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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CONFRARIA 2 / John Grisham
A CONFRARIA 2 / John Grisham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CONFRARIA

 

XI

Estava a nevar outra vez em lowa, um turbilhão firme de neve e de vento que se transformava em lama nas ruas e nos passeios e fazia com que Quince Garbe sentisse de novo a falta de uma praia. Cobriu o rosto em Main Street, como que para se proteger, mas a verdade é que não queria falar com ninguém. Não queria que ninguém o visse a correr outra vez para a estação dos correios.

Havia uma carta na caixa. Uma daquelas cartas. Caiu-lhe o queixo e ficou com as mãos geladas ao vê-la, ali, junto de correspondência sem importância, inocente, como um bilhete de um velho amigo. Espreitou por cima do ombro - um ladrão atormentado pelo remorso - depois tirou-a e guardou-a no interior do casaco.

A mulher estava no hospital a organizar um baile para crianças deficientes, e portanto não havia ninguém em casa, excepto uma empregada que passava o dia a dormir na lavandaria. Garbe não a aumentava há oito anos. Meteu-se no carro e dirigiu-se para lá, enfrentando a neve e o vento, amaldiçoando o patife que entrara na sua vida servindo-se do artifício do amor e antevendo o conteúdo da carta, que pesava mais no seu coração à medida que o tempo passava.

Ao entrar pela porta principal, fazendo todo o barulho possível, não havia sinais da empregada. Subiu as escadas, entrou no quarto e fechou a porta à chave. Havia uma pistola debaixo do colchão. Garbe atirou o sobretudo e as luvas para cima de uma poltrona, depois o casaco e sentou-se na beira da cama, examinando o envelope. O mesmo papel acinzentado, a mesma letra, tudo igual, e um carimbo de Jacksonville, com dois dias. Abriu-o e tirou uma única folha.

Caro Quince,

Muito obrigado pelo dinheiro. Para que não julgues que sou um completo patife, acho que deves saber que o dinheiro foi para a minha mulher e os meus filhos. Eles estão a sofrer tanto! A minha prisão deixou-os desamparados. A minha mulher está com uma depressão nervosa e não pode trabalhar. Os meus quatro filhos são alimentados pela assistência e por senhas de comida.

(com certeza que cem mil dólares os engordaram, pensou Quince).

Vivem numa casa do estado e não têm transportes capazes. Por isso, mais uma vez obrigado pela tua ajuda. Mais cinquenta mil pagavam-lhes as dívidas e davam para começar a poupar para os estudos.

As mesmas regras; as mesmas instruções de transferência; as mesmas promessas de expor a tua vida secreta se o dinheiro não for recebido depressa. Faz isso já, Quince, e juro que esta será a minha última carta.

Mais uma vez, obrigado.

Um abraço, Ricky

Quince entrou na casa de banho e dirigiu-se ao armário dos medicamentos, onde encontrou o Valium da mulher. Tomou dois comprimidos, mas pensou em engoli-los todos. Precisava de se deitar, mas não se podia servir da cama, porque ela ficaria amarrotada e alguém faria perguntas. Por isso, estendeu-se no chão, na carpete gasta mas limpa, e esperou que os comprimidos fizessem efeito.

Suplicara, arranhara e até mentira um pouco para pedir a primeira prestação destinada a Ricky. Não podia extrair mais cinquenta mil dólares a uma folha de balanço já fortemente almofadada e que continuava a oscilar à beira da insolvência. A sua bela e grande casa estava a sufocar com uma gorda hipoteca sustentada pelo pai. Era o pai que lhe assinava os cheques. Os seus automóveis eram grandes e importados, mas já tinham jmuitos milhares de quilómetros e pouco valor. Quem é que em Bakers, lowa, queria comprar um Mercedes com onze anos?

E se arranjasse uma maneira de roubar o dinheiro? O criminoso chamado Ricky voltaria a agradecer-lhe e exigiria mais.

Ponto final.

Chegara o momento dos comprimidos. O momento da pistola.
O telefone sobressaltou-o. Sem pensar, conseguiu levantar-se e agarrou no auscultador.

- Está? - rosnou.

- Onde diabo estás tu?

Era o pai, com um tom de voz que bem conhecia.

- Estou... Hum... Não me sinto bem - conseguiu dizer, olhando para o relógio e lembrando-se da reunião das dez e meia com um inspector muito importante do FDIC.

- Não me interessa como te sentes. Mr. Colthurst do FDIC está à espera no meu gabinete há um quarto de hora.

- Estou a vomitar, papá - disse ele, encolhendo-se de novo ao pronunciar a palavra «papá». com cinquenta e um anos, continuava a tratá-lo por «papá».

- Estás a mentir. Porque não telefonaste se não te sentias bem? A Gladyz disse-me que te viu pouco antes das dez horas a caminho dos correios. O que diabo foste lá fazer?

- Desculpe. Tenho de ir à casa de banho. Telefono-lhe mais tarde. Quince desligou.

O Valium espalhava-se como um nevoeiro agradável, e Quince sentou-se na beira da cama a olhar para os envelopes cinzentos espalhados pelo chão. As ideias tardavam em chegar, obstruídas pelos comprimidos.

Podia esconder as cartas e depois matar-se. O bilhete em que assumia o suicídio atiraria a maior parte das culpas para o pai. A morte não era uma perspectiva totalmente desagradável; acabava-se o casamento, o banco, o papá, Bakers, lowa e o jogo das escondidas.

Mas iria sentir a falta dos filhos e dos netos.

E se aquele monstro do Ricky não soubesse do suicídio e enviasse outra carta, e eles a descobrissem, e se Quince fosse desmascarado muito depois do seu funeral?

A segunda ideia sombria incluía uma conspiração com a secretária, uma mulher em quem depositava uma confiança marginal para começar. Contar-lhe-ia a verdade e depois pedir-lhe-ia para escrever uma carta a Ricky a dar a notícia do suicídio de Quince Garbe. Juntos, ele e a secretária podiam congeminar e forjar um suicídio e, de caminho, vingar-se de Ricky.

Mas Quince preferia morrer a contar à secretária. A terceira ideia ocorreu-lhe depois de o Valium se ter instalado lá dentro com toda a força e o ter feito sorrir. Por que não tentar uma certa honestidade? Escrever ao Ricky e invocar a pobreza. Oferecer-lhe mais dez mil dólares e dizer-lhe que não tinha mais. Se Ricky estivesse resolvido a destruí-lo, então ele, Quince, não teria alternativa senão ir atrás do Ricky. Informaria o FBI, deixá-los-ia seguir a pista das cartas e das transferências e ambos seriam destruídos.

Dormiu no chão durante meia hora. Depois, pegou no casaco, nas luvas e no sobretudo. Saiu de casa sem ver a empregada. Quando se dirigia para a cidade, entusiasmado com o desejo de enfrentar a verdade, admitiu em voz alta que só o dinheiro era importante. O pai tinha oitenta e um anos. As acções do banco valiam dez milhões de dólares. Que um dia seriam dele. Esperaria até ter o dinheiro na mão e depois viveria como muito bem lhe apetecesse.

Não iria desperdiçar dinheiro.

- Coleman Lee tinha uma barraca de comes-e-bebes numa avenida dos arredores de Gary, Indiana, numa zona da cidade que agora era controlada pelos mexicanos. Coleman tinha quarenta e oito anos, com dois divórcios difíceis há décadas, sem filhos, graças a Deus. Devido aos petiscos, era gordo e vagaroso, com o estômago descaído e umas bochechas grandes e carnudas. Coleman não era bonito, mas estava só.

Os seus empregados eram essencialmente miúdos mexicanos, imigrantes ilegais que, mais tarde ou mais cedo, tentaria molestar, seduzir ou fosse lá o que fosse que chamassem às suas tentativas desajeitadas. Raramente era bem sucedido, e a rotatividade do pessoal era elevada. O negócio também era fraco porque as pessoas murmuravam e Coleman não era bem visto. Quem queria comprar petiscos a um pervertido?

Alugou duas caixas postais nos correios do outro lado da avenida

uma para o seu negócio e outra para o seu prazer. Coleccionava material pornográfico e ia buscá-lo quase todos os dias à estação dos correios. O carteiro da sua zona era um tipo curioso, e era preferível manter as coisas o mais discretas possível.

Caminhou ao longo do passeio sujo que bordejava o parque de estacionamento, passou pelas lojas de desconto que vendiam sapatos e cosméticos, por uma espelunca de vídeos donde fora expulso, por um posto da assistência que fora transferido para os subúrbios por um político desesperado à caça de votos. A estação dos correios estava cheia de mexicanos que faziam tempo porque estava frio lá fora.
A sua correspondência do dia era constituída por duas revistas pornográficas hard-core cintadas com cintas castanhas lisas e uma carta que lhe pareceu vagamente familiar. Era um envelope amarelo, quadrado, sem remetente, com o carimbo de Atlantic Beach, Florida. Ah, sim, lembrou-se quando lhe pegou. O jovem Percy que estava na clínica de reabilitação.

Regressou ao seu pequeno escritório atravancado entre a cozinha e a casa de banho, folheou à pressa as revistas, não viu nada de novo e depois colocou-as numa pilha, junto de centenas de outras. Abriu a carta de Percy. Tal como as duas anteriores, era manuscrita e dirigida a Walt, o nome que ele usava para receber a sua correspondência pornográfica. Walt Lee.

Caro Walt,

Gostei mesmo da tua última carta. Tenho-a lido muitas vezes. Tens uma maneira bonita de dizer as coisas. Como te disse, estou aqui há quase dezoito meses, e sinto-me muito só. Guardo as tuas cartas debaixo do colchão, e quando me sinto só leio-as e releio-as. Onde aprendeste a escrever assim? Por favor, manda-me outra o mais depressa possível.

Com sorte, terei alta em Abril. Não sei ao certo para onde irei nem o que farei. É assustador, acredita, pensar que sairei daqui quase dois anos depois, e que não terei ninguém para me fazer companhia. Espero que ainda sejamos amigos nessa altura.

Estava a pensar, e detesto pedir isto, mas como não tenho mais ninguém vou fazê-lo, e por favor diz que não se te apetecer, que isso não afectará a nossa amizade, mas podias emprestar-me mil dólares? Eles têm esta pequena loja de livros e de música aqui na clínica, e deixam-nos comprar livros de bolso e CDs a crédito e, bem, estou aqui há tanto tempo que já tenho cá uma conta...

Se me puderes fazer o empréstimo, agradeço. Se não, compreendo perfeitamente.

Obrigado por estares aí, Walt. Por favor, escreve-me drepressa. As tuas cartas são preciosas para mim.

Beijos, Percy

Mil dólares? Que raio de pendura era este? Cheirava-lhe a vigarice. Coleman rasgou a carta em pedaços e atirou-os para o lixo.
- Mil dólares - disse ele em voz baixa, pegando outra vez nas revistas.

Curtis não era o verdadeiro nome do joalheiro de Dallas. Curtis servia para ele se corresponder com o tal Ricky em fase de reabilitação, mas o seu verdadeiro nome era Vann Gates.

Mr. Gates tinha cinquenta e oito anos, parecia ter um casamento feliz, era pai de três filhos e avô de dois netos, e ele e a mulher eram proprietários de seis joalharias na zona de Dallas, todas em avenidas. Tinham dois milhões de dólares em papel, ganho com o seu trabalho. Possuíam uma bela casa nova em Highland Park, com quartos separados em extremos opostos. Encontravam-se na cozinha para tomar café e na sala para ver televisão e estar com os netos.

Mr. Gates aventurava-se a pisar o risco de vez em quando, sempre com grande precaução. Ninguém desconfiava de nada A sua correspondência com Ricky fora a sua primeira tentativa para encontrar o amor através de anúncios, e até aí ficara entusiasmado com os resultados. Alugou uma caixa postal numa estação dos correios perto de uma das avenidas e usava o nome de Curtis V. Gates.

O envelope cinzento era dirigido a Curtis Cates, e quando se sentou no carro e o abriu com cuidado, a princípio não percebeu que havia qualquer coisa que não estava bem. Mais uma carta de amor do seu adorado Ricky. Mas as primeiras palavras esclareceram-no:

Caro Vann Gates,

Acabou a brincadeira, pá. Eu não me chamo Ricky e tu não te chamas Curtis. Eu não sou um homossexual à procura de amor. Mas tu tens um terrível segredo que, segundo creio, queres manter. Eu quero ajudar.

Aqui vai o acordo: transfere cem mil dólares para o Geneva Trust Bank, Nassau, Bahamas, conta número 144-DXN-9593, para a Boomer Realty, Ltd., código número 392844-22.

Fá-lo imediatamente! Isto não é uma brincadeira. É uma fraude, e tu foste apanhado. Se o dinheiro não for recebido dentro de dez dias, enviarei à tua mulher, Miss Glenda Gates, um embrulhinho com cópias de todas as tuas cartas, fotografias, etc.

Transfere o dinheiro, que eu desapareço.

Beijos, Ricky

Com tempo, Vann descobriu a circular 1-635 de Dallas. e pouco depois estava na circular 1-820 à volta do Fort h Worth. Depois regressou a Dallas, exactamente às cinco e cinco, pela faixa da direita, esquecido do trânsito que se aglomerava atrás dele. Se chorar o ajudasse, teria chorado. Não tinha problemas em chorar, sobretudo na privacidade do seu Jaguar.

Mas estava demasiado furioso para chorar, demasiado amargo para se sentir ferido. E estava demasiado assustado para perder tempo a desejar alguém que não existia. Era preciso agir, depressa, com determinação e em segredo.

Mas o desgosto apoderou-se dele, e Vann acabou por parar na berma e estacionar o carro com o motor a trabalhar. Todos aqueles sonhos maravilhosos com Ricky, aquelas horas intermináveis a olhar para o seu belo rosto com aquele seu sorrisinho falso e a ler as suas cartas, tristes, divertidas, desesperadas, cheias de esperança! Como podia a palavra escrita transmitir tantas emoções? Praticamente, Vann memorizara as cartas.

E ele era apenas um rapazinho, tão jovem e viril, mas só e a precisar de uma companhia madura. O Ricky que ele aprendera a amar precisava do abraço amoroso de um homem mais velho, e Curtis/Vann fazia planos há meses. O pretexto de uma exposição de diamantes em Orlando, enquanto a mulher estava em El Paso, em casa da irmã. Suara a cuidar dos pormenores e não deixara vestígios.

Por fim, chorou. O pobre Vann deixou correr as lágrimas sem vergonha nem embaraço. Ninguém podia vê-lo; os outros automóveis passavam por ele a cento e vinte quilómetros à hora.

Jurou vingança, como qualquer amante abandonado. Havia de encontrar aquele animal, aquele monstro que se fizera passar por Ricky e o deixara destroçado.

Quando os soluços abrandaram, Vann pensou na mulher e na família, o que o ajudou muito a secar as lágrimas. Ela ficaria com as seis lojas, os dois milhões de dólares e a casa nova com quartos separados e ele seria ridicularizado, escarnecido e alvo de falatório numa cidade que gostava tanto de falar. Os filhos iriam atrás do dinheiro e os netos passariam o resto da vida a ouvir cochichar acerca do avô.

De regresso à faixa da direita, a oitenta, passou pela mesquita pela segunda vez, relendo a carta enquanto era ultrapassado por outros automobilistas.
Não tinha ninguém a quem telefonar, nenhum banqueiro em quem pudesse confiar para verificar a quem pertencia a conta nas Bahamas, nenhum advogado que o aconselhasse, nenhum amigo que ouvisse a sua triste história.

Para um homem que levara cautelosamente uma vida dupla, o dinheiro não seria um obstáculo intransponível. A mulher vigiava todos os cêntimos, quer em casa quer nos estabelecimentos, e por isso há muito que Vann dominava o esquema de esconder dinheiro. Fazia-o com pedras preciosas, rubis, pérolas e às vezes pequenos diamantes que punha de lado e que mais tarde vendia a outros comerciantes para fazer dinheiro. Era vulgar no ramo. Tinha caixas cheias de dinheiro - caixas de sapatos impecavelmente empilhadas num cofre à prova de fogo em Plano. Dinheiro para depois do divórcio. Dinheiro para a vida que ele e Ricky encetariam quando corressem o mundo de veleiro e que gastariam na sua viagem interminável.

- Filho da mãe! - disse ele entredentes, repetidas vezes. Porque não havia de escrever àquele vigarista a dizer que era pobre?

Ou a ameaçá-lo de revelar o seu plano de extorsão? Porque não havia de dar luta?

Porque o filho da mãe sabia exactamente o que ele andava a fazer. Vigiara-o bem ao ponto de saber o seu verdadeiro nome e o da mulher. Sabia que Vann tinha o dinheiro.

Entrou na rampa da sua casa e lá estava Glenda a varrer o passeio.

- Onde tens andado, querido? - perguntou ela num tom agradável.

- A fazer compras - respondeu ele com um sorriso.

- Demoraste-te muito - disse ela, continuando a varrer.

Vann estava farto disto! Ela cronometrava-lhe os movimentos! Há trinta anos que andava debaixo do polegar dela, com um cronometro a fazer tiquetaque na palma da mão.

Beijou-a na face, por hábito, e depois foi para a cave. Fechou uma porta à chave e começou a chorar outra vez. A casa era a sua prisão (com uma hipoteca de sete mil e oitocentos dólares por mês, era o que parecia). A mulher era o guarda, que tinha as chaves em seu poder. O único meio de fuga de Vann acabara de ruir, substituído por um escroque de sangue frio.


XII

Dezoito urnas exigiam muito espaço. Estavam dispostas em filas perfeitas, todas impecavelmente envolvidas em vermelho, azul e branco, todas do mesmo comprimento e da mesma largura. Tinham chegado há meia hora num avião de carga da força aérea e foram retiradas com grande pompa e cerimonial. Quase um milhar de amigos e familiares estavam sentados em cadeiras desmontáveis, no pavimento de betão do hangar, e olhavam, chocados, para o mar de bandeiras à sua frente. Só os jornalistas os ultrapassavam em número, todos isolados atrás de barricadas e da polícia militar.

Até para um país muito habituado a gastos fúteis com a política externa, era um número impressionante. Oitenta americanos, oito ingleses, oito alemães e nenhum francês, porque a França tinha boicotado as funções diplomáticas ocidentais no Cairo. Porque se encontravam ainda oitenta americanos na embaixada depois das dez horas da noite? Essa era a pergunta do momento, e ainda não surgira nenhuma boa resposta. E muitos dos que tinham tomado essa decisão estavam agora deitados no caixão. A melhor teoria que circulava em Washington era que o fornecedor das refeições se atrasara e que a orquestra chegara ainda mais tarde.

Mas os terroristas tinham provado bem que atacariam a qualquer hora. Portanto, que importância tinha o facto de o embaixador, a mulher, o pessoal, os colegas e os convidados terem querido prolongar a recepção?

A segunda grande pergunta do momento era saber por que motivo é que os Estados Unidos tinham oitenta pessoas na sua embaixada do Cairo. O Departamento de Estado ainda tinha de admitir a pergunta.

Depois da música fúnebre executada pela banda da força aérea, o presidente usou da palavra. A voz embargou-se-lhe e tentou atrair uma ou duas lágrimas, mas, depois de oito anos de teatro, estava esgotado. Já
prometera vingança muitas vezes, e apoiava-se no bem-estar, no sacrifício e na promessa de uma vida melhor daí em diante.

O secretário de Estado enumerou os nomes dos mortos, uma recitação mórbida destinada a sublinhar a solenidade do momento. Os soluços aumentaram. Seguiu-se mais música. O discurso mais longo foi pronunciado pelo vice-presidente, recém-saído da campanha e cheio de um recém-descoberto empenho em erradicar o terrorismo da face da Terra. Apesar de nunca ter envergado um uniforme militar, parecia ansioso por começar a lançar granadas.

Lake trazia-os todos debaixo de olho.

Lake assistiu à cerimónia triste quando voava de Tucson para Detroit, já atrasado para mais uma ronda de entrevistas. A bordo ia o seu perito de sondagens, um mago de aquisição recente, que agora viajava consigo. Enquanto Lake e a sua equipa viam as notícias, o perito de sondagens trabalhava febrilmente na pequena mesa de reuniões em que se encontravam dois computadores pessoais, três telefones e mais folhas impressas do que quaisquer dez pessoas conseguiam digerir.

As primárias do Arizona e do Michigan eram daí a três dias e os números de Lake estavam a subir, sobretudo no seu estado natal, onde se encontrava empatado com o governador Tarry, de Indiana, que há muito ocupava o primeiro lugar. No Michigan, Lake levava dez pontos de desvantagem, mas as pessoas estavam atentas. O fiasco do Cairo estava a agir extraordinariamente a seu favor.

De repente, o governador Tarry andava à procura de dinheiro. Não era o caso de Aaron Lake. O dinheiro entrava mais depressa do que ele conseguia gastá-lo.

Quando o vice-presidente acabou de falar, Lake abandonou o ecrã, regressou à sua poltrona de couro e pegou num jornal. Um membro da equipa levou-lhe café, que bebeu enquanto observava as planícies do Kansas, doze quilómetros mais abaixo. Outro elemento da equipa entregou-lhe uma mensagem que, supostamente, exigia uma resposta urgente do candidato. Lake deitou uma vista de olhos ao avião e contou treze pessoas, sem incluir os pilotos.

Para um homem discreto que ainda sentia a falta da mulher, Lake não se estava a adaptar bem à falta total de privacidade. Deslocava-se na companhia de um grupo, de meia em meia hora era requisitado por alguém,

todos os seus actos eram coordenados por uma comissão, todas as entrevistas antecedidas de hipóteses escritas sobre as perguntas e de sugestões de respostas. Todas as noites passava seis horas sozinho, no seu quarto de hotel, e apostava que os serviços secretos dormiriam no chão se ele o permitisse. Devido ao cansaço, dormia como uma criança. Os únicos momentos de reflexão eram os que passava na casa de banho, no duche ou na sanita.

Mas não andava a brincar consigo próprio. Ele, Aaron Lake, um pacato congressista do Arizona, tornara-se uma sensação de um dia para o outro. Atacava enquanto os outros soçobravam. Os grandes magnatas estavam de olhos postos nele. A imprensa seguia-o como cães de caça. As suas palavras eram repetidas. Tinha amigos muito poderosos e, à medida que as peças eram postas no lugar, a nomeação parecia ser uma realidade. Há um mês, nem sonhava que tal pudesse acontecer.

Lake saboreava o momento. A campanha era uma loucura, mas ele conseguia controlar o tempo. Reagan, um presidente das nove às seis, fora muito mais eficiente do que Cárter, um maníaco do trabalho. Bastava chegar à Casa Branca, repetia a si próprio, aturar aqueles loucos, vencer as primárias, reagir com um sorriso e com rapidez de raciocínio, e um dia, que já não vinha longe, estaria sentado na Sala Oval, sozinho, com o mundo a seus pés.

E teria a sua privacidade.

Teddy estava sentado com York no seu abrigo, a assistir em directo à cerimónia que se desenrolava na base da força aérea de Andrews. Preferia a companhia de York quando as coisas eram difíceis. As acusações tinham sido brutais. Havia falta de bodes espiatórios, e muitos dos idiotas que perseguiam as câmaras acusavam a CIA, como sempre faziam.

Se eles soubessem...

Acabou por falar a York dos avisos de Lufkin, e York compreendeu perfeitamente. Infelizmente, já tinham passado pelo mesmo. Quando se é a polícia do mundo, perdem-se muitos agentes, e Teddy e York tinham partilhado muitos momentos de tristeza ao verem desembarcar dos C-130 as urnas cobertas pela bandeira. A campanha de Lake seria a última tentativa de Teddy para salvar vidas americanas.

O fracasso parecia improvável. O CAP-D angariara mais de vinte milhões de dólares em duas semanas e decorria o processo de recolha de
 dinheiro nos arredores de Washington. Tinham sido recrutados vinte e um congressistas para apoiar Lake, com um custo total de seis milhões de dólares. Mas a verba mais elevada fora para o senador Britt, o ex-candidato, o pai de um rapazinho tailandês. Quando ele abandonou a corrida à Casa Branca, devia perto de quatro milhões de dólares e não dispunha de um plano viável para cobrir o défice. De um modo geral, o dinheiro não vai atrás daqueles que fazem as malas e vão para casa. Elaine Tyner, a advogada que geria o CAP-D, encontrou-se com o senador Britt. Nem precisou de uma hora para fechar o acordo. O CAP-D pagaria as dívidas da sua campanha, durante um período de três anos, e ele anunciaria ruidosamente o seu apoio a Aaron Lake.

- Temos uma previsão das baixas? - perguntou York. Pouco depois, Teddy respondeu:

- Não.

As conversas de ambos nunca eram apressadas.

- Porquê tanta gente?

- Muito álcool. É sempre assim nos países árabes. Uma cultura diferente, uma vida monótona, e quando os nossos diplomatas dão uma festa é de arromba. Muitos dos que morreram estavam completamente embriagados.

Passaram alguns minutos.

- Onde está Yidal? - perguntou York.

- Neste momento está no Iraque. Ontem estava na Tunísia.

- Devíamos mesmo neutralizá-lo.

- E o que faremos no próximo ano. Será um grande momento para o presidente Lake.

Doze dos dezasseis congressistas que tinha transferido o seu apoio para Lake vestiam camisas azuis, um facto que não passara despercebido a Elaine Tyner. Ela reparava nessas coisas. Quando um político de Washington se aproximava de uma câmara, era quase certo que vestia a sua melhor camisa de algodão azul. Os outros vestiam camisas brancas.

Ela dispô-los diante dos repórteres numa sala de baile do hotal Willard. O membro mais velho, o representante Thurman da Florida, abriu a sessão, saudando a imprensa naquela ocasião tão importante. Recorrendo a apontamentos preparados, Thurman emitiu as suas opiniões acerca do estado actual dos acontecimentos mundiais, comentou o que se passava
no Cairo, na China e na Rússia e disse que o mundo era muito mais perigoso do que parecia. Apresentou as estatísticas habituais sobre as reduzidas forças armadas americanas. Em seguida, lançou-se num longo solilóquio sobre o seu amigo íntimo Aaron Lake, um homem com quem trabalhara durante dez anos e que conhecia melhor do que quase todos. Lake era um homem com uma mensagem não particularmente agradável de ouvir, mas muito importante.

Thurman estava a romper com o governador Tarry, e apesar de o fazer com grande relutância e sem qualquer sentimento de traição, convencera-se, graças a um penoso exame de consciência, que Aaron Lake era necessário à segurança da nação. O que Thurman não disse foi que uma sondagem recente revelava que Lake estava a ganhar popularidade em Tampa-St. Pete.

Em seguida, o microfone passou para um congressista da Califórnia, que não disse nada de novo, mas que falou durante dez minutos. Na sua região, a norte de San Diego, havia quarenta e cinco mil trabalhadores na indústria aeroespacial e da defesa, e todos eles, ao que parecia, tinham escrito ou telefonado. Thurman convertera-se com facilidade; a pressão da sua terra natal mais duzentos e cinquenta mil dólares de Miss Tyner e do CAP-D, e recebera a sua guia de marcha.

Quando começaram as perguntas, os dezasseis congressistas reuniram-se num pequeno grupo coeso, todos ansiosos por responder e dizer qualquer coisa, todos com receio de que o seu rosto não aparecesse na imagem.

Embora não houvesse presidentes de comissões, o grupo não deixava de impressionar. Eles conseguiam transmitir a imagem de que Aaron Lake era um candidato legítimo, um homem que conheciam e no qual confiavam. Um homem de quem a nação precisava. Um homem que podia ser eleito.

O acontecimento estava bem montado e contou com uma cobertura que gerou logo notícias. Elaine Tyner faria mais cinco no dia seguinte e depois dispensaria o senador Britt até à véspera da Super Terça-Feira.

A carta no porta-luvas de Ned era de Percy, o jovem Percy em período de reabilitação, cuja correspondência era dirigida a Laurel Ridge, Caixa Postal 4585, Atlantic Beach, FL-32233.

Ned estava em Atlantic Beach há dois dias, com a carta e a determinação de seguir o jovem Percy, porque lhe cheirava a brincadeira. Não
tinha nada melhor para fazer. Estava reformado com muito dinheiro, não tinha família que se visse e, além disso, estava a nevar em Cincinatti. Alugara um quarto na Sea Turtle Inn, na praia, e à noite corria os bares de Atlantic Boulevard. Descobrira dois excelentes restaurantes, cheios de gente e com muitos jovens belos de ambos os sexos. Encontrara o Pete’s Bar and Grill a um quarteirão, e nas duas últimas noites saíra de lá bêbado que nem um cacho. O Sea Turtle ficava mesmo ao virar da esquina.

Durante o dia, Ned observava a estação dos correios, um edifício moderno de tijolo e vidro em First Street, paralelo à praia. A caixa postal 4585, pequena e sem janela, ficava ao meio de uma parede, junto de oitenta outras, numa zona de trânsito médio. Ned inspeccionara a caixa, tentara abri-la com chaves e arame, e até fizera perguntas ao balcão. Os funcionários dos correios não se tinham disposto a ajudá-lo. No primeiro dia, antes de sair, Ned enfiara cinco centímetros de linha preta no fundo da porta da caixa. Era imperceptível a qualquer outra pessoa, mas Ned saberia se alguém lá fora buscar a correspondência.

Tinha uma carta lá dentro, num envelope vermelho-vivo, que enviara há três dias de Cincinatti, antes de partir para o Sul. Nela enviava a Percy um cheque de mil dólares, o dinheiro de que o rapaz precisava para comprar material de pintura. Numa carta anterior, Ned revelara que fora dono de uma galeria de arte moderna em Greenwich Village. Era mentira, não fora nada, mas também ele duvidava de tudo o que Percy lhe dissera.

Ned desconfiara desde o início. Antes de responder à solicitação, tentara saber o que era Laurel Bridge, a tal unidade de desintoxicação que supostamente retinha Percy. Havia um telefone, um número particular que não conseguira extorquir à assistente dos telefones. Não havia endereço. Percy explicara-lhe na primeira carta que a unidade era ultra-secreta, porque muitos dos seus pacientes eram executivos de empresas muito poderososas e altos funcionários do governo e todos tinham sucumbido aos produtos químicos, de uma maneira ou de outra. Pareceu-lhe uma boa explicação. O rapaz escrevia bem.

E tinha um belo rosto. Por isso é que Ned continuava a escrever. Todos os dias admirava a fotografia.

O pedido de dinheiro apanhara-o de surpresa e, como estava cheio de tédio, resolvera meter-se no carro e ir até Jacksonville.

Do seu lugar no parque de estacionamento, escondido atrás do volante do automóvel, e de costas para First Street, via a parede das caixas e os
clientes a entrar e a sair. Era pouco provável que conseguisse alguma coisa, mas tentaria. Servia-se de uns pequenos binóculos conveitíveis e já fora alvo dos olhares de alguém que passava. A tarefa tornou-se monótona ao fim de dois dias, mas, à medida que o tempo passava, Ned estava cada vez mais convencido de que a sua carta seria recolhida. com certeza que alguém ia ver a caixa pelo menos de três em três dias. Uma clínica de reabilitação devia ter muita correspondência, não é verdade? Ou servia apenas de fachada a um vigarista que passava por lá uma vez por semana para verificar as suas armadilhas?

O vigarista apareceu ao fim da tarde do terceiro dia. Estacionou um carocha ao lado de Ned e depois encaminhou-se para a estação dos correios. Vestia umas calças de caqui amarrotadas, uma camisa branca, chapéu de palha, lacinho e tinha o ar desalinhado de um boémio.

Trevor fizera uma longa pausa no Pete’s, depois digerira o seu almoço líquido com uma hora de sono à secretária, e começava a acordar, a dar as suas voltas. Enfiou a chave na caixa 4585 e retirou um punhado de correspondência, quase toda inútil, que ia deitando fora à medida que verificava as cartas ao sair do edifício.

Ned vigiava todos os seus movimentos. Depois de três dias de tédio, ficara entusiasmado por a sua vigilância ter sido recompensada. Seguiu o carocha, e quando o automóvel parou e o condutor entrou num escritório de advogados pequeno e degradado, Ned arrancou, coçando a testa e repetindo em voz alta:

- Um advogado?

Continuou a guiar, desceu a auto-estrada AIA, ao longo da costa, longe das extensões de Jacksonville. Seguiu para sul, passando por Vilano Beach, Crescent Beach, Beverly Beach e Flagler Beach. Por fim, chegou a um Holiday Inn à saída de Port Orange. Dirigiu-se ao bar antes de subir ao quarto.

Era a primeira fraude em que se via envolvido. Por sinal, era a segunda. Apercebera-se da outra antes de ser prejudicado. Ao fim do terceiro martini, jurou a si próprio que esta seria a última.

 

XIII

Na véspera das primárias no Arizona e no Michigan, a campanha de Lake desencadeou uma investida em força dos órgãos de comunicação social como nunca se vira em política presidencial. Durante dezoito horas, os dois estados foram bombardeados com anúncios sucessivos. Uns duravam quinze segundos, anúncios curtos e leves, que não eram muito mais do que o rosto atraente do candidato e as promessas de uma liderança firme de um mundo mais seguro. Outros eram documentários de um minuto sobre os perigos do pós-Guerra Fria. Outros ainda, eram ameaças machistas e ostensivas aos terroristas de todo o mundo - matem pessoas só porque são americanas, e pagarão um preço muito alto. Os acontecimentos no Cairo ainda estavam muito frescos e as garantias acertaram no alvo.

Os anúncios eram arrojados, concebidos por consultores poderosos, e a sua única desvantagem era a saturação. Mas Lake entrara em cena há pouco tempo e não saturava ninguém, pelo menos por enquanto. A sua campanha gastara dez milhões de dólares em televisão nos dois estados, uma quantia surpreendente.

O ritmo de transmissão abrandou durante os períodos de votação na terça-feira, 22 de Fevereiro e, quando as urnas encerraram, os analistas anteviam que Lake ganhasse em casa e alcançasse um segundo lugar à tangente no Michigan. Afinal, o governador Tarry era de Indiana, outro estado do Midwest, e passara várias semanas no Michigan nos últimos três meses.

Era óbvio que não passara tempo suficiente neste estado. Os eleitores do Arizona optaram pelo seu conterrâneo, e os do Michigan também gostaram do novo candidato. Lake obteve 60 por cento em casa e 55 por cento no Michigan, onde o governador Tarry alcançou uns míseros 31 por cento. O saldo foi dividido pelos que estavam fora da contenda.

Foi uma perda devastadora para o governador Tarry, apenas a duas semanas da grande Super Terça-Feira e a três semanas da pequena.

Lake assistiu à contagem dos votos a bordo do seu avião quando regressava de Phoenix, onde votara em si próprio. A uma hora de Washington, a CNN anunciou que ele vencera de surpresa no Michigan, e a sua equipa abriu garrafas de champanhe. Lake saboreou o momento e permitiu-se beber duas taças.

A notícia não se perdia em Lake. Ninguém começara tão tarde nem fora tão longe e tão depressa. Na cabina às escuras, viram os analistas em quatro ecrãs, e todos os especialistas estavam maravilhados com esse tal Lake e com o que ele fizera. O governador Tarry mostrou-se afável, mas também preocupado com as enormes quantias que estavam a ser gastas pelo seu opositor até então desconhecido.

Lake conversou delicadamente com o pequeno grupo de repórteres que o aguardavam no Reagan National Airport e depois meteu-se noutro Suburban preto para a sede nacional da sua campanha, onde agradeceu ao seu pessoal principescamente pago e lhes disse que fossem para casa dormir.

Era quase meia-noite quando chegou a Georgetown, à sua pequena e estranha vivenda geminada, em Thirty-fourth Street, nos arredores de Wisconsin. Dois agentes dos serviços secretos saíram do automóvel atrás de Lake e mais dois aguardavam-no à porta de casa. Lake recusou terminantemente o pedido de um funcionário para que os guardas ficassem lá dentro.

- Não vos quero ver a espreitar por aqui - disse ele, num tom rude, à porta.

Desagradava-lhes a presença deles, não sabia como se chamavam e não se importava que não gostassem dele. Para ele, era como se os homens não tivessem nome. Eram apenas «vocês», pronunciados com o maior desprezo possível.

Depois de entrar e de fechar a porta à chave, subiu ao quarto e mudou de roupa. Apagou as luzes como se estivesse a dormir, esperou um quarto de hora e depois desceu as escadas devagarinho até à sala, para ver se estava alguém a olhar lá para dentro. Desceu mais um lanço até à pequena cave. Saiu por uma janela e penetrou na atmosfera fria da noite, junto do seu pátio minúsculo. Parou, ficou à escuta e não ouviu nada. Abriu uma pequena cancela de madeira sem fazer barulho e enfiou-se à pressa no meio dos dois prédios atrás do seu. Reapareceu em Thirty-fifth Street,
sozinho, às escuras, com um fato de treino e um boné que lhe tapava a testa. Três minutos depois, estava em M Street, no meio da multidão. Apanhou um táxi e desapareceu na noite.

Teddy Maynard adormecera razoavelmente satisfeito com as duas primeiras vitórias do seu candidato, mas fora acordado com a notícia de que algo correra mal. Quando entrou no abrigo às seis e dez da manhã, estava mais assustado do que furioso, apesar de ter passado por toda a série de emoções nas últimas horas. York esperava-o, na companhia de um supervisor chamado Deville, um homenzinho nervoso que estava de serviço há muitas horas, como era óbvio.

- Sou todo ouvidos - rosnou Teddy, continuando a rodar a cadeira e à procura de café.

Deville é que falou.

-À meia-noite e dois minutos, ele despediu-se dos serviços secretos e entrou em casa. À meia-noite e dezassete, saiu por uma pequena janela na cave. Nós, evidentemente, tínhamos fios e temporizadores em todas as portas e janelas. Alugámos uma vivenda do outro lado da rua e estávamos alerta. Há seis dias que ele não vai a casa.

Deville agitou no ar um pequeno comprimido do tamanho de uma aspirina.

- Isto é um pequeno dispositivo chamado T-Dec. Foi colocado nas solas de todos os sapatos dele, incluindo os ténis. Portanto, se ele não estiver descalço, sabemos onde se encontra. Quando o pé faz pressão, o microfone emite um sinal que é transmitido a duzentos metros sem a ajuda de qualquer transmissor. Quando a pressão desaparece, continua a dar sinal durante um quarto de hora. Procurámos e apanhámo-lo em M Street. Ia de fato de treino e com um boné até aos olhos. Tínhamos dois carros no local quando ele saltou para um táxi. Seguimo-lo até Chevy Chase, a um centro comercial suburbano. Enquanto o táxi esperava, ele entrou num local chamado Mailbox America, um desses sítios novos em que podemos enviar e receber correspondência à margem do serviço postal. Alguns, como este, estão abertos vinte e quatro horas para recepção de correspondência. Não se demorou lá dentro nem um minuto, apenas o suficiente para abrir a caixa com uma chave, tirar correspondência diversa, deitá-la fora e voltar para o táxi. Um dos nossos automóveis seguiu-o até M Street, onde saiu e voltou para casa às escondidas. O outro automóvel ficou junto da caixa postal. Fomos verificar o cesto do lixo mesmo à entrada da porta e encontramos seis exemplares de correspondência sem importância, que era obviamente dele. O endereço é Al Konyers, Caixa 455, Mailbox America, 39380 Western Avenue, Chevy Chase.

- Então ele não encontrou o que procurava? - perguntou Teddy.

- Parece que deitou fora tudo o que tirou da caixa. Aqui está o vídeo. Um ecrã baixou do tecto quando as luzes diminuíram de intensidade.

Uma câmara de vídeo percorreu um parque de estacionamento, passou pelo táxi e concentrou-se na figura de Aaron Lake, de fato de treino, a desaparecer numa esquina dentro do Mailbox America. Alguns segundos depois, Lake reapareceu, examinando as cartas e os jornais que trazia na mão direita. Parou por instantes à porta e atirou tudo para um grande receptáculo de lixo.

- Que diabo procurava ele? - perguntou Teddy a si próprio. Lake saiu do edifício e enfiou-se à pressa no táxi. O vídeo acabou; as luzes aumentaram de intensidade. Deville retomou a sua narrativa:

- Estamos convencidos de que encontrámos os papéis exactos no contentor do lixo. Poucos segundos depois estávamos lá, e ninguém entrou nas instalações enquanto estávamos à espera. Faltavam dois minutos para a uma. Uma hora depois, voltámos a entrar e tirámos o molde da fechadura da caixa 455; por isso temos acesso a ela sempre que for necessário.

-Verifique-a todos os dias - disse Teddy. - Inventarie toda a correspondência. Deixe o que não presta, mas quando chegar alguma coisa, quero saber.

- Com certeza. Mr. Lake voltou a entrar em casa pela janela da cave à uma e vinte e dois e não voltou a sair durante a noite. Está lá neste momento.

- É tudo - disse Teddy, e Deville saiu da sala. Passou-se um minuto enquanto Teddy mexia o seu café.

- Quantos endereços tem ele?

York sabia que a pergunta estava iminente. Consultou alguns apontamentos.

- Recebe a maior parte da correspondência pessoal em Georgetown. Tem pelo menos dois endereços no Capitólio, um no gabinete e outro na comissão das forças armadas. Tem três endereços no Arizona. O que perfaz seis, que saibamos.

- Porque havia de precisar de um sétimo?

- Não sei o motivo, mas não pode ser bom. Um homem que não tem nada a esconder, não utiliza outro nome nem um endereço secreto.

- Quando é que ele alugou a caixa postal?

- Estamos a trabalhar nisso.

- Talvez a tenha alugado depois de resolver entrar na corrida. O Lake tem a CIA que pensa por ele, e talvez por isso imagine que estamos a vigiar tudo. E talvez julgue que precisa de um pouco de privacidade; daí a caixa. Talvez seja uma namorada de cuja existência não nos apercebemos. Talvez goste de revistas ou de vídeos obscenos, de algo que seja enviado pelo correio.

Depois de uma longa pausa, York disse:

- Talvez. E se a caixa já estivesse alugada há meses, muito antes de ele entrar na corrida?

- Então é porque não se está a esconder de nós. Está a esconder-se do mundo e o seu segredo é verdadeiramente terrível.

Ponderaram em silêncio no terror do segredo de Lake, sem quererem arriscar uma hipótese. Resolveram montar uma vigilância ainda maior e verificar a caixa do correio duas vezes por dia. Lake sairia da cidade dentro de algumas horas, para se bater noutras primárias, e eles ficariam com a caixa à sua disposição.

A menos que mais alguém fosse verificá-la por ele.

Aaron Lake era o homem do momento em Washington. Do seu gabinete no Capitólio, concedeu entrevistas em directo aos primeiros noticiários da manhã. Recebeu senadores e outros membros do Congresso, amigos e antigos inimigos, todos eles manifestando uma grande satisfação e portadores de felicitações. Almoçou com o seu pessoal da campanha e prolongou-o com longas reuniões sobre estratégia. Depois de um jantar rápido com Elaine Tyner, que trouxe notícias óptimas das toneladas de dinheiro que caíam no CAP-D, saiu da cidade e voou para Siracusa, afim de planear as primárias de Nova Iorque.

Foi saudado por uma enorme multidão. Afinal, era ele que ia à frente.


XIV

As ressacas estavam a tornar-se mais frequentes, e quando Trevor abriu os olhos para mais um dia disse a si próprio que tinha de se controlar. Não podia passar as noites no Pete’s a consumir bebidas baratas com estudantes, a ver jogos de basquetebol insignificantes só porque apostara mil dólares neles. Na noite anterior, fora o Logan State e outra equipa qualquer, de equipamento verde. Quem se importava com o Logan State?

Joe Spicer Roy, nem mais. Spicer apostara quinhentos dólares neles. Trevor reforçara a aposta com mil dólares seus, e Logan vencera. Na semana anterior, Spicer apostara em dez de doze vencedores. Já ganhara três mil dólares em dinheiro e Trevor, que felizmente lhe seguira os palpites, estava a ganhar cinco mil e quinhentos. O seu jogo estava a revelar-se muito mais proveitoso do que o exercício da advocacia. E havia mais alguém que estava a acertar nos vencedores!

Dirigiu-se à casa de banho e molhou a cara com água sem olhar para o espelho. A sanita ainda estava entupida da véspera, e quando ia a sair da sua pequena casa imunda, à procura de um canalizador, o telefone tocou. Era uma mulher de uma vida anterior, uma mulher que odiava e que o odiava, e quando lhe ouviu a voz percebeu que ela precisava de dinheiro. Furioso, disse que não e meteu-se debaixo do chuveiro.

A situação piorara no escritório. Um casal que se estava a divorciar chegara em automóveis separados para ultimar as negociações destinadas à divisão dos bens. Os haveres por que brigavam não tinham consequências para ninguém-panelas, tachos, uma torradeira -, mas como não possuíam nada, tinham de brigar por qualquer coisa. As discussões eram tanto mais desagradáveis quanto menor era o que estava em jogo.

O advogado estava atrasado uma hora e eles aproveitaram o tempo para discutir, até que Jan finalmente os separou. A mulher estava instalada no gabinete de Trevor quando ele entrou pela porta das traseiras.

- Onde diabo tem você estado? - perguntou ela, suficientemente alto para o marido a ouvir.

O homem avançou pelo corredor, passou por Jan, que não foi atrás dele, e entrou de rompante no pequeno gabinete de Trevor.

- Estamos à espera há uma hora! - anunciou ele.

- Calem-se, os dois! - gritou Trevor.

Jan saiu do prédio. Os clientes ficaram estupefactos com o seu tom de voz.

- Calem-se! - gritou Trevor outra vez, e eles sentaram-se nas únicas cadeiras que estavam vazias. - Vocês pagam quinhentos dólares por um miserável divórcio e julgam que são donos disto!

O casal reparou no rosto e nos olhos vermelhos do advogado e concluiu que não era pessoa com quem se armasse sarilhos. O telefone começou a tocar e ninguém o atendeu. Outra vez nauseado, Trevor saiu do gabinete, entrou na casa de banho do outro lado do corredor e vomitou o mais silenciosamente possível. O autoclismo não funcionou e a pequena corrente metálica tilintou no interior do reservatório.

O telefone continuava a tocar. Trevor desceu o corredor resolvido a despedir Jan. Como não a encontrou, saiu também do prédio. Dirigiu-se para a praia, descalçou as meias e os sapatos e chapinhou os pés na água salgada e fria.

Duas horas mais tarde, Trevor estava sentado à secretária, imóvel, com a porta fechada para afastar os clientes, com os pés descalços em cima do tampo e areia entre os dedos. Precisava de dormir e de beber e olhou para o tecto tentando ordenar as suas prioridades. O telefone tocou e dessa vez Jan atendeu-o. A secretária continuava ao serviço, mas andava a ver anúncios às escondidas.

Era Brayshears, nas Bahamas.

- Temos uma transferência - disse ele. Trevor levantou-se imediatamente.

- De quanto?

- De cem mil dólares.   A.  

Trevor olhou para o relógio. Tinha cerca de uma hora para apanhar o avião.

- Pode receber-me às três e meia? - perguntou ele.

- Com certeza.

Trevor desligou e gritou para a parte da frente do apartamento:

- Cancele as minhas consultas para hoje e para amanhã. vou sair.
- Não tem consultas - gritou Jan. - Está a perder cada vez mais dinheiro.

Ele não ripostou. Saiu pelas traseiras, bateu com a porta, meteu-se no carro e arrancou.

O voo para Nassau fez escala em Fort Lauderdale, o que Trevor ignorava. Depois de beber duas cervejas, adormeceu profundamente. Por cima do Atlântico bebeu mais duas e uma hospedeira teve de acordá-lo quando já toda a gente saíra do avião.

A transferência era de Curtis, em Dállas, como seria de esperar. Fora efectuada por um banco do Texas e era pagável a Boomer Realty, ao cuidado do Geneva Trust Bank, em Nassau. Trevor rapou a sua terça parte à cabeça, escondendo de novo vinte e cinco mil dólares na sua conta secreta e levando oito mil em dinheiro. Agradeceu a Mr. Brayshears, disse que esperava voltar a vê-lo em breve e saiu do edifício a cambalear.

Nem pensou em ir para casa. Encaminhou-se para a zona de compras, onde grupos de turistas americanos de aspecto pesado atulhavam os passeios. Precisava de uns calções, de um chapéu de palha e de uma embalagem de protector solar.

Em seguida, dirigiu-se para a praia, onde encontrou um quarto num belo hotel por duzentos dólares. Mas porque se havia de ralar? Besuntou-se com óleo e estendeu-se à beira da piscina, suficientemente perto do bar. Uma empregada de tanga serviu-lhe bebidas.

Acordou depois do anoitecer, bastante quente mas não queimado. Um segurança acompanhou-o ao quarto, onde caiu em cima da cama e regressou ao seu coma. O Sol já ia alto outra vez quando se mexeu.

Depois de um longo período de descanso, acordou surpreendentemente com a cabeça fresca e cheio de fome. Comeu fruta e foi à procura de barcos à vela, não para comprar, mas para se concentrar nos pormenores. Um de nove metros seria suficiente - com espaço para viver mas manobrável por uma só pessoa. Não haveria passageiros; apenas o velejador solitário que saltava de ilha para ilha. O mais barato que encontrou custava noventa mil dólares e precisava de algumas reparações.

Ao meio-dia, voltou para a piscina com um telemóvel, tentando acalmar um ou dois clientes, mas faltava-lhe concentração. A mesma empregada levou-lhe outra bebida. Desligou o telefone, escondeu-se atrás de um guarda-sol e tentou marcar os números. Mas tinha a mente embotada.

No mês anterior, ganhara cerca de oitenta mil dólares livres de impostos. Conseguiria manter este ritmo? Se assim fosse, teria o seu milhão de
dólares dentro de um ano, poderia abandonar o seu escritório e o que restava da sua carreira e poderia comprar o seu barquinho e fazer-se ao mar.

Pela primeira vez na vida, o sonho parecia quase real. Imaginava-se ao volante, de tronco nu, descalço, com cervejas frescas à mão, a navegar de St. Barts para St. Kitts, de Nevis para St. Lúcia, de uma ilha para mil e uma outras, com o vento a empurrar a vela-mestra, sem nada que o preocupasse. Fechou os olhos e desejou ainda mais fugir.

Acordou com o seu próprio ressonar. Faltava pouco. Mandou vir um rum e olhou para o relógio.

Dois dias depois, Trevor voltou a Trumble. Chegou com sentimentos misturados. Primeiro, estava ansioso por recolher a correspondência e facilitar a fraude, por manter a extorsão a andar e o dinheiro a nascer. Por outro lado, estava atrasado e o juiz Spicer não se mostrou satisfeito.

- Por onde diabo tem você andado? - rosnou Spicer assim que o guarda saiu da sala de reuniões dos advogados. Parecia que toda a gente fazia a mesma pergunta. - Perdi três jogos por sua causa, e só apostei em vencedores.

- Nas Bahamas. Recebemos cem mil do Curtis de Dallas. O humor de Spice mudou drasticamente.

- Foram precisos três dias para ir receber uma transferência às Bahamas? - perguntou ele.

- Precisava de descansar. Não sabia que devia cá vir todos os dias. Spicer estava cada vez mais brando. Acabara de ganhar mais vinte e dois mil dólares. O dinheiro estava bem guardado, junto do outro, num sítio em que ninguém o poderia encontrar, e quando entregou ao advogado mais uma pilha de belos envelopes pensava em várias maneiras de o gastar.

- Não andamos muito atarefados - disse Trevor, pegando nas cartas.

- Tem razão de queixa? Está a ganhar mais do que nós.

- Tenho mais a perder do que vocês. Spicer entregou-lhe uma folha de papel.

- Escolhi dez jogos aqui. Quinhentos dólares em cada um.

Óptimo, pensou Trevor. Mais um longo fím-de-semana no Pete’s a ver jogos uns atrás dos outros. Ora, havia coisas piores. Jogaram blackjack a um dólar cada até que o guarda interrompeu a reunião.
AS visitas cada vez mais frequentes de Trevor tinham sido debatidas pelo guarda e pelos responsáveis do Gabinete das Prisões em Washington. Havia documentos sobre o assunto. Tinham sido contempladas restrições, que depois foram abandonadas. As visitas eram inócuas, e, além disso, o guarda não queria irritar os Confrades.. Para quê arranjar uma briga?

O advogado era inofensivo. Depois de alguns telefonemas na área de Jacksonville, concluíram que Trevor era praticamente desconhecido e talvez não tivesse mais nada que fazer do que passar o tempo na sala de reuniões dos advogados de uma prisão.

O dinheiro deu um novo ânimo a Beech e a Yarber. Gastá-lo implicaria necessariamente chegar até ele, e isso exigiria que, um dia, saíssem como homens livres. Livres de fazerem o que lhes apetecesse com as suas fortunas crescentes.

Com cerca de cinquenta mil dólares no banco, Yarber atarefava-se a elaborar uma carteira de investimentos. Não fazia sentido deixá-lo ali a render 5 por cento ao ano, mesmo que fosse livre de impostos. Um dia, que não viria longe, aplicá-lo-ia em fundos de investimento agressivos, sobretudo no Extremo Oriente. A Ásia voltaria a conhecer a expansão económica, e o seu dinheirinho estaria lá para partilhar a riqueza. Faltavam-lhe cinco anos para sair e, se o seu dinheiro rendesse entre 12 e 15 por cento, até lá os cinquenta mil dólares transformar-se-iam mais ou menos em cem mil quando saísse de Trumble. Não era um mau começo para um homem que teria sessenta e cinco anos e esperava gozar ainda de boa saúde.

Mas se ele (e Percy e Ricky) continuasse a aumentar a quantia inicial, estaria rico quando fosse libertado. Cinco longos anos... Semanas e meses, semanas que ele temia. Agora, de repente, perguntava a si próprio se teria tempo para extorquir tudo o que precisava. Disfarçado de Percy, andava a escrever cartas a mais de vinte indivíduos na América do Norte. Não havia dois na mesma cidade. Competia a Spicer manter as vítimas separadas. Na secção de Direito da biblioteca, usavam-se mapas para ter a certeza de que nem Percy nem Ricky se correspondiam com homens que aparentemente vivessem perto uns dos outros.

Quando não escrevia cartas, Yarber dava consigo a pensar no dinheiro. Felizmente, os documentos do divórcio enviados pela mulher tinham chegado e sido de novo expedidos. Dentro de alguns meses, Yarber estaria
livre, e quando saísse em liberdade condicional ela já o teria esquecido há muito. Nada seria dividido. Ele seria livre de sair sem nada que o prendesse.

Cinco anos, e ainda tinha tanto que fazer! Havia de cortar no açúcar e de andar a pé mais um quilómetro e meio por dia.

Na escuridão do seu beliche superior, durante as noites de insónia, Hatlee Beech fizera os mesmos cálculos dos colegas. Cinquenta mil dólares na mão, uma boa taxa de juro em qualquer lado e aumentar a quantia inicial espremendo tantas vítimas quantas conseguissem, e um dia teria uma fortuna. Beech tinha nove anos a cumprir, uma maratona que em tempos lhe parecera não ter fim. Agora, havia um laivo de esperança. A sentença de morte que lhe tinham ditado estava a transformarse a pouco e pouco num período rentável. Se a fraude lhe rendesse apenas cem mil dólares por ano durante os nove seguintes, além de uma boa taxa de juro, estaria multimilionário quando atravessasse os portões a dançar, também com sessenta e cinco anos.

Dois, três, quatro milhões não estavam fora de questão. Sabia exactamente o que teria de fazer. Como adorava o Texas, ia para Galveston, comprava uma daquelas antigas casas vitorianas à beira-mar e convidava velhos amigos para aparecerem e verem como estava rico. Esquecia as leis, passava doze horas por dia a trabalhar o dinheiro, só isso, e quando chegasse aos setenta tinha mais do que a ex-mulher.

Pela primeira vez em vários anos, Hatlee Beech admitia viver até aos sessenta e cinco anos, talvez até aos setenta.

 Também desistira do açúcar e da manteiga e cortava os cigarros a meio com o objectivo de acabar com as dependências dentro de pouco tempo. Prometeu afastar-se da enfermaria e deixar de tomar comprimidos. Começou a andar um quilómetro e meio por dia, ao Sol, como o seu colega da Califórnia. E escrevia a suas cartas, ele e Ricky.

E o juiz Spicer, já com motivações suficientes, tinha dificuldade em dormir. Não era o remorso, a solidão ou a humilhação que o atormentavam, nem estava deprimido com a indignidade da prisão. Estava simplesmente a contar o dinheiro, a jogar com taxas de juro e a analisar apostas. A vinte e um meses de alcançar a liberdade, via o fim.

Rita, a sua adorável mulher, passara por lá na semana anterior e tinham passado quatro horas juntos durante dois dias. Ela cortara o cabelo, deixara de beber, perdera nove quilos e prometera emagracer ainda mais quando o fosse buscar ao portão, daí a menos de dois anos. Depois de passar quatro horas com ela, Joe Roy ficou convencido de que os noventa mil dólares ainda estavam enterrados atrás da arrecadação.

Iriam para Las Vegas, comprariam um novo apartamento e mandariam o resto do mundo às urtigas.

Com a fraude Percy-e-Ricky a correr tão bem, Spicer descobrira uma nova preocupação. Sairia de Trumble primeiro, feliz, alegre, sem olhar para trás. E o dinheiro que aparecesse depois de sair? Se a fraude continuasse a gerar dinheiro, o que aconteceria à sua parte dos futuros ganhos, ao dinheiro que lhe era devido? Afinal, a ideia fora dele; ele é que a fora buscar à prisão de Louisiana. A princípio, Beech e Yarber tinham-se mostrado relutantes em entrar na jogada.

Spicer tinha tempo de elaborar uma estratégia de saída, assim como tinha tempo de arranjar uma maneira de se ver livre do advogado. Mas isso iria custar-lhe mais horas de sono.

A carta de Quince Garbe, de lowa, foi lida por Beech: «Caro Ricky (ou lá quem és), não tenho mais dinheiro. Os primeiros cem mil dólares foram emprestados por um banco graças a um balanço falso. Não sei como irei pagá-los. O meu pai é dono do nosso banco e de todo o seu dinheiro. Porque não lhe escreves umas cartas, meu vigarista? Talvez ainda consiga arranjar dez mil dólares se combinarmos que a extorsão termina aqui. Estou à beira do suicídio, por isso não me pressiones. És escumalha, bem sabes. Espero que sejas apanhado. Cumprimentos Quince Garbe.»

- Parece muito desesperado - disse Yarber, desviando o olhar do seu monte de correspondência.

Spicer disse, com um palito pendurado no lábio inferior:

- Diz-lhe que aceitaremos vinte e cinco mil.

- vou escrever-lhe e dizer-lhe que faça a transferência-disse Beech, abrindo outro envelope dirigido a Ricky.

 

XV

À hora de almoço, quando a experiência mostrara que a afluência aumentava no Mailbox America, um agente entrara despreocupadamente no local, atrás de dois outros clientes, e pela segunda vez nesse dia abria a caixa 455. Em cima de três cartas sem interesse - uma de umapizzaria com serviço ao domicílio, outra de uma garagem para lavagem de carros e outra dos correios dos Estados Unidos -, reparou numa coisa nova. Era um envelope de cor alaranjada e formato A5. com uma pinça que trazia no porta-chaves, pegou na extremidade do envelope, tirou-o da caixa e deixou-o cair numa pasta de couro. A correspondência sem interesse ficou lá, intacta.

Em Langley, o envelope foi aberto com todo o cuidado por especialistas. Foram retiradas e fotocopiadas duas páginas manuscritas.

Uma hora depois, Deville entrou no abrigo de Teddy com um dossier na mão. Deville estava encarregado daquilo a que em Langley se chamava «o lixo de Lake». Entregou duas fotocópias da carta a Teddy a York e depois examinou-a num grande ecrã, para o qual Teddy e York se limitaram a olhar, a princípio. A carta estava escrita a negrito, em letra de imprensa, facilmente legível, como se o autor tivesse trabalhado cada palavra. Dizia o seguinte:

Caro Al,

Onde tens estado? Recebeste a minha última carta? Escrevi há três semanas e não recebi resposta. Aposto que andas atarefado, mas por favor não te esqueças de mim. Sinto-me muito só aqui e as tuas cartas sempre me ajudaram a suportar isto. Dão-me força e esperança, porque sei que há alguém lá fora que se preocupa comigo. Por favor, não desistas de mim, Al.

O meu psicólogo diz que talvez tenha alta daqui a dois meses. Há um centro de recuperação em Baltimore, por sinal a uns quilómetros
do sítio onde cresci, e estão a tentar arranjar-me lugar lá. Seria por noventa dias, o tempo suficiente para conseguir arranjar emprego, fazer amigos, etc., habituar-me à sociedade outra vez, percebes? À noite, está fechado, mas eu estaria livre durante o dia.

Não tenho muitas recordações boas, Al. Todas as pessoas que em tempos gostaram de mim já morreram, e o meu tio, o tipo que me está a pagar esta cura, é muito rico mas muito cruel. Preciso tanto de amigos, Al.

A propósito, perdi mais dois quilos e meio e tenho agora setenta e cinco de cintura. A fotografia que te mandei está a ficar desactualizada. Nunca gostei de ver a minha cara - tenho carne a mais nas bochechas.

Agora estou muito mais magro e bronzeado. Eles deixam-nos apanhar sol duas horas por dia, se o tempo o permite. Estamos na Florida, mas há dias muito frios. vou mandar-te outra fotografia, talvez da cintura para cima. Estou a fazer pesos e halteres como um louco. Acho que vais gostar da próxima fotografia.

Disseste que me enviavas uma. Continuo à espera. Por favor, não te esqueças de mim, Al. Preciso de uma carta tua.

Beijos, Ricky

Como York tinha a responsabilidade de investigar todos os aspectos da vida de Lake, sentiu-se obrigado a falar em primeiro lugar. Mas não sabia o que havia de dizer. Leram e releram a carta em silêncio.

Por fim, Deville quebrou o gelo e disse:

- Aqui está o envelope.

Projectou-o na parede. Era dirigido a Mr. Al Konyers, para Mailbox America. O remetente era o seguinte: Ricky, Aladdin North, Caixa Postal 44683, Neptune Beach, FL 32233.

- É um disfarce - disse Deville. - Aladdin North não existe. Há um número de telefone com serviço de recepção de chamadas. Telefonámos dez vezes a fazer perguntas, mas as telefonistas não sabem de nada. Telefonámos para todas as clínicas de reabilitação e de tratamento do Norte da Florida e ninguém ouviu falar deste local.

Teddy não disse nada e continuou a olhar para a parede.

- Onde fica Neptune Beach? - perguntou York de mau humor.

- Em Jacksonville.

Deville foi dispensado, mas ordenaram-lhe que não se afastasse. Teddy começou a tomar apontamentos num bloco verde.

- Há outras cartas e pelo menos uma fotografia - disse ele, como se o problema fizesse parte da rotina. O pânico era um estado de alma que Teddy Maynard desconhecia.

- Temos de as encontrar - disse ele.

- Já fizemos duas buscas completas à casa dele - respondeu York.

- Façam uma terceira. Duvido que guarde essas coisas no gabinete.

- Quando...

- Já. Lake está na Califórnia à procura de votos. Não há tempo a perder com isto, York. Pode haver outras caixas postais secretas, outros homens a escrever cartas e a gabarem-se do bronzeado e da medida da cintura.

- Vai confrontá-lo?

- Por enquanto não.

Como não tinham uma amostra da letra de Mr. Konyers, Deville fez uma sugestão que acabou por agradar a Teddy. Servir-se-iam de um ardil proporcionado por um novo computador com uma impressora incorporada. O primeiro rascunho foi feito por Deville e York e, daí a cerca de uma hora, a quarta versão dizia o seguinte:

Caro Ricky,

Recebi a tua carta de 22. Desculpa não ter escrito mais cedo. Ultimamente tenho viajado muito e estou atrasado em tudo. Por sinal, estou a escrever esta carta a trinta e cinco mil pés de altitude, algures sobre o Golfo, a caminho de Tampa. E estou a servir-me de um novo computador, tão pequeno que quase me cabe na algibeira. A tecnologia é espantosa. A impressora deixa a desejar. Espero que consigas lê-la.

É óptima a notícia da tua alta e do centro de recuperação em Baltimore. Tenho alguns contactos lá e estou certo de que conseguirei ajudar-te a arranjar emprego.

Mantém-te de cabeça erguida, que só faltam dois meses para saíres. Agora és uma pessoa muito mais forte e estás pronto para aproveitar a vida ao máximo. Não te deixes desanimar.

Ajudar-te-ei em tudo o que puder. Quando estiveres em Baltimore terei muito prazer em passar algum tempo contigo, para te mostrar a região, percebes? Prometo escrever em breve. Fico à espera das tuas notícias.

Beijos, Al

Resolveram que, com a pressa, Al se esquecera de assinar. A carta foi anotada, revista, refeita e examinada com mais rigor do que um tratado. A versão final foi impressa numa folha de papel do Hotel Royal Sonesta, de New Orleans, e colocada num envelope castanho, grosso e liso, com leitura óptica na extremidade inferior. No canto inferior direito, num sítio que parecia ligeiramente danificado e amarrotado em trânsito, foi instalado um transmissor do tamanho da cabeça de um alfinete. Quando fosse activado, enviaria um sinal a cem metros durante três dias.

Como Al ia para Tampa, foi aposto no envelope o carimbo desta cidade com a data desse dia. Tudo isto foi feito em menos de meia hora por uma equipa de gente muito estranha que trabalhava nos Documentos, no segundo piso.

Às quatro horas da tarde, uma carrinha verde já muito rodada parou na berma do passeio em frente da vivenda de Aaron Lake, junto de uma de muitas das árvores frondosas de Thirty-fourth Street, numa zona muito agradável de Georgetown. Na porta anunciava-se uma empresa de canalizadores da região. Dela saíram quatro canalizadores, que começaram a tirar ferramentas e equipamento.

Alguns minutos depois, a única vizinha que reparou neles fartou-se e voltou para a sua televisão. com Lake na Califórnia, os serviços secretos acompanhavam-no, e a casa dele ainda tinha de ser preparada para a vigilância diária, pelo menos pelos serviços secretos. Mas essa revista não tardaria a ser efectuada.

O pretexto era um cano de esgoto entupido no pequeno relvado da frente, algo que podia ser feito sem entrar em casa. Uma obra no exterior, que pacificaria os serviços secretos se por caso passassem por ali.

Mas dois dos canalizadores entraram mesmo em casa com as suas próprias chaves. Entretanto, chegou outra carrinha para verificar o trabalho e entregar uma ferramenta. Dois canalizadores da segunda carrinha foram juntar-se aos que já lá estavam e começou a formar-se uma unidade regular.

Dentro de casa, quatro agentes iniciaram uma busca monótona de dossiers escondidos. Passavam de umas divisões para as outras, inspeccionando o óbvio procurando os segredos.

A segunda carrinha partiu e chegou uma terceira, vinda de outra direcção. Estacionou em cima do passeio, como as carrinhas muitas vezes fazem. Mais quatro canalizadores foram juntar-se à limpeza do cano de
 esgoto e pouco depois entraram mais dois. À noite, foi montado um holofote iia parte da frente do quintal e apontado para a casa, para que ninguém reparasse que as luzes estavam acesas lá dentro. Os quatro homens que ficaram no exterior tomavam café, contavam anedotas e tentavam manter-se quentes. Alguns vizinhos passavam, apressados.

Seis horas depois, o cano de esgoto estava limpo, assim como a casa. Não foi encontrado nada de invulgar, e muito menos um dossier escondido com correspondência de um Ricky qualquer em fase de reabilitação. Nem sinais de fotografias. Os canalizadores apagaram as luzes, guardaram as ferramentas e desapareceram sem deixar rasto.

Às oito e meia da manhã seguinte, quando se abriram as portas da estação dos correios de Neptune Beach, um agente chamado Barr entrou à pressa, como fosse atrasado para qualquer coisa. Barr era um especialista em chaves e fechaduras e, na tarde da véspera, passara cinco horas em Langley a estudar várias caixas utilizadas pelos correios. Tinha quatro chaves-mestras e a certeza de que uma delas abriria a número 44683. Se não abrisse, seria obrigado a forçá-la, o que poderia levar cerca de um minuto e atrair as atenções. A terceira chave abriu a caixa e Barr depositou lá dentro o envelope castanho, com o carimbo da véspera e de Tampa, dirigido a Ricky, sem apelido, ao cuidado de Aladdin Noith. Já lá estavam mais duas cartas. Por precaução, Barr tirou uma série de correspondência sem interesse, fechou a porta da caixa, pegou na correspondência e atirou-a para o cesto dos papéis.

Barr e outros dois homens ficaram pacientemente à espera no interior da carrinha, a tomar café e a gravar em vídeo todos os clientes dos correios. Encontravam-se a setenta metros da caixa. O receptor manual apitou com o sinal ténue vindo do envelope. Um grupo heterogéneo uma mulher negra de vestido castanho, curto, um homem branco de barba e com uma pasta de cabedal na mão, uma mulher branca de fato de treino e um homem negro de jeans -- entrou e saiu no meio das pessoas que circulavam. Eram todos agentes da CIA, que vigiavam a caixa sem imaginarem quem escrevera a carta nem para onde ela ia. O seu trabalho consistia apenas em encontrar a pessoa que a alugara.

Encontraram-na depois do almoço.

Trevor tomou o seu almoço no Pete’s, mas limitou-se a duas cervejas. Bebidas frescas com amendoins salgados consumidos enquanto perdia cinquenta dólares numa corrida de cães em Calgary. De regresso ao escritório, dormiu durante uma hora e ressonou tanto que a pobre secretária foi obrigada a fechar-lhe a porta. Por sinal, bateu com ela, mas não suficientemente alto para o acordar.

A sonhar com veleiros, dirigiu-se para a estação dos correios. Desta vez, optou por ir a pé porque estava um dia lindo, não tinha nada que fazer e precisava de desanuviar a mente. Ficou deliciado ao encontrar quatro dos pequenos tesouros impecavelmente pescados na caixa de Aladdin North. Guardou-os cuidadosamente na algibeira do casaco de linho já muito gasto, endireitou o lacinho e afastou-se devagar, certo de que se aproximava rapidamente mais um dia bem pago. Nunca se sentira tentado a ler as cartas. Os Confrades que se ocupassem do trabalho sujo. Ele podia manter as mãos limpas, transportar a correspondência e rapar a sua terça parte à cabeça. E, além disso, Spicer matava-o se lhe entregasse correspondência que tivesse sido violada.

Sete agentes viram-no regressar a pé ao escritório.

Teddy estava a dormir na cadeira de rodas quando Deville entrou. York fora para casa depois das dez horas da noite. York tinha mulher; Teddy não tinha.

Deville fez a sua narrativa, olhando de vez em quando para alguns apontamentos tirados à pressa.

- A carta foi retirada da caixa às treze e cinquenta por um advogado local chamado Trevor Carson. Seguimo-lo até ao seu escritório em Neptune Beach, onde ficou durante uma hora e vinte minutos. É um escritório pequeno, de um só homem, com uma secretária e poucos clientes. Carson é um advogado de segunda na zona das praias. Trata de divórcios, de negócios de imóveis, de assuntos triviais. Tem quarenta e oito anos, divorciou-se pelo menos duas vezes, nasceu na Pennsylvania, estudou em Furman, a faculdade de Direito do estado da Florida, teve a carteira profissional suspensa durante onze anos por gestão pouco clara dos fundos dos clientes e depois recuperou-a.

- Está bem, está bem - disse Teddy.

- Às três e meia saiu do escritório, meteu-se no carro e uma hora depois chegou à prisão federal de Trumble. Levava as cartas. Seguimo-lo
mas perdemos o sinal quando ele entrou na prisão. Desde então, recolhemos algumas informações acerca de Trumble. É uma prisão de segurança mínima, mais conhecida como campo de reabilitação. Não tem muros nem vedações e os reclusos são de muito baixo risco. São mil em Trumble. De acordo com uma fonte do Gabinete das Prisões aqui em Washington, o Carson vai lá com muita frequência. Nenhum outro advogado nem nenhuma outra pessoa faz tantas visitas como ele. Até há um mês, ia lá uma vez por semana, mas agora vai pelo menos três vezes. Às vezes quatro. Todas as visitas são reuniões do tipo advogado-cliente.

- Quem é o cliente dele?

- Não é o Ricky. Ele é advogado de três juizes.

- Três juizes?

- Sim.

- Três juizes na prisão?

- Exactamente. Auto-intitulam-se Confrades.

Teddy fechou os olhos e esfregou as têmporas. Deville deixou a poeira assentar um pouco e depois continuou:

- Carson demorou-se cinquenta e quatro minutos na prisão e, quando saiu, não conseguimos captar o sinal do envelope. Nesse momento, estávamos estacionados ao lado do carro dele. Ele ficou a um metro e meio do nosso receptor e temos a certeza de que não tinha a carta em seu poder. Seguimo-lo até Jacksonville e às praias. Estacionou junto de um local chamado Pete’s Bar and Grill, onde esteve três horas. Revistámos-lhe o carro, encontrámos a pasta e lá dentro estavam oito cartas dirigidas a vários homens de todo o país. Todas as cartas provinham da prisão. É óbvio que Carson leva e traz correspondência dos seus clientes. Ainda há meia-hora estava no bar, completamente embriagado, a apostar em jogos de basquetebol universitário.

- Um falhado.

- Mais ou menos isso.

O falhado saiu do Pete’s a cambalear depois do segundo prolongamento de um jogo na Costa Oeste. Spicer tinha apostado em três dos quatro vencedores. Trevor acompanhou-o e ganhou mil dólares numa noite.

Apesar de estar embriagado, conseguiu guiar. A apreensão da carta de condução há três anos ainda era uma recordação dolorosa, e além disso os polícias estavam em toda a parte. Os restaurantes e os bares à
volta de Sea Turtle Inn atraíam os jovens e os inquietos e, consequentemente, os polícias.

Mas andar a pé era um desafio. Trevor conseguiu chegar ao escritório, a direito para sul, passando pelos pequenos e sossegados apartamentos de Verão e pelas vivendas, todos às escuras e recolhidos para a noite. Levava a pasta com as cartas que trouxera de Trumble.

Continuou a andar, à procura da sua casa. Atravessou a rua sem motivo e a meio do quarteirão voltou a atravessar. Não havia trânsito. Quando regressava, ficou a vinte metros de um agente que estava acocorado atrás de um automóvel estacionado. O exército silencioso vigiava-o e de repente teve receio de que o bêbado pudesse tropeçar num deles.

A certa altura, Trevor desistiu e conseguiu encontrar o seu escritório. Procurou a chave nos degraus da entrada, deixou cair a pasta e esqueceu-se dela. Menos de um minuto depois de abrir a porta, aproximou-se da secretária, esparramou-se na cadeira giratória e adormeceu rapidamente, com a porta principal entreaberta.

A porta das traseiras fora aberta durante a noite. Cumprindo ordens de Langley, Barr e os companheiros tinham entrado no escritório e ligado tudo. Não havia sistema de alarme, nem fechos especiais nas janelas, nada de valor que atraísse os ladrões em primeiro lugar. Ligar os telefones e instalar microfones nas paredes fora uma tarefa fácil, tanto mais que, como era óbio, não havia ninguém no exterior que observasse o que se passava no interior do escritório de L. Trevor Carson, Advogado.

A pasta foi esvaziada e o seu conteúdo catalogado por instruções de Langley. Este quis um registo exacto das cartas que o advogado trouxera de Trumble. Quando tudo acabou de ser inspeccionado e fotografado, a pasta foi colocada no corredor, junto do gabinete de Carson. O ressonar era impressionante e ininterrupto.

Pouco depois das duas horas, Barr conseguiu pôr a funcionar o carocha estacionado junto do Pete’s. Desceu a rua deserta e deixou-o inocentemente na berma, em frente do escritório do advogado, para que, dentro de umas horas, o bêbado esfregasse os olhos e se congratulasse por ter conseguido guiar. Ou talvez ficasse horrorizado ao pensar que viera a conduzir embriagado. De qualquer modo, estariam à escuta.

 

XVI

Trinta e sete horas antes da abertura das urnas em Virgínia e Washington, o presidente apareceu em directo na televisão nacional para anunciar que ordenara um ataque aéreo à cidade tunisina de Talah e aos arredores. Corriam rumores de que a unidade terrorista de Yidal andava a fazer exercícios no local, num complexo bem equipado nos limites da cidade.

E foi assim que o país ficou colado a outra mini-guerra, uma daquelas de carregar nos botões, de bombas inteligentes e de generais reformados a conversar na CNN sobre esta ou aquela estratégia. Era noite na Tunísia, e por isso não houve filmagem. Os generais reformados e os seus entrevistadores, sem quaisquer pistas, fartaram-se de formular hipóteses. E de esperar. Esperar pela luz do dia para que o fumo e o entulho pudessem ser transmitidos a nação exausta.

Mas Yidal tinha as suas fontes, muito provavelmente os israelitas. O complexo estava vazio quando as bombas inteligentes caíram lá dentro, vindas de lado nenhum. Atingiram os seus alvos, agitaram o deserto, destruíram o complexo, mas não mataram um único terrorista. Contudo, houve duas que erraram o alvo. Uma caiu no centro de Talah, onde atingiu um hospital. Outra acertou numa pequena casa onde dormia uma família de sete pessoas. Felizmente, estas nunca souberam o que aconteceu.

A televisão tunisina foi rápida a fazer a cobertura do hospital em chamas, e ao romper do dia, na Costa Leste, o país ficou a saber que, afinal, as bombas inteligentes não eram assim tão inteligentes. Pelo menos cinquenta corpos foram recuperados, todos de civis inocentes.

Algures ao princípio da manhã, o presidente desenvolveu uma aversão súbita aos repórteres e não se disponibilizou a fazer comentários. O vice-presidente, um homem que falara muito no início do ataque, manteve-se fechado com a sua equipa em Washington.

Depois dos cadáveres amontoados, as câmaras continuaram a filmar e, a meio da manhã, a reacção do mundo foi rápida, brutal o unânime. Os chineses ameaçavam com a guerra. Os franceses pareciam inclinados a juntar-se a eles. Até os ingleses afirmaram que os Estados Unidos gostavam de provocar conflitos armados.

Como os mortos eram apenas camponeses tunisinos, e não americanos, os políticos apressaram-se a politizar o desastre. As acusações, o espalhafato e os pedidos de investigação habituais sucederam-se em Washington antes do meio-dia. E no circuito da campanha, os que ainda estavam na corrida reservaram alguns minutos para reflectir no azar da missão. Nenhum deles se teria envolvido numa retaliação tão desesperada sem uma melhor investigação prévia dos serviços secretos. Nenhum, excepto o vice-presidente, que ainda se encontrava em clausura. Durante a contagem dos corpos, nem um único candidato considerou que o ataque aéreo tivesse justificado os riscos. Todos condenaram o presidente.

Mas foi Aaron Lake que atraiu a maior parte das atenções. Verificou que era difícil deslocar-se sem tropeçar nos operadores de câmara. Numa declaração meticulosa, disse, sem recorrer a apontamentos:

- Fomos inaptos. Estamos indefesos. Somos vulneráveis. Devíamos envergonhar-nos da nossa incapacidade de destruir um pequeno exército de maltrapilhos constituído por menos de cinquenta cobardes. Não podemos limitar-nos a carregar em botões e em correr para os abrigos. É preciso ter a coragem de travar lutas no terreno. Eu tenho essa coragem. Quando for presidente, nenhum terrorista com sangue americano nas mãos escapará. É a minha promessa solene.

Na fúria e no caos da manhã, as palavras de Lake foram muito apreciadas. Ali estava um homem que falava a sério, que sabia exactamente o que havia de fazer. Ninguém dizimaria camponeses inocentes se houvesse um homem com coragem para tomar as decisões. Lake era esse homem.

No abrigo, Teddy resistiu a outra tempestade. A actuação deficiente dos serviços secretos era acusada de todos os desastres. Quando os ataques eram bem sucedidos, os pilotos, os bravos no terreno e os seus comandantes e os políticos que os tinham mandado para a luta eram elogiados. Mas quando corriam mal, como era costume, a CIA é que era responsabilizada.
Teddy mostrara-se contrário ao ataque. Os israelitas tinham um acordo subtil e muito secreto com Yidal - não nos matem, que nós não vos mataremos. Desde que os alvos fossem americanos ou um ou outro europeu, os israelitas não se envolviam. Teddy sabia isto, mas não partilhava estas informações com ninguém. Vinte e quatro horas antes do ataque, avisara o presidente, por escrito, afirmando que duvidava que os terroristas estivessem no complexo quando as bombas chegassem. E, devido à proximidade do alvo de Talah, eram enormes as hipóteses de danos colaterais.

Hatlee Beech abriu o envelope castanho sem reparar que o canto inferior direito estava um pouco amarrotado e ligeiramente danificado. Abria tantos envelopes pessoais nessa fase que só olhava para o remetente, para ver de onde vinham. Nem reparou no carimbo de Tampa.

Havia várias semanas que não tinha notícias de Al Konyers. Leu a carta sem parar e não considerou muito interessante o facto de Al usar um novo computador. Era perfeitamente natural que o amigo de Ricky se tivesse servido de uma folha de papel do Royal Sonesta, de New Orleans, e tivesse escrito a carta a trinta e cinco mil pés de altitude.

Era de admirar que viajasse em primeira classe?, perguntou a si próprio. Talvez. Não devia haver tomadas para computadores nos comboios, não é verdade? Al fora a New Orleans em serviço, ficara hospedado num bom hotel e depois viajara em primeira classe para o seu novo destino. Os Confrades estavam interessados na situação financeira de todos os seus parceiros. Nada mais importava.

Depois de ler a carta, estendeu-a a Finn Yarber, que estava a escrever outra em nome do pobre Percy. Os dois homens estavam a trabalhar na pequena sala de reuniões ao canto da secção de Direito de biblioteca, tinham a mesa cheia de dossiers, de correspondência e de um belo sortido de cartas de tons pastel. Spicer estava lá fora, na sua mesa, a guardar a porta e a estudar apostas.

- Quem é o Konyers? - perguntou Finn.

Beech estava a folhear uns dossiers. Tinham uma pasta de arquivo para cada indivíduo, com todas as cartas recebidas e todas as cópias das que tinham enviado.

- Não sei muito acerca dele - respondeu Beech. - Vive na zona de Washington e o nome é falso, tenho a certeza. Serve-se de uma daquelas caixas postais. É a sua terceira carta, creio eu.

Beech tirou as duas primeiras cartas dodossier de Konyers. A primeira, de 11 de Dezembro, dizia o seguinte:

CaroRicky,

Olá. Chamo-me Al Konyers. Tenho cinquenta e tal anos. Gosto de jazz, de filmes antigos, do Humphrey Bogart e de ler biografias. Não fumo nem gosto de pessoas que fumem. O que me diverte é comida chinesa, um copo de vinho, um western a preto e branco com um bom amigo. Escreve-me.

Al Konyers

Estava dactilografada em papel branco e liso, como quase todas a princípio. O medo estava estampado entre cada linha - medo de ser apanhado, medo de iniciar uma relação à distância com um desconhecido. Todas as palavras eram dactilografadas. O homem nem sequer assinava.

A primeira resposta de Ricky foi a carta-padrão que Beech já escrevera uma centena de vezes: Ricky tinha vinte e oito anos, encontrava-se em fase de recuperação, a família não prestava, tinha um tio rico, etc. E dezenas das mesmas perguntas entusiásticas: Que tipo de trabalho fazes? E a tua família? Gostas de viajar? Se Ricky punha a sua alma a nu era porque precisava de qualquer coisa em troca. Há cinco meses que Beech andava a escrever duas páginas da mesma conversa fiada. Apetecia-lhe desesperadamente fotocopiá-las. Mas não podia. Era obrigado a personalizar cada uma, em papel bonito. E enviara a Al a mesma fotografia atraente que enviara aos outros. A fotografia era o isco que atraía quase todos.

Passaram-se três semanas. Em 9 de Janeiro, Trevor entregara uma segunda carta de Al Konyers. Era tão inócua e estéril como a primeira, talvez escrita com luvas de borracha.

Caro Ricky,

Gostei da tua carta. Tenho de admitir que a princípio tive pena de ti, mas parece que te adaptaste bem à recuperação e que sabes para onde vais. Nunca tive problemas com drogas nem com álcool, por isso tenho dificuldade em compreendê-los. Parece que estás a receber o melhor tratamento que o dinheiro pode comprar. Não devias ser tão duro para com o teu tio. Pensa onde poderias estar se não fosse ele.

Fazes muitas perguntas a meu respeito. Não estou disposto a falar muito dos meus assuntos pessoais, mas compreendo a tua curiosidade.
Fui casado durante trinta anos mas já não sou. Vivo em Washington e trabalho para o governo. O meu trabalho consiste em desafiar e realizar. Vivo sozinho. Tenho poucos amigos íntimos e prefiro assim. Quando viajo, é geralmente para a Ásia. Adoro Tóquio. Não me esquecerei de ti.

Al Konyers

Mesmo por cima do nome dactilografado, escrevinhara «Al», com uma caneta preta de feltro, de bico fino.

A carta era pouco interessante por três motivos. Primeiro, Konyers não tinha mulher, ou pelo menos dizia que não tinha. Uma mulher era crucial para a extorsão. Bastava a ameaça de contar tudo à mulher, de lhe enviar cópias de todas as cartas do parceiro homossexual, e o dinheiro jorrava.

Segundo, Al trabalhava para o governo, por isso era provável que não tivesse muito dinheiro.

Terceiro, Al estava demasiado assustado para que perdessem tempo com ele. Conseguir informações acerca dele era o mesmo que lhe arrancar um dente. Quince Garbes e Curtis Cateses eram muito mais divertidos, porque tinham passado a vida recalcados e agora estavam ansiosos por escapar. As suas cartas eram longas, fúteis e cheias daqueles pequenos factos de que um extorsionário podia vir a precisar. Não era o caso de Al. Al era enfadonho. Al não sabia bem o que queria.

Então, Ricky levantou a parada com a sua segunda carta, outra peça que Beech aperfeiçoara com a prática. Ricky acabara de saber que teria alta dentro de poucos meses! E era de Baltimore. Que coincidência! E talvez precisasse de ajuda para arranjar um emprego. O tio rico recusava-se a ajudá-lo mais e ele tinha medo da vida no exterior sem o auxílio de amigos, e não podia confiar nas suas antigas amizades porque continuavam envolvidas na droga, etc.

A carta não teve resposta e Beech concluiu que Al se assustara. Ricky ia a caminho de Baltimore, que ficava apenas a uma hora de Washington, e isso era demasiado perto de Al.

Enquanto esperavam uma resposta de Al, chegara o dinheiro de Quince Garbe, seguido da transferência de Curtis, de Dállas, e os Confrades redobraram de energia no seu plano fraudulento. Ricky escreveu a Al a carta que fora interceptada e analisada em Langley.

Agora, de repente, a terceira carta de Al tinha um tom muito diferente. Finn Yarber leu-a duas vezes e depois releu a segunda carta.

- Parece outra pessoa, não é? - disse ele.

- Sim, parece - reconheceu Beech, olhando para as duas cartas.

- Acho que o tipo está entusiasmado por ir conhecer o Ricky.

- Julguei que ele trabalhava para o governo.

- Ele diz que sim.

- Então o que quer dizer isto de ter interesses em Baltimore?

- Nós trabalhámos para o governo, não trabalhámos?

- Claro que sim.

- E qual foi o vosso ordenado mais alto na magistratura?

- Quando eu era juiz-presidente, ganhava cento e cinquenta mil. -Eu ganhava cento e quarenta mil. Certos burocratas ganhavam muito mais. Além disso, ele não é casado.

- Isso é um problema.

- Sim, mas vamos continuar a pressionar. Tem um bom emprego, o que significa que é um tipo importante, com muitos colegas, o típico homem de sucesso de Washington. Havemos de encontrar um ponto fraco em qualquer lado.

- Que se lixe - disse Finn.

Que se lixasse, de facto. O que havia ali a perder? E se o pressionassem de mais e Mr. Al se assustasse ou se enfurecesse e resolvesse deitar as cartas fora? Ninguém podia perder o que não tinha.

Estavam a fazer dinheiro a sério. O momento não era para  tibiezas. A sua táctica agressiva estava a dar resultados espectaculares. A correspondência aumentava todas as semanas, assim como a conta offshore. A fraude dos Confrades era totalmente segura porque os seus parceiros levavam vidas duplas. As suas vítimas não tinham a quem se queixar.

As negociações foram rápidas porque o mercado estava maduro. Ainda era Inverno em Jacksonville e, como as noites estavam frescas e a água do mar demasiado fria para nadar, a época de maior afluência seria daí a um mês. Havia centenas de pequenos apartamentos para alugar entre Neptune Beach e Atlantic Beach, incluindo um quase em frente, na rua de Trevor. Um homem de Boston ofereceu seiscentos dólares em dinheiro por dois meses e o agente imobiliário aceitou logo. O apartamento estava mobilado com trastes que nem na feira da ladra se encontravam.
A velha carpete de pêlo estava muito gasta e exalava um cheiro permamente a mofo. Era perfeito.

A primeira tarefa do locatário foi tapar as janelas. Três davam para a rua e ficavam mesmo em frente das janelas de Trevor, e durante as primeiras horas de vigilância era evidente que os clientes eram poucos. E o movimento tão reduzido! Quando havia trabalho, em geral era feito pela secretária, Jan, que também lia muitas revistas.

Outros entraram e saíram sem fazer barulho, homens e mulheres com malas velhas e grandes sacos de estopa cheios de prodígios electrónicos. O frágil recheio foi empurrado para as traseiras da casa e os quartos da frente encheram-se rapidamente de ecrãs, monitores e aparelhos de escuta de vários tipos.

O próprio Trevor daria um caso de estudo interessante para os alunos de Direito do terceiro ano. Chegava cerca das nove horas da manhã e passava a primeira hora a ler jornais. O cliente da manhã parecia chegar sempre às dez e meia, e, depois de uma exaustiva conferência de meia hora, o advogado preparava-se para o almoço, sempre no Pete’s Bar and Grill. Levava o telefone consigo, para provar a sua importância aos empregados do bar, e em geral fazia dois ou três telefonemas desnecessários para outros advogados. Telefonava muito para o agente de apostas.

Em seguida, regressava ao escritório, passava pelo apartamento onde a CIA acompanhava todos os seus passos e voltava para a sua secretária para fazer uma sesta. Acordava por volta das três e trabalhava no duro durante duas horas. Depois, precisava de mais uma bebida do Pete’s.

Da segunda vez, seguiram-no até Trumble. Trevor saiu da prisão uma hora depois e voltou ao escritório cerca das seis da tarde. Enquanto jantava numa cervejaria de Atlantic Boulevard, sozinho, um agente entrou no seu escritório e encontrou a velha pasta. Lá dentro estavam cinco cartas de Percy e Ricky.

O comandante do exército silencioso de Neptune Beach e arredores era um homem chamado Klockner, o melhor que Teddy tinha no terreno da espionagem doméstica de rua. Klockner recebera instruções para interceptar toda a correspondência que circulasse no escritório do advogado.

Quando Trevor foi directo para casa depois de sair da cervejaria, as cinco cartas foram levadas para o apartamento do outro lado da rua, onde foram abertas, copiadas e depois fechadas de novo e recolocadas na sua pasta. Nenhuma das cinco era para Al Konyers.

Em Langley, Deville leu as cinco cartas quando elas chegaram por fax. Foram examinadas por peritos em grafologia, que concluíram que Percy e Ricky não eram uma e a mesma pessoa. Recorrendo a amostras extraídas dos seus ficheiros jurídicos, apuraram, sem grande esforço, que Percy era na realidade o ex-juiz Finn Yarber e que Ricky era o ex-juiz federal Hatlee Beech.

O endereço de Ricky era a caixa de Aladdin North, na estação dos correios de Neptune Beach. Para surpresa dos peritos, Percy servia-se de uma caixa postal em Atlantic Beach, alugada a uma empresa chamada Laurel Ridge.


XVII

Na sua visita seguinte a Langley, a primeira em três semanas, o candidato chegou numa caravana de carrinhas pretas reluzentes, todas a grande velocidade, mas quem se podia queixar? Passaram e foram autorizadas a embrenhar-se no complexo, até que pararam todas ao mesmo tempo junto de uma porta muito conveniente, onde eram aguardadas por vários jovens bem constituídos e de rosto solene. A carrinha de Lake aproximou-se do edifício, já sem a escolta. Por fim, Lake foi introduzido não no abrigo habitual, mas no gabinete formal de Mr. Maynard, de onde se avistava uma pequena floresta. Todas as outras pessoas ficaram à porta. A sós, os dois grandes homens trocaram um aperto de mão cordial e mostraram-se satisfeitos por se voltarem a ver.

Primeiro, os assuntos importantes.

- Parabéns pela Virginia - disse Teddy.

Lake encolheu os ombros, como se não estivesse seguro do que se passara.

- Agradeço-lhe, por muitos motivos.

- É uma vitória deveras impressionante, Mr. Lake - disse Teddy.

- O governador Tarry desenvolveu ali um trabalho árduo durante um ano. Há dois meses, tinha compromissos com todos os responsáveis pelos círculos eleitorais do estado. Parecia imbatível. Agora, creio que está a desaparecer. Muitas vezes, é uma desvantagem ser o primeiro na corrida logo ao princípio.

- A energia é um animal estranho em política - observou Lake com um ar sábio.

- O dinheiro é ainda mais estranho. Neste preciso momento, o governador Tarry não consegue arranjar um cêntimo porque você apanhou tudo. O dinheiro acompanha de perto a energia.

- Tenho a certeza que direi isto muitas vezes, Mr. Maynard. O senhor deu-me uma oportunidade com a qual nem sonhava.

- Está a divertir-se?

- Ainda não. Se vencermos, o gozo virá depois.

- O gozo começa na próxima terça-feira, Mr. Lake, com a grande Super Terça-feira. Nova Iorque, Califórnia, Massachusetts, Ohio, Jórgia, Missouri, Maryland, Maine, Connecticut, tudo num só dia. Quase seiscentos delegados! - Os olhos de Teddy dançavam, quase como se pudesse contar os votos. - E o senhor vai à frente em todos os estados, Mr. Lake. Acredita?

- Não, não consigo.

- É verdade. Está empatado no Maine, por qualquer motivo, e está perto na Califórnia, mas vai ganhar em força na próxima terça-feira.

- A acreditarmos nas sondagens - disse Lake, como se ele próprio não acreditasse nelas.

O facto era que, como todos os candidatos, Lake estava dependente das sondagens. Ia vencer na Califórnia, um estado com 140000 trabalhadores na indústria de defesa.

- Oh, eu acredito nelas. E acredito que se registe uma maioria esmagadora na próxima Super Terça-feira. Eles adoram-no no Sul, Mr. Lake. Adoram armas e um discurso duro, e neste momento, estão a apaixonar-se por Aaron Lake. Na próxima terça-feira será divertido, mas na seguinte será a orgia.

Teddy Maynard previa uma orgia, e Lake não pôde deixar de sorrir. As suas sondagens revelavam as mesmas tendências, mas a coisa parecia melhor vinda de Teddy. O homem pegou numa folha de papel e leu os dados das sondagens mais recentes em todo o país. Lake ia pelo menos cinco pontos à frente em cada estado.

Durante alguns minutos, ambos se divertiram com as suas antecipações. Depois, Teddy fez-se muito sério.

- Há uma coisa que deve saber - disse ele, e o sorriso desapareceu. Folheou uma página e deu uma olhadela a uns apontamentos. - Há duas noites, na garganta de Khyber, nas montanhas do Afeganistão, um míssil russo de longo alcance, com ogivas nucleares, foi transportado de camião para o Paquistão. Vai agora a caminho do Irão, onde será utilizado sabe Deus para quê. O míssil tem um alcance de quatro mil e quinhentos quilómetros e capacidade para lançar quatro bombas nucleares. O preço foi de cerca de trinta milhões de dólares americanos, em dinheiro, pago à
 cabeça pelos iranianos através de um banco no Luxemburgo. Ainda lá está, numa conta que se julga ser controlada pela gente do Natty Chenkov.

- Julguei que ele andava a armazenar e não a vender.

- Ele precisa de dinheiro e está a consegui-lo. Na realidade, talvez seja o único homem que conhecemos que consegue dinheiro mais depressa do que o senhor.

O humor não era o forte de Teddy, mas Lake riu-se, por delicadeza.

- O míssil está operacional? - perguntou Lake.

- Julgamos que sim. Provém de um grupo de silos nos arredores de Kiev, e pensamos que tanto o fabrico como o modelo sejam recentes. com tantos ao seu dispor, porque haviam os iranianos de comprar um dos antigos? Sim, é mais seguro partirmos do princípio de que está totalmente operacional.

- É o primeiro?

- Têm sido enviados acessórios e plutónio para o Irão, Iraque, índia e outros países, mas creio que este é o primeiro míssil totalmente montado e pronto a disparar.

- Estão ansiosos por utilizá-lo?

-Não cremos. Aparentemente, a transacção foi instigada pelo Chenkov. Ele precisa do dinheiro para comprar outro tipo de armas. Anda a vender as suas mercadorias, coisas de que não precisa.

- Os israelitas têm conhecimento disso?

- Não. Ainda não. Deve ter cuidado com eles. Tudo se troca. Um dia, se precisarmos de qualquer coisa deles, talvez sejamos obrigados a falar-lhes desta transacção.

Por instantes, Lake desejou ser já presidente. Queria saber tudo o que Teddy sabia, e depois percebeu que talvez isso nunca viesse a acontecer. Afinal, havia um presidente em exercício naquele momento, apesar de se encontrar no fim do último mandato, e Teddy não conversava consigo acerca de Chenkov e dos seus mísseis.

- O que pensam os russos da minha campanha? - perguntou.

- A princípio, não ficaram preocupados. Agora, estão muito atentos. Mas deve lembrar-se de que já não existe uma voz russa. Os mercados livres são-lhe favoráveis porque temem os comunistas. Os da linha dura estão assustados consigo. Isto é muito complexo. ;   - Eo Chenkov?

; - Tenho vergonha de dizer que não estamos assim tão perto dele, por enquanto. Mas estamos a trabalhar nisso. Dentro de pouco tempo, deveremos ter alguém por muito perto.

Teddy atirou os papéis para cima da secretária e aproximou a cadeira de rodas de Lake. As muitas rugas que tinha na testa acentuaram-se ainda mais. As sobrancelhas hirsutas caíram-lhe sobre os olhos tristes.

- Ouça, Mr. Lake - disse ele, com uma voz muito mais soturna. O senhor tem isto ganho. Haverá um ou dois acidentes de percurso, coisas que não podemos prever, e, ainda que pudéssemos, não conseguiríamos evitá-los. Vamos expulsá-los juntos. Os danos serão ligeiros. O senhor é uma novidade total e as pessoas gostam de si. Está a fazer um trabalho excelente e a comunicar. Mantenha a simplicidade da mensagem - é a nossa segurança que está em risco, porque o mundo não é tão seguro como parece. Eu encarrego-me do dinheiro e mantenho o país assustado. Esse míssil na garganta de Khyber pode ser detonado por nós. Morreriam cinco mil pessoas, cinco mil paquistaneses. As bombas nucleares explodiriam nas montanhas. Julga que acordaríamos preocupados com as cotações da bolsa? Nem pensar nisso. Eu encarrego-me do medo, Mr. Lake. Quanto ao senhor, mantenha-se atento e lute.

- Estou a lutar o mais que posso.

- Lute ainda mais, e nada de surpresas, está bem?

- com certeza que não.

Lake não sabia ao certo o que ele entendia por «surpresas», mas deixou passar. Talvez fosse um pouco de sabedoria paternalista.

Teddy afastou-se outra vez. Carregou nos botões e baixou um ecrã do tecto. Passaram vinte minutos a ver curtas passagens da série seguinte de anúncios de Lake. Depois, despediram-se.

Lake partiu de Langley, com duas carrinhas à frente e uma atrás, para o Reagan National Airport, onde o jacto o aguardava. Apetecia-lhe passar uma noite sossegada em Georgetown, em casa, onde o mundo ficava à distância, onde podia ler um livro sozinho, sem ninguém a ver nem a ouvir. Sentia a falta do anonimato das ruas, dos rostos sem nome, do padeiro árabe de M Street que fazia um pão excelente, do alfarrabista de Wisconsin, do café em que cozinhavam feijão africano. Alguma vez conseguiria voltar a andar pelas ruas, como uma pessoa normal, a fazer o que lhe apetecia? Algo lhe disse que não, que esse tempo acabara, talvez para sempre.

Quando Lake ia no avião, Deville entrou no abrigo e anunciou a Teddy que Lake chegara e partira sem tentar ir ver a caixa postal. Chegara a hora do resumo diário do «lixo de Lake». Teddy estava a perder mais
tempo do que tencionava, preocupado com o que o seu candidato poderia fazer a seguir.

As cinco cartas que Klockner e o seu grupo interceptaram a Trevor tinham sido rigorosamente examinadas. Duas tinham sido escritas por Yarber na qualidade de Percy; as outras três eram de Beech a fazer as vezes de Ricky. Os cinco indivíduos eram de estados diferentes. Quatro usavam nomes fictícios; um era suficientemente atrevido para não se esconder atrás de um pseudónimo. As cartas eram basicamente as mesmas: Percy e Ricky eram jovens com problemas que se encontravam em fase de reabilitação, tentando desesperadamente refazer as suas vidas, mas com necessidade de apoio moral e físico de novos amigos porque os antigos eram perigosos. Divulgavam livremente os seus pecados e defeitos, as suas fraquezas e os seus desgostos. Falavam sem nexo das suas vidas depois da reabilitação, das esperanças, dos sonhos e de todas as coisas que desejavam. Orgulhavam-se da pele bronzeada e dos músculos e pareciam ansiosos por mostrar os novos corpos fortalecidos aos seus parceiros.

Só numa carta é que se pedia dinheiro. Ricky pedia um empréstimo de mil dólares a um correspondente chamado Peter, de Spokane, Washington. Afirmava que precisava do dinheiro para fazer face a umas despesas que o tio se recusava a pagar.

Teddy lera as cartas mais do que uma vez. O pedido de dinheiro era importante porque começava a fazer luz sobre o joguinho dos Confrades. Talvez fosse apenas uma iniciativa trivial que alguém lhes ensinara, algum outro presidiário que cumprira a sua pena em Trumble e que planeava agora recomeçar a roubar.

Mas não era na dimensão das jogadas que estava o problema. Tratava-se de um jogo carnal - envolvia cinturas mais finas, peles bronzeadas e bíceps firmes - e o seu candidato estava metido nele.

Ainda havia algumas perguntas, mas Teddy era um homem paciente. Iriam manter-se atento à correspondência. As peças haviam de encaixar.

com Spicer de guarda à porta da sala de reuniões e desafiando quem tencionasse usar a secção de Direito da biblioteca, Beech e Yarber despacharam a correspondência. Beech escreveu a Al Konyers:

Caro Al,

Obrigado pela tua última carta. Ter notícias tuas foi muito importante para mim. É como se vivesse numa gaiola há vários meses e começasse a ver a luz do dia a pouco e pouco. As tuas cartas ajudam a abrir a porta. Por favor, não deixes de escrever.

Desculpa se te incomodei com tantos assuntos pessoais. Respeito a tua privacidade e espero não ter feito demasiadas perguntas. Pareces ser um homem muito sensível, que gosta de solidão e das coisas requintadas da vida. Ontem à noite pensei em ti quando vi Paixões em Fúria, o velho filme com o Bogart e a Bacall. Quase saboreei a comida chinesa. A alimentação aqui é bastante boa, acho eu, mas eles não sabem fazer pratos chineses.

Tenho uma grande ideia. Daqui a dois meses, quando sair daqui, alugamos o Casablanca e a Rainha Africana, vamos comprar comida feita, arranjamos uma garrafa de vinho sem álcool e passamos uma noite calma no sofá. Meu Deus, sinto-me entusiasmado só de pensar na vida lá fora e em fazer coisas a sério outra vez.

Desculpa se estou a andar demasiado depressa, Al. É que tenho passado sem muita coisa aqui, e não só sem o álcool e a boa comida. Percebes o que quero dizer?

O lar em Baltimore aceita-me se eu conseguir arranjar um emprego qualquer a tempo parcial. Disseste que tinhas uns interesses na zona. Sei que estou a pedir muito porque não me conheces, mas consegues arranjar-me alguma coisa? Ficar-te-ei eternamente grato.

Por favor, escreve depressa, Al. As tuas cartas e as esperanças e os sonhos de sair daqui dentro de dois meses com um emprego lá fora é que me aguentam nos momentos mais difíceis.

Obrigado, amigo.

Beijos, Ricky

A carta para Quince Garbe tinha um tom muito diferente. Beech e Yarber andavam de volta dela há vários dias. O rascunho final dizia o seguinte:

Caro Quince,

O teu pai é dono de um banco, mas tu dizes que só consegues arranjar mais dez mil dólares. Acho que estás a mentir, Quince, e isso irrita-me. Sinto-me tentado a enviar o dossier ao teu pai e à tua mulher.

Aceito vinte e cinco mil dólares, imediatamente, com as mesmas instruções de transferência.

E não ameaces com o suicídio. Não quero saber do que fazes. Nunca nos conheceremos, e acho que és um tipo mórbido.
Envia o maldito dinheiro, Quince, e já!

Beijos, Ricky

Klockner estava preocupado com a eventualidade de Trevor se deslocar a Trumble um dia antes do meio-dia e de expedir a correspondência algures no caminho, antes de regressar ao escritório ou a casa. Não era possível interceptá-la antes de chegar ao destino. Era imperativo que Klockner a recuperasse e a retivesse de um dia para o outro para eles a examinarem.

Estava preocupado, mas ao mesmo tempo Trevor nunca mais se despachava. Dava poucos sinais de vida antes da sesta das duas horas da tarde.

Por isso, quando informou a secretária de que iria a Trumble às onze da manhã, o apartamento do outro lado da rua entrou em ebulição. No escritório de Trevor foi imediatamente recebido um telefonema de uma tal Mrs. Beltrone, uma mulher de meia idade que explicou a Jan que ela e o marido rico precisavam muito de um divórcio rápido. A secretária pediu-lhe que aguardasse e gritou a Trevor que esperasse um pouco. Trevor estava a tirar papéis da secretária e a enfiá-los na pasta. A câmara instalada no tecto, por cima dele, captou o seu ar contrariado por ter sido interrompido por um novo cliente.

- Ela diz que é rica - gritou Jan.

O ar carrancudo de Trevor desapareceu. Sentou-se e ficou à espera.

Mrs. Beltrone descarregou na secretária. Era a terceira mulher de um homem muito mais velho do que ela. Tinham uma casa em Jacksonville, mas passavam a maior parte do tempo na casa das Bermudas. Também tinham casa em Vail. Há algum tempo que tinham resolvido divorciar-se, combinado tudo, sem desavenças, muito amigavelmente, mas precisavam de um bom advogado que lhes tratasse da papelada. Tinham as melhores referências de Mr. Carson, mas precisavam de agir depressa por qualquer motivo não desvendado.

Trevor atendeu o telefone e ouviu a mesma história. Mrs. Beltrone estava sentada do outro lado da rua, no apartamento, e trabalhava a partir de um guião que a equipa preparara para a ocasião.

- Preciso mesmo de o ver - disse ela, depois de quinze minutos de confissão.

- Bem, eu estou ocupadíssimo - disse Trevor, como se folheasse meia-dúzia de agendas.

Mrs. Beltrone estava a observá-lo no monitor. O homem tinha os pés em cima da secretária, estava de olhos fechados e tinha o lacinho torto. A vida de um advogado ocupadíssimo.

- Por favor - suplicou ela. - Precisamos de acabar com isto. Tenho de o ver hoje.

- Onde está o seu marido?

- Está em França, mas chega amanhã.

-Bem, vamos ver-disse Trevor entredentes, brincando com o lacinho.

- Quais são os seus honorários? - perguntou ela. Trevor abriu os olhos.

- Bem, como é óbvio, isto é mais complicado. Serei obrigado a cobrar dez mil dólares.

Trevor fez um esgar ao pronunciar estas palavras e susteve o fôlego enquanto esperava pela resposta.

- Levo-lhos hoje - disse ela. - Posso encontrar-me consigo ao meio-dia?

Trevor levantou-se, agarrado ao telefone.

- E se fosse à uma e meia? - disse ele a custo.

- Lá estarei.

- Sabe onde fica o meu escritório?

- O meu motorista descobre. Obrigada, Mr. Carson. Trate-me por Trevor, ia ele a dizer. Mas ela desligara.

Viram-no torcer as mãos, bater com os punhos, cerrar os dentes e exclamar:

- Boa!

Apanhara peixe graúdo.

Jan apareceu à porta e perguntou:

- Então?

- Ela está aqui à uma e meia. Dê uma limpeza a isto.

-Eu não sou mulher-a-dias. Pode adiantar-me algum dinheiro? Preciso de pagar as contas.

- Eu arranjo o maldito dinheiro.

Trevor atacou as estantes, endireitando livros em que não tocava há anos, limpando a madeira com uma toalha de papel, enfiando dossiers em gavetas. Quando chegou à secretária, Jan sentiu uma ponta de remorso e começou a aspirar a recepção.

Trabalharam durante a hora de almoço, e a azáfama de ambos provocou a hilariedade do outro lado da rua.

À uma e meia, não havia sinais de Mrs. Beltrone.

- Onde diabo está ela? - ladrou Trevor no corredor, pouco depois das duas horas.

- Talvez ande à procura de mais algumas referências - disse Jan.

- O que é que você disse? - berrou ele.

- Nada, patrão.

- Telefone-lhe - pediu ele às duas e meia.

- Ela não deixou nenhum número

- Não conseguiu o número?

- Não foi isso que eu disse. Disse que ela não deixou nenhum número. Às três e meia, Trevor saiu do escritório, furioso, tentando desespera-

damente manter o seu ponto de vista numa discussão violenta com uma mulher que despedira pelo menos dez vezes nos últimos oito anos.

Seguiram-no até Trumble. Trevor demorou-se quarenta e cinco minutos na prisão e, quando saiu, passava das cinco - era demasiado tarde para deixar correspondência quer em Neptune Beach quer em Atlantic Beach. Regressou ao escritório e deixou a pasta em cima da secretária. Em seguida, como era de prever, foi beber e jantar ao Pete’s.

 

XVIII

A equipe de Langley foi de avião para Dês Moines, onde os agentes alugaram dois automóveis e uma carrinha. Quarenta minutos mais tarde, estavam em Bakers, lowa. Chegaram à cidadezinha tranquila e cercada pela neve dois dias antes da carta. Quando Quince a foi buscar à estação dos correios, sabiam o nome do chefe dos correios, do presidente da Câmara, do chefe da polícia e do cozinheiro da loja de crepes ao lado da loja de ferragens. Mas ninguém os conhecia em Bakers.

Viram Quince dirigir-se ao banco, apressado, depois de sair dos correios. Meia hora depois, dois agentes conhecidos apenas por Chap e Wes chegaram ao recanto em que ficava o gabinete de Mr. Garbe Jr. e apresentaram-se à secretária como agentes da Reserva Federal. Tinham um aspecto formal - fatos de cor escura, sapatos pretos, cabelo curto, sobretudos compridos, discurso moderado e modos eficientes.

Quince estava lá dentro, fechado à chave, e a princípio mostrou-se renitente em sair. Os homens sublinharam à secretária a urgência da visita e, cerca de quarenta minutos depois, a porta entreabriu-se. Mr. Garbe parecia ter estado a chorar. Estava pálido, abatido e infeliz com a perspectiva de aturar fosse quem fosse. Mas recebeu-os, demasiado nervoso para lhes pedir a identificação. Nem sequer fixou os seus nomes.

Sentou-se do outro lado da secretária maciça e olhou para os dois gémeos que tinha na sua frente.

-Em que lhes posso ser útil? - perguntou ele, com um sorriso muito ténue.

- A porta está fechada à chave? - perguntou Chap.

- Sim, está.

Os gémeos ficaram com a impressão de que Mr. Garbe passava a maior parte dos dias fechado à chave.

- Alguém nos pode ouvir? - perguntou Wes.

- Não.

Quince ficou ainda mais agitado.

-Não somos funcionários do banco central-disse Chap.-Mentimos.

Quince não sabia se havia de ficar zangado ou aliviado, ou até mais assustado. Por isso, deixou-se ficar sentado, de boca aberta, imóvel, à espera que o fulminassem.

- É uma longa história - disse Wes.

- Têm cinco minutos.

- Na realidade, temos o tempo que quisermos.

- Este é o meu gabinete. Saiam.

- Não tenha pressa. Nós sabemos umas coisas.

- vou chamar a segurança.

- Não, não vai.

- Nós vimos a carta - disse Chap. - Aquela que você foi buscar £os correios.

- Fui buscar várias.

- Mas só uma do Ricky.

Quince deixou descair os ombros e fechou os olhos lentamente. Depois, abriu-os de novo e fitou os dois carrascos, com um ar totalmente derrotado.

- Quem são vocês? - perguntou em voz baixa. - Não somos inimigos.

- Trabalham para ele, não é verdade?

- Para ele?

- Para o Ricky, ou lá quem ele é.

- Não - respondeu Wes. - Ele também é nosso inimigo. Digamos apenas que temos um cliente que está no mesmo barco em que você está, mais ou menos. Fomos contratados para o proteger.

Chap tirou um envelope grosso da algibeira do casaco e atirou-o para cima da secretária.

- Aí estão vinte e cinco mil dólares em dinheiro. Envie-os ao Ricky. Quince ficou a olhar para o envelope, boquiaberto. O seu pobre cérebro

estava sufocado com tantos pensamentos que o estonteava. Fechou os olhos outra vez e entreabriu-os, num esforço vão para organizar as coisas. Esqueceu a pergunta acerca da identidade dos seus interlocutores. Como é que tinham lido a carta? Porque lhe ofereciam dinheiro? O que sabiam exactamente? Tinha a certeza de que não podia confiar neles.

- O dinheiro é seu - disse Wes. - Em troca, precisamos de umas informações.
- Quem é o Ricky? - perguntou Quince, com os olhos semicerrados.

- O que pretende saber acerca dele? - perguntou Chap.

- O nome dele não é Ricky.

- É verdade.

- Ele está na prisão.

- É verdade - disse Chap outra vez. - Ele diz que tem mulher e filhos.

- Em parte, é verdade. A mulher já não lhe pertence. Os filhos ainda são dele.

- Diz que não tem nada, e que é por isso que anda a esfolar as pessoas.

- Não exactamente. A mulher é bastante rica e os filhos foram atrás do dinheiro. Não sabemos ao certo por que motivo anda ele a esfolar as pessoas.

- Mas gostaríamos que ele acabasse com isso - acrescentou Chap.

- Precisamos da sua ajuda.

De repente, pela primeira vez na sua vida, Quince percebeu que, ao fim de cinquenta e um anos, estava na presença de duas pessoas que sabiam que ele era homossexual. A consciência da situação aterrou-o. Por instantes, apeteceu-lhe negar, inventar uma história acerca da maneira como conhecera Ricky, mas faltou-lhe a imaginação. Estava demasiado assustado para se inspirar.

Depois, apercebeu-se que aqueles dois homens, fossem eles quem fossem, podiam destruí-lo. Conheciam o seu pequeno segredo e tinham poder para arruinar a sua vida.

E ofereciam-lhe vinte e cinco mil dólares em dinheiro?

O pobre Quince tapou os olhos com os nós dos dedos e perguntou:

- O que pretendem?

Chap e Wes julgaram que ele ia desatar a chorar. Não se preocuparam muito, mas não havia necessidade disso.

- Aqui está o acordo, Mr. Garbe - disse Chap. - O senhor aceita o dinheiro que está em cima da sua secretária e conta-nos tudo acerca do Ricky. Mostra-nos as suas cartas. Mostra-nos tudo. Se tiver um dossier, um cofre, ou um sítio secreto onde tenha escondido tudo, gostaríamos de ver. Depois de recolhermos tudo aquilo de que precisamos, vamo-nos embora. Desaparecemos tão depressa como chegámos, e o senhor nunca saberá quem somos nem quem estamos a proteger.

- E guardam os segredos?

- Absolutamente.

- Não temos motivos para falar de si a ninguém - acrescentou Wes.

- Podem obrigá-lo a acabar com isto?-perguntou Quince, olhando-os fixamente.

Chap e Wes calaram-se e olharam um para o outro. Até aí, as suas respostas tinham sido perfeitas, mas esta pergunta não tinha uma resposta clara.

- Não podemos prometer, Mr. Garbe - respondeu Wes.-Mas vamos fazer o possível por afastar esse tal Ricky do negócio. E, como dissemos, ele também anda a incomodar o nosso cliente.

- Têm de me proteger nisto.

- Faremos tudo o que pudermos.

De repente, Quince levantou-se e inclinou-se para a frente com as mãos espalmadas em cima da secretária. Não tocou no dinheiro e deu alguns passos na direcção de uma velha estante envidraçada cheia de livros gastos e com as lombadas a descascar. Abriu-a com uma chave e, com outra, abriu um pequeno cofre escondido na segunda prateleira a contar do chão. com cuidado, retirou um dossier fino, do tamanho de uma carta, e colocou-o junto do envelope com o dinheiro.

No preciso momento em que ele abria o dossier, ouviu-se uma voz agressiva e aguda no intercomunicador:

- Mr. Garbe, o seu pai gostaria de falar consigo imediatamente. Quince endireitou-se, horrorizado, empalideceu subitamente e fez um

esgar de pânico.

- Hum, diga-lhe que estou numa reunião - respondeu, tentando mostrar-se firme mas denunciando que estava a mentir desesperadamente.

- Diga-lhe o senhor - disse a voz de mulher, e o intercomunicador desligou-se com um estalido.

- Desculpem - disse ele, tentando sorrir.

Pegou no auscultador do telefone, marcou três números e virou as costas a Wes e Chap, talvez para eles não ouvirem a conversa.

- Papá, sou eu. O que há? - perguntou, de cabeça baixa. Seguiu-se uma longa pausa, enquanto o velho lhe enchia os ouvidos. Depois:

- Não, não, eles não são da Reserva Federal. São, hum, são uns advogados de Dês Moines. Representam a família de um antigo colega meu da faculdade. Só isso.

Uma pausa mais curta.

- Hum, Franklin Delaney, o papá não se deve lembrar dele. Ele morreu há quatro meses, sem testamento, uma grande confusão. Não, papá, isto não tem nada a ver com o banco.

Desligou. A mentira não fora má. A porta estava fechada à chave, Isso é que era importante.

Wes e Chap levantaram-se e aproximaram-se ao mesmo tempo da extremidade da secretária. Inclinaram-se quando Quince abriu o dossier. A primeira coisa em que repararam foi na fotografia, presa com um clip ao interior da capa. Wes tirou-a com cuidado e perguntou:

- Este é que é o Ricky?

- É ele - respondeu Quince, envergonhado, mas decidido a ir até ao fim.

- É um jovem bem parecido - disse Chap, como se estivessem a admirar as páginas centrais da Playboy. Todos se sentiram pouco à vontade.

- Vocês sabem quem é o Ricky, não sabem? - perguntou Quince.

- Sabemos.

- Então digam-me.

- Não, isso não faz parte do acordo.

- Porque não me podem dizer? Estou a dar-vos tudo o que pretendem.

- Não foi isso que combinámos.

- Eu quero matar esse patife.

- Descontraia-se, Mr. Garbe. Nós fizemos um acordo. O senhor fica com o dinheiro, nós ficamos com o dossier e ninguém se magoa.

- Voltemos ao princípio - disse Chap, olhando para o homenzinho frágil e sofredor sentado na cadeira enorme. - Como é que tudo começou?

Quince afastou alguns papéis à volta do dossier e pegou numa revista.

- Comprei isto numa livraria de Chicago - disse ele, fazendo-a deslizar para eles a verem.

O título era Out andAbout, e autodescrevia-se como uma publicação destinada a homens maduros com estilos de vida alternativos. Quince deixou-os ver a capa e depois folheou a revista até chegar às últimas páginas. Wes e Chap não tentaram tocar-lhe, mas não tiraram os olhos dela. Muito poucas fotografias e uma profusão de texto em letra pequena.

Não se tratava de pornografia.

Na página 46 havia uma pequena secção de anúncios pessoais. Um deles estava assinalado com um círculo vermelho. Dizia o seguinte:

JOVEM DE 20 E TAL ANOS PROCURA CAVALHEIRO SIMPÁTICO E DISCRETO DE 40 OU 50 ANOS PARA CONVÍVIO

Wes e Chap inclinaram-se mais para ler e depois endireitaram-se ao mesmo tempo.

- Então respondeu a este anúncio? - perguntou Chap.

- Respondi. Enviei um bilhetinho e duas semanas depois tive notícias do Ricky.

- Tem uma fotocópia do seu bilhete?

- Não. Não fiz fotocópias das minhas cartas. Não deixei nada neste gabinete. Tinha medo de fazer fotocópias aqui.

Wes e Chap franziram o sobrolho, incrédulos e muito desapontados. com que tipo de idiota é que estavam ali a falar?

- Lamento - disse Quince, tentado a agarrar no dinheiro antes que eles mudassem de ideias.

Continuando, tirou a primeira carta de Ricky e atirou-a aos dois homens. ; - Pouse-a, apenas - disse Wes.

Ambos se inclinaram sem tocar na carta. Liam muito devagar, reparou Quince, e com uma concentração incrível. A sua mente estava a começar a desanuviar-se e surgiu um lampejo de esperança. Como era bom ter o dinheiro e não se preocupar com outro maldito empréstimo, com outro chorrilho de mentiras para apagar os vestígios do seu acto. E agora tinha aliados, Wes e Chap, que estavam ali, e sabe Deus mais quem a trabalhar contra o Ricky. O seu ritmo cardíaco abrandou um pouco e a respiração não era tão ofegante.

- A carta seguinte, por favor - disse Chap.

Quince apresentou-lhas sequencialmente, uma a uma, três de cor cinzenta, uma azul-clara e uma amarela, todas escritas na monótona letra de imprensa de alguém com o tempo por sua conta. Quando acabavam de ler uma página, Chap tinha o cuidado de passar à seguinte com uma pinça. Os dedos deles não tocavam em nada.

O que havia de estranho nas cartas era o facto de serem tão credíveis, segredaram Chap e Wes um ao outro muito mais tarde. Ricky estava magoado, torturado e muito necessitado de alguém com quem falar. Era digno de compaixão. E tinha esperança, porque o pior passara para ele, que dentro de pouco tempo seria livre de procurar novas amizades. Escrevia muito bem!

Depois de um silêncio ensurdecedor, Quince disse:

- Preciso de fazer um telefonema.

- A quem?

- É um assunto profissional.

Wes e Chap olharam um para o outro sem saberem o que haviam de fazer e depois concordaram com um aceno de cabeça. Quince levou o telefone para a sua credencia e observou Main Street enquanto falava com outro banqueiro.

A dada altura, Wes começou a tomar apontamentos, sem dúvida preparando-se para o interrogatório cruzado que se seguiria. Quince, oculto pela estante, tentava ler um jornal, tentava ignorar os apontamentos. Agora estava calmo, pensava com a clareza possível e maquinava o passo seguinte, aquele que daria assim que aqueles matulões o deixassem em paz.

- Enviou-lhe um cheque de cem mil dólares? - perguntou Chap.

- Enviei.

Wes, o mais austero dos dois, olhou para ele com desprezo, como se dissesse: «Que idiota!»

Os dois homens continuaram a ler, tiraram mais alguns apontamentos e disseram qualquer coisa um ao outro em voz baixa.

- Quanto dinheiro é que o vosso cliente enviou?-perguntou Quince, num impulso.

Wes fez um ar ainda mais severo e respondeu:

- Não podemos dizer.

Quince admirou-se. Os rapazes não tinham sentido de humor. Uma hora depois, sentaram-se e Quince instalou-se na sua cadeira de banqueiro.

- Apenas duas perguntas - disse Chap, e Quince percebeu que ficariam ali a conversar durante mais uma hora.

- Como é que você reservou o cruzeiro para homossexuais?

- Está aqui na carta. Esse mafioso deu-me o nome e o número de uma agência de viagens em Nova Iorque. Eu telefonei e depois enviei uma ordem de pagamento. Foi fácil.

- Fácil? Já tinha feito o mesmo alguma vez?

- Estamos aqui para falar da minha vida sexual?

- Não.

- Então, limitemo-nos aos assuntos.

Quince pronunciou estas palavras como o ar de um perfeito idiota, e sentiu-se bem outra vez. Por instantes, foi a costela de banqueiro que prevaleceu nele. Depois, pensou numa coisa a que não conseguiu resistir. Muito sério, disse:

- O cruzeiro está pago. Vocês querem ir? 156

Felizmente, os homens riram-se. Foi um rápido lampejo de humor, mas voltaram ao trabalho. Chap perguntou:

- Pensou na hipótese de usar um pseudónimo?

- Sim, evidentemente. Fui estúpido em não o fazer. Mas nunca tinha feito uma coisa destas. Julguei que o tipo era sério. Ele está na Florida, e eu estou em Podunk, lowa. Nunca me passou pela cabeça que fosse um vigarista.

- Vamos precisar de fotocópias de tudo isto - disse Wes.

- Isso pode ser um problema.

- Porquê?

- Onde é que vocês iriam tirar as fotocópias?

- O banco não tem uma fotocopiadora?

- Tem, mas não vão fotocopiar esse dossier neste banco.

- Então levamo-lo a um estabelecimento qualquer em que se tirem fotocópias rápidas.

- Estamos em Bakers. Não temos cá nenhum estabelecimento desses.

- Não há nenhuma loja de artigos de escritório?

. - Há, e o dono deve oitenta mil dólares ao meu banco. É meu colega no Clube dos Rotários. Vocês não vão lá tirar fotocópias. Eu não serei visto com esse dossier.

Chap e Wes olharam um para o outro e depois para Quince. Wes disse:

- Está bem. Eu fico aqui consigo. O Chap leva o dossier e vai à procura de uma fotocopiadora.

- Aonde?

- À farmácia - respondeu Wes. - Deram com a farmácia?

- Claro. Precisávamos de uma pinça.

- Essa fotocopiadora tem vinte anos.

- Não, eles têm uma nova.

- Tenha cuidado, ouviu? A farmacêutica é segunda prima da minha secretária. Esta terra é muito pequena.

Chap pegou no dossier e encaminhou-se para a porta. Esta deu um estalido sonoro quando ele deu a volta à chave e, assim que saiu, Chap ficou imediatamente sujeito a um exame cerrado. Junto da secretária, agrupavam-se mulheres mais velhas sem fazer nada. Quando Chap apareceu, imobilizaram-se e fitaram-no com um ar estúpido. O velho Mr. Garbe não andava longe, com um livro de contabilidade na mão, a fingir
que estava muito ocupado, mas morto de curiosidade. Chap cumprimentou toda a gente com um gesto de cabeça e esgueirou-se, passando virtualmente por todos os empregados do banco.

A porta voltou a fechar-se com ruído e Quince deu a volta à chave antes que alguém entrasse. Durante alguns minutos Wes e ele mantiveram uma conversa incómoda, que às vezes morria por falta de assunto. Fora o sexo proibido que os aproximara, e era óbvio que tinham de evitar o tema. A vida em Bakers tinha pouco interesse. Quince não podia perguntar nada acerca do passado de Wes.

Por fim, disse:

- O que hei-de dizer na minha carta ao Ricky? Wes entusiasmou-se logo com a ideia.

- Bem, eu começaria por esperar. Espere um mês. Deixe-o suar. Se se apressar a responder e depois lhe mandar o dinheiro, ele pode pensar que foi muito fácil.

- E se ele se irrita?

- Isso não vai acontecer. Tem muito tempo e quer o dinheiro.

- Vocês vêem toda a correspondência dele?

- Estamos convencidos de que temos acesso à maior parte. Quince estava cheio de curiosidade. Na companhia de um homem que conhecia o seu segredo mais profundo, sentia-se acicatado.

- Como é que o vão obrigar a parar?

E Wes, sem perceber porquê, respondeu simplesmente:

- Talvez o matemos.

Uma paz enorme irradiou do olhar de Quince Garbe, um brilho quente e apaziguador que se espalhou pela sua fisionomia torturada. As rugas atenuaram-se. A boca abriu-se num sorrisinho. Afinal, a sua herança estava salva e, quando o velho desaparecesse e o dinheiro fosse seu, Quince fugiria daquela vida e viveria como lhe apetecesse.

- Muito bem - disse ele em voz baixa. - Formidável.

Chap levou o dossier para o quarto de um motel, onde uma fotocopiadora a cores o aguardava com outros membros da equipa. Foram feitos três jogos, e meia-hora depois Wes estava de volta ao banco. Quince inspeccionou os originais; estava tudo em ordem. Teve o cuidado de voltar a fechar à chave o dossier e depois disse aos seus visitantes:

- Creio que chegou o momento de se irem embora.

Os dois homens saíram sem trocar apertos de mão nem os habituais cumprimentos de despedida. O que havia a dizer?

Um jacto particular aguardava-os no aeroporto local, cuja pista era mesmo à justa. Três horas depois de abandonarem Quince, Chap e Wes chegaram a Langley. A sua missão fora um sucesso retumbante.

Conseguiram um resumo da conta do Geneva Trust Bank graças a um suborno de quarenta mil dólares a um funcionário bancário das Bahamas, um homem a quem já tinham recorrido. A Boomer Realty apresentava um saldo de cento e oitenta e nove mil dólares. O advogado tinha cerca de sessenta e oito mil dólares na sua conta. No resumo figuravam todos os movimentos - o dinheiro depositado e as somas levantadas. A equipa de Deville tentava desesperadamente identificar os ordenadores das transferências. Sabiam que Mr. Garbe utilizara um banco em Dês Moines e que fora efectuada outra transferência de cem mil dólares de um banco em Dallas. No entanto, não conseguiam descobrir quem ordenara essa transferência.

Estavam a investigar em muitas frentes quando Teddy chamou Deville ao abrigo. York estava junto dele. A mesa estava repleta de cópias do dossier de Garbe e dos extractos do banco.

Deville nunca vira o seu chefe tão desanimado. York também tinha pouco a dizer. Era ele que aturava os ataques de mau humor de Lake, apesar de este se acusar a si próprio.

- Conte-me as últimas - disse Teddy em voz baixa. Deville nunca se sentava quando estava no abrigo.

- Continuamos atrás do dinheiro. Entrámos em contacto com a revista Out and About. É publicada em New Haven por uma empresa muito pequena, e não sei se conseguiremos entrar lá dentro. O nosso contacto nas Bahamas está de sobreaviso e saberemos se e quando forem recebidas transferências. Temos uma equipa pronta a fazer uma busca aos gabinetes do Lake no Capitólio, mas isso é um grande risco. Não estou optimista. Temos vinte pessoas em campo em Jacksonville.

- Quantos dos nossos é que andam atrás do Lake?

- Passámos de trinta para cinquenta.

- Ele tem de ser vigiado. Não podemos virar as costas. Não é a pessoa que julgávamos e, se o perdermos de vista uma hora que seja, pode enviar uma carta ou comprar outra revista.

- Sabemos disso. Estamos a fazer o melhor que podemos.

- Esta é a nossa primeira prioridade doméstica.

- Eu sei.

- E se arranjássemos alguém dentro da prisão? - perguntou Teddy. Era uma ideia nova que York congeminava há meia hora.

Deville esfregou os olhos e roeu as unhas por instantes. Depois respondeu:

- vou trabalhar nisso. Teremos de puxar alguns cordelinhos que nunca puxámos.

- Quantos prisioneiros há no sistema federal? - perguntou York.

- Cento e trinta e cinco mil, mais coisa menos coisa - respondeu Deville.

- com certeza que nos podemos meter noutra, não podemos?

- vou averiguar.

- Temos contactos no Gabinete das Prisões?

- É território novo, mas estamos a trabalhar nele. Estamos a servir-nos de um velho amigo na Justiça. Estou optimista.

Deville deixou-os durante algum tempo. Voltou a ser chamado daí a uma hora, mais ou menos. York e Teddy tinham mais uma lista de perguntas, ideias e recados para ele.

- Não me agrada a ideia de revistar o gabinete dele no Capitólio disse York. - É muito arriscado. E, além disso, levaria uma semana. Aqueles tipos têm milhares de dossiers.

- A mim também não - disse Teddy em voz baixa.

- Vamos dizer à nossa equipa dos Documentos que escreva uma carta do Ricky para o Lake. Expedimos o envelope, acompanhamo-lo e talvez ele nos conduza ao dossier dele.

- É uma excelente ideia. Diga ao Deville.

York tomou apontamentos num bloco já cheio de muitos outros, quase todos riscados. Fez rabiscos para passar o tempo e depois fez a pergunta que estivera a guardar:

- Vai confrontá-lo?

- Por enquanto não.

- Quando?

- Talvez nunca. Vamos recolher as informações, apurar tudo o que pudermos. Ele parece estar muito calmo quanto à sua outra vida, que talvez tenha começado depois da morte da mulher. Quem sabe? Talvez mantenha a discrição.

- Mas ele tem de saber que o senhor sabe. Caso contrário, pode aproveitar outra oportunidade. Se souber que andamos sempre a vigiá-lo, portar-se-á bem. Talvez.

- Entretanto, o mundo transforma-se num inferno. Compram-se, vendem-se e passam-se armas nucleares às escondidas pelas fronteiras. Acompanhamos sete pequenas guerras e há mais três no horizonte. Só no mês passado, surgiram doze novos grupos terroristas. No Médio Oriente, há maníacos a formar exércitos e a açambarcar petróleo. E nós estamos aqui sentados, horas e horas, a conspirar contra três juizes desonestos que talvez estejam a jogar às cartas neste preciso momento.

- Eles não são estúpidos - disse York.

- Não, mas são desajeitados. As redes deles apanharam a pessoa errada.

- Creio que nós é que apanhámos a pessoa errada.

- Não, foram eles.

 

XIX

O memorando do supervisor regional do Gabinete das Prisões em Washington chegou por fax. Era dirigido a Mr. Emmitt Broon, o director de Trumble. Em linguagem concisa mas vulgar, o supervisor afirmava que passara em revista os registos de Trumble e estava preocupado com o número de visitas de um tal Trevor Carson, advogado de três reclusos. Carson chegara ao ponto de figurar no livro de registos quase todos os dias.

Apesar de todos os reclusos terem o direito, consignado na Constituição, de se encontrarem com os seus advogados, a prisão tinha igualmente o poder de regular a circulação. com efeitos imediatos, as visitas advogado-cliente ficariam limitadas às terças, quintas e sábados, entre as três e as seis horas da tarde. Seriam abertas excepções para casos considerados justificáveis.

A nova política vigoraria por um período de noventa dias, após o que seria revista.

Pelo director, tudo bem. Também ele começara a desconfiar das visitas quase diárias de Trevor. Perguntara na recepção e os guardas não conseguiram determinar qual era exactamente a natureza de todo aquele apoio jurídico. Link, o guarda que em geral acompanhava Trevor à sala de reuniões e metia ao bolso duas notas de vinte dólares por cada visita, disse ao director-adjunto que o advogado e Mr. Spicer falavam de processos, de recursos e de coisas no género.

- Apenas um punhado de tretas legais - disse Link.

- E você revista-lhe sempre a pasta? - perguntara o director.

- Sempre - respondera Link.

Por delicadeza, o director ligara o número de Mr. Trevor Carson, em Neptune Beach. Atendera o telefone uma mulher que dissera num tom desabrido:
162

- Escritório de advogados.

- Mr. Trevor Carson, por favor.

- Quem fala?

- EmmittBroon.

- Bem, Mr. Broon, ele está a dormir.

- Compreendo. Não o pode acordar? Sou o director da prisão federal de Trumble e preciso de falar com ele.

- Espere um momento.

Broon esperou muito tempo, e quando a mulher voltou disse:

- Desculpe. Não consegui acordá-lo. Ele pode telefonar-lhe mais tarde?

- Não, obrigado. Eu envio-lhe um fax.

A ideia de uma outra fraude foi de York, quando jogava golfe num domingo. À medida que o jogo avançava e as bolas caíam na relva de vez em quando, mas com mais frequência na areia e nas árvores o plano germinava até atingir o brilhantismo. York abandonou os companheiros depois de catorze buracos e telefonou a Teddy.

Ficariam a saber qual era a táctica dos adversários. E conseguiriam distrair as atenções de Al Konyers. Não tinham nada a perder.

A carta foi concebida por York e passada a um dos maiores especialistas em falsificações dos Documentos. O parceiro foi baptizado com o nome de Brant White e o primeiro bilhete foi escrito à mão, num cartão branco e liso mas caro.

Caro Ricky,

Vi o teu anúncio e gostei. Tenho cinquenta e cinco anos, estou e grande forma e ando à procura de um amigo para conviver. Eu e a minha mulher comprámos uma casa há pouco tempo em Palm Valley, não muito longe de Neptune Beach. Daqui a duas semanas vamos para lá e tencionamos ficar durante dois meses.

Se estiveres interessado, manda uma fotografia. Se gostar do que vir, dou mais pormenores.

Brant

No remetente lia-se Brant, Caixa Postal 88645, Upper Darby, PA 19082.
Para poupar dois ou três dias, os Documentos apuseram um carimbo de Filadélfia e a carta foi de avião para Jacksonville, onde o agente Klockner a depositou pessoalmente na caixinha de Aladdin North, na estação dos correios de Neptune Beach. Era segunda-feira.

No dia seguinte, depois da sesta, Trevor foi buscar a correspondência e saiu de Jacksonville, rumando a oeste pela já familiar estrada para Trumble. Foi recebido pelos mesmos guardas, Mackey e Vince, à porta principal, e assinou o mesmo livro de registos que Rufus lhe pôs à frente. Seguiu Link até chegar à zona dos visitantes e a um canto onde Spicer o esperava, numa das pequenas salas de reuniões.

- Andam em cima de mim - disse Link assim que entraram na sala. Spicer não levantou a cabeça. Trevor deu duas notas de vinte a Link, que as agarrou numa fracção de segundo.

- Quem? - perguntou Trevor, abrindo a pasta. Spicer estava a ler o jornal.

- O director.

Com os diabos, ele já me cortou nas visitas. O que mais quer ele?

- Não percebe? - perguntou Spicer, sem baixar o jornal. - O Link está aborrecido porque não recebe mais. Não é, Link?

- Vocês têm esse direito. Não sei que negócio é que fazem aqui, mas se for apertado nas minhas inspecções, ficam em apuros, não ficam?

- Você está a ser bem pago - disse Trevor.

- Isso é o que você julga.

- Quanto é que queres mais? - perguntou Spicer, olhando fixamente para o guarda.

- Mil por mês, em dinheiro - respondeu ele, olhando para Trevor.

- Vou buscá-lo ao seu escritório.

- Mil dólares por mês e a correspondência não é verificada - disse Spicer.

- Sim.

- E nem uma palavra a ninguém.

- Sim. - Está combinado. E agora, fora daqui.

Link sorriu a ambos e saiu da sala. Tomou posição do lado de fora da porta e de vez em quando espreitava pela janela, por causa das câmaras de circuito fechado.

Lá dentro, a rotina não sofreu grandes alterações. A troca de correspondência veio em primeiro lugar e demorou apenas um segundo. De um dossier castanho já gasto, que era sempre o mesmo, Joe Spicer Roy tirou as cartas a expedir e deu-as a Trevor, que tirou a correspondência recebida da pasta e a entregou ao seu cliente.

Havia seis cartas para expedir. Havia dias em que chegavam a ser dez, mas raramente eram menos do que cinco. Apesar de Trevor não guardar registos, nem cópias nem documentos num dossier que provassem que tinha algo a ver com a pequena fraude dos Confrades, sabia que devia haver vinte ou trinta potenciais vítimas a serem enganadas. Reconheceu alguns nomes e endereços.

Vinte e uma, para ser exacto, segundo os registos precisos de Spicer. Vinte e uma hipóteses sérias, e mais dezoito marginais. Quase quarenta tipos que se escondiam nos seus armários, uns assustados com a própria sombra, outros mais arrojados, e ainda outros que estavam prestes a bater com a porta para irem ao encontro de Ricky ou de Percy.

A dificuldade estava em ser paciente. O esquema estava a resultar, o dinheiro estava a mudar de mãos e a tentação consistia em espremê-los demasiado depressa. Beech e Yarber revelavam-se incansáveis. Passavam horas a escrever as suas cartas, enquanto Spicer dirigia as operações. Era preciso disciplina para pescar um novo parceiro que tivesse dinheiro, e depois obrigá-lo com palavras bonitas a ganhar a sua confiança.

- Não temos qualquer coisa a receber? - perguntou Trevor. Spicer folheava as suas novas cartas.

- Não me diga que está falido - disse ele. - Você está a ganhar muito mais do que nós.

- O meu dinheiro está depositado como o vosso. Só gostaria de ter mais um pouco.

- Também eu.

Spicer olhou para o envelope de Brant, em Upper Darby, Pennsylvania.

- Ah, um novo - disse em voz baixa e depois abriu-o.

Leu o bilhete à pressa e ficou admirado com o tom. Sem medo, sem palavras inúteis, sem espreitadelas à esquina. Aquele homem estava preparado para a acção. a,i

- Onde é Palm Valley? - perguntou.

- Quinze quilómetros a sul das praias. Porquê?

- Que tipo de sítio é?

- É uma das comunidades de golfe reservadas a reformados ricos, quase todos do Norte.

- A como são as casas?

- Bem, nunca lá estive. Eles têm o maldito portão fechado e há guardas por todo o lado, como se alguém pudesse entrar à força e roubar os carrinhos de golfe, mas...

- A como são as casas?

- Nada menos do que um milhão. Vi duas anunciadas por três milhões.

- Espere aí - disse Spicer, pegando no dossier e encaminhando-se para a porta.

- Aonde vai? - perguntou Trevor.

- À biblioteca. Volto daqui a meia hora.

- Eu tenho que fazer.

- Não, não tem. Leia o jornal.

Spicer disse qualquer coisa a Link, que atravessou com ele a zona das visitas e o acompanhou ao edifício da administração. Caminhava depressa pelos terrenos bem tratados. O sol estava quente e os jardineiros ganhavam os seus cinquenta cêntimos à hora.

O mesmo acontecia com os responsáveis pela biblioteca. Beech e Yarber estavam escondidos na sua pequena sala de reuniões, a fazer intervalo dos seus escritos com um jogo de xadrez, quando Spicer entrou de rompante, com um sorriso incaracterístico.

- Rapazes, finalmente apanhámos peixe graúdo - disse, atirando a carta de Brant para cima da mesa.

Beech leu-a em voz alta.

- Palm Valley é uma comunidade de golfe para gente rica - explicou Spicer, orgulhoso. - Tem casas que chegam a custar cerca de três milhões. O tipo está cheio de massa e não é muito de cartas.

- Parece ansioso - observou Yarber.

- Precisamos de andar depressa - disse Spicer. - Ele quer aparecer daqui a três semanas.

- Qual é o potencial?-perguntou Beech. Adorava o jargão daqueles que investiam milhões.

- Pelo menos meio milhão - respondeu Spicer. - Vamos escrever a carta agora. O Trevor está à espera.

Beech abriu um dos seus muitos dossiers e mostrou a mercadoria: folhas de papel em tons pastel suaves.

- Acho que devemos tentar a cor de pêssego - disse ele.

- Oh, está decidido. Tem de ser o pêssego - respondeu Spicer. Ricky escreveu uma versão reduzida da carta de contacto inicial. Vinte

e oito anos, faculdade, licenciatura, fechado numa clínica de reabilitação
mas quase a ter alta, talvez daí a dez dias, muito só, à procura de um homem maduro para iniciar uma relação. Dava jeito que Brant fosse viver perto dali, porque Ricky tinha uma irmã em Jacksonville e ia passar uns dias com ela. Não havia obstáculos, nem barreiras para atravessar. Ricky estaria pronto para Brant quando ele viesse para o Sul. Mas gostava de receber uma fotografia primeiro. Brant era mesmo casado? A mulher também iria viver para Palm Valley? Ou ficaria na Pennsylvania? Não seria uma maravilha se isso acontecesse?

Enviaram a mesma fotografia a cores que tinham usado uma centena de vezes e que provara ser irresistível.

Spicer levou o envelope cor de pêssego para a sala de reuniões onde Trevor dormitava.

- Meta isto no correio imediatamente - rosnou Spicer.

Passaram dez minutos a falar das apostas de basquetebol e depois despediram-se sem um aperto de mão.

A caminho de Jacksonville, Trevor telefonou ao seu agente de apostas, um novo, um agente mais importante, agora que ele era jogador. As linhas digitais eram de facto mais seguras, mas não os telefones. O agente Klockner e a sua equipa de operacionais estavam à escuta, como era habitual, e a seguir as apostas de Trevor. O homem não se estava a sair mal - quatro mil e quinhentos dólares nas duas últimas semanas. Em contrapartida, a sua firma de advogados fizera oitocentos dólares no mesmo período.

Além do telefone, havia quatro microfones no carocha, quase todos de pouco valor, mas a funcionar. E debaixo de cada pára-choques havia um transmissor, ambos ligados ao sistema eléctrico do carro e verificados todas as noites, quando Trevor estava a beber ou a dormir. Um receptor potente no apartamento do outro lado da rua acompanhava o carocha para onde quer que fosse. Quando Trevor desceu a auto-estrada, a falar ao telefone como se fosse uma pessoa muito importante, a atirar dinheiro à sua volta como um grande jogador de Las Vegas, a beber café quente numa pastelaria de passagem, estava a emitir mais sinais do que a maioria dos jactos particulares.

7 de Março. A grande Super Terça-feira. Aaron Lake passeava-se, triunfante, pelo palco de uma grande sala de banquetes de um hotel em Manhattan. Vencera em Nova Iorque com 43 por cento dos votos. O governador Tarry alcançara uns míseros 29 por cento e os outros candidatos ficaram com o resto. Lake abraçou gente que nunca vira, acenou a gente que nunca voltaria a ver e proferiu um empolgante discurso de vitória sem se socorrer de apontamentos.

Em seguida, partiu para L. A., para celebrar mais um triunfo. Durante quatro horas, no seu novo Boeing a jacto que levava cem pessoas, custava um milhão de dólares por mês e voava a uma velocidade de quinhentas milhas por hora, trinta e oito mil pés acima do país, ele e a sua equipa acompanharam os resultados dos doze estados que participavam na grande Super Terça-feira. Ao longo da Costa Leste, onde as urnas já tinham fechado, Lake venceu à tangente no Maine e no Connecticut, mas alcançou grandes margens em Nova Iorque, Massachusetts, Maryland e Jórgia. Perdeu em Rhode Island por oitocentos votos e ganhou em Vermont por mil. Quando sobrevoava o Missouri, a CNN anunciou que ele fora o vencedor neste estado por quatro pontos percentuais sobre o governador Tarry. No Ohio, a situação fora idêntica.

Quando Lake chegou à Califórnia, a confusão terminara. Dos 591 delegados em causa, conquistara 390. Também consolidara o impulso de vitória. E, o mais importante, Aaron Lake tinha agora dinheiro. O governador Tarry estava a cair a pique e depressa, e todos apostavam em Lake.


XX

Seis horas depois de clamar vitória na Califórnia, Lake acordou para uma manhã frenética de entrevistas ao vivo. Concedeu dezoito em duas horas, e depois voou para Washington.

Foi direito à sua sede de campanha, no rés-do-chão de um grande edifício de escritórios em H Street, perto da Casa Branca. Agradeceu aos seus colaboradores, poucos dos quais eram voluntários. Conviveu com a multidão, distribuiu apertos de mão, perguntando permanentemente a si próprio: «Donde veio esta gente?»

Vamos vencer, repetia ele, e todos acreditavam. Porque não?

Reuniu-se durante uma hora com os responsáveis máximos. Tinha sessenta e cinco milhões de dólares, sem dívidas. Tarry tinha menos de um milhão na mão e continuava a tentar contar o dinheiro que devia. De facto, a campanha de Tarry não cumprira um prazo imposto pelas autoridades federais porque reinava a confusão na contabilidade. Todo o dinheiro desaparecera. Tinham acabado os donativos. Lake é que estava a receber o dinheiro todo.

Os nomes de três potenciais vice-presidentes foram debatidos com grande entusiasmo. Era um exercício empolgante, porque implicava que a nomeação estava no papo. A primeira escolha de Lake, o senador Nance, do Michigan, estava a gerar polémica porque o homem tinha uns negócios escuros quaisquer de outra fase da sua vida. Os sócios eram de origem italiana, de Detroit, e Lake, ao fechar os olhos, via a imprensa a tirar a pele a Nance. Fora criada uma comissão para explorar o assunto.

E fora constituída uma comissão para começar a planear a presença de Lake na convenção de Denver. Lake queria outra pessoa para lhe escrever os discursos, imediatamente, e queria-o a trabalhar no discurso de posse.

Lake maravilhava-se secretamente com as suas próprias despesas. O seu presidente de campanha estava a receber cento e cinquenta mil
dólares por ano, não por doze meses, mas até ao Natal. Havia vários directores: financeiro, de acção política, de relações com os órgãos de comunicação, de operações e de planeamento estratégico, e todos tinham contratos de cento e vinte mil dólares por cerca de dez meses de trabalho. Cada director tinha dois ou três subordinados, pessoas que Lake mal conhecia e que ganhavam noventa mil dólares cada uma. Depois havia os assistentes de campanha, ou ACs; não eram os voluntários que a maioria dos candidatos atraíam, mas empregados a sério que ganhavam cinquenta mil dólares cada um e que mantinham os escritórios num frenesi. Havia dúzias deles. E dúzias de empregados administrativos e secretárias e, com os diabos, ninguém ganhava menos de quarenta mil dólares.

E ainda por cima, repetia Lake a si próprio, se conseguir chegar à Casa Branca, terei de arranjar emprego para todos eles lá dentro. Todos sem excepção. Os miúdos que agora correm de um lado para o outro com botões Lake em todas as lapelas esperam ficar instalados na Ala Oeste e ganhar ordenados de oitenta mil dólares por ano.

É uma gota de água no oceano, repetia a si próprio. Não te preocupes com ninharias quando está muito mais do que isso em jogo.

Os aspectos negativos foram empurrados para o fim da reunião e ninguém perdeu tempo com eles. Um repórter do Post andava a vasculhar os primeiros tempos da carreira de Lake. Sem grande esforço, tropeçara no problema de Green Tree, um empreendimento imobiliário falhado, há vinte anos. Lake e um sócio tinham levado Green Tree à falência, lesando legalmente os credores em oitocentos mil dólares. O sócio fora condenado por falência fraudulenta, mas o júri deixara-o sair em liberdade. Ninguém apontou o dedo a Lake que, depois disso, foi eleito sete vezes para o Congresso pelo povo do Arizona.

- Responderei a qualquer pergunta sobre Green Tree - disse Lake.

- Foi um mau negócio.

- A imprensa está a começar a trabalhar a sério - disse o director de relações com os órgãos de informação. - O senhor é novo e ainda não foi suficientemente examinado. Chegou o momento de eles serem desagradáveis. - Esse momento já começou.

- Não tenho nada a esconder - respondeu Lake. Levaram-no a jantar ao Mortimer’s, o local frequentado pela classe do poder, mesmo à saída de Pennsylvania, onde encontrou Elaine Tyner, a advogada responsável pelo CAP-D. Entre a fruta e o requeijão, ela deu-lhe conta da situação financeira do CAP mais recente. Vinte e nove milhões de dólares em dinheiro, inexistência de dívidas significativas, dinheiro sempre a entrar, vindo de todos os quadrantes, de toda a parte do mundo.

O desafio consistia en gastá-lo. Como era considerado «dinheiro fácil», ou dinheiro que não podia ir directamente para a campanha de Lake, tinha de ser utilizado noutra coisa qualquer. Elaine Tyner tinha vários objectivos. O primeiro era uma série de anúncios genéricos semelhantes aos anúncios catastrofistas de Teddy. O CAP-D já estava a comprar espaços em horário nobre para o Outono. O segundo, de longe o mais divertido, era a corrida ao Senado e ao Congresso.

-Eles põem-se em fila como formigas-disse ela, muito bem-disposta.

- É espantoso o que alguns milhões de dólares conseguem fazer. Elaine contou a história de uma corrida ao Congresso num distrito do Norte da Califórnia, em que o candidato, um veterano que Lake conhecia e desprezava há mais de vinte anos, começara o ano com uma vantagem de quarenta pontos sobre um desconhecido. Este aprendera o caminho para o CAP-D e rendera-se a Aaron Lake.

- Basicamente, conseguimos dominar esta campanha - disse ela.

- Estamos a escrever discursos, a fazer sondagens, a preparar todos estes impressos e anúncios televisivos, e até contratámos pessoal novo para ele. Até agora, gastámos um milhão e meio de dólares, e o nosso rapaz reduziu a vantagem para dez pontos. E ainda temos sete meses à nossa frente.

Ao todo, Elaine Tyner e d CAP-D estavam envolvidos em trinta corridas ao Congresso e em dez ao Senado. A advogada esperava conseguir um total de sessenta milhões de dólares e gastar tudo até Novembro.

A sua terceira área de «concentração» era medir o pulso ao país. O CAP-D fazia sondagens constantes, todos os dias, quinze horas por dia. Se houvesse um problema de emprego no oeste da Pennsylvania, o CAP-D sabia. Se os hispânicos de Houston estivessem satisfeitos com uma nova política de previdência social, o CAP-D sabia. Se as mulheres de Chicago gostavam ou não de Lake, o CAP-D sabia se sim ou se não e qual a percentagem.

- Nós sabemos tudo - gabou-se ela. - Somos como o Big Brother, sempre à espreita.

As sondagens custavam sessenta mil dólares por dia, uma pechincha. Ninguém lhes podia pegar por isso. Nas questões importantes, Lake ia nove pontos à frente de Tarry no Texas, e até na Florida, um estado que
Lake ainda não visitara e que ficava muito próximo de Indiana, a terra natal de Tarry.

- O Tarry está cansado - disse ela. - A moral é baixa porque ele ganhou em New Hampshire e o dinheiro estava a entrar. Depois apareceu você, um rosto fresco, sem bagagem, com uma mensagem nova, e começou a ganhar, e de repente o dinheiro veio ao seu encontro. O Tarry não consegue arranjar cinquenta dólares num bazar de igreja. Está a perder elementos-chave porque não lhes pode pagar e porque eles farejam outro vencedor.

Lake mastigou um pedaço de ananás e saboreou as palavras. Não eram novas; ouvira-as à sua própria gente. Mas vindas de uma pessoa tão bem informada como Elaine Tyner, eram ainda mais reconfortantes.

- Quais são os números do vice-presidente? - perguntou Lake. Tinha os seus próprios dados, mas por qualquer motivo confiava mais nela.

-Ele vai conseguir a nomeação - disse ela, sem dar qualquer novidade.

- Mas a convenção vai ser renhida. Neste preciso momento, você está apenas alguns pontos atrás dele na grande questão: Em quem vai votar em Novembro?

- Novembro está muito longe.

- Está e não está.

- Muita coisa pode mudar - disse Lake, pensando em Teddy, e perguntando a si próprio qual a crise que ele iria criar para aterrorizar o povo americano.

O jantar foi mais uma refeição leve e, do Mortimer’s, Lake foi levado para uma pequena sala de jantar no Hotel Hay-Adams. Foi uma refeição prolongada e tardia com amigos, duas dúzias de colegas do Congresso. Eram poucos os que o tinham seguido quando entrara na corrida, mas agora estavam todos entusiasmados com o seu homem. A maioria tinha os seus próprios especialistas de sondagens. Tudo corria sobre esferas.

Lake nunca vira os antigos colegas tão satisfeitos por estarem à sua volta.

A carta foi preparada nos Documentos por uma mulher chamada Bruce, uma das três melhores contrafactoras da agência. Pregadas ao painel de cortiça, mesmo por cima da mesa de trabalho no pequeno laboratório de Bruce, viam-se cartas escritas por Ricky. Eram amostras excelentes, muito melhores do que ela precisava. Não fazia ideia de quem fosse o Ricky, mas não havia dúvida de que a letra dele era original. Era bastante consistente e as amostras mais recentes revelavam claramente uma facilidade que só se adquiria com a prática. O vocabulário não era nada de especial, mas Bruce desconfiava que ele tentava limitá-lo. A estrutura da frase mostrava poucos defeitos. Pelos cálculos de Bruce, o homem devia ter entre quarenta e sessenta anos e, pelo menos, formação universitária.

Mas não lhe competia inferir tais coisas, pelo menos neste caso. com a mesma caneta e o mesmo papel de Ricky, escreveu um belo bilhete a Al. O texto fora preparado por outra pessoa qualquer, que ela desconhecia. Nem se importava com isso.

Dizia o seguinte: «Olá, Al, por onde tens andado? Porque não tens escrito? Não te esqueças de mim.» Este tipo de carta, mas com uma boa surpresa. Como Ricky não podia utilizar o telefone, enviava a Al uma cassette gravada com uma breve mensagem do interior da clínica de reabilitação.

Bruce encaixou a carta numa página e depois trabalhou no envelope durante uma hora. O carimbo que aplicou era de Neptune Beach, Florida.

Não fechou o envelope. O seu pequeno projecto foi inspeccionado e depois enviado para outro laboratório. A fita magnética foi gravada por um jovem agente que estudara arte dramática em Northwestern. com uma voz suave e sem sotaque, disse: «Olá, Al, daqui fala o Ricky. Espero que fiques admirado ao ouvir a minha voz. Aqui não nos deixam usar o telefone. Não sei porquê, mas por qualquer motivo podemos enviar e receber fitas gravadas. Estou ansioso por sair daqui.» Depois divagava durante cinco minutos sobre a sua recuperação e o ódio que tinha ao tio e aos responsáveis por Aladdin North. Mas reconhecia que eles o tinham libertado das suas dependências. Tinha a certeza de que havia de olhar para trás e não julgar a clínica com uma severidade excessiva.

Toda a sua narrativa era conversa fiada. Não falava em planos para a sua alta nem dava a entender para onde iria nem o que faria; apenas uma vaga referência à possibilidade de se vir a encontrar com Al.

Ainda não estavam prontos para atrair Al Konyers. O único objectivo da cassette era esconder no seu interior um transmissor suficientemente forte para os conduzir ao dossier oculto de Lake. Um microfone minúsculo instalado no envelope era muito arriscado. Al podia detectá-lo.

No Mailbox America de Chevy Chase, a CIA controlava agora oito caixas postais, devidamente alugadas durante um ano por oito pessoas diferentes, e todas elas acessíveis durante vinte e quatro horas, como a
de Mr. Konyers. As pessoas entravam e saíam a qualquer hora, verificavam as pequenas caixas, recolhiam a correspondência que elas próprias tinham enviado e, de vez em quando, davam uma espreitadela à caixa de Al, se ninguém visse.

Como conheciam o programa de Al melhor do que ele próprio, esperaram pacientemente que ele fizesse as suas rondas. Certificaram-se de que saíra às escondidas com antes fizera, de fato de treino, e retiveram o envelope com a cassette até quase às dez da noite. Em seguida, depositaram-na na caixa postal.

Quatro horas depois, com doze agentes a vigiarem todos os seus passos, Lake, com o seu fato de treino, saltou de um táxi em frente de Mailbox America, entrou à pressa, com o rosto oculto pela aba grande de um boné, dirigiu-se à sua caixa, tirou a correspondência e voltou a correr para o táxi.

Seis horas depois, saiu de Georgetown para tomar um pequeno-almoço no Hilton, destinado a angariar votos, e eles ficaram à espera. Falou a uma associação de chefes de polícia às nove e a um milhar de reitores de liceu às onze. Almoçou com o orador do Congresso. Gravou uma sessão esgotante da perguntas e respostas com alguns jornalistas às três horas e depois voltou a casa para fazer a mala. O seu itinerário exigia que partisse do Reagan National Airport para Dálias às oito horas.

Eles seguiram-no até ao aeroporto, viram descolar o Boeing 707 e depois telefonaram para Langley. Quando os dois agentes dos serviços secretos chegaram para verificar o perímetro da casa de Lake, a CIA já estava lá dentro.

A busca terminou na cozinha dez minutos depois de ter começado. Um receptor manual captou o sinal da fita da cassette. Encontraram-na no cesto dos papéis, junto de uma embalagem vazia de dois litros de leite, duas embalagens rasgadas de cereais, umas toalhas de papel e a edição da manhã do Washington Post. A empregada ia duas vezes por semana. Lake deixara o lixo para ela deitar fora.

Não conseguiram encontrar o dossier de Lake porque ele não tinha nenhum. O homem era esperto, deitara fora as provas.

Teddy sentiu-se quase aliviado quando teve notícias. A equipa ainda estava na vivenda, escondida e à espera que os elementos dos serviços secretos se fossem embora. Lake fazia o possível por não deixar vestígios do que tinha de secreto na sua vida.

A cassette enervou Aaron Lake. Ao ler as cartas de Ricky e ao ver o seu belo rosto sentira um arrepio. O jovem estava longe e o mais provável era que nunca se viessem a conhecer. Podiam ser amigos, conviver à distância e caminhar lentamente. Pelo menos, era o que Lake previra a princípio.

Mas ao ouvir a voz de Ricky sentira-se muito mais próximo dele e ficara agitado. Aquilo que há uns meses começara por ser uma brincadeira movida pela curiosidade, implicava agora hipóteses terríveis. Era muito mais arriscado. Lake estremeceu ao pensar que podia ser apanhado.

Mas aquilo ainda parecia impossível. Estava bem escondido atrás da máscara de Al Konyers. Ricky não tinha nenhuma pista. Era «Al para aqui» e «Al para ali» na cassette. A caixa postal era o seu escudo.

Mas tinha de pôr fim à situação. Pelo menos por agora.

O Boeing estava à cunha com o pessoal bem pago de Lake. Não se fabricava nenhum avião suficientemente grande para transportar todos os seus colaboradores. Se ele alugasse um 747, dentro de dois dias estaria cheio de elementos dos grupos de acção política, de conselheiros, consultores e especialistas de sondagens, já para não falar do seu próprio exército de guarda-costas dos serviços secretos, que era cada vez maior.

Quanto mais primárias ganhava, mais pesado se tornava o seu avião. Talvez fosse acertado perder em dois estados para aliviar uma parte da carga.

Na penumbra do avião, Lake bebeu sumo de tomate e resolveu escrever uma última carta a Ricky. Al desejava-lhe muitas felicidades e punha termo à correspondência. O que podia o jovem fazer?

Sentiu-se tentado a escrever o bilhete naquele momento, sentado na sua cadeia reclinável, com os pés no ar. Mas a qualquer momento podia aparecer uma assistente, esbaforida, com outro relatório que o candidato tinha de ouvir imediatamente. Não tinha privacidade. Não tinha tempo para pensar em nada. Todos os pensamentos agradáveis eram interrompidos por uma nova sondagem, por uma notícia de última hora ou por uma necessidade urgente de tomar uma decisão.

Com certeza que se conseguiria esconder na Casa Branca. Já lá tinham vivido alguns solitários.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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