só onde gosto e com quem me agrada, e que o diabo leve o resto. Sinto-me muitíssimo satisfeito por lhe ouvir dizer o mesmo. Parece-me, menina Morland, que na maior parte dos casos pensamos da mesma forma.
- Pode ser; nunca reparei nisso. Quanto a ser na maior parte dos casos, duvido muito, pois nalguns nem sequer me conhece.
- Precisamente como eu. Não é meu costume cansar o cérebro com o que não me interessa. A idéia que tenho das coisas é muito simples. O que quero é casar com a menina de quem gosto, ter uma casa confortável para viver, e, quanto ao resto, não me interessa. Não olho a fortunas. Eu tenho bom rendimento, e se ela não tiver nem um tostão, tanto melhor.
- Nisso concordo consigo. Se um tem fortuna, o outro não a precisa. Não importa qual deles a tenha, desde que lhes seja suficiente para viver. Não tolero aqueles que têm grandes fortunas e andam à cata de outras. Casar só por dinheiro, penso eu, é a coisa mais repugnante que pode haver. Bom dia, senhor Thorpe. Gostaremos muito de o ver em Fullerton logo que possa. - E despediu-se.
A gentileza de João Thorpe não conseguiu retê-la mais tempo. Com tantas novidades para comunicar e aquela visita para fazer, nada do que ele pensou para conseguir demorá-la mais tempo surtiu efeito. Viu-a sair apressada, e ficou plenamente convencido de que se tinha declarado e de que ela o aceitara.
A sua admiração ao saber do próximo casamento do irmão fez com que Catarina esperasse que o senhor e a senhora Allen ficassem também surpreendidos ao ouvir tão extraordinária notícia. Porém como se enganou! Aquele tão importante negócio tinha sido previsto por eles, logo que o irmão chegara; e por isso limitaram-se a desejar que fossem muito felizes, referindo-se, ainda, o senhor Allen à beleza de Isabel, e a esposa à sua grande sorte.
Para Catarina isto foi uma prova de grande falta de sensibilidade. O que causou surpresa, porém, à senhora Allen foi o fato de Jaime ter ido no dia anterior para Fullerton. Não conseguiu ouvir com perfeita calma, o que ela dizia. Várias vezes lamentou a necessidade que os obrigara a guardar segredo, pois gostaria de tê-lo visto antes, ter sabido disso antecipadamente, porque queria mandar muitos cumprimentos às famílias Morland e Skinner.
Catarina esperava que a sua visita a Milsom Street lhe proporcionasse tão grande prazer que era inevitável uma desilusão. Embora o general Tilney a recebesse muito amavelmente, embora a filha fosse muito gentil e Henrique estivesse em casa, e sem outras pessoas de fora, achou, ao regressar a casa, e sem gastar muitas horas na apreciação dos seus sentimentos, que a visita a não tornara tão feliz como tinha esperado.
Em vez de sentir mais intimidade com Leonor Tilney, depois da convivência de um dia, parecia-lhe que tal intimidade não aumentara muito; em vez de achar Henrique mais simpático em família, pareceu-lhe que nunca falara tão pouco, nem fora tão pouco agradável, assim como o pai, apesar das suas grandes amabilidades, agradecimentos, convites e cumprimentos. Foi com uma sensação de alívio que os deixou. Não sabia o que pensar de tudo isto. Tinha a certeza de que a culpa não partiu do general. Não se podia duvidar de que era um homem encantador, agradável e bom, pois era alto, simpático e pai de Henrique.
Ele não tinha culpa da falta de vivacidade dos filhos nem de que a sua companhia os não distraísse. Esperava que fosse acidental o primeiro ponto e o segundo atribuía-o só à sua estupidez.
Isabel, depois de ouvir os pormenores da visita, explicou tudo de maneira diferente.
- Era tudo por orgulho, um orgulho e uma altivez insuportáveis. Já há muito tempo compreendera que eles eram uma família de altivos, e agora o seu procedimento confirmava a sua opinião. Nunca na sua vida vira insolência igual à de Leonor Tilney. Nem sequer fazer as honras da casa com um pouco de boa educação! Tratar a sua hóspede com tanta arrogância, mal lhe falando!
- Tu exageras, Isabel; não foi nada arrogante. Mostrou-se até muito gentil.
- Oh, não queiras defendê-la. E até o irmão, que parecia gostar tanto de ti! Meu Deus não compreendo os sentimentos de certa gente. Então ele mal olhou para ti em todo o dia?
- Eu não disse isso. O que me parecia é que não estava bem disposto.
- Que vileza! Se há coisas que me irritam, a inconstância é uma delas. Nunca mais penses nele, minha querida Catarina. É indigno de ti.
- Indigno! Não me parece que ele tenha alguma vez pensado em mim!
- É precisamente isso que eu digo; ele nunca pensou em ti. Que volubilidade! É bem diferente do teu irmão e do meu. O João é realmente um rapaz muito fiel.
- Quanto ao general, era impossível tratar-me com mais atenções e gentilezas. A sua única preocupação parecia ser querer entreter-me e por-me bem disposta.
- Ainda ninguém me disse mal dele; creio até que não é orgulhoso. Parece-me um perfeito cavalheiro. O João diz muito bem dele, e a opinião do João.
- Vamos ver como se portam esta noite; certamente encontramo-nos nos Salões.
- E eu poderei ir também?
- Então não tencionas ir? Julguei que estava já assente.
- Não, mas, desde que tu queiras, não te posso dizer que não. Mas não me obrigues a andar muito alegre, pois bem sabes que o meu coração está a quarenta milhas de distância. E então não me fales em dançar; nem é bom pensar nisso. Bem sei que o Carlos Hodges me vai aborrecer a sério, mas hei-de fazer com que desista. Muito natural que ele compreenda logo a razão; e é isso precisamente que quero evitar. Farei todos os esforços para que não mude de ideias.
A opinião de Isabel acerca dos Tilneys não influenciou a amiga. Estava convencida de que não houvera insolência no tratamento do irmão ou da irmã, e não acreditava que fossem orgulhosos.
À noite confirmou-se a sua opinião. Um tratou-a com a mesma amizade, o outro com a mesma gentileza de sempre. Leonor Tilney fez todos os esforços para ficar ao lado dela, e Henrique convidou-a para dançar.
Tendo ouvido dizer no dia anterior, em Milsom Street, que o irmão mais velho, o capitão Tilney, era esperado a todo o momento, tinha a certeza de que o nome correspondia a um rapaz muito moderno e bonito e que, apesar de nunca o ter visto, reconhecia. Olhou-o com grande admiração e pensou mesmo que qualquer pessoa o podia julgar mais bonito de que o irmão, embora a seus olhos o aspeto fosse mais arrogante e a fisionomia menos simpática. A sua educação e maneiras eram sem dúvida inferiores, porque, sabendo que ela o ouvia, não só jurou que não ia dançar, porque achava isso impossível, como se riu de Henrique por este dizer que o faria. Por esta última asserção se pode calcular que, qualquer que fosse a opinião da nossa heroína a respeito do capitão, a sua admiração por ela não era de natureza perigosa. Nada que pudesse Tilney levantar questões entre os irmãos ou causar perseguições à dama. E não pode ser o cabecilha dos três malandros disfarçados de cocheiros, por quem ela seria forçada a entrar na carruagem de quatro lugares e que a arrebatariam em velocidade inacreditável. Catarina, porém, estava longe de ter pressentimentos de tal desgraça ou de outras quaisquer; só a preocupava ter pouco espaço para dançar, o que não a impedia de gozar a satisfação habitual de estar com Henrique Tilney, escutando tudo o que ele dizia, com um prazer que lhe dava maior brilho aos olhos; e, achando-o irresistível, sentiu-se ela também assim.
No fim da primeira dança, o capitão Tilney aproximou-se outra vez dela - o que a aborreceu muito - e chamou o irmão de lado. Afastaram-se, falando em segredo. Ainda que a sua sensibilidade delicada não se alarmasse logo, antes tomasse como natural o fato de o capitão Tilney ter ouvido alguma má referência, que ele agora se apressava a comunicar-lhe, com a esperança de os separar para sempre, ela não podia estar longe de Henrique sem sentir preocupações. Este sobressalto durou cinco minutos; porém, pensava que já um quarto de hora tinha passado - e que longo quarto de hora! Quando ambos voltarão. Teve a explicação disto quando Henrique lhe perguntou se sabia se a sua amiga Isabel Thorpe teria alguma razão para não dançar, visto que o irmão teria muito prazer em lhe ser apresentado. Catarina, sem hesitar, respondeu que estava certa de que Isabel não quereria dançar. A resposta cruel chegou aos ouvidos do outro que imediatamente virou as costas.
- O seu irmão não se importará - volveu ela -, porque há pouco lhe ouvi dizer que não gostava de dançar. Mas foi muito simpático da sua parte ter tido essa gentileza. Suponho que viu Isabel sentada e julgou que estivesse à espera de par, mas está enganado, porque ela por nada dançaria.
Henrique sorriu e tornou:
- Preocupa-se tão pouco em compreender os motivos das acções dos outros?
- Quê! Que diz?
- Consigo isso não se dá. Como é que uma pessoa há-de proceder para chamar a atenção? Qual será o agente mais eficaz que vá influir nos sentimentos, na idade, na situação e em determinados hábitos de vida de uma pessoa? Mas como havia eu de chamar a atenção, qual seria o agente que me levaria a proceder desta ou daquela forma?
- Não compreendo.
- Então estamos em campos muito desiguais, porque eu compreendo-a muitíssimo bem.
- A mim? Sim. Eu não sei falar suficientemente bem para tornar-me incompreensível.
- Bravo! Uma sátira magnífica em linguagem moderna. Mas, por favor, explique-me o que quer dizer.
- Que lhe explique? Quer na verdade que lhe diga? Olhe que não faz idéia das conseqüências; pô-la-ão em situação muito melindrosa e decerto chegaríamos a um desacordo.
- Oh, não, não pode ser. duvido muito.
- Pois bem, eu só queria dizer que o fato de ter julgado que o meu irmão desejava dançar com a menina Thorpe apenas por delicadeza levou-me a considerar que a sua bondade, comparada à de toda a gente, é muito superior.
Catarina sentiu vir-lhe o calor à cara. Disse que não e as previsões do cavalheiro verificaram-se. Havia qualquer coisa, nas suas palavras, que a acalmaram na sua confusão. De tal forma isso lhe encheu o espírito que por algum tempo esteve alheia, esquecida de responder e de ouvir, quase esquecida do lugar onde estava. Foi acordada pela voz de Isabel, olhou para ela, e viu-a com o capitão Tilney, já preparados para dançar.
Isabel encolheu os ombros e riu, única explicação que podia então ser dada para uma mudança tão extraordinária; porém, não foi o suficiente para que Catarina a compreendesse. Confessou a Henrique o seu espanto, em palavras de grande ingenuidade:
- Não sei como isto pudesse ser! Isabel estava tão resolvida a não dançar.
- E Isabel nunca mudou de opinião?
- Oh, mas é porque. E o seu irmão! Depois do que lhe disse, como se atreveu a ir convidá-la?
- Para mim, não é grande espanto. Levou-me a considerar estranho o procedimento da sua amiga e agora também já o considero. Quanto ao meu irmão, o seu procedimento está de acordo com o que é adequado ao seu temperamento. A beleza da sua amiga era uma verdadeira atracção. A fidelidade dela só poderia ser compreendida por si.
- Está a brincar comigo; mas asseguro-lhe que Isabel é muito fiel.
- Tanto quanto se poderia dizer de qualquer outra. Ser sempre leal significa muitas vezes ser teimosa. Quando se cede com vantagem é uma prova de esperteza. E sem me referir ao meu irmão, penso que realmente a menina Thorpe não escolheu mal por agora.
Até acabar o baile as duas amigas não conseguiram encontrar-se para falarem dos seus segredos. Então de braço dado, atravessaram a sala e Isabel explicou:
- Não me admiro que estejas surpreendida. Sinto-me cansadíssima. É um falador incorrigível; ter-me-ia divertido imenso se o meu coração estivesse livre. Preferia mil vezes ter ficado sentada.
- Então porque não o fizeste?
- Oh, minha querida, seria tão notado! E tu bem sabes que não tolero semelhante coisa. Recusei até onde me foi possível, mas ele não aceitava uma negativa categórica. Não fazes idéia do quanto insistiu comigo! Pedi-lhe que me desculpasse e fosse convidar outra. Mas não houve meio. Depois de me convidar, não pensou em mais ninguém. Sabes, não era só para dançar, queria estar ao pé de mim. Oh! Que maluqueira! Disse-lhe que tinha arranjado uma forma muito pouco provável de convencer-me porque não há nada que mais deteste do que ouvir palavras bonitas e galanteios. Mas, então compreendi que não chegaríamos a um acordo, se não fosse dançar. Além disso, pensei que a senhora Hughes, que mo apresentou, podia levar a mal se não o fizesse; e o teu querido irmão, tenho a certeza de que não havia de gostar que eu ficasse toda a noite sentada. Estou tão satisfeita por já ter acabado! Já estava farta de ouvir as suas tolices. E sendo, como é, um rapaz bonito, bem vi que toda a gente olhava para nós.
- Sim, é muito bonito.
- Bonito? Pode ser que seja. É possível que o admirem duma maneira geral. Mas não é o meu tipo. Não gosto absolutamente nada de ver um homem forte e com olhos escuros. Mas não é desengraçado. É dissimuladíssimo, estou convencida. Apanhei-o por várias vezes.
Quando as duas se tornaram a encontrar tinham um assunto mais importante para discutir. Recebera-se outra carta de Jaime Morland, na qual se referia às boas intenções do pai. Uma freguesia que pertencia ao senhor Morland, e de que ele era pastor, dando de rendimento quatrocentas libras por ano, seria entregue ao filho logo que tivesse idade para a receber. Não era uma parcela insignificante dos rendimentos da família nem doação mesquinha para quem tinha dez filhos! Além disso, uma propriedade de quase igual valor fora assegurada como sua herança futura. Jaime mostrava-se grato; e a necessidade que tinham de esperar mais dois ou três anos antes de casarem (com o que ela não contava), foi aceite por ele sem descontentamento. Catarina, cujas expetativas tinham sido tão indefinidas como os seus cálculos acerca dos rendimentos do pai e cuja apreciação era agora declarada pelo irmão, sentiu-se também satisfeita e felicitou Isabel por estar tudo tão bem encaminhado.
- Está muito bem, não há dúvida - retorquiu Isabel, muito séria.
- O senhor Morland portou-se como um verdadeiro cavalheiro, sem dúvida - ripostou a senhora Thorpe muito pacificamente, olhando com desconfiança para a filha. - quem me dera poder fazer outro tanto! Não se pode esperar mais dele. Se depois ele vir que pode fazer mais em vosso proveito, tenho a certeza de que o fará, pois parece-me que deve ser um homem de excelente coração. Quatrocentas libras é uma renda pequena para princípio de vida; mas as tuas aspirações são tão modestas, minha querida Isabel, que nem sequer pensaste no que desejavas.
- Não é por minha causa que desejaria mais. O que me custa é que o meu querido Jaime se veja em dificuldades. Por mim não tem importância; nunca penso em mim.
- Bem sei que não, minha querida filha. É por isso que toda a gente gosta de ti. Nunca conheci uma menina tão estimada, como tu és, por todos que te conhecem. Aposto que quando o senhor Morland te vir, minha querida filha. Mas não quero afligir a nossa querida Catarina com estas coisas. O senhor Morland portou-se muitíssimo bem. Sempre ouvi dizer que era um excelente homem. Tenho a certeza de que se tivesse uma boa fortuna vos daria metade, pois deve ser muito generoso.
- Ninguém tem mais consideração pelo senhor Morland. Mas toda a gente comete os seus erros. Cada um tem o direito de fazer o que quiser do seu dinheiro.
Catarina sentiu-se ofendida com estas insinuações.
- Estou plenamente convencida - disse ela - que o meu pai fará tudo o que puder.
Isabel reconsiderou:
- Quanto a isso, querida Catarina, não pode haver a menor dúvida. Tu que me conheces, bem sabes que ficava satisfeita com uma fortuna muito menor. Não é a falta de dinheiro que me aborrece presentemente; bem sabes que odeio o dinheiro. Se pudéssemos casar agora, nem que tivéssemos só cinqüenta libras de rendimento, sentir-me-ia muito satisfeita. Parece-me que já descobriste a causa da minha tristeza, Catarina. O que me aflige é pensar que só daqui a dois anos e meio o teu irmão pode tomar conta da freguesia.
- Sim, minha querida Isabel - disse a senhora Thorpe -, vê-se bem o que te aflige. Não és capaz de disfarçar. Bem compreendemos a razão do teu desânimo. É motivo para todos gostarem mais de ti, pela tua afeição desinteressada.
Catarina começou a sentir-se mais à vontade. Tentou acreditar que a tristeza de Isabel era só causada pela demora do casamento. E quando depois voltaram a encontrar-se e a viu alegre e amável como de costume, fez por esquecer o passado.
Jaime veio logo depois da carta, e foi recebido com gentileza reconhecida.
Havia já cinco semanas que os Allens estavam em Bath e não sabiam se se demorariam ainda mais tempo. Catarina ouvia-os falar no assunto sempre com ansioso sobressalto. Nada lhe podia ser tão penoso como terminar as suas relações com os Tilneys. Toda a sua felicidade estava em risco, enquanto não decidiram, mas tudo ficou assegurado logo que resolveram alugar a casa por mais quinze dias. Pouco lhe importava a felicidade que lhes trariam estes quinze dias, além de ver mais algumas vezes Henrique Tilney.
Já uma ou duas vezes depois do noivado do irmão, Catarina tinha meditado no que poderia acontecer, e ousara mesmo pensar num talvez; mas, por agora, a felicidade de estar com ele limitava as suas intenções. O presente, agora, compreendia mais aqueles quinze dias e, tendo com certeza a felicidade assegurada para essa altura, o resto da sua vida pouco lhe interessava. Logo que soube da resolução, foi visitar Leonor Tilney e contou-lhe a sua alegria.
A pobre Catarina estava condenada a passar um mau dia. Mal lhe disse todo o prazer que sentia por o senhor Allen demorar um pouco mais, logo Leonor Tilney lhe respondeu que o pai tinha já resolvido deixar Bath no fim da próxima semana. Que golpe! A expetativa da manhã fora de pouca importância, comparada com a desilusão de agora! Catarina ficou muito entristecida e, com grande mágoa, repetiu as últimas palavras de Leonor Tilney: no fim da próxima semana!
- O meu pai raras vezes gosta de estar muito tempo nas termas, o que julgo lhe faria bem. Está aborrecido por não encontrar alguns amigos que esperava, e, como agora se encontra bem, tem pressa de voltar.
- Lamento - disse Catarina muito triste. - Se tivesse sabido disto antes.
- Talvez que. - disse Leonor Tilney, atrapalhada - seria tão boa. Dar-me-ia tanto prazer.
A entrada do pai fez parar as amabilidades de Leonor, que Catarina começava a compreender serem o pedido de troca de correspondência.
Depois de a cumprimentar com a habitual delicadeza, o general voltou-se para a filha e perguntou:
- Então, Leonor, posso felicitar-te por a tua linda amiga ter atendido o teu pedido?
- Estava mesmo a começar a fazer-lho, quando o pai entrou.
- Então continua, pois bem sei o interesse que tens. A minha filha, menina Catarina - continuou ele, interrompendo a filha -, esteve a idealizar um grande projeto. Deixaremos Bath, como ela naturalmente já lho disse, de sábado a oito dias. O meu administrador escreveu-me e diz que a minha presença agora é indispensável em casa e, como não encontrei aqui os meus velhos amigos, o marquês de Longtown e o general Courteney, nada tenho que me prenda por mais tempo aqui. Se conseguirmos convencê-la do que tanto desejamos, nada nos custará deixar Bath. Em resumo, é capaz de abandonar esta terra de triunfos públicos e dar à sua amiga Leonor o prazer da -sua companhia em Gloucestershire? Até me envergonho de lhe fazer este pedido, embora a qualquer pessoa de Bath este convite envaidecesse mais do que à menina. Modéstia como a sua. Mas deixemos isso, nem por nada a quero ofender, elogiando-a francamente. Se nos quiser dar a honra da sua visita, teremos muito prazer. É certo que não terá tantos derivativos como aqui, nem tantos divertimentos e esplendores, pois bem sabe que vivemos duma maneira muito simples e despretensiosa, mas faremos todos os esforços para que não encontre a Abadia de Northanger muito enfadonha.
A Abadia de Northanger! Eis as palavras que penetravam na alma de Catarina e a deixavam extasiada. Sentia-se tão feliz e agradecida, que lhe custou a exprimir com relativa calma. Receber um convite tão lisonjeiro! Solicitarem com tanto empenho a sua companhia! Via nisso, tudo o que havia de honroso, de deleitável, de alegria presente e de esperanças futuras, a que condescenderia, desde que os pais lhe dessem licença.
- Vou já escrever para casa - disse ela -; e se não se opuserem, o que espero não aconteça.
O general também assim o esperava. Já tinha ido falar com os seus amigos de Pulteney Street, e obtivera o seu consentimento.
- Desde que consentem em ficar sem a sua companhia disse ele -, parece-me que poderemos esperar boa vontade de toda a gente.
Leonor Tilney, ansiosa, embora delicadamente, secundou o pai com os seus pedidos, e, passados alguns minutos, resolveu-se o assunto, tendo em consideração a resposta de Fullerton.
Aquela manhã trouxera a Catarina várias sensações: de expetativa, de prazer, de desilusão, que se convertiam agora em completa felicidade. Com um entusiasmo delirante, Henrique no coração, e a Abadia de Northanger nos lábios, correu Catarina para casa a escrever uma carta.
O senhor Morland e a esposa, confiando nos amigos a quem havia entregado a filha, não tiveram dúvidas acerca da família com quem a filha se tinha relacionado; deram, pois, o seu consentimento, logo na volta do correio. Esta licença, embora já esperada por Catarina, fez com que ela se julgasse a pessoa mais feliz do mundo, tanto por ter amigos e muita sorte, como por aquele convite e pelas possibilidades que daí lhe poderiam advir. Tudo parecia combinar-se em seu favor. Pela bondade dos seus amigos Allens viera para Bath, onde tinha encontrado toda a espécie de alegrias. Os seus sentimentos, as suas preferências, tinham sido sempre correspondidos. Por quem quer que sentisse amizade, pudera mantê-la. Isabel ia tornar-se sua irmã, os Tilneys, a quem mais desejava ser agradável, tinham ultrapassado mesmo as suas esperanças com aquele convite amável. Ia ser hóspede escolhida, ia viver durante algumas semanas debaixo do mesmo teto com aqueles que mais estimava, e, a juntar a tudo isto, ia viver numa Abadia. A sua paixão por casas antigas vinha logo a seguir à que tinha por Henrique Tilney, e castelos e abadias povoavam os seus sonhos quando a imagem dele não os preenchia. Ver e explorar as muralhas e as torres duma ou os claustros da outra, fora, de há muitas semanas, o seu sonho dourado, embora lhe parecesse impossível demorar-se lá mais de uma hora. Contudo, isso ia agora acontecer. Com todos os inconvenientes da casa, da entrada, do lugar, do parque, do campo de jogos e da cabana, Northanger tornava-se uma abadia e ela iria viver nela. Os seus corredores compridos e úmidos, as suas celas estreitas e a capela arruinada estariam todos os dias ao seu dispor, e não podia acalmar a esperança de conhecer algumas lendas tradicionais, algumas memórias daquela monja desprezada e infeliz. Parecia-lhe impossível que os seus amigos se mostrassem tão pouco orgulhosos de uma tal casa; que os sentimentos que ela provocava pudessem ser aceites com tanta indiferença. Só por a possuírem há muito se podia explicar tal desinteresse. Uma distinção para que já tinham nascido, não lhes dava orgulho. A superioridade da habitação não era para eles mais do que a superioridade do caráter das pessoas. Muitas eram as perguntas que ansiava fazer a Leonor; mas tão absorventes eram os seus pensamentos, que, quando ela respondia a estas perguntas, pouco mais ficava a saber além do que já sabia: que a Abadia de Northanger fora outrora um convento rico, do tempo da Reforma, que já na decadência tinha ido parar às mãos de um antepassado dos Tilneys; que uma grande parte do edifício era ainda a presente habitação, embora o resto estivesse em ruínas; que ficava num vale, fechado pelo norte e nascente por frondosas florestas de carvalhos.
Com o coração cheio de felicidade, Catarina mal deu conta de que dois ou três dias tinham passado sem voltar a estar com Isabel, além de uns curtos minutos.
Numa manhã em que andava a passear na Fonte com a senhora Allen, sem ter nada que dizer ou ouvir, começou a sentir a sua falta e desejou falar com ela. Mal tinha tido tempo de suspirar cinco minutos pela companhia da amiga, logo esta apareceu e, convidando-a para uma conversa íntima, foram sentar-se.
- Aqui é o meu cantinho predileto - disse Isabel, sentando-se num banco que ficava entre duas portas, donde se podiam ver todas as pessoas que entravam e saíam -; ninguém olha para cá.
Catarina, notando que os olhos de Isabel andavam continuamente de uma porta para a outra, como quem espera alguma coisa com alvoroço, e lembrando-se de que muitas vezes lhe diziam que era perspicaz achou que era uma boa oportunidade de o ser; por isso, disse alegremente:
- Não estejas aflita, Isabel. O Jaime deve estar a chegar.
- Ora, minha querida - replicou ela -, não me julgues tão piegas, pensando que o quero ter sempre a meu lado. Não seria bonito estarmos sempre juntos; seríamos o divertimento de toda a gente. Então, vais para Northanger! Estou satisfeitíssima por sabê-lo. Pelo que ouço dizer é uma das regiões mais antigas da Inglaterra e uma das mais bonitas. Espero que depois me faças uma descrição minuciosa.
- Da melhor boa vontade. Mas por quem esperas? As tuas irmãs vêm cá?
- Não espero por ninguém. Os olhos devem ocupar-se com qualquer coisa, e tu bem sabes que tenho o costume muito extravagante de entretê-los, quando os meus pensamentos estão a cem milhas de distância. Estou absolutamente distraída; creio até que sou a pessoa mais distraída do mundo. O Tilney diz que isto só se dá com pessoas de certo feitio.
- Mas, Isabel, eu pensava que tivesses alguma coisa de especial a dizer-me!
- Oh, tenho, pois tenho. Ora aí está uma prova do que te estava a dizer. Que cabeça a minha! Já me tinha esquecido por completo. O caso é este: acabei de receber uma carta do João. Adivinhas do que se trata?
- Não, não sou capaz.
- Meu amorzinho, não queiras ser tão fingida. De quem é que ele podia falar a não ser de ti? Sabes, está mesmo pelo beicinho.
- O quê, comigo?
- Ora, Catarina, isso é quase absurdo! A modéstia e tudo o mais são coisas muito bonitas, mas na conta devida; um pouco de sinceridade, porém, também não fica mal de vez em quando. Nunca pensei ser preciso explicar-me tanto! É gostar de receber cumprimentos. Até uma criança teria notado as suas atenções. E só meia hora antes de partir de Bath é que lhe disseste que sim. É o que ele afirma na carta. Diz que se te declarou e que tu o aceitaste de bom grado. Agora quer que interceda pelas suas intenções e te diga coisinhas amáveis. Por isso é inútil estares a fingir que nada sabes.
Catarina, com toda a veemência da verdade, exprimiu o seu espanto ao ouvir tais palavras, afirmando que não sabia que o senhor Thorpe se tinha apaixonado por ela e negando a possibilidade de ela lhe ter dado a entender que era correspondido.
- Quanto às suas gentilezas, declaro, pela minha honra, que então não as tomei como tais, excepto no primeiro dia que chegou e me pediu para dançar. E quanto a fazer-me qualquer declaração ou qualquer outra coisa, seria um despropósito inexplicável. Não podia ter confundido uma coisa dessas, bem o sabes. E como sempre desejo ser acreditada, juro que nem uma sílaba sobre tal assunto se trocou entre nós. E logo meia hora antes de partir! Deve ser tudo um grande equívoco, pois se nem sequer o vi uma só vez em toda a manhã!
- Lá isso é que viste, porque estiveste toda a manhã nos Armazéns Edgar. Foi no dia em que veio o consentimento do teu pai, e quer-me bem parecer que tu e o João ficaram sozinhos na sala, pouco tempo antes de tu saíres lá de casa.
- Tens a certeza? Bem, se a tens, é possível que seja, mas, palavra de honra, não me lembro. Lembro-me, sim, de estar contigo e de o ter visto como vi os outros, mas lá que estivéssemos cinco minutos sozinhos. Bem, não vale a pena estar com discussões, porque, seja o que for que possa haver da sua parte, podes estar convencida de que de nada me lembro e que, portanto, nunca pensei ou desejei semelhante coisa. É pena que ele esperasse qualquer coisa, mas a verdade é que nunca houve nada de intencional da minha parte, e nem suspeitei de nada. Peço-te que o convenças a desistir; que desculpe, isto é, não sei como hei-de dizer. Faz por lhe mostrar as coisas como elas são, mas de uma maneira delicada. Eu não iria falar desrespeitosamente de um irmão teu, Isabel; mas, tu bem sabes que, se eu pensar em alguém, não é no teu irmão.
Isabel ficou silenciosa.
- Minha querida amiga - continuou Catarina -, não te zangues comigo. Não me parece também que o teu irmão tenha muito desgosto. E demais a mais estamos para ser irmãs.
- Sim, sim (corando), porém há mais formas de virmos a ser irmãs. Mas, que digo eu? Pois bem, querida Catarina, o caso é este: não aceitas o pobre João não é verdade?
- Não posso retribuir a sua afeição, e também nunca tive tenções de a favorecer.
- Já que assim é, não te censuro mais. O João quis que eu te falasse no assunto, e fi-lo. Mas, confesso, logo que abri a carta achei que era uma coisa muito despropositada e imprudente, de que não podia vir bom resultado. De que é que haviam de viver, se casassem? Ambos, é certo, têm alguma coisa, mas é uma ninharia que não chega para hoje se manter uma família. E, ainda que os romancistas o neguem, não se faz nada sem dinheiro. Só me admiro de que o João pensasse numa coisa destas! Se me perguntasse a minha opinião, dir-lhe-ia logo que era asneira.
- Então não julgas que eu procedi mal? Estás convencida de que nunca pensei iludir o teu irmão, de que nunca suspeitei que ele gostasse de mim, até hoje?
- Oh! Quanto a isso - respondeu Isabel a rir - não pretendo avaliar quais fossem então os teus pensamentos e intenções. Seria um pequeno flirt e, muitas vezes, somos levadas a dar mais coragem do que a que pretendemos. Mas podes estar certa de que seria eu a última pessoa do mundo a criticar-te. Tudo isso é permitido, quando se é nova e alegre. O que se pensa hoje, sabe-se lá se amanhã ainda se manterá! Mudam-se as circunstâncias, alteram-se as opiniões.
- Mas o meu conceito acerca do teu irmão nunca se alterou: foi sempre o mesmo. Estás a falar de coisas que nunca aconteceram.
- Minha querida Catarina - continuou a outra sem lhe prestar atenção -, nunca me passou pela idéia arrastar-te a um casamento, sem saberes o que ias fazer. Nada justificaria o desejo de sacrificar a tua felicidade para obsequiar o meu irmão - pelo fato de ser meu irmão - e que talvez, no fim de contas, podia ser na mesma feliz deixando de casar contigo, porque a gente quando nova raras vezes sabe o que quer. E então os rapazes são tão volúveis e inconstantes! O que digo é isto: porque é que a felicidade de um irmão me há-de ser mais cara do que a de uma amiga? Tu bem sabes que tenho a amizade em conceito muito elevada. Não tenhas pressa, minha querida Catarina, pois se a tiveres podes ter a certeza de que te arrependerás. O Tilney diz que no que as pessoas mais se enganam é nas suas próprias afeições, e eu dou-lhe razão. Ah, lá vem ele! Não faz mal: estou certa de que não nos verá.
Catarina olhou e viu o capitão Tilney. Isabel, fixando-o enquanto falava, depressa atraiu a sua atenção. Aproximou-se imediatamente e sentou-se para onde os movimentos de Isabel o convidavam. O que logo de entrada lhe disse fez estremecer Catarina. Embora falasse baixo, ela conseguiu perceber as suas palavras:
- O quê? Então há-de haver sempre uma terceira pessoa a vigiar-nos?
- Pst! Que disparate! - respondeu Isabel, também em voz baixa. - Para que me mete essas coisas na cabeça? Se eu as acreditasse. O meu espírito, como sabe, é muito independente.
- O que eu queria é que o seu coração o fosse; para mim seria o bastante.
- O meu coração! Que percebe de corações? Não há sequer um homem que tenha coração.
- Se não temos coração, temos olhos, e muito nos atormentam.
- Ah, sim? Lamento muito; custa-me deveras que lhes desagrade tanto a minha pessoa. Vou então olhar para outro lado. Espero que assim fique mais satisfeito. (Volta-lhe as costas). Espero que não atormentarei agora mais os seus olhos.
- Nunca os atormentou tanto, porque se vê ainda a sua face encantadora, o que é muito, e, ao mesmo tempo, pouco.
Catarina ouviu tudo isto e, irritada, não quis escutar mais. Admirada por ver que Isabel lhe correspondia, cheia de ciúmes por causa do irmão, levantou-se e, dizendo que queria ir ter com a senhora Allen, pediu-lhes que a acompanhassem. Isabel, porém, não queria. Estava exausta e não gostava nada de se exibir na Fonte; e, se ela saísse dali, as irmãs, que esperava a todo o momento, já não a encontrariam; portanto a sua querida Catarina tinha de a desculpar e sentar-se outra vez.
Mas Catarina sabia também ser teimosa. E como naquele momento a senhora Allen lhe veio perguntar se já queria ir-se embora, foi com ela e deixou Isabel sentada ao lado do capitão Tilney.
Bem lhe custava deixá-los sós. Parecia-lhe que o capitão Tilney estava apaixonado por Isabel e que esta lhe correspondia. Naturalmente, ela nem dava por isso, pois sabia-se bem que o amor de Isabel por Jaime estava tão certo como o seu noivado. Era impossível duvidar da sua sinceridade e das suas boas intenções. Porém, durante a conversa que ambas tinham tido, a sua atitude parecera-lhe bem estranha. Catarina preferia que ela tivesse falado como de costume e não se referisse tanto a dinheiro; também não lhe agradara a alegria que Isabel mostrara ao ver o capitão Tilney.
Parecia-lhe tão extraordinário que ela não percebesse as suas intenções! Estava ansiosa por lhe dizer que se acautelasse. Queria evitar todos os desgostos que o seu temperamento vivo poderia causar tanto ao capitão como a Jaime.
Saber da afeição de João Thorpe não era compensação para a leviandade da irmã. Não acreditava nela, nem desejava que fosse sincera. Não se esquecia de que ele às vezes se enganava; e o fato de o rapaz dizer à irmã que se lhe declarara e que ela o aceitara, convenceu-a de que os seus enganos podiam por vezes ser graves. Não havia razão para se sentir vaidosa, mas perplexa. Na verdade, o que muito a admirava era que o João Thorpe achasse que valia a pena apaixonar-se por ela. Isabel falara das intenções do irmão mas Catarina nunca dera por coisa alguma; Isabel dizia tantas coisas que ela julgava impensadas, que, desejando não se voltassem a repetir, pôs de parte o assunto com satisfação e resolveu meditar na sua felicidade presente.
Passaram alguns dias e Catarina, embora não quisesse desconfiar da amiga, começou a vigiá-la. O resultado das suas observações não foi nada lisonjeiro. Isabel estava completamente mudada. Na intimidade ou nos Armazéns Edgar, ou em casa dos seus amigos de Pulteney Street, a sua mudança era tão pequena que por vezes quase passava despercebida. às vezes notava-se-lhe uma indiferença lânguida, ou uma ausência indefinida de que Catarina nunca ouvira falar; mas, se nada pior houvesse, isso apenas iria contribuir para aumentar os seus encantos e fazer com que a estimassem mais. Contudo, quando Catarina a viu em público, aceitar a corte do capitão Tilney com a facilidade com que ele lha fazia, e dispensando a Jaime os mesmos sorrisos, a mudança tornou-se tão evidente que não deixava dúvidas. Catarina não podia compreender o procedimento inconstante da amiga, nem quais fossem as suas intenções.
Isabel nem sequer podia suspeitar os desgostos que causava; mas o que ofendia ainda mais Catarina era o grau de voluntária irreflexão da amiga. Jaime era quem mais sofria: via-o andar triste e inquieto. Por bem pouco que Isabel mostrasse importar-se agora com aquele a quem tinha dado o coração, parecia a Catarina que era desse que ela continuaria a gostar. Contudo, sentia pena do pobre capitão Tilney. Não que gostasse das suas maneiras, mas o nome era um passaporte para a sua simpatia e pensava já sinceramente condoída, na sua próxima desilusão; porque ela, apesar do que tinha ouvido na Fonte, não se convencia de que ele soubesse do noivado de Isabel. Podia ter ciúmes do irmão, como de um rival mas, se nada mais havia, talvez a falta não passasse de um equívoco. Ela queria delicadamente lembrar a Isabel a sua situação e pedir-lhe que tivesse pena de ambos; mas não se lhe proporcionava o momento para isso. Se alguma vez fazia qualquer alusão, ela fingia sempre não a compreender. No meio de toda esta tristeza, o que a consolava era saber da próxima partida dos Tilneys. Tencionavam sair dentro de poucos dias e a partida do capitão trazia paz a todos os corações, menos ao dele. Mas o capitão Tilney não pensava, por agora, deixar Bath. Não ia, portanto com eles para Northanger. Quando Catarina teve conhecimento disto resolveu falar com Henrique Tilney. Fez-lhe ver quanto lamentava a preferência do irmão por Isabel Thorpe e pediu-lhe que lhe dissesse que estava noiva de Jaime.
- O meu irmão já o sabe - foi a única resposta de Henrique.
- Já? Então porque razão fica em Bath?
Henrique não respondeu e ia mudar para outro assunto, mas ela continuou:
- Porque é que o não convence a ir-se embora? Quanto mais tempo aqui estiver, tanto pior para ele. Por favor, aconselhe-o a deixar Bath imediatamente, para o seu próprio bem e para descanso de todos. A separação fá-lo-á esquecer. Ele não tem nada a esperar dela e portanto só ficará para ter aborrecimentos.
Henrique sorriu e disse:
- Tenho a certeza de que o meu irmão não fará tal coisa.
- Então convença-o a ir-se embora, sim?
- Mas a persuasão é uma ordem, e desculpe-me se nem mesmo o persuadir. Já lhe disse que a menina Thorpe está noiva. Já sabe com o que tem a contar, e portanto que se arranje.
- Não, não sabe - disse Catarina - o desgosto que causa a meu irmão. Jaime nunca me disse nada a esse respeito, mas bem vejo que anda triste.
- E tem a certeza de que a culpa é do meu irmão?
- Tenho, sim.
- Que é que lhe causa tristeza: as atenções de meu irmão ou o bom acolhimento que a menina Thorpe lhes dá?
- Então não é a mesma coisa?
- Parece-me que o seu irmão deve achar alguma diferença. Nenhum homem se ofende por outro admirar a mulher que ama: o que o atormenta é o procedimento dela.
Catarina corou pela alusão á amiga e disse:
- A Isabel está a proceder mal, mas tenho a certeza de que não pensa que afligiu o meu irmão, porque gosta muito dele. Apaixonou-se logo que o viu, e, enquanto se não soube do consentimento do meu pai, andava muitíssimo impaciente. Bem vê que deve gostar muito dele.
- Agora compreendo: está apaixonada pelo Jaime e namora o Frederico.
- Oh, não; isso não! Uma mulher que ama um homem não pode namorar outro.
- É provável que nem ame tanto nem namore tanto, como se tivesse ocasião para fazer as duas coisas separadamente. Os dois têm de ceder um pouco.
Depois de uma curta pausa, Catarina disse:
- Então acredita que Isabel não gosta muito do meu irmão?
- Não posso dizer.
- Mas, o que seu irmão tenciona fazer? Se sabe que ela está noiva, o que pretende, procedendo assim?
- Você é muito questionadora!
- Então porque, pergunto aquilo que quero saber.
- Mas só pergunta o que espera resposta?
- Pois então! Pelo menos assim. Você sabe ler no coração do seu irmão?
- No seu coração, como diz, difìcilmente se pode ler neste momento.
- Porque?
- Por que! Desde que é para adivinhar. Vamos ambos decifrá-la. Ser guiado por versões em segunda mão é lamentável. As premissas estão à vista. O meu irmão é um rapaz amigo de se divertir e até talvez, por vezes, estouvado; conhece a sua amiga há quase uma semana e quase na mesma altura soube que estava noiva.
- Pois bem - disse Catarina depois de meditar alguns minutos. O senhor pode saber adivinhar as intenções do seu irmão, mas eu é que não sei. E o seu pai não se aborrece com isto? Não quer que o capitão Tilney se vá embora? Certamente se o seu pai lhe falasse, partiria com certeza.
- Oh, menina Catarina! - disse Henrique. - Na sua bondosa solicitude pela segurança de seu irmão, não estará um pouco errada? Não será ir longe de mais? Agradecer-lhe-á ele, a si, a sua felicidade ou a de Isabel Thorpe, pelo fato de supor que a afeição dela, ou pelo menos o seu bom comportamento, é assegurado com a partida do capitão Tilney? Ele confia nela só quando não há outro no seu caminho? O coração dela só é firme quando outro não lho solicita? Ele não pode pensar assim e muito menos quereria que a menina o fizesse. Não direi esteja sossegada porque sei que o não está neste momento. Mas digo-lhe: esteja tão sossegada quando puder. Não duvide do amor entre o seu irmão e a sua amiga; convença-se de que o verdadeiro ciúme não pode existir entre eles; convença-se de que nenhuma arrelia pode ser duradoira. Conhecem bem o coração um do outro, ao passo que a menina não conhece nenhum deles. Sabem bem o que se exige e o que se pode suportar. Pode estar certa de que um não censurará o outro, além do que é razoável.
Vendo-a indecisa e séria ajuntou:
- Embora Frederico não vá connosco é provável que fique só mais alguns dias. A licença está a acabar e tem de regressar ao quartel. E que resultará de tal conhecimento? À sala de jantar da messe beberá à saúde de Isabel durante uma semana; e ela há-de rir-se com o seu irmão desta paixoneta de um mês do parvo do Tilney.
Catarina já não precisava de continuar a desejar calma para o seu espírito. Resistira às suas réplicas durante toda a conversa, mas agora sentia-se tranqüilizada. Henrique Tilney devia saber mais. Recriminava-se pelos seus receios e resolveu não voltar a pensar tanto a sério no assunto. Esta resolução manteve-se, depois de apreciar o comportamento de Isabel, durante a última vez que passaram juntas.
Os Thorpes reuniram-se na última noite da estada de Catarina em Pulteney Street e nada se passou entre os namorados que lhe roubasse o bem-estar ou lhe fizesse ter apreensões ao deixá-los. Jaime estava bem disposto e Isabel calmamente terna. A ternura para com o namorado parecia-lhe o primeiro sentimento do seu coração - coisa agora permitida; uma vez contradisse nitidamente o namorado e outra retirou a mão das dele. Catarina lembrava-se das instruções de Henrique e julgou tudo isso como prova de discreta afeição.
Imagine-se os abraços, as lágrimas e as promessas da duas meninas quando se separaram.
O casal Allen ficou pesaroso por perder a sua jovem amiga, cuja boa disposição e alegria faziam dela uma companhia valiosa, pois, a título de lhe proporcionarem diversões, tinham-nas eles gozado também.
Porém a sua satisfação por ir com Leonor Tilney não permitiu que eles pensassem mais nisso; e, como tencionavam ficar só mais uma semana em Bath, a falta não seria muito sentida. O senhor Allen levou-a a Milsom Street, onde ia almoçar, e viu que os seus novos amigos a recebiam com a maior gentileza. Porém, tão grande era a excitação de Catarina por se encontrar ali, como pessoa de família, tão grande o receio de fazer o que não devia, e de não ser capaz de continuar a merecer a boa opinião que dela tinham, que quase gostaria de voltar para Pulteney Street.
As maneiras de Leonor Tilney e o sorriso do irmão em breve fizeram desaparecer as suas impressões desagradáveis. Porém, longe estava ainda de se sentir à vontade, apesar das constantes atenções do general que a poderiam tranqüilizar inteiramente. Mas não; pelo contrário, por inacreditável que pareça, talvez se pudesse sentir menos deslocada, se fosse alvo de menos atenções. A preocupação deles era pô-la à vontade. Os pedidos contínuos para que comesse, a preocupação de não lhe servirem qualquer coisa de que não gostasse, embora ela nunca na sua vida tivesse visto metade da comida que havia na mesa -, tornavam impossível fazê-la esquecer que era hóspede. Sentia que não merecia tais atenções E não sabia como corresponder-lhes. O seu à-vontade não melhorava, vendo a impaciência do general por o filho mais velho não aparecer e pela arrelia que mostrava pela sua falta de pontualidade. Nesta altura o capitão Tilney apareceu. Catarina sensibilizou-se ao ouvir a reprimenda severa, que lhe pareceu desproporcionada para a falta; mais se inquietou, quando percebeu que era ela o motivo principal da questão, que a sua demora fora absolutamente indesculpável, que fora uma falta de consideração. Isto colocou-a em situação muito melindrosa, que lhe fez ter pena do capitão Tilney sem por isso esperar a sua amizade.
Ouviu o pai em silêncio e não ousou defender-se, o que veio avolumar a inquietação de Catarina, que desconfiou que tivesse sido Isabel - não o deixando dormir - o motivo verdadeiro de o fazer levantar-se tarde.
Era a primeira vez que estava na sua companhia. Agora contava poder formular uma opinião acerca dele; mas mal ouviu a sua voz enquanto o pai permanecera na sala, e, mesmo depois, tão ofendido estava, que só lhe ouviu dizer baixo a Leonor.
- Quando se forem embora, é que hei-de gozar.
As atrapalhações da partida não são agradáveis. O relógio deu as dez horas quando levavam as malas para baixo; e o general tinha fixado essa hora para a saída de Nilsom Street. Em vez de lhe trazerem o capote para vestir, estenderam-no no cabriolé onde devia seguir com o filho.
O lugar do meio não foi ocupado, embora tivessem de entrar três pessoas, porque a criada de Leonor ocupara-o com tantos embrulhos que Catarina mal tinha lugar para se sentar; e o general, já aflito, muito mais se afligiu ao dar-lhe a mão para subir, pois a sua nova caixinha de correspondência ia caindo ao chão. Por fim a porta fechou-se atrás das três meninas e, conseguindo sentar-se, partiram ao passo certo de quatro belos cavalos, coisa que um gentleman normalmente escolhe para uma viagem de trinta milhas, a distância entre Bath e Northanger, que ia agora ser dividida em duas etapas.
A boa disposição de Catarina apareceu, logo que se puseram em marcha, pois com Leonor não se sentia acanhada. Com a satisfação de passar por uma estrada desconhecida, com a expetativa de ver uma abadia, e ser seguida por um cabriolé, lançou um último olhar a Bath, sem tristeza; sempre que via um novo marco, experimentava novas sensações de surpresa agradável. Seguiu-se o tédio de duas horas de paragem em Petty-France, onde nada mais se faz a não ser comer sem se ter vontade, e gastar o tempo de um lado para o outro sem nada se ver.
A admiração de Catarina pela maneira como viajavam numa vitória moderna, os cocheiros vestidos a rigor, levantando-se ritmicamente nos estribos, numerosos batedores que montavam com elegância, fizeram com que aquele tédio não fosse tão sentido. E se o grupo fosse mais alegre, a demora não teria sido tão notada; porém o general Tilney, apesar de ser um homem encantador, parecia um obstáculo aos divertimentos dos filhos; e pouco ou nada se falava a não ser quando ele o fazia. Verificando isto e vendo que a estalagem não agradava ao general, que se aborrecia com a demora dos criados, Catarina sentiu-se mais aterrorizada com ele, e parecia-lhe que as duas horas aumentavam para quatro. Por fim a ordem de libertação chegou e Catarina ficou muito espantada quando o general lhe propôs que tomasse lugar no cabriolé do filho, até ao final da viagem. O dia estava bonito e ele queria que ela visse bem a paisagem.
A lembrança da opinião do senhor Allen a respeito das carruagens abertas e de rapazes, fê-la corar ao ser-lhe proposto tal convite. A sua primeira intenção foi recusar, mas a segunda foi acolher com o maior respeito o pensamento do general. Ele não lhe iria propor uma coisa indigna; por isso, passados alguns minutos, encontrou-se ao lado de Henrique, mais feliz que ninguém. Logo se convenceu de que um cabriolé era a mais linda carruagem do mundo.
É certo que a vitória tinha mais imponência, mas era muito maçadora e não podia esquecer-se das duas horas de paragem em Petty-France. Ao cabriolé teria bastado metade do tempo. Os cavalos andavam tão bem que, se o general não quisesse que a sua carruagem fosse à frente, depressa a deixariam para trás. Mas o mérito não provinha só dos cavalos; era Henrique que os guiava bem, com muita segurança, evitando os saltos, sem a intenção de se exibir e sem praguejar para os cavalos. Que diferente era do único homem com quem ela o podia comparar! E o chapéu ficava-lhe tão bem, e os inúmeros cabeções do seu capote davam-lhe um ar tão importante! Ir na carruagem que ele guiava, a seguir ao prazer de dançar com ele, era a maior felicidade que havia. E a acrescentar a isto, tinha agora também o prazer de ouvir elogiá-la, de lhe agradecer, em nome da irmã, a gentileza de ter vindo passar algum tempo com eles. Ele considerava isso como prova de grande amizade pela irmã, amizade por que estavam gratos.
- Leonor - dizia ele - está numa situação muito pouco agradável: não tem nenhuma menina que lhe faça companhia, e, quando o meu pai se ausenta, fica muitas vezes completamente só.
- Então como pode ser isso? – perguntou Catarina. – Não está com ela?
- Nem sempre vivo em Northanger. Estou em Woodston, a vinte milhas de distância, onde tenho a minha freguesia e as minhas propriedades; por isso sou obrigado a passar lá a maior parte do tempo.
- Isso deve custar-lhe bastante.
- Custa-me sempre deixar Leonor.
- Sim, deve custar; além disso, também deve ter pena de deixar a Abadia. Depois de estar habituado a viver numa abadia, uma casa paroquial deve parecer-lhe bem pouco confortável.
Ele sorriu e disse:
- Pelo que depreendo, formou uma idéia muito favorável da Abadia.
- É verdade que sim. Então não é uma casa boa, antiga, como as que se descrevem nos romances?
- E está preparada para afrontar todos os horrores que uma casa como as que se descrevem nos romances possa ter? É corajosa? Não se assusta com quadros e reposteiros que abanam?
- Oh, não! Creio que não teria medo logo à primeira, porque haveria muita gente em casa; além disso, nunca a deixariam muito tempo desabitada, nem a família vinha inesperadamente, como é usual acontecer.
- Isso não. Não temos de apalpar o caminho até uma sala alumiada apenas pelo clarão mortiço das cinzas, nem somos obrigados a dormir no chão em quartos sem janelas, sem portas, ou sem mobília. Mas deve saber que; quando uma menina vai viver pela primeira vez num edifício desses (seja por que motivo for), fica sempre longe do resto da família. Enquanto eles vão para uma das extremidades da casa, ela sobe com Doroteia, a velha governanta, uma escada diferente, através de muitos compartimentos escuros, e por fìm entra num quarto que já não serve desde a morte de alguma prima ou de outro parente que morreu há vinte anos. É capaz de suportar isto? Não ficará cheia de pavor quando se vir assim num quarto sombrio, iluminado apenas pelos raios mortiços duma luz frouxa, com as paredes cobertas de tapeçarias com desenhos de figuras em tamanho natural, e a cama, de damasco verde-escuro ou de veludo vermelho, mesmo de aparência fúnebre? Tem a certeza de que não terá medo?
- Oh, mas isso tenho a certeza de que nunca me acontecerá.
- Com que excitação examinará a mobília do seu quarto! E que verá? Não verá mesas, toucadores, guarda-vestidos ou gavetas, mas, de um lado, um alaúde partido, do outro uma arca enorme que não é capaz de abrir; em cima do fogão o retrato de algum belo guerreiro, cuja figura tanto a há-de impressionar que não será capaz de desviar os olhos dele. Doroteia, entretanto, não menos impressionada pelo seu aspeto, olha para si muito temerosa e diz-lhe alguma coisa. Para a assustar mais, faz-lhe supor que naquela parte da Abadia apareceram fantasmas, e que não fica perto de nenhuma criada. Dizendo isto, retira-se, e ouve durante muito tempo o eco dos seus passos; e, quando, já um pouco atrapalhada, quer fechar a porta, descobre, cheia de susto, que não tem fechadura.
- Oh, senhor Tilney, que medo! Parece mesmo um romance! Mas é possível que isso me aconteça? Tenho a certeza de que a sua governanta não se chama Doroteia. E então, depois?
- Na primeira noite é natural que não aconteça mais nada que possa assustá-la. Depois de vencer o imenso terror que tem pela cama, deita-se e passa algumas horas pelo sono, mas em sobressalto. Na segunda ou terceira noite, porém, haverá uma violenta tempestade. O ribombar do trovão parecerá que abana a asa e o medonho eco repercutir-se-á nas montanhas mais próximas; e, durante as rajadas de vento impetuoso que começa a assobiar, parecer-lhe-á ver (pois a sua lâmpada ainda está acesa) que uma parte da tapeçaria se move mais do que as outras. Incapaz de refrear a sua curiosidade, num momento tão oportuno, levanta-se de um salto, põe o roupão pelas costas e começa a querer descobrir o mistério. Depois de indagar alguns momentos, descobrirá uma divisão secreta disfarçada na tapeçaria, e, ao arredá-la, aparecerá uma porta fechada com trancas e um cadeado, que conseguirá abrir facilmente depois de alguns esforços. Com a lâmpada na mão, entrará num pequeno compartimento abobadado.
- Com o medo, nem seria capaz de fazer isso.
- Pois quê? Então nem depois de Doroteia lhe ter dito que havia uma passagem subterrânea secreta que comunica com a capela de Santo António que fica apenas a duas milhas de distância? Era capaz de sucumbir diante duma aventura tão simples? Tenho a certeza de que não. Desse compartimento passará a muitos mais, sem nada ver de especial. Num, talvez veja um punhal, noutro algumas gotas de sangue, e num terceiro os bocados de algum instrumento de tortura. Mas como isto não era nada de especial, e a lâmpada está a apagar-se, resolve voltar para o seu quarto. Porém ao passar de novo naquele pequeno compartimento abobadado, dá com os olhos num grande contador antigo, de ébano e ouro. Embora notando tudo, tinha-lhe da primeira vez passado desapercebido. Impelida por um pressentimento irresistível, vai abrir as portas e remexe todas as gavetas. Primeiro não descobre nada de importância, a não ser um tesouro de diamantes. Mas, por fim, ao tocar numa mola secreta, abre-se um compartimento interior e aparece um rolo de papel e agarra-o; contém várias folhas manuscritas. Quer levá-lo para o seu quarto mas mal tem tempo de decifrar tu, quem quer que sejas, em cujas mãos caírem as memórias da desgraçada Matilde, quando a lâmpada se apaga e a deixa em completa escuridão.
- Oh, não, não diga isso! Mas, continue.
Henrique, porém, estava muito divertido com o interesse que tinha suscitado, para poder continuar a história sem se rir. Portanto disse-lhe que fantasiasse ela as desgraças de Matilde. Catarina, voltando a si, envergonhou-se do seu arrebatamento e tentou convencê-lo de que, pelo fato de ter estado com tanta atenção, não queria dizer que tivesse receio de que lhe acontecesse o que ele estivera a contar. Tinha a certeza de que Leonor Tilney não lhe daria um quarto como o que ele descrevera. Não estava com medo absolutamente nenhum.
À medida que se aproximavam do fim da viagem, a sua impaciência (esquecida durante a conversa de Henrique), em vez de afrouxar, redobrou, e em cada volta da estrada esperava descobrir as suas paredes maciças de pedra cinzenta, emergindo da mata de velhos carvalhos, com raios do sol-poente a espalhar-se nas suas esguias janelas góticas. Porém, a casa estava num terreno tão baixo que Catarina se encontrou, sem sequer ter visto uma chaminé, a atravessar os grandes portões da Abadia. Ela bem sabia que não tinha razão para se surpreender, mas no entanto esta chegada foi um pouco imprevista. Passar por dependências de aspeto moderno, encontrar-se assim com tanta facilidade nos domínios da Abadia, e atravessar tão rapidamente os arruamentos lisos e suaves, sem pedras, espantos ou solenidades de qualquer espécie, parecia-lhe uma coisa bastante despropositada e incongruente. Mas agora não tinha vagar para considerações dessa espécie. Uma bátega repentina fustigou-lhe o rosto, o que a impediu de continuar a observar a paisagem e lhe desviou todos os pensamentos para o estado do seu novo chapéu de palha. Já estava perto dos muros da Abadia, já descera da carruagem ajudada por Henrique, já estava ao abrigo do velho pórtico, e tinha já mesmo passado para a sala de entrada, onde a sua amiga e o general a aguardavam para a cumprimentar, sem que sentisse o terrível presságio duma futura angústia ou a suspeita momentânea de que cenas passadas, horrorosas, se tivessem desenrolado dentro daquele edifício solene.
A brisa não lhe trazia gemidos ou suspiros de assassinados mas, apenas um chuvisco persistente; e, tendo dado um jeito ao vestido, estava pronta a entrar na sala de estar, e capaz de avaliar onde se encontrava. Uma abadia! Porém ela duvidava, à medida que olhava à sua volta, se as coisas que via lhe dariam essa certeza. Havia bastante mobília em estilo moderno. O fogão, que ela fantasiara ser de grandes dimensões, com gravuras pesadas de tempos idos, era apenas um Rumford, feito de bocados de mármore vulgar embora bonito; em cima, como adorno, a faiança inglesa da mais fina. As janelas, para que olhava com uma atenção particular, porque ouvira dizer ao general que conservara o seu estilo gótico com um cuidado reverente, eram contudo inferiores ao que a sua imaginação tinha pintado. Certo que o arco ogival ainda se mantinha - o estilo era gótico -, e as janelas podiam também ter gonzos. Mas os vidros eram todos tão grandes, tão claros, tão finos! Para uma fantasia que esperava por divisões pequenas, construções maciças, vitrais, pó e teias de aranha, foi um contraste muito desanimador.
O general notando que ela olhava para tudo, começou a falar da pequenez da sala, da simplicidade da mobília, onde tudo servia todos os dias, pretendendo confortar, etc, etc; gabando-se, porém de que na Abadia existiam alguns compartimentos dignos da sua admiração. Ia continuar, mencionando o dourado dispendioso duma sala, quando, tirando o relógio, parou imediatamente para exclamar, com assombro, que faltavam só vinte minutos para as cinco. Parecia que esta fora a ordem da separação; Catarina viu-se arrastada por Leonor Tilney, de tal maneira que ficou logo convencida de que a mais absoluta pontualidade se exigia em Northanger. Passando pela entrada espaçosa e alta, subiram uma escadaria larga, de carvalho brilhante, que, depois de muitos lanços e patamares, as levou a uma ampla galeria. De um lado havia uma fila de portas e do outro era alumiada por janelas que, Catarina mal teve tempo de ver, davam para um pátio. Leonor Tilney, depois de indicar o quarto e de lhe dizer que esperava que o achasse cómodo, saiu, deixando-a entregue a leve correcção no que devia fazer no vestuário.
Um olhar rápido bastou para que Catarina visse que o quarto era muito diverso da descrição com que Henrique tentara assustá-la. Não era, de forma alguma, de dimensões assustadoras, nem tinha tapeçarias ou veludos. As paredes estavam forradas a papel, no chão havia um tapete, as janelas nem eram menos perfeitas nem mais baças do que as da sala de visitas; a mobília, apesar de não ser da última moda, era bonita e confortável, e o ambiente do quarto estava muito longe de ser sombrio.
Assim, apaziguado o seu coração quanto a esse ponto, resolveu não perder tempo a examinar qualquer coisa pormenorizadamente, porque temia desobedecer ao general, demorando-se demais. Despiu o vestido com a possível rapidez, e preparava-se para desatar o fardo da roupa que tinha trazido na carruagem, para logo se poder servir dela, quando os seus olhos pousaram numa grande arca, que estava num nicho, ao fundo, a um dos lados do fogão. Quando a viu, estremeceu, e, esquecendo tudo, ficou parada a olhá-la, estupefata, enquanto estes pensamentos se sucediam: É espantoso! Não esperava ver semelhante coisa! Uma arca tão grande e tão pesada! Que terá? Porque seria aqui posta? Escondida, como se não a quisessem à vista! Hei-de examiná-la, custe o que custar, hei-de vê-la e já agora à luz do dia. Se espero pela noite, a vela pode apagar-se.
Avançou e examinou-a de perto; era em talha, de cedro e de outra madeira mais escura, e estava sob um suporte do mesmo gosto. A fechadura era de prata, já deteriorada pelo tempo, e de cada lado havia vestígios de puxadores, também de prata, partidos, talvez há muito tempo, por qualquer violência estranha; e no meio da tampa via-se um sinal misterioso, do mesmo metal. Catarina curvou-se, olhando-o atentamente, mas não pôde distinguir nada de positivo. Não podia, qualquer que fosse a direcção em que olhasse, acreditar que a primeira letra fosse um T, e contudo, se fosse outra, seria uma circunstância que não deveria causar surpresa. Se originariamente não lhes pertencia, que acontecimentos estranhos podiam ter dado lugar a que estivesse na posse da família Tilney? A sua curiosidade, tímida a princípio, aumentava em cada momento. Pegando com as mãos trémulas no puxador da fechadura, resolveu, a todo o custo satisfazer a curiosidade quanto ao seu conteúdo. Com dificuldade, pois qualquer coisa parecia contrariar os seus esforços, levantou a tampa alguns centímetros, mas neste momento uma inesperada pancada à porta sobressaltou-a, fê-la fugir, e a tampa caiu com um estrondo assustador. O intruso importuno era a criada de Leonor, mandada pela patroa, para a servir no que fosse preciso. Embora Catarina a mandasse logo embora, ela chamou-a à realidade e, apesar do seu desejo febril de descobrir aquele mistério continuou a vestir-se sem demora. Não se apressava muito, porque os seus pensamentos e olhares continuavam a incidir no objeto tão propício a despertar a sua curiosidade e aflição; e, embora não gastasse nem mais um momento em segunda tentativa, não podia afastar-se muitos passos da arca. Finalmente, tendo enfiada uma manga do vestido, julgou que estava quase pronta e que a impaciência da sua curiosidade iria ser satisfeita. Podia bem dispensar-lhe ainda uns momentos. Desesperados haviam de ser os seus esforços para que, a não ser que fosse segura por interferências sobrenaturais, a tampa cedesse num instante. Com esta intenção deu uns passos em frente e a sua confiança não a enganou. O seu ímpeto resoluto deitou para trás a tampa e, aos seus olhos, apareceu uma colcha de algodão, bem dobrada, repousando a um canto como quem tem receio que lhe disputem o lugar. Olhava-a, com o primeiro rubor de surpresa, quando Leonor Tilney entrou apressada, a ver se a amiga estaria pronta. Catarina ficou envergonhada por ter sentido uma curiosidade tão absurda, e, também, por ser encontrada numa tarefa tão irrisória.
- É uma arca muito curiosa não é? - disse Leonor Tilney, quando Catarina à pressa, a fechava e se voltava para o espelho. - Não se sabe há quantos anos aqui está. Como apareceu cá, também não sei. Não a tenho mandado tirar, porque pode servir para arrecadação de chapéus de homem ou de senhora. O pior é ser muito pesada o que dificulta a abertura; neste canto, então, é impossível.
Catarina não tinha coragem para falar; estava corada, e, ao mesmo tempo em que apertava o vestido, pensava, com grande rapidez, nas soluções mais convenientes. Leonor delicadamente aludia ao fato de já ser tarde. Passado meio minuto corriam as duas escadas abaixo, com receio, não de todo infundado, pois o general, que andava a passear na sala, de relógio na mão, no momento em que elas chegaram, tocou a campainha com violência e ordenou:
- Ponham imediatamente o jantar na mesa.
Catarina tremeu, pela rispidez com que ele falou; e, pálida, sentou-se. Ofegante e receosa, sentiu, com pesar, a situação dos filhos e amaldiçoou as arcas velhas.
O general, recobrando a delicadeza ao olhar para ela gastou o resto do tempo a ralhar com a filha por ter obrigado a sua linda amiga a descer tão depressa, a ponto de quase ter perdido o fôlego com a precipitação, quando não havia motivo para assim proceder.
Catarina não sabia como havia de desembaraçar-se do duplo embaraço de ter ocasionado à amiga aquela repreensão e da figura simplória que estava a fazer; por fim, já todos sentados à mesa, o sorriso amável do general e o bom apetite que tinha trouxeram-lhe a tranqüilidade. A sala de jantar era um compartimento majestoso, próprio para uma sala de visitas, maior do que as usuais, ornamentada com estilo luxuoso e rico; os olhos de Catarina, pouco habituados, mal podiam apreciar, a não ser as suas enormes dimensões para as pessoas que a ocupavam. Confessou ao general a sua admiração, e este, bem disposto, concordou que, na verdade, não era uma sala acanhada. Acrescentou ainda que, embora se não importasse, como acontece com a maior parte das pessoas, pensava que uma boa sala de jantar era uma das necessidades da existência. Contudo, acrescentou:
- Devia estar habituada a uma sala maior em casa do senhor Allen, não é verdade?
- Não - disse Catarina. - A sala de jantar do senhor Allen nem é metade desta. Nunca na minha vida vi uma sala tão grande.
A boa disposição do general aumentou. Por ele ter umas salas assim grandes achava que o mais simples era não se servir delas. Os compartimentos mais pequenos deviam ser mais cómodos; as divisões da casa do senhor Allen deviam ser de tamanho devido. A tarde passou sem nada surgir de aborrecido; e, quando o general se retirou, passaram até momentos divertidos. Só na sua presença Catarina parecia um pouco fatigada da viagem; mas, mesmo nessa altura, apesar de um pouco de cansaço e acanhamento, sentiu-se muito feliz, sem desejar a companhia dos seus amigos de Bath.
A noite estava tempestuosa. O vento soprara por vezes durante a tarde; e quando se despediram para se irem deitar, ventava e chovia torrencialmente. Catarina, ao atravessar o salão, escutava a tempestade cheia de medo; e, quando ouviu assobiar o vento do lado da esquina da casa e fechar-se, algures, uma porta com força sentiu, pela primeira vez, que estava realmente numa abadia. Sim, estes eram sons caraterísticos. Traziam-lhe à idéia muitas cenas horríveis, que edifícios como este tinham presenciado. E, do fundo do coração, regozijava-se, ao lembrar-se das circunstâncias favoráveis que acompanharam a sua entrada num edifício tão solene. Nada tinha a recear de assassinos noturnos ou de namorados embriagados. Fora só por brincadeira que Henrique lhe dissera aquilo de manhã. Numa casa tão mobilada e tão guardada, não tinha, com certeza, nada a explorar nem a recear, e estaria neste quarto tão segura como na de Fullerton. Encheu-se de coragem à medida que ia subindo as escadas, e, ao ver que o quarto de Leonor ficava duas portas adiante, entrou no seu, regularmente bem disposta. O crepitar alegre de um bom lume acabou por dispô-la bem.
- Quanto melhor não é - murmurou - encontrar assim já um bom lume aceso, do que esperar, a tremer de frio, que todos se deitassem, como tem acontecido a muitas meninas pobres, e depois vir uma velha criada fiel assustar-nos com um lampião! Como estou satisfeita por Northanger ser assim! Se fosse como em outras casas, não responderia pela minha coragem numa noite destas. Assim, não há motivos para sustos.
Olhou o quarto. As cortinas das janelas pareciam mexer; nada mais podia ser senão o vento, entrando pelos interstícios das portadas. Avançou muito corajosa, cantarolando despreocupadamente, e foi espreitar atrás de todas as cortinas. Realmente não viu nada que a assustasse, e, pondo a mão nas fendas das janelas viu bem que era a força do vento que as fazia agitar. Voltando-se, reparou na velha arca e não sem resultado: desdenhando os receios infundados de uma fantasia ociosa, começou os preparativos para deitar-se. Não havia necessidade de se apressar; não se importava de ser a última pessoa da casa a meter-se na cama; e não atiçaria o lume, porque seria uma cobardia precisar de luz, depois de estar deitada. O lume apagou-se portanto, e Catarina, depois de gastar quase uma hora a preparar-se, passou uma vista de olhos pelo quarto e então feriu-lhe a atenção um velho contador, preto e alto; embora bastante visível, só agora dava por ele. Vieram-lhe logo à idéia as palavras de Henrique e a sua descrição do contador que a princípio lhe passara despercebido. Embora não houvesse nada de real no que ele lhe tinha dito, era, porém uma coincidência estranha. Pegou no candeeiro e examinou de perto o móvel. Não era de ébano e ouro, mas de charão, amarelo e preto da melhor qualidade; e, à luz do candeeiro, o amarelo parecia mesmo ouro. A chave estava na porta e sentiu vontade de o abrir, não com a idéia de que estivesse qualquer coisa lá dentro, mas por ser tão estranho encontrá-lo ali; depois do que Henrique lhe tinha contado, não conseguiria adormecer antes de o examinar bem.
Pôs o candeeiro com muito cuidado sobre uma cadeira, pegou, trémula, na chave e tentou abri-lo; mas a porta resistia a toda a sua força. Alarmada, mas sem coragem para desistir, tentou outro meio; um ferrolho saltou e julgou-se bem sucedida. Mas - coisa estranha e misteriosa! - a porta continuava imóvel. Parou um momento, em admiração ofegante. O vento rugia na chaminé, a chuva açoutava as vidraças com grandes aguaceiros; tudo parecia eco do horror da sua situação. Mas, apesar de tudo, não queria ir deitar-se. Como poderia conciliar o sono, tendo perto um contador tão misteriosamente aferrolhado? Pegou de novo na chave e, depois de lhe dar muitas voltas com a destreza de uma última tentativa de esperança, a porta cedeu num instante. O coração pulsava-lhe de alegria por tal vitória. Abriu as duas portas - a segunda tinha já débeis ferrolhos, embora isso não revelasse nada de anormal – e apareceram-lhe duas filas de pequenas gavetas, tendo, em cima e em baixo, gavetões, e, ao centro, uma portinha fechada à chave, que devia guardar qualquer coisa de muita importância. O coração de Catarina bateu com mais força, mas a coragem não a abandonou. Com o rosto vermelho de esperança, e a curiosidade a bailar-lhe nos olhos, abriu uma gaveta. Estava vazia. Com menos receio e mais impaciência, abriu segunda, terceira, quarta gaveta. Abriu as restantes e nada encontrou. Como já tinha lido muita coisa acerca da melhor maneira de ocultar um tesouro, lembrou-se de que poderia haver esconderijos; portanto, vistoriou todas as guarnições com o máximo cuidado, mas em vão. Só lhe faltava explorar o espaço do centro. E embora nunca se tivesse convencido de que poderia haver alguma coisa em qualquer sítio do contador e não estivesse ainda muito desiludida, seria tolice deixar de examinar tudo, já que começara. Ainda demorou algum tempo a abrir esta portinha, lutando com as mesmas dificuldades que tivera para abrir a porta exterior. Por fim abriu-a e os seus esforços não foram inúteis. Deu logo com os olhos num rolo de papel que estava no fundo da cavidade, talvez para que o não descobrissem. É impossível descrever o que sentiu naquele momento. O coração batia-lhe desordenadamente, os joelhos tremiam-lhe e as faces ficaram pálidas. Bastou olhar para ele de relance para ver que tinha qualquer coisa escrita. Agarrou, com mãos trémulas, no precioso manuscrito. E enquanto se lembrava de que isto era afinal o que Henrique tinha predito, resolveu ler tudo antes de ir deitar-se. A luz do candeeiro era já tão fraca que, a princípio, se assustou; mas pensou que duraria ainda algumas horas. Para não ter dificuldade de ler, pelo menos, a sua antiga data, foi espevitá-la. Mas, ai! Mal a espevitou, a luz apagou-se logo.
Jamais uma luz se apagara que mais terrível efeito produzisse. Catarina, por alguns momentos, ficou sem fôlego. Fora obra de um momento nem sequer uma centelha de luz na torcida que lhe pudesse dar a alegre esperança de se poder acender outra vez. Uma escuridão impenetrável e sem remédio encheu o aposento. Uma forte rajada de vento, nascida de uma fúria súbita, acrescentou mais terror ao momento. Catarina tremia toda, dos pés à cabeça. Depois, na pausa que se seguiu, ouviu passos que se afastavam e uma porta fechar-se; mais se assustou. Para a natureza humana era já insuportável. Tinha a testa inundada de suor frio; o manuscrito caiu-lhe das mãos; arrastou-se até à cama, às apalpadelas, e a toda a pressa procurou acalmar aquela agonia metendo-se debaixo da roupa.
Parecia-lhe impossível conciliar o sono, descansar, depois de ter excitado tanto a curiosidade e retesado os nervos com sensações tão fortes. A tempestade lá fora bramia assustadoramente! Nunca sentira medo do vento, mas agora, a cada nova rajada, o seu terror redobrava. Que pensar daquele manuscrito que tanto condizia com o que Henrique lhe contara pela manhã? Que diria? De quem seria? Quais os motivos por que há tanto tempo estaria escondido? Como era estranho ser ela a descobri-lo! Não podia descansar enquanto não soubesse o que dizia, e, por isso, resolveu examiná-lo atentamente logo que os primeiros raios de sol o permitissem. Mas muitas horas tinha ainda de esperar! Tremia, virava-se de um lado para o outro e tinha inveja dos que estavam a dormir tranquilamente. A tempestade bramia ainda. Diferentes ruídos, mais assustadores ainda que o próprio vento, fustigavam, de vez em quando, o seu ouvido amedrontado. As próprias cortinas do leito pareciam agitar-se; depois era o fecho da porta que rodava, como se alguém tentasse entrar. Murmúrios vazios pareciam vaguear pela galeria, e mais de uma vez o sangue lhe arrefeceu, ouvindo longínquos gemidos. Uma hora, depois outra, e Catarina estava ainda acordada, moída; ouviu as três que todos os relógios da casa bateram, antes que a tempestade passasse ou ela conseguisse conciliar o sono.
O abrir das persianas pela criada, às oito horas do dia seguinte, foi o primeiro som que despertou Catarina. Descerrou os olhos, admirando-se de que conseguisse tê-los fechado a objetos que tanto a alegravam. O lume já ardia e uma manhã límpida sucedera à tempestade da noite. De repente, com a consciência da existência, voltou a recordação do manuscrito; e, saltando da cama quando a criada ia sair, foi juntar todas as folhas do role dispersas pelo chão e deitou-se de novo, para deleitar-se com a sua leitura. Agora via que não era um manuscrito com a extensão daqueles que lera nos romances, porque o rol, parecendo apenas constar de pequenas folhas separadas, tinha pouco volume, muito menor do que supusera a princípio. Passou rapidamente o olhar voraz por uma página. Ficou desiludida com o que viu. Seria verdade ou os seus sentidos estariam a enganá-la? Um rol de roupa suja, mal escrito, de data recente, eis tudo o que lhe aparecia ante os olhos! A crer a veracidade do que via, tinha nas mãos um rol de lavadeira. Pegou noutra folha e viu a mesma coisa, com poucas alterações, depois outra e mais outra, ainda outra; e nenhuma mostrava nada de novo. Em todas estava escrito: camisas, meias, gravatas, coletes. Mais duas, escritas pela mesma mão, anotavam uma remessa um pouco mais interessante de pós para o cabelo, atacadores e botões para calções. E a folha maior, que envolvia as restantes, parecia pela primeira linha, ser uma conta de ferrador: ferrar a égua castanha. Tal era a colecção de papéis, deixada ali, como pode supor-se, por negligência duma criada que não voltara a colocá-la no seu lugar. E aqueles papéis a tinham posto em grande excitação, feito apanhar um susto e roubado metade do descanso da noite! Sentia-se vexada até mais não poder ser. A aventura da arca não a ensinaria a ser prudente? Mesmo deitada via o canto da arca, que parecia levantar-se para a recriminar.
Agora apresentava-se-lhe evidente mais do que nunca, o absurdo das suas fantasias recentes. Supor que um manuscrito de velhas gerações ali tivesse ficado esquecido num quarto como aquele, tão moderno e tão limpo! Ou que fosse ela a primeira a saber abrir a fechadura do contador, o segredo conhecido de todos! Como pôde ela enganar-se tanto? Oxalá Henrique Tilney nunca viesse a saber da sua loucura! E em grande parte fora ele o culpado, pois se o contador não tivesse a mesma aparência do que ele descrevera, nunca teria tido a curiosidade de o abrir. Foi esta a única desculpa que lhe ocorreu. Impaciente por se ver livre destas provas evidentes da sua loucura, que odiava, e dos detestáveis papéis espalhados pela cama, levantou-se de súbito, e, dobrando-os pelos mesmos sítios, pô-los de novo no lugar, com um desejo enorme de que nenhum acidente aziago os pudesse fazer voltar a aparecer. Sentiria vergonha de si mesma. As fechaduras tinham sido tão custosas de abrir! Coisa extraordinária, agora podia abri-las e fechá-las com a maior facilidade. Nisto havia, decerto mistério, e meio minuto devaneou ainda em lisonjeiras suposições, até que lhe ocorreu a possibilidade de a porta já estar aberta e de apenas a ter forçado. Voltou a corar.
Logo que pôde, saiu do quarto que tantos pensamentos desagradáveis lhe tinha causado e dirigiu-se, a toda a pressa, à saleta conforme, na noite anterior, combinara com Leonor.
Henrique estava ali só; o desejo de que ela não tivesse tido medo da tempestade e de que gostasse da casa que habitavam serviu de pretexto para amistosos cumprimentos. Ela não queria de maneira alguma, que ele suspeitasse da sua fraqueza; mas, não sendo capaz de dizer uma mentira completa, foi obrigada a confessar que o vento não a deixara dormir muito bem.
- Mas a manhã está maravilhosa – acrescentou ela, desejosa de mudar de conversa. - Tempestades e noites de vela não têm importância depois de passarem. Que lindos jacintos! Já aprendi a gostar de jacintos.
- E como aprendeu? Por acaso ou por raciocínio?
- Foi a sua irmã que me ensinou. Não sei dizer. A senhora Allen muito se preocupava em me fazer gostar deles, mas nunca conseguiu, até que no outro dia os vi em Milsom Street. Por temperamento, não aprecio flores.
- Mas agora já gosta de jacintos. Tanto melhor. Arranjou uma nova fonte de deleite e bom é ter-se a maior quantidade possível de suportes que sustentem a felicidade. Além disso, o gosto pelas flores é um atributo desejável nas mulheres, pois fá-las sair de casa e obriga-as a fazer mais exercício do que noutras circunstâncias. Embora o amor pelos jacintos seja um tanto ou quanto doméstico, não poderá ainda gostar de rosas?
- Mas eu não necessito desse estímulo para sair de casa. O prazer de andar e respirar ar puro é suficiente. Quando está bom tempo, passo a maior parte do dia fora. A mamã diz até que passo metade do tempo na rua, que nunca estou em casa.
- Enfim, gostei de saber que já aprendeu a gostar de jacintos. O mero hábito de aprender a amar é o principal, e o fato de uma menina gostar de ensinar é um grande dom. A minha irmã tem bom método para ensinar?
Catarina foi salva do embaraço de tentar dar uma resposta com a entrada do general, cujos cumprimentos alegres anunciavam boa disposição; mas a referência ao fato de ela se ter levantado tão cedo, embora delicada, não a fez sentir muito à vontade.
O bom gosto do serviço de chá chamou a atenção de Catarina, quando estavam à mesa; e, por sorte, a escolha era do general. Ficou encantado pela aprovação do seu gosto, confessou que era bonito e simples, e acrescentou que se devia incitar o fabrico na sua terra, pois que, quanto a si, para o seu paladar, o chá sabia tão bem como no barro de Staffordshire como no de Dresden ou de Sévres. Mas este serviço já era velho, fora comprado dois anos antes. Desde então o fabrico de louça desenvolvera-se muito; quando estivera a última vez na cidade vira alguns modelos muito interessantes, e, se fosse atrás da sua vaidade, podia ter-se tentado a encomendar outro. Contudo esperava que pudesse proporcionar-se-lhe ocasião de escolher um. Embora não para ele. Catarina foi talvez a única pessoa que não o compreendeu.
Logo depois do almoço, Henrique partiu para Woodston, onde a sua vida o obrigava a comparecer e permanecer dois ou três dias. Todos o acompanharam até à porta para o ver montar, logo voltaram para a sala de jantar; Catarina foi ainda à janela na esperança de vê-lo.
- É uma visita que muito deve custar ao coração de teu irmão - observou o general a Leonor. - Woodston terá hoje uma aparência muito taciturna.
- É um local bonito? -- perguntou Catarina.
- Que dizes tu, Leonor? Dá a tua opinião, porque as senhoras sabem melhor manifestar os seus gostos, tanto a respeito das terras como dos homens. Julgo que se pode afirmar, com imparcialidade, que há muita coisa a recomendá-la. A casa tem, a sudeste, lindas campinas e uma grande horta, em toda a volta muros que eu construí há dez anos, em benefício do meu filho. É um benefício eclesiástico de família, menina Morland. As terras são quase todas minhas, por isso pode calcular o que fiz para que elas não se desvalorizassem. Mesmo que os rendimentos de Henrique viessem só desta propriedade, não ficaria mal. Talvez pareça extraordinário eu, tendo só dois filhos, pensar que um emprego é coisa necessária para ele. Ao mesmo tempo, há momentos em que todos desejávamos vê-lo livre de negócios. Mas embora não a queira levar a concordar comigo, creio, menina Morland, que o seu pai seria da minha opinião, isto é, concordaria que é de boa política dar um emprego a um rapaz. O dinheiro não vale, não é uma segurança; o emprego sim. Mesmo que o Frederico, o meu filho mais velho, que deve herdar uma propriedade tão grande como qualquer grande proprietário do concelho, tem uma profissão.
O efeito convincente deste último argumento correspondeu aos seus intentos. O silêncio da menina provou que era irrefutável.
Já no dia anterior se tinha falado em lhe mostrarem a casa, e agora o general ofereceu-se para a acompanhar. Embora Catarina esperasse vê-la acompanhada só por Leonor, achou a proposta tão aprazível que não pôde deixar de aceitá-la com satisfação. Havia já dezoito horas que estava na Abadia e apenas conhecia algumas divisões. Acabou de pegar na caixa de costura, mas fechou-a logo. Num momento estava pronta para o acompanhar. Antes de mostrar-lhe a casa, pensou levá-la a ver as matas e o jardim ao que ela condescendeu de boa vontade. Talvez fosse mais agradável começar pelos campos. Estava um tempo tão bonito, que seria melhor aproveitá-lo, porque, nesta época do ano, era grande a incerteza de que assim continuasse. Qual preferia? Ele estava à sua disposição. O que dizia a filha? Parecia-lhe que adivinhava nos olhos da menina Morland o desejo de aproveitar aquele lindo dia. Achá-lo-ia inoportuno? A Abadia estava sempre segura e seca. Ele achava implicitamente bem, e por isso ia buscar o chapéu e num momento estaria com elas. O general saiu da sala e Catarina, desapontada e grave disse que lhe custava muito vê-lo sair de casa sob a falsa idéia de que com isso lhe dava prazer. Leonor Tilney, porém, fê-la calar, dizendo, um pouco confusa:
- Parece-me que é melhor aproveitarmos a manhã; está tão boa! Quanto ao meu pai, não se incomode, porque ele costuma sair sempre a esta hora.
Catarina não compreendia bem a atitude de Leonor Tilney. Porque estava ela tão constrangida? Seria porque o general não tinha vontade de lhe mostrar a Abadia? E não era esquisito também sair sempre assim tão cedo? Nem o pai nem o senhor Allen o faziam. Tudo isto lhe despertava muita curiosidade. Estava ansiosíssima por ver a casa e sem nenhuma vontade de ver os campos. Ainda se Henrique estivesse com eles, não seria mau, mas, assim, nem sequer saberia apreciar o que havia de pitoresco.
Tais eram os seus pensamentos, que não os transmitiu a ninguém. Pôs o chapéu com uma insatisfação resignada. Contudo, ao contrário do que esperava, ficou impressionada com a grandeza da Abadia, quando a viu pela primeira vez, de longe. O edifício estava circundado por um grande pátio. Dois lados do quadrado eram em estilo gótico e os ornamentos mais salientes sobressaíam, como para melhor se admirarem. Tudo o mais estava encoberto por árvores frondosas e por plantações luxuriantes, os montes íngremes e arborizados que lhes serviam de fundo eram belos, mesmo em Março, com as árvores despidas de folhas. Catarina nunca tinha visto nada que se lhe pudesse comparar, gostou tanto de tudo que, sem esperar pela opinião de mais autoridade, começou a tecer-lhe os maiores elogios e louvores. O general aprovava e exprimia a sua gratidão, parecendo que só naquele momento compreendera toda a amizade que o ligava à Abadia.
A seguir deviam ir ver o pomar; portanto, o general para lá se dirigiu, atravessando parte do parque. O pomar tinha tantos hetares de terreno, que Catarina ficou boquiaberta. Tinha mais do dobro do do senhor Allen e do de seu pai, incluindo até o cemitério e a horta. Os muros pareciam não ter fim, tanto em número como em comprimento. Entre eles parecia erguer-se uma aldeia de estufas, e dava a impressão de que toda a gente da paróquia ali trabalhava. O general sentia-se lisonjeado todas as vezes que ela olhava surpreendida, o que lhe mostrava, tão bem como as palavras que depois lhe obrigou a dizer, que nunca vira um pomar como aquele. Ele então, singelamente, confessou, modéstia aparte, lhe parecia que não havia outro igual em toda a região. Era o seu fraco. Gostava imenso dum pomar. Embora não ligasse grande importância a comidas, gostava de boa fruta, e, mesmo que ele não gostasse, gostavam os filhos e os amigos. No entanto, acarretava desgostos tratar assim dum pomar. Apesar dos maiores cuidados, às vezes a fruta estragava-se. O ano passado tinha só colhido cem ananáses. O senhor Allen devia também ter tido os mesmos prejuízos.
- Oh, não. O senhor Allen não se incomoda com o pomar; nem sequer lá vai.
O general, com um sorriso de triunfo, disse que desejava poder fazer o mesmo, pois sempre que lá ia, ficava aborrecido, com uma coisa ou outra, pois nunca via o que esperava.
- Como é que o senhor Allen mandou fazer as suas estufas? - perguntou ele, ao mesmo tempo em que descrevia as suas.
- O senhor Allen só tem uma muito pequena, onde a senhora Allen guarda as plantas no Inverno, fazendo, de vez em quando, uma fogueira.
- Então, é um homem feliz! - disse o general, sentindo-se satisfeito pela sua superioridade.
Depois de Ihe ter mostrado tudo, até ela ficar cansada de tanto ver e admirar permitiu que as duas meninas aproveitassem uma saída que dava para o exterior, e ele, mostrando vontade de ir examinar umas obras que andava a fazer na estufa do chá, perguntou-lhes se queriam continuar o passeio, no caso de a menina Morland ainda não estar cansada.
- Para onde vais, Leonor? Porque queres ir antes por esse caminho frio e úmido? A menina Morland vai molhar-se. O melhor caminho é pelo parque.
- Como é este o meu passeio favorito - disse Leonor Tilney -, parece-me sempre o caminho melhor e o mais próximo. Realmente é natural que esteja úmido.
Era um caminho estreito e sinuoso, ladeado por velhos e frondosos abetos. O seu aspeto pesado impressionou tanto Catarina que, apesar de ver má vontade no general, não pôde deixar de avançar. Ele, notando o seu desejo, depois de mais uma vez falar em vão nos inconvenientes que daí podiam resultar, teve a delicadeza de não a contrariar. Porém desculpou-se de lhes não fazer companhia. O sol não lhe fazia muito bem, por isso iria ter com elas por outro lado.
Desapareceu e Catarina surpreendeu-se por ver como se sentia aliviada na sua ausência. Mas, porque o choque era melhor que o alívio, este prevaleceu. Começou a falar com grande regozijo na sensação de melancolia deliciosa que esta alameda provocava.
- Gosto imenso deste sítio, por um motivo muito especial - disse a sua companheira, suspirando. - Era o passeio favorito de minha mãe.
Catarina até então nunca tinha ouvido falar no nome da senhora Tilney, e o interesse provocado por esta terna recordação espelhou-se bem na alteração do seu rosto, e na ansiedade com que esperou que a sua amiga dissesse mais qualquer coisa.
- Costumava passear aqui tantas vezes com ela! - acrescentou Leonor. - Porém, nessa altura, não gostava dele como agora. Nesse tempo admirava-me da sua preferência. Mas agora a sua memória torna-mo querido.
- E não devia, também, sê-lo para o marido? - disse, para consigo, Catarina. - Contudo, o general nem quis passar por cá. E, porque Leonor Tilney continuava silenciosa, ela aventurou-se a dizer: - A sua morte devia ter causado um grande desgosto.
- Sim, um desgosto que aumenta cada vez mais - repetiu a outra, em voz baixa. - Eu tinha apenas treze anos quando ela morreu, e, embora sentisse a sua morte, tanto como a sentiria qualquer pessoa da minha idade, não compreendi então a perda que acabava de sofrer.
Parou um momento e depois acrescentou com firmeza:
- Não tenho irmãs, e, embora Henrique. Embora os meus irmãos sejam muito meus amigos, e o Henrique aqui passe bastante tempo, é impossível não me sentir muitas vezes só.
- Na verdade, ela deve fazer-Ihe muita falta.
- Uma mãe estaria sempre ao pé de mim. Uma mãe seria uma amiga fiel e a sua presença seria melhor que a de todos os outros.
- Era simpática? Era bonita? Há algum retrato seu na Abadia? Porque gostava ela tanto desta alameda? Por tristeza?
Tudo isto foi perguntado com ansiedade; mas só as três primeiras perguntas obtiveram resposta. O interesse que Catarina sentia pela defunta senhora aumentava a cada pergunta, quer obtivesse resposta quer não. De que tinha sido infeliz no casamento, estava absolutamente convencida. Se não gostava do seu passeio favorito, poderia acaso ter gostado dela? Além disso, apesar de simpático, havia qualquer coisa de especial nas suas feições reveladora de que não devia ter sido muito bom para ela.
- O retrato de sua mãe está certamente no quarto de seu pai, não? - disse ela, corando pela maneira insinuante como fazia a pergunta.
- Não. Foi mandado fazer para ser colocado na sala de visitas, mas o meu pai não gostou dele, e esteve muito tempo sem lugar definitivo. Depois de ela morrer fiquei com ele e pendurei-o no meu quarto. Aí terei muito prazer em lho mostrar. Está bastante parecido.
Outra prova. O retrato, muito parecido, da defunta esposa, não ser estimado pelo marido! Sem dúvida devia ter sido muito cruel para com ela. Catarina não mais tentou iludir-se acerca da opinião que, apesar de todas as suas atenções, tinha a seu respeito. E o que até ali fora apenas medo e antipatia, mudara-se agora numa estranha repugnância. Sim, repugnância! A sua crueldade para com uma mulher encantadora tornou-o odioso a seus olhos. Tinha lido muito acerca destes temperamentos, a que o senhor Allen costumava chamar desumanos e exaltados. Contudo, aqui tinha prova positiva do contrário. Chegara a esta conclusão quando, no fim do caminho, se encontraram com o general; apesar da sua justa revolta, viu-se de novo obrigada a ir passear com ele, a ouvi-lo e mesmo a sorrir-lhe quando ele o fazia. Mas, não podendo continuar a achar interesse nos objetos por que passava, começou a caminhar com moleza. O general notou-o e, preocupado com a sua saúde (o que parecia contrariar a opinião que dele fizera), obrigou a filha a ir imediatamente com ela para casa, que ele, dentro de um quarto de hora, iria lá ter. Assim fizeram, mas Leonor foi chamada, passado meio minuto, para receber ordens de não mostrar à amiga a Abadia antes de ele chegar. Esta segunda prova da preocupação do general em querer demorar o que ela tanto desejava, impressionou deveras Catarina.
Uma hora passou sem que o general entrasse, e sem que a sua jovem hóspede fizesse melhor juízo do seu caráter. A longa ausência, os passeios solitários, não faziam pensar num espírito tranqüilo ou numa consciência sem culpa. Por fim, apareceu, e, qualquer que tivesse sido o negrume das suas meditações, podia ainda rir com elas. Leonor Tilney, compreendendo a curiosidade da amiga em ver a casa, logo voltou a falar no assunto, e o pai, ao contrário do que Catarina esperava, não tendo quaisquer razões para alegar maior demora do que cinco minutos para mandar preparar refrescos para o regresso, dispôs-se a acompanhá-las.
Começaram a andar. Com aparência distinta e passo comedido, que Catarina notou, mas que não conseguia abalar-lhe as dúvidas - a ela que bem conhecia isto dos livros – atravessou a sala de entrada, a sala de estar e outra antecâmara não ocupada, até um compartimento magnífico, tanto pela amplidão como pela mobília - a verdadeira sala de visitas - que servia só para gente de cerimónia. Era nobre, majestosa, lindíssima. Eis o que Catarina dizia, porque a sua vista pouco minuciosa mal distinguia a cor do cetim. Todas as particularidades de elogio no verdadeiro sentido da palavra, foram feitas pelo general. A sumptuosidade ou a elegância da disposição de qualquer compartimento nada era para ela, não apreciava a mobília das épocas posteriores ao século XV.
Quando o general satisfez a sua curiosidade, deixando-a examinar pormenorizadamente todos os ornamentos, seguiram para a biblioteca, uma sala também magnificente, onde se exibia uma colecção de livros de que qualquer homem pouco letrado se podia orgulhar. Catarina ouviu, admirou e mostrou o seu pasmo com mais sinceridade do que antes e reuniu tudo o que pôde deste armazém de conhecimentos, lendo os títulos de metade dos livros. Contudo, não eram essas séries de divisões que correspondiam aos seus desejos. Grande como era o edifício, já tinha visto a maior parte, embora lhe tivessem dito que, com a cozinha e mais seis ou sete divisões, já haviam percorrido três partes da casa, à volta do pátio, o que ela não queria acreditar, pois suspeitava de que havia ainda muitos quartos secretos. Foi para ela um alívio ouvir dizer que voltariam às salas usuais, passando por algumas de menos importância que deitavam para o pátio, as quais, com passagens vulgares, não labirínticas, davam acesso às diferentes partes da casa. Ainda mais se alegrou quando lhe disseram que pisava o chão onde outrora existira um convento, tendo ainda vestígios de celas e de portas, que não se abriam, e sobretudo quando viu que lhe não explicavam a razão porquê. Depois de se encontrar primeiro numa sala de bilhar, depois no quarto do general, sem perceber as entradas e sem saber como sair dali quando se fosse embora, e por fim atravessar um pequeno quarto pertencente a Henrique, cheio de livros, de espingardas e capotes, tudo em completo desalinho, foi ter à sala de jantar, que, apesar de já vista todos os dias às cinco horas, o general não deixou de ter o prazer de medir, para melhor informação de Catarina, embora ela não duvidasse do seu tamanho nem se importasse com isso. Daqui, por uma curta comunicação, foram ter à cozinha - a antiga cozinha do convento - com paredes fortes e fumarentas de antigas eras, e estufas de construção recente. O general tinha-a modificado muito, todas as invenções modernas que facilitam o trabalho dos cozinheiros haviam sido adoptadas. Onde a habilidade de outros tinha falhado, obtivera ele a perfeição desejada. As transformações que fizera neste lugar podiam destacá-lo entre os benfeitores do convento.
Com as paredes da cozinha terminava toda a antiguidade da Abadia. A outra parte do pátio tinha sido modificada pelo pai do general, por ser muito desconfortável. Estavam agora ali erguidas as novas casas. Nada existia de antigo. Que a construção era recente mostrava-o bem a sua finalidade. Destinava-se a oficinas e a estábulos sem obedecer a qualquer estilo, que fora julgado desnecessário.
Catarina podia ter-se enfurecido com a mão que destruíra coisas tão valiosas como as restantes, só com a idéia da economia doméstica, e de boa vontade ter-se-ia poupado ao desgosto de passear por lugares tão decadentes se o general o tivesse permitido. Mas, se em alguma coisa ele tinha vaidade, era no arranjo das suas oficinas, convencido de que para um espírito como o de Catarina, deveria ser bem acolhida a visita às oficinas e boas instalações com as quais compensava os trabalhos dos seus operários, não apresentou nenhuma desculpa para a levar aí. Rapidamente lhe passaram uma vista de olhos. Catarina ficou mais impressionada do que contava com a variedade e utilidade das divisões. Algumas oficinas mal arranjadas e a copa desconfortável, que, em Fullerton se julgavam suficientes, tinham aqui divisões adequadas, cómodas e espaçosas. O número de trabalhadores que continuamente apareciam não causou menos admiração a Catarina do que o número dos seus ofícios.
Para onde quer que fossem uma rapariguita de socos parava a cumprimentá-los, ou algum trabalhador em fato de trabalho curvava-se. Contudo, isto era uma abadia! Que extraordinariamente diferentes eram estes arranjos domésticos comparados com os que ela vira! Em abadias, em castelos embora maiores do que Northanger, todo o serviço grosseiro da casa era feito por duas mulheres, o máximo. Muitas vezes a senhora Allen se admirara de como isso era possível e Catarina, quando viu o que era necessário aqui, começou a surpreender-se.
Voltaram à sala de entrada para poderem subir a escada principal, admirar a beleza da sua madeira e os desenhos dos embutidos. Tendo chegado ao cimo, tomaram a direcção oposta da galeria onde ficava o seu quarto, e em breve passaram por outra do mesmo andar, mas maior em comprimento e largura. Aqui, viu mais três grandes quartos de dormir com os respetivos quartos de toilette. Estavam melhor mobiliados, tudo o que o dinheiro e o bom gosto podiam fornecer para conforto e elegância dos compartimentos fora aqui posto. Mobiliados há cinco anos, estavam bem em tudo que, regra geral, agrada a toda a gente, mas faltava-lhes aquilo que poderia dar satisfação a Catarina.
Quando viam o último, o general, depois de enumerar, de passagem, algumas das mais importantes individualidades que, de vez em quando, tivera a honra de receber, voltou-se com um sorriso para Catarina e disse que seria de esperar que, para o futuro, alguns dos convidados fossem os nossos amigos de Fullerton. Ela compreendeu a lembrança inesperada, e, profundamente, lamentou a impossibilidade de pensar bem de um homem que a tratava a si e à sua família tão amavelmente. A galeria terminava por uma porta de dois batentes, que Leonor avançando, tinha aberto e atravessado; e parecia ir fazer a mesma coisa a outra da esquerda, quando o general, aproximando-se, a chamou. Bruscamente, e, como Catarina pensou, um pouco zangado, perguntou-lhe aonde ia. Que havia mais para se ver? A menina Catarina não vira já tudo o que tinha algum valor? Não pensava que a amiga podia gostar de ir tomar algum refresco, depois de tão longo passeio? Leonor Tilney retrocedeu imediatamente e as portas pesadas fecharam-se atrás de Catarina que, sucumbida, viu de relance, uma passagem mais estreita, mais portas e indícios duma escada em caracol, e por isso se julgara, finalmente, prestes a ver qualquer coisa digna de observação. Quando, contra vontade, voltava pela galeria, pensou que preferia ter licença de visitar o resto da casa a possuir toda a riqueza que acabara de ver.
O desejo evidente do general em evitar tal visita era mais um motivo para que ela se sentisse desconfiada. Alguma coisa lhe ocultava. A sua imaginação embora já por duas ou três vezes a tivesse enganado, não podia agora iludi-la, e, demais a mais, uma curta frase de Leonor confirmava as suas suspeitas, quando seguiam o general a alguma distância.
- Ia levá-la ao quarto que foi de minha mãe, ao quarto onde ela morreu. - foram as suas palavras.
Só disse isto, mas Catarina deduziu imediatamente: não era para admirar que o general se impressionasse, vendo os objetos daquele quarto, naturalmente nunca mais lá entrara desde a cena horrível que acabara com os martírios da sua infeliz esposa, e o deixara cheio de remorsos. Quando se viu sozinha com Leonor, aventurou-se a pedir-lhe que a deixasse ver aquele quarto e toda aquela parte da casa. Leonor prometeu levá-la lá, quando se lhe proporcionasse ocasião azada. Catarina percebeu. O general não devia estar em casa quando elas lá fossem.
- Está tal como quando ela morreu? - perguntou Catarina, carinhosamente.
- Sim, está.
- Há quanto tempo morreu sua mãe?
- Há nove anos.
Catarina sabia que nove anos era muito pouco tempo comparado ao que, de modo geral, decorre antes de se arrumar o quarto onde morreu uma esposa mal tratada.
- Estava com ela quando morreu?
- Não - disse Leonor, suspirando. - Infelizmente não estava em casa. A sua doença foi súbita e pouco demorada. Quando cheguei, já tinha morrido.
Catarina sentiu um calafrio atravessar-lhe o corpo, pela sugestão que estas palavras lhe provocaram. Seria possível? O pai de Henrique seria capaz de...?
E no entanto, quantos exemplos lhe confirmavam mesmo as piores suspeitas! E quando o viu, à noite, enquanto as duas trabalhavam, passear em silêncio durante uma hora, muito pensativo, cabisbaixo e com a fronte enrugada, mais se convenceu de que as suas suposições não eram infundadas. Estava mesmo com aspeto e atitude de um Montoni. O que poderia evidenciar mais claramente as lutas tenebrosas de um espírito para quem a humanidade é letra morta nos momentos de recordação de cenas passadas de crime? Homem desgraçado! E Catarina pôs-se a olhá-lo tão insistentemente que chamou a atenção de Leonor:
- O meu pai - disse ela, baixinho - costuma andar assim muitas vezes a passear pela sala, já é hábito.
Tanto pior! - pensou Catarina. - Isto e os seus estranhos passeios, pela manhã, não me dizem nada de bom.
Depois de um serão cuja monotonia e demora lhe fizeram sentir muito a falta de Henrique, ficou satisfeita por poder deitar-se embora desse conta do sinal disfarçado, para que ela não percebesse, que o general fez à filha para que tocasse a campainha. Porém, quando o criado ia para acender o candeeiro do general, ele proibiu-o.
- Tenho ainda de ler muitos panfletos - disse a Catarina - antes de me ir deitar. Talvez esteja a estudar os negócios da nação, enquanto a menina dorme. Qual dos dois tem melhor ocupação? Os meus olhos vão-se enfraquecendo para benefício dos outros; os seus, com o descanso, preparam-se para causar males futuros.
Mas nem os trabalhos a que fez alusão nem o galanteio puderam convencer Catarina de que a causa que o obrigava a encurtar tão decididamente o descanso normal devia ser outra. Não era muito provável que uns panfletos sem importância o obrigassem a trabalhar depois de toda a família estar a dormir. Devia haver um motivo mais forte. Naturalmente, qualquer coisa que só podia fazer quando todos já estivessem adormecidos; a senhora Tilney vivia ainda, talvez encerrada num quarto, por motivos ignorados, e todas as noites o marido cruel lhe ia levar alguma comida grosseira. Foi o que logo concluiu; por impressionante que lhe parecesse o fato, isso sempre seria melhor do que tê-la assassinado; com o decorrer natural dos tempos, acabaria por ser libertada.
A sua suposta doença repentina, a ausência da filha e talvez também dos filhos, quando ela morreu, tudo contribuía para a levar a pensar numa clausura. Ainda havia de deslindar a causa - ciúme ou talvez crueldade excessiva do general. Meditando nestes assuntos enquanto se despia, veio-lhe de repente à idéia de que não seria talvez inverossímil acreditar que de manhã tivesse passado bem perto da prisão daquela infeliz mulher, talvez tivesse estado a cem passos da cela em que ela ia definhando dia a dia. Não era aquela parte da Abadia, ainda com vestígios de divisões monásticas, que melhor serviria para tal fim? Bem se lembrava de ter visto umas portas naquele corredor de pedra, abobadado, por onde tivera até medo de passar. Para onde dariam aquelas portas? E, em apoio da sua conjetura, ocorreu-lhe, depois, que a galeria proibida onde ficavam os aposentos da desgraçada senhora devia ser, se a sua memória a não enganava, mesmo por cima do sítio onde lhe parecera ver as celas, e que a escada que servia esses aposentos que mal divisara, comunicando secretamente com as celas, favoreceria às mil maravilhas o procedimento bárbaro do marido. Talvez que ela já tivesse sido levada por aquela escada, num estado de perfeita inconsciência!
Catarina umas vezes estremecia com o arrojo das suas desconfianças, outras desejava ou receava ter ido longe demais. Mas era-lhe impossível deixar de pensar nelas, quando as aparências pareciam vir confirmá-las. O lado da casa em que supunha ocorressem essas cenas criminosas ficava, segundo lhe parecia, em frente do seu quarto. Pensou logo, portanto, que, se observasse bem, poderia ver alguns raios de luz do candeeiro do general brilhar através das janelas mais baixas, quando se dirigisse à prisão da mulher. E duas vezes antes de se meter na cama, saiu devagarinho do quarto e foi espreitar à tal janela da galeria, para ver se descobria alguma coisa. Porém, lá fora tudo estava escuro. Naturalmente era ainda muito cedo. Os ruídos que ouvia lá em cima convenceram-na de que os criados estavam a pé. Pareceu-lhe que até à meia-noite seria inútil espiar, só depois desta hora, quando tudo estivesse já sossegado, iria, se a escuridão lhe não metesse medo, espreitar outra vez. Porém, quando o relógio deu a meia-noite já Catarina dormia há uma boa meia hora.
No dia seguinte não se lhe ofereceu ocasião para visitar os aposentos misteriosos. Era domingo e o tempo entre as orações da manhã e as da tarde foi repartido pelo general em passeios pelos campos e refeições de carnes frias em casa. Por grande que fosse a curiosidade de Catarina, a sua coragem não igualava o desejo de os visitar depois do jantar, nem à luz moribunda do céu, entre as seis e as sete, nem à luz mais local e mais forte de um candeeiro traiçoeiro.
O dia passou-se assim sem nada que lhe despertasse a imaginação a não ser observar na igreja o magnífico monumento fúnebre erigido à memória da senhora Tilney, que ficava mesmo junto do lugar reservado à família. O seu olhar foi logo atraído e aí se demorou muito tempo; a leitura do extenso epitáfio em que todas as virtudes lhe eram atribuídas pelo marido inconsolável que talvez tivesse sido a causa da sua morte, comoveu-a até lhe virem lágrimas aos olhos. O que muito fazia admirar Catarina não era o fato de o general ter mandado construir aquele monumento, mas, sim, de ter a coragem de o enfrentar, de estar ali tão direito, olhando, sem receio, em toda a volta, e até de ter coragem de entrar na igreja; isso, sim, lhe parecia estranho. Conhecia mais exemplos de pessoas assim endurecidas pelo mal. Lembrava-se de dezenas, com toda a espécie de vícios, que cometiam os maiores crimes, matavam quem lhes apetecia sem sentirem remorsos ou compaixão, até ao momento em que uma morte tormentosa ou um convento punham fim à sua vida negra. Não era o monumento que lhe tirava as dúvidas sobre a verdadeira morte da senhora Tilney. Mesmo que pudesse entrar onde se supunha repousarem as cinzas da infeliz, e abrissem o caixão onde diziam guardá-las de que valeria? Catarina tinha lido muito, para que não soubesse da facilidade com que podiam ter arranjado uma figura de cera e feito um enterro simulado.
A manhã seguinte prometia trazer, qualquer coisa de melhor. O passeio matutino do general, inconveniente sob todos os outros pontos, favorecia-a agora. Logo que soube que ele tinha saído, foi pedir a Leonor Tilney que cumprisse a sua promessa. Leonor estava pronta a fazer-lhe a vontade, mas, como Catarina lhe lembrou uma outra promessa, foram primeiro ver o retrato da senhora Tilney. Era uma linda mulher, de aspeto meigo e melancólico, que justificava, de certo modo, as expetativas da visitante; no entanto não correspondia precisamente ao que ela esperava encontrar nas suas feições, no seu aspeto a imagem perfeita, porque nos retratos em que ela pensava, os filhos eram sempre parecidos com os pais. Para ela as feições duma pessoa transmitiam-se de geração em geração. Mas no caso presente teve de olhar, pensar e esforçar-se por encontrar algumas semelhanças. Contemplou-o com emoção, apesar de estar decepcionada; e só por um interesse maior o teria deixado e mesmo assim, contra vontade.
A sua comoção ao entrarem na galeria grande, era demasiada para tentar qualquer conversa. Só olhava para a sua companheira. O semblante de Leonor parecia mortificado embora sereno a sua compostura mostrava estar familiarizada com todos os objetos tristes para que avançavam. De novo atravessou a porta de dois batentes, de novo a sua mão pousou na importante fechadura, e Catarina, mal podendo respirar, tinha-se voltado para fechar a primeira com o máximo cuidado, quando a terrível figura do general apareceu à sua frente do outro lado da galeria! O nome de Leonor, no mesmo momento, em voz alta, ressoou pelo edifício dando à filha o primeiro aviso da sua presença e provocando em Catarina terror após terror. O desejo de esconder-se fora o seu primeiro movimento instintivo ao avistá-lo, embora não tivesse esperança de não ser vista; e quando a amiga, com um olhar que pedia desculpa, se juntou ao pai e desapareceu com ele, Catarina correu, como meio de segurança, para o seu quarto, fechou-se por dentro, julgando que não teria coragem de voltar a descer. Ali esteve pelo menos uma hora, em grande agitação, lamentando profundamente a sorte da amiga e esperando que o general a intimasse a ir à sua presença. Contudo, nenhuma intimação chegou e, por fim, vendo aproximar-se da Abadia uma carruagem, aventurou-se a descer a enfrentá-lo no meio da protecção das visitas. A sala de jantar estava cheia de pessoas. Catarina foi-lhes apresentada pelo general, como a amiga de sua filha, duma forma tão cortês, ocultando tão bem a sua ira vingativa, que a fez sentir-se segura, pelo menos naquele momento, e Leonor, de semblante impassível que nada deixava trair e que justificava a sua opinião acerca do caráter do general, aproveitando uma oportunidade, disse-lhe:
- Meu pai só queria que eu lhe respondesse a uma pergunta.
Catarina começou a ter esperanças de que não tinha sido vista pelo general, ou que, por qualquer consideração ou delicadeza, assim o podia supor. Com esta confiança, teve coragem de ficar na sua presença depois das visitas se terem retirado, e nada veio perturbá-la.
Durante as reflexões dessa manhã, tinha resolvido fazer sozinha a próxima tentativa à porta proibida. Seria melhor sob todos os aspetos, que Leonor de nada soubesse. Envolvê-la no perigo duma segunda descoberta, atraí-la a um quarto que devia torturar o seu coração, não podia ser obra duma amiga. A ira do general não podia ser para ela o que seria para a filha; e, além disso, pensava que uma visita feita sem companhia seria mais satisfatória. Era impossível explicar a Leonor as suas suspeitas, das quais a outra tinha sido, com todas as probabilidades, felizmente excluída; mesmo nem ela, na sua presença, poderia procurar as provas da crueldade do general que ainda podiam ter escapado à descoberta. Sentia que qualquer coisa de secreto a arrastava sob a forma dum pedaço de jornal lido até à hora da agonia.
Do caminho, estava bem segura; e, como desejava realizar o seu projeto antes que Henrique voltasse - era esperado no dia seguinte -, não havia tempo a perder. O dia estava claro e grande era a sua coragem. Às quatro, o Sol tinha já subido no horizonte havia duas horas, e bastaria ir só meia hora antes, quando se fosse arranjar. Assim fez. Catarina encontrou-se só na galeria, antes dos relógios acabarem de dar as horas. Não havia tempo para meditações; apressou-se, passou, com o menor barulho que pôde, a porta dos dois batentes, e, sem se deter para olhar ou respirar, precipitou-se para uma outra porta. A fechadura cedeu e, felizmente, sem nenhum ruído inconveniente que pudesse alarmar um ser vivo. Em bicos de pés, entrou: ali estava o quarto; mas, antes de aventurar outro passo, parou a contemplar o que a fixava ao chão e abalava todo o seu ser. Viu um compartimento enorme bem proporcionado, uma cama com uma coberta de bonito fustão arranjada pelos cuidados de uma dona de casa, um fogão brilhante, de Bath, guarda-vestidos de mogno e cadeiras pintadas com esmero, em que os raios quentes do sol poente se espalhavam, vindos de duas janelas corrediças. Catarina esperava que a comoção a assaltasse, e na verdade bem sentia essa mudança. A primeira impressão foi de pasmo e dúvida, depois, uma onda de bom-senso seguiu-se dando-lhe cruéis sensações de vergonha. Não se podia ter enganado no quarto, mas quão enganada estava no resto, nas referências de Leonor e nos seus próprios cálculos! Este compartimento a que ela dava uma data tão antiga, uma disposição tão medonha, via-se ser a extremidade da parte do edifício que o pai do general mandara construir. Havia duas outras portas no quarto que levavam talvez a quartos de toilette, mas não sentiu vontade de as abrir. Teria ficado ali, por acaso, o véu que a senhora Tilney trouxera pela última vez ou o livro que por último lera, objetos estes capazes de revelar o que não era permitido dizer-se? Não; quaisquer que fossem os crimes do general; tinha com certeza muita cautela em evitar que os descobrissem. Desejava ardentemente fazer explorações e ao mesmo tempo desejava poder estar segura no seu quarto tendo por confidente da sua loucura apenas o coração. E precisamente quando se preparava para sair tão sorrateiramente como tinha entrado, um ruído de passos provindo não sabia donde, fê-la parar e estremecer. Ser ali encontrada, mesmo por um criado seria muito desagradável, mas pelo general (e ele que havia de estar sempre onde menos era esperado), muito pior! Escutou. O som deixara de ouvir-se. E, resolvendo não perder mais um momento, atravessou o quarto e fechou a porta. Ao mesmo tempo abriram uma porta em baixo, repentinamente. Parecia que alguém subia as escadas a passos apressados, e ela seria forçada a passar à frente desse alguém antes de chegar à galeria. Não tinha forças para se mexer. Com uma sensação de terror indefinido, fixou os olhos na escada e poucos minutos depois viu surgir Henrique.
- O senhor Tilney! - exclamou ela, com uma voz em que transparecia mais do que admiração.
Ele olhou, também espantado.
- Meu Deus - continuou ela sem esperar qualquer pergunta -, como veio ter aqui? Porque subiu por esta escada?
- Porque subi por esta escada?! - repetiu ele estranhamente surpreendido. - Porque é o caminho mais curto da cavalariça para o meu quarto. E porque não havia de subir?
Catarina lembrou-se então; corou muito e não pôde dizer mais nada. Ele parecia procurar, na sua atitude, a explicação que os lábios não conseguiam dar. Dirigiu-se para a galeria.
- Não posso eu, por meu lado - disse ele, ao abrir a porta perguntar-lhe porque veio aqui? Esta passagem é, pelo menos, um caminho tão singular da sala de jantar para o seu quarto, como aquela escada o pode ser das cavalariças para o meu.
- Eu fui - disse Catarina, baixando os olhos - ver o quarto de sua mãe.
- O quarto de minha mãe! Há lá alguma coisa de extraordinário?
- Não, nada mesmo. Eu pensava que só tencionasse vir amanhã.
- É certo, quando fui não esperava regressar tão cedo, mas há três horas tive o prazer de ver que nada me impedia de voltar. Está pálida! Receio tê-la assustado por haver subido a escada tão depressa. Talvez não soubesse. Não lhe passava pela idéia esta comunicação de serviço com as oficinas, pois não?
- Não, não sabia. Teve bom tempo para a viagem?
- Sim. Então Leonor deixou-a vir, só, desvendar as comunicações de todos os compartimentos da casa?
- Oh, não! Mostrou-me a maior parte no sábado. E tínhamos chegado a estas divisões, mas. (baixando a voz) o seu pai andava connosco.
- E isso impediu-a - murmurou Henrique, olhando-a fixamente.
- Já viu todos os compartimentos daqui?
- Não, só desejava ver um. Não é já muito tarde? Tenho de ir arranjar-me.
- São só quatro e um quarto (mostrando o relógio) e agora não estamos em Bath. Nenhum teatro nenhum salão, para que tenha de ir arranjar-se. Meia hora, em Northanger, é o suficiente.
Não podia contradizê-lo e por isso teve de ficar, embora o receio de mais perguntas fizesse com que ela desejasse deixá-lo, a primeira vez desde que o conhecia. Seguiam devagar pela galeria.
- Recebeu alguma carta de Bath desde que me fui embora?
- Não, estou bastante admirada. Isabel prometeu-me tão fielmente que escrevia logo.
- Prometeu tão fielmente! Uma promessa fiel! Isso intriga-me. Já ouvi falar duma execução fiel, mas duma promessa fiel. A fidelidade duma promessa! Contudo é uma força pouco digna de se conhecer, uma vez que a pôde enganar e magoar. O quarto de minha mãe é muito cómodo não é? Grande e alegre, e os quartos de toilette estão bem colocados. Sempre o considerei como o compartimento mais confortável da casa e até me admiro que Leonor não faça ali o seu quarto. Ela mandou-a para que o visse, não foi?
- Não.
- Foi então só lembrança sua?
Catarina não respondeu. Depois de um curto silêncio, durante o qual ele a observou bem, acrescentou:
- Como não há nada no quarto que desperte curiosidade, devia ter sido influenciada por um sentimento de respeito pelo caráter de minha mãe, como Leonor lho descreveu e que honra a sua memória. Parece-me que nunca o mundo viu uma mulher melhor do que ela. Mas a virtude nem sempre se pode orgulhar de provocar um interesse tão grande. Os merecimentos domésticos, simples, de uma pessoa que não conhecemos, nem sempre criam uma veneração tão fiel e ardente que provoquem uma visita como a sua. Leonor falou-lhe muito dela, não?
- Sim, bastante. Quer dizer, não falou muito, mas o que ela disse é bastante curioso. A sua morte tão repentina – disse ela, vagarosa e hesitante - e nenhum dos filhos junto dela. E depois o seu pai, pensei eu. Talvez não a estimasse muito.
- Portanto - retorquiu ele, fixando-a com os seus olhos penetrantes - suspeitou das probabilidades de um descuido, ou (ela involuntariamente abanou a cabeça) então talvez de outra coisa ainda menos perdoável.
Ela olhou-o de frente, como até ali nunca o fizera.
- A doença que levou a minha mãe - continuou ele -, foi na verdade súbita. Uma febre biliosa de que padecia à muito. A sua causa era, pois, orgânica. No terceiro dia, isto é, logo que conseguimos convencê-la disso, veio vê-la um médico, um homem de respeito e em quem ela sempre depositara muita confiança. Vendo o perigo em que estava, no dia seguinte mandámos chamar mais dois, os quais estiveram vinte e quatro horas à cabeceira da enferma. Ao fim de cinco dias morreu. Durante a doença, eu e Frederico estivemos ambos em casa, vimo-la várias vezes e fomos testemunhas de que nada lhe faltou do que as pessoas que a estimavam lhe podiam fazer ou do que o seu estado requeria. A pobre Leonor estava ausente e tão longe, que só pôde ver a mãe no caixão.
- E seu pai - disse Catarina - sofreu muito?
- Sim, durante algum tempo. Enganou-se, supondo que meu pai não era amigo dela. Suponho até que a amava tanto quanto era capaz. Bem sabe que nem todos temos a mesma boa disposição. Com isto não quero dizer que enquanto viveu não sofresse, mas embora tivesse razões de queixa do temperamento de meu pai nunca as teve do seu caráter. A sua estima por ela era sincera, e, embora a dor não fosse constante, a sua morte feriu-o profundamente.
- Gostei de o saber - disse Catarina -, seria tão horrível.
- Estou a ver que idealizou tais horrores, que nem tenho palavras com que os exprima. Menina Norland, pense bem no horror das suas suposições. O que tinha imaginado? Lembre-se do país e do século em que vivemos. Lembre-se de que somos ingleses e cristãos. Examine a sua consciência e veja se isso era possível. Faça um juízo seu, avaliando pelo que se passa à sua volta. A nossa educação leva-nos a atrocidades de tal espécie? Consentem as nossas leis uma coisa dessas? Poderiam ser praticadas sem serem conhecidas, numa região como esta, onde há tanta convivência social e literária, onde cada pessoa está rodeada de vizinhos voluntariamente espias, e onde as estradas e jornais divulgam tudo? Menina Morland, veja bem a inverosimilhança das suas ideias.
Tinham chegado ao extremo da galeria e Catarina, com as lágrimas nos olhos, envergonhada, correu a esconder-se no quarto.
Acabaram as visões romanescas. Catarina estava agora bem acordada. A curta conversa que tivera com Henrique abrira-lhe mais os olhos, quanto à extravagância das suas fantasias, do que todas as suas outras desilusões. Sentia-se muito humilhada e chorava amarguradamente. Não era só de si que tinha vergonha, mas sobretudo de Henrique. A sua loucura, que até lhe parecia agora criminosa, era do conhecimento dele, que a devia desprezar para sempre. Poderia ele perdoar-lhe o mau conceito que fizera do caráter do pai? O absurdo da sua curiosidade e das suas apreensões poderia alguma vez ser esquecido? Odiava-se mais do que era capaz de exprimir por palavras. Parecia-lhe que ele, uma ou duas vezes, antes daquela manhã fatal, lhe mostrara talvez alguma afeição. Mas agora, em resumo, durante meia hora, cada vez se sentia mais desgostosa. Desceu quando deram cinco horas, com o coração dilacerado, e quase nem pôde responder a Leonor, quando esta lhe perguntou como estava.
Aquele Henrique que ela agora tanto receava depressa entrou na sala. A única diferença no seu procedimento para com ela foi dispensar-lhe mais atenções do que nunca. Catarina jamais precisara tanto que a consolassem e Henrique parecia compreendê-la. A noite passou-se sem que ele deixasse de mostrar as mesmas atenções gentis, Catarina, pouco a pouco, foi-se reanimando. Não esquecia nem defendia o passado, mas esperava que mais ninguém o soubesse e que isso não afastasse a consideração que Henrique tinha por ela. Os seus pensamentos, continuando a fixar-se naquele terror infundado que a arrastava a sentir e a fazer aquilo, levavam-na a concluir que nada era mais evidente que tratar-se de um engano voluntário da sua imaginação; o seu espírito, facilmente alarmável, dera importância a coisas insignificantes, que intensificara nas suas idealizações, deformando tudo ao saber que ia viver para uma abadia. Lembrava-se bem das sensações com que se preparara para conhecer a Abadia de Northanger. É que a sua loucura vinha já de há muito, de antes, mesmo, de deixar Bath, e parecia que se podia explicar pelas leituras a que se entregara. Encantadoras como todas as obras de Mrs. Radcliffe, e mais encantadoras ainda as das suas imitadoras, não havia nelas aquele fundo verdadeiro humano que era de esperar, pelo menos no centro de Inglaterra. Talvez fossem uma imagem fiel dos Alpes, dos Pirenéus, com os seus pinhais extensos e os seus crimes, e esses horrores que elas narravam deviam talvez ser vulgares na Itália, na Suíça e no Sul da França. Catarina não ousava duvidar que tal se desse para além da sua terra, e mesmo na sua terra, se instassem muito com ela; concordaria que ao Norte e ao Oeste de Inglaterra isso seria possível, mas na parte central nem as leis nem os costumes permitiriam o abandono duma esposa. O assassínio não era permitido, os criados não eram escravos, e os droguistas não vendiam venenos nem narcóticos, como por exemplo o ruibarbo. Talvez entre os habitantes dos Alpes e dos Pirenéus houvesse pessoas assim de maus instintos. Aí, porque não eram puros como anjos, podiam ter tendências diabólicas. Mas em Inglaterra não era assim parecia-lhe que entre os ingleses havia uma mistura de bom e de mau. Baseada nesta convicção, não se admiraria de que mesmo em Henrique ou em Leonor pudesse aparecer algum leve defeito. E, animada por esta convicção, já não receava atribuir alguns leves defeitos ao caráter do general, que, mesmo agora, afastadas as suas criminosas suspeitas - que a fariam sempre corar -, lhe parecia, pensando bem, pouco amável. Assentou nestes pontos e resolveu agir, de futuro, sempre com o melhor bom-senso; restava apenas perdoar-se a si mesma e sentir-se mais feliz do que nunca. O tempo foi para ela o lenitivo, nas sensíveis gradações operadas num só dia.
Era de espantar a generosidade e nobreza de caráter de Henrique, que não voltou a aludir ao que se tinha passado, com o que ela muito lucrou. E mais cedo do que contava, quando sofrera aquele desgosto, sentiu-se melhor, e, com o que ele continuou a dizer-lhe, em breve se restabeleceu. Havia, contudo, pensava ela, alguns assuntos que a fariam sempre estremecer: a menção de uma arca ou de um contador, por exemplo. Na verdade, ela não gostava de ver charão. Apesar disso, confessava que a lembrança ocasional de uma loucura passada, por bem amarga que tivesse sido, não deixava às vezes de ter utilidade.
Os anseios da vida comum vieram em breve substituir os alarmes romanescos. O desejo de ter notícias de Isabel aumentava de dia para dia. Estava impaciente por saber como corria a vida em Bath, se os bailes eram freqüentados, e, se Isabel tinha encontrado um algodão bonito que lhe encomendara e se continuava em boas relações com Jaime. Só por ela é que contava saber notícias. Jaime tinha-lhe dito que não escrevia até regressar a Oxford e a senhora Allen não lhe dera esperanças de escrever antes de regressar a Fullerton. Mas Isabel afiançara-lhe que lhe escreveria, e quando ela prometia era tão escrupulosa em o fazer! A sua falta de notícias parecia tão estranha! Durante nove manhãs sucessivas, Catarina admirou-se cada vez mais com as novas desilusões que todas as manhãs sofria; mas na décima manhã, ao entrar na sala de jantar, a primeira coisa que viu foi uma carta, que Henrique delicadamente lhe entregou. Agradeceu-lhe tanto como se fosse ele quem a tivesse escrito.
- Mas é do Jaime! - disse ela, olhando para a direcção.
Abriu-a; vinha de Oxford, e dizia assim:
Querida Catarina
Embora com pouca vontade de escrever, e só Deus o sabe, julgo de meu dever comunicar-te que tudo entre mim e Isabel terminou. Estive ontem em Bath com ela pela última vez, Não entrarei em pormenores que iriam magoar-te mais. Saberás, por outro lado, onde está a culpa. Espero que desculpes o teu irmão de tudo, menos da loucura de ter acreditado tão ingenuamente que a sua afeição era correspondida. Graças a Deus, ainda me desenganei a tempo! Mas custou-me muito! Depois de o pai me ter dado o seu consentimento de tão boa vontade. Mas basta. Ela desgraçou-me para sempre. Escreve-me depressa, querida Catarina. Tu és a minha única amiga. Na tua amizade me sustento. Gostava que viesses de Northanger antes do capitão Tilney aí anunciar o seu noivado, pois de outra forma sentir-te-ás pouco à vontade. O Thorpe está na cidade. Receio vê-lo. O seu coração leal há-de sofrer também muito. Escrevi-lhe, assim como ao meu pai. A dissimulação de Isabel magoou-me mais do que tudo, mesmo até ao fim, quando discuti com ela; afirmava que gostava de mim como dantes e ria das minhas apreensões. Até tenho vergonha de acreditar que pude suportar tanto. Mas se alguma vez houve um homem que tivesse a certeza de ser amado, esse era eu. Mesmo agora, não percebo o que ela tencionava fazer, pois não havia necessidade de escarnecer de mim para prender o Tilney. Despedimo-nos amigavelmente. Que feliz seria se nunca a tivesse conhecido! Oxalá nunca conheça outra mulher assim! Querida, querida Catarina, toma cuidado quando deres o coração. Crê-me, etc.
Catarina não tinha ainda lido três linhas, e já o seu aspeto se modificava, e curtas exclamações de admiração mostravam estar a ler más notícias. Henrique, que a observava sempre enquanto ela lia a carta, viu que não acabava melhor do que começara. A entrada do pai, contudo, impediu-o até mesmo de avaliar a sua própria admiração. Foram logo almoçar, mas Catarina mal tocou na comida. As lágrimas vinham-lhe aos olhos e chegavam a correr-lhe pela cara abaixo. A carta, ora a tinha na mão, ora a pousava no regaço, ora a metia na algibeira. Mostrava o aspeto duma pessoa que não sabia o que estava a fazer. O general, ocupado com o seu cacau e com o jornal, felizmente não teve ocasião de olhar para ela; mas, para os outros dois, a sua tristeza foi visìvelmente notada. Logo que pôde levantar-se da mesa, correu ao quarto. Mas como as criadas andavam ali, teve de voltar para baixo. Dirigiu-se à saleta, para poder estar sozinha, mas Henrique e Leonor tinham igualmente ido para lá e falavam precisamente dela. Recuou, pedindo desculpa, mas foi obrigada a entrar. Os dois irmãos saíram depois de Leonor lhe ter dito que estava ao seu dispor para o que fosse preciso.
Depois de meia hora de tristezas e reflexões, já podia aparecer aos seus amigos. Se lhes havia de dizer a razão da sua tristeza, era coisa ainda a pensar. Talvez, se lhe perguntassem de certa maneira, ela pudesse dar uma idéia, embora vaga, mas mais nada. Comprometer uma amiga, uma amiga como Isabel tinha sido para ela, e então o seu próprio irmão, a quem tão de perto dizia respeito! Contudo pensou que tinha de abordar o assunto. Henrique e Leonor estavam na sala de jantar; e ambos, quando ela entrou, a olharam, apreensivos. Catarina sentou-se à mesa e, depois dum curto silêncio, Leonor perguntou:
- Não teve más notícias de Fullerton, pois não? O senhor e a senhora Morland, os seus irmãos e irmãs não estão doentes, não é verdade?
- Não, obrigada (e, ao falar, suspirou); estão todos bons. A carta era de Oxford, do meu irmão.
Nada mais disse durante alguns minutos; e então falando a chorar acrescentou:
- Não é para desejar receber outra carta.
- Sinto muito - disse Henrique, fechando o livro que acabava de abrir -; se eu adivinhasse que a carta trazia más notícias, tê-la-ra dado com outra disposição.
- Trazia as piores que se podem imaginar. Pobre do Jaime, é tão infeliz! Já lhes digo porquê.
- Ter uma irmã tão boa, tão amiga - replicou Henrique entusiasmado -, deve ser para ele um lenitivo, qualquer que seja a desgraça que lhe aconteceu.
- Tenho um favor a pedir-lhes - disse Catarina, logo a seguir, muito agitada -; se o vosso irmão vier cá, digam-mo, para eu me poder ir embora.
- O nosso irmão! Frederico!
- Sim; estou certa de que hei-de ter muita pena por deixá-los tão cedo, mas qualquer coisa aconteceu que me incomodaria, se estivesse debaixo do mesmo teto com o capitão Tilney.
O trabalho de Leonor foi suspenso, enquanto olhava com espanto crescente. Mas Henrique começou a suspeitar da verdade, e qualquer coisa em que se incluía o nome de Isabel Thorpe passou pelos seus lábios.
- É bastante perspicaz - respondeu Catarina -, já adivinhou, afianço-lhe. E, contudo, quando falámos disto em Bath, longe estávamos de julgar que terminaria assim. Não admira que Isabel não me escrevesse; Isabel deixou o meu irmão para casar com o vosso! Acreditam que haja tanta inconstância, tanta volubilidade, tanta maldade no mundo?
- Creio, pelo que respeita ao meu irmão, que está mal informada. Espero que ele não tenha tido qualquer interferência que levasse o senhor Morland a tal resolução. Não é nada provável que ele case com Isabel Thorpe. Creio que está absolutamente enganada. Penaliza-me a situação do senhor Morland. Sinto a sorte de todos os que amam e são infelizes; contudo, o que mais me surpreende ainda, em toda a história, é que Frederico tencione casar com ela.
- Pois é verdade; leia a carta do Jaime. Deixe ver; há uma parte. (lembrando-se das últimas linhas, corou).
- Pode ter a maçada de nos ler só aquilo que diz respeito ao meu irmão?
- Não, leia - exclamou Catarina, cujos pensamentos agora eram mais decisivos. - Não sei o que estava a pensar (e corou mais do que da primeira vez). Jaime só queria dar-me bons conselhos.
Henrique pegou, satisfeito, na carta; e, depois de a ter lido com muita atenção voltou a dar-lha, dizendo:
- Ora bem, se assim for, só tenho a dizer que sinto muito. Frederico não é o primeiro que escolhe esposa com menos senso do que a família esperaria. Não lhe invejo a situação, nem como noivo, nem como filho.
Leonor, a convite de Catarina, leu igualmente a carta; e, exprimindo também a sua surpresa, começou a perguntar pela família e meios de fortuna de Isabel Thorpe.
- A mãe dela é uma boa senhora - foi a resposta de Catarina.
- O que era o pai?
- Um advogado, creio eu. Vivem em Pultney.
- São ricos?
- Não muito. Não creio que Isabel tenha qualquer fortuna; mas isso não importará à sua família. O seu pai é tão liberal! Há dois dias disse que só apreciava o dinheiro, desde que contribuísse para a felicidade dos filhos.
Os irmãos entreolharam-se.
- Mas disse Leonor após uma curta pausa - iria contribuir para a felicidade do filho, consentindo no casamento com tal menina? Ela não deve ser educada, de contrário não procederia desta forma para com o seu irmão. E que estranha paixoneta a do Frederico! Uma menina que, aos seus olhos, viola voluntariamente um compromisso tomado, para seguir outro homem! Não é inacreditável, Henrique? E o Frederico, que era tão orgulhoso do seu coração! Que nunca achou uma mulher digna de ser amada!
- É esse o fato que menos esperanças dá, a suspeita mais forte contra ele. Quando penso nas suas passadas paixões, não acredito. Por outro lado, tenho uma opinião muito boa dos cálculos prudentes de Isabel Thorpe para que vá supor que ela ponha de parte um, antes de ter o outro bem seguro. Frederico já caiu. É um vencido, um morto de entendimento. Prepara-te para receber a tua cunhada, Leonor, e uma cunhada de que te deves ufanar: franca, simples, sem manhas, ingénua, muito afetuosa, sem pretensões, e que desconhece a dissimulação.
- Com tal cunhada ufanar-me-ia, Henrique - disse Leonor, sorrindo.
- Mas talvez - observou Catarina - que, embora ela se tenha portado mal para com a nossa família, se porte melhor com a sua. Agora que tem o homem de que gosta, pode ser-lhe fiel.
- Duvido bastante que seja assim - respondeu Henrique. - Manter-se-á fiel, se não lhe aparecer um barão. É a única salvação de Frederico. Vou arranjar o jornal de Bath a ver quem chegou.
- Então pensa que é tudo por ambição? E está bem; há algumas coisas que bem denotam isso. Não me pode esquecer que, quando soube o que o meu pai lhes poderia dar, ficou desapontada, por lhe parecer pouco. Nunca me enganei tanto acerca do caráter duma pessoa.
- Entre a grande variedade dos que conheceu e estudou.
- A minha desilusão é grande e custa-me muito perder Isabel; mas ao meu pobre irmão vai custar muito mais.
- Realmente, é para lamentar o seu irmão; mas, por causa dos sofrimentos dele, não devemos descurar os seus. Parece-me que, por perder Isabel, julga ter perdido metade de si mesma. Sente um vácuo no coração que ninguém será capaz de preencher. A convivência torna-se-lhe mais insuportável, e a idéia de não compartilhar com ela dos divertimentos a que estava habituada em Bath torna-se-lhe horrível. Por exemplo, por nada deste mundo iria agora a um baile; sente que não tem uma amiga com quem possa desabafar e em cujos conselhos confie. Sente tudo isto, não é verdade?
- Não - disse Catarina, depois de refletir alguns minutos. - Para dizer a verdade, embora esteja magoada e com pena, não sinto tanto como se poderia crer, não continuar a ser amiga dela, não voltar a receber notícias suas, nem talvez tornar a vê-la.
- Sente sempre, como é seu costume que a honra. Sentimentos desses deviam ser investigados para que os pudesse conhecer.
Catarina, por qualquer razão, sentiu-se tão aliviada depois desta conversa, que não lamentou ter falado no motivo que a causara.
Desde então, o caso foi muitas vezes discutido pelos três; e Catarina descobriu, com alguma surpresa, que ambos julgavam que o fato de Isabel não ser rica nem de boa família contribuiria talvez para que o casamento dela com o irmão trouxesse muitos inconvenientes, dizendo que estavam persuadidos de que o general, só por causa disto, sem contar já com o baixo caráter da menina, se oporia ao casamento. Catarina, muito alarmada, punha o caso em si. Ela era tão insignificante e talvez tão pobre como Isabel; se o morgado dos Tilneys não tinha riqueza suficiente, grandes deviam ser as exigências do irmão mais novo. As reflexões a que isto a levara só poderiam atenuar-se com a idéia de que logo desde o princípio tivera a sorte de cair nas boas graças do general, tanto pelas suas palavras como pelas suas acções; e lembrando-se de que várias vezes o ouvira falar muito desinteressado do dinheiro, concluiu que os filhos o não compreendiam neste ponto. Contudo, estavam tão convencidos de que o irmão não teria coragem de pedir licença ao pai, e tantas vezes lhe afirmavam que não havia probabilidades de ele agora voltar a Northanger, que ela começou a sentir-se mais satisfeita por não ver necessidade de sair subitamente. Mas, ao mesmo tempo, era natural que o capitão Tilney, quando pedisse consentimento ao pai, lhe fizesse ver qual o procedimento de Isabel; por isso lembrou-se de pedir a Henrique que contasse ao general tudo como na verdade se passara, para que preparasse a sua opinião imparcial e apresentasse objeções mais convincentes que o fato da diferença de fortuna. Propôs-lho, portanto. Mas Henrique não concordou com a medida proposta, com tanto ardor, como ela esperava.
- Não - disse ele. - Não é preciso comover meu pai, nem antecipar a confissão das loucuras de Frederico. Ele é que deve contar a sua história.
- Mas ele dirá só metade.
- Basta que diga a quarta parte.
Passaram dois dias e não vieram notícias do capitão Tilney. Os irmãos não sabiam que pensar. Umas vezes, parecia-lhes que aquele silêncio era o resultado do seu suposto compromisso; outras vezes, esse mesmo silêncio parecia-lhes incompatível com ele. O general, entretanto, embora todas as manhãs se aborrecesse por não vir carta de Frederico, não sentia qualquer grande inquietação a seu respeito; a sua única preocupação era que Catarina passasse o melhor possível em Northanger. Muitas vezes falava acerca do caso. Receava que o fato de ter sempre as mesmas ocupações e as mesmas pessoas na sua frente a aborrecesse; desejaria que as senhoras Frasers tivessem vindo passar ali uma temporada; de vez em quando falava em convidar gente para o jantar e, uma ou duas vezes, começou a deitar contas aos pares que se poderiam obter na vizinhança. Sem caçadas ou outros divertimentos, sem a presença das senhoras Frasers, era uma época morta do ano. E acabou por dizer a Henrique, que, quando ele fosse para Woodston, lá iriam, um dia, fazer-lhe uma surpresa e almoçar com ele. Henrique tinha muita honra e prazer em os receber e Catarina ficou encantada com o plano.
- E quando lhe parece, meu pai, que poderei contar com esse prazer? Tenho de estar segunda-feira em Woodston por causa da reunião da freguesia, e terei talvez de ficar mais dois ou três dias.
- Pois bem, iremos qualquer desses dias. Não é preciso fixar o dia certo. Não queremos de maneira alguma alterar os teus hábitos. Para nós, qualquer coisa servirá. As meninas desculpam qualquer falta na mesa de um rapaz solteiro. Ora vamos a ver: na segunda-feira tens tu muito que fazer, portanto não iremos na terça, tenho eu. Espero de manhã o meu agrimensor de Brockham, e à noite não era bonito faltar à assembléia. Como já sabem que estou cá, levariam a mal se não fosse. Eu, menina Catarina, não gosto de ofender nenhum vizinho, desde que isso esteja nas minhas mãos, nem mesmo que tenha de me sacrificar. São pessoas muito respeitáveis. Mando-lhes sempre, duas vezes por ano, meio veado de Northanger e, quando posso janto com eles. Portanto, terça-feira também está posta de parte. Talvez nos possas esperar na quarta-feira; estaremos lá cedo, a fim de vermos tudo bem. Conta connosco à uma menos um quarto, pois sairemos daqui às dez e não demoraremos mais de duas horas e três quartos a chegar a Woodston.
Nem um baile seria tão bem recebido por Catarina como esta pequena excursão, tal era o seu desejo de conhecer Woodston. O seu coração saltava ainda de alegria quando, decorrida uma hora, Henrique, com botas e capote de montar, entrou na sala onde ela estava com Leonor, e disse:
- Venho, minhas senhoras, possuído dum conceito muito moralista, dizer que temos sempre de pagar caro os prazeres deste mundo e que por vezes os compramos com grande desvantagem, cedendo a felicidade presente e certa pela que talvez nunca se realize. Eu mesmo sou agora testemunha disso. Por esperar ter o prazer de as ver quarta-feira em Woodston, o que o mau tempo e outras imprevisíveis eventualidades podem impedir, tenho de ir dois dias mais cedo do que tencionava.
- O quê? - disse Catarina, muito triste. - Já se vai embora! E porquê?
- Ora, porque há-de ser! Porque não posso deixar de ir atrapalhar a minha velha governanta e dizer-lhe que tem de preparar um jantar para vós.
- Oh, não está a falar a sério!
- Falo, sim, e com grande pena, pois preferia ficar.
- Mas porque está a pensar nessas coisas, depois do que o general lhe disse? Ele não quer que se incomode e disse que qualquer coisa serviria.
Henrique sorriu levemente.
- Por mim e pela sua irmã - continuou Catarina parece-me absolutamente desnecessário; e o seu pai frisou bem que não era preciso andar com aflições. Além disso, mesmo que não o dissesse, a ele, que tem sempre jantares tão bons em casa, não faria diferença ser esse um pouco inferior.
- Por ele e por mim, gostaria de poder pensar assim. Adeus. Como amanhã é domingo não voltarei, Leonor.
Henrique saiu. E porque era muito fácil, a Catarina, duvidar do seu bom senso do que do de Henrique, logo viu que ele tinha razão, apesar de lhe ter custado muito vê-lo partir. Mas a incompreensão da atitude do general continuava a atormentá-la. Que ele era muito esquisito nas comidas, já ela o compreendera sem auxílio de ninguém; mas a razão por que ele dizia uma coisa, quando tinha outra na idéia, era incompreensível. Como se haviam de compreender tais pessoas? Quem, a não ser Henrique, podia adivinhar o que o pai tencionava fazer. Estariam agora sem Henrique, desde sábado até quarta-feira. Este foi o fim triste de todas as reflexões. Com certeza a carta do capitão Tilney viria na sua ausência; e tinha a certeza de que na quarta-feira havia de estar um dia de chuva. O passado, o presente e o futuro estavam igualmente envolvidos em neblina. O irmão era tão infeliz, a perda de Isabel tão sentida e Leonor sempre que o irmão saía, ficava tão triste! O que haveria que a interessasse ou a distraísse? Aborrecia-se com os passeios à floresta e aos bosques, sempre tão amenos e secos, e mesmo a Abadia tornava-se para ela, como qualquer outra casa. A triste lembrança da loucura que ela tinha ajudado a alimentar e a completar era a única emoção que sentia ao pensar no edifício. Que revolução nas suas ideias! Ela, que tanto ansiava estar numa abadia! Agora nada de mais atraente andava na sua imaginação do que o conforto simples duma boa casa paroquial, parecida com Fullerton, mas melhor. Fullerton tinha os seus defeitos, mas talvez que Woodston não tivesse nenhum. Ah, se quarta-feira chegasse! Chegou e exatamente quando se devia esperar. Chegou; o tempo estava bom e Catarina saiu. Às dez horas, a vitória levou as duas da Abadia. Depois de uma viagem agradável de quase vinte milhas, chegaram a Woodston, uma aldeia grande e populosa, com uma boa situação. Catarina tinha vergonha de dizer que a achava bonita, enquanto o general parecia pensar que devia desculpar a monotonia da terra e o tamanho da aldeia. Mas, no seu coração, ela preferia-a a qualquer outra que conhecia, e olhava com admiração para todas as casas, maiores do que cabanas, e para todos os estabelecimentos insignificantes por que passavam. No fim da aldeia, e a uma distância razoável das restantes casas, estava a casa da paróquia, uma casa nova, de boa pedra, com as suas grades verdes semicirculares. À medida que se aproximavam da porta, Henrique, com os seus companheiros de solidão, um grande terra-nova e dois ou três terriers, mostraram-se prontos a recebê-los e a servi-los.
O espírito de Catarina quando entrou na casa estava demasiado ocupado, para observar ou dizer outra coisa: e até, quando o general Ihe perguntou a sua opinião, ela mal Ihe soube dizer em que sala estava. Depois de olhar, tinha notado que a sala era a mais confortável do mundo, mas, como estava resolvida a não dizer isso, a frieza do seu louvor desapontou o general.
- Não é uma casa boa - disse ele. - Não se pode comparar a Fullerton ou a Northanger. Devemos apreciá-la como uma simples casa de paróquia, pequena, mas contudo decente e habitável e, além disso, não inferior a qualquer outra do seu género; ou, por outras palavras, creio que haverá poucas casas paroquiais do campo, em Inglaterra, que sejam metade do que esta é. É claro que podia ser arranjada. Longe de mim dizer o contrário. Talvez precisasse de um arco, embora, isto aqui para nós, não haja coisa com que mais embirre do que um arco postico. Catarina não ouviu o bastante destas palavras para perceber ou ficar ofendida com elas. Discutiram-se outros assuntos que Henrique sustentou até que uma bandeja com refrescos, trazida pelo criado, veio restabelecer a complacência do general e a boa disposição habitual de Catarina.
O compartimento em que estavam era cómodo, de boas dimensões e elegantemente mobilado como sala de estar. Ao deixá-lo, para ir passear pelos campos, mostraram-Ihe primeiro um compartimento mais pequeno, que pertencia ao dono da casa e estava agora excepcionalmente arrumado. Depois entraram noutro que se destinava, futuramente a sala de visitas, cuja aparência, embora sem mobília, satisfez de tal forma Catarina, que chegou a agradar ao general. Era um compartimento de excelentes proporções, com janelas rasgadas até ao soalho, das quais se viam lindas paisagens, embora só se descortinassem prados verdes. Catarina exprimiu a sua admiração com toda a sincera simplicidade de que era capaz.
- Oh, porque não mobila esta sala senhor Tilney? Que pena não estar mobilada! É o compartimento mais belo que tenho visto. A mais bela sala do mundo!
- Creio - disse o general, com um sorriso de satisfação - que em breve será mobilada. Se espera pelo gosto duma senhora. Sim, se a casa fosse minha, eu não estaria noutro lugar.
- Oh, que linda cabana, além, no meio daquelas árvores! E são macieiras! Oh, que linda cabana!
- Gosta dela e aprova-a; é quanto basta. Henrique, lembra-te de dizer a Robinson que a cabana fica.
Esta amabilidade chamou Catarina à razão; calou-se logo. Embora subtilmente interrogada pelo general a respeito da sua preferência quanto às cores do papel e das cortinas, nada se conseguiu arrancar dela. Contudo, a influência de coisas novas e do ar fresco foi de grande eficácia para dissipar estas atitudes embaraçosas. Na parte das dependências de serviço abria-se uma avenida que ocupava dois lados dum prado e que Henrique construíra quando, há meio ano, tomara conta da casa; mas estava agora suficientemente arranjada para que Catarina julgasse a mais bonita em que jamais estivera, embora houvesse só um arbustozinho pouco mais alto que o banco verde colocado à esquina. Um passeio por outros prados e por parte da aldeia, a visita aos estábulos para se examinarem algumas modificações, e um passatempo engraçado com uma ninhada de cães que começavam a andar trouxe-os para casa às quatro horas, apesar de a Catarina parecer serem só três. Às quatro deviam jantar e às seis partir. Nunca um dia passara tão depressa. Ela só olhava para o general, a quem a abundância do jantar parecia não despertar o mais pequeno assombro, mas, pelo contrário, fazê-lo procurar em toda a mesa carnes frias, coisa que não existia. As impressões dos filhos eram diferentes. Raras vezes o tinham visto comer tão alegremente fora da sua própria mesa e nunca o tinham visto tão pouco aborrecido por a manteiga estar derretida.
Às seis horas, depois de o general ter tomado o seu café, a carruagem levou-os de novo a Northanger. Tão agradável tinha sido a sua conduta durante a visita, tão certa estava das suas intenções que, se Catarina pudesse sentir igual certeza quanto aos desejos de Henrique, teria deixado Woodston com menos preocupações a respeito de como e quando ali poderia voltar.
A manhã seguinte trouxe uma carta de Isabel, absolutamente inesperada.
Bath, Abril.
Minha querida Catarina
Recebi com grande prazer as tuas duas últimas cartas, e peço-te mil desculpas por não ter respondido mais cedo. Estou verdadeiramente envergonhada da minha preguiça, mas nesta terrível terra não há tempo para nada. Desde que partiste de Bath quase todos os dias tenho pegado na pena para escrever-te, mas sempre, uma ninharia, ou outra, me impediram de o fazer. Escreve-me depressa, e para minha casa. Graças a Deus que amanhã deixamos esta terra horrível. Desde que te foste embora não me tenho divertido nada, o pó é insuportável e aqueles que nos interessam partiram. Se ao menos te pudesse ver, já não me importaria do resto, porque te quero mais do que se possa imaginar. Estou em cuidados por não ter notícias do teu irmão, desde que foi para Oxford; receio que houvesse algum mal-entendido. A tua amável interferência porá tudo em ordem. Ele é o único homem que jamais amei ou poderei amar. Confio na tua ajuda, para que o convenças disto. As novidades da Primavera estão quase no fim e os chapéus são os mais horríveis que possas supor. Espero que tenhas passado tão bem o tempo, a ponto de estar convencida de que nem voltaste a pensar em mim. Não direi nada do que poderia dizer acerca da família em casa de quem estás, porque não serei ingrata, nem te quero indispor com aqueles que estimas. É muito difícil saber em quem devemos confiar e, especialmente os rapazes, nunca têm dois dias as mesmas ideias. Estou satisfeitíssima por te dizer que o rapaz com quem mais antipatizo deixou Bath. Por esta descrição deves saber que se trata do capitão Tilney, que, como te lembrarás, estava sempre disposto a seguir-me e a aborrecer-me. Depois fez-se pior e tornou-se a minha sombra negra. Muitas meninas se iludiram com tais atenções; mas eu conheço bem o sexo volúvel. Há já dois dias que voltou ao seu quartel e afianço-te que nunca mais me incomodarei com ele. É o maior peralvilho que conheço e excessivamente aborrecido. Os dois últimos dias andou sempre com a Carlota Davies. Lamentei o seu gesto, mas não lhe ligarei importância. A última vez que nos encontramos foi em Bath Street e eu entrei logo num estabelecimento para que ele não me falasse. Nem vê-lo queria. Depois foi para a Fonte, mas eu não o seguiria por nada do mundo. Que contraste entre ele e o teu irmão! Diz-me alguma coisa deste. Estou em cuidados por sua causa. Parecia estar tão triste quando partiu, constipado ou qualquer outra cousa que o preocupava! Queria escrever-lhe, mas perdi a direcção e, como te disse, estou com receio que ele interpretasse mal o meu modo de proceder. Por favor, explica-lhe tudo para seu sossego ou, se ele ainda tiver alguma dúvida, que me escreva, ou que vá a Pultney, quando voltarmos, e assim tudo ficará resolvido. Já há muito tempo que não vou aos salões nem ao teatro. Fui ontem à noite com as Hodges ver uma comédia, só por metade do preço; insistiram tanto que fui obrigada a ir; além disso não queria que elas pensassem que não saía por causa do Tilney se ter ido embora. Aconteceu ficar ao pé das Mitchells e elas mostraram-se muito admiradas por me verem. Eu bem as entendo: primeiro não me ligavam, mas agora fazem-se muito minhas amigas; porém eu não sou tão tola que as não perceba. A Ana Mitchell quis copiar o penteado que na semana passada levei ao concerto, mas foi infeliz. A mim ficava-me bastante bem, toda a gente olhava para mim, pelo menos o Tilney assim mo disse, mas ele é a pessoa em quem menos confiança tenho. Agora ando vestida de vermelho. Bem sei que me fica horrivelmente, mas não me importa: é a cor preferida do teu irmão. Minha muito querida Catarina, por favor escreve-lhe depressa, a ele e a mim também.
A tua amiga de sempre, Isabel.
Um tal arrojo de hipocrisia não podia enganar mesmo Catarina. Logo desde o princípio da carta a impressionaram as incertezas, as contradições e as mentiras. Até se envergonhava dela e de ter sido sua amiga. Repugnava-lhe tanto os seus protestos de amizade, como vazias lhe pareciam as suas desculpas e atrevidos os seus pedidos.
- Escrever a Jaime, intercedendo por ela! Nunca! Jaime nunca mais me ouvirá pronunciar tal nome!
Logo que Henrique chegou de Woodston, Catarina comunicou-lhe, bem como a Leonor, que o irmão estava salvo. Felicitou-os calorosamente e leu-lhes, com a maior indignação, algumas passagens da carta. No fim, exclamou:
- Tanto pior para Isabel e para a nossa amizade! Devia julgar-me idiota, de contrário não teria escrito uma carta destas. Fiquei a conhecer melhor o seu caráter do que ela o meu. Agora já a compreendo. É uma grande namoradeira, mas as suas artimanhas não deram bom resultado. Parece que nunca se importou muito comigo nem com o Jaime; quem me dera nunca a ter conhecido!
- Não levará muito tempo a esquecê-la! - disse Henrique.
- Há ainda uma coisa que não compreendo bem. Vejo que ela queria prender o capitão Tilney, o que não conseguiu; mas o que não percebo é o procedimento dele. Qual a razão de a namorar até indispô-la com o meu irmão, para depois a esquecer?
- Pouco lhe sei dizer acerca das intenções de Frederico. Ele também tem as suas vaidades, como Isabel Thorpe. A única diferença é ter melhor cabeça, e é isso que ainda o não deixou cair. Se não acha que o resultado do seu procedimento basta para o justificar, será melhor não nos maçarmos, procurando a causa.
- Parece-lhe então que ele nunca a namorou a sério?
- Estou plenamente convencido disso.
- Então fingiu gostar dela só para fazer mal aos outros?
Henrique disse que sim com a cabeça.
- Sendo assim confesso que não gosto mesmo nada dele. Embora, afinal, tudo se compusesse a nosso favor, confesso que não o tolero. O mal não foi grande, porque Isabel não se incomodará muito. Mas suponha que ela se tinha apaixonado por ele!
- Teríamos primeiro de supor que Isabel era uma menina sensata, portanto muito diferente do que é. Ora, sendo assim, já Frederico a trataria doutra forma.
- Concordo que defenda o seu irmão.
- Se a Catarina tivesse que defender o seu, não se preocuparia tanto com a desilusão de Isabel Thorpe. Mas pensa que toda a gente tem o mesmo conceito da retidão, e portanto não admite juízos parciais das predilecções de família nem um desejo de vingança.
Este cumprimento de Henrique acabou com toda a sua má disposição. Frederico não podia ser tão imperdoavelmente culpado, visto que Henrique se mostrava tão simpático. Resolveu não responder à carta de Isabel, e esforçou-se por não pensar mais no caso.
Logo depois disto, o general teve de ir passar uma semana em Londres e deixou Northanger, lamentando que os negócios o roubassem à companhia de Catarina Morland, e recomendando aos filhos que, na sua ausência, fizessem todos os esforços para a distrair.
A sua partida fez ver a Catarina que às vezes uma perda pode transformar-se numa vantagem. A felicidade com que passavam agora o tempo, rindo quando lhes apetecia, sempre com boa disposição durante as refeições, passeando quando e para onde lhes agradava, fazendo, em suma, o que queriam, fez com que Catarina desse pelo constrangimento que todos sentiam na presença do general, e se sentisse muito satisfeita pelo seu afastamento. Este à-vontade e todos os seus divertimentos fizeram com que ela cada vez gostasse mais de estar ali e das pessoas com quem convivia. E, se não fosse uma certa apreensão por pensar que seria conveniente deixar em breve a casa e receio de que o seu amor não fosse igualmente correspondido teria passado todos os minutos em completa felicidade. Já entrara na quarta semana que ali estava, e antes de o general regressar passaria outra. Seria um abuso estar mais tempo. Estes pensamentos eram para ela uma recordação dolorosa e, ansiosa por se libertar dum tal peso, resolveu falar a Leonor. Dir-lhe-ia ter de ir-se embora e logo veria a maneira como ela lhe responderia. Certa de que, se se demorasse, lhe custaria muito mais falar em um assunto para ela tão desagradável, aproveitou a primeira ocasião de estar a sós com Leonor e, enquanto esta falava de qualquer coisa diferente, disse-lhe que tinha de ir-se embora quanto antes. Leonor mostrou-se muito triste. Esperava ter o prazer da sua companhia por muito mais tempo. Parecia-lhe que lhe prometera uma visita muito maior, e tinha a certeza de que se os pais dela fizessem idéia do prazer que lhe dava a sua companhia, não a mandariam ir tão depressa.
Catarina explicou:
- Quanto a isso, o papá e a mamã não têm pressa nenhuma. Sentir-me eu bem, é o bastante para eles.
- Então porque tem pressa de deixar-nos?
- Ora, porque já cá estou há muito tempo.
- Se diz isso, então não insisto mais. Se acha que já cá está há muito tempo.
- Oh, não; não é nada disso. O prazer seria só meu, se pudesse estar outro tanto.
Ficou logo assente que nunca mais falariam na partida. Depois de ver resolvida tão favoravelmente a questão, a outra tornou-se menos importante. A maneira gentil como Leonor teimou para que ela ficasse, e a satisfação de Henrique por saber que estava resolvida a ficar, foram tão doces provas da importância que tinha para eles que experimentou aquela sensação de carinho que a natureza humana não pode dispensar. Às vezes convencia-se que Henrique a amava, e julgava crer que o pai e a irmã a estimavam e desejavam que pertencesse à família. Pensando assim, as suas dúvidas e anseios passavam a meras preocupações amorosas.
Henrique não pôde obedecer ao desejo do pai de ficar em Northanger a fazer companhia às senhoras, enquanto ele estivesse em Londres. Os afazeres na freguesia de Woodston obrigaram-no a deixá-las no sábado, com o propósito de se demorar alguns dias. Agora, não sentiam a sua ausência como quando o general estava; diminuiu-lhes a alegria, mas não lhes tirou o conforto. As duas meninas sentiam-se tão bem quando estavam juntas que, no dia em que Henrique partiu, ao darem as onze - o que era tarde para a Abadia - elas ainda estavam na sala de jantar. Chegavam ao cimo das escadas quando lhes pareceu ouvir, tanto quanto a espessura das paredes lho permitia, o rodar duma carruagem, o que se confirmou ao ouvirem uma forte badalada da sineta. Depois da primeira confusão do meu Deus, o que será?, Leonor supôs que, com certeza, seria o irmão mais velho. Costumava sempre chegar sem aviso e fora de horas. Apressou-se, portanto, a ir ter com ele. Catarina foi para o quarto resolvida a acostumar-se a uma convivência maior com o capitão Tilney, esforçando-se por apagar a impressão desagradável que tinha dele e tentando persuadir-se de que se tratava de um cavalheiro muito distinto, incapaz, portanto, de antipatizar com ela. Isto faria com que não fosse muito frio pelo menos o seu primeiro encontro. Esperava que não falasse em Isabel Thorpe, pois parecia-lhe que ainda devia estar envergonhado do papel que desempenhara; e, desde que não se referisse a Bath, pensava ser capaz de se mostrar delicada para com ele.
Com tais considerações passou o tempo. Leonor devia ter gostado imenso de ver o irmão e, decerto, tanta coisa se lembrara de lhe contar que ainda não voltara, embora já tivesse passado meia hora desde a chegada do capitão. Nesta altura, Catarina julgou ouvir passos na galeria mas, ao escutar mais atentamente convenceu-se de que se enganara. Contudo, mal se convencera do seu erro, quando um ruído, junto do seu quarto, a assustou. Parecia mesmo que tocavam na porta; depois, um movimento leve do fecho provou que não se enganava. Estremeceu a idéia de que alguém se aproximava tão cautelosamente; mas, resolvida a não se afligir com a aparência de alarme ou a ser enganada por uma imaginação exaltada, avançou tranquilamente e abriu a porta.
Leonor, só Leonor ali estava. O coração de Catarina eliseu, mas só por um instante, porque as faces de Leonor estavam pálidas e toda ela muito agitada. Embora tivesse intenção de entrar, parecia custar-lhe a fazê-lo e, mais ainda, a falar-lhe. Catarina, supondo que se tratava de qualquer inquietação por causa do capitão Tilney, exprimia a sua tristeza, acariciando-a sem nada dizer; obrigou-a a sentar-se, esfregando-lhe a testa com água de alfazema, e, cheia de solicitude, não saiu do seu lado.
- Minha querida Catarina, não deve, não deve de forma alguma. - foram as primeiras palavras seguidas de Leonor – Estou bem. A sua bondade deixa-me perplexa. Não posso suportá-la. Tenho um tal recado a dar-lhe!
- Um recado para mim?
- Como lho hei-de dizer? Oh, como hei-de ser capaz?
Uma outra idéia acorreu ao espírito de Catarina e, empalidecendo como a amiga, exclamou:
- Um criado de Woodston!
- Está enganada - retorquiu Leonor, olhando para ela, com muita compaixão - não é de Woodston. É de meu pai.
A voz tremia-lhe, e voltou os olhos para o chão, ao pronunciar o seu nome. O seu regresso inesperado foi o bastante para fazer sucumbir o coração de Catarina; e durante momentos, mal supôs que coisas piores lhe pudessem dizer. Não dizia nada, e Leonor, tentando reagir e falar com firmeza, mas com os olhos ainda no chão, em breve prosseguiu:
- Muito boa para pensar o pior de mim, pela incumbência que sou obrigada a desempenhar. Sou, sem dúvida, uma mensageira pouco desejada. Depois do que ultimamente se passou, do que combinámos - que alegria tinha, que agradecida lhe estava por querer continuar aqui comigo algumas semanas mais, muitas mais -, como é que hei-de dizer-lhe que a sua amabilidade não pode ser aceite, que a alegria que a sua companhia nos tem dado vai ser paga por... Mas não devo animar-me com palavras. Minha querida Catarina, vamos separar-nos. O meu pai lembrou-se duma visita que tinha prometida e temos de ir todos na segunda-feira. Vamos para casa de lord Longtown, perto de Hereford, passar quinze dias. Impossível apresentar-lhe explicações e desculpas. Não sou capaz de umas nem de outras.
- Minha querida Leonor - exclamou Catarina, acalmando-a quanto podia -, não esteja tão triste. Um compromisso anterior tem de dar lugar a um posterior. Sinto muita, muita pena de nos separarmos tão cedo e tão depressa também; mas não estou ofendida, é verdade que não. Posso, bem sabe, acabar a minha estada em qualquer altura. Espero que um dia vá até minha casa. Quando voltar de casa desse lord, pode ir até Fullerton?
- Não está na minha mão, Catarina.
- Então vá quando puder.
Leonor não respondeu; e Catarina, dirigindo os seus pensamentos para outros assuntos que, para ela, tinham mais interesse, acrescentou em voz alta:
- Segunda-feira! Já segunda-feira! E vão todos! Pois bem, estou certa que ainda me poderei despedir. Não tenho necessidade de sair antes. Não se aflija, Leonor posso ir muito bem na segunda-feira. Como o meu pai e minha mãe não sabem nada, não tem grande importância. O general há-de mandar um criado comigo até meio do caminho, creio eu, e depois em breve chegarei a Salisbury. Daí a casa são só nove milhas.
- Ah, Catarina! Estivessem assim as coisas resolvidas, seria mais admissível, embora com essas atenções não recebesse nem metade das que merece, mas... Como lhe hei-de dizer? Está assente que amanhã de manhã partirá; nem pode escolher a hora da partida; a própria carruagem já está arranjada, e amanhã estará aqui às sete horas, sem lhe oferecerem um criado para a acompanhar.
Catarina sentou-se, sem poder respirar e incapaz de falar. Leonor continuou:
- Mal acreditei em mim mesma, quando ouvi isto. Nenhum desagrado, nenhum ressentimento que tenha neste momento, embora seja grande, pode ser maior do que aquele que sinto. Mas não devo falar do que eu sofro. Oh, pudesse eu dar-lhe a entender alguma coisa do que me aflige nesta prostração de espírito! Meu Deus! O que dirão os seus pais? Depois de a tirarmos da protecção de verdadeiros amigos, fazermos-lhe isto! Quase ao dobro do caminho de sua casa, e mandá-la embora, sem mesmo ter para consigo as considerações que uma educação comezinha exige. Querida, querida Catarina, ao trazer-lhe este recado, pareço eu a culpada de todo este insulto. Contudo, creio que me compreenderá, porque teve ocasião de ver que eu, nesta casa, sou apenas dona no nome e que a minha autoridade é nula.
- Ofendi o general? - perguntou Catarina, em voz trémula.
- Credo! A tudo o que posso responder como filha é que não lhe deu nenhuma causa justa de ofensa. Ele está muito, muitíssimo zangado; raras vezes o tenho visto assim. O seu temperamento é instável e às vezes acontece que se irrita extraordinariamente. Algum desapontamento, alguma afronta que parece agora ser de desusada importância; mas não vejo a relação que possa ter consigo. Pois como era isso possível?
A muito custo Catarina conseguiu falar e foi só por causa de Leonor que tentou dizer:
- Tenho muito desgosto, se ofendi o general; seria a última coisa que eu faria. Mas não se aflija, Leonor. Bem sabe, um compromisso tem de manter-se. Lamento que não se tivesse lembrado mais cedo, para me dar tempo de escrever para casa. Mas não tem grande importância.
- Desejo ardentemente que, para sua segurança, não tenha nenhuma importância; quanto ao mais, tem-na e muito grande; o conforto, a aparência, a decência, a sua família e toda a gente. Se ainda os seus amigos, os Allens, estivessem em Bath, podia ir ter com eles com relativa facilidade; em algumas horas estaria lá. Mas uma viagem de setenta milhas, em mala-posta, com a sua idade, sozinha, e sem auxílio!
- Oh, a viagem não é nada! Não pense nisso. E se temos de separar-nos, mais hora menos hora, nenhuma diferença faz. Posso estar pronta às sete. Mande chamar-me a horas.
Leonor viu que ela queria ficar só; compreendendo que seria melhor, para as duas, evitar falar mais no assunto, deixou-a, dizendo:
- Amanhã de manhã venho vê-la.
O coração agitado de Catarina precisava de desabafar. Na presença de Leonor, a amizade e o orgulho tinham-lhe refreado as lágrimas mas correram-lhe em torrente logo que desapareceu. Posta fora e de que maneira! Sem qualquer razão que justificasse, sem qualquer desculpa que atenuasse essa atitude, a precipitação, a rudeza, mesmo a insolência de tal procedimento! Henrique longe, sem ao menos lhe poder dizer adeus! Todas as esperanças, todas as expetativas suspensas, e quem poderia dizer por quanto tempo? Quem poderia dizer quando se voltariam a ver? E tudo isto feito por uma pessoa como o general, tão delicado, tão bem-educado e tão amigo dela! Era-lhe tão incompreensível como doloroso. De que proviria aquilo e onde iria acabar; eram pensamentos de igual dúvida e alarme. A maneira tão indelicada como a mandara embora, sem ter consideração por qualquer conveniência, ou sem mesmo permitir escolher a hora e a forma de realizar a viagem! Dos dois dias foi fixado o primeiro, e a que horas da manhã! Era como se quisessem que ela saísse antes de ele se levantar, para que não fosse obrigado a vê-la! O que isto significava, senão uma afronta intencional? Por uma forma ou por outra tinha-o ofendido. Leonor quisera poupá-la a essa mortificação, mas Catarina não achava possível que qualquer ofensa ou má vontade pudesse provocar um tal procedimento contra uma pessoa que não era da família ou, pelo menos, que não se julgava pertencer à família.
Passou a noite aflitivamente. Nem sono nem repouso conseguiu conciliar. Aquele quarto, em que a imaginação sensível a tinha atormentado à chegada, era outra vez o cenário de fortes sensações e sonhos perturbados. Contudo, que diferente era agora a causa da sua inquietação comparada à que tinha sido; quão tristemente superior em realidade e objetividade! A sua preocupação e os seus receios tinham agora um fundamento real. Com o espírito ocupado na apreciação do verdadeiro mal presente a solidão em que se via, a escuridão do quarto, a antiguidade do edifício, eram sentidas e consideradas sem a mais leve emoção. Ainda que o vento sibilasse e muitas vezes produzisse estranhos e repentinos ruídos pela casa, ouvia-os acordada, hora após hora, sem curiosidade ou terror. Logo depois das seis, Leonor foi ao quarto dela oferecer-lhe o seu auxílio; mas já pouco faltava arrumar. Catarina não se tinha demorado. Já estava quase vestida e com as malas quase feitas. Mal viu entrar Leonor, lembrou-se de que talvez o general lhe mandasse algum recado conciliador. Não era natural que a cólera lhe passasse e se tivesse arrependido do que fizera? Catarina só desejava saber como havia de receber a desculpa da sua atitude, depois do que se passara. Mas tal seria inútil, pois não se tratava de clemência ou dignidade. Leonor não trazia nenhum recado.
Pouco ou nada disseram. Encontravam segurança no silêncio, e as poucas palavras que trocaram enquanto estiveram no quarto foram poucas e banais. Catarina, muito atarefada, acabou de vestir-se e Leonor, com mais boa vontade do que prática, acabou de lhe arranjar a bagagem. Quando tudo estava pronto saíram do quarto; Catarina envolveu num olhar de despedida os objetos que lhe eram tão conhecidos e queridos. Encaminharam-se para a sala de jantar, onde o almoço as esperava.
Catarina tentou comer para se livrar do desgosto de insistirem com ela, mas por falta de apetite não conseguiu engolir grande coisa. O contraste entre este almoço e o anterior enchia-a de tristeza e aumentava a repulsa que tinha por tudo o que se lhe deparava. Ainda não havia vinte e quatro horas tinham estado ali, mas em que circunstâncias tão diferentes! Com que alegria e felicidade olhara tudo, que satisfação sentira, então, mesmo sabendo que Henrique tinha de ir passar um dia a Woodston! Que almoço delicioso! Henrique, a seu lado e ajudando-a a servir-se! Estas meditações não duraram muito tempo nem foram interrompidas por qualquer pergunta da amiga, que estava também mergulhada em profundos pensamentos. A chegada da carruagem foi o que primeiro as sobressaltou e chamou à realidade. Catarina corou ao vê-la e neste momento sentiu-se ofendida pela maneira pouco digna como era tratada. Leonor parecia agora resolvida a falar:
- Quero que me escreva logo que possa, Catarina. Não terei um minuto de descanso até saber que chegou bem. Por tudo lhe peço que me escreva, pelo menos uma carta. Mande-me dizer se chegou bem a Fullerton e se encontrou todos de saúde. Depois não escreva até eu mandar dizer-lhe. A direcção é Longtown, e escreva em nome de Alice.
- Não, Leonor. Se não a autorizam a receber cartas minhas, é melhor não escrever. Não duvide de que chegarei bem a casa.
Leonor respondeu apenas:
- Não me admiro de que pense assim. Não insisto mais. Espero que o seu coração bondoso ao menos se lembre de mim, mesmo quando estiver longe.
Estas palavras e a maneira como as disse bastaram para vencer o orgulho de Catarina, que logo acrescentou:
- Tenha a certeza de que lhe escreverei, Leonor.
Havia ainda outra questão que Leonor Tilney queria resolver, mas sentia-se embaraçada. Talvez que Catarina, tanto tempo ausente de casa, não tivesse dinheiro que chegasse para as despesas da viagem; e depois de muito afetuosamente lho oferecer viu que se não tinha enganado. Até àquela altura Catarina não pensara nisso mas, ao olhar para a carteira, viu que, se não fosse a bondade da amiga, seria posta fora de casa sem dinheiro sequer para a viagem. As aflições por que passaria se não tivesse dinheiro encheram o espírito de ambas, que quase não puderam falar enquanto estiveram juntas. Mas curto foi esse tempo. Logo lhes vieram dizer que a carruagem estava pronta. Catarina levantou-se imediatamente, e um abraço longo e amigo substituiu todas as palavras de despedida. Quando chegaram à sala de entrada, incapaz de deixar a casa sem falar de Henrique, parou um instante e com os lábios trémulos, que mal a permitiram fazer-se compreender, disse que deixava muitos cumprimentos para o seu amigo ausente. Porém, o fato de ter pronunciado aquele nome impossibilitou todas as tentativas de dissimulação dos seus sentimentos, e, tapando o rosto com o lenço o mais que pôde, dirigiu-se, a correr, para a carruagem, que partiu em seguida.
Catarina sentia-se muito infeliz para pensar em medo. A viagem não a assustava. Começou-a sem recear o comprimento e a solidão. Encostada a um canto da carruagem, em grande choro, só depois de percorrer algumas milhas levantou a cabeça.
Mal pôde distinguir o ponto mais alto do parque quando para lá deitou os olhos. Por infelicidade, aquela estrada era a mesma por onde passara apenas há dez dias quando fora e viera de Woodston; e à medida que ia reconhecendo os objetos que vira, então, com uma disposição tão diferente, mais se entristecia. Cada milha que a aproximava de Woodston aumentava a sua tristeza. E quando chegou a cinco milhas de distância, deixou a estrada que aí conduzia e começou a pensar que Henrique, ali tão perto, não sabia de nada; então a sua dor e agitação tornaram-se mais profundas.
O dia que passara em Woodston fora o mais feliz da sua vida. E nessa tarde o general falara de tal maneira dela e de Henrique que a tinha levado a supor que desejava o seu casamento com o filho. Sim, havia apenas dez dias que a distinguia com a sua estima e confundia mesmo com as suas alusões intencionais! E agora. que fizera ela ou o que deixara de fazer para merecer aquela atitude? Não sabia de qualquer ofensa de que pudesse acusar-se. Só o seu coração e Henrique eram sabedores das esperanças que ela tão loucamente alimentara. Julgava-os, tanto um como o outro, capazes de guardar segredo. Era impossível que Henrique a atraiçoasse. Se, por qualquer estranho meio, o general tivesse pensado ou tido conhecimento das suas fantasias loucas ou das suas apreciações injustas, não se admiraria da sua indignação. Se ele soubesse que ela o tinha considerado um assassino, não se admiraria de que ele a pusesse fora de casa. Mas esta justificação, tão tormentosa para a sua alma, estava segura de que ele não a sabia. Não foi, contudo, neste ponto que mais pensou. Havia outro que mais dolorosamente a mortificava. Que pensaria Henrique? Como ficaria, quando voltasse a Northanger e lhe dissessem que ela tinha partido? Era uma pergunta que se impunha e dominava todas as outras, que não cessava, irritando-a uma vezes, acalmando-a outras. Se pensava na calma resignação de Henrique era por pouco tempo logo sentia o prazer de o saber triste. Ao general não se atreveria a dizer nada, mas, a Leonor, o que não lhe diria a seu respeito?
Nesta constante atividade de dúvidas e perguntas acerca de um assunto de que não conseguia desviar o pensamento, as horas passaram-se, e o fim da viagem aproximou-se mais rapidamente do que esperara. Todas as preocupações que a impediam de ver o que se passava à sua volta, depois de passar nas proximidades de Woodston, impediram-na, ao mesmo tempo, de reparar no caminho que já tinha percorrido e de nada ver que lhe prendesse ou desviasse a atenção. Não ansiava, portanto, pelo fim da viagem. Voltar assim a Fullerton destruía-lhe quase por completo a alegria de rever os seus depois duma ausência de onze semanas. O que havia de dizer que não humilhasse e ofendesse a família, que não aumentasse a sua dor, que não fosse provocar um ressentimento despropositado, e talvez misturar inocentes com culpados, levada por cega má vontade? Nunca poderia fazer justiça às qualidades de Henrique e de Leonor; despedaçar-se-lhe-ia o coração se a família pensasse mal deles por causa do pai.
Com estas apreensões, em vez de desejar, temia avistar aquela torre que tão bem conhecia, que seria o sinal de estar apenas a vinte milhas de casa.
Até agora, só sabia que a primeira terra por onde passara, depois de sair de Northanger, era Salisbury. Mas, depois da primeira paragem, perguntou aos cocheiros os nomes das terras por onde devia passar, tão grande era a sua ignorância do caminho a seguir.
Não encontrou, porém, nada que a atrapalhasse ou lhe fizesse medo. A sua mocidade, as suas maneiras educadas e as boas gorjetas granjearam-lhe todas as atenções que um passageiro como ela podia desejar. Parou só mais uma vez para mudar de cavalos, e continuou a viagem durante quase onze horas, sem qualquer acidente ou alarme, chegando a Fullerton entre as seis e as sete da tarde.
Uma heroína que volta para a terra natal no fim da sua carreira, com todo o orgulho duma reputação estabelecida, com dignidades de condessa, com um grande séquito de parentes nobres nas suas muitas carruagens, e três criadas para o serviço particular, numa caleche atrás é um acontecimento em que a pena duma fantasista pode deter-se com todo o prazer, que dá valor a qualquer romance, e em que a autora compartilha da glória que tão liberalmente espalha. Mas a minha tarefa é completamente diversa. Eu trago a minha heroína para casa na solidão e na desgraça e nenhuma altivez aprazível de boa disposição me chama a deter em minudências. Uma heroína a viajar em mala-posta é um tal golpe no sentimento, que nenhuma tentativa de magnificência ou de patético podem resistir-lhe. Por isso, o seu cocheiro atravessará ràpidamente a aldeia perante os basbaques dos grupos domingueiros e apressada será a sua descida.
Mas qualquer que pudesse ser o abatimento moral de Catarina, ao aproximar-se de casa, e qualquer que seja a humilhação do seu biógrafo ao relatá-lo, ela irá acordar alegrias desabituais àqueles para quem se dirige: primeiro, pelo aparecimento da carruagem, e depois pelo seu próprio aparecimento.
Como raras vezes se via uma carruagem em Fullerton, toda a família correu à janela. Mas tê-la parada à porta era um prazer que fazia brilhar todos os olhos e ocupar todas as imaginações. Um prazer partilhado por todos, excepto pelos dois irmãos mais novos, um rapazinho de seis anos e uma pequenita de quatro, que esperavam por sua irmã ou irmão em todas as carruagens. Feliz o olhar que primeiro distinguiu Catarina! Feliz a voz que primeiro gritou a descoberta! Mas se tal felicidade era a verdadeira expressão dos sentimentos de Jorge e de Harriet, isso nunca se pôde exatamente descobrir.
O pai, a mãe, Sara, Jorge e Harriet todas à porta, para a abraçarem com sofreguidão afetuosa, foi um quadro que despertou os mais ternos sentimentos no coração de Catarina. Abraçando todos, ao sair da carruagem, sentiu-se mais tranqüila do que esperava. Ser assim rodeada, ser recebida com tanto carinho era mesmo quase uma felicidade. Na alegria do amor familiar, todas as coisas, por algum tempo, se apagam. O prazer de a verem deixava-lhes pouco tempo para satisfazerem a sua curiosidade. Todos se sentaram à mesa, que a senhora Morland tinha posto para a pobre viajante, que trazia um semblante pálido e abatido. Logo, foi assim surpreendida antes que perguntas diretas, as quais exigiriam respostas positivas, lhe fossem dirigidas.
Com relutância e muita hesitação, falou durante meia hora de uma forma a que talvez a cortesia dos seus ouvintes chame explicação. Mas mesmo neste espaço de tempo, mal conseguiram os outros descobrir o motivo ou compreender os pormenores do seu regresso repentino. Não eram pessoas que se irritassem de ânimo leve ou que julgassem com azedume as afrontas com que os melindravam. Mas, neste caso, quando tudo foi conhecido, consideraram-no como um insulto que se não devia pôr de parte, nem ser facilmente perdoado. Sem sofrerem nenhum susto romântico por pensarem na longa e solitária viagem da filha, os pais sabiam que devia ter sido muito desagradável para ela, e isso é que eles nunca quereriam que lhe tivesse acontecido. Procedendo de tal forma, o general Tilney não fora nem correto, nem amável, nem cavalheiro, nem pai. Porque o fizera? O que poderia tê-lo levado a tal corte de hospitalidade e, tão repentinamente, ter transformado a sua amizade pela filha em má vontade? Interrogações a que tanto eles como Catarina estavam longe de poder responder. Todavia, foi coisa que por pouco tempo os apoquentou. Depois de natural discussão, e de várias suposições, concluíram com indignação e espanto que se tratava de um caso estranho, e que o general devia ser um homem muito esquisito. Apenas Sara ainda teimou, nos deleites da incompreensão, exclamando e conjeturando com ardor juvenil.
- Oh, pequena, estás a preocupar-te demasiado com uma coisa que não tem importância! - disse a mãe por fim. – Estás a teimar, quando é uma coisa que nem vale a pena perceber-se.
- Posso admitir que mandasse embora Catarina, ao lembrar-se do compromisso - retorquiu Sara -, mas porque o não fez de maneira delicada?
- Tenho pena dos filhos - volveu a senhora Morland – devem ter passado maus bocados: mas, quanto ao resto, não falemos mais no assunto. Catarina chegou bem, e o nosso bem-estar não depende do general Tilney.
Catarina suspirou.
- Estou satisfeita - continuou a mãe, filosoficamente por não ter sabido, a horas, da tua viagem. Mas agora tudo está passado e sem más conseqüências. É sempre bom pôr-se à prova gente nova. Tu, minha querida Catarina, foste sempre uma criatura de pouco expediente; viste-te obrigada a chamar todas as tuas forças com tantas mudanças de carruagem e outras coisas mais. Espero que não tenhas lá deixado ficar nada.
Catarina igualmente o esperava. Tentou interessar-se pela sua própria transformação, mas estava mal disposta e em breve o seu único desejo foi calar-se; concordando logo a seguir com o conselho da mãe de ir cedo para a cama. Os pais, nada notando de especial no seu mau aspeto e excitação, que atribuíam ao natural cansaço da viagem, despediram-se dela convencidos de que logo adormeceria. Porém, embora no dia seguinte, quando todos se encontraram, o seu restabelecimento não fosse correspondente às esperanças dos pais, estes estavam absolutamente convencidos de que não havia um mal mais profundo. Nunca pensaram no seu coração, o que, para os pais de uma menina de dezessete anos, acabada de chegar da sua primeira viagem, seria uma suposição muito ridícula.
Logo que acabou de almoçar, Catarina foi escrever a Leonor Tilney, cumprindo a promessa que lhe tinha feito – embora esperasse que o tempo e a separação modificassem a disposição da amiga. Agora reconhecia essa verdade, e já se arrependia de tão friamente se ter despedido de Leonor, de nunca ter avaliado justamente os seus méritos e de não ter compartilhado da tristeza que, no dia anterior, ela fora obrigada a suportar. Estava contudo longe de poder transmitir ao papel a veemência destes sentimentos. Nunca lhe fora tão custoso escrever como agora, que se dirigia a Leonor Tilney. Escrever uma carta que, ao mesmo tempo, fizesse justiça aos seus sentimentos e situação, exprimisse gratidão sem mostrar tristeza servil, fosse sentida sem revelar frieza, e digna sem exprimir ressentimento - uma carta que não magoasse Leonor e acima de tudo de que não houvesse de ter vergonha, se por acaso Henrique a visse - era uma empresa que impedia todos os poderes de realização. Depois de muito meditar e de sentir-se perplexa, resolveu, como medida de segurança, ser breve. O dinheiro que Leonor lhe tinha adiantado juntou-se às poucas palavras de agradecimento e aos desejos de milhares de felicidades do seu coração muito amigo.
- Uma amizade muito estranha - observou a senhora Morland, quando Catarina acabou a carta -, depressa feita e depressa desfeita. Foi pena que assim acontecesse porque a senhora Allen tinha-os na conta de boas pessoas. Tu também tiveste pouca sorte com a tua amiga Isabel. Pobre do Jaime! É isto, aprender até morrer. Oxalá que novos conhecimentos que arranjes sejam mais dignos de se conservarem.
Catarina enrubesceu ao dizer, excitada:
- Nenhuma amiga será tão digna de se conservar como Leonor.
- Se assim é, minha querida, então é possível que ainda se venham a encontrar qualquer dia. Mas não te aflijas. Quanto menos o esperares, voltar-se-ão a ver. Talvez dentro de alguns anos. Então será uma alegria!
A senhora Morland não foi feliz na sua tentativa de consolação. A esperança de voltar a ver Leonor dentro de alguns anos só veio lembrar a Catarina o que se passaria nesse intervalo de tempo o que certamente devia tornar esse encontro mais penoso ainda. Nunca poderia esquecer Henrique, ou pensar nele com menos amor do que o fazia naquele momento. Porém, ele podia esquecê-la. E, se assim fosse, tornar a encontrá-lo... Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, ao imaginar o reatamento daquelas relações, em tais circunstâncias.
A mãe, vendo que as suas tentativas de conforto não tinham produzido bom efeito, propôs, como outro expediente para a animar, irem visitar a senhora Allen.
As duas casas ficavam a um quarto de milha de distância. À medida que caminhavam, a senhora Morland desabafou tudo o que sentia sobre a desilusão de Jaime:
- Nós ficámos com pena dele - disse -, mas também nada se perdeu em terem acabado, porque podia ser que não fosse muito para desejar vê-lo noivo de uma menina de quem nada sabemos e tão pobre. E depois desta sua atitude não se pode fazer muito bom juízo dela. Sei que custa, agora, muito ao Jaime, mas são coisas que não duram toda a vida. Com o insucesso desta primeira escolha até me parece que há-de ser um rapaz muito acautelado para o futuro.
Catarina ouviu com paciência, porque a mãe falou pouco. Se tivesse dito mais alguma coisa, podia perder o sentido da conversa e arriscar-se-ia talvez a ouvir uma resposta despropositada, porque todos os pensamentos de Catarina se concentravam na grande mudança que se operara desde a última vez que passara por aquela estrada. Não havia ainda três meses que, cheia de esperanças, a percorria, dez vezes ao dia, sempre para lá e para cá, alegre, despreocupada e livre, antevendo prazeres desconhecidos e completos, não pensando nem conhecendo o mal. Há três meses tinha previsto tudo isto, e que diferença verificava agora!
Os Allens receberam-na com toda a cortesia que a amizade verdadeira dispensa, quando a visita é inesperada; grande foi a sua surpresa e profundo o seu desgosto ao saberem como Catarina tinha sido tratada, embora a narração da senhora Morland não contivesse qualquer disfarce exagerado ou súplica estudada à sua compaixão.
- Catarina veio ontem à tarde de surpresa - disse. – Fez toda a viagem sozinha. E só no sábado à noite lhe disseram que tinha de partir, porque o general, por uma esquisitice qualquer, aborreceu-se dela, e quase a pôs fora de casa. Foi uma acção muito pouco simpática, sem dúvida; deve ser uma pessoa muito estranha! Mas, não importa, e estamos muito satisfeitos por a termos outra vez connosco. Foi uma grande consolação para nós o saber que ela se arranjou tão bem sozinha.
O senhor Allen mostrou-se também melindrado, como amigo que era; a senhora Allen, achando as suas expressões boas, repetiu-as. A admiração dele, as suas conjeturas e as suas explicações passaram para a boca dela, acrescentando, apenas, esta simples observação: "não tolero o procedimento do general", para preencher qualquer pausa acidental. E por duas vezes repetiu "não tolero o procedimento do general" depois do senhor Allen se ir embora, sem afrouxar a sua cólera ou tentar mudar de assunto. Com mais distracção, repetiu a frase pela terceira vez e, logo depois de a dizer uma quarta vez, acrescentou:
- Imagina, minha querida, que antes de sair de Bath consegui arranjar quem me consertasse tão bem o rasgão da minha renda de Flandres, que nem sequer se conhece agora o sítio. Hei-de mostrar-ta qualquer dia. Apesar de tudo, Bath é uma terra esplêndida, não é, Catarina? Muito me custou vir embora. Foi uma grande consolação para nós estar lá a senhora Thorpe, não foi? Lembras-te como nos sentíamos a princípio tão sós?
- É verdade, mas não foi por muito tempo - disse Catarina, brilhando-lhe os olhos, ao lembrar-se do que primeiro animara a sua estada em Bath.
- Tens razão. Logo encontrámos a senhora Thorpe. Minha querida, não achas que estas luvas de seda são bonitas? Estreei-as quando fomos aos Upper Rooms, e desde então tenho-as usado muitas vezes. Lembras-te daquela noite?
- Oh, se lembro! Perfeitamente!
- Foi uma rica noite, não foi? O senhor Tilney tomou o chá connosco; é uma boa companhia, muito simpático. Dançaste com ele, não? Não tenho bem a certeza; do que me lembro é que levava o meu vestido predileto...
Catarina não pôde responder. Então a senhora Allen, depois de falar noutros assuntos, voltou a dizer:
- Não posso tolerar o procedimento do general. Parecia um homem tão agradável e tão digno! Não creio, senhora Morland, que na sua vida tenha visto um homem tão bem-educado como ele. A casa dele alugou-se mal a deixou, Catarina. Mas não admira, era em Milsom Street.
No regresso a casa, a senhora Morland esforçou-se por fazer ver à filha a felicidade que havia em ter dois amigos como o senhor Allen e a esposa, e que, portanto, não se devia importar com o desprezo ou maldade que os Tilneys lhe mostrassem, visto serem apenas conhecimentos passageiros. Havia em tudo isto muito bom-senso; mas há situações na vida em que mesmo o bom-senso pouco resultado concede. A disposição de Catarina mostrava que todas as tentativas da mãe eram nulas. Do estado desses conhecimentos ocasionais dependia a felicidade de Catarina. E enquanto a senhora Morland se entregava a reflexões que lhe pareciam muito justas, Catarina pensava que Henrique devia ter chegado agora a Northanger; que lhe deviam ter falado na sua partida; e talvez agora estivessem a partir para Herefold.
O temperamento de Catarina nunca fora calmo nem aplicado, mas a mãe agora notava que estes defeitos se tinham agravado. Não era capaz de estar um bocadinho sentada no mesmo lugar, nem de se concentrar dez minutos a fazer qualquer coisa. Só andava do jardim para o pomar, e do pomar para o jardim, como se apenas o desejo de movimento a impelisse; parecia mesmo preferir andar de um lado para o outro, a estar algum tempo sossegada na sala. A alteração era ainda maior na sua habitual boa disposição; andava triste. O constante vaivém e a preguiça eram apenas o seu retrato; mas o silêncio e a tristeza eram o reverso de si mesma. Nos primeiros dois dias a mãe falou nisso, mas, no terceiro, vendo que a sua alegria não voltava nem lhe via mais vontade de trabalhar, não pôde deixar de lhe fazer esta simples observação:
- Minha querida Catarina, parece-me que te estás a pôr muito fidalga. Não sei quando seriam arranjadas as gravatas do Ricardo se não tivesse mais quem o fizesse. Pensas demais em Bath. Há horas para tudo: para bailes e teatros e também para trabalhar. Tiveste muito tempo para te divertires, e agora deves fazer por trabalhar.
Catarina pegou imediatamente no trabalho, dizendo, numa voz muito triste, "que não pensava muito em Bath."
- Então continuas a ralar-te por causa do general Tilney, e isso é parvoíce tua. Não te deves afligir por causa de ninharias.
Depois duma pequena pausa, continuou:
- Espero, Catarina, que não estejas aborrecida por esta casa não ser tão boa como a Abadia. Se assim fosse a visita teria sido um mal. Deves sentir-te bem em toda a parte, mas muito principalmente em tua casa, pois nela tens de passar a maior parte do tempo. Não gostei nada de te ouvir falar tanto, ao almoço, no pão francês que comias em Northanger.
- Não me importo nada com o pão; tanto se me dá comer isto como aquilo.
- Há lá em cima, num livro, um estudo muito bem feito sobre as meninas que se estragam e não se sentem bem em suas casas, porque tiveram convivência mais elevada. Parece-me que é "o Espelho". Hei-de procurá-lo, pois tenho a certeza de que te fará bem.
Catarina não respondeu e, esforçando-se por ajudá-la, começou a trabalhar. Mas, passados alguns minutos, inconscientemente, caiu de novo no langor e na negligência, mexendo-se mais na cadeira do que mexia a agulha. A senhora Morland viu tudo, e, percebendo no olhar abstrato e aborrecido da filha a confirmação daquele estado a que tinha atribuído a sua falta de alegria, em breve deixou a sala para lhe ir buscar o dito livro, ansiosa por atalhar imediatamente tão terrível doença.
Demorou algum tempo a encontrá-lo. E, como outros assuntos a detivessem, passou bem um quarto de hora antes de poder voltar com o livro em que tantas esperanças depositava. As suas ocupações lá em cima não lhe deixavam ouvir barulho algum, a não ser o que ela fazia, e portanto não sabia que tinha chegado uma visita. Ao entrar na sala, a primeira coisa que viu foi um rapaz que não conhecia e que respeitosamente se levantou. A filha, já bem disposta, apresentou-o como sendo o senhor Henrique Tilney. Com uma atrapalhação verdadeiramente sentida, o rapaz começou a desculpar-se dizendo que, depois do que se passara, não tinha o direito de esperar um bom acolhimento em Fullerton, mas que o fim da sua visita era saber se a menina Catarina tinha chegado bem. Henrique não se dirigia a um juiz severo, nem a um coração ressentido. A senhora Morland, longe de os abranger, a ele como à irmã, no ressentimento que o proceder do pai lhe provocava, tinha a maior consideração por eles. Portanto, imediatamente ficou satisfeita por vê-lo, e recebeu-o com as mais sinceras demonstrações de simpatia profunda, agradecendo-lhe a sua atenção para com a filha, afirmando-lhe que os amigos de seus filhos eram sempre bem recebidos naquela casa com muito gosto, e pedindo-lhe que não falasse mais no passado.
Henrique não desgostou de obedecer a tal pedido, pois, embora se sentisse aliviado com esta inesperada boa recepção, não se sentia agora com coragem de falar no assunto. Por isso voltando silencioso para o seu lugar, ficou ainda alguns minutos a responder delicadamente a todas as observações banais da senhora Morland a respeito do tempo e das estradas. Catarina, entretanto - a ansiosa, a agitada, a feliz e febril Catarina -, não disse uma palavra, mas as suas faces rubras e os seus olhos vivos fizeram acreditar à mãe que esta visita gentil acalmaria o seu coração por algum tempo. Alegremente, pôs de lado "O Espelho" para outra ocasião. Ansiosa pelo auxílio do senhor Morland para animar a conversa e procurar assunto para entreter o hóspede (Catarina lamentava sinceramente o embaraço do pai), a senhora Morland mandara logo um dos filhos chamá-lo, mas ele não estava em casa. Esteve assim sem qualquer auxílio, até que, ao fim de um quarto de hora, esgotara tudo o que tinha a dizer.
Depois de alguns minutos de profundo silêncio, Henrique, voltando-se para Catarina pela primeira vez desde que a mãe tinha entrado, perguntou-lhe, com súbita alegria, se os senhores Allens já estavam em Fullerton; e, compreendendo o significado das muitas e atrapalhadas respostas de Catarina para o que uma pequena palavra bastaria, imediatamente declarou a intenção de lhes apresentar cumprimentos, ao mesmo tempo em que uma onda de rubor lhe subiu à cara, quando lhe perguntou se queria ter a fineza de lhe indicar o caminho.
- O senhor pode vê-lo desta janela - informou Sara.
Esta intromissão produziu uma inclinação de cabeça por parte do cavalheiro e um sinal por parte da senhora Morland, para que se calasse. Pensando ser provável (o ir visitar os respeitáveis vizinhos seria motivo secundário das suas intenções) que Henrique pudesse ter alguma explicação a dar à filha acerca do procedimento do pai, mais fácil de dizer só a ela. Não impediu por isso que Catarina o acompanhasse.
A senhora Morland não se enganou por completo na intenção do seu desejo. Henrique tinha, na verdade, que dar-lhe algumas explicações acerca do procedimento do pai; o seu primeiro propósito era explicar-se a si próprio, e antes de chegarem a casa do senhor Allen já o fizera tão bem que Catarina achou não ser necessário repeti-lo mais vezes. Estava certa do seu amor; e por sua vez o coração, que talvez soubessem só a ele pertencer, foi-lhe pedido, pois Henrique, que sabia agora que realmente a amava, avaliava com um prazer íntimo a excelência do seu caráter e gostava muito de estar na sua companhia. Devo confessar que o afeto de Henrique originado apenas na gratidão, ou, por outras palavras, a persuasão de que ela simpatizava com ele foi a única causa que o levou a prestar-lhe uma atenção séria. Este um motivo novo no romance, bem reconheço, e grandemente depreciativo para a dignidade de uma heroína; mas, se é novo na vida real, a honra de ter uma imaginação extravagante será pelo menos minha.
Depois de uma curta visita à senhora Allen em que Henrique falou à toa, sem sentido ou coerência, e Catarina, absorta na contemplação da sua inexprimível felicidade, mal abriu os lábios, ficaram outra vez no êxtase de outro tête-à-tête; e, antes que fossem obrigados a terminá-lo, Catarina pôde avaliar no seu presente pedido a que ponto ele tivera a sanção do pai. Ao regressar de Woodston, dois dias antes, encontrara-se perto da Abadia com o pai, que zangado, rapidamente o informara da partida de Catarina e de que não devia pensar mais nela.
Tal era o consentimento à sombra do qual ele agora lhe oferecia a sua mão. Catarina, assustada perante os terrores da expetativa, regozijava-se, enquanto ouvia, com a bondosa precaução com que Henrique, antes de falar no assunto, a salvara de pensar na necessidade de um repúdio consciencioso, chamando-lhe primeiro a atenção para a confiança. Ao continuar a explicação dos pormenores e dos motivos de procedimento do pai, a sua disposição breve se transformou quase em alegria triunfante. O general nada tinha que levasse a acusá-la ou a defendê-la. Ela apenas fora objeto involuntário e inconsciente duma decepção que o seu orgulho não podia perdoar, mas que um orgulho mais nobre tivera vergonha de possuir. Era culpada de ser menos rica do que ele a supusera. Por ter feito um cálculo errado sobre o valor dos seus bens, tinha-se relacionado com ela em Bath, desejara a sua companhia em Northanger, e designara-a sua nora. E, ao descobrir o erro em que caíra, pô-la fora de casa parecia-lhe o mais prudente, embora fosse uma prova despropositada do seu íntimo ressentimento para com ela e do seu desprezo para com a família.
João Thorpe fora o primeiro a iludi-lo. Uma noite, no teatro, vendo o general que o filho prestava atenções particulares a Catarina Morland, perguntara casualmente a Thorpe se sabia alguma coisa dela. Thorpe, felicíssimo por falar com um homem da importância do general Tilney, fora alegre e orgulhosamente comunicativo; nessa altura, esperava não só que Morland pedisse Isabel em casamento, como também estava resolvido a casar com Catarina. A vaidade levou-o a apresentar a família Morland muito mais rica do que a vaidade e a avareza o levavam a acreditar. Com quem quer que estivesse, essa importância obrigava-o sempre a afirmar que eram pessoas de fortuna. E à medida que aumentava a sua intimidade com qualquer pessoa conhecida, gradualmente crescia também a fortuna dessa pessoa. Por isso as suposições sobre os bens avultados do seu amigo Morland, desde que o apresentara a Isabel, tinham aumentado progressivamente. E agora, duplicando louvores pela importância do momento, e tornando a duplicar o valor em que computava os bens do senhor Morland, e triplicando a sua fortuna pessoal, foi capaz de apresentar ao general a família nos termos mais lisonjeiros. Pelo que dizia respeito a Catarina, objeto particular da curiosidade do general e das suas próprias especulações, tinha ainda mais alguma coisa de reserva, as dez ou quinze mil libras que o pai lhe daria seriam uma boa adição à fortuna do senhor Allen. A sua intimidade com ele tinha-o convencido de que ela seria sua herdeira. E daqui a dizer que era a mais rica herdeira de Fullerton foi um passo.
Com estes dados, o general convenceu-se, porque nunca lhe ocorreu duvidar desta autoridade. O interesse de Thorpe pela família, pela próxima ligação da irmã com um dos seus membros e as suas próprias intenções quanto a Catarina – circunstância de que se gabava com quase igual certeza - pareciam-lhe suficientes garantias desta verdade. Mas, a juntar ainda a isto, eram provas absolutas os Allens serem ricos, não terem filhos, Catarina Morland estar em sua casa e - tanto quanto as suas relações o permitiam julgar - tratarem-na como filha. A sua resolução em breve tomou vulto. Já tinha descoberto no semblante do filho uma preferência por Catarina Morland e, agradecido pela comunicação do senhor Thorpe, imediatamente resolveu invalidar todos os esforços para lhe enfraquecer o interesse gabarola e arruinar as esperanças mais queridas. Catarina, nessa altura, estava tão ignorante de tudo isto como os próprios filhos. Henrique e Leonor, nada notando de particular na sua atitude capaz de produzir no pai uma tal agitação, tinham visto, com espanto, a brevidade, a continuação e desenvolvimento das suas amabilidades. Mais tarde, algumas alusões ao filho, alusões que eram quase ordens, intimidando-o a fazer todos os esforços para prendê-la. Henrique ficou convencido de que o pai julgava Catarina um bom partido. Só depois da última conversa em Northanger, tinham feito idéia dos cálculos falsos que o haviam levado a precipitar-se. Que eram falsos, soubera-o o general pela mesma pessoa que lhos sugerira - pelo próprio Thorpe - que por acaso encontrara na cidade. Sob influencia de ideias completamente opostas, irritado pela recusa de Catarina e ainda mais pelo fracasso da recente tentativa de reconciliar Jaime com Isabel, convencido de que estavam separados para sempre, desdenhando uma amizade de que já lhe não podia vir nenhuma conveniência, apressou-se a contradizer o que antes afirmara a favor dos Morlands: confessou que se havia completamente enganado acerca das suas circunstâncias financeiras e do seu caráter, levado pela fanfarronice do amigo e acreditando que o pai era um homem de bem e de créditos. Mas, agora, graças aos acontecimentos das duas ou três últimas semanas, ficara provado que nem era uma coisa nem outra, porque, depois de ficar assente um próximo casamento entre as duas famílias, depois de ter prometido grandes coisas, ao chegar o momento, fora constrangido a confessar-se impossibilitado de lhes dar um dote decente, fato que só se devia à esperteza do relator. A família Morland era, de fato, pobre. Tinha tantos filhos que - nem havia outro exemplo assim - não era respeitada pela vizinhança, como tivera ocasião de recentemente observar, aspirava a um modo de viver que a fortuna não lho permitia, procurava melhorar as suas condições por meio de casamentos ricos, enfim, não passava de gente atrevida, fanfarrona e intrigante.
O general, aterrado, pronunciou o nome dos Allens com um olhar inquiridor, e aqui também Thorpe não reconhecera o seu erro. Os Allens, pensava, viviam já há muito tempo junto deles. Conhecia o rapaz a quem a fortuna de Fullerton devia pertencer. O general não precisou mais nada. Furioso consigo próprio mais do que com toda a gente do mundo, partiu no dia seguinte para a Abadia, onde se viram as suas obras.
Deixo à perspicácia do leitor adivinhar o que Henrique, naquela altura, poderia ter comunicado a Catarina de tudo o que conseguiu saber do pai, em que pontos as suas conjeturas o ajudaram; e o que fica ainda por dizer, foi dito numa carta de Jaime. Eu juntei tudo, para a sua felicidade, o que eles devem separar para proporcionarem a minha. Catarina ouviu o suficiente para sentir que não tinha pecado muito na apreciação que fizera do caráter do general nem exagerado a sua crueldade, ao suspeitar que assassinara ou encarcerara a esposa.
Henrique, ao contar estas coisas do pai, estava quase tão pesaroso como quando as ouviu. Estava mesmo envergonhado de ser obrigado a expor cálculos tão mesquinhos. A conversa que haviam tido em Northanger não fora nada amigável. A indignação de Henrique, ao saber como Catarina fora tratada, ao compreender os planos do pai e a intimação de se lhes curvar, fizeram-no tomar uma atitude decisiva. O general acostumara-se a ditar leis na família sem nunca esperar oposição antes sempre obediência. Nunca esperava qualquer afirmação contrária que tivesse a ousadia de exprimir por palavras. Quis subjugar pela força a atitude do filho, e abafar com segurança a sanção razoável e os ditames da consciência do rapaz. Mas, em tais circunstâncias, a sua ira, embora magoasse, não intimidou Henrique, que se mantinha no seu propósito, por convicção de justiça. Sentia-se ligado a Catarina Morland tanto pela afeição que lhe dedicava como pela própria honra, crendo que lhe pertencia o coração que lhe tinham mandado conquistar. Nenhuma retirada indigna por consentimento tácito, nenhum decreto contraditório de exaltação injustificável podia abalar a sua fidelidade ou influenciar as resoluções que exigiam de si. Terminantemente se recusou a acompanhar o pai a Herefordshire, combinação feita à última hora, só para ter motivo de mandar embora Catarina, e igualmente declarou categoricamente o seu propósito de a pedir em casamento. O general ficou furioso e separaram-se em completo desacordo.
Henrique, numa agitação de espírito que só muitas horas de meditação solitária conseguiriam acalmar, voltara logo para Woodston, e na tarde do dia seguinte metera-se a caminho para Fullerton.
A surpresa dos pais de Catarina foi, por momentos, grande, quando Henrique lhes pediu a mão da filha. Nunca lhes passara pela idéia que gostassem um do outro; mas como, afinal, era natural que Catarina fosse amada, depressa consideraram isso como feliz emoção, o seu orgulho recompensado e, pela sua parte, não puseram qualquer impedimento. O porte agradável e o bom-senso de Henrique eram uma boa recomendação. E como nunca tinham ouvido dizer mal dele, supuseram logo que não havia nada que se lhe apontasse. Com a boa vontade a ocupar o lugar da experiência, o seu caráter já não precisou de justificação.
- Catarina há-de ser uma dona de casa muito pouco cuidadosa foi a observação da mãe, seguida pelas palavras com que a consolaram: "Nada há melhor do que a prática."
Havia apenas um obstáculo a considerar; e até que esse se não resolvesse tornava-se-lhes impossível dar o seu consentimento. Eram pessoas bondosas, mas os seus princípios rígidos não permitiam que o seu casamento se efetuasse sem a autorização do general. Não exigiam que ele lhes viesse pedir a filha ou mesmo que aprovasse, de todo o coração, o casamento. Não eram tão esquisitos que exigissem um pedido cerimonioso, mas achavam indispensável o seu consentimento e uma vez obtido este - o que, esperavam não levaria muito tempo – dariam imediatamente o deles com o maior prazer. A única coisa que desejavam era o seu consentimento; pouco lhes importava o dinheiro. Os seus ganhos atuais bastavam para uma vida independente e desafogada e, do ponto de vista monetário, era um enlace esplêndido para a filha.
Catarina e Henrique não se admiraram com tal resolução. Lamentaram-na, mas não ficaram sentidos; e, separando-se, tentaram convencer-se de que o general em breve se resolveria - o que a ambos parecia quase impossível - a dar o seu consentimento, que os uniria para a plenitude dum amor duradouro.
Henrique regressou a casa para ver as novas plantações e fazer melhoramentos por causa daquela que, ansiosamente o esperava, iria em breve compartilhar de tudo isto; e Catarina ficou em Fullerton, chorosa. Se as torturas da ausência eram suavizadas por uma correspondência clandestina, não queiramos saber. O senhor Morland e a esposa tinham sido extremamente benevolentes a ponto de não exigir uma promessa a esse respeito, e, quando Catarina recebia alguma carta - o que acontecia agora muitas vezes - viravam sempre a cara para o lado.
Pela ansiedade que, nesta altura do seu noivado, sentiam Catarina e Henrique e todos aqueles que os estimavam a respeito da realização do seu enlace não podemos ter dúvidas que estamos a chegar, a toda a pressa, a uma completa felicidade. Como se realizou o casamento e o que teria influenciado a opinião do general? A circunstância que especialmente o demoveu foi o casamento que se efetuou durante o Verão da filha com um rapaz rico e de influência. Um aumento de importância que o encheu de bom humor, fez que Leonor o não largasse até conseguir o perdão de Henrique e a licença de o "deixar ser tolo", desde que o queria.
O casamento de Leonor e a sua mudança de uma casa como a Abadia - prejudicada com o desterro de Henrique - para a casa da sua escolha e para o homem da sua preferência são acontecimentos que, espero, darão muito prazer a todos os que a conhecem. A minha própria satisfação, neste momento, é também sincera. Não conheço ninguém que, por mérito próprio ou melhor preparada pelo sofrimento, tenha mais direito a ser feliz. Não era só de agora que Leonor gostava daquele que se tornara seu marido. Este não se lhe tinha ainda dirigido por causa da inferioridade da sua situação; mas a obtenção inesperada do título e de fortuna removeu todas as dificuldades. O general nunca amara mais a filha nas horas de convivência, de auxílio e tolerância paciente do que desde que lhe chamava a senhora viscondessa. O marido era realmente digno dela. A parte o título, a fortuna e fidelidade, era o homem mais galante do mundo. Qualquer descrição mais minuciosa das suas qualidades será desnecessária. Tenho só a acrescentar - sabendo que as regras da técnica proíbem a entrada duma personagem estranha à minha história - que se trata do senhor daquele criado negligente que deixou uma colecção de róis de roupa suja, quando esteve muito tempo de visita em Northanger, róis esses pelos quais a minha heroína foi envolvida numa das suas mais alarmantes aventuras.
A interferência do visconde e da viscondessa a favor do irmão foi ajudada pelas informações que o general teve acerca da verdadeira situação do senhor Morland. Soube que o primeiro elogio acerca da riqueza da família tinha sido exagerado, como o fora a informação maliciosa da sua pobreza; que de forma alguma eram pobres, e que Catarina teria um dote de três mil libras. Isso fez desaparecer hesitações e contribuiu bastante para abater o seu orgulho. Também teve os seus efeitos o fato de saber que a propriedade de Fullerton era realmente dos Morlands, estando portanto livre de qualquer especulação avara. Por tudo isto, o general, logo após o casamento de Leonor, autorizou o filho a voltar para Northanger e fê-lo portador do seu consentimento numa carta para o senhor Morland cheia de sãs declarações. O acontecimento autorizado em breve se realizou. Catarina e Henrique casaram; os sinos tocaram e toda a gente ficou satisfeita.
E como o casamento se realizou um ano depois de se terem encontrado pela primeira vez parece-me que não foram muito prejudicados pela demora causada pelas crueldades do general. Começar uma vida de felicidade perfeita aos vinte e seis e aos dezoito anos está muito bem. E estando eu convencida de interferência injusta do general, longe de prejudicar a felicidade deles, lhes foi talvez favorável, permitindo que se conhecessem melhor e que fortificassem o seu amor, deixo, a quem esteja interessado, o cuidado de apreciar se o propósito desta obra é recomendar a tirania paterna ou recompensar a obediência filial.
[1] “Elegy written in a country churchyard”, 14.
[2] “Elegy to an unfortunate Lady”, 57.
[3] “The Seasons – Spring”.
[4] “Othelo”, III, 3.
[5] “Measure for Measure”, III, 1.
[6] “Twelfth Night”, II, 4.
Jane Austen
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