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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CADEIRA DA MORTE / O. C. Tavin
A CADEIRA DA MORTE / O. C. Tavin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Rocky Fremont temido gangster da cidade de Filadélfia, havia sido preso pelo agente do FBI James Morrow há 10 meses, e na altura enlouquecido pela raiva e frustação, havia jurado matar o agente Morrow nem que fosse a ultima coisa que fizesse na vida. O seu plano quase foi conseguido com a ajuda de John Webb, juntos engendraram um plano para fazer a fuga do presidio onde se encontrava Rocky, mas Jonh não estava preparado para a vida de gangster e ao ver a aflição de seu irmão, Cora, denunciou a fuga do presidiário sabia que com esta sua atitude, poderia levar seu irmão para a cadeira elétrica, mas mesmo assim optou por “salva-lo” das garras do temível Rocky Fremont.

 

 

Nos corredores das galerias repletas de celas ressoavam, aproximando-se, os pausados pas­sos de um carcereiro. Como os outros presos, o homem que ocupava a cela 319, da quinta gale­ria os ouviu com indiferença. Nos dez meses que vinha ocupando aquela cela acostumara-se ao lento ressoar das botas que percorriam pausadamente as galerias a cada instante, detendo-se oca­sionalmente, diante de alguma visetra que servia de comunicação com os estreitos compartimentos.

Desta vez as duras pisadas pararam diante de sua própria cela. O preso estendido no catre, com os olhos fixos no teto de cimento, nem se­quer moveu-se. Não possuía o menor desejo de encontrar o olhar sardônico do funcionário, que o inspecionava atento e vigilante. Mas, quase si­multaneamente, ouviu o tinir das chaves e o ran­ger de uma delas na fechadura. A pesada porta abriu, rangendo ligeiramente, e o carcereiro falou:         - Levante-se, Rocky. Visita para você. O preso preparou-se calmamente. A porta esta­va aberta e o funcionário, vestido de uniforme azul e com o revólver à cinta, punha-se a um lado para dar-lhe passagem. Os frios olhos pardos do preso fixaram-se na arma, estreitando-se. Como sempre lhe ocorria em semelhantes ocasiões, Ro­cky Fremont pensou que agradável seria arreba­tar o tentador revólver ao confiante carcereiro e encher de tiros a irônica e insultuosa expressão de seu rosto. Depois limpar o caminho a tiros até sair do antro de torturas que era a prisão do Estado da Pensilvânia.

Algum dia o faria, decidiu sombrio, enquanto se levantava e abotoava o odioso blusão regulamen­tar. Em seguida colocou o casquete redondo na cabeça, sob o olhar atento do guarda, e saiu para a estreita galeria.

Sem dizer uma palavra, pôs-se a andar, acom­panhado do agente em direção à escadaria que conduzia ao andar inferior. Seu olhar percorreu a ampla e extensa galeria, de quatro andares de altura, apinhados de celas nos seus dois lados. As celas em fileiras superpostas, como jazigos de cemitérios... E pensar que ainda teria que ficar ali nove longos anos. Jamais conseguiria acostumar-se a semelhante ideia.

Sempre seguido de perto pelo carcereiro, des­ceu a escadaria em caracol que ligava as galerias altas com o pátio de cimento, e dirigiu-se à gran­de e pesada porta de entrada. Junto a ela, em uma espécie de local reservado, outro carcereiro sentado a uma mesinha, sobre a qual se achava um telefone, mantinha seus olhos vigilantes em todo o cenário de celas. Nem uma cela se abriria sem que aquele homem notasse, pensou Rocky.

Porém, com a aproximação dos dois homens, o carcereiro levantou-se, saiu de seu reduto, e foi abrir a porta. O que conduzia o preso cumprimen­tou-o com um aceno, e o recluso com seu condu­tor passaram ao pátio.

Rocky Fremont respirou o ar livre com delícia. Chegara a primavera e o vento que soprava do vizinho Rio Delaware era fresco e revigorador. Mas dentro dos altos muros da casa penal até a brisa fresca tinha sabor de prisão, pensou Rocky, enquanto seus olhos agudos percorriam todos os detalhes do pátio. Deu um suspiro porque algum dia lhe seria possível pelo menos sair do pavilhão principal e aqui se encarregaria de descobrir a saída, era só não ter atrás de si um carcereiro armado como agora.

Momentos depois, os dois homens entravam no edifício do parlatório, penetrando em uma ampla sala, cortada em dois por uma grade. À frente da grade, e em seus dois lados, corria um balcão, que impedia aos que conversavam através dessa cerca maior aproximação. Do outro lado estava sentado ao balcão um visitante, que Rocky, de pronto, reconheceu, e que se levantou com a apro­ximação do preso.

- Olá, chefe!

- Olá, Johnny, garotão! - retrucou Rocky. - Que há com você? Mas sente-se, rapaz. Não digo que se sinta como em sua casa, pois provavelmen­te você não ia gostar - adiantou com um frio sorriso;

Os dois homens se sentaram, um de cada lado da grade. O visitante, um homem jovem, que não teria mais de vinte e dois anos, vestia um terno de gabardina e trazia um chapéu caído sobre os olhos, mostrava-se agitado e nervoso, e olhava incessantemente para a porta por onde Rocky aca­bara de surgir, na qual este, apesar de não olhar, sabia que se postara o carcereiro a vigiá-los.

- Venho vê-lo, chefe - começou o jovem. - Queria saber como vão as coisas.

- Muita gentileza de sua parte - retrucou Rocky, ironicamente. - Espero não seja esse o único objetivo dessa visita, pois só o interesse pela minha pessoa não me ajudará a sair daqui. Diga-me: Traz alguma notícia?

O jovem assentiu discretamente com a cabeça, mais nervoso que nunca, e logo olhou rapidamen­te na direção da porta. Em seu rosto pintou-se uma tal expressão de alívio que Rocky, desta vez, também girou a cabeça para olhar e verificar que o guarda que há pouco os observava retirava-se e um outro preparava-se para assumir seu posto.

A atenção do preso foi atraída outra vez pelo visitante. O jovem inclinou-se sobre a mesa o mais que pôde, aproximando-se da divisão, e co­meçou a falar depressa, em voz baixa e sigilosa:

- Agora podemos falar, chefe. Sim, trago no­tícias. Está tudo preparado para esta noite. Olhe bem aquele funcionário. Chama-se Mount e o aju­dará a sair. Fiz o que você mandou e saiu tudo bem. Não se preocupe. Tome isto.

O visitante retirou do bolso de dentro um papel muito dobrado e o empurrou através as grades até colocá-lo ao alcance do preso. Rocky o reco­lheu e apressou-se em escondê-lo nas suas roupas, dando uma olhada rápida em redor com atenção no carcereiro. Mas este, de costas para eles, esta­va ocupado, ao que parece em acender um cigar­ro e não lhes prestava a menor atenção.

O jovem continuava falando velozmente:

- Neste papel você encontrará instruções con­cretas de tudo que deverá fazer. Decore tudo e queime o papel. Eu o esperarei do lado de fora com um automóvel, no lugar que está indicado aí. Você não encontrará nenhuma dificuldade. Agora me vou. Não quero ficar mais tempo aqui.

Rocky Fremont sentia-se possuído de uma excitação imensa.

- Espere um momento! Johnny Webb: se você conseguir mesmo tirar-me daqui, fá-lo-ei ganhar um milhão de dólares! Mas escute, necessito de uma arma. Quero um revólver de qualquer ma­neira. Passe-me o seu, depressa.

O rosto do moço assumiu uma expressão de perplexidade.

- Não o tenho, chefe. Pareceu-me melhor não trazê-lo aqui.

- Você é um Idiota. Podia ter trazido escondi­do. Não vê que me vai fazer falta? Não tem qual­quer outra coisa com que me possa defender?

- Só uma navalha - respondeu Webb.

- Dê-me, rápido - ordenou o preso.

Uma rápida olhada convenceu os dois homens de que o guarda continuava de costas para eles e não lhes dava atenção. A navalha passou pela grade e foi esconder-se no cinturão de Rocky sem qualquer embaraço.

Em seguida, Webb levantou-se e em voz mais alta se despediu do outro.

- Já vou, chefe. Tenho pressa. Alegro-me que esteja tudo bem e lhe desejo muita sorte. Até logo - concluiu, acompanhando suas palavras com um olhar significativo.

- Até logo, Johnny e obrigado pela visita - respondeu o preso, e enquanto o jovem se diri­gia para a saída de visitantes. Rocky voltava-se para o carcereiro.

Este achava-se agora a olhar os outros com uma expressão de impenetrável indiferença em seu rosto imperturbável. A mesma expressão que levava a cara de Rocky Fremont ao atra­vessar a porta, ser entregue ao outro carcereiro, e ser conduzido novamente à sua cela, embora o coração lhe parecesse saltar pela boca de tanta alegria e precisasse de muito esforço para domi­nar sua exaltação nervosa a cada passo que dava.

Afinal, viu-se outra vez trancado em sua cela depois de passar por um verdadeiro inferno de torturas em conjecturas de que seria agarrado com o papel e a navalha antes de chegar a ela, e lá se ia sua única oportunidade de escapar. Mas nada disso se deu, e apenas pode esperar e ouvir como os passos se distanciavam ao longo da galeria, prostrado de costas na porta, poden­do então puxar o papelzinho e lê-lo rapidamen­te.

Sua exaltação ao invés de diminuir com a leitura, aumentou. O plano de fuga parecia estar muito bem traçado. Não obstante, algo poderia falhar no último momento. Mas não era prová­vel. Tudo sairia bem. E se assim não for alguém vai passar muito mal, prometia a si mesmo, selvagemente. Rocky Fremont examinou a navalha que Johnny Webb lhe dera. Não constituía uma grande defesa mas, manejada por um homem disposto, poderia ser muito perigosa. E Rocky era um homem de muita disposição como poderiam atestar até os seus piores inimigos.

As horas daquela tarde pareciam eternas. Depois de reduzir o papel a minúsculos pedaços fazendo-os desaparecer, o preso atirou-se em seu catre. Pareciam mais longas que os dez meses que passaram trancado. Seu cérebro ardia de impaciência, que procurava distrair acariciando ideias de vingança.

Algumas pessoas no mundo exterior não se alegrariam, precisamente, quando soubessem de sua fuga, e essas pessoas haveriam de sentir muito cedo como era perigoso fazer gracejo com Rocky Fremont. O primeiro haveria de ser Ja­mes Morrow, que, sem dúvida alguma, teria de morrer.

Por fim a noite chegou. A vida da prisão con­tinuava a sua rotina diária. Tudo parecia estar em calma e lentamente, depois do jantar, os ruídos do cárcere se foram extinguindo. Em cada quarto de hora, os lentos passos dos carce­reiros ressoavam através das galerias. Rocky Fremont, aparentemente, dormia em seu catre. Mas, na realidade, em um estado de impaciência febril, aguardava que chegasse três horas da madrugada, hora em que receberia o sinal.

Como ocorrera tantas vezes, anteriormente, du­rante a eterna noite, as arredias e parcimoniosas passadas de um carcereiro aproximavam-se de sua cela. E, como em todas as ocasiões ante­riores, Rocky as ouvia com a alma posta aos ou­vidos, esperando que as mesmas se distanciassem. Mas desta vez pararam ante sua porta. Fez-se apenas um momento de silêncio.

Fremont percebeu o tinir da chave na fechadu­ra. A porta entreabriu-se e um pacote caiu no solo dentro da cela. Depois as passadas fortes do funcionário eram ouvidas afastando-se. A porta ficara aberta.

Rocky levantou-se de um salto. Tudo estava acontecendo de acordo com o plano. Rapidamen­te desmanchou o embrulho. Continha um uni­forme completo de carcereiro, sem armas, que o preso se apressou em vestir. Toda a sua im­paciência desaparecera. Agora sentia-se frio e re­soluto. Rocky era homem de ação, e só agindo sentia-se bem.

Recordou o conteúdo do bilhete. Teria que es­perar cinco minutos depois que sua porta fosse aberta, para sair da cela. Na porta do pavilhão encontraria de guarda o carcereiro Mount, o que estivera presente no parlatório, que lhe fran­quearia a entrada. Em seguida, outro o acom­panharia através do pátio e o faria sair da prisão.

Levou pouco mais de um minuto para vestir-se. Segurou, então, firmemente a navalha de John dentro do bolso e esperou, contemplando o len­to avançar dos ponteiros de seu relógio.

Esperou até o último segundo, dominando sua impaciência com nervos de aço. Seu rosto de fei­ções duras e cruéis parecia esculpido em granito. Ao cabo do tempo estabelecido, abriu a porta totalmente, que cortou o silêncio com um leve rumor, e saiu para a galeria com um gesto furti­vo, que lhe foi impossível evitar.

Apenas duas lâmpadas, fixas no teto, ilumi­navam o extenso pavilhão. A maior parte das galerias estava às escuras. As portas das nume­rosas celas eram como olhos sombrios, que Ro­cky Fremont sentia fixos em si mesmo. Seu olhar percorreu rapidamente as galerias desertas e sombrias e sem esperar, pôs-se a caminhar em di­reção à escadaria de descida.

A meio caminho, deteve-se junto a um dos postes de aço, empunhando com força o cabo da navalha e sentindo que o coração lhe saltava no peito. Na galeria em frente, no andar superior, do outro lado do pavilhão, uma sombra mais escura rompia a monotonia da longa fileira de celas.

Era um carcereiro. E Rocky Fremont sentin­do todas as angústias de ver-se descoberto, inca­paz de defender-se daquele homem, que, se o vis­se, poderia matá-lo como um coelho, esperou uns segundos em espantosa tensão.

Mas logo a sombra fez um movimento e Rocky compreendeu que não apenas fora visto, mas tam­bém animado a seguir seu caminho. Sem dúvida, pensou com alívio, era o mesmo que lhe trouxe­ra o uniforme. O terceiro de seus amigos na pri­são.

Sem esperar mais, avançou até o final da ga­leria. Rápida mais cuidadosamente, desceu a es­cadaria de caracol, e em seguida já se achava no térreo do pavilhão e descontraído dirigia-se para a grande porta de entrada.

No reservado viu outro carcereiro. Havia uma luz acesa ali dentro e o homem lia tranquila­mente, meio virado de costas para o pavilhão e para as galerias que deveria estar vigiando. Ro­cky o reconheceu. Era Mount, e sua atitude já lhe parecia familiar.

Decidido, avançou até a porta e a experimen­tou. Estava aberta. Puxou a porta e passou, com uma última e descuidada olhadela para o guarda, que continuava aparentemente absorvi­do por sua leitura. Uma porta mais, esta de aço, porém igualmente aberta para ele, e desapareceu na arejada obscuridade do pátio.

Deteve-se um momento, indeciso. Estava tudo escuro, mas cercando o pátio, sobre os altos muros, brilhavam algumas lâmpadas, e Fremont imaginava o perigo que significava acercar-se delas. De repente alguém moveu-se junto dele. A mão do preso, armada com a navalha, saltou até a metade do seu bolso, mas uma voz ins­truiu-o, sigilosamente:

- Venha por aqui. Caminhe do meu lado, com toda a naturalidade, e tudo sairá bem. Vamos.

Sem mais dizer o homem pôs-se a andar. Rocky via-o melhor agora, e, seguindo suas indicações, colocou-se a seu lado e caminhou decididamente.

Parecia a Rocky que eles atravessariam o pá­tio na direção dos edifícios dianteiros da prisão, mas, ao invés disso, o guarda que o guiava deu a volta no pavilhão de onde acabava de sair, e, seguindo o alto paredão até o fundo, dirigiu-se para a parte posterior do cárcere.

Os dois homens marchavam em silêncio. Rocky meditou sobre a conveniência de pedir ao car­cereiro o seu revólver, ou obrigá-lo a entregar, ameaçando-o com a navalha, mas no fim conclui que, por mais que necessitasse da arma, mais ainda necessitava da ajuda daquele homem. Não imaginava, contudo, como iria arranjar-se para passar pela sentinela, que, sem dúvida alguma, existiria no portão, apesar de tratar-se do portão dos fundos.

Dobraram uma esquina e desembocaram em pátio menor, bastante escuro. Do outro lado ha­via um amplo portal no muro externo da prisão. Uma lâmpada potente, instalada acima da por­ta, a iluminava claramente. De um lado divisa­va-se um compartimento ladrilhado, com amplas janelas e no seu interior o sentinela e encarre­gado da portaria.

O carcereiro que acompanhava Rocky agarrou-o pelo braço e o deteve à sombra do paredão. Falou-lhe rapidamente em voz baixa:

- Lembre-se bem disto. Eu me chamo Simmons, e o outro que está na porta, é Donavan. Agora você espera aqui, no escuro. Eu irei até a porta e pedirei a Donavan que me deixe pas­sar. Terminei meu serviço e estou indo para casa. Quando a porta pequena já estiver aberta e eu estiver a ponto de sair, você dá uma cor­rida como que para me alcançar. Aí você finge que vai sair comigo, dizendo alguma coisa. Pro­cure mencionar nossos nomes. Dessa maneira, Donavan de nada suspeitará. Eu farei a minha parte e sairemos juntos. Entendido? Procure não se enganar. Um erro pode custar-lhe caro, pois Donavan não está conosco.

- De acordo, amigo - retrucou Rocky. - Não me enganarei.

O funcionário dirigiu-se sem pressa até a por­ta, e Fremont o observou, escondido na sombra. Viu como o guarda da porta, Donavan, levanta­va a cabeça e olhava através das janelas e como, depois de identificar quem se aproximava, saía do compartimento, com as chaves da porta na mão.

Diante da porta de ferro os dois conversaram por uns momentos. Rocky podia ouvir debilmente as suas vozes, mas não entendia as palavras. Por um instante pensou que Simmons o estivesse traindo, mas logo tranquilizou-se. Se ele quises­se traí-lo, não teria sido necessário esperar tan­to. Podia tê-lo matado quando saiu do pavilhão. Não, a atitude dos dois homens era perfeitamen­te normal.

Um pouco mais tarde, Rocky pode ver como Do­navan abria, com ruídos de barras e ferrolhos, a pequena portinhola existente na maior. Os dois homens apertaram-se as mãos, e Simmons fez menção de sair. Fremont julgou chegado o mo­mento, e, ajeitando o gorro em cima dos olhos, começou a correr até a porta, dominando-se para não fazê-lo com pressa excessiva.

Ao ouvirem seus passos, os outros dois volta­ram-se para olhá-lo, e quando Rocky penetrou na região iluminada, exclamou ainda a meio ca­minho:

- Espere-me Simmons. Não feche a porta Do­navan, que vou com o Simmons.

Continuou avançando, possuído de uma estra­nha sensação de intranquilidade, enquanto os ou­tros dois o olhavam. Mas logo, Simmons fez um gesto tranquilizador, e respondeu-lhe:

- É você, Mike? Julguei que não vinha. Ande logo que já vou.

Rocky chegou junto a eles. A portinhola estava aberta por completo, e do outro lado se acha­va a liberdade. Simmons fez meia volta e saiu para a rua. Rocky disse:

- Já cheguei, Simmons. Boa noite, Donavan, e boa guarda.

E tentou seguir em frente. Mas quando seu pé já tocava a rua e tudo parecia ter saído bem, as coisas se complicaram. Um punho firme agar­rou Rocky pelo braço e puxou-o para dentro. Do­navan não se deixara ludibriar. Fez Rocky re­tornar, e chegando-se bem perto do rosto do preso, perguntou:

- Espere um momento! Quem ê você? Não o conheço!

Sobressaltado, Rocky, que até este momento ocultara seu rosto, olhou de cheio o funcionário. A luz da lâmpada iluminou o seu semblante e Donavan recuou assustado.

- Meu Deus! Rocky Fremont!

O preso não teve mais dúvidas. Havia deses­pero na voz do guarda, e não podia perder nem mais um minuto. A mão direita de Rocky saiu do bolso. A lâmina de aço da navalha brilhou um instante na luz e logo penetrou na garganta de Donavan. Desesperada e selvagemente, Rocky golpeou uma e outra vez. O sangue do outro lhe salpicou as mãos e o uniforme. Donavan exalou um estertor afogado e caiu para trás, moribun­do.

Rocky Fremont não perdeu tempo. De um sal­to cruzou o umbral da porta. Do outro lado, para­lisado de horror, se achava Simmons. O preso caiu sobre ele como um raio. A ponta da navalha apoiou-se sobre a nuca do guarda, e a mão es­querda de Rocky, num gesto rápido, tirou-lhe o revólver.

- Não quero que faça nenhuma bobagem agora - sussurrou Fremont, sibilante, no ouvido do outro.

Afastou-se um ou dois passos e, com agilidade, empunhou o revólver. O carcereiro contemplava-o pálido e imóvel. Rocky sorria, e logo dirigiu uma olhada nas duas direções da rua. Não se via nin­guém, e ordenou a Simmons:

- Andando, amigo! Sinto muito, mas agora sou eu quem o acompanha.

Com um gesto do revólver fê-lo dar meia vol­ta e andar na direção do rio. Rocky seguiu-o. Seus olhos percorriam a rua ansiosamente, até que se fixaram em um carro que parado há uns metros de distância, com as luzes apagadas, parecia abandonado na rua deserta.

Mas ao aproximarem-se os dois homens, o mo­tor do automóvel começou a funcionar suave­mente. Rocky se deteve e ordenou a Simmons:

- Pare aqui! Eu vou naquele carro. Mas não se mova até que eu tenha ido. Lembre-se de que este revólver está carregado. Quando estiver so­zinho faça o que quiser, mas eu no seu lugar, iria direto para casa. De outra maneira você vai se complicar.

E em dois saltos enfiou-se no automóvel, em cujo volante se encontrava John Webb. Sem di­zer uma palavra, o jovem acendeu os faróis e deu a partida. O automóvel lançou-se bruscamen­te para frente e dobrou a primeira esquina sobre duas rodas.

Mas naquele exato momento Simmons pôs-se em disparada em direção da prisão. Seus gritos ecoavam no silêncio da noite e pouco depois Ro­cky, sentado junto a Webb, pode ouvir o ulular da sereia que anunciava a sua fuga.

James morrow, agente especial do FBI, des­tacado na Divisão de Filadélfia, entrou as­sobiando em seu gabinete aquela manhã. Era uma esplêndida manhã de primavera, a vida era formosa e o agente se sentia no melhor humor. Seus olhos acinzentados envolveram alegremen­te a ampla sala, repleta de mesas e armários, onde alguns de seus companheiros atentos, já se dedicavam ao trabalho. Morrow parou de as­sobiar para dirigir um cumprimento jovial à mecanógrafa ruiva que, sentada junto a sua mesa, retocava os lábios.

- Bom dia, miss Parker. Esplêndida manhã, não lhe parece?

A moça o olhou sem dissimular sua admira­ção. Os seis pés de estatura do agente especial, seu magnífico físico, sua juventude e simpatia constituíam o desespero de muitos corações femininos. Porque James Morrow, apesar de certas insinuações mais ou menos veladas, conti­nuava solteiro.

- Bom dia, mister Morrow - respondeu a moça. - Com efeito, está um tempo esplêndi­do. Já estamos na primavera, felizmente.

O agente especial aproximou-se da janela e contemplou durante algum tempo o complicado tráfego da rua Chestnut, lá embaixo. Uma mul­tidão de automóveis circulava no pavimento, e um rio humano, aumentando a cada momento com as pessoas que desciam dos frequentes bon­des que vinham do oeste da cidade, se dirigia apressadamente para os locais de trabalho.

- Sim, é uma formosíssima manhã primaveril - continuou Morrow - e se não aparecer nenhum contratempo, proponho-me a jogar, esta tarde, a minha primeira partida de golfe da temporada. Convido-a a assisti-la, miss Parker, e asseguro que vale a pena, pois sou um autên­tico e verdadeiro campeão.

- Irei com prazer, esteja certo - afirmou a moça. - Onde vai jogar?

- No campo do League Island, como sempre. Não é muito distante e é um belo lugar.

Um homem de meia-idade, que se achava sentado a uma mesa vizinha, em mangas de cami­sa e com aspecto de fadiga, levantou-se e aproxi­mou-se deles.

- Olá, Jimmy! - cumprimentou. - Será que ouvi mal, ou realmente disse que vai jogar golfe esta tarde?

James Morrow sorriu amplamente.

- Sim, Nick foi isso exatamente o que eu disse. Fique tranquilo, você não está bêbedo nem enfermo, apesar dessa cara de sono.

O outro fez um gesto de enfado.

- Também você estaria assim se tivesse pas­sado a noite aqui - e, voltando-se para a rapa­riga, prosseguiu: - Eu creio que você vai con­tinuar com a vontade de ver este campeão jo­gar, miss Parker. Parece que ele não vai poder ir a League Island hoje à tarde.

Morrow se pôs repentinamente sério e exa­minou cuidadosamente a cara de Nick.

- Que houve, Nick?

- O chefe recomendou que queria ele mesmo dar a notícia - respondeu o outro, encolhendo os ombros. - Acho que o melhor que você pode fazer é ir vê-lo.

- O chefe já chegou? - estranhou Morrow.

- Há séculos que está aqui - respondeu Nick e, voltando as costas, dirigiu-se para a sua mesa.

Um momento depois, James Morrow entrava no amplo gabinete do inspetor-chefe da Divisão de Filadélfia do FBI, Patrick 0'Carrigan, um descendente de irlandês, de ombros largos, cabe­los vermelhos e olhos azuis vivos e penetrantes. O edifício Widener, onde se achava instalada a divisão do FBI ficava na esquina das ruas Chestnut e Juniper, e as janelas do gabinete de 0'Carrigan davam para esta última, um pouco mais calma que a primeira.

O inspetor-chefe, que também tinha aspecto de cansaço, não estava sentado a sua mesa, achava-se de pé diante de um enorme mapa mural da cidade, que ocupava completamente uma das pa­redes do salão. Voltou-se ao entrar Morrow, e seu amplo rosto dilatou-se com um sorriso.

- Olá, Morrow! Estava esperando-o. Disse­ram-lhe alguma coisa por aí fora?

- Bom dia, chefe. Não. Apenas disseram-me que tinha notícias para mim.

Patrick 0'Carrigan aprovou com a cabeça e se dirigiu para a sua cadeira giratória, atrás da mesa.

- Pois é, Morrow, são notícias que não sei se lhe agradarão. Sente-se aí e escute.

Puxou de seu bolso um maço de cigarros e, depois de servir-se de um, colocando-o na boca, empurrou o maço através da mesa na direção de James. Os dois homens se sentaram. O inspetor-chefe introduziu seu cigarro numa piteira e deixou escapar de suas narinas um cacho del­gado de fumaça, enquanto seus olhos claros fixa­vam-se no agente especial.

- Bem, para começar pelo princípio, recordar-lhe-ei que, faz pouco mais de um ano, esti­vemos trabalhando num caso importante de trá­fico de entorpecentes que, ao fim, foi resolvido satisfatoriamente - James Morrow concordou com a cabeça e, 0'Carrigan prosseguiu. - Tra­tava-se de uma quadrilha não muito numerosa, porém bem organizada, que durante uns meses nos deu muito o que fazer. Mas o assunto foi re­solvido devido, principalmente, ao seu trabalho, e o chefe da "gang" foi agarrado, por você mes­mo, se não me falha a memória.

Os olhos cinzentos de Morrow se iluminaram.

- Já sei. A turma de Rocky Fremont.

- Com efeito - concordou o chefe. - Tenho aqui o processo, que estive revendo - suas mãos robustas folhearam uns papéis estendidos sobre a mesa. - Com a detenção de Rocky, e as de dois ou três indivíduos de menor importância, demos o caso por definitivamente resolvido, e a quadrilha como liquidada. Rocky Fremont foi julgado por um Tribunal Federal e condenado a dez anos de reclusão. O tráfico de entorpecentes cessou por completo, o que confirmou nossa su­posição de que Fremont era o cérebro diretor e que, desaparecido ele, a quadrilha de desman­charia.

0'Carrigan fez uma pausa. Aspirou profundamente o fumo do seu cigarro e olhou atentamente o agente especial.

- Você se lembra, Morrow - perguntou len­tamente - o que disse Rocky Fremont quando foi condenado a dez anos, na mesma sala do Tribunal?

James Morrow sorriu ligeiramente. Recorda­va-se perfeitamente daquele incidente.

- Refere-se às suas ameaças? - perguntou o inspetor-chefe assentiu com a cabeça, e Morrow prosseguiu: - Bem, o homem estava dana­do de raiva, ao que parece, e começou a vociferar dizendo que eu pagaria todas que fiz, que me mataria, e mais não sei quantos disparates.

- Estava doido - concordou 0'Carrigan - e, o que é pior, parece que continua doido. Mas é um doido perigoso. Mais ainda, equivocamo-nos na época, supondo que a quadrilha se desbarata­ra. O caso é que esta noite passada, na certa com ajuda do exterior, Rocky Fremont escapou da prisão do Estado e, ao fugir, assassinou um guarda, degolando-o com uma navalha ou coisa parecida.

James Morrow passou uns momentos com o olhar preso ao do seu superior. Em seguida, de­positou cuidadosamente a cinza de seu cigarro no pesado cinzeiro de cristal que havia na mesa a sua frente, e sugeriu, friamente:

- Suponho que o caso é nosso certo, chefe?

- Certo. Se bem que não faz nem quinze mi­nutos que cheguei a este acordo com a Polícia do Estado.

- Bem - replicou James - nesse caso, soli­cito desde já a autorização para encarregar-me dele.

Uma satisfação radiante brilhou nos olhos azuis do chefe, mas, sem demonstrar a menor emoção, 0'Carrigan objetou:

- Você percebe que, nesta missão, correrá provavelmente mais perigo que qualquer outro agente especial, devido ao ódio que Fremont lhe tem?

James deu de ombros.

- Não será esta uma circunstância que me fará recuar nem um milímetro no cumprimento da missão. Ademais não creio que seja certa, pelo menos totalmente. Qualquer agente corre­rá os mesmos perigos que eu ao tentar deter Fremont. O homem já é perigoso bastante, não havendo lugar para o que se poderia chamar de circunstâncias agravantes. Mas agora, enquan­to o cercamos, será igualmente perigoso para qualquer um, pois ele sabe que depois de ter matado o guarda todos nós o queremos para a cadeira elétrica.

0'Carrigan assentiu. Em seu rosto havia um ar de aprovação.

- Tem toda a razão, Morrow. Na verdade, eu já havia raciocinado a mesma coisa. Mas queria estar certo de que você desejava encarregar-se do assunto. É seu desde já. Colocá-lo-ei a par do pouco que sabemos.

O inspetor-chefe fez uma pausa, como que para pôr em ordem as suas ideias. Deu uma última tragada no cigarro e em seguida amassou-lhe a ponta no cinzeiro.

- O alarme foi dado esta madrugada por um funcionário chamado Simmons. Terminou seu serviço às três horas, e às três e quinze saía pela porta traseira, que não é o lugar adequado de saída do pessoal, mas que Simmons utilizou por­que, segundo declarou, estava mais perto dela que da principal.

James Morrow tomava rápidas notas num bloco de papel.

- Simmons disse - prosseguiu 0'Carrigan - que não fizera mais que sair à rua, quando alguém, vindo do interior do presídio, atacou o sentinela, um tal de Donavan. A porta, por seu turno, encontrava-se aberta e, antes que Sim­mons pudesse intervir, Donavan jazia no chão, degolado e, o atacante ameaçava a Simmons com um revólver. Era Rock Fremont, e Simmons foi desarmado e obrigado a acompanhá-lo uns poucos passos de distância, onde o esperava um automó­vel. O preso embarcou e o carro saiu disparado; Simmons voltou à prisão e deu o alarma.

O agente especial levantou a vista. Seus olhos cinzentos, um pouco perplexos, fixaram-se nos do seu chefe.

- Não compreendo por que razão - disse ele. - Rocky, possuindo um revólver, degolou Donavan com uma arma cortante e em seguida limitou-se a intimidar Simmons com o revólver. Seria para apoderar-se apenas do revólver de Donavan?

- Não - corrigiu-o 0'Carrigan. - O revólver de Donavan estava intato sobre seu cadáver. Por outro lado, falta o revólver de Simmons, que foi arrebatado pelo fugitivo.

- Nesse caso - completou o agente - Rocky não necessitava matar Donavan. Poderia ter fei­to com ele o mesmo que fez com o outro guarda. E se estava tão louco e sedento de sangue, como se explica por que matou um e respeitou o ou­tro?

- Com efeito - concordou seu chefe. - A declaração de Simmons neste ponto é pouco con­sistente. Ademais não compreendemos também como pôde Rocky aproximar-se da porta onde se achavam os dois carcereiros sem que nenhum dos dois ouvisse. Para fazê-lo teve que atra­vessar um amplo espaço descoberto e, abundan­temente iluminado. Por outro lado, Simmons se contradisse ligeiramente ao declarar, de início, que Rocky estava vestido com o traje da prisão, e depois, que levava alguma coisa por cima que de certo modo o disfarçava.

O inspetor-chefe acendeu um novo cigarro e prosseguiu:

- O resultado disto é que as autoridades do presídio afastaram Simmons provisoriamente do serviço, até que fique demonstrado se foi ou não cúmplice na fuga. Eu, particularmente acho que foi. E acho que também outro foi cúmplice, um tal de Mount, que jura por todos os santos que não viu nem ouviu nada anormal no transcurso da noite em seu posto de vigia na porta do pavilhão onde Fremont estava encarcerado. Sem a cum­plicidade deste Mount não se compreende como Rocky pôde sair para o pátio.

- E como pode Fremont conseguir o revól­ver e essas roupas que o disfarçavam? - per­guntou Morrow.

- Isso também supõe cumplicidade do pessoal do presídio - afirmou 0'Carrigan. - Fremont não manteve nenhuma comunicação com o ex­terior nesses últimos meses, à exceção de uma visita que recebeu ontem. O visitante disse cha­mar-se Gerald Walcott, e afirmou que morava na Rua Oitava, número 2526, no extremo sul da cidade. Tratamos de comprovar este ponto e esse número corresponde a uma casa em construção.

- Acresce a circunstância - continuou o che­fe pensativo - de que o carcereiro Mount, o mesmo que se achava de guarda na porta do pa­vilhão ficou de vigia na entrevista entre Rocky Fremont e o chamado Gerald Walcott. Isto supõe uma presunção de cumplicidade tão forte que, à semelhança de Simmons, as autoridades acha­ram conveniente afastá-lo também do serviço até que se efetue uma investigação completa. E se a investigação provar a cumplicidade, esses dois vão passar mal, já que seus atos resultaram não apenas na fuga de um indivíduo tão perigoso como Fremont, mas também na morte de seu companheiro Donavan.

- O senhor deseja que eu me encarregue tam­bém dessa investigação?

- Não - retrucou 0'Carrigan. - Já mandei Ritche para lá, e ele comunicará a você o que encontrar de interessante. Quero que se dedique única e exclusivamente à tarefa de procurar Fre­mont e prendê-lo. Não descanse até que o con­siga. Não coma, nem durma, se for preciso, mas traga-me Rocky Fremont o mais depressa que lhe seja possível. E se for compatível com a sua segurança e a de seus auxiliares traga-o vivo. A cadeira elétrica espera este homem, e ele deve ir para lá, sem que nenhuma bala misericordio­sa o impeça. Você pode pensar que sou um pouco sanguinário, mas é que... vi o cadáver de Do­navan esta manhã e não foi nada agradável.

O inspetor-chefe acariciou pensativo sua barba e prosseguiu:

- São precisamente - e olhou rapidamente seu relógio - oito e trinta e cinco minutos. Rocky Fremont está em liberdade há pouco mais de cin­co horas. Não foi muito, longe. No entanto, ape­sar do pouco tempo transcorrido, já demos o alarma em todo o Estado de Pensilvânia, e tam­bém nos de Nova Jersey, Delaware, Maryland e Virgínia, assim como no distrito federal de Co­lômbia. Estendemos uma rede dentro da qual Rocky Fremont tem, forçosamente, que estar. Todas as estradas de rodagem, vias férreas aeroportos e vias fluviais estão vigiados, e ninguém que não esteja muito bem identificado poderá mover-se entre as malhas de nossa rede. Supondo que Rocky Fremont ainda não saiu de Filadél­fia, jamais ele o fará.

Patrick 0'Carrigan levantou-se de sua cadeira e se dirigiu ao enorme mapa mural da cidade que examinava quando James entrou no gabinete e fez um sinal para que o agente o acompa­nhasse. O inspetor-chefe apontou a larga cinta azul do rio Delaware.

- A polícia do rio - prosseguiu - está alerta desde antes das quatro da manhã. É possível que Rocky, ao sair do presídio cruzasse o rio e passasse para Nova Jersey. Mas se não o fez não poderá fazê-lo agora. E agora diga-me, Morrow: onde acha você que estará Rocky Fremont?

- Em Filadélfia - respondeu, sem vacilar, o agente especial. - Parecem-me muito acertadas todas as precauções que foram tomadas até ago­ra, mas eu conheço Rocky Fremont. Sei que nas­ceu aqui, que tem aqui todos ou a maior parte de seus contatos e relações, que conhece a ci­dade como a palma de sua mão e que por isso poderá esconder-se melhor que em nenhum outro lugar.

- Essa é também a minha opinião - assen­tiu 0'Carrigan. - Pois adiante, e mãos à obra. A cidade de Filadélfia toda é o seu campo de ação. Ponha-se, porém, em contato com a polícia dos Estados aos quais se deu o alarme, em es­pecial com a dos de Nova Jersey e Delaware, os mais próximos. Você dirigirá a caçada. A Po­lícia do Estado de Pensilvânia nomeou o Warren para esta missão. Ponha-se em contato com ele no Quartel Central de Polícia, na avenida Belmont. Inicie suas diligências sem perda de tem­po. Mas antes, já que está tão certo de que Rocky está na cidade, diga-me por onde você vai come­çar.

James Morrow olhou para o grande mapa mu­ral. Filadélfia era uma cidade enorme, e no mapa parecia ainda mais extensa. Era um verdadeiro mar de casas, agrupadas em inúmeros bairros e distritos em toda a extensão do rio Delaware, abrindo-se em leque para o norte, e entre Delawa­re e o Schuymill, e desviando-se do outro lado deste último, para oeste. E isto seria pouco, em com­paração com a grande cidade industrial de Canden, com a qual se teria que contar. Situada a leste do Delaware, já em território de Nova Jer­sey, mas que em realidade se constituía em um enorme subúrbio de Filadélfia. Achar uma pessoa naquele formigueiro seria tão difícil como a proverbial agulha do palheiro.

Apesar disso o agente começou a falar em tom confiante:

- Filadélfia é muito grande, podemos, contu­do, eliminar grande parte dela como Improvável. Por exemplo, não é fácil que Fremont consiga ocultar-se nos bairros residenciais de oeste, como Elmwood, Lansdowne, e o Darby. De saída podemos eliminar, provisoriamente, toda a parte oeste da cidade, para lá do rio Schuykill Também não é provável que se esconda nos bairros cen­trais, ao longo das ruas Market e Broad, e bem assim no extremo sul da cidade, a zona da base naval.

O agente fez uma pausa, com os olhos fixos no mapa, e prosseguiu:

- Podemos também descartar a maior parte dos bairros residenciais da zona norte, Roxborough, Germantown, Fern Rock, Oak Lane, e os demais. Ficamos, assim, com provável lugar para refúgio do nosso "amigo", com toda a zona por­tuária ao longo do Delaware, isto é, toda a estrei­ta faixa situada entre a rua Front e o rio, e mais ainda os bairros do nordeste, Kensington, Richmond, Frankford, Wissinoming, etc, que se estendem, precisamente, até a prisão do Estado, de onde Rocky escapou.

- Quer dizer que começará por ai - concluiu 0'Carrigan.

- Parece-me o mais acertado - replicou Mor­row.

- Muito bem. Concordo então - disse o lnspetor-chefe, e ia continuar, quando a porta do gabinete se abriu e um funcionário entrou, tra­zendo duas ou três ampliações nas mãos.

- Eis as fotografias que pediu, senhor - disse o recém-chegado. - Trouxeram todas as que foram pedidas, e já foi iniciada a sua dis­tribuição.

- Ah, sim! Obrigado, Johnson - respondeu 0'Carrigan, e voltando-se outra vez para Mor­row, disse-lhe: - São fotografias de Rocky. Veja.

O agente especial tomou uma fotografia e exa­minou cuidadosamente a fisionomia do homem que havia jurado matá-lo, e que tinha de captu­rar. A fotografia reproduzia um rosto de feições duras e cruéis, boca relaxada, nariz proeminente e olhos frios, engastados profundamente em suas órbitas, debaixo de espessas sobrancelhas, qua­se unidas. A face estreita e a cabeleira revolta contribuíam para dar àquele rosto uma expres­são de animalidade perversa.

James guardou a fotografia em seu bolso e olhou seu chefe:

- Já vou, senhor. Vou começar a trabalhar, e não se preocupe: tirar-lhe-ei Rocky Fremont.

- Assim seja, Morrow - foi a resposta. - Muita sorte.

E com um firme aperto de mãos os dois ho­mens se separaram.

O agente especial James Morrow tinha razão. Rocky Fremont contrabandista de entorpe­centes, pistoleiro e assassino, não sairá de Filadélfia. No momento em que Morrow se dis­punha a iniciar as diligências para a sua captura, o fugitivo dormia tranquilamente numa depen­dência do sexto andar, do prédio 325 bloco F, situado na Avenida Somerset, ou seja, no bairro popular de Kensington, à margem do Delaware.

Rocky Fremont dormia pesadamente. Nada perturbava seu pacífico sono, nem sequer a espantosa imagem do guarda Donavan, dego­lado por sua mão, que tanta indignação causara ao inspetor-chefe O’Carrigan. Mas é que a em­pedernida consciência do criminoso não era capaz de despertar por tão pouca coisa.

Além disso, Rocky estava cansado. Entre uma coisa e outra, só conseguira dormir aquela noite. A espera impaciente em sua cela até às três da manhã, os tensos momentos de febril ação, até que se viu fora do cárcere e dentro do carro de Webb, e em seguida, a precipitada fuga pela cidade, perseguidos pelo gemido da sirena, o haviam privado de todo descanso e posto seus nervos à prova, já abrandados pela inatividade prolongada e obrigatória do presidio.

Ao abandonarem o carcereiro Simmons na rua, perto do presidio, e saírem em desabalada carreira com o automóvel, John Webb, que o conduzia, pensara em dirigir-se diretamente para sua casa, na avenida Somerset, pelo caminho mais curto. Julgaram que nada tivessem, o que temer de Simmons, nem de ninguém e que ainda disporiam de tempo suficiente antes que desco­brissem a fuga.

Mas quando Simmons deu o alarme, horrori­zado com o assassinato de Donavan e arrependido de ter colaborado com o criminoso, Webb perce­beu rapidamente que era necessário abandonar o carro. Sem duvida, Simmons teria anotado o número de sua placa e continuar viajando nele seria expor-se a uma imediata captura. Claro está que o automóvel não pertencia a Webb. O jovem o roubara aquela mesma tarde, à última hora, em um dos bairros do Oeste. Mas de qual­quer maneira era necessário abandoná-lo o quan­to antes e num lugar que não indicasse aos seus perseguidores o seu verdadeiro destino.

Abandonaram, em consequência, e depois de uma rápida deliberação, a ideia de seguir direta­mente para Sudoeste até Kensington. Depois de cruzar o arroio Pennypack, viraram à direita, e, serpenteando para evitar perseguição pelas ruelas do bairro de Mayfair, seguiram em direção geral do Norte-noroeste.

Cruzaram a avenida Frankfort e respiraram aliviados. Estendia-se à frente deles a ampla avenida Cottman, pela qual poderiam rodar quan­to quisessem; sem nenhum contratempo assim fizeram por umas três milhas, com tráfego quase nulo.

Aproximavam-se já do bairro residencial de Burholme, e Fremont começava a enervar-se, pois estavam há muito tempo no carro e ele sabia muito bem que o telefone e o rádio andam, mas rápido do que o mais veloz dos automóveis, quando Webb pisou repentinamente no freio, e com um ranger das rodas eles pararam.

Com gestos nervosos, John deu marcha-a-ré no veículo e o enfiou, tão rápido quanto pode, em um beco, entre dois edifícios. Ali, com os faróis apagados, escutaram como se aproximava, ao longo da avenida e em direção contrária à deles o mugir da sirena de um carro da Polícia, que poucos momentos depois cruzava velozmente em frente ao esconderijo.

Não lhes restava outra alternativa senão abandonar o carro ali mesmo. Não poderiam expor-se a um novo encontro com a Polícia. A placa do automóvel já seria conhecida por todas as patrulhas da cidade.

John entregou a Fremont a sua capa de gabardina e o seu chapéu. O fugitivo abotoou-se até ao pescoço e escondeu o seu rosto o mais que pôde com a aba do chapéu. Em seguida os dois homens saíram do carro e puseram-se a andar a passos rápidos pela avenida semideserta.

Enquanto andavam, Fremont maldizia ao car­cereiro Simmons e se arrependia amargamente de não tê-lo matado também. Julgara que o guar­da, para não se complicar, correria para sua casa sem dizer nada e deixaria que outros descobris­sem a fuga, e ao invés disso aquele homem se apressara em dar o alarma.

Pouco depois chegaram na esquina da ave­nida Rising Sun. Jonh Webb achou que deviam pegar um táxi, mas Fremont rechaçou a ideia. Sabia, por experiência própria, que a Polícia sempre acabava localizando os táxis usados para "negócios particulares". Era muito melhor e mais seguro usar o bonde. Ninguém seria capaz de supor que um assassino fugitivo da prisão espe­rasse pacientemente em uma parada de bonde, e tranquilamente se confundisse com os escassos viajantes de um carro noturno.

Aproximava-se precisamente um bonde da li­nha 26. John entregou a Fremont algum dinheiro trocado e em seguida os dois homens, comportando-se como desconhecidos, subiram no bonde e sentaram-se em dois bancos dianteiros.

A sorte lhes sorria, mas não resta dúvida que a ideia de Fremont era a melhor. Viajaram no bonde até a avenida Adams. Ali desceram e esperaram o seguinte, que calhou de ser um carro da linha 50, e os conduziu até Feltonville, onde o abandonaram na esquina da avenida Wyoniing e rua Quinta. Pacientemente, esperaram na mesma esquina o bonde seguinte, e enquanto o esperavam uma patrulha da Polícia cruzou por ali, e não deu aos notívagos mais que um olhar indiferente já que esperavam inocentemente o bonde.

Outro bonde da linha 47 os conduziu ao longo das ruas Quinta e Sexta, até o cruzamento desta última com a avenida Leigh. Haviam percorrido mais de seis milhas em três bondes diferentes, dando voltas enormes, e gastando quase duas horas, mas afinal encontravam-se a menos que uma milha de seu destino que era a casa de Webb, na avenida Somerset e, o que era melhor, ninguém poderia seguir seus passos através da cidade.

Decidiram percorrer a última milha a pé. Fre­mont, astuto como uma águia, estava disposto a não se deixar fisgar no último instante. E a boas passadas puseram-se a caminhar para o Este pela avenida Lehigh. Apesar de terem eles visto algumas patrulhas, a Polícia não os viu, e às cinco e meia da manhã, mortos de cansaço e esgotados pela tremenda tensão nervosa sofrida, os dois homens entravam no andar de Webb, onde o jovem acomodou Fremont num quarto, e o dei­xou descansar, depois de comerem alguma coisa na cozinha.

John Webb dormiu até as dez da manhã, sem interrupção. No começo, apesar de seu cansaço, encontrara dificuldade em conciliar o sono, por causa da intranquilidade de ter Rocky Fremont em sua casa, imaginando a cada momento que a Polícia estava prestes a bater a sua porta, que os haviam seguido, e revivendo em sua mente todos os incidentes da noite. Mas logo adormeceu profundamente, até o momento em que uma pesada mão o sacudiu o ombro e o obrigou a des­pertar.

Levantou-se sobressaltado, supondo que a Po­lícia o havia alcançado finalmente. Seus olhos empapuçados percorreram o quarto, mas ali não existia mais ninguém além de sua irmã Cora, cuja mão se apoiava ainda em seu ombro. Radiante com o rosto que o fitava e incapaz de articular uma palavra, contemplou os olhos azuis da irmã, que o olhavam com seriedade, até que conseguisse acalmar as descompassadas batidas de seu coração.

Um pouco mais refeito, sentiu renascer sua intranquilidade ao observar que um ar de preo­cupação sombreava a face da jovem sob sua esplêndida cabeleira ruiva.

- Acorde, John - murmurou Cora. - O que há com você?

Webb lançou uma rápida olhadela no relógio sobre a mesinha de cabeceira, e sua intranqui­lidade aumentou. Não compreendia como era possível que Cora estivesse em casa às dez horas da manhã. - Deveria estar trabalhando desde as oito, que faria ela em casa àquela hora?

- Que está havendo, Cora? Veio alguém? Por que está aqui?

- Não há nada, John - respondeu ela. - Fique tranquilo. Não veio ninguém. Estou aqui porque soube que... Diga-me, John, quem é o homem que você trouxe ontem à noite para casa? Diga-me a verdade, por favor.

O jovem sentia-se um pouco mais calmo. O torpor do sono já se dissipava em seu cérebro e começava a ver as coisas com mais clareza. Além disso, sentia crescer em seu peito certa cólera contra sua irmã, por despertá-lo tão repentina­mente.

Não lhe interessa quem seja, ouviu? Para isso é que me acordou? Estou cansado, terrivelmente cansado. Passei a noite de pé, e agora você vem acordar-me com perguntas tolas... Deixe-me em paz.

Mas a jovem não desanimou.

- Escute John: não quero incomodá-lo, mas, se puder, você me deve tranquilizar. Tenho medo, John; medo por você. Fui trabalhar esta manhã, tão despreocupada, e tive conhecimento da ter­rível notícia que circula por toda a cidade. Depois me lembrei que ontem você me disse que ia tra­zer um amigo, para passar uns dias conosco, e que chegaram esta madrugada, muito tarde. Vi-os chegar. Fiz ligação com as duas coisas, e... John, por Deus, diga-me que estou enganada!

Seu irmão, recostado outra vez no leito, olhou-a friamente:

- Enganada, com quê? Que é que você teme e que supõe você? E que terrível notícia é essa que circula por toda a cidade?

- Não se fala em outra coisa em todos os lugares a não ser na fuga de Rocky Fremont, Johnny - disse a moça. - De sua fuga e do assassinato que cometeu para sair da prisão. Matou um guarda, degolando-o com uma nava­lha. Não sabia, mano? Então devo estar equi­vocada. Mas quando ouvi a notícia pensei que esse amigo que você trouxe para casa esta manhã podia ser Rocky Fremont. Sentia-me tão inquieta e tão preocupada, que pedi permissão no trabalho e vim vê-lo, para perguntar.

John Webb abaixou os olhos e olhou fixamente para o chão. Sua cabeleira revolta, cor de cinza lhe caía sobre a fronte, e seu rosto juvenil assumiu uma expressão de enfado.

- Cora, por favor, deixe-me em paz com suas preocupações e vá trabalhar!

A moça fitou-o por um momento. Seu belo rosto, iluminado pela veemência com que havia falado, tornou-se sombrio de novo. Estava sen­tada à beira da cama de seu irmão, e suas mãos finas caíram desalentadas sobre suas costas.

- John: olhe-me! Não quer dizer que este seu amigo não é Rocky Fremont? John, por favor! - acrescentou ao ver que seu irmão continuava em silêncio.

Com um gesto de impaciência, o jovem se compôs e se preparou para sair do leito.

- Pois bem, é Rocky Fremont - confirmou, irado. - Ajudei-o a sair da prisão e o trouxe para casa porque é meu amigo e desejo protegê-lo. E agora saia e deixe-me vestir. Já que você me estragou o sono, dedicar-me-ei às muitas coisas que tenho para fazer.

Cora empalideceu. Seus piores temores se viam confirmados. Sem dizer uma palavra saiu do quar­to. John a olhou saindo, e sentiu que sua atitude constituía uma reprovação silenciosa. O jovem fez um gesto irritado e começou a vestir-se.

Mas quando, já vestido, entrou numa salinha ao lado encontrou sua irmã prostrada num sofá, chorando convulsivamente. John vacilou um pou­co à porta, sentiu piedade de sua irmã e um pouco de arrependimento. Mas era incapaz de reconhecer que sua conduta não era a mais acertada e cruzou a saleta, dirigindo-se à cozinha para preparar um pouco de café. A voz de sua irmã o deteve quando ia cruzar o umbral:

- John diga-me a verdade. Tem você alguma coisa a ver com o assassinato desse guarda?

O jovem voltou-se e contemplou a face chorosa de Cora. Alegrou-se de poder responder com inteira sinceridade:

- Não, Cora e asseguro-lhe, creia que eu nem ao menos sabia que Rocky fizera tal coisa. Deve tê-lo feito dentro da prisão. Eu me limitei a esperá-lo fora, com o carro.

Ela olhou-o diretamente nos olhos e sentiu-se um pouco aliviada.

- Acredito, Johnny - e logo a inquietação voltou a atormentá-la - mas quem mais vai acre­ditar nisso? Quando se souber que você ajudou esse homem a fugir, todos pensarão que o ajudou também a matar o guarda. Johnny - soluçou - podem... podem levá-lo a cadeira elétrica, por causa disso!

O rosto do jovem se endureceu e um raio de temor iluminou seus olhos azuis como os de sua irmã. Mas, quase imediatamente, procurou refazer-se.

- Ninguém precisa saber disso, nunca - afir­mou. - Só você o sabe, e acho que não pensará em denunciar-me. E, além disso, é assunto meu que não deve preocupá-la.

- Johnny! - exclamou a moça em tom ferido. - Acredita mesmo que não deve preocupar-me o que possa acontecer com você? Sou sua irmã, e você não tem outro parente no mundo. Como não hei de preocupar-me? - rompeu em pranto nova­mente, em silêncio, com grossas lágrimas, que lhe corriam pela face. John a olhava, imóvel na porta, sem saber o que dizer. – E além disso continuou a jovem você é capaz de dizer-me que eu não pensarei em denunciá-lo. Será que dei motivo al­guma vez para que você temesse tal coisa? Você sim, em troca, me tem dado motivo para preo­cupar-me com você e com a sua espécie de vida.

Desde que morreu mamãe, há três anos, sua vida tem sido cada vez mais irregular, nunca o reprovei abertamente, Johnny, você bem o sabe, mas sempre doeu-me ver a classe de companhias que frequentava e os perigos que se expunha.

-Isso são tolices! - protestou o jovem en­fadado. - Numa cidade como esta, tem-se que ser duro, se se quer progredir. E para progredir é preciso muito dinheiro no mínimo tempo possível e isso não se consegue de braços cruzados.

- Mas John, o dinheiro não é tudo. Como teríamos sido mais felizes, ainda que com menos dinheiro, se você se tivesse dedicado ao trabalho honesto! Você trouxe em certas ocasiões muito dinheiro para casa, bem sei; mas digo que muitas vezes senti repugnância de tocar nesse dinheiro porque pão sabia ao certo como era ganho. E você também sabe que outras vezes passávamos longos períodos sem que trouxesse um dólar sequer, e tivemos que viver com o que eu ganho nos armazéns Wanamalcer.

- Está vendo? - disse John, amargamente. - Agora reprova-me, porque, em algumas oca­siões de "seca", tive que viver à sua custa!

- Não o reprovo, querido - a voz da moça era comovedora - Ainda agora, me sentiria feliz se você renunciasse a companhias como a de Rocky Fremont e ficasse o dia todo em casa, sem fazer nada. Com o meu ordenado, poderíamos viver em paz e tranquilos.

- Está me confundindo, Cora! Será que você pensa que pertenço à classe de homens que gostam de ser sustentados por mulher?

- Então, John, procure um emprego estável e, honesto. Abandone essa vida de sobressaltos e, perigos, separe-se desses falsos amigos que só o conduzem à ruína, e comecemos novamente. Veja a situação em que se encontra agora. Arrisca-se a ser agarrado pela Polícia, quando menos o esperar, e acusado de cumplicidade em um as­sassinato. Não sei, nem me interessa saber, quan­tas outras você já fez do mesmo gênero, até agora. Mas esta é muito grave, Johnny, e se até agora você teve sorte, é possível que a sorte o abandone. Dizem na cidade que o assunto de Rocky Fremont pertence ao FBI. E bem sabe que o FBI não alisa. São gente muito esperta, e que quando começa uma coisa, não a abandona até terminá-la. Acabarão agarrando Rocky Fre­mont outra vez, o mandarão para a cadeira elé­trica e... Johnny! Não vê que fico doida, vendo que podem fazer o mesmo com você?

Webb permaneceu imóvel, pensativo. Sabia de sobra que sua irmã tinha toda a razão. Nunca falara com ela de suas atividades, que procurou ocultar cuidadosamente. Mas muitas vezes, princi­palmente no começo de sua associação com cri­minosos e traficante de drogas, havia repetido a si mesmo os argumentos que agora despejava sobre sua irmã. O ganho fácil obstava-lhe, todavia, qualquer possibilidade de ver a razão. Agora, se bem que se negasse a reconhecê-lo, estava com medo. Era inegável que se fosse agar­rado com Fremont, seria acusado junto com este, do assassinato do guarda, embora não tivesse participação nenhuma do feito.

E dava-se conta de que a tormenta da indig­nação pública que o crime brutal levantara, só se aquietaria com o sangue dos que fossem con­siderados seus autores. Sentiu que o medo lhe oprimia o coração. Uma coisa era transportar pe­queninos pacotes de estupefacientes pela cidade, para entregar a desconhecidos, enfiar no bolso muitos dólares por eles, e outra muito diferente era achar-se ante a possibilidade de ser acusado de assassinato e levado à cadeira elétrica.

Cora continuava falando com a voz entrecortada pelos soluços:

- Johnny, atenda-me! Deixe tudo isso e vamos embora mesmo da cidade. Temos ainda algum dinheiro. Com ele poderíamos ir para o Oeste, para algum lugarejo, onde ninguém nos conheça. Ou, se você achar necessário, passar para o México. Ali estaríamos em completa segurança, e ninguém nos molestaria jamais. Encontraríamos sempre algum emprego e começaríamos nova vida. Johnny: façamos isso! Siga meu conselho, por favor!

O ar de pânico que se havia estampado no rosto do jovem não desaparecera ainda, e ouvindo a proposta de sua irmã sentiu-se tentado de aceitá-la e de seguir a sua ideia naquele momento. Mas pensou no homem que dormia no quarto dos fundos, e vacilou. Procurou dominar seu torpor e pensar com clareza. Deu-se conta de que era de­masiado tarde. Não podia fugir e deixar Fremont em sua casa, abandonado, porque isso de nada adiantaria. Fremont, sozinho, não levaria dois dias para cair nas mãos do FBI. E quando isso acon­tecesse, os agentes do FBI se lançariam atrás de seu faro como uma matilha de cães. E o agar­rariam, ainda que se escondesse no último rincão da terra.

Mas não poderia dizer tudo isto a sua Irmã, que lhe implorava, soluçando. Não poderia dizer-lhe que se havia metido numa aventura a qual o obrigava a lutar até o fim. E não podia dizer-lhe, embora fosse verdade, que agora estava amar­gamente arrependido de ter começado a aventura. Por isso, apertou os maxilares e disse, brusca­mente:

- Não pode ser, Cora. Tudo isso são contos de fada. Ficaremos aqui, e o que você deve fazer é dedicar-se ao trabalho e não se meter em meus negócios.

E preparou-se para voltar-se e entrar na cozi­nha. Mas o reteve o som de um sorriso desagradável que vinha de uma outra parte da casa. Os dois irmãos voltaram-se, sobressaltados, e depa­raram com a figura tosca e grosseira de Rocky Premont, emoldurada pela porta. O criminoso pa­receu estar muito satisfeito, e avançou lentamente até o centro da sala. Cora sentiu que um calafrio lhe percorria a espinha, quando percebeu que a sua risada não se estendia até seus olhos pardos, frios e cruéis, fixos nela com velada admiração.

- He, he! - riu Fremont. -— Muito bem res­pondido, Johnny, amigo. As mulheres não devem meter-se jamais nos negócios dos homens. E eu ficaria muito, muito, muito desgostoso, senhorita, se você conseguisse convencer o meu amigo Johnny a realizar as disparatadas ideias que aca­ba de apresentar. Mas Johnny, nunca me disse que tinha uma amiga tão encantadora. Pois supo­nho que não seja sua mulher, não é mesmo? Nun­ca disse que era casado. Quer fazer o favor de apresentar-me?

Webb o contemplou durante uns instantes. Não lhe passara despercebida a ameaça mortal que vi­brou na voz de Rocky, ao falar, arrastando as sílabas, de seu desgosto no caso de decidir a se­guir os conselhos de Cora. E ao afastar seus olhos dos de Fremont, um momento depois, in­capaz de resistir o fogo do olhar do assassino, e olhar para sua irmã, observou que Cora estava francamente assustada e que também percebera a ameaça.

- É minha irmã, Cora - disse afinal o jovem com certa repugnância. - Cora: este é Rocky Fre­mont - completou, desnecessariamente.

E depois deu meia volta e meteu-se na cozinha. Rocky arqueou as espessas sobrancelhas.

- Ah! Quer dizer que você é irmã de Johnny? Ora, ora!

Cora se levantou. Não podia suportar a proxi­midade daquele homem.

- Sim. E agora, o senhor me perdoará, mister Fremont, mas tenho que voltar ao meu trabalho. Até logo.

Tinha que passar ao lado do homem para che­gar à porta e sentindo em seu rosto a repulsa que a agitava, avançou diretamente. Mas Rocky agarrou-a pelo braço, ao passar junto dele, e obrigou-a a voltar-se e fitá-lo.

- Tenho muito prazer em conhecê-la, mocinha - disse-lhe, enfaticamente e enchendo de profun­do significado cada uma de suas palavras. - E espero que não venha a me arrepender disso. Já sabe que recuso toda publicidade, e que não gos­taria que meus admiradores, que são muitos, sou­bessem onde me encontro. Poderiam vir me pedir autógrafos, e isso me aborrece demais e quando alguma coisa me aborrece, os que estão perto de mim têm motivo para não se sentir muito bem, compreende? Agora pode ir andando, mas não esqueça isso.

E com um gesto brusco empurrou-a em direção à porta. Cora fitou-o assustada. Compreendera perfeitamente. E, apanhando a sua bolsa, saiu pre­cipitadamente de casa.

Os dias que se seguiram foram os mais ter­ríveis que Cora jamais tivera. Nem na época em que se torturava de intranquilidade pelo gênero de vida de seu irmão, nem nas longas noi­tes de vigília, aguardando o regresso de John, com a preocupação constante de que teria sofrido qualquer contratempo, nem sequer durante aque­las duas semanas mortais, dez meses antes, quan­do John desapareceu sem uma palavra de aviso e Cora pensou enlouquecer de angústia sem atre­ver-se a avisar a Polícia, porque supunha, e com razão, que o desaparecimento de seu irmão se relacionava com a notícia da captura de Fremont, a moça sofrerá tanto.

Os jornais publicaram uma fotografia em ta­manho grande de Rocky, alertando toda a popu­lação e pedindo a cooperação com a Polícia no descobrimento do assassino, e constantemente publicavam detalhes de seu crime e referências às constantes investigações que a Polícia e o FBI realizavam. A cidade vivia em estado de tensão, e não se falava de outra coisa em toda a parte. Ao cabo de dois ou três dias, sem se conseguir resultados positivos, começaram a surgir críticas severas às autoridades que permitiam que um criminoso tão perigoso como Rocky Fremont continuasse em liberdade, ao mesmo tempo em que se publicavam detalhes, cada vez mais contundentes, da vida acidentada do "gangster".

Enquanto isso, Fremont continuava escondido na casa dos Webb, sem atrever-se sequer a chegar a uma janela com receio de ser visto. E Cora, que se consumia a olhos vistos, prosseguia fre­quentando seu emprego, sombria e silenciosa, nos grandes armazéns Wanamaker, da rua Market, sentindo sobre si a tremenda responsabilidade de possuir o segredo.

O mais terrível, no entanto, para a moça eram os momentos em que, terminado seu trabalho, tinha que trancar-se dentro de casa, em compa­nhia de seu irmão e daquele monstro que lhes im­punha a sua vontade e, sabendo o que sabia dele, se via obrigada a escutar os seus odiosos planos para o futuro.

Porque Fremont já não se recatava de falar com toda a liberdade, e às vezes parecia ter pra­zer em evocar os piores crimes e os atos mais repugnantes cometidos por ele, com o único ob­jetivo de desgostar e horrorizar a moça. Parecia ufanar-se de ter roubado, de ter traído o seu país e aos seus amigos, de ter-se mostrado duro e im­placável com seus inimigos, de haver alimentado a degradação e a miséria por meio do tráfico de entorpecentes, e até de ter assassinado.

Durante aquelas conversações, John mantinha-se silencioso e evitava tenazmente o olhar de sua irmã, enquanto que a jovem, sentindo um horror e uma repugnância que a invadiam até a alma, tentava em vão deixar de ouvir a voz estúpida e desagradável do assassino.

Fremont parecia considerar John Webb como uma espécie de criado. Instalara-se na casa como dono e senhor, e tratava Cora e seu irmão, mas sobretudo este, sem a menor cerimônia e com o despotismo de um autocrata. Ao menor pretexto, atirava-lhe os maiores insultos, empregando um vocabulário indigno, e sem ter a menor conside­ração com a presença de Cora. E sempre que isto ocorria, John baixava a cabeça e permanecia si­lencioso, fugindo ao olhar de sua irmã.

Além disso, Fremont incumbia John constan­temente de missões que a Cora pareciam extre­mamente perigosas. Não o eram, na verdade, pois não interessava a Rocky de modo algum, enquanto estivesse em casa dos Webb, que John corresse qualquer perigo. Se o jovem fosse detido, o en­dereço anotado de sua casa forneceria à Polícia uma diligência imediata.

Mas em duas ou três ocasiões John recebeu a incumbência de estabelecer contato com alguns, outros "gangsters", que faziam parte do bando dissolvido de Fremont, para tratar de uma futura reorganização do negócio. Mas o jovem voltou sempre desanimado, manifestando insucesso. Era completamente imprudente fazer qualquer coisa enquanto a cidade em peso clamasse pela cabeça de Fremont e o escândalo de sua fuga não acal­masse. Com prudência, todos aqueles que em al­guma época tiveram relações com o criminoso, mantinham-se ocultos.

Era assim que Rocky raciocinava, e nos pla­nos que traçava esperançosamente, sentado no sofá mais cômodo da saleta dos Webb, figurava sempre a espera em primeiro lugar. Ali ficaria escondido até que o alvoroço se acalmasse e o povo esquecesse a sua fuga e o seu crime. Cora desesperava com a hipótese de transcorrerem meses antes que tal coisa acontecesse.

Fremont falava dos esplêndidos negócios que ia realizar quando lhe fosse possível atuar de novo, e a ambição fazia brilhar seus pequenos olhos cruéis. Mas, enquanto isso, as escassas eco­nomias dos Webb eram consumidas rapidamente na compra das coisas que Fremont afirmava ne­cessitar urgentemente. Obrigou a John, por exem­plo, que lhe adquirisse duas roupas, uma capa de gabardina, dois chapéus, vários jogos comple­tos de roupas brancas, sapatos, etc. Fê-lo também comprar munição para o revólver que arrebata­ra de Simmons e um coldre para a mesma.

O jovem cumpriu todos os encargos sem recla­mar, apesar do desespero que via nos olhos de sua irmã cada vez que recebia nova incumbência, porque Cora imaginava que quando o rapaz en­trasse numa loja e pedisse um daqueles artigos, o pessoal veria logo que o pedido era destinado a Rocky.

Cora não voltou a falar com seu irmão da aflitiva situação. Na realidade, não conversou mais com ele, pois só em raríssimas ocasiões e por es­cassos momentos podiam os dois irmãos ver-se livres da perpétua presença de Fremont. Mas a moça, vendo que seu irmão, convertido em abjeto lacaio do bandido, maravilhava-se como John po­dia suportar impassível tal estado de coisas.

A preocupação constante de Cora era a de en­contrar uma saída para o terrível atoleiro em que se viam metidos. Era necessário resolver a situação o quanto antes, de uma ou de outra ma­neira. Vinha constantemente à sua cabeça a ideia de denunciar Fremont ao FBI. Sabia que tal coisa acarretaria a morte do assassino na cadeira elétrica. Mas apesar de ser ela uma moça de sen­timentos delicados, isso não a perturbava de modo algum. Odiava o assassino e tudo o que ele re­presentava com todas as forças do coração.

Mas sabia que não poderia denunciá-lo. A cap­tura de Fremont acarretaria a de seu irmão, e ela jamais faria algo que pudesse redundar em prejuízo para seu irmão. Não, não podia fazer isso. Tinha que arranjar outra solução. E Cora desesperava e passava as noites sem dormir, fe­chada a chave em seu quarto, remoendo o assun­to em sua cabeça, tentando achar uma saída que não existia.

Uma tarde, ao término de seu trabalho, Cora regressava a casa, sentindo, como de costume, a apreensão de que durante a sua ausência tivesse acontecido algo inesperado, temia sempre que a Polícia pudesse ter chegado lá enquanto ela estava fora. Mas ao descer as escadas do trem elevado e tomar a avenida Somerset, não observou nada anormal por perto de sua casa, e tranquili­zou-se.

Subiu ao sexto andar e, sentindo a habitual repugnância de deparar com Rocky, girou a chave na fechadura e entrou. Encontrou o assas­sino sentado em sua poltrona, na saleta e, sem pronunciar uma palavra, dirigiu-se para o seu quarto, acompanhada pelos olhos de Rocky que fumava taciturnamente.

Não viu o menor sinal de seu irmão e decidiu voltar e perguntar a Fremont o que fez depois de desfazer-se de sua bolsa e de sua capa. De pé na porta da sala perguntou ao homem:

- Meu irmão não está em casa?

- Não, respondeu ele. - Mandei-o levar um recado e ainda vai se demorar: - E, ao observar que ela se voltava, com intenção de deixá-lo no­vamente só, acrescentou rapidamente: Não se vá, menina. Venha aqui e converse comigo. Estou aborrecido e necessito falar com alguém.

Cora se deteve. Sentiu muita vontade de dar-lhe uma boa resposta e desaparecer, mas a ver­dade é que sentiu medo de Rocky. Os frios olhos pardos do assassino pareciam paralisar-lhe o cé­rebro e obrigá-la a ceder a todas as suas vontades. Mesmo assim, permanecia imóvel no umbral, procurando uma desculpa que lhe permitisse de­saparecer.

- Não me ouviu, menina? - reiterou, suave­mente, a voz de Fremont. - Disse-lhe que venha sentar-se aqui.

A moça cedeu. Sentia-se incapaz- de resistir. Aproximou-se de Rocky e sentou-se na poltrona fronteira, julgando, cheia de repugnância e desespero, que teria, agora, que aguentar alguma das intermináveis histórias de crime do outro.

Mas Fremont não começou a falar imediatamen­te. Seus frios olhos estavam cravados apreciativamente na moça, percorrendo toda a sua encan­tadora figura, enquanto fumava silenciosamente. Ao cabo de um momento, Cora não pôde resistir mais ao silêncio. Quando o bandido falava era bastante desagradável, mas muito pior era per­manecer diante dele, sozinha, em silêncio, enquan­to sentia os olhos do homem percorrerem todo o seu corpo.

- Aonde foi meu irmão? - perguntou afinal. - Vai demorar muito? Espero que o senhor não o tenha mandado fazer algo perigoso.

Ele fez um gesto tranquilizador.

- Não se preocupe, moça. Seu irmão ainda vai demorar um pouco, mas não corre perigo nenhum. Gosto demais dele para deixá-lo correr qualquer risco.

Fez-se novamente o silêncio que parecia opri­mir Cora fisicamente. A moça estava reunindo toda a sua coragem para levantar-se e ir embora, quando Fremont falou de novo:

- Quantos anos você tem?

- Vinte, respondeu Cora sem fitá-lo.

- É muito jovem - comentou Rocky - mas me parece que já pode saber muita coisa. Já pen­sou alguma vez no que pode esperar da vida, tendo em conta a situação em que se encontra?

A moça o olhou, surpresa. O tom do bandido era quase humano. Parecia como se, sinceramen­te, se condoesse pela triste situação que a cabeça tola de John havia arranjado para sua irmã. Sua voz vibrava com acentos que Cora acreditou afetuosos e paternais. Fremont continuava fumando, olhando-a com olhos inexpressivos, e Cora admirou-se pensando com era possível que um homem tão duro e calejado como Rocky pudesse sentir alguma coisa tão delicada como compaixão por ela.

- Sim, já pensei muitas vezes, respondeu lentamente. - E sei que não posso esperar uma vida normal, pelo menos, enquanto John não iniciar uma outra, em outro lugar, longe de tudo isto.

Fremont desfez essa ideia com um movimento da mão.

- Isso é impossível, menina. Completamente irrealizável. John não pode começar outra vida em nenhum outro lugar. Ele iniciou uma carreira e deverá segui-la até o fim, como acontece comigo. Seu irmão chegará, com o tempo, a converter-se no que eu sou, e quanto mais cedo você se for acostumando com esta ideia, melhor. Isto lhe permitirá moldar a sua vida a estas coisas e tirar dela o melhor proveito possível.

Fascinada, a moça não podia separar seus olhos dos de Fremont. Sabia que o que dizia era ver­dade, mas, apesar de tudo, fazia força para não acreditar. Era terrível pensar que seu irmão, seu querido irmão, chegaria algum dia a ser como Fremont, e converter-se, talvez, num assassino também.

Fremont continuava falando, mas agora num tom surpreendentemente diferente:

- Eu, em seu lugar, não me preocuparia demasiado. Com o seu tipo e a sua beleza, encontrará todas as portas abertas, contanto que não queira ser demasiado puritana. A isto me referia quando disse que deve moldar a sua vida à ideia irrefutável de que seu irmão já é um criminoso e o será durante toda a sua vida.

O "gangster" fez uma pausa. Cora permanecia fitando-o atentamente, hipnotizada, mas a moça não pensava agora nos delicados sentimentos que Fremont pudesse abrigar. Um sentimento de repugnância e de horror dilacerava-lhe o coração ao perceber que o que o assassino estava propondo era que ela, a semelhança de seu irmão, que já não merecia nenhuma compaixão das leis por lhes negar o devido respeito, ela deveria negar todos os preceitos de moralidade, para equiparar-se a ele.

- Seguindo meu conselho, continuou Fremont, não há dúvida de que sua vida poderia ser um grande êxito. Em vez de passar oito horas ven­dendo o que quer que seja que você vende nesses armazéns onde trabalha, eu poderia apresentá-la a amigos meus que, tão facilmente como se acende uma lâmpada, a converteriam da noite para o dia na mais cintilante estrela de "music hall" de toda a Filadélfia. Para isso, com a sua beleza, não precisa nem de aprender a cantar. Bastaria que não fosse demasiado escrupulosa quando às com­panhias que teria de frequentar, nem quanto à conduta dessas companhias e também para con­seguir a minha ajuda.

Fremont acompanhou suas últimas palavras com um olhar significativo. Cora continuava imó­vel e silenciosa, e o homem, depois de amassar a ponta de seu cigarro num cinzeiro, inclinou-se para frente, prosseguiu com rapidez, propondo-se deslumbrar a jovem.

- Você ganharia milhares de dólares por noi­te. Toda Filadélfia se prostraria a seus pés, men­digando o favor de um sorriso seu. As joias mais caras seriam oferecidas e você possuiria as flo­res mais raras e as peles mais preciosas. Os ho­mens enlouqueceriam por sua causa, e de todos os recantos do país viriam oferecer-lhe os contra­tos mais vantajosos. O cinema, a televisão, o di­nheiro e a fama estariam à sua disposição. Tudo isso pode ser seu, precisa apenas se mostrar um pouco compreensiva e se associar comigo.

Os olhos do homem brilhavam agora de repri­mida excitação. Parecia que era para ele mesmo que se oferecia a maravilhosa perspectiva que acabava de pintar. Cora não pôde resistir mais. Era preciso que estivesse cega para não ver as intenções de Fremont. De um salto pôs-se de pé, indignada e desafiadora em sua frente.

- Jamais! - gritou - jamais! Antes morrer mil vezes do que associar-me com gente da sua espécie. Odeio-o e o desprezo com toda a minha alma! O senhor não passa de um miserável as­sassino, e ainda que me oferecesse todos os te­souros do mundo, continuaria dando-me nojo à simples ideia de estar a seu lado!

A moça apresentava uma estampa belíssima. Radiante, com os formosos olhos faiscantes, a boca entreaberta e o belo rosto pálido de cólera e indignação, não era a visão mais adequada para apagar a paixão doentia que dominava Fremont. Com um grunhido selvagem levantou-se também e avançou para ela.

- Rocky Fremont: se não desistir imediata­mente de sua pretensão cega, sairei para a esca­daria e gritarei para todo o mundo que está aqui! Mandá-lo-ei para a cadeira elétrica!

O homem se deteve. Durante um momento contemplou a moça especulativamente. Mas viu que ela falava a sério, e que era muito capaz de levar a cabo a sua ameaça. Os olhos de Rocky estreitaram-se e a ávida expressão de paixão incontrolada foi dando lugar a outra de cálculo temeroso. Perguntou:

- E seria capaz de mandar também a seu irmão? Porque, se você me denunciar seu irmão virá comigo.

- Seria capaz de tudo - afirmou resolutamen­te a moça - para ver-me livre do senhor. E o meu irmão o mataria.

- Não estou muito certo disso - o tom de Rocky era sarcástico. - Pode ocorrer que, se seu irmão se fizer de bobo, ele mesmo saia perden­do. Pode pensar nisso, enquanto decide da con­veniência ou não de contar-lhe tudo isto. De qual­quer forma, menina, eu não queria mais que o seu próprio bem. Fiz uma proposta, mas se não lhe interessa, na minha opinião não há mais ra­zão para falar do assunto. Esqueça e sejamos tão amigos quanto antes.

Cora limitou-se a olhá-lo com todo o desprezo de que foi capaz. Sentiu um alívio tremendo ao ver que, aparentemente, o bandido abandonava seus propósitos, mas com o alívio sentiu a na­tural reação. Um tremor nervoso lhe sacudia o corpo todo, suas pernas pareciam incapazes de suportá-lo e sentiu que se encontrava na iminên­cia de um ataque de nervos. Sem pronunciar ne­nhuma palavra, voltou-se e saiu correndo da sala, trancando-se em seu quarto a chave. Atirou-se de bruços sobre a cama e começou a chorar descon­soladamente, desabafando todo o medo e todo o desespero e horror que vinha guardando nos últi­mos dias.

Depois de algum tempo, já mais calma, come­çou a decidir se diria ou não a John o que se passara. Achava que se contasse a John o inci­dente, seu irmão se sentiria tão indignado quanto ela própria, e se apressaria em tirar Fremont da casa. Mas, pouco depois não sentia tanta certe­za. John se comportava de um modo muito es­quisito nos últimos dias, e de sua nova atitude de abjeta submissão ao bandido se poderia espe­rar qualquer coisa.

Por outro lado, se John a defendesse e preten­desse impor-se a Fremont, talvez os dois ho­mens lutassem, e em tal luta John poderia levar a pior. Que faria ela se o criminoso matasse ou ferisse seu irmão? Não se culparia a vida toda pelo fato de John ter morrido por sua causa? Poderia ela aceitar tal responsabilidade? Não, de maneira nenhuma. Cora deu-se conta de que não lhe restava outra saída senão continuar aguar­dando como até agora, e fazer como dissera Fre­mont, como se nada tivesse ocorrido.

Chegara a esta conclusão, e continuava soluçan­do silenciosamente, estendida na cama, quando olhou para a porta do pavimento e notou que seu irmão havia voltado. Sorrateiramente levantou-se e entreabriu a porta de seu quarto, para ouvir o que os dois homens diziam.

Ouviu as palavras de saudação que ambos tro­caram e depois a voz áspera de Fremont, que perguntava bruscamente, com aquele seu tom autoritário, se John tinha visto um tal de Frankie.

John, com desculpas e humildade, reconheceu que não pudera encontrá-lo, e então, durante um espaço de tempo, outra coisa não se ouviu senão a voz do "gangster", que blasfemando e maldi­zendo, cobria John de insultos, reprovando sua estupidez e falta de expediente. Rocky mostrava-se muito aborrecido e furioso, e Cora ouvindo as frágeis respostas ocasionais de seu irmão, sen­tiu-se mais desalentada que nunca.

John não se atreveria jamais a enfrentar Ro­cky. Cora sabia que seu irmão tinha medo, um verdadeiro pânico dos estouros do assassino, e jamais se atreveria a fazer qualquer coisa que pudesse provocar um daqueles acessos de fúria. Era inútil contar-lhe qualquer coisa do ocorrido naquela tarde. Ouviu seu irmão perguntar debilmente por ela, e a indiferente resposta de Rocky, que afirmava que a pequena não se sentia bem e se recolhera ao quarto. E uma vez mais Cora admirou a inegável sagacidade do criminoso. Ro­cky estava seguro de que ela nada diria a seu irmão.

Fez-se uma pausa e depois Cora, que continua­va escutando atrás da porta, ouviu uma exclama­ção de Rocky:

- Olhe, John! Veja aquele homem que vai pela calçada em frente, junto da farmácia! Sabe quem é?

Cora imaginou Rocky olhando para a rua, pela Vidraça, enquanto seu irmão se aproximava dele.

- Não sei quem é. Não o conheço - ouviu John responder.

- Pois observe-o bem, prosseguiu a voz exci­tada de Fremont. - É nada menos que James Morrow, agente do FBI. É o homem que me prendeu e me mandou para a cadeia. E agora deve estar-me procurando. Aposto! Veja como observa as casas e as pessoas! Maldito! Depois de uma pausa, ouviu-se outra vez a voz de Fre­mont com perceptível alívio: - Já vai embora! Não acredito que tenha alguma pista, por en­quanto. Mas escute, Johnny, não podemos deixar que Morrow continue investigando. E só existe um modo para ele que é muito esperto e acabará encontrando nosso esconderijo, você tem que im­pedi-lo de continuar investigando, tem que matá-lo.

Cora sentiu que o sangue lhe gelava nas veias. E um frio terror paralisou-lhe o coração com a frase:

- Você ficará encarregado de matá-lo, Johnny. Não há mais remédio, porque eu não posso sair daqui. Será muito fácil, vai ver. O que você vai fazer é o seguinte. Primeiro...

Cora não ouviu mais. Parecia flutuar numa espécie de nuvem. Às tontas, dirigiu-se para a cama. Só imaginava que aquele monstro ia trans­formar seu irmão num assassino. E deixando-se cair sobre o leito desmaiou.

Cora não sabia quanto tempo permanecera inconsciente, estendida na cama, de bruços. Mas não devia ser muito, porque observou que ainda penetravam no quarto os últimos resplendores do dia. Durante um momento continuou deitada, num estado de inconsciência feliz. Conti­nuava sozinha e parecia flutuar numa atmosfera de irrealidade, como se se encontrasse separada da todas as coisas do mundo.

Mas logo chegaram a seus ouvidos as vozes de seu irmão e de Fremont, que continuavam fa­lando na saleta, e imediatamente lembrou-se de tudo que tinha ouvido antes. Recompôs-se, assus­tada, e sentiu que sobre ela voltava a cair, dura e cruel, toda a terrível realidade.

Um suor frio cobriu-lhe a fronte e sentiu o agitado palpitar de seu assustado coração. Volta­vam a repetir-se as horrendas palavras. Seu ir­mão John ia converter-se em um assassino! Re­torceu as mãos desesperadamente, sentindo-se im­potente. Tinha certeza, toda a certeza, de que seu irmão obedeceria à ordem monstruosa de seu chefe. E ela nada podia fazer para evitá-lo.

Sentiu vontade de sair do seu quarto e en­frentar os dois homens. Queria gritar, desabafar, expulsar aquele criminoso malvado de sua casa, reprovar o abjeto servilismo de John, domar os dois e obrigá-los a retornar ao bom caminho.

Mas conteve-se. Não passava de uma frágil menina, e eles ririam e fariam troça. Além disso, não possuía o valor suficiente para enfrentar ou­tra vez a fera em forma de gente que era Fre­mont. Sabia que, enquanto ele fixasse sobre ela o frio e cruel olhar de seus olhos pardos, ela per­maneceria imóvel e fascinada, e não seria capaz de dizer nada.

Apesar disso era necessário fazer alguma coisa. Para o próprio bem de seu irmão ela não poderia permitir que ele manchasse suas mãos de sangue. Já era bastante ser acusado de cumplicidade no assassinato cio guarda do presídio, mas seria mui­tíssimo pior se na realidade se convertesse num assassino. Que podia fazer, bom Deus?

Sentia-se resolvida e decidida a fazer qualquer coisa para impedir que seu irmão cumprisse a sinistra ordem dada por Fremont. Mas não sabia em absoluto o que poderia fazer por ele. Deba­tia-se num inferno de incerteza e indecisão, per­cebendo, com o coração esfacelado, que lhe seria impossível deter a marcha inexorável dos acon­tecimentos. Pensou enlouquecer.

Mas de repente vieram a sua lembrança umas palavras que seu irmão dissera naquela mesma manhã em que Fremont chegara em casa. John dissera: "Só você sabe que ajudei Fremont a esca­par", e em seguida acrescentou: "Suponho que não pensará em denunciar-me."

Cora ficou pensativa. Quando seu irmão disse aquilo, ela afastara indignada a simples ideia de vir algum dia a denunciar seu irmão. Mas então se tratava de livrar seu irmão da possibilidade de ser acusado de cumplicidade num assassinato. Mas agora tratava-se de evitar que seu irmão se con­vertesse num verdadeiro assassino. Não seria me­lhor permitir que John corresse o risco de ser considerado cúmplice, ao invés de manchar suas mãos de sangue? O primeiro perigo era apenas provável, enquanto que o segundo, se ela não fizesse alguma coisa para evitá-lo, era certo que aconteceria, e se converteria em alguma coisa real e tangível, talvez no dia imediato.

Bem, e o que aconteceria se ela denunciasse Fremont à Polícia? Poderia dizer ao FBI que seu irmão estava sendo submetido a uma chantagem, a uma coação desumana, por parte do bandido, e que ela, agindo por conta e sob as instruções de seu irmão, denunciava o assassino que estava arruinando suas vidas. Os agentes viriam buscar Fremont e o deferiam, e se acreditassem no que ela lhes contasse, considerariam John como um herói que vivera oprimido pela vontade de ferro de Fremont, mas que soubera, por intermédio de sua irmã, entregar o criminoso à Polícia.

Poderia fazê-lo assim. Mas, e se os agentes do FBI, que tinham fama de ser muito espertos, não acreditassem na história e descobrissem que foi John quem ajudou Fremont a escapar? Então, sem dúvida nenhuma, John se veria em maus lençóis e a acusaria de tê-lo metido em semelhan­te situação. Voltou a pensar com terror que, como resultado de tudo isso, seu irmão poderia ser enviado para a cadeira elétrica, bastando para isto que as autoridades acreditassem que tinha alguma coisa que ver com a morte do guarda.

Esteve a ponto de abandonar completamente o piano, que de repente pareceu-lhe absurdo. Mas, sem que pudesse evitá-lo, seu cérebro continuou suas maquinações em torno dele, acrescentando detalhes e tentando descobrir um modo seguro que lhe permitisse salvar seu irmão.

Poderia fazer outra coisa. Poderia ir ao pessoal do FBI, e por que não? ao tal do James Morrow a quem John deveria matar. Sem dúvida, o tal Morrow seria alguém de importância, já que Fre­mont o odiava tão intensamente. Depois, Fremont dissera que deveria estar procurando-o. Logo, era provável que estivesse encarregado do caso. E Fremont disse também que Morrow era um ho­mem muito esperto.

Sim, poderia ir ver Morrow, e assim se dirigiria a uma pessoa determinada, ao invés de enfrentar a máquina anônima e ameaçadora do FBI. E quando estivesse frente a ele, lhe diria que se quisesse encontrar Fremont, ela lhe poderia dizer onde encontrá-lo, mas que só o diria se lhe pro­metesse clemência para seu irmão. O pessoal do FBI tinha, como todo mundo, muita ânsia de bo­tar as mãos em Rocky e sem vacilar aceitariam a sua condição. Ela contaria tudo o que se passa­ra, e com toda certeza teriam complacência com John.

Agora, tudo lhe parecia claro e sensato. Sentiu-se decidida e consideravelmente aliviada, porque pela primeira vez em todos aqueles dias tristes e sombrios via claramente o que tinha de fazer. No dia seguinte, de manhã bem cedo, ao invés de ir aos armazéns Wanamaker, iria ao FBI onde pediria para ver James Morrow. Se não o encon­trasse, esperaria, mas não voltaria outra vez para a atmosfera tensa e opressiva da casa sem tê-lo visto. A insuportável situação tinha de acabar.

Tão animada se sentiu a jovem que, esquecen­do por completo o incidente com Fremont, deci­diu sair de seu quarto e preparar alguma coisa para comer. Assim o fez e, ao penetrar na saleta, pôde observar que a conversa que os dois homens mantinham interrompeu-se bruscamente.

O olhar depravado do bandido obrigou Cora a lembrar-se de tudo quanto ocorrera à tarde e, sem poder evitá-lo, sentiu que se ruborizava até às orelhas, ficando ainda mais confusa ao imaginar que John pudesse perceber a sua perturbação. Mas o jovem parecia não perceber coisa nenhuma. Ao cortar a conversa com a entrada da moça, ficou quieto e silencioso, com os olhos pregados na mesa, sem se lembrar ao menos de perguntar a Cora sobre sua indisposição, já que Fremont lhe dissera que ela não se sentia bem.

Fremont também não estava loquaz naquela noite, ao contrário de seu costume, mas seus olhos malignos vigiavam sem parar os dois ir­mãos, e neles brilhavam uma alegria perversa, como se pensasse alguma coisa muito divertida, e que não desejasse contar aos circunstantes.

Cora guardou a garrafa de uísque que os dois homens estiveram utilizando e lhes ofereceu uns pedaços de carne. Fremont comeu com apetite, mas John limitou-se a beliscar e, reparando o lastimável estado de seu irmão, Cora sentiu-se também enfastiada. A cena transcorreu num am­biente tétrico e sombrio, sem uma palavra oca­sional sequer para romper o silêncio.

O abatimento em que seu irmão se encontrava conseguiu mudar por completo o estado de ani­mo da moça. Entrara na sala animada e quase feliz, pensando no dia seguinte que iria dar térmi­no a todo o espantoso pesadelo que estavam vivendo, mas agora já não sabia mais o que pensar. Pouco a pouco a depressão de John con­tagiou a moça, e ela já não se sentia tão segura a respeito da conveniência do que se propunha a fazer. Voltou a parecer-lhe uma ideia sem pé nem cabeça e sentiu-se perdida outra vez na indeci­são anterior.

Foi então que tomou a determinação de contar a John o seu plano. Na realidade deveria saber a sua opinião antes de tomar uma atitude tão séria como a que se propunha. E, além disso, era muito possível que, se ela se mostrasse fir­me, e o ameaçasse de levar adiante o seu pro­pósito de ir ao FBI, John renunciasse de cumprir a odiosa ordem de Fremont. Nesse caso ela renunciaria também de denunciá-los, e tudo con­tinuaria como até agora. A situação atual era bastante desagradável, mas, pelo menos, se evitaria a possibilidade, de John tornar-se um assassino.

A dificuldade estava em achar um momento para, falar com John, porque Fremont, natural­mente, não poderia inteirar-se da conversa entre os dois irmãos. Se o "gangster" viesse a conhecer os seus propósitos, não se poderia prever do que seria capaz. Poderia chegar, inclusive, a matá-los. Cora dirigiu um olhar de soslaio ao repugnante rosto de Rocky e sentiu um calafrio de pânico.

Terminada a ceia, Cora foi para a cozinha e, enquanto se entretinha ali nos seus afazeres, ou­vindo a voz baixa e sigilosa de Fremont e as la­cônicas respostas de seu irmão, planejou ir falar com John em seu quarto, depois que os dois ho­mens fossem deitar e quando Fremont estivesse dormindo. A ideia lhe pareceu boa. Pouco depois, sem uma palavra, a jovem se recolhia em seu quarto e, sem trocar a roupa, se pôs a esperar. Teve que esperar bastante, pois Fremont pa­recia querer compensar o silêncio que se impusera na ceia, e já era bem tarde quando a moça escutou os passos dos dois homens que se diri­giam aos seus respectivos quartos.

Cora ainda continuou esperando um bom boca­do. Queria estar segura de que Fremont estava dormindo, antes de se atrever a sair e cruzar o corredor até o quarto de John. Por fim, com o coração palpitando, como se estivesse a ponto de cometer um crime, Cora entreabriu silenciosa­mente a porta, cruzou sorrateiramente o corre­dor, sem fazer o menor ruído com seus pés descalços, e girando lentamente a maçaneta, em­purrou a porta do quarto de seu irmão e pene­trou no quarto.

Dera apenas dois passos quando sentiu o mo­vimento precipitado de seu irmão na cama, e ouviu sua alarmada pergunta:

- Que há? Quem está aí?

Num sussurro, o mais baixo que lhe foi possí­vel, Cora respondeu:

- Silêncio, John! Sou eu Cora. Não acenda a luz.

Enquanto se aproximava e sentava na beira da cama, ouviu o suspiro de alívio do jovem. Com profunda compaixão, Cora percebeu a tremenda tensão nervosa, o terror e os sofrimentos que também seu irmão estava experimentando na­queles dias. Também em voz baixa, John per­guntou:

- Que quer você? Por que não está dormindo?

- Queria falar-lhe a sós, John, respondeu a jovem. - Escute. Esta tarde ouvi que Fremont ordenava que você matasse esse agente do FBI. John: quero saber: você vai mesmo fazer isso?

Não podia ver seu irmão, mas sentiu seu movi­mento de impaciência. O jovem demorou-se um pouco em respondera

- Não sei por que você sempre se mete no que, não lhe interessa. Isso não é assunto seu. Vá dormir e deixe-me em paz.

Os soluços vibravam na voz de Cora ao retru­car:

- Acha mesmo que isso não me interessa? Pode afirmar com certeza que isso não é assunto meu, John? Imagina que eu possa estar tranqui­la e ir dormir sabendo que amanhã você se con­verterá num assassino, num horrível assassino, como Fremont, e que um dia eles virão, prendê-lo-ão e levarão para a cadeira elétrica? Não, Johnny; não posso estar tranquila. Johnny: tem que me prometer que não fará o que Fremont man­dou.

Fez-se silêncio na escura habitação. John não respondia. Cora aguardou um momento, e logo prosseguiu:

- John: não me ouve? Tem que me prometer! Tem que ser forte e resistir a esse malvado. Não vê que ele só quer a sua ruína? Quer que você se transforme em algo tão degradante, tão cana­lha e perverso como ele, para ter certeza de que sempre o obedecerá e de que não tentará fugir nem traí-lo. É um diabo em figura de gente, Johnny! Mas você não pode permitir que ele o arraste para a perdição... John: responda-me, diga-me que não levará a cabo esse assassinato.

Por fim ouviu-se a voz do jovem. Soava brusca e impaciente, mas sua irmã pôde notar, com sua aguda intuição feminina, que, na realidade, John estava assustado. Assustado, indeciso e atormen­tado por uma terrível luta interior.

- Cora, deixe-me em paz! Farei o que me pa­recer melhor, Estamos metidos numa luta bárba­ra, e já tenho muita coisa para pensar e você ainda vem me dar sermão. Deixe-me em paz, im­ploro!

Mas a jovem não cedeu:

- Não, John; não posso deixá-lo em paz. Não posso ficar olhando de braços cruzados enquan­to você cava a própria ruína. Não irei embora en­quanto não me prometer que não manchará as mãos de sangue. Faça-me esta promessa e me calarei, como tenho feito até aqui, e suportarei tudo o que nos puder acontecer. Mas quero que me prometa isso. John: não é verdade que você não deseja matar ninguém?

- Não, Cora, - Capitulou, fatigadamente, seu irmão. - Não desejo matar ninguém. Mas existem coisas na vida que devem ser feitas, mesmo que não se queira.

- Está vendo? Você não é um assassino. Fre­mont, provavelmente está desejando matar. Mas você não é como ele. Pode ter agido mal, ter cometido erros sem querer, mas não pode ir tão longe. Não dê atenção a Fremont, John, e me prometa que não matará ninguém.

- Não posso prometer nada, Cora, e, por favor acabe com esse negócio de me elogiar!

- John: responda-me a uma pergunta: tem medo de Fremont?

- Oh, Cora! - A voz do rapaz estava cheia de desespero. - Não tenho medo de Fremont nem de ninguém! Deixe de me atormentar! O que faço, faço por minha própria vontade e sei suportar as consequências dos meus atos.

- Você não me engana, John. Sei que tem medo desse assassino. E que chegará a cometer um crime impelido por esse medo. Mas escute-me, John, eu não tenho medo dele. E estou disposta a impedir que você faça tamanha loucura. Sim, John, sabe o que vou fazer? Vou denunciar Fre­mont ao FBI. Prendê-lo-ão e talvez também você, mas assim o salvarei de algo muito pior. Vou fazê-lo pelo seu próprio bem, e nada nem nin­guém me deterá. E se você tem tanto amor por esse assassino e quer impedir que o prendam, tem uma coisa a fazer, levante e diga a ele quais são meus planos, pois assim me matará, e os dei­xarei sozinhos e livres para fazer o que quise­rem.

Cora ouvia a agitada respiração de seu irmão. Sentiu sua mão trêmula procurar a dela.

- Cora, você não pode fazer isso. Não per­cebe? Não seria só a morte para Fremont. Eu iria também para a cadeira elétrica. Será que você quer ver seu irmão morrer? Não lembra o que você mesma disse, no dia que eu trouxe Fremont para casa? Ninguém jamais acreditará que eu não tive nada que ver com a morte do guarda. Considerar-me-iam cúmplice, julgar-me-iam e condenariam. Não vê que estou correndo um perigo terrível? Estou ligado a Fremont, de­finitivamente, e tenho de salvá-lo, para salvar-me a mim mesmo. Garanto que gostaria de nunca haver começado a aventura, mas agora não tenho mais escolha senão continuar lutando até ao fim. Pense nisso, Cora, e deixe o negócio nas mi­nhas mãos.

- Esse então é o seu receio? - Respondeu a moça. - Receia correr o mesmo risco que Rocky Fremont. Em vista disso você vai matar esse agente e atolar-se definitivamente. Ainda há agora uma possibilidade de se salvar, mas se você se torna um assassino, nunca mais haverá salvação. Já pensou nisso? Eu, sim, já pensei, e por isso estou disposta a denunciar Fremont, exceto se você me prometer que não matará ninguém.

- Por Deus, Cora, nada posso prometer! Se Fremont notar que eu não cumpro as suas or­dens ele me matará.

- Está vendo, John? Também você tem medo de Fremont. Mas eu tenho um plano para salvar-nos, e então não precisaremos ter medo de nin­guém nunca mais. Dir-lhe-ei qual é. Vou ao FBI dizendo que você me mandou. Contarei que Fre­mont tem-nos subjugados aqui, ameaçando matar-nos, e que por isso não o denunciamos antes. Mas que já não aguentamos, e por isso você me man­dou denunciá-lo. Eles nos crerão e quando vierem prender Fremont, reconhecerão que foi graças a nós, a você especialmente. Verá então que de nada o acusarão e, se chegarem a descobrir que você o ajudou a fugir do presídio, lhe perdoarão por tê-lo entregue depois.

- Não seja ingênua, Cora. - A voz do jovem soava profundamente abatida. - Já pensei nisso mais de uma vez, mas é impraticável. Ninguém acreditará que Rocky nos pôde manter em silên­cio tantos dias. Investigarão, voltará à baila a minha cumplicidade, me acusarão, e... Cora! Prometa-me que não irá ao FBI! Tenho medo!

A moça percebeu que seu irmão estava à beira de uma crise nervosa. Sabia agora que durante os dias que se passaram, sofria tanto ou mais que ela, que sua resistência estava chegando ao seu final e que, em definitivo, era inútil contar com ele para nada. Cora pensara em submeter seu plano à aprovação do irmão e julgou que encontraria nele um aliado que lhe proporciona­ria um conselho acertado, com mais clara visão da realidade, e que inclusive cooperaria na tare­fa comum de sair da espantosa situação. Mas, em lugar disso, só encontrava um homem com os nervos destruídos pela inquietação e pelo medo, incapaz de ver as coisas como realmente elas eram, e totalmente desprovido de iniciativa e co­ragem. Não, Cora não poderia contar com seu irmão. Fez-se um momento de silêncio enquanto meditava no que seria mais conveniente. Afinal decidiu:

- Está bem, John. Como queira. Farei o que você quiser. Pensei que poderia ajudá-lo, mas, se prefere seguir seu caminho, eu não o impedirei. Continuarei calada e resistirei ao que acon­tecer. Boa-noite, John.

E levantando-se dirigiu-se lentamente até a porta, saiu ao corredor e se trancou em seu quarto.

O que Cora nunca chegou a saber foi que estivera nas portas da morte em duas ou três oca­siões de sua conversa com o irmão. Fremont estivera no corredor, atrás da porta, escutando tudo que os dois jovens falaram. O criminoso, que ainda não dormia quando Cora foi ao quarto de John, ouviu as primeiras palavras alarmadas do rapaz e, percebendo o motivo que as provocaram, julgou que Cora fosse contar o incidente da tarde.

Em vista disso, e para saber a reação de John, Fremont levantou-se cautelosamente e foi escutar atrás da porta. Assim soube de tudo, e quando ouviu que Cora se propunha a denunciá-lo ao FBI e mandá-lo para a cadeira elétrica, o cére­bro negro do bandido decidiu instantaneamente matar os dois irmãos naquela noite mesmo. Mas, no final, ouviu que Cora desistia da sua ideia e, apesar de não lhe parecer muito sincera, Fremont decidiu esperar. Um pouco antes de ela sair para o corredor, escondeu-se atrás da porta da saleta. Por enquanto, deixaria a moça viver, pensou Fre­mont, mas passaria a vigiá-la mais de perto.

Às sete horas da manhã seguinte, a moça se levantou. Já formara seu plano definitivo, e estava disposta a segui-lo até o fim. Ves­tiu-se e pintou-se como todas as manhãs, e saiu de seu quarto disposta a tomar um rápido café antes de ir para o trabalho. Todos os dias, às oito horas da manhã, tinha de estar em seu posto nos grandes armazéns Wariamaker, na rua Market.

Observou que seu irmão, em lugar de estar ainda dormindo, já se levantara também. O quar­to de John estava aberto. Mas John não estava em casa. Sem dúvida saíra antes dela levantar-se, e Cora sentiu seu coração oprimido por uma sensação estranha. Era completamente anor­mal que John madrugasse tanto. Mas logo re­fez-se e não levou mais em conta a estranha au­sência de seu irmão.

Não sabia que Fremont havia obrigado John a levantar-se às seis da manhã e o mandara sair com mais um dos seus muitos recados. E também não sabia que, atrás da porta trancada de Fremont, o criminoso esperava que ela saísse de casa. Por isso, Cora, sem que nada a preve­nisse do perigo que corria, saiu confiante da casa, desceu as escadarias, chegou à rua e do­brou à esquerda, caminhando pela avenida Somerset até a estação do elevado, situado no cru­zamento com a avenida Kensington.

E atrás dela, metido em sua corja, com a gola levantada cachecol tapando a boca e o chapéu caído sobre os olhos, Rocky Fremont saiu tam­bém furtivamente à rua, pela primeira vez depois de sua fuga, e começou a perseguir a jovem, de longe, enquanto suas mãos nervosas apertavam a culatra de um revólver escondido no largo bolso da capa.

Mas nada no proceder da moça parecia excitar o receio do criminoso. A jovem subiu à escada da estação do trem aéreo adquiriu seu bilhete e es­perou tranquilamente a chegada do trem, sem perceber que, a poucos metros, a desprezível e dissimulada figura de Fremont esperava tam­bém, perdida na multidão que se dirigia ao trabalho.

O trem chegou, como de costume superlotado, e Cora viu-se envolvida pela massa humana que enchia o interior do vagão. Também Fremont estava envolvido no outro extremo do carro, mas o bandido preocupava-se apenas em conservar seu rosto escondido e de lançar de quando em quando uma olhada fugidia em Cora, para assegurar-se de que não a perdia.

O trajeto parecia à moça interminável. Era o mesmo que percorria todas as manhãs, à mesma hora, e estava tão familiarizada com ele como com o corredor de sua casa. Mas nunca o fizera no estado de ânimo que agora a possuía. Ia tomar uma atitude cujos efeitos não lhe era possível prever por completo. Constantemente se pergun­tava, agora que o momento de agir estava já tão próximo, e cada vez mais se aproximava, a cada volta da roda do trem, qual seria o resulta­do final do seu gesto.

Sentiu-se satisfeita quando o trem desceu ao nível da rua, começando, depois de uma curva, seu trajeto subterrâneo, por sob a rua Market. Já estava próxima de seu destino. Era curioso, pensou, que apesar de não se propor a ir hoje às lojas Wanamaker, tinha que saltar na mesma es­tação de todos os dias.

Por fim chegou. O trem entrou na estação sub­terrânea da rua Treze e Cora lutou para chegar até a porta automática, no meio da massa. Um momento depois achava-se na plataforma e era arrastada até a saída. Atrás dela, oculto na mul­tidão, continuava Fremont.

Mas nessas alturas, as suspeitas do criminoso Já se aplacavam. Fremont começava a sentir-se certo de que Cora se dirigia, como todos os dias, ao seu trabalho, e pensou que, efetivamente, a moça havia sido sincera quando na noite ante­rior prometera a seu irmão fazer o que ele quise­ra. Fremont hesitou um pouco entre seguir Cora até a rua e vê-la entrar nos armazéns, situados, como ele bem sabia, na esquina das ruas Market e Treze, ou voltar dali mesmo, sem sair da esta­ção e tomar um trem, retornando à avenida Somerset.

Afinal, concluindo que na realidade não havia motivo para suspeitas, decidiu apesar de tudo sair para a rua. Cora já se distanciara bastante, e não era visível entre os transeuntes. Fremont apressou-se, mas quando conseguiu alcançar o nível da rua, não pôde distinguir Cora em ne­nhum lado, apesar de dominar todo o espaço que se estendia até a porta dos armazéns Wanama­ker, e Cora não tivera tempo ainda de chegar até lá.

Por um momento Fremont permaneceu imó­vel, olhando para cima e para baixo a movimenta­da rua Market, tentando localizar a moça. Pen­sou que esta já poderia ter entrado na Wana­maker, mas raciocinando via que era impossível. Os minutos passavam lentamente, e Cora não era visível em parte nenhuma.

Foi então que, de repente, Fremont deixou escapulir uma exclamação abafada. Esquecera que a sede do FBI situava-se muito próxima dali, há uns passos apenas, na esquina das ruas Chestnut e Juniper. Seria possível que Cora o tivesse enganado e que, ao sair da estação, tomando aquela dianteira, se dirigisse ao FBI? Se assim fosse, a mataria, pensou Rocky, apertando os maxilares.

Voltou-se e pôs-se a caminhar apressadamente, apesar de preocupado em não chamar a atenção, ao longo da rua Treze. Essa rua também esta­va bem movimentada. Movia-se felinamente ten­tando divisar toda a rua, mas não via Cora em lugar nenhum. Parecia que a terra a havia tragado.

Finalmente chegava à esquina da rua Chestnut com Juniper. Encontrava-se na zona mais peri­gosa da Filadélfia para ele. A cinquenta metros de distância erguia-se o edifício Widener, sede do FBI. E àquela hora, sem dúvida, grande parte do pessoal já estaria iniciando os seus trabalhos. Qualquer um deles o poderia reconhecer, e então podia despedir-se da vida. Não era intenção de Rocky deixar-se prender como a um carneiro. Cerrou os dentes, apertou firmemente o revólver na mão e avançou decididamente.

Foi então que divisou Cora. A moça estava na calçada, há poucos passos da porta do edifício Widener. Enquanto Rock a olhava com ódio, deu aqueles passos e entrou na ampla porta. Fre­mont correu até lá. O ódio e a gana de matar en­chiam seu cérebro e seu coração. Chegou à porta. E olhou para dentro. Se tivesse visto Cora no vestíbulo, sem duvidar um segundo teria disparado sobre ela. Mas apenas viu as últimas pessoas de um grupo que entrava no elevador. Sem dúvida Cora já estava lá dentro. As portas do elevador se fecharam e não se viu mais ninguém.

Como uma fera acuada Fremont examinou suas proximidades. Já não poderia alcançar a jo­vem. Cora escapara definitivamente, e não lhe restava outro caminho senão fugir. Não poderia permanecer ali nem mais um segundo. E agora tinha certeza de que a moça ia denunciá-lo ao FBI. Rapidamente, retirou-se do lugar perigoso e afastou-se apressado do edifício. Tinha as mãos frias como o gelo, mas seu coração e seu cérebro ardiam de cólera e de raiva. Pensar que aquela menina com cara de ingênua o havia enganado de maneira tão inocente! Bem, de qualquer maneira ele sabia o que o esperava agora. Estava prevenido, e não ia se meter outra vez na casa dos Webb, à espera dos agentes do FBI.

Tinha que arranjar outro esconderijo a toda pressa. A sorte foi a sua intuição não lhe falhar essa manhã. Se tivesse ficado em casa, confiando na promessa de Cora a seu irmão, teriam che­gado e o agarrariam sem chance de escapar. Livrara-se por um tris. Mas se vingaria, sem dúvida que se vingaria! Aquela gata traidora e selvagem lhe pagaria, e bem depressa.

Enquanto isso, Cora, bem alheia ao fato de ter escapado com vida por uns segundos, pergun­tava pelo agente especial James Morrow a um po­licial uniformizado que se encontrava sentado numa espécie de antessala. O policial depois de examiná-la com ar de critica, concluiu que a bela moça seria mais uma conquista de Morrow, e lhe pediu que esperasse um momento, fazendo-a passar a um reservado para visitas.

Cora teve que esperar um bom intervalo, James Morrow ainda não havia chegado. Na verdade, o agente acabava de cruzar, naqueles instantes, com Rocky Fremont, na rua Chestnut. Os dois ho­mens passaram a poucos passos de distância, mas nem um deles viu o outro. Minutos depois Morrow entrava no escritório do FBI, e o policial lhe informava, com um olhar significativo, que havia no reservado uma agradável visita.

Desde o início James Morrow sentiu-se cativado pela beleza de sua visitante, pelo seu aspecto triste e pelo seu ar de exuberante juventude. Mal supunha o agente, ao vê-la sentada na ampla sala, olhando de um lado para outro, cheia de preocupa­da indecisão, que a jovem possuía a informação que buscava febrilmente há muitos dias.

A moça parecia um tanto nervosa, pensou Morrow, e, depois de cumprimentá-la cordialmente e instalar-se em outra cadeira em frente dela, de­dicou seus esforços a que ela se colocasse à vontade. Conseguiu-o, pelo menos em parte, com rapidez surpreendente, já que, com efeito, ela esperava ver-se frente a frente com todo o oponente aparato policial, num cubículo sombrio, onde provavelmente a submeteriam a um severo interrogatório e, ao invés disso, encontrava-se sentada comodamente em um lugar acolhedor, diante de um homem jovem e atraente, que começou a palestrar com ela jovialmente qual antigo amigo.

- Bem, senhorita - estava dizendo Morrow - não tive ainda o prazer de conhecê-la, mas pos­so afirmar-lhe que sua visita me é bastante agradável. Isto não acontece todos os dias ao chegar-se no trabalho, resignado ao sofrimento diário da rotina e dos percalços, e começar com visitas tão agradáveis, se me permite dizê-lo.      

Para sua surpresa, Cora sorria. O rosto franco e agradável do agente resplandecia de simpatia

Da figura toda de Morrow irradiava-se uma at­mosfera de cordial naturalidade, que impressio­nava Cora mais ainda, acostumada que estava, nos últimos dias, ao ambiente sombrio e opres­sivo que Fremont estabelecera em sua própria casa. Além disso, Morrow se estava esforçando ao máximo para dissipar o nervosismo da jovem. Estava acostumado a receber pessoas assustadas e nervosas, e sabia como tratá-las.

Cora decidira não fornecer seu endereço e nome, se possível, até que chegasse a uma espécie de acordo com o FBI, Dessa forma, apesar de o agente declinar seu nome logo ao início da con­versação, Cora não revelou sua identidade. E foi-lhe muito cômodo consegui-lo, pois Morrow não parecia dar a menor importância em sabê-lo, nem tão pouco saber outros detalhes, como o motivo que a levara ali. Na realidade, Morrow escava impaciente para inteirar-se de ambas as coisas, mas fazia parte de sua tática deixar que as pessoas falassem sem se sentirem compelidas a isso.

Foi Cora quem concluiu, afinal, observando:

- O senhor não vai me perguntar por que vim vê-lo, mister Morrow?

- Na verdade, senhorita, não tenho a menor pressa em saber, a menos, naturalmente, que se trate de alguma coisa em que possa ajudá-la. Nessa hipótese, terei o maior prazer em colo­car-me a sua disposição com a maior presteza. Mas, se assim não for, sinto-me encantado em permanecer aqui, conversando e admirando-a e quanto mais demorar melhor.

Cora decidiu soltar sua bomba. Se antes sen­tira medo de falar, agora sentia, principalmente, curiosidade em saber qual a reação de Morrow ao ouvir o que ela queria dizer.

- Muito obrigada, retrucou. - Mas, apesar disso, vou dizer-lhe por que vim, Mister Morrow. Sei onde está Rocky Fremont.

Por um momento os agudos olhos castanhos do agente a examinaram intensamente. Morrow ja­mais se sentira tão surpreso em sua vida. Mas não contraiu nem um músculo de seu rosto. Es­perava qualquer coisa de sua visitante anônima, menos o que acabava de ouvir. E o caso é que a jovem parecia perfeitamente normal e sincera. Não era uma daquelas pessoas que veem fantas­mas e que se apressam a espalhar as suas visões aos quatro ventos.

O agente recompôs-se, lentamente, em sua pol­trona.

- Esta notícia me surpreende, senhorita - disse. - Eu, pela lógica, imagino que deseja con­tinuar conservando o segredo de sua identidade.

Cora confirmou com a cabeça, sentindo um leve rubor no rosto.

- Bem, bem - prosseguiu Morrow. - Diga-me: está, então, disposta e me dizer onde está Rocky? Já sabe que o procuramos como a um antigo e perdido amigo. Ou será que deseja algu­ma coisa em troca dessa informação?

A moça tornou a balançar a cabeça, sorrindo ante o gracejo de Morrow sem o querer. Era bastante difícil imaginar toda a Polícia do Es­tado sentindo amizade por Fremont. Observou como o agente se reclinava em sua poltrona outra vez assumindo uma atitude de fingido pe­sar.

- A senhorita já percebeu - queixou-se com humildade - como é desagradável a vida de um policial. Pensei ao vê-la que vinha visitar-me apenas para passarmos alguns agradáveis mi­nutos de bate-papo. E, afinal, o seu motivo não poderia ser mais antipático. Mas vejo que há ura raio de esperança e que vai me dizer, desinteressadamente, onde o homem está, e com isso eu me cobrirei de glórias ante toda a cidade. Acresce ainda que me enganei: a senhorita quer algo em troca. É natural - ninguém dá sem receber, hoje em dia.

Sem poder mais conter-se, Cora soltou uma dis­creta risada. Isso era precisamente o que Morrow desejava conseguir com seus gracejos. O agente já estava convencido de que a jovem dizia a verdade e não queria de maneira nenhuma assus­tá-la ou inibi-la. Desejava que, confiantemente, Cora dissesse o que tivesse para dizer.

- Bem, pois diga-me qual é a sua condição - resumiu.

A voz de Cora era tranquila e confiante.

- Quero a promessa de que haverá clemência para outra pessoa.

Morrow levou suas mãos à cabeça, fingindo es­candalizar-se.

- Não me diga agora que deseja ser perdoada de algum crime ou contravenção. Jamais cheguei a suspeitar que estivesse em frente a uma cri­minosa.

Cora sorria abertamente. Aquelas brincadeiras tiravam toda a seriedade de uma entrevista que tanto a havia preocupado antes. E sem suspeitar que por sob aquela aparente falta de seriedade e despreocupação Morrow a submetia ao mais profundo e detido exame que jamais sofrerá em sua vida. Os olhos cinzentos do agente, penetran­tes como fagulhas, não perdiam nenhuma de suas reações, e atrás deles um cérebro perspicaz, analisava e calculava sem parar.

- Não é para mim que peço perdão - respon­deu a jovem. - É para meu ir... Bem, para outra pessoa.

- E que foi que essa outra pessoa fez? - Perguntou o agente. - Espero que não seja um crime terrível.

- Sim e não - retrucou Cora. - Ajudou Rocky a fugir do presidio.

- Bem, não é muito - comentou Morrow, a quem não escapara o lapso anterior da moça. - Se essa pessoa o ajudou a escapar e você o trancafia outra vez, ficamos quite, não é ver­dade?

- De certo modo, é verdade - concordou Cora. Hesitou um momento, mas recompôs-se e prosseguiu rapidamente. - Claro que... houve a morte do carcereiro. Mas posso garantir-lhe que a pessoa para quem peço clemência não to­mou parte nenhuma nesse assassinato.

Morrow já sabia que a pessoa em questão, que imaginava ser o irmão da sua visitante, não podia ser outra senão o homem que visitou Fre­mont no presidio na manhã anterior à sua fuga e que logo esperou-o no carro. Com o fim de tranquilizar por completo a moça, para que esta dissesse tudo o que sabia, não vacilou em afir­mar:

- Mas isso nós já sabemos. Temos certeza de que Rocky liquidou o guarda sozinho, sem que mais ninguém interviesse. Jamais pensamos em acusar outra pessoa por esse crime.

Cora sentiu-se cheia de alegria. As coisas es­tavam saindo muito melhor do que ela esperava. Aquele James Morrow era uma pessoa cheia de simpatia e compreensão. Tinha certeza de que poderia confiar nele. Seu irmão não correria perigo algum.

- Então - perguntou -posso contar com sua promessa de perdão?

- Diga-me - tateou Morrow - essa pessoa é alguém que lhe é muito caro?

- Sim, é - respondeu Cora, respondendo im­pulsivamente - é meu irmão.

- Legalmente - resumiu Morrow - não es­tou em condições de fazer-lhe essa promessa formal. Não tenho bastante autoridade para isso. Mas minha opinião é que, se por um lado temos que castigar seu irmão por ter tirado Fremont da cadeia e, por outro, temos que condecorar vocês por tornarem a metê-lo no presídio, pode­ríamos deixar as coisas como estão e fazer de conta que não houve nada. E, sem dúvida, esta será também a opinião dos meus chefes. Isso eu garanto.

- Vou confiar no senhor - afirmou Cora - e vou contar-lhe tudo.

E durante os dez minutos seguintes, a moça relatou ao agente tudo o que vinha atormentan­do o seu coração nos dias anteriores.

Começou dando o seu nome e endereço, que Morrow anotou cuidadosamente. Falou-lhe de seu irmão e como o rapaz, ao morrer sua mãe, há três anos, e ver-se na contingência de sus­tentar a irmã com seu minguado salário, por ter desaparecido a pensão que a mãe recebia, come­çara a frequentar más companhias, e a levar uma vida muito irregular. Expôs sua inquieta­ção de ver que John regressava a casa altas horas da noite, muitas vezes embriagado, come­çando a trazer somas em dinheiro que para eles eram grandes.

Depois contou o episódio do desaparecimento de John, dez meses antes, quando ficou ausente de casa por duas semanas, e como ela estabele­cera relação entre isto e a notícia naqueles dias, do descobrimento de um bando importante de tra­ficantes de drogas, quase ficando louca, supondo que seu irmão tivesse sido detido ou morto, mas sem se atrever a avisar a Polícia, com receio de que o prendessem. Em seguida John reapareceu, sem uma palavra de explicação, mas assustado, triste e deprimido e, desde então, deixou de trazer dinheiro para casa.

A moça, que era ouvida atentamente por Mor­row, que vez por outra fazia anotações, passou a falar da terrível manhã em que Fremont chegara a sua casa, da discussão que teve com John, dos espantosos dias transcorridos sob a constante ameaça do criminoso por um lado, e do descobri­mento pela Polícia, por outro. Fez ver a Morrow o pânico horroroso que dominava seu irmão e que o transformava em um farrapo humano, in­capaz de comportar-se como um homem.

Decidida a revelar tudo quanto sabia, Cora chegou a relatar a Morrow o incidente ocorrido entre ela e Fremont na tarde anterior, e a or­dem deste ao seu irmão, que se referia a Morrow. E enquanto o agente sentia aumentar sua repul­sa pelo degradado assassino, imaginando a hu­milhação a que submetera a jovem, esta che­gava ao final de sua exposição com uma súplica apaixonada para que seu John fosse deixado à margem das investigações. Suplicou ao agente, em tom comovedor, que se permitisse a seu irmão refazer sua vida, que não se levassem em conta os erros que cometera, só imputáveis a sua juventude e inexperiência, e que, se preciso fosse, sairiam da cidade, mas que ela garantiria que seu irmão jamais voltaria a burlar a Lei.

Fez-se silêncio. Cora, que terminara sua nar­rativa entre soluços, enxugava seus olhos com um diminuto lencinho, recostada na poltrona. Morrow, atento em suas anotações, evitava gen­tilmente observá-la. Por fim, o agente levantou a cabeça.

- Miss Webb - disse ele - posso assegu­rar-lhe que foi uma verdadeira lástima não ter vindo aqui antes. Muita gente não compreende, ou não quer compreender, que o FBI, como a Polícia, é uma instituição a serviço do público, isto é, das pessoas decentes e honradas. Nin­guém tem nada que temer em nós, a menos que seja um criminoso. A senhorita não o é, e seu irmão, pelo que me contou, é apenas um rapaz desencaminhado, que errou algumas vezes, mas que não cometeu nenhuma falta verdadei­ramente grave. Nessas circunstâncias, vocês não tinham absolutamente nada a temer, e é lamen­tável que tenham sofrido o que sofreram, espe­cialmente a senhorita, completamente inocente, com medo de contar-nos a verdade. Ela olhou-o com angústia.

- Agora - continuou Morrow, animado pela luz de esperança que brilhava nos belíssimos olhos azuis de Cora - posso assegurar-lhe que todas as suas preocupações terminaram. Fremont será detido o quanto antes. Já lhe contei que temos um desejo bárbaro de abraçá-lo, mas com bastante força. E não precisa temer pela sorte de seu irmão. Deverá ser julgado, sem dúvida, mas aposto que nós aqui seremos os seus me­lhores advogados, desde já. Diga-me: a senho­rita vai agora para casa?

- Deveria estar trabalhando - respondeu Cora, mas...

- Pois vá trabalhar - aconselhou Morrow. - É preferível que não vá para casa agora. Assim quando sair do trabalho já deverá estar tudo terminado é poderá então pensar que tudo não passou de um pesadelo. Espero que volte­mos a nos ver.

- Eu também espero - retrucou a moça, levantando-se. - O senhor foi muito compreen­sivo, Mister Morrow. Não sei como agradecer-lhe tudo isso.

- Por Deus, Miss Webb! Sou eu quem agra­dece. Não sabe o favor enorme que nos prestou.

E depois de apertar a mão do agente, Cora foi embora com o coração cheio de alegria e o semblante radiante.

Não fazia ainda meia hora que Cora se des­pedira do agente especial James Morrow quando este, acompanhado por outros três agentes do FBI, saía do Edifício Widener e entrava num carro que o esperava junto da cal­çada. Nesse curto espaço de tempo Morrow colo­cou seu chefe, o inspetor 0'Carrigan, a par de tudo que a moça relatara, e preparou tudo para a captura do perigoso bandido. Rapidamente a patrulha se formou, e Morrow telefonou para o capitão Warren, da Polícia do Estado, que pro­meteu enviar reforços urgentes. Foi dado o alar­me a todas as forças policiais do bairro de Kensington para que apertassem o cerco em tor­no da avenida Somerset, mas ao mesmo tempo encarregou-se, com todo o empenho, para que o aparato não fosse demasiado ostensivo nem que se utilizasse sirena em demasia para não alar­mar o bairro.

E agora, o carro que conduziu Morrow e os outros agentes, todos bem armados, com pistolas e metralhadoras, lançava-se a toda velocidade pe­las movimentadas ruas de Filadélfia, para o norte.

Foi questão de pouco tempo chegarem até Ken­sington, apesar de, segundo as instruções de Morrow, não terem usado a sirena uma só vez durante o trajeto, o que teria feito parar o trân­sito. Subindo pela rua Front, o carro cruzou a avenida Somerset sem se deter e fez a voz descendo pela rua Ormes e parando pouco antes de chegar à esquina do quarteirão onde se en­contrava a casa dos Webb.

Os agentes desceram ali, sem poder evitar que alguns transeuntes olhassem curiosamente para suas armas, apesar de procurarem ocultá-las sob suas roupas.

Morrow deu a volta no quarteirão, rapidamen­te, e parou, já sem perder de vista a porta do número 325 E. Os outros percorriam os arredores e foram fazer ligação com as forças policiais do Estado que, dissimuladamente já guarneciam as esquinas e os pontos estratégicos.

Todos os agentes que tomavam parte na ope­ração haviam cuidado de não passar pelo trecho compreendido entre as ruas Ormes e Rosehill, para que das janelas da casa dos Webb nada pu­desse ser notado de anormal. Agora, com a che­gada dos homens do FBI terminavam os prepa­rativos. Fremont não podia escapar, pensou Mor­row, ao receber os informes de seus companhei­ros, e decidiu, entrar em ação.

Acompanhado por dois de seus agentes, en­quanto o terceiro no comando de uma patrulha da Polícia entrava nos pátios posteriores do pré­dio, Morrow dirigiu-se abertamente para a en­trada. Andava pela calçada norte da rua, de tal forma que as possibilidades de serem vistos não eram grandes. Não seria muito provável que Fremont estivesse de janelas abertas olhando despreocupadamente o movimento da rua e de qualquer forma a calçada não era visível.

Ao aproximar-se da porta, Morrow notou com satisfação que outra patrulha da Polícia, à frente da qual vinha o próprio capitão Warren, che­gava pela mesma calçada em direção oposta.

Morrow penetrou no edifício e, sem fazer caso para o elevador, começou a subir pela escada, seguido por seus companheiros. Atrás dele subia também o capitão Warren, que havia deixado um par de guardas na entrada. Minutos depois os homens se detinham diante da porta do sexto andar e o agente especial apertava, decididamen­te, o botão da campainha.

Todos esperavam que a porta demorasse a abrir, no caso de abrir, porque também era pos­sível que os que ocupavam o interior se negas­sem a abrir. Não obstante, a porta abriu-se to­talmente, sem que demorasse mais que dez se­gundos, e os agentes puderam ver assomar um jovem rapaz, de rosto juvenil com pouca barba, cabelos cor de cinza e olhos azuis, que aparen­tava encontrar-se num estado de aguda ansie­dade.

Mas ao vê-los, uma palidez mortal estendeu-se pelo seu rosto, fazendo ressaltar mais ainda a sua pouca barba. Sua boca entreaberta, prepa­rada para falar, ficou muda, e depois de um segundo de vacilação tentou fechar novamente a porta.

Não lhe permitiram. Um agente, de metralha­dora na mão, reteve a porta com a ponta do pé. E James Morrow, também com a pistola na mão, meteu-se audaciosamente no apartamento afastando o rapaz com um firme empurrão de seu braço esquerdo.

- Onde está Fremont? - cochichou o agente especial em voz sibilante. - Leve-nos até ele, e depressa!

E, obrigando o jovem a dar meia-volta, fê-lo caminhar na sua frente. Um agente ficou na por­ta do apartamento, e o outro, empunhando a metralhadora, e seguido pelo capitão Warren, foi atrás dele.

Mas não deram dois passos quando o jovem pareceu recuperar a voz.

- Fremont não está em casa - balbuciou. - É verdade. Eu... garanto que não está aqui.

Morrow não lhe fez caso. O tom do jovem parecia sincero, pensou, mas estava tão certo de que o assassino estava ali que prosseguiu.

Não demoraram muito, todavia, em se conven­cerem de que, efetivamente, o homem que pro­curavam não estava ali. O apartamento não era grande e havia poucos lugares onde uma pes­soa pudesse se esconder. Não haviam passado cinco minutos quando a meia dezena de homens que havia entrado se olharam uns aos outros com caras perplexas. Fremont não estava ali. Todo o seu trabalho e todas as precauções ti­nham sido em vão.

Morrow voltou-se para John Webb. A fisiono­mia do agente exprimia claramente sua decep­ção e sua cólera. Além disso, estava perplexo e não sabia o que pensar. Acreditara inteiramente em Cora Webb, mas agora, em vista da ausência de Fremont, chegou a pensar que tivera sido enganado pela encantadora moça de rosto ingê­nuo. Tal ideia produzia nele uma intensa irrita­ção e decepção, talvez excessiva. Mas seus olhos faiscavam quando se fixavam em John, que es­tendido numa poltrona da saleta e estreitamente observado por um policial, era a imagem viva do terror e do desespero.

- Vamos ver, rapazinho - começou o agente com voz que não pressagiava nada bom. - Como se chama?

- John Webb - respondeu o outro num tê­nue fio de voz sem olhar quem lhe perguntava.

- Muito bem. Agora diga-nos quem vive aqui com você?

- Mi... minha irmã Cora - foi a resposta.

- Onde está?

- Trabalhando nos armazéns Wanamaker, su­ponho.

Morrow sentia-se um pouco aliviado. Tudo aqui­lo coincidia com o que a moça dissera.

- Perfeito - continuou. - E agora diga-me quem mais está morando com vocês ultimamente.

- Mais ninguém - respondeu John debilmente.

Morrow colocou-se diante dele com as pernas abertas, numa atitude cheia de ameaça.

- Ouça-me, John Webb - rugiu - não pense que viemos aqui visitar um bom titio e que ele nos vai contar um conto da carochinha. Sabe­mos perfeitamente quem tem morado aqui com vocês até há poucas horas. Mas quero que o con­firme. E vou dizer mais uma coisa para abaixar um pouco a sua crista. Se você se portar bem seremos benevolentes; mas se teimar em negar o que todo mundo já sabe, vai passar mal. Sabe que podemos acusá-lo, de muitas coisas, e sabe também que vimos três camas que foram utili­zadas esta noite. Quem dormiu na terceira cama?

John Webb inclinou a cabeça. Era inútil ne­gar. Seu cérebro obscurecido pelo pânico não produzia outra defesa senão aquela de negar tudo. Mas as palavras de Morrow penetravam em sua mente como marteladas, e sua última pergunta deixou-o fora de combate. Deu-se con­ta de que era inútil toda resistência e entregou-se totalmente.

- Rocky Fremont - respondeu desanimado, com a cabeça baixa.

- Claro - aprovou Marrow. - Onde está ele agora?

- Não sei. Juro que não sei. É verdade.

- Não volte com a embromação, Webb - advertiu o agente. - Começou bem, não o es­trague agora. Onde está Rocky? Quando foi que saiu?

- Dou-lhe minha palavra de que não sei. - O desespero e também a sinceridade vibravam na voz do jovem. - Rocky mandou-me sair esta manhã bem cedo. Quando voltei não estava em casa. Assustei-me porque não saía desde... des­de que chegou aqui. Logo vocês chegaram e eu pensei que era ele. Mas asseguro que não sei onde ele foi.

Morrow o olhou pensativo. O rapaz parecia dizer a verdade. Mas, então, qual seria o motivo da inusitada saída do marginal? Morrow não conseguia imaginar mais que uma só.

- Escute-me, John - disse-lhe - sua irmã lhe disse que pensava ir ao FBI?

O jovem olhou-o fixamente, e em suas pupilas brilhou a compreensão.

- Ah, então foi ela! - exclamou. - Agora compreendo. Sim, disse-me de noite, que pen­sava em denunciar Fremont. Mas...

- Mas, o quê? - perguntou Morrow.

- Nada. Pensei que tivesse abandonado a ideia - respondeu John com a cabeça baixa ou­tra vez.

- Bem, agora faça um esforço e trate de lem­brar de tudo, rapaz: acha que Fremont pôde inteirar-se das intenções de sua irmã? - per­guntou o agente.

John demorou a responder.

- Não acredito - disse afinal. - Cora falou comigo de noite, no meu quarto. Ela chegou de­pois que estávamos deitados, já há algum tempo. Creio que Fremont já estivesse dormindo. Além disso, se Fremont tivesse ao menos suspeitado de leve das intenções de Cora, não a teria deixa­do escapar. Teria matado minha irmã - con­cluiu, empalidecendo.

Morrow sentia agora certa satisfação. Sabia com toda a certeza que a moça não o havia en­ganado e que agira bem quando acreditou nela. Mas ainda sentia-se perplexo. Alguma coisa acon­tecera que não conseguiu compreender, e cujo resultado era o desaparecimento de Fremont, quan­do Já estava praticamente apanhado. Meditou um pouco, e depois dirigiu-se a um extremo do apartamento, levando consigo o capitão Warren, e lhe disse em voz baixa:

- Que acha, capitão? Esse rapaz parece dizer a verdade. No entanto tenho a impressão de que Fremont percebeu a coisa, e se apressou em dar nos calos. Por outro lado, existe a possibilidade de ter saído para algum negócio urgente que ignoramos. Nesse caso é possível que de uma hora para outra ele estoure por aí. Não acha que assim talvez fosse melhor fazer o pessoal lá em baixo desaparecer, para não espantá-lo?

- Tem toda a razão - concordou Warren. - Vou providenciar isso imediatamente.

E dando meia volta, saiu precipitadamente para tomar as providências necessárias.

Morrow voltou para junto de John e perma­neceu olhando-o algum tempo, pensativo. Depois prosseguiu o interrogatório:

- Quero crer que você não seria capaz de dizer a Fremont o que sua irmã se propunha a fazer, não é verdade, amigo?

John tremeu outra vez e o olhou horrorizado.

- Mas claro que não. Não lhe disse que Rocky a mataria?

- Eu o imagino - comentou o agente. - Conte então o que se passou depois que sua irmã o colocou a par de suas intenções.

- Bem, depois... eu... Enfim, discutimos um pouco... e depois Cora retirou-se para o seu quarto. Nada mais.

- A que horas você saiu daqui hoje?

- Seriam seis e meia da manhã, talvez. - Morrow estranhou.

- Por que tão cedo?

- Fremont alegou que era a única hora que poderia encontrar... Bem, um sujeito que eu devia encontrar.

- Depois nos contará sobre esse sujeito e para que foi encontrá-lo - comentou Morrow, sorrindo. - Já que você saiu tão cedo, suponho que Fremont deu suas instruções na véspera. Não é assim?

- Não - respondeu o rapaz. - Fremont veio despertar-me às seis da manhã. Tirou-me da cama e determinou que eu fosse ver esse tipo. Ontem à noite nada falou a respeito disso.

- Sua irmã ainda estava em casa quando você saiu?

- Claro que sim. Deveria estar dormindo ainda.

- Já compreendi - blasonou o agente. - De­pois, quando você regressou e viu que nem Ro­cky nem sua irmã estavam em casa tratou de colocar-se ã vontade, totalmente despreocupado.

- Não fiquei despreocupado. Estranhei bas­tante o fato - afirmou o jovem. - Não espe­rava encontrar Cora, mas não entendo por que Fremont desapareceu...

- Nem eu tão pouco - confessou Morrow. - Preste atenção ao que vamos fazer. Vou contar-lhe para que fique preparado, pois terá de aju­dar-nos. Talvez Fremont volte. Se o fizer, vamos deixar que entre tranquilamente, sem nada sus­peitar, e aí o agarraremos. Assim, se a campai­nha ou o telefone tocarem, você atenderá, e se for Fremont você deverá proceder com natura­lidade. Espero que queira ajudar e que faça como eu disse. A sua ajuda será levada em conta em caso de necessidade, mas se não quiser, já sabe que também nos lembraremos oportunamen­te. Que decide?

- Eu ajudarei - respondeu John. - Não tenho outra saída.

- Muito bem, rapaz - aprovou Morrow. - Agora, para matar o tempo, conte-nos, por exem­plo, como foi a fuga de Fremont da prisão es­tadual.

Um medo incontrolado estampou-se na face de John.

- Eu lhe asseguro que nada tive com a morte desse guarda. Creia em mim, é verdade.

- Já o sabemos - sorriu o agente. - Sua irmã tinha o mesmo temor pela manhã. Já a tranquilizei. Não se lembra de que Fremont ma­tou Donavan em presença de outro guarda, o Simmons, com quem saiu posteriormente do pre­sídio? Você deveria estar aguardando no auto­móvel, não é assim?

John confirmou com a cabeça.

- Se prestou atenção - prosseguiu Morrow - deve lembrar-se de que Fremont chegou com esse guarda, depois de matar Donavan. Temos assim o testemunho de Simmons de sua inocên­cia quanto ao assassinato do carcereiro. O que desejamos saber é como Fremont conseguiu a cumplicidade dos guardas, quem foi o planeja­dor da fuga, quem mais tomou parte nisso, en­fim, como a coisa toda funcionou. Pode falar.

E John, louco de alegria ao reparar que não corria o menor perigo de ser acusado de assas­sinato, e decidindo naquele mesmo instante colo­car-se do lado da Lei, falou sem hesitar. E, en­quanto falava, pensava no prazer com que cum­priria qualquer pena que lhe impusessem por seus erros, já que sua vida estava salva e que nunca mais, nunca mais se separaria um milí­metro sequer do caminho honrado e decente que sua irmã tentara fazer com que retornasse, o qual nunca deveria ter abandonado.

O rapaz relatou a Morrow tudo quanto sabia sobre o bando de Fremont, dando nomes e ende­reços e. toda a sorte de detalhes acerca de seus componentes. Falou-lhe das negociações obscuras que deram em resultado a cumplicidade dos três carcereiros para facilitar a fuga do criminoso, negociações levadas a efeito por vários mem­bros do bando que recorreram a todos os pro­cessos, como suborno, chantagem, etc. para con­seguir o objetivo.

E também lhe contou, sem procurar defen­der-se com mentiras, qual havia sido o seu papel na fuga. O rapaz acusou-se sem contemplação de ter passado a Fremont as instruções escritas e a navalha, e bem assim de esperá-lo com um carro a pouca distância da prisão. Depois con­tou como chegaram até a avenida Somerset, e o modo de vida que o assassino os havia obriga­do a levar. Disse também de seu terrível receio de cair nas mãos da Polícia e ser acusado de assassinato, como cúmplice de Fremont.

No fim, John Webb calou-se. Revelara tudo, absolutamente tudo quanto sabia. E Morrow, consultando suas anotações, deu-se conta de que, graças às declarações do jovem, a poderosa quadrilha de traficantes de estupefacientes, que jul­gara destruída dez meses antes, mas que na realidade não o fora, estava agora em suas mãos de verdade, junto com relações e contatos com pessoas de que nem ao menos suspeitara antes.

Morrow consultou seu relógio. Já passava de meio-dia. Fremont demorava em voltar, e ins­tinto natural lhe indicava que o assassino não voltaria. Mesmo assim, decidiu continuar espe­rando. Não queria perder a menor possibilidade de capturá-lo. Mas, entrementes, o FBI não po­dia permanecer de braços cruzados, enquanto aquelas anotações, que possuía nas mãos, indi­cavam que havia muito o que fazer.

Escrevendo com rapidez, preparou um bilhete para o inspetor chefe 0'Carrigan, com os resu­mos das declarações de John Webb. Em seguida passou-o às mãos de um de seus homens e o in­cumbiu de, com o maior cuidado, sair do prédio e levar aquilo ao seu destino. Enquanto ele espe­rava ali, a maquinaria do FBI se colocaria em movimento, e um grande número de pessoas que ainda se sentiam confiantes e acobertadas, ver-se-iam expostas ao castigo dos delitos que ha­viam cometido.

Quando o mensageiro já saia, Morrow o deteve um momento, e, em voz baixa, para que John não ouvisse, determinou-lhe que investigasse nos armazéns Wanamaker se Cora estava lá, mas sem molestá-la nem dar-se a conhecer.

Os minutos continuavam passando, lentos e parcimoniosos. Nada acontecia, Fremont não aparecia. Os homens espalhados pela casa, pales­travam. Há algum tempo John se mantinha ca­lado, e Morrow olhando-o constatou que dormia em sua poltrona. "Apesar da incômoda posição - pensou Morrow - o rapaz está, provavel­mente, dormindo o seu melhor sono desses últi­mos dias, e isso devido, tão somente, ao fato de ter, por fim, a consciência tranquila."

Umas batidas à porta, da maneira convencio­nada, indicavam o regresso do agente que saíra há algum tempo, para ver 0'Carrigan. Morrow recebeu sua mensagem-resposta. O inspetor-chefe estava de posse das anotações, e já havia dado a partida na máquina que era o FBI. Quanto à moça, trabalhava em seu posto. O homem a tinha visto e observou que a jovem agia com toda a normalidade. Por outro lado, não tarda­ria muito em aparecer, pois terminava seu tra­balho às quatro horas.

O homem trazia também uns biscoitos, que seus companheiros devoraram, famintos. Antes já haviam comido tudo que havia na cozinha, que não era muito. E continuaram a monótona espera

O sol caía, lentamente, no ocaso, e agora sua luz entrava obliquamente pela janela. John, de repente, despertou em sua poltrona e se com­pôs. Passou algum tempo olhando em sua volta, desorientado, e depois lembrou-se de tudo. Diri­giu um pícaro sorriso para Morrow, que o obser­vava, e depois olhou para o relógio.

- Cora já devia ter chegado - disse ele. Morrow conferiu em seu relógio. Com efeito, eram cinco e meia. "Só falta agora a gente per­der a moça também", pensou. Mas não ligou maior importância. Deu de ombros e voltou a de­saparecer em seus pensamentos.

Quando voltou a olhar em seu relógio, era mais de seis e meia. Viu então que era verda­deiramente alarmante o atraso da jovem. Olhou para John, e embora o rapaz se mantivesse obs­tinadamente silencioso, notou em seus olhos a preocupação e o medo, e adivinhou que John pensava em sua irmã.

Naquele instante a campainha do telefone to­cou. Morrow levantou-se, de um salto, e fez John levantar, dizendo-lhe:

- Atenda ao telefone. Se for Fremont, lem­bra-se de que deve dizer que está sozinho. Se perguntar se viemos diga que sim. Não acredi­taria se dissesse não. Mas diga que há horas que já fomos.

John empunhou o aparelho. A voz de Fremont soou em seus ouvidos:

- É você, Johnny?

John engoliu em seco. Morrow estava junto dele, com o ouvido também pregado no fone. O rapaz respondeu com a naturalidade que lhe foi possível:

- Olá, Rocky! Onde você se meteu?

- Não importa... Está só?

- Sim - respondeu o jovem.

- E não vieram visitas hoje, menino?

John olhou Morrow, e este balançou a cabeça.

- Certo! O FBI esteve aqui. Ainda bem que você não estava. Sabia que eles vinham? Mas já se foram há horas.

- É, não é? - disse Rocky, sarcástico. - Bem, e o que mandei lazer? Já fez?

- O quê?

- Não se lembra de que tinha de matar Morrow?

- Mas... não pude fazê-lo, Rocky - balbuciou o rapaz.

- Pois será melhor que se decida a fazê-lo o quanto antes. A voz do assassino soava dura e cruel no telefone. - Tenho aqui comigo sua irmãzinha que é uma linguaruda muito grande. Um pouco assustada, mas está bem. Se você não fizer o que mandei ela não vai mais ficar bem Johnny: tem vinte e quatro horas para matar Morrow. Se não o fizer nesse tempo, eu matarei sua irmã. É melhor andar depressa, e já sabe o que fazer.

E, sem mais palavras, a comunicação foi cortada.

Pela primeira vez, desde muito tempo, Cora sentia-se despreocupada e quase feliz na­quele dia, enquanto cumpria as suas obri­gações de empregada nos grandes armazéns Wanamaker, da rua Market. Algumas vezes, no correr do dia, pensou com certa inquietação no que estava acontecendo em casa e as consequências que seu gesto produziriam sobre seu irmão John.

Mas sempre recordava a amistosa acolhida e o agente especial James Morrow e se tranquilizava. Tinha a certeza de que seu irmão não iria sofrer por sua culpa e, além disso, pensava que era preferível qualquer coisa a continuar supor­tando a terrível ameaça que a presença do assas­sino representava em sua casa. Imaginava com satisfação a volta de Rocky Fremont ao cár­cere e, apesar de ser uma moça de sentimentos delicados, não sentia remorsos ao considerar que, como resultado de sua denúncia. Fremont paga­ria suas culpas na cadeira elétrica.

Quando, afinal, soaram as quatro da tarde, Cora preparou-se para voltar para casa. Chegou a ocorrer-lhe a ideia de telefonar para Morrow, no FBI, e perguntar-lhe se podia, efetivamente, dirigir-se ao seu domicílio; mas, em seguida, julgou desnecessária tal medida e abandonou a ideia. Morrow a julgaria uma medrosa se o incomodasse para perguntar isso. E àquelas horas tudo já estaria terminado.

O pior que poderia ter ocorrido é seu irmão ter sido preso também e, em tal caso, sim, cha­maria Morrow para saber onde estava John. Mas talvez o rapaz estivesse tranquilamente em casa esperando-a. O FBI ia atrás de Fremont e, uma vez prendendo este, era provável até que per­dessem o interesse num personagem tão insigni­ficante como o seu irmão. Por outro lado, Mor­row assegurara que John seria tratado com cle­mência.

Não havia nenhum motivo para se preocupar, pensou Cora. Feliz e animada, desceu as escada­rias do trem subterrâneo na Rua Treze e confun­diu-se com a multidão que esperava na plata­forma a chegada do trem.

À medida que o trem, entupido de gente que, como ela, retornava do trabalho, ia avançando ao longo de seu percurso e se aproximando da estação Somerset, a moça sentia crescer sua im­paciência. Desejava ardentemente chegar em casa e saber, afinal, o que se havia passado.

A viagem tornou-se, por isso mesmo, mais lon­ga e enquanto isso a moça comprimida entre aqueles que lotavam o vagão, sofrendo os tran­cos e as oscilações bruscas do trem, via passar pelas janelas, velozmente, os altos edifícios da cidade, depois que o trem, ao passar da estação da rua Segunda, saiu para a superfície apare­cendo na rústica plataforma metálica que, ele­vada sobre o nível da rua Front, apontava retilineamente para o norte de Filadélfia.

Depois de uma infinidade de paradas em todas as estações do percurso, e de um espaço de tem­po que pareceu a Cora um século, o trem chega­va, afinal, à estação Somerset. A moça abriu ca­minho a cotoveladas até a porta, e pisou a pla­taforma, entre a multidão.

Com mais demora do que desejava, a moça dirigia-se para a saída e a escadaria de descida do lado oeste. Na sua impaciência, atenta apenas em abrir caminho na multidão para avançar o mais rapidamente possível até a rua, nem se apercebeu da pequena figura que, camuflada em sua capa, com a gola levantada e com o chapéu caído sobre os olhos, que a esperava imóvel nas proximidades da saída.

Mas ao homem, a quem poucas coisas passa­vam despercebidas aos seus frios olhos pardos que se comprimiam sob a caída aba do chapéu, Cora surgia qual um sol. E quando a moça pas­sou a poucos passos da pequena figura, esta se pôs em movimento e, misturando-se com o povo, foi em sua perseguição.

Lentamente, Cora foi descendo a larga escada­ria que a levava até a rua, e sempre, a três ou quatro degraus atrás, o homem da capa, cujo rosto quase não era visível, descia também.

Uma vez na rua, Cora pôde andar mais de­pressa e, estalando seus saltos na calçada da avenida Kensington, dirigiu-se para a esquina da avenida Somerset.

Mas não pôde chegar até a esquina. O homem de capa avançou rapidamente, colocou-se a seu lado e, com um gesto atrevido, agarrou o braço direito da moça. Cora voltou a cabeça, surpresa, e deparou, a um palmo de distância, com os olhos frios e cruéis de Rocky Fremont.

O rosto do "gangster", levantado para olhar a moça, tinha contrações que mais pareciam uma máscara diabólica. Seus olhos reluziam de rai­va e neles havia um olhar de ameaça de morte. Sua mão esquerda subjugava violentamente o braço da jovem, mas a direita estava enfiada no bolso da capa, onde se podia divisar um vulto de forma pouco tranquilizadora.

Antes que a moça, atônita, pudesse sequer abrir a boca, ouviu ressoar a voz baixa e sibilante, carregada de ameaças, do bandido:

- Não quero nem um gesto nem uma pala­vra, ou mato-a já!

Acompanhou suas palavras com um eloquente gesto de sua mão direita, que empunhava o re­vólver. Cora o contemplou estupefata, sentindo que, como sempre acontecia sob seu implacável olhar feroz, sua vontade se derretia e se anula­va. Sua primeira reação instintiva foi a de gri­tar, a de pedir socorro. Mas, no momento, com­preendeu que o criminoso cumpriria sua ameaça e a mataria. O pânico envolveu seu coração e, quase sem saber o que fazia, atemorizada pela consciência do perigo mortal que corria, deixou-se levar, com a passiva resignação da vítima conduzida ao matadouro.

Um sorriso maligno dilatou as feições de Rocky.

- Assim é que eu gosto, menina. Tem que ser obediente, se não, passará mal venha comigo e não lhe acontecerá nada.

Unidos pelos braços, os dois continuaram an­dando, lentamente agora. Para os muitos tran­seuntes que circulavam pelo movimentado recan­to da cidade, não passavam os dois de mais um dos muitos casais que percorriam, em atitude semelhante, as calçadas repletas de pessoas. E se alguém observasse o seu encontro, apenas poderia julgar que alguma coisa de anormal su­cedia.

Rocky não mudou a direção que a jovem se­guia quando a alcançou. Seguindo sua tática atrevida, preferiu continuar andando no mesmo caminho, não obstante já se aproximarem da casa dos Webb, onde o bandido imaginava que ainda houvesse vigilância da Polícia. Evitava assim fazer crescer as suspeitas de qualquer pessoa que porventura tivesse estranhado o modo como se encontraram.

Havia um policial uniformizado rondando na esquina, e enquanto se aproximavam dele Fre­mont preparou todos os seus músculos para uma ação repentina, no caso de o policial o re­conhecer ou da moça cometer alguma loucura. Se acontecesse tal coisa, decidiu, primeiro mata­ria o guarda e em seguida a garota, com a maior rapidez possível. Depois fugiria correndo, e estava confiante em que ninguém impediria sua fuga. Ninguém levaria Rocky Fremont à cadeira elétrica.

Quando já estavam a alguns passos do poli­cial, virou o rosto, oculto pelo chapéu e pela gola levantada de sua capa, e olhou fixamente para a jovem.

- Não faça nenhuma bobagem, querida! - murmurou ameaçador. - custar-lhe-ia caro, e nada conseguiria.

Cora sentindo em seu rosto o olhar ardente do bandido, nem respondeu. Olhou o guarda, e em seus límpidos olhos azuis brilhou durante um momento uma louca esperança que seu cérebro não se atreveu a imaginar. Mas não teve ânimo para mover sequer uma pestana quando passou a dois passos apenas do policial. Na verdade, es­tava ele ali postado, fazendo parte do dispositi­vo montado em torno da casa dos Webb, na previsão de um possível regresso de Fremont. Mas ele limitou-se a dar apenas uma ligeira e indiferente olhadela ao casal de aparentes na­morados que passou lentamente à sua frente. E mesmo assim, seu olhar dirigia-se mais à beleza de Cora, resvalando apenas na figura mais baixa e pouco atraente de Rocky.

O guarda ficara para trás, e Fremont sentiu que o invadia uma exaltação selvagem. Aqueles policiais eram uns bobos, pensou. Nada poderia parar sua carreira outra vez. No entanto, não compreendia como se deixara prender há dez meses. Isso não voltaria a acontecer, prometeu a si próprio. Gostava demais do maravilhoso prazer de passear pela bela cidade, em completa liberdade, levando com firmeza o braço da ra­pariga que o havia atraiçoado e em quem se propunha vingar-se amplamente, sabendo que o poderoso FBI e toda a Polícia dos Estados Uni­dos o perseguiam como fera perigosa, e ele pas­sava diante de seus narizes, rindo-se de sua igno­rância. Ele era mais esperto que toda a Polícia e, ainda que tivesse que matá-los a todos, ja­mais tornariam a apanhá-lo.

Enquanto isso, continuava conduzindo Cora firme e serenamente no meio do povo. Em vez de dobrar a esquina, cruzaram a avenida So­merset e continuaram caminhando pela avenida Kensington. Mas não tardou muito e Rocky atra­vessou a avenida e a abandonou, entrando na primeira rua que se dirigia ao rio.

Rocky compreendia perfeitamente que, en­quanto continuasse a conduzir a moça bem junto e caminhando lentamente, ninguém dentre as inúmeras pessoas que cruzavam por eles, seria capaz de estabelecer relação entre ele e o assas­sino. Ninguém imaginaria que o acossado Fre­mont podia atrever-se a passear em plena luz do dia em companhia de uma bela jovem. As­sim, pois, sentia-se perfeitamente seguro, a não ser que alguém que o conhecesse pessoalmente, por má sorte, cruzasse por ele. Assim mesmo esse alguém teria que prestar muita atenção nele para reconhecê-lo debaixo daquele chapéu que o ocultava quase que totalmente.

A tarde ia morrendo, lentamente, e Cora, sen­tindo em seu braço a força dos dedos de Rocky, continuava caminhando documente a seu lado. Obedecendo à vontade do assassino, deixou-se levar por uma e outra ruela, dobrando esquina após esquina e seguindo o caminho em ziguezague que Rocky planejava, para evitar que al­guém pudesse seguir a pista.

Cora se sentia terrivelmente assustada. Tudo acontecera tão inesperadamente! Ao descer da estação elevada, supunha que chegaria em casa imediatamente, e aí encontraria seu irmão, a quem comunicaria que estava, afinal, livre do espantoso pesadelo dos últimos dias, que suas preocupações haviam terminado, porque o crimi­noso que os atormentara estava novamente atrás das grades.

E, em lugar disso, encontrava-se com o cé­rebro nublado, débil e inerte, andando como uma autômata pelas ruas cada vez mais repulsivas à medida que se aproximavam do rio, em com­panhia do mesmo repugnante criminoso que de­sejara ver no xadrez.

A moça não compreendia como tal coisa era possível. Incapaz de raciocinar, parecia-lhe, às vezes, estar sonhando um pesadelo dantesco, e gemia em seu íntimo para que chegasse logo o momento de despertar. E, como em um sonho, sentia-se completamente incapaz de reagir, de fazer qualquer coisa para salvar-se. Dominava-a um torpor incrível, no qual existia boa parte do mesmo pânico irracional que convertera seu ir­mão, anteriormente, num farrapo, sem poder fa­zer mais que aquilo que Rocky determinava, e ela não podia fazer mais que mover suas pernas maquinalmente, seguindo o assassino onde quer que este se dirigisse.

Depois de um período de tempo que parecia uma eternidade, reconheceu a larga avenida que Rocky a obrigava a percorrer. Era a avenida Richmond, e do outro lado, por trás das lúgubres e sujos casebres que se erguiam naquelas não menos repulsivas ruelas, corria o Delaware.

Rocky meteu-se naquelas ruelas, serpentean­do como antes, dobrando à direita e à esquerda, seguindo uma linha tortuosa que, lenta e inexoravelmente, se aproximava do rio. Entre as névoas que aturdiam seu cérebro aterrori­zado, Cora se perguntava vagamente qual seria seu último destino, e para onde a levaria o as­sassino.

Ao fundo de uma daquelas ruas estreitas e mal cuidadas a jovem viu erguerem-se os muros sombrios e as rústicas instalações da grande es­tação de tratamento de águas residuais do Nor­deste, que ocupava uma vasta extensão. Chegan­do no muro, Fremont virou à direita, e. pouco de­pois chegavam à avenida Delaware, de onde, através de estreitos becos e pisando imundos lo­daçais e montões de detritos de toda espécie, a jovem pode divisar as águas cinzentas e enla­meadas do rio, cheias de imundices.

Do outro lado do rio, os raios vespertinos do sol davam um etéreo e imaterial encanto aos sórdidos arrabaldes de Camden, e também à feia ponte do trem de Pensilvânia, um pouco mais acima, mas Cora não podia apreciar tal beleza. Ao ver as repulsivas águas, pensou, sen­tindo que algo como uma garra de ferro lhe oprimia o coração, na possibilidade de sua vida terminar ali, atirada a elas, e imaginou-se, com horror indescritível, já cadáver a flutuar, rio abaixo, em meio à imunda correnteza.

Por algum tempo sentiu-se tão frágil que lhe parecia quase impossível dar mais um passo. Foi preciso que Fremont a sacudisse rudemente pelo braço, cravando nela a fria e ameaçadora aten­ção de seus olhos cruéis, para que Cora conti­nuasse avançando desfalecidamente.

Percorreram toda a extensão da avenida descuidada, ao longo dos muros sujos da estação de tratamento, até que estes terminaram à sua es­querda, e chegaram a um terreno baldio, feio e sujo que se estendia até o aterro da estrada de ferro, e apresentando por entre a vegetação inú­meros caminhos, estreitos e cheios de lixo, à margem dos quais se erguiam, aqui e ali, mise­ráveis casebres e sórdidos galpões.

Rocky internou-se decididamente por um dos ca­minhos, levando a moça sempre fortemente sub­jugada. Caminharam algumas centenas de me­tros e, afinal, o "gangster" parou diante de uma baixa e miserável construção, coberta com fo­lhas de zinco, já enferrujadas, de paredes semidestruídas e portas feitas de pedaços de caixote.

O assassino abriu a porta com um pontapé e obrigou a moça a entrar. Cora examinou o inte­rior com repulsa e asco. O chão era de terra ba­tida, nele havia um pouco de palha velha e fé­tida. Num canto, viam-se alguns utensílios do­mésticos, em sua maior parte furados e enferru­jados, e em outro lugar apodreciam alguns sa­cos velhos meio cheios de palha.

Rocky soltou sua prisioneira pela primeira vez, e depois de empurrá-la violentamente para den­tro do casebre, plantou-se na porta, contemplando-a com um olhar perverso e uma cara cínica.

- Bem, menina - disse ele, com ironia ma­ligna. - Já estamos em casa. Espero que o seu novo lar agrade. Tem alguns defeitos é bem verdade; por exemplo, ainda não tive tempo de mandar instalar o ar condicionado. Mas espero que você não se incomode com isso.

Cora, em pé sobre a dura terra batida, o olhou assustada, sem responder. O criminoso parecia gozar com o terror da moça, e continuou:

- De qualquer maneira, se esta casinha não lhe agradar mesmo, pode se mudar daqui a pou­co. Que tal comprar um terreninho para você morar na lama lá do fundo do rio? - E conti­nuou cruelmente: - Talvez seja um pouco húmido; mas como você vai ficar ali por um tempo muito, muito longo, se acostumará com a humi­dade, sem dúvida.

A moça estremeceu enquanto mantinha os olhos esbugalhados fixos em seu atormentador. Seus piores temores pareciam estar-se converten­do em realidade. Olhando Rocky era impossível imaginar que suas palavras não exprimissem exatamente as suas intenções. A jovem sabia que ele a odiava profundamente, com todas as forças de sua alma negra e pervertida, e sabia também que seu destino seria o que tão ricamente havia descrito o assassino. Sentiu que suas pernas fra­quejavam, e somente graças a um esforço super-humano conseguiu manter-se de pé. Mas não tinha ânimo para responder.

Nos olhos de Fremont faiscava agora a mais espantosa cólera. Avançou resolutamente até Cora e, sem poder se conter, golpeou-a com a mão aberta no rosto, derrubando-a sobre a terra dura. Os dedos do criminoso ficaram marcados na pálida face da moça, e uma ou duas gotas de sangue afloraram no canto de sua boca.

- Traidora desgraçada! - grunhiu Rocky. - Pensar que, quando estava mais despreocupado em sua casa, supondo que ninguém poderia ja­mais me encontrar, você teve o atrevimento de ir denunciar-me ao FBI!... Uma traição seme­lhante se paga com a vida, não sabia? E com a vida você vai pagar!

Do mais fundo de seu coração, Cora suplicava a Deus que deixasse o criminoso matá-la o mais depressa possível. Não sentia mais força para suportar a tortura que a simples presença do bandido significava, por mais tempo, nem suas frases insultantes, seus golpes e ameaças. Em meio de seu terror indescritível, pôde pensar que ainda podia sentir-se agradecida, em sua terrível situação, se Rocky se limitasse a matá-la sem mais demora. Ficaria feliz se o homem pu­xasse o revólver e disparasse nela, já.

Mas Rocky parecia adivinhar seus pensa­mentos.

- Não se preocupe, querida - anunciou, en­quanto, dono de si outra vez, deixava que o sor­riso cruel se estendesse em toda a boca. - Não vou matá-la agora, não. Antes... tenho muito o que fazer. Agora vou sair, e a deixarei sozi­nha um instante, para que veja como seria bem conveniente se tivesse seguido os meus conselhos que tão desinteressadamente lhe dei no outro dia, ao invés de cometer a estupidez de querer ser mais esperta que Rocky Fremont. Eu vou e es­pero que não fique aborrecida durante minha ausência, embora talvez você não me dê muita importância. Mas antes vou assegurar-me de que não tentará privar-me de sua companhia. Fica­ria muito desgostoso se você fosse embora.

Fremont dirigiu-se a um canto do casebre e remexeu os sacos. Cora dirigiu um olhar ansioso à porta. Sentiu-se tentada por um momento de levantar-se e sair correndo. Mas compreendeu que não adiantaria nada. Sentia-se tão frágil e cansada, que não daria mais que alguns passos antes do criminoso alcançá-la. Rocky já voltava para ela quando tornou a olhá-lo, e trazia nas mãos uns pedaços de corda suja.

Inclinou-se sobre ela e, agarrando-a por um braço, arrastou-a brutalmente até os sacos, sem permitir-lhe levantar-se. Depois, com impressio­nante rapidez, amarrou-lhe fortemente os pés e em continuação do ato amarrou-lhe as mãos às costas com outro pedaço da corda.

A corda feria as mãos e os tornozelos da moça, estendida de lado sobre o chão duro, com a rou­pa e o rosto sujos de barro. Rocky recuou para apreciar sua obra, e sorriu de novo com perver­sidade.

- Assim está bom! - disse, satisfeito. - Não poderá escapar. E para evitar que alarme os nossos respeitáveis vizinhos, que não são muitos, mas que poderiam ouvi-la se gritasse, a amor­daçarei.

E lhe aplicou um asqueroso pedaço de saco no rosto.

Cora sentiu-se desfalecer. Todos os seus instin­tos de moça limpa e educada rebelavam-se con­tra a brutal indignidade a que se via submetida. Incapaz de resistir mais, Cora Webb perdeu os sentidos e mergulhou numa bendita inconsciência.

Quando Fremont, depois de falar com John Webb, cortou a ligação, um silêncio de mor­te reinou na saleta durante alguns momen­tos. John permaneceu imóvel com o fone na mão, como uma estátua. O rapaz sentia que um pavor infinito e gélido lhe envolvia o coração e o pos­suía em todas as partes do corpo. Incapaz de pronunciar uma palavra, olhava fixamente a parede, paralisado pelas espantosas imagens que se formavam lentamente em seu cérebro. Cora em poder daquela fera sem escrúpulos!

Por seu lado, o agente especial James Morrow pensava furiosamente. Também a ele a notícia havia impressionado. Conhecia Fremont, e na­quela manhã mesmo conhecera a delicadeza e o encanto da moça. Ao pensar o que um sanguiná­rio desesperado como Fremont poderia fazer com a moça sentiu que o coração se lhe oprimia, mas ao mesmo tempo, seu cérebro ativo e bem organizado tratava de reconstituir o que ocorrera e de achar uma solução para o urgente problema da captura do bandido e da liberdade da jovem.

Do que Fremont dissera se deduzira que sabia que Cora o denunciara. Esta era, pois. a razão por que não regressou à casa dos Webb. Tinha que procurá-lo em outra parte. E fazê-lo logo, dentro das próximas vinte e quatro horas. Conhe­cendo Fremont, era de esperar que não perdoas­se a quem o havia denunciado, mas havia a possibilidade de que cumprisse a sua palavra e esperasse o prazo que estabeleceu, antes de ma­tar a moça.

Morrow tomou o fone da mão de John e dis­cou apressadamente um número. Um pouco de­pois ouvia a voz de seu chefe, o inspetor chefe Patrick 0'Carrigan.

Com algumas frases precipitadas Morrow o colocou a par da chamada de Fremont.

- Não pode ter ido muito longe, chefe. Mas temos que localizá-lo imediatamente. Vou lhe pedir uma coisa. Quer ordenar que averiguem de onde veio a chamada de Fremont?

0'Carrigan concordou, e Morrow desligou o aparelho para enfrentar John Webb que, num estado de excitação febril, se atirava sobre ele.

- Ouça! - disse, desesperado. - O senhor tem que encontrar minha irmã! O senhor tem que libertá-la, e agora! Se não Fremont a matará; eu sei! Escute: eu sou culpado e já confessei! Disse-lhe tudo o que sabia, ajudei-o, mas agora tem que encontrar minha irmã! Ela é inocente! Ela não pode sofrer por minha culpa! Não compre­ende? Ela é inocente! Ela é inocente! Prenda-me, mande-me para a cadeira elétrica se quiser, e não direi uma palavra de protesto, porque sou um canalha, um criminoso, mas salve-a! Peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que lhe é mais caro, salve-a, salve a!

Possuído de um espantoso ataque de nervos, o jovem teve de ser subjugado por Morrow e por outro agente. Procuraram tranquilizá-lo, mas era quase impossível. John Webb chorava copiosamente, desesperado, e não havia meio de acal­má-lo. A atenção de Morrow foi atraída, em segui­da, pelo tilintar da campainha do telefone.

Era 0'Carrigan. Morrow escutou atento duran­te uns minutos, enquanto seu chefe lhe dava ins­truções. Depois desligou. O rosto do agente ex­primia certa alegria.

- Não me enganei. Fremont está por perto - anunciou. - Telefonou de um telefone público de um bar da avenida Richmond, perto de Bridesburg. É lógico concluir, como o chefe opina, que deve ter a jovem sequestrada não muito longe desse bar. O chefe já mandou gente para lá. E nós vamos agora mesmo. Vamos revirar aquela zona sem deixar pedra sobre pedra, até que a encontremos.

John atirou-se novamente a ele.

- Por favor, levem-me com vocês! Não me deixe aqui, sozinho. Quero ajudá-los a encontrar minha irmã! E se Fremont a tocou, de leve, se­quer, o matarei com minhas próprias mãos! Mas não poderia resistir ficar aqui, quieto, en­quanto minha irmã está nas mãos desse assas­sino...

Morrow observou-o, pensativo. Não era proce­dimento muito normal esse de levar um delin­quente para caçar outro, mas as circunstâncias especiais do caso podiam justificá-lo e depois, John Webb poderia conhecer algum esconderijo de Fremont quando chegassem no local.

- Está bem! - decidiu. - Venha conosco. E sem mais delongas os homens abandonaram a casa dos Webb. Uma vez na rua, tomaram o automóvel, que permanecera esperando na esquina da rua Ormes desde a manhã, e se dirigiram a toda a velocidade para a avenida Richmond.

Mas, adotando uma tática inversa da que ha­viam seguido pela manhã, a penetrante sirena do carro rugia sem cessar, e à frente dela todo o tráfego daquela parte da cidade parava ou se abria, deixando a passagem livre. E à medida que iam passando as ruas do bairro Richmond, em seu caminho para o local do onde Fremont telefonara, Morrow e os outros que o acompa­nhavam podiam ouvir o longínquo soar de outras sirenas policiais que convergiam para a zona onde sabiam que se encontravam o homem e a moça que procuravam.

Com efeito, segundo havia explicado o inspetor-chefe 0'Carrigan a Morrow pelo telefone, a si­tuação era agora completamente inversa da ma­nhã. Pela manhã supunha-se conhecer o lugar onde Fremont se encontrava em completa se­gurança, como ele mesmo devia se imaginar, e todos os esforços da Polícia eram no sentido de pegá-lo de surpresa em seu valhacouto. Em com­pensação, agora, só se sabia que o criminoso se encontrava em determinada zona, não se tendo qualquer ideia quanto a sua localização. Era portanto, necessário assustá-lo, atemorizando-o ao ponto de obrigá-lo a abandonar seu esconderi­jo, se é que o tinha, e sair em campo aberto. E isto só se conseguiria enchendo a região suspei­ta de patrulhas policiais, de idas e vindas de ho­mens, de correrias de automóveis de um lado para outro é, o que seria mais importante, o uso abusivo das sirenas berrantes e estridentes.

Afortunadamente, a região suspeita não podia ser muito extensa, pensava Morrow, com satisfa­ção. Fremont não se atreveria a roubar um car­ro, nem tão pouco a pegar um táxi. Por conse­guinte, era bem certo que Cora estivesse presa em algum lugar muito próximo do ponto de onde telefonou.

A zona não era muito extensa, matutava Mor­row, mas talvez não existisse em todo o terri­tório da cidade uma outra mais apropriada ao propósito do criminoso. Os bairros de Richmond e Bridesburg não eram, em verdade, densamen­te povoados, mas suas ruelas estreitas e mal cuidadas, suas casinhas miseráveis e sórdidas e a espécie de gente que habitava tais subúrbios, possibilitava a Fremont, mais do que qualquer ou­tra parte de Filadélfia, probabilidades de escapar.

James Morrow pensava em tudo isto, quando, depois de o carro parar na avenida Richmond, cerca de duzentos e cinquenta metros além da es­tação de tratamento das águas residuais do Nor­deste, em frente à porta do bar cujo telefone público havia sido usado por Fremont, conferenciou com o capitão Warren que acabava de chegar.

As duas autoridades estabeleceram um plano de ação sobre o terreno. Resumia-se, além de outros detalhes, em atemorizar toda a vizinhan­ça. Não restava outra alternativa. Organizaram-se patrulhas, e a cada uma atribuiu-se determi­nado trecho do terreno. A missão consistia em fazer barulho, assustar o pessoal, cuja maior parte não teria a consciência muito limpa, as­segurou Warren, fazer anotações, andar de um lado para outro e, enfim, criar um ambiente de inquietação e de temor durante toda a noite.

- Essa gentalha daqui nos entregará Fremont em algumas horas - afirmou o capitão Warren. - Nem que seja apenas para se livrar da nossa presença.

E imediatamente, sem perda de um minuto, as patrulhas se desgarraram, e a ativa tarefa começou, em luta aberta contra o relógio. No carro de Morrow, chorando de ansiedade e de impotência, pois não tinha a menor ideia de que Fremont possuísse um esconderijo naquele lugar, e, por conseguinte não poderia ajudar a Polícia estava o jovem John Webb, atormentado pela ideia do que sua irmã Cora podia estar passando naqueles momentos; a morte ou coisas piores que a morte, e tudo por sua culpa.

Mas naqueles momentos Cora Webb jazia in­consciente, fortemente amarrada e estendida so­bre o chão duro de terra de um imundo case­bre, enquanto a já escassa luz do dia ia desapa­recendo rapidamente do lado de fora. A dois ou três passos dela, uma figura disforme, sentada sobre um saco de palha apodrecida, iluminava-se a cada instante com o fulgor de um cigarro.

E ainda demorou muito tempo até que a pobre moça recobrasse os sentidos. Afinal abriu os olhos e, depois de um momento de incompreensão, sentiu cair de novo sobre ela todo o horror de sua espantosa situação e viu que nenhuma luz penetrava no casebre pelos buracos do telhado e que a mais completa escuridão reinava em seu interior.

Cora permanecia imóvel. Nenhum ruído che­gava a seus ouvidos, mas apesar disso, algo parecia indicar-lhe a presença de um ser hu­mano nas proximidades. E aquela presença era tão repulsiva para ela que, sentindo-se afogada polo pânico e pelo asco, não se atrevia nem a respirar, preferindo deixar que Fremont supu­sesse que ainda estava inconsciente.

Depois de um bom intervalo de tempo, que lhe pareceu durar várias horas, chegou aos seus ouvidos o longínquo ulular de uma sirena. O som aproximava-se lentamente, e Cora o identi­ficou com o que era na realidade, ou seja, o anún­cio da chegada de um carro da Polícia.

Repentinamente o som parou, e Cora conteve as batidas precipitadas de seu coração e colocou toda a sua alma nos ouvidos. Seria este o mo­mento de sua libertação? Outro ruído mais pró­ximo soou junto dela. Alguém se movia dentro do casebre. Em seguida a porta rangeu em suas dobradiças enferrujadas, e os olhos da moça acostumados à escuridão, perceberam a débil cla­ridade das estrelas, que penetrava pela porta aberta. Contra a claridade distinguiu por um instante a figura de Fremont que saía. Suas pas­sadas chiavam no chão de terra do lado de fora, e aos poucos, se distanciavam.

Cora imaginou que o criminoso saía para inves­tigar os movimentos do carro da Polícia, e pen­sou imediatamente na fuga. Mas estava amar­rada, fortemente amarada, e por mais que se retorcesse não lograva mover-se. Fez tanto es­forço que as cordas lhe feriram a carne, mas sem cederem. Invadiu-a novamente o desespero, e ficou imóvel, sentindo que o suor lhe banhava a testa em consequência do esforço que fizera.

Mas lembrou-se, em seguida, de que as cordas eram velhas e meio podres. Era possível que pudesse enfraquecê-las se Fremont se mantives­se do lado de fora bastante tempo. Lembrava-se agora de que num canto do casebre existiam alguns utensílios enferrujados. E concluía, uma vez que sabia onde estava a porta, que os uten­sílios não estavam muito distantes dela, talvez a dois ou três passos de suas costas.

Retorceu-se desesperadamente no chão, e che­gou a girar, dando uma volta completa, quando as cordas mais uma vez feriram seus pulsos, e lhe pareceu que seus braços se desconjuntavam com o esforço e com a posição incômoda. Depois esticou suas mãos atadas o quanto pôde e tateou alguma coisa fria e húmida que reconheceu como a tampa de uma lata.

Foi questão de segundos puxá-la e colocar-se de modo que o bordo enferrujado e pouco cortante roçasse nas cordas que prendiam suas mãos. Começou então um lento e cansativo mo­vimento de vaivém, parando a cada instante para recuperar as forças.

Parecia-lhe que suas ataduras começavam a ceder, quando com um súbito paralisar de seu coração, ouviu novamente a sirena policial. Co­meçou com grande intensidade, que indicava sua proximidade, e se foi distanciando lentamente até desaparecer. Cora a ouvia com desalento, pois supunha que os ocupantes do carro viriam liber­tá-la.

Durante um momento aguardou, escutando com toda a sua alma, e quando ia reiniciar seu len­to trabalho, ouviu novamente do lado de fora os passos de Fremont, que regressava. Afastou apressadamente a tampa de lata, tentando ocul­tá-la sob seu próprio corpo, e ficou imóvel, en­quanto que as dobradiças da porta tornavam a chiar e a pequena figura do bandido penetrava no casebre.

Prendendo sua respiração, Cora o ouviu deixar-se cair sobre um saco, escutou o suspiro que bro­tou dos lábios do bandido. Não parecia sentir-se muito feliz, pensou a moça e, efetivamente, as­sim era. Rocky Fremont sentia evaporar-se a sensação que o dominara aquela tarde. Agora, encerrado em um incômodo cubículo, escuro e húmido, escutando a cada instante o movimento da Policia nas redondezas, e experimentando a angustiosa sensação de que a qualquer momento podia ser descoberto. Outra coisa não lhe ocorria a não ser que sua situação lhe parecia a mesma que a da ratazana escondida em sua toca e per­seguida por mais de mil gatos ferozes, dispostos a devorá-la. Tal ideia, é evidente, não poderia resultar no entusiasmo de algumas horas antes quando o homem se orgulhava de ter burlado toda a Polícia dos Estados Unidos.

Ouviu-se o estalido de um fósforo, e Cora fe­chou os olhos, para fingir-se inconsciente. Rece­bia através de suas pálpebras cerradas a im­pressão da luz, que se manteve por um instante, depois que a respiração de Fremont lhe indicou que havia acendido um cigarro. Cora receava com angústia que o homem percebesse, observando-a a luz do fósforo, a sua mudança de po­sição. Mas, ao que parecia Fremont nada notou de anormal. O fosforo apagou-se e Cora abriu os olhos outra vez.

Passados mais alguns momentos voltou a es­cutar, cada vez mais próximo, o ulular da sirena. Uns gritos também eram ouvidos pro­nunciados em voz autoritária, e a sereia calava-se, a pouca distância. Como antes, Fremont se levantou, jogando seu cigarro ao chão que pro­duziu uma chuva de faíscas brilhantes, apagou-o com a ponta do pé e saiu.

Cora voltou a colocar a tampa na posição ade­quada, esfregando as cordas no seu bordo.

Quando a Polícia se afastou mais uma vez e Fremont retornou, Cora tinha a certeza de que as cordas já estavam a ponto de ceder. Mas ainda não estava livre e a moça pensou, deses­perada, na hipótese de, agora que estava quase podendo fugir, o bandido descobrir o que fazia e a amarrasse outra vez.

Nada disso aconteceu. Outra vez aproximou-se uma patrulha da Polícia, e, como de costume, Fremont, preocupado, talvez, em não ser sur­preendido dentro daquele estreito casebre, saiu outra vez. E novamente Cora voltou a esfregar, febrilmente, as cordas que prendiam suas mãos. Mas, desta vez, ao cabo de uns segundos, sentiu que as cordas cediam, e, com um esforço libertou suas mãos.

Recompôs-se apressadamente e, quebrando as suas unhas, conseguiu, tão rapidamente quanto lhe foi possível, desamarrar seus calcanhares. Ia retirar a mordaça, que a sufocava, mas ouviu que Fremont regressava, e, estendendo-se outra vez, permaneceu na mesma posição em que es­tava antes, rogando a Deus com todo o coração que o "gangster" não reparasse o que acontece­ra.

Jamais em sua vida voltou Cora a experimen­tar tal frenesi de emoções como o que agitou seu peito durante os momentos que se seguiram. Já estava praticamente livre. Precisava, apenas, que o bandido voltasse a sair, ainda que fosse por um minuto, para que ela saísse atrás dele e se ocultasse na escuridão amiga de fora onde ele não a poderia encontrar. Mas enquanto isso, mil coisas poderiam acontecer para impedir a sua fuga.

O bandido poderia chegar perto dela e desco­brir que as ataduras já não existiam. Poderia também resolver de repente sair dali e querer levá-la com ele, ou matá-la. Ou poderia tam­bém... Cora estremeceu. Tantas coisas pode­riam acontecer... Era possível mesmo que não voltasse a se aproximar outro carro da Polícia, e, portanto, que Fremont não saísse mais do ca­sebre. Um suor frio molhava a testa da moca, enquanto rogava fervorosamente a Deus que não a abandonasse.

Afinal, depois de uma eternidade, voltou-se a ouvir os rumores que anunciavam a aproximação de outra patrulha policial. E Fremont mais uma vez levantou-se e saiu. Cora escutou seus cau­telosos passos se afastarem pelo caminho e afinal desaparecerem.

Levantou-se. De um safanão livrou-se da mor­daça. Seus membros estavam entumecidos pela violenta postura em que ficara durante tanto tem­po. Era-lhe penoso ficar de pé, cada movimen­to significava uma tortura. Mas Cora respirou fundo e continuou. Aproximou-se da porta e olhou para fora.

Do rio subia uma tênue neblina esbranquiçada que permanecia rasteira no chão. Mas no alto brilhavam esplendorosas as estrelas e à sua claridade débil Cora não pôde perceber o menor sinal de Fremont. Com dois rápidos movimentos retirou os sapatos. Seus pés calçados apenas com as finas meias, tocaram o barro frio do chão que se propagou até os ossos, mas assim, pelo menos, tinha a certeza de que não faria ruído algum.

Tentou adivinhar a direção que Fremont se­guira e não o conseguiu. Raciocinou que sua sal­vação consistia em chegar o mais rápido possí­vel a um lugar onde houvesse uma patrulha da Polícia. E, abandonando o caminho para não cruzar com Fremont, dirigiu-se até a avenida Richmond.

Podia ver a distância algumas luzes, que as­sinalavam as ruas urbanizadas mais próximas, e, mais além, os esplendores da grande cidade. Marchava através do campo e dirigia suas passa­das para o ponto em que, a não muita distân­cia, brilhavam os faróis de um carro. Não podia prever que Fremont se encontrava também na mesma direção.

O caminhar lhe fizera bem, e depois de um certo tempo já se movia com mais desembara­ço. Mas de repente, ouviu uma exclamação abafa­da, muito perto dela, e a voz de Fremont deter­minava, peremptória, na escuridão:

- Cora, bandida! Volte Imediatamente!

Aquela voz gelou o sangue nas veias da moça. Mas, longe de obedecer, não lhes deu maior im­portância. Cegamente se pôs a correr para a di­reita, na direção contrária à voz. Tropeçou nos montões de lixo e de barro e esteve quase a cair, mas refazendo-se, seguiu adiante, corren­do com todas as forças.

Ouviu atrás dela a voz cheia de cólera do ban­dido, e seus passos rápidos. Mas com uma sensa­ção de triunfo percebeu que os passos cada vez mais se distanciavam. Fremont ficava para trás, e talvez já a tivesse perdido na escuridão. Nesse momento um estampido ecoou na noite, e Cora pôde ouvir o agudo sibilar da bala que lhe pas­sava raspando. Fremont sabia perfeitamente onde ela estava e atirava nela já que não podia al­cançá-la.

O coração da moça encolheu de pânico. Outro disparo soou, e logo outro, e outro mais, em rá­pida sucessão. Mas agora a moça não ouvia mais o sibilar das balas. Cora lançava-se desesperadamente, para frente e seus pés descalços não produziam o menor ruído na terra branda. Ou­viram-se mais disparos, e Cora, alucinada, jul­gou encontrar-se no centro de um círculo de fogo.

A noite se povoara de ruídos. Ouviam-se exci­tados gritos de homens, correrias e novos dis­paros. Cora distinguiu perfeitamente a voz de Fremont que gritava a plenos pulmões alguma coisa que não pôde entender. Mas havia pânico na voz do "gangster".

Adiante, com o coração a ponto de saltar-lhe do peito, a moça caiu ao solo. Não sabia o que se passava. Mas percebia que na escuridão moviam-se muitos homens e que Fremont se batia como uma fera encurralada.

Enquanto, estendida no barro, lutava para re­cuperar as forças um daqueles homens passou correndo ao seu lado. Cora ouviu suas vigorosas e rápidas passadas e distinguiu vagamente sua figura. Pouco depois ouviu a voz do homem, que anunciava em tom agudo e excitado uma intimação que a jovem não entendeu claramente.

Mas reconheceu, sim, apesar da excitação, o timbre de sua voz. O coração da moça saltou em seu peito ao perceber que seu irmão John aca­bava de passar junto dela, e que o jovem, destemidamente, avançava contra o bandido, me­nosprezando o perigo.

Cora tentou gritar, fazer com que seu irmão a reconhecesse e detê-lo, porque ela ainda tinha medo do bandido. Mas sua garganta contraída e ressecada, negou-se a emitir qualquer som. Desesperadamente levantou-se e ensaiou uns passos atrás de John.

Distinguia vagamente a figura de seu irmão quando reparou que um daqueles vultos fugazes que povoavam a noite saltou sobre ele. Cora escutou novamente sua voz, que tinha um acen­to dolorido, comparável ao de um animal feri­do, e sentiu que seu coração quase deixava de ba­ter ao distinguir claramente seu irmão, que caía inapelavelmente, confundindo-se com o chão es­curo.

Incapaz de resistir à espantosa tensão do mo­mento e o duro golpe de ver seu irmão cair morto ou ferido, cambaleou e esteve a ponto de cair outra vez. Mas um braço vigoroso veio apoiá-la, envolvendo sua cintura, e uma voz ani­madora sussurrou em seu ouvido:

- Coragem, menina! Você está a salvo agora!

Era a voz de Morrow e, ouvindo-a, Cora sen­tiu que, efetivamente, nada poderia feri-la agora, e que poderia entregar-se ao seu cansaço infinito, que a impedia não apenas de mover-se, mas até de pensar. Pela segunda vez naquele dia a moça desmaiou.

Morrow ficou extremamente surpreso quando, ao correr por campo aberto, com uma pis­tola na mão, atrás de John e perseguindo Fremont, viu surgir em sua frente, como se brotasse da terra, a figura frágil de Cora, que reconheceu imediatamente. No entanto reprova­va a conduta alucinada e veemente do rapaz. Não pudera impedir que Weeb se lhe escapasse das mãos quando o rapaz percebeu que Fremont perseguia Cora naquele campo escuro e deserto.

Na realidade, Morrow não compreendia exa­tamente o que estava acontecendo. Não sabia a que atribuir o que estava se passando nem a extraordinária coincidência de aparecer, de re­pente, todo aquele berreiro e aquela correria acompanhados de uma série de disparos, enquan­to realizava apenas uma rotineira busca, a pé, entre os casebres que se erguiam na rua Lewis, em frente aos muros da estação de tratamento.

Ao ouvir a confusão, Morrow espalhou seus homens apressadamente e lhes deu ordem de avançar circunscrevendo a região onde se de­senrolava a perturbação. Enquanto o faziam pu­deram ouvir claramente a voz de Fremont, que, proferindo insultos espantosos, gritava a alguém que parasse e voltasse para junto dele. Não de­moraram muito para compreender que a pessoa ameaçada pelo bandido não era outra senão a moça que procuravam.

Em vista disso, os agentes abriram fogo ime­diatamente contra os disparos da pistola de Fremont, com a qual tentava atingir a moça, cego de cólera e esquecendo todas as precau­ções. Foi então que John, alucinado também an­te o perigo que sua irmã estava correndo, avan­çou cegamente, a peito aberto e desarmado, em desabalada carreira, até o furioso assassino.

O agente especial sentiu em seus braços o peso morto da jovem e compreendeu que ela des­maiara. Com toda a delicadeza de que foi capaz depositou o corpo inerte no solo e tratou de ver o que se passava em sua volta.

Tinha ouvido o grito de dor de John e sabia que o rapaz fora alcançado por Fremont. O as­sassino, agora, batia em retirada, como o indi­cavam os seus disparos, que brilhavam cada vez mais distantes. Seus homens o acossavam, e o seu círculo de fogo tornava-se cada vez mais estreito em volta do criminoso. Morrow deseja­va ardentemente tomar parte na luta ao lado dos outros agentes, mas não se atrevia a aban­donar o corpo da moça, nem tão pouco de acen­der a sua lanterna que se tornaria um alvo cer­teiro para o revólver de Fremont.

Enquanto tentava achar uma saída para o seu dilema raciocinando avidamente, ouviu o rápido e frenético ulular de uma ou duas sirenas às suas costas. Voltando-se, pôde ver a chegada re­pentina de dois carros policiais, que com o som estridente de seus freios paravam na estrada, atrás dele. Um instante depois, várias e corpu­lentas figuras uniformizadas corriam até ele através do matagal, para tomar parte na re­frega.

Morrow fez com que dois daqueles agentes parassem e os incumbiu de levar a moça para um dos carros. Em seguida, mais tranquilo, cor­reu também para frente.

Fremont ainda resistia. O criminoso já não se atrevia mais a ficar de pé em virtude da chuva de balas que caía sobre ele, e a altura baixa onde os tiros reluziam indicava que se manti­nha agachado no chão. Assim, sua retirada era forçosamente lenta, e seus movimentos eram já quase nulos. Por outro lado, já estava quase que totalmente cercado. A única direção que ain­da lhe restava era o barranco do aterro da es­trada de ferro.

O criminoso agora, disparava espaçadamente. Sem dúvida, pensava Morrow, não devia estar com muita fartura de munição e a economizava. Mas apesar disso era muito perigoso aproxi­mar-se dele. Seus disparos eram muito bem diri­gidos. E, como que confirmando este raciocínio, Morrow ouviu, nesse momento, o grito de dor de um dos policiais, alcançado por um projétil.

Morrow meditou um momento. Aquele estado de coisas devia ter um fim imediato. Chamou um policial e deu-lhe algumas ordens. O policial voltou-se e saiu correndo na direção dos carros. Morrow, tentando penetrar com os olhos a es­curidão, inclinou-se para frente e examinou o terreno sob a luz difusa das estrelas.

Seu cérebro fértil estava começando a elaborar um plano para caçar Fremont, e ainda mais, para caçá-lo vivo. Porque Morrow se propunha a capturar o criminoso vivo. Queria que recebes­se o castigo adequado aos seus crimes, e esse cas­tigo não poderia ser outro senão a morte na cadeira elétrica e não a morte misericordiosa que receberia com o impacto instantâneo de uma bala.

Assim, Morrow não disparara ainda sua arma, e o que é mais, não pretendia fazê-lo, a não ser que este fosse o seu último e derradeiro recurso. Seu receio todo consistia em que algum de seus homens desse um disparo certeiro na casuali­dade da escuridão e atingisse a figura atordoada do assassino. Em voz baixa, e ordenando-lhe que retransmitisse o seu desejo, instruiu seus homens para que, ao fazerem fogo, evitassem de apontar diretamente para o clarão dos dis­paros de Fremont.

Passaram alguns minutos em que a situação não mudou de maneira sensível. O alarme se havia espalhado por todo o bairro e Morrow observou que novos carros da Polícia haviam chegado à rua Lewis. O aparato policial que agora cercava Fremont havia crescido conside­ravelmente.

O assassino continuava se retirando muito len­tamente pelo solo cheio de lama e protegendo-se atrás dos monturos de lixo em direção do ater­ro da estrada de ferro. Morrow começou a sen­tir certa ansiedade. Os disparos de Fremont já brilhavam muito perto da base do aterro e ainda não recebera o sinal de que as ordens que dera ao policial estavam cumpridas.

Neste momento um silvo agudo dominou os estampidos dos disparos. Morrow respirou. Tudo estava engrenado. Fremont não. escaparia das malhas da trama. Sem perda de tempo levou o seu apito à boca e soprou-o fortemente três vezes.

Fez-se um silêncio tão repentino que pareceu a todos que se achavam presentes terem ficado surdos. Todos os disparos cessaram, e, com as ar­mas preparadas os homens esperaram.

Morrow adiantou-se lentamente, e fazendo con­chas com as mãos à boca, gritou:

- Fremont! Rocky Fremont! Reconhece-me? Em meio ao silêncio que se seguiu, pôde-se reconhecer a voz rouca do assassino na qual vibrava um ódio profundo e incontido:

- Sim, reconheço maldito Morrow!

E três disparos, em rápida sequência, saíram de um ponto situado quase na base do aterro da estrada de ferro, abrindo-se em leque. Fremont disparava às cegas, possuído do desejo desvaira­do de ferir o homem que mais odiava no mundo.

Morrow permaneceu imóvel. Sabia que o outro não podia vê-lo, e esperando uma reação desse tipo previra que as probabilidades de ser atingi­do eram desprezíveis. Voltou a anunciar:

- Fremont: renda-se! Não pode escapar, está cercado e não poderá escapar. Renda-se ou o mataremos!

Seguiu-se um momento de silêncio. Morrow imaginava que o criminoso estivesse examinan­do a sua posição e se decidindo a escolher a saí­da que lhe havia sido preparada, a saída que o conduziria diretamente às mãos da Polícia. Em seguida ouviu-se outra vez a voz do bandido:

- Render-me, desgraçado? Você jamais teste­munhará isso! E se pensa que vai me pegar, que o tente! Nunca colocarão as mãos em Rocky Fremont, sou muito mais esperto que vocês to­dos juntos!

Morrow ouviu perfeitamente o ruído de uns rápidos passos sobre a terra húmida, parecido com um precipitado cavalgar, e em seguida, um golpe surdo, uma exclamação de surpresa dolo­rida, o rumor de uma breve luta e um disparo isolado. Depois tudo voltou a silenciar.

- Alguém ferido aí em cima? — gritou Mor­row.

Um vulto corpulento era levantado mais em cima, no aterro da estrada de ferro, debilmente visível à luz das estrelas.

- Ninguém, chefe - foi a resposta. - Tudo saiu de primeira e aqui está o poltrão, bem mansinho e domado.

Morrow respirou tranquilo, e um sorriso satis­feito dilatou sua fisionomia na penumbra. Como ele mesmo dizia uma hora mais tarde ao infor­mar seu chefe da captura, não respirou à von­tade até àquele momento.

- Tinha quase absoluta certeza de que Fre­mont cairia na armadilha - afirmou, contem­plando os olhos azuis, vivos e penetrantes do inspetor-chefe 0'Carrigan - mas o senhor compre­ende, chefe, sempre pode acontecer alguma coisa de inesperado. Fiz com que Fremont acreditasse que ainda lhe restava um caminho para esca­par, saltando sobre o aterro da estrada de fer­ro e fugindo pelo outro lado. Mas coloquei sigilosamente uma linha de agentes ao longo da estrada.

- Foi uma bela manobra - comentou 0'Carrigan. - Mas tudo estaria perdido se Fremont tivesse decidido atravessar o aterro um pouco antes.

- Não poderia fazê-lo - replicou Morrow. - Nosso fogo, dirigido um pouco para o alto para não atingi-lo, o impedia. Ele temia que ao se pôr de pé, para subir o aterro, fosse alvejado. Mas quando ouvi o apito e entendi que meus com­panheiros estavam prontos ao longo da estra­da, mandei cessar o fogo e ordenei que se ren­desse. Isso fê-lo responder com uns disparos sobre mim, que denunciou sua posição exata­mente para os homens que estavam lá em cima.

Morrow sorriu levemente.

- Chamou-nos a todos de estúpidos, e disse que era mais esperto que nós e que nunca o agarraríamos. E, imediatamente, fez o que eu queria que fizesse. Julgou que antes que reini­ciássemos o fogo ele tivesse tempo de ultrapas­sar o aterro e fugir. Era uma oportunidade ma­ravilhosa, deve ter pensado, e decidiu aproveitá-la. Em dois saltos subiu à estrada de ferro e caiu nas mãos dos homens, que o esperavam. Golpearam-no forte com os cassetetes, e apesar de ter feito um disparo, nada mais conseguiu. O senhor devia vê-lo, chefe, quando o conduzi­am algemado para um carro: espumava de rai­va e também de medo.

- Que aconteceu a esse rapaz, esse tal de Webb? - perguntou 0'Carrigan.

- Morreu lá mesmo - respondeu Morrow. - Quando o encontramos tinha uma baia de revól­ver no coração. Fremont terá que responder também por esse crime. O caso desse rapaz é uma verdadeira lástima. No fundo não era mau, mas estava desencaminhado pelas más compa­nhias e pela avidez do dinheiro fácil. No fim es­tava completamente arrependido e disposto a se emendar.

- Sim, foi uma pena - concordou o inspetor. - E sua irmã?

- Levamos para o hospital de Santa Maria. Está aniquilada. Viu o rapaz morrer, e, além disso, está com os nervos arrasados por tudo o que sofreu esta noite. A pobrezinha é digna de com­paixão, e me proponho a fazer tudo para aju­dá-la.

Um sorriso de malícia iluminou os olhos azuis de 0'Carrigan, e Morrow, percebendo-o, rubori­zou-se levemente.

- Não quero ocultar-lhe, chefe - afirmou o agente apaixonado - que me sinto atraído por essa moça. É boa e decente e já sofreu muito.

- Certo - concordou o chefe - e, além disso, é muito bonita. Pois amigo, desejo que conduza esse assunto a um fim tão feliz como o de seu trabalho desta noite.

Quatro meses depois, numa noite quente de verão, o agente especial James Morrow dirigia-se a prisão do Estado, nos arrabaldes de Filadélfia, para assistir à execução de Rocky Fremont, tra­ficante de entorpecentes, "gangster" e assassino.

A execução estava marcada para uma hora da madrugada, e Morrow, consultando seu relógio, viu que ainda faltava meia hora. Por ser mais de meia-noite, viu-se obrigado a utilizar a porta traseira do presídio e ao passar por ela não pôde deixar de lembrar o brutal assassinato do guarda Donavan, ocorrido ali mesmo.

Teve que identificar-se com outro guarda, pos­tado na porta, e foi informado de que já haviam chegado inúmeros repórteres e outras autori­dades. Morrow sorriu insatisfeito ao ouvi-lo e seguiu em frente. A verdade é que, pensava ele, não se sentia desejoso de presenciar essa coisa tão desagradável, e se não fosse ele o enviado por seu chefe para servir de testemunha, estaria muito mais satisfeito em sua cama.

Foi conduzido à antessala da prisão onde se encontravam reunidos todos aqueles que possuíam autorização para assistir à execução.

Na atmosfera tensa e de expectativa da sala, Morrow movia-se de um lado para outro, cum­primentando um ou outro conhecido ou amigo. Todos o olhavam com curiosidade. Ele era o homem principal responsável pelo acontecimen­to que ia ter lugar, porque havia capturado Fre­mont e um dos principais testemunhos de acusa­ção no ruidoso processo, e Morrow, pálido com tantos olhares curiosos sentia-se certamente abor­recido.

Suspirou mais aliviado quando um guarda uni­formizado apareceu e anunciou que podiam pene­trar na sala de execução. Através de uma ampla entrada, Morrow, misturado com os demais, avan­çou até chegar a uma enorme sala de teto baixo. A câmara da morte.

A sala se achava quase vazia. Apenas alguns bancos toscos de madeira quebravam a monoto­nia, alinhados juntos da parede. Ao fundo um objeto chamava imediatamente a atenção: a cadeira elétrica. Era um móvel frio, grosseiramente construído. Estranhas braçadeiras metálicas or­navam suas extremidades, e junto ao encosto pen­diam os eléctrodos de cobre luzido, transmissores da morte. Acima da cadeira, um relógio com as marcas dos quartos de hora media pausadamente os segundos, e num canto uma cabina encerrava os interruptores.

Os espectadores foram alinhando-se, em com­pleto silêncio ao longo das paredes. Nenhum dos presentes se sentia confortável e, apesar de não fazer muito calor na imensa dependência que se situava no último andar do prédio, o suor fazia brilhar todos os semblantes.

Uns minutos se passaram. O relógio marcava cinco para uma. Nesse momento abriu-se uma portinhola baixa e estreita, situada no fundo da sala. Apareceram dois guardas, levando quase que suspensa uma figura mal aprumada e si­nistra, com o rosto coberto por uma máscara negra.

Morrow jamais presenciara uma execução e sentia-se impressionado. Sempre imaginou que a marcha para a morte seria algo de majestoso e digno. Mas havia muito pouca dignidade na ma­neira como Rocky Fremont era conduzido para a cadeira. O condenado foi empurrado para a frente. Suas pernas pareciam incapazes de sus­tentá-lo. Tropeçou e teria caído se não estivesse firmemente seguro pelos braços.

Era fácil perceber que Rocky Fremont estava quase insensibilizado pelo terror. Seu pescoço e os braços nus apresentavam uma palidez en­ferma. Vestia uma camiseta sem mangas e a perna direita da calça havia sido cortada na altura do joelho.

O preso foi arrojado na cadeira. Vários guardas afivelaram as braçadeiras em torno de suas per­nas e de seus braços. Depois de um momento, Fremont se achava imobilizado, rígido. No iní­cio, num supremo espasmo de terror, tratara de retorcer-se, de resistir. Um grito abalado saiu de entre seus lábios semiabertos, ocultos sob o ca­puz.

Mas logo ficou imóvel, paralisado pelo terror, como um pássaro sob o olhar da serpente. Incapaz de mover-se, de sentir e até de pensar, restava-lhe esperar angustiosamente o final.

O chefe dos policiais adiantou-se para inspe­cionar as braçadeiras. Estavam bem colocadas. Fez um gesto de aprovação e dois funcionários colocaram os eléctrodos. Um foi colocado sobre a cabeça, fazendo contato com o crânio de Rocky num ponto onde seus cabelos haviam sido ras­pados. O outro foi ajustado sobre a perna di­reita, sob a calça cortada.

Um capelão adiantou-se e, ministrou a absolvi­ção do réu. A cabeça de Rocky, presa pelo eléctrodo, inclinou-se ligeiramente. Morrow reanimou-se ao observar o leve movimento. Indicava que o criminoso, apesar da sua situação dramática, apesar do abjeto terror que sentia, ainda podia agradecer aquela absolvição. E se assim era, sua alma não estava totalmente perdida.

O capelão afastou-se e os guardas se separa­ram uns passos. O chefe deles penetrou na cabi­na de controles. A um sinal do chefe de execuções, que tinha o olhar fixo no relógio, moveu a alavanca do interruptor.

Pareceu que o corpo de Rocky Fremont brinca­va terrivelmente na cadeira. A iluminação da sala sofreu uma diminuição de intensidade, e na semiobscuridade, chispas azuis dançaram de cima a baixo sobre o corpo do condenado.

O médico, depois de efetuar o seu exame, olhou o chefe de execuções e assentiu com a cabeça.

- Que Deus tenha piedade de sua alma - murmurou o capelão.

Morrow, com uma estranha sensação no es­tômago, angustiado e se prometendo nunca mais voltar a testemunhar outra execução, voltou-se para sair. Depois deles, num silêncio absoluto, foram saindo todos os demais. E somente quando se sentiram ao ar livre, sob as cintilantes estre­las na fresca noite, atreveram-se a comentar, se bem que em baixa voz, suas impressões sobre a execução.

Ainda sob a impressão do macabro espetáculo, Morrow foi buscar Cora Webb no dia seguinte, ao meio-dia. Adquirira o hábito de ir apanhá-la todos os dias na hora do almoço, nos armazéns Wanamaker e depois iam os dois jovens juntos fazer essa refeição em qualquer um dos muitos restaurantes existentes no centro da cidade.

E a radiante aparição da jovem, mais bela tal­vez que antes, pois sua beleza loura era realçada pelo negror de suas roupas de luto, contribuiu um pouco para levantar a ainda deprimido es­pírito de James Morrow. Contemplando-a, o agente imaginava que sua vida não conseguiria che­gar a ter objetivo nem a chegar à sua plena realização se não pudesse unir-se para sempre àquela moça maravilhosa.

Como de costume, o sorriso de Cora calou no coração do jovem, e respondendo a ela, com os olhos brilhantes de adoração, esqueceu comple­tamente Rocky Fremont e tudo que se relacio­nasse a ele.

Momentos mais tarde, sentados um em frente ao outro numa mesinha de um bar das vizinhan­ças, enquanto esperavam que os servissem, Mor­row envolveu nas suas as mãos da moça.

- Cora - começou. - Estive pensando em nós dois. E cheguei à conclusão de que podería­mos fazer muitas coisas piores que casarmos. Que acha você? Será que resistirá à transformação em esposa de policial? —

A felicidade brilhava nos olhos profundamente azuis da moça, que o contemplava com ternura. Mas sua resposta foi negativa.

- Não James, acho que não devo casar-me com você.

O rosto de Morrow refletiu sua profunda desi­lusão.

- O quê? Mas... Não me julgue pretensioso, Cora, mas jurava que eu não lhe fosse assim completamente indiferente. Por que não?

Cora sorriu com um sorriso malicioso.

- Não toleraria um marido que tivesse o cos­tume de enamorar-se por todas as moças que salvasse de algum perigo. E parece que você está a caminho de adquirir tal costume. Se quer que me case com você terá de prometer que não voltará a fazer tal coisa.

Um suspiro escapou do peito de Morrow ao compreender a brincadeira. Seus olhos se ilumi­naram e seu rosto refletiu uma intensa fe­licidade.

- Não sei se vou prometer tal coisa - disse. - Talvez não seja capaz de cumprir e volte ao velho hábito de salvar moças... De qualquer maneira, prometo solenemente - completou, co­locando com fingida seriedade sua mão sobre O peito. - Aceita-me agora?

Com um suspiro fingido de resignação, ela respondeu:

- Terei que arriscar-me. Que remédio! Mais vale isso do que ficar solteira o resto da minha Vida.

E, apertando-se as mãos, os dois jovens contem­plaram o futuro. 

 

                                                                                O. C. Tavin 

 

 

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