Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A CONFRARIA
I
Na sessão semanal, o bobo da corte apresentava-se, como era habitual, de pijama castanho bastante puído e desbotado e de sapatos de pano turco cor de alfazema, sem meias. Não era o único recluso que executava a sua tarefa diária de pijama, mas mais ninguém se atrevia a usar sapatos cor de alfazema. Chamava-se T. Karl e já fora proprietário de bancos em Boston.
O pijama e os sapatos não eram tão incómodos como a cabeleira. Esta tinha um risco ao meio e precipitava-se em várias camadas sobre as orelhas, com caracóis apertados que se dividiam em três direcções e lhe caíam, pesados, nos ombros. Era cinzenta-clara, quase branca, e lembrava as cabeleiras dos antigos magistrados ingleses de há vários séculos. Um amigo do exterior descobrira-a num estabelecimento de roupas em segunda mão de Manhattan, na Village.
T. Karl usava-a no tribunal com grande orgulho, e, apesar do seu aspecto insólito, com o tempo acabara por fazer parte do espectáculo. De qualquer modo, os outros reclusos mantinham-se à distância de T. Karl, com ou sem cabeleira.
O homem levantou-se atrás da sua frágil mesa desmontável na cantina da prisão, agitou um maço de plástico que fazia as vezes de martelo, pigarreou e anunciou com grande dignidade: .
- Atenção, atenção, atenção. Está aberta a sessão do Tribunal Federal Inferior do Norte da Florida. É favor levantarem-se.
Ninguém se mexeu, ou pelo menos ninguém fez um esforço para se levantar. Trinta reclusos refastelavam-se nas cadeiras de plástico do refeitório, uns a olhar para o bobo da corte e outros a conversar, como se ele não existisse.
T. Karl continuou:
- Aproximem-se todos aqueles que procuram justiça para saírem lixados.
Ninguém se riu. Há vários meses, quando T. Karl pronunciara esta frase pela primeira vez, tinham achado graça. Agora, era apenas mais uma parte do espectáculo. O homem sentou-se com cuidado, certificando-se de que os canudos que lhe dançavam nos ombros ficavam bem à vista, e abriu um livro grosso com uma capa de couro vermelho no qual eram registados os autos do tribunal. Levava o seu trabalho muito a sério.
Três homens saíram da cozinha e entraram na sala. Dois vinham calçados.
Um deles comia um aperitivo salgado. O que estava descalço também trazia
as pernas à mostra até aos joelhos, e por baixo da toga viam-se-lhe os canivetes magros. Eram lisos, magros e muito queimados pelo sol. No tornozelo esquerdo, via-se uma grande tatuagem. O homem era da Califórnia.
Os três envergavam velhas togas de igreja do mesmo coro, verdes-claras e com debrum dourado. Provinham do mesmo estabelecimento da cabeleira de T. Karl, que lhas oferecera de presente no Natal. Era assim que ele conservava o seu lugar como funcionário do tribunal. « Ouviram-se alguns assobios e risos vindos da assistência quando os juizes atravessaram pausadamente o chão de ladrilhos, com grande pompa, com as togas a esvoaçar. Ocuparam os seus lugares atrás de uma longa mesa desmontável, junto de T. Karl, mas não demasiado, e prepararam-se para a reunião semanal. O gordo e baixo sentou-se no meio. Chamava-se Joe Roy Spicer e exercia à revelia as funções de presidente do tribunal. Na fase anterior da sua vida, o juiz Spicer fora juiz de paz no Mississipi, devidamente eleito pelo povo da sua comarca, e expulso quando a polícia federal o apanhara a extrair lucros fabulosos de um clube Shriners.
- Façam o favor de se sentar - disse ele.
Ninguém estava de pé. Os juizes instalaram-se nas cadeiras desmontáveis e compuseram as togas de modo que estas lhe caíssem devidamente à volta do corpo. O director-adjunto afastou-se para o lado, ignorado pelos reclusos. Acompanhava-o um guarda fardado. Os três Confrades reuniam-se uma vez por semana com a aprovação das autoridades prisionais. Ouviam casos, mediavam disputas, resolviam pequenas questões entre os rapazes e, de um modo geral, revelavam-se um factor de estabilidade no seio da população prisional.
Spicer olhou para o rol das causas, uma Iblliu de papel impecavelmente escrita à mão por T. Karl, e disse:
- Ordem no tribunal.
À sua direita estava o californiano, o Meritíssimo Finn Yarher, de sessenta anos, preso há dois anos e ainda com cinco para cumprir por fuga ao fisco. Fora uma vingança, continuava ele a dizer a quem lhe desse ouvidos. Uma cruzada dirigida por um governador republicano que conseguira unir os eleitores num movimento destinado a destituir o presidente Yarber do Supremo Tribunal da Califórnia. O ponto de união fora a oposição de Yarber à pena de morte e a arbitrariedade com que adiava todas as execuções. O povo queria sangue, Yarber evitava-o, os republicanos desenvolveram uma campanha frenética e a destituição foi um sucesso esmagador. Puseram-no na rua, por onde Yarber andou a vaguear até a administração fiscal começar a fazer perguntas. Formado em Stanford, indiciado em Sacramento e condenado em São Francisco, cumpria agora a sua pena numa prisão federal da Florida.
Detido há dois anos, Finn ainda lutava com a amargura. Continuava a acreditar na sua inocência e a sonhar com o dia em que acabaria por vencer os seus inimigos. Mas os sonhos estavam a desvanecer-se. Finn passava muito tempo na pista dejogging, a torrar ao sol e a sonhar com outra vida.
- O primeiro caso é Schneiter contra Magruder - anunciou Spicer, como se estivesse prestes a começar um julgamento importante sobre violação da lei da concorrência.
- O Schneiter não está - disse Beech.
- Onde se meteu?
- Na enfermaria. Está outra vez com pedras na vesícula. Acabei de ir lá levá-lo.
Hatlee Beech era o terceiro membro do tribunal. Passava a maior parte do tempo na enfermaria por causa de hemorróidas, de dores de cabeça ou de gânglios inchados. Tinha cinquenta e seis anos, era o mais novo dos três e, como ainda tinha nove anos para cumprir, estava convencido de que havia de morrer na prisão. Fora juiz federal no Leste do Texas, era um conservador ferrenho que conhecia bem as Escrituras e gostava de fazer citações durante os julgamentos. Tivera ambições políticas, uma bela família e dinheiro proveniente da companhia petrol ífera dos parentes da mulher. Confrontava-se igualmente com um problema de alcoolismo de que ninguém tinha conhecimento, até ao dia em que atropelara dois peões em Yellowstone. Ambos tinham morrido. O automóvel que Beech conduzia pertencia a uma jovem que não era casada com ele e que fora encontrada nua, no banco da frente, demasiado embriagada para poder andar.
Condenaram-no a doze anos.
Joe Roy Spicer, Finn Yarber e Hatlee Beech. O Tribunal Inferior do Norte da Florida, mais conhecido por Confraria de Trumble, uma prisão federal de segurança mínima sem vedações, sem torres de vigia e sem arame farpado. Quem tivesse uma pena a cumprir, que a cumprisse à maneira federal e num local como Trumble.
- Julgamo-lo à revelia? - perguntou Spicer a Beech.
- Não. Continuamos na próxima semana.
- Está bem. Não me parece que ele vá a lado nenhum.
- Oponho-me a um adiamento-disse Magruder no meio da assistência.
- Que pena! - disse Spicer. - O julgamento continua na próxima semana.
Magruder levantou-se.
- É a terceira vez que o julgamento é adiado. Eu sou o queixoso. Eu é que o processei. Ele refugia-se na enfermaria sempre que temos uma sessão.
- Qual é o motivo da vossa discórdia? - perguntou Spicer. - Dezassete dólares e duas revistas - atalhou T. Karl.
- Assim tanto, hem? - disse Spicer. Dezassete dólares seriam sempre motivo de processo em Trumble.
Finn Yarber já estava farto. Afagou a barba grisalha e rala com uma mão e arranhou a mesa com as unhas compridas. Depois, fez estalar ruidosamente os dedos dos pés no chão, num pequeno mas eficiente exercício que acalmava os nervos. Na sua outra vida, quando tinha títulos -presidente do Supremo Tribunal da Califórnia -, era frequente presidir às sessões com socas de cabedal, sem meias, para poder exercitar os dedos dos pés durante os enfadonhos depoimentos orais.
- Continue - disse ele.
,-Justiça adiada é justiça negada - disse Magruder com um ar solene. - Isso é verdadeiramente original-disse Beech. - Mais uma semana e julgaremos Schneiter à revelia.
- Registe-se - disse Spicer, com grande determinação.
T. Karl tomou nota no livro de autos. Magruder sentou-se de mau humor. Apresentara a sua queixa no Tribunal Inferior entregando a T. Karl um resumo de uma página com as suas alegações contra Schneitcr. Só com uma página. A Confraria não suportava papelada. Bastava uma página para passarem um dia no tribunal. Schneiter respondera com seis páginas de invectivas, que tinham merecido um ataque sumário de T. Karl.
As regras continuavam a ser simples. Autos curtos. Nada de manifestações. Justiça rápida. Decisões na hora, e todas vinculativas se ambas as partes se submetessem à jurisdição do tribunal. Nada de recursos; não havia aonde apresentá-los. As testemunhas não tinham de prestar juramento para dizer a verdade. As mentiras eram totalmente esperadas. Afinal, tratava-se de uma prisão.
- O que se segue? - perguntou Spicer.
T. Karl teve uma breve hesitação e depois respondeu:
- O caso Whiz.
De repente, fez-se silêncio, e as cadeiras de plástico do refeitório avançaram, numa ofensiva barulhenta. Os reclusos arrastaram-se até que T. Karl exclamou:
- Já chega!
Estavam a menos de seis metros da bancada.
- Mantenhamos o decoro! - proclamou ele.
Há vários meses que o caso Whiz apodrecia em Trumble. Whiz era um jovem criminoso de Wall Street que ludibriara alguns clientes ricos. Havia quatro milhões de dólares que nunca tinham sido justificados, e dizia a lenda que Whiz os aplicara num paraíso fiscal e que os geria a partir de Trumble. Ainda tinha seis anos para cumprir e teria quase quarenta quando saísse em liberdade condicional. Era voz corrente que cumpria tranquilamente a sua pena até ao dia glorioso em que seria libertado e partiria num jacto partipular para uma praia em que o dinheiro o esperava.
Lá dentro, o mito aumentava, em parte porque Whiz era reservado e passava longas horas a consultar boletins financeiros e gráficos e a ler publicações económicas impenetráveis. Até o director tentara convencê-lo a dar-lhe uns palpites sobre o mercado accionista.
Um antigo advogado conhecido por Rook conseguira aproximar-se de Whiz e convencera-o a partilhar alguns conselhos com um clube de investimento que se reunia uma vez por semana na capela da prisão. Era em nome do clube que Rook processava agora Whiz por fraude.
Rook sentou-se na cadeira das testemunhas e iniciou a sua narrativa. As habituais regras de procedimento e prova eram dispensadas para que se pudesse chegar rapidamente à verdade, fosse ela qual fosse.
- Então eu vou ter com o Whiz e pergunto-lhe o que pensa ele da ValueNow, uma nova empresa online sobre a qual li um artigo na Forbes - explicou Rook. - O Whiz disse que ia averiguar. Nunca mais falou em nada. Então, fui ter de novo com ele e perguntei. «Ouve lá, Whiz, o que há sobre a ValueNow?» E ele disse que julgava tratar-se de uma empresa sólida e que as acções iriam por aí acima.
- Eu não disse isso - apressou-se a interpor Whiz. Estava sentado do outro lado da sala, sozinho, com os braços apoiados na cadeira da frente.
- Ai isso é que disseste.
- Não disse.
- De qualquer modo, volto ao clube e digo-lhes que o Whiz está metido no negócio, e resolvemos comprar umas acções da ValueNow. Mas os rapazes não conseguem comprar porque a oferta está fechada. Volto a ir ter com o Whiz e digo: «Ouve lá, Whiz, achas que consegues puxar os cordelinhos com os teus colegas de Wall Street e arranjar umas acções da ValueNow?» E o Whiz disse que estava convencido de que conseguiria.
- Isso é mentira - respondeu Whiz.
- Cala-te. Terás a tua oportunidade - disse o juiz Spicer.
- Ele está a mentir - disse Whiz, como se a mentira fosse proibida. Se Whiz tinha ou não dinheiro, nunca se viria a saber, pelo menos no interior da cadeia. Na sua cela de 2,50 m x 3,60 m não havia nada, além das pilhas de revistas financeiras. Nem aparelhagem estereofónica, nem livros, nem cigarros, nenhuma das coisas que em geral quase todos compravam. O que só contribuía para fortalecer o mito. Whiz era considerado um sovina, um homenzinho estranho que poupava todas as migalhas e que guardava tudo num paraíso fiscal.
- De qualquer modo resolvemos jogar, adquirindo uma grande posição na ValueNow - continuou Rook. - A nossa estratégia era liquidar as nossas participações e consolidar.
- Consolidar? - perguntou o juiz Beech. Rook parecia um gestor de carteira que manipulava milhões.
Exactamente, consolidar- Pedimos tudo o que pudemos aos amigos e à família e conseguimos quase mil dólares.
- Mil dólares - repetiu o juiz Spicer. Nada mau para um trabalho feito na prisão. - E o que aconteceu depois?
- Eu disse ali ao Whiz que estávamos prontos a avançar. Conseguia arranjar-nos as acções? Isto foi numa terça-feira. A oferta era numa sexta-feira. O Whiz disse que não havia problema. Disse que tinha um colega na Goldaman Sux, ou lá o que era, que podia tomar conta de nós.
- Isso é mentira - disparou Whiz do outro lado da sala.
- De qualquer modo, na quarta-feira eu vi o Whiz no pátio leste e perguntei-lhe pelas acções. Ele disse que não havia problema.
- Isso é mentira.
- Eu tenho uma testemunha.
- Quem? - perguntou o juiz Spicer.
- O Picasso.
Picasso estava sentado atrás de Rook, tal como os outros seis membros do clube de investimento. Picasso acenou com relutância.
- Isso é verdade? - perguntou Spicer.
- E - respondeu Picasso. - O Rook perguntou pelas acções. O Whiz disse que as conseguiria. Sem problemas.
Picasso depusera em muitos casos e era dos reclusos que mais vezes fora apanhado a mentir.
- Continua - disse Spicer.
- De qualquer modo, na quinta-feira não consegui encontrar o Whiz em lado nenhum. Ele andava a esconder-se de mim.
- Não andava nada.
- Na sexta-feira, a cotação foi tornada pública. Cada acção era oferecida a vinte dólares, o preço a que as poderíamos ter comprado se ali o senhor Wall Street tivesse cumprido o que prometera. Abriu a sessenta, passou a maior parte do dia a oitenta e fechou a setenta. Os nossos planos eram vendê-las o mais depressa possível. Podíamos comprar cinquenta acções a vinte, vendê-las a oitenta e sairmos do negócio com três mil dólares de lucro.
A violência era muito rara em Trumble. Três mil dólares não davam para matar ninguém, mas talvez partissem alguns ossos. Whiz estava com sorte até agora. Não sofrera nenhuma emboscada.
-E consideras que o Whiz te deve esses lucros perdidos? - perguntou o ex-juiz Finn Yarber, que arrancava pêlos das sobrancelhas nesse momento.
- E com toda a razão. Olha, o que faz com que o negócio cheire ainda pior é o facto de o Whiz ter comprado a ValueNow para ele.
- Isso é uma redonda mentira - disse Whiz.
- Cuidado com a língua, por favor - disse o juiz Beech. Para perder um caso com a Confraria bastava ofender Beech com a linguagem.
Os boatos de que Whiz comprara as acções para ele tinham sido -lançados por Rook e o seu grupo. Não havia provas, mas a história revelara-se irresistível e tantas vezes fora repetida pela maioria dos reclusos :que agora era considerada um facto. Adaptava-se bem à situação.
- É tudo? - perguntou Spicer a Rook.
Rook tinha outros pontos que queria burilar, mas os Confrades não tinham paciência para litigantes tortuosos. Em especial para ex-advogados que ainda reviviam os seus dias de glória. Havia pelo menos cinco em Trumble e pareciam estar sempre presentes nas sessões.
- Acho que sim - respondeu Rook.
- O que tens a dizer? - perguntou Spicer a Whiz.
Whiz levantou-se e deu alguns passos em direcção à mesa. Deitou sum olhar fulminante aos seus acusadores, a Rook e ao seu grupo de vencidos. Em seguida, dirigiu-se ao tribunal:
- Qual é aqui o ónus da prova?
O juiz Spicer baixou imediatamente os olhos e esperou que fossem em seu auxílio. Como juiz de paz, não tinha experiência de leis. Nunca terminara o liceu e depois trabalhara na loja de província do pai durante vinte anos. Era daí que vinham os votos. Spicer confiava no senso comum, que muitas vezes entrava em conflito com a lei. Quaisquer assuntos relacionados com leis seriam resolvidos pelos seus dois colegas.
- É aquele que nós dissermos - respondeu o juiz Beech, saboreando um debate com um corretor sobre as leis de funcionamento do tribunal.
- Uma prova clara e convincente? - perguntou Whiz.
- Talvez, mas não neste caso.
- Para além de uma dúvida razoável?
- Talvez não.
- Preponderância do testemunho?
- Agora estás a aproximar-te.
- Então, eles não têm provas - disse Whiz, agitando as mãos como um mau actor numa má peça de teatro televisivo.
- Porque não te limitas a contar-nos a tua versão da história? - perguntou Beech.
- Eu adorava. A ValueNow era uma típica oferta online, com montes de publicidade, montes de tinta vermelha nos livros. É verdade que o Rook veio ter comigo, mas quando eu consegui fazer os telefonemas a oferta estava fechada. Telefonei a um amigo que me disse ser impossível conseguir as acções. Até os grandalhões ficaram de fora.
- Como é que isso acontece? - perguntou o juiz Yarber. Fez-se silêncio na sala. Quando Whiz falava de dinheiro, todos se calavam.
- Está sempre a acontecer nas OPIs. Nas ofertas públicas iniciais.
- Nós sabemos o que é uma OPI - disse Beech.
Era óbvio que Spicer não sabia. Não havia muitas OPIs no Mississipi rural.
Whiz descontraiu-se um pouco. Podia ofuscá-los por instantes, ganhar este caso incómodo, voltar para a sua toca e ignorá-los.
- A OPI da ValueNow foi conduzida pela sociedade de investimentos Bakin-Kline, uma pequena unidade de São Francisco. Foram postos à venda cinco milhões de acções. Basicamente, a Bakin-Kline pré-comprou as acções aos seus amigos e clientes preferenciais para que as maiores sociedades de investimentos não tivessem acesso à operação. Isto está sempre a acontecer.
Os juizes e os reclusos, e até o bobo, estavam suspensos das palavras de Whiz.
O homem prosseguiu:
- É um disparate pensar que um brutamontes qualquer que está na prisão, a ler um exemplar antigo da Forbes, consegue comprar mil dólares de acções da ValueNow.
E nesse preciso momento, a situação parecia mesmo disparatada. Rook espumava, enquanto os seus colegas do clube começavam a acusá-lo em silêncio.
- Compraste algumas? - perguntou Beech.
- Evidentemente que não. Nem consegui aproximar-me. E, além disso, a maior parte das empresas online e de alta tecnologia são construídas com dinheiro falso. Eu afasto-me delas.
- O que preferes? - perguntou Beech à pressa, levado pela curiosidade.
- Valor. Um longo caminho. Não tenho pressa. Olhem, este é um falso caso inventado por uns tipos que procuram dinheiro fácil.
Whiz apontou para Rook, que estava enterrado na cadeira. Parecia totalmente credível e legítimo.
O caso de Rook assentava em boatos, em especulações e na corroboração de Picasso, um conhecido mentiroso.
- Tens testemunhas? - perguntou Spicer.
- Não preciso - respondeu Whiz, sentando-se.
Cada um dos três juizes escrevinhou qualquer coisa num pedaço de papel. As deliberações eram rápidas e os veredictos instantâneos. Yarber e Beech passaram os seus a Spicer, que anunciou:
- Por dois votos contra um, pronunciamo-nos a favor do arguido. O caso está encerrado. Quem se segue?
Na realidade, a votação fora unânime, mas todos os veredictos eram oficialmente de dois contra um, o que permitia que cada um dos três gozasse de uma certa margem de manobra se fosse confrontado mais tarde.
No entanto, os Confrades eram bem-vistos em Trumble. As suas decisões eram rápidas e, tanto quanto possível, justas. De facto, eram bastante rigorosos à luz dos testemunhos periclitantes que ouviam com frequência. Durante anos, Spicer presidira a pequenos casos, nas traseiras do estabelecimento da família. O homem conseguia identificar um mentiroso à distância. Beech e Yarber tinham feito a sua carreira nas salas dos tribunais e não toleravam depoimentos prolongados nem atrasos, as tácticas habituais.
- Por hoje é tudo - informou T. Karl. - Está terminada a sessão.
- Muito bem. O tribunal volta a reunir na próxima semana.
T. Karl levantou-se de um salto, com os caracóis a tremer nos ombros.
- Terminou a sessão. Levantem-se todos, por favor.
Ninguém se levantou nem se mexeu quando os Confrades abandonaram a sala. Rook e os do seu grupo reuniram-se, sem dúvida para combinarem o processo seguinte. Whiz saiu à pressa.
O director-adjunto e o guarda esgueiraram-se sem serem vistos. A sessão semanal era um dos melhores espectáculos de Trumble.
II
Apesar de trabalhar no Congresso há catorze anos, Aaron Lake continuava a conduzir o seu automóvel em Washington. Não queria nem precisava de motorista, de assistente ou de guarda-costas. Às vezes, um funcionário ia com ele no carro para tomar notas, mas Lake apreciava a tranquilidade de se encontrar no meio do trânsito da cidade enquanto ouvia guitarra clássica na aparelhagem estereofónica. Muitos dos seus amigos, em especial os que tinham alcançado o estatuto de presidente ou vice-presidente, tinham automóveis maiores, com motorista. Alguns até tinham limusinas.
Não era o caso de Lake. Era uma perda de tempo, de dinheiro e de privacidade. Se alguma vez almejasse um cargo superior, não queria ter um motorista às costas. Além disso, gostava de estar sozinho. O seu gabinete era um manicómio. Tinha quinze pessoas frenéticas a atender telefones, a abrir dossiers, a servir o povo do Arizona que o mandara para Washington. Outras duas não faziam mais nada senão arranjar dinheiro. Três funcionários internos conseguiam atravancar ainda mais os seus corredores estreitos e levar mais tempo do que mereciam.
Lake era só, viúvo, e tinha uma pequena e estranha vivenda em Georgetown, de que muito gostava. Levava uma vida tranquila e, de vez em quando, surgia no meio social que o atraíra e à falecida mulher nos primeiros anos de vida em comum.
Seguiu pela circular, no meio de um trânsito lento e cauteloso devido a um pequeno nevão. Passou rapidamente pela segurança da CIA em Langley e ficou muito satisfeito ao ver um parque de estacionamento à sua espera e dois vigilantes à paisana.
- Mr. Maynard está à espera - disse um deles com um ar grave, abrindo-lhe a porta do automóvel enquanto o outro lhe pegava na pasta. O poder tinha os seus privilégios.
Lake nunca se encontrara com o director da CIA em Langley. Tinham conferenciado duas vezes no Capitólio, havia anos, quando o pobre homem podia deslocar-se. Teddy Maynard estava numa cadeira de rodas e tinha dores constantes, e até os senadores se deslocavam a Langley sempre que era necessário. Maynard telefonara a Lake meia-dúzia de vezes em catorze anos, mas era um homem muito ocupado. Em geral, os seus assuntos de menor importância eram tratados pelos assessores.
Barreiras de segurança caíam à volta do congressista à medida que este e os seus acompanhantes se embrenhavam nas profundezas da sede da CIA. Quando Lake chegou aos aposentos de Mr. Maynard, ia um pouco mais empertigado, com um certo ar superior. Era inevitável. O poder intoxicava.
Teddy Maynard mandara-o chamar.
No interior da sala, uma divisão grande, quadrada e sem janelas, o director estava sentado sozinho, a olhar em alvo para um grande ecrã no qual se via o rosto do congressista Aaron Lake, imóvel. Era uma fotografia recente, tirada havia três meses numa reunião de gala para recolha de fundos em que Lake bebera meio copo de vinho e comera frango assado, sem sobremesa. Voltara para casa sozinho e fora para a cama antes das onze. A fotografia era agradável porque Lake era muito atraente - cabelo ruivo-claro quase sem brancas, queixo quadrado e uns belos dentes. Tinha cinquenta e três anos e estava a envelhecer muito bem. Todos os dias fazia trinta minutos de exercícios numa máquina de remo e tinha 160 de colesterol. Não lhe tinham encontrado um único mau hábito. Lake apreciava a companhia das mulheres, sobretudo quando era importante ser visto com alguma. Mantinha uma relação estável com uma viúva de sessenta anos, de Bethesda, cujo marido fizera uma fortuna como angariador de votos.
Os pais tinham morrido. O seu único filho era professor em Santa Fé. A mulher morrera em 1966, aos vinte e nove anos, com um cancro nos ovários. Um ano depois, o cão, um spaniel de treze anos, também morrera, e o congressista Aaron Lake vivia verdadeiramente só. Era católico não que isso fosse importante - e ia à missa pelo menos uma vez por semana. Teddy carregou no botão e o rosto desapareceu.
Lake era desconhecido fora da sua zona, essencialmente porque refreava o seu ego. Se tinha aspirações a um cargo superior, mantinha-as em segredo. O seu nome fora mencionado uma vez, como potencial candidato a governador do Arizona, mas Lake gostava demasiado de Washington. Adorava Georgetown - as multidões, o anonimato, a vida da cidade -, bons restaurantes, livrarias atulhadas e cafés, gostava de teatro e de música, e nem ele nem a falecida mulher perdiam um espectáculo no Kennedy Center.
No Capitólio, Lake era conhecido como um congressista brilhante e diligente, eloquente, terrivelmente honesto, leal e consciencioso. Como na sua região se encontravam sediadas quatro grandes empresas de armamento, Lake tornara-se um especialista em equipamento militar. Era presidente da Comissão das Forças Armadas e fora nesta qualidade que travara conhecimento com Teddy Maynard.
Teddy carregou de novo no botão, e lá estava a cara de Lake. Teddy, um veterano de guerras de serviços secretos de cinquenta anos, raramente sentia um aperto no estômago. Esquivara-se a balas, escondera-se debaixo de pontes, gelara em montanhas, envenenara dois espiões checos, alvejara um traidor em Bona, aprendera sete idiomas, lutara na Guerra Fria, tentara evitar a seguinte, participara em mais aventuras do que dois agentes juntos, mas, ao olhar para o rosto inocente do congressista Aaron Lake sentiu um aperto no estômago.
Ele - a CIA - estava prestes a fazer algo que a agência nunca fizera.
Tinham começado com cem senadores, cinquenta governadores, quatrocentos e trinta e cinco congressistas, todos potenciais suspeitos, e agora havia apenas um. Aaron Lake, representante do Arizona.
Teddy carregou num botão e a parede esvaziou-se. Tinha as pernas cobertas com uma manta. Vestia o mesmo todos os dias - pulôver azul-escuro, camisa branca e lacinho. Aproximou a cadeira de rodas da porta e preparou-se para receber o seu candidato.
Durante os oito minutos de espera, serviram-lhe um café e um bolo, que Lake recusou. Tinha um metro e oitenta de altura, pesava oitenta e cinco quilos e, se tivesse aceitado o bolo, Teddy teria ficado admirado. Tanto quanto se sabia, Lake nunca ingeria açúcar. Nunca.
Mas o café estava forte e, enquanto o bebia, Lake passou em revista a sua situação. O objectivo da reunião era discutir o fluxo alarmante de artilharia no mercado negro dos Balcãs. Lake preparara dois memorandos, oito páginas a dois espaços de elementos que mastigara até às duas horas da manhã. Não sabia ao certo por que motivo é que Mr. Maynard queria que ele se deslocasse a Langley para debater tal assunto, mas preparara-se com determinação.
Ouviu-se um sinal sonoro suave, a porta abriu-se e o director da CIA saiu, embrulhado numa manta e ostentando os seus setenta e quatro anos. Mas apertou-lhe a mão com firmeza, talvez devido ao esforço para se controlar. Lake entrou na sala atrás dele, deixando os dois gorilas licenciados a guardarem a porta.
Sentaram-se em frente um do outro, a uma mesa muito comprida que chegava ao fundo da sala, onde uma parede branca fazia as vezes de ecrã. Depois de uns breves preliminares, Teddy carregou num botão e apareceu outro rosto. Mais um botão e as luzes apagaram-se. Lake adorava aquilo - carregar em botõezinhos, imagens de alta tecnologia que surgiam instantaneamente. Não havia dúvida de que a sala dispunha de equipamento electrónico suficiente para acompanhar a pulsação de Maynard a nove metros de distância.
- Reconhece-o? - perguntou Teddy.
- Talvez. Creio que já vi esta cara.
- É Natli Chenkov. Um ex-general. Agora é membro daquilo que resta do parlamento russo.
- Também conhecido por Natty - disse Lake, orgulhoso.
- Exactamente. Um comunista da linha dura, muito ligado às forças armadas, com um espírito brilhante, um ego enorme, muito ambicioso, implacável e, neste momento, o homem mais perigoso do mundo.
- Não sabia.
Um estalido, outra cara, esta de pedra, debaixo de um espalhafatoso chapéu militar.
- Este é Yuri Goltsin, o segundo no comando do que resta do exército russo. Chenkov e Goltsin têm grandes planos.
Outro estalido, um mapa de uma parte da Rússia a norte de Moscovo.
- Eles estão a acumular armamento nesta região - disse Teddy.
Na realidade, estão a roubá-lo a si próprios, a pilhar o exército russo, mas, o que é mais importante, estão a comprá-lo no mercado negro.
- De onde é que vem o dinheiro?
- De toda a parte. Trocam petróleo por radares israelitas. Traficam droga e compram tanques chineses através do Paquistão. Chenkov está muito ligado a alguns criminosos, um dos quais comprou há pouco tempo uma fábrica na Malásia, onde só se fazem espingardas de ataque. É um
plano muito elaborado. Chenkov é um cérebro, tem um QI muito alto. Talvez seja um génio.
Teddy Maynard era um génio e, se concedia tal título a outra pessoa, o congressista Lake acreditava nele.
- Então quem é que está a ser atacado?
Teddy ignorou a pergunta porque não estava pronto para responder.
- Repare na cidade de Vologda. Fica setecentos e cinquenta quilómetros a leste de Moscovo. Na semana passada, detectámos sessenta Vetrov num armazém da zona. Como sabe, o Vetrov...
- É equivalente ao nosso Tomahawk Cruise, mas com mais sessenta centímetros de comprimento.
- Exactamente. Ou seja, um total de trezentos que eles deslocaram nos últimos noventa dias. Está a ver a cidade de Rybinsk, mesmo a sudoeste de Volodga?
- Conhecida pelo seu plutónio.
- Sim, toneladas dele. O suficiente para produzir dez mil ogivas nucleares. Chenkov, Goltsin e os seus homens controlam toda a área.
- Controlam?
- Sim, através de uma rede de criminosos da região e de unidades do exército local. Chenkov tem a sua gente a postos.
- A postos para quê?
Teddy carregou num botão e a parede ficou em branco. Mas a sala continuou na penumbra e, quando ele falou do outro lado da mesa, estava quase na sombra.
- O golpe está iminente, Mr. Lake. Os nossos piores receios estão a tornar-se realidade. Todos os sectores da sociedade e da cultura russa estão a desmoronar-se. A democracia é uma farsa. O capitalismo é um pesadelo. Julgávamos que conseguíamos americanizar aquilo, mas foi um desastre. Os trabalhadores não recebem salários e são uns felizardos por terem trabalho. Vinte por cento não o tem. As crianças estão a morrer porque não há medicamentos. O mesmo sucede a muitos adultos. Dez por cento da população não tem casa. Vinte por cento tem fome. A situação piora de dia para dia. O país é saqueado por bandos de criminosos. Calculamos que pelo menos quinhentos biliões de dólares tenham sido roubados e levados para fora do país. Não se prevê qualquer melhoria. O momento é perfeito para um novo homem forte, um novo ditador que prometa devolver a estabilidade ao povo. O país precisa desesperadamente de liderança, e Mr. Chenkov resolveu tomar isso a seu cargo.
- E conta com o exército. ;
- Conta com o exército e não precisa de mais. O golpe não envolverá derramamento de sangue porque as pessoas estão preparadas para ele. Elas vão aderir a Chenkov. Ele vai conduzir a parada até à Praça Vermelha e desafiar-nos, aos Estados Unidos, a metermo-nos no seu caminho. Vamos voltar a ser os maus da fita.
- Então a Guerra Fria está de volta - disse Lake, cujas palavras finais mal se ouviram.
- Não há nada de frio nisto. Chenkov quer expandir e recuperar a antiga União Soviética. Precisa desesperadamente de dinheiro, e por isso recebe-o em terrenos, fábricas, petróleo e produtos agrícolas. Desencadeia pequenas guerras regionais, que vencerá com facilidade.
Surgiu mais um mapa. A primeira fase da nova ordem mundial foi apresentada a Lake. Teddy não perdia uma palavra.
- Desconfio que ele vai avançar pelos Estados balcânicos, derrubando os governos na Estónia, Letónia, Lituânia, etc. Depois, dirige-se para o antigo bloco de Leste e faz um acordo com alguns comunistas dessa zona.
O congressista não dizia nada e via a Rússia a aumentar. As previsões de Teddy eram tão certas, tão precisas.
- E os chineses? - perguntou Lake.
Mas Teddy ainda não acabara com a Europa de Leste. Carregou no botão; o mapa mudou.
- Aqui está por onde nós somos sugados.
- Pela Polónia?
- Sim. É sempre a mesma coisa. Actualmente, a Polónia é membro da NATO, vá-se lá saber porquê. A Polónia a assinar para ajudar a proteger-nos, a nós e à Europa! Chenkov consolida o antigo território da Rússia e deita o olho para oeste. O mesmo que o Hitler, só que este olhou para leste.
- Porque havia ele de querer a Polónia?
- Por que é que o Hitler queria a Polónia? Porque estava entre ele e a Rússia. Ele odiava os polacos, e estava pronto a desencadear uma guerra. Chenkov está-se nas tintas para a Polónia; só quer controlá-la. E quer destruir a NATO.
- Ele está disposto a provocar uma Terceira Guerra Mundial? Mais botões; o ecrã transformou-se de novo em parede; as luzes
acenderam-se. O equipamento audiovisual foi posto de parte e chegou o momento de uma conversa ainda mais séria. Teddy sentiu uma forte dor nas pernas e não pôde deixar de franzir o sobrolho.
- Não posso responder a essa pergunta - disse. - Sabemos muito, mas não sabemos o que o homem pensa. File está a deslocar-se muito silenciosamente, a pôr as pessoas no sítio, a organizar as coisas. Não é nada que não seja de esperar, sabe?
- Claro que não. Tivemos cenários como esse nos últimos oito anos, mas sempre houve a esperança de que tal não acontecesse.
- Está a acontecer, congressista. Chenkov e Goltsin estão a eliminar os seus opositores enquanto nós conversamos.
- Qual é o calendário?
Teddy mexeu-se outra vez debaixo da manta e tentou mudar de posição para pôr fim às dores.
- É difícil dizer. Se ele for esperto, o que é mais do que provável, espera que se desencadeiem motins nas ruas. Creio que, daqui a um ano, Natty Chenkov será o homem mais famoso do mundo.
- Um ano - disse Lake para si próprio, como se tivessem acabado de o condenar à morte.
Seguiu-se uma longa pausa durante a qual anteviu o fim do mundo. Teddy deixou-o em paz. O aperto no estômago de Teddy era agora muito mais pequeno. Gostava muito de Lake. O homem era de facto muito elegante, eloquente e esperto. Tinham feito a escolha certa.
O homem era elegível.
Depois de uma rodada de cafés e de um telefonema que Teddy teve de atender - era o vice-presidente -, os dois homens retomaram a sua pequena conferência e avançaram. O congressista estava satisfeito por Teddy ter tanto tempo para si. Os russos estavam a chegar, mas Teddy parecia muito calmo.
- Não preciso de lhe dizer como as nossas forças armadas estão impreparadas - disse ele com um ar grave.
- Impreparadas para quê? Para a guerra?
- Talvez. Se não estivermos preparados, poderemos ter uma guerra. Se formos fortes, evitaremos a guerra. Neste preciso momento, o Pentágono não poderia fazer o que fez na Guerra do Golfo, em 1991.
- Estamos a setenta por cento - disse Lake com autoridade. Este era o seu território.
- Setenta por cento leva-nos a uma guerra, Mr. Lake. Uma guerra que não podemos vencer. Chenkov gasta tudo aquilo que consegue roubar
em novos equipamentos. Nós estamos a cortar nos orçamentos e a reduzir os nossos efectivos. Queremos accionar botões e lançar bombas inteligentes para não derramar o sangue americano. Chenkov pode contar com dois milhões de soldados famintos, ansiosos por lutar e morrer, se for necessário.
Por instantes, Lake sentiu-se orgulhoso. Tivera a coragem de votar contra o último orçamento porque ele reduzia as despesas militares. As pessoas do seu estado tinham ficado aborrecidas.
- Não pode desmascarar o Chenkov imediatamente? - perguntou ele.
- Não. De maneira nenhuma. Os nossos serviços secretos são excelentes. Se reagirmos, o homem fica a saber que nós sabemos. É o jogo da espionagem, Mr. Lake. É muito cedo para fazermos dele um monstro.
- Então qual é o seu plano? - atreveu-se a perguntar Lake.
Era um acto de grande insolência questionar Teddy acerca dos seus planos. A reunião atingira o seu objectivo. Fora devidamente informado mais um congressista. A qualquer momento, poderiam pedir a Lake que saísse para dar lugar ao presidente de outra comissão.
Mas Teddy tinha grandes planos e estava ansioso por partilhá-los.
As primárias de New Hampshire são daqui a duas semanas. Temos quatro republicanos e três democratas que dizem todos a mesma coisa. Não há um único candidato que pretenda aumentar os gastos com a defesa. Temos um excedente no orçamento, milagre dos milagres, e toda a gente tem montes de ideias quanto ao modo de o gastar. Um punhado de imbecis. Há poucos anos, tínhamos grandes défices orçamentais e o Congresso fartou-se de gastar dinheiro. Agora há um excedente. Vão morrer de indigestão.
O congressista Lake desviou o olhar por um segundo e depois resolveu ignorar a frase.
- Desculpe - disse Teddy, refreando-se. - O Congresso no seu conjunto é irresponsável, mas temos muito bons congressistas.
- Não precisa de mo dizer.
- De qualquer modo, o terreno está cheio de clones. Há duas semanas, tínhamos diversos campeões. Andam a insultar-se e a matar-se uns aos outros, tudo em prol do quadragésimo quarto maior estado do país. É uma estupidez.
Teddy fez uma pausa e tentou mudar a posição das pernas inúteis.
- Precisamos de uma pessoa nova, Mr. Lake, e estamos convencidos de que essa pessoa é o senhor.
A primeira reacção de Lake foi reprimir uma gargalhada, o que fez sorrindo e depois tossindo. Tentou manter a compostura e disse:
- O senhor deve estar a brincar.
- Bem sabe que eu não brinco, Mr. Lake - disse Teddy com firmeza, e não havia dúvida de que Aaron Lake caíra numa armadilha bem montada.
Lake pigarreou e concluiu a tarefa de se controlar.
- Muito bem, sou todo ouvidos.
- É muito simples. De facto, a simplicidade arrasta a beleza. Você está atrasado para se candidatar a New Hampshire, e isso também não interessa. Deixe os outros esmurrarem-se por lá. Espere que aquilo acabe e depois surpreenda todos anunciando a sua candidatura à presidência. Muitos irão perguntar: «Quem diabo é o Aaron Lake?» E assim é que está certo. É isso que nós queremos. Não tardarão a descobrir.
- A princípio, o seu estrado terá apenas uma tábua. Gira tudo à volta das despesas militares. Você é um pessimista, com toda a espécie de previsões medonhas acerca do enfraquecimento das nossas forças armadas. Vai atrair as atenções de toda a gente quando reivindicar a duplicação das despesas militares.
- A duplicação?
- Funciona, não é verdade? Você mesmo ficou interessado. A duplicação durante o seu mandato de quatro anos.
- Mas porquê? Precisamos de mais despesas militares, mas a duplicação parece-me excessiva.
- Não é, se encararmos a hipótese de outra guerra, Mr. Lake. Uma guerra na qual carregamos em botões e lançamos mísseis Tomahawk aos milhares, um milhão de dólares de cada vez. com os diabos, quase que os esgotámos o ano passado, naquela confusão dos Balcãs. Não conseguimos encontrar soldados, marinheiros e pilotos suficientes, Mr. Lake. Bem sabe. As forças armadas precisam de muito dinheiro para recrutar jovens. Temos falta de tudo - soldados, mísseis, tanques, aviões e porta-aviões. O Chenkov está a construir. Nós não estamos. Continuamos a emagrecer e, se esta situação se mantiver durante mais uma administração, morreremos.
A voz de Teddy subiu de tom, quase em fúria, e quando terminou com «morreremos» Aaron Lake quase sentiu a terra a tremer debaixo dos pés com os bombardeamentos.
- De onde vem o dinheiro? - perguntou ele.
- O dinheiro para quê?
- Para as forças armadas.
Teddy rosnou, enfastiado, e depois respondeu:
- Do mesmo sítio de onde vem sempre. Preciso de lhe lembrar que temos um excedente?
- Estamos empenhados em gastar esse excedente.
-É claro que estão. Ouça, Mr. Lake, não se preocupe com o dinheiro. Pouco depois de anunciar a sua candidatura, pregaremos um grande susto ao povo americano. A princípio, as pessoas julgarão que você está louco, que é um lunático do Arizona que quer construir ainda mais bombas. Mas nós vamos abalá-las. Vamos provocar uma crise do outro lado do mundo, e de repente Aaron Lake passará a ser um visionário. O tempo é tudo. Você faz um discurso acerca da nossa vulnerabilidade na Ásia, a que poucos darão ouvidos. Depois criamos lá uma situação que faz parar o mundo, e de repente toda a gente quer falar consigo. A coisa continua assim durante a campanha. Fomentaremos a tensão deste lado. Emitiremos comunicados, criaremos situações, manipularemos a comunicação social e embaraçaremos os seus opositores. Francamente, Mr. Lake, não espero que isto seja assim tão difícil.
- Até parece que já esteve deste lado.
- Não. Temos feito algumas coisas invulgares, tudo para tentar proteger este país. Mas nunca tentámos manipular uma eleição presidencial.
Teddy fez esta afirmação com um ar arrependido.
Lake empurrou lentamente a cadeira para trás, levantou-se, esticou os braços e as pernas e foi até ao fim da sala, ao longo da mesa. Tinha os pés mais pesados. O seu pulso estava acelerado. A armadilha fora montada, e fora apanhado.
Voltou para o seu lugar.
- Não tenho dinheiro que chegue - disse ele do outro lado da mesa. Sabia que o comentário seria recebido por alguém que já pensara nisso.
Teddy sorriu e, com um gesto de cabeça, fingiu que pensara no assunto. A casa de Lake em Georgetown valia quatrocentos mil dólares. Tinha cerca de metade em obrigações e mais cem mil dólares em títulos de investimento. Não havia dívidas de vulto. Lake tinha quarenta mil dólares na sua conta de recandidatura.
- Um candidato rico não seria atraente - disse Teddy, carregando em mais um botão.
As imagens voltaram à parede, nítidas e a cores.
- O dinheiro não será problema, Mr. Lake - disse ele com uma voz muito mais suave. - Conseguiremos que os industriais do armamento o paguem. Olhe para isto - disse ele, agitando a mão direita como se Lake não soubesse para onde havia de olhar. - O ano passado, a indústria aeroespacial e de defesa atingiu quase os duzentos biliões de dólares.
- Quanto?
- Aquilo de que precisar. Para sermos realistas, podemos sacar-lhes cem milhões de dólares.
- O senhor também não pode esconder um milhão de dólares.
- Não se meta nisso, Mr. Lake. E não se preocupe. Nós trataremos do dinheiro. O senhor faz os discursos, os anúncios e dirige a campanha. O dinheiro virá. Em Novembro, os eleitores americanos estarão tão assustados com o Armagedão que nem se importarão com o que o senhor gastou. Será uma maioria esmagadora.
com que então Teddy Maynard oferecia uma maioria esmagadora! Lake mergulhou num silêncio feito de estupefacção e de vertigem e olhou
estupidamente para todo aquele dinheiro que estava na parede 194
biliões de dólares para a defesa e o espaço aéreo. O orçamento das forças armadas do ano anterior fora de 270 biliões. Passá-lo para 540 biliões num período de quatro anos equivaleria a engordar de novo os industriais do sector. E os trabalhadores! Os salários subiriam desalmadamente! Empregos para todos!
O candidato Lake ficaria rodeado de executivos com o dinheiro e de sindicatos com os votos. O choque inicial começava a dissipar-se e a simplicidade do plano de Teddy clarificava-se. Tratava-se de ir buscar dinheiro àqueles que viriam a beneficiar com a situação. De assustar os eleitores para que eles acorressem às urnas. De vencer com uma maioria esmagadora. E de, assim, salvar o mundo.
Teddy deixou-o pensar por alguns instantes e depois disse:
-Faremos o máximo através dos comités de acção política. Sindicatos, engenheiros, executivos, associações de empresários. Não faltam os grupos políticos já constituídos. E formaremos outros.
Lake já estava a formá-los. Centenas de comités de acção política, todos a injectar mais dinheiro do que em qualquer outra eleição. O choque desaparecera por completo e fora substituído pelo entusiasmo total com a ideia. A sua mente foi atravessada por mil e uma perguntas: Quem será o meu vice-presidente? Quem dirigirá a campanha? O mandatário ou o pessoal? Onde vamos anunciá-la?
- Isso pode resultar - disse Lake, controlado.
- Ah, sim. Vai resultar, Mr. Lake. Confie em mim. Há algum tempo que estamos a planear isto.
- Quantas pessoas sabem disto?
- Poucas. O senhor foi criteriosamente escolhido, Mr. Lake. Examinámos vários potenciais candidatos e o seu nome continuou a subir até chegar ao cimo. Investigámos o seu passado.
- Bastante monótono, hem?
-É verdade. Apesar de a sua relação com Miss Valotti me preocupar. Ela divorciou-se duas vezes e gosta de lenitivos.
- Eu não sabia que tinha uma relação com Miss Valotti.
- Tem sido visto com ela nestes últimos tempos.
- Vocês andam a vigiar-me, não andam?
- Esperava que assim não fosse?
- Suponho que não.
- Levou-a a uma recepção para denunciar a opressão das mulheres no Afeganistão. Não brinque comigo.
As palavras de Teddy tornaram-se subitamente breves e eivadas de sarcasmo.
- Eu não queria ir.
- Então não vá. Afaste-se dessa escória. Deixe-a para Hollywood. A Valotti só traz sarilhos.
- Mais alguém? - perguntou Lake, mais na defensiva. A sua vida particular era bastante monótona desde que enviuvara. De repente, orgulhava-se dela.
-- Não - disse Teddy. - Miss Benchly parece bastante estável e constitui uma companheira adorável.
- Oh, muito obrigado.
- Você vai ser causticado com o aborto, mas não será o primeiro. > - É um tema estafado - disse Lake.
Estava cansado de lutar com ele. Fora a favor do aborto, contra o aborto, brando quanto ao direito à vida, duro quanto ao direito à vida, a favor da escolha individual, a favor dos filhos, anti-feminista, aclamado pelas feministas. Durante os catorze anos passados no Capitólio, Lake fora perseguido através do campo minado que era o aborto e saíra magoado de cada nova jogada estratégica.
O aborto já não o assustava, pelo menos no momento presente. Estava mais preocupado com o facto de a CIA andar a vasculhar o seu passado.
- E o que há sobre Green Tree? - perguntou ele. Teddy agitou a mão direita como se não fosse nada.
-Já lá vão vinte e dois anos. Ninguém ficou convencido. e) seu colega entrou na bancarrota e foi indiciado, mas o júri deixou-o sair em liberdade. Isso vai voltar à superfície; tudo vai voltar à superfície. Mas francamente, Mr. Lake, manteremos as atenções dirigidas para outras coisas. uma vantagem de saltar à última hora. A imprensa não vai ter muito tempo para chafurdar na lama.
- Eu sou solteiro. Só uma vez é que elegemos um presidente que não era casado.
- O senhor é viúvo, marido de uma senhora encantadora que era muito respeitada tanto aqui como na sua terra. Isso não será problema. Confie em mim.
- Então o que o preocupa?
- Nada, Mr. Lake. Absolutamente nada. O senhor é um candidato sólido e muito elegível. Nós criaremos os temas e o medo e arranjaremos o dinheiro.
Lake levantou-se outra vez e deu uma volta à sala, afagando o cabelo, coçando o queixo e tentando clarificar os pensamentos.
- Eu tenho muitas perguntas a fazer - disse ele.
- Talvez eu possa responder a algumas. Voltaremos a falar amanhã, aqui, à mesma hora. Durma sobre o assunto, Mr. Lake. O tempo é crucial, mas considero que um homem deve ter vinte e quatro horas para pensar antes de tomar uma decisão como esta.
Teddy sorriu ao dizer isto.
- É uma óptima ideia. Deixe-me pensar nisso. Amanhã terei uma resposta para lhe dar.
- Ninguém sabe que tivemos esta pequena conversa.
- Evidentemente que não.
III
Em termos de espaço, os livros de Direito ocupavam exactamente um quarto da superfície de toda a biblioteca de Trumble. Encontravam-se a um canto, separados por uma parede de tijolo vermelho e vidro, construída com gosto a expensas dos contribuintes. Lá dentro, as estantes de livros bastante usados mal deixavam espaço para um recluso circular entre elas. Junto das paredes, viam-se secretárias repletas de máquinas de escrever, computadores e material de investigação que faziam lembrar a biblioteca de qualquer grande empresa.
Os Confrades eram os responsáveis pela secção de Direito da biblioteca. Todos os reclusos podiam utilizá-la, mas havia um regulamento tácito segundo o qual era necessária autorização para permanecer no local, fosse por quanto tempo fosse. Talvez não uma autorização, mas pelo menos um aviso.
O juiz Joe Roy Spicer do Mississipi ganhava quarenta cêntimos por hora para varrer o chão e arrumar as secretárias e as estantes. Também era ele quem despejava o lixo, e em geral era considerado um porco no que dizia respeito às suas funções mais humildes. O juiz Hatlee Beech do Texas era o bibliotecário oficial da secção de Direito e o mais bem pago, a cinquenta cêntimos por hora. Era melindroso quanto aos «seus livros» e muitas vezes entrava em conflito com Spicer por causa do seu manuseamento. O juiz Finn Yarber, que em tempos pertencera ao Supremo Tribunal da Califórnia, ganhava vinte cêntimos por hora como técnico de computadores. Em termos de salário, era o último da escala por saber muito pouco do seu ofício.
Num dia normal, os três passavam seis a oito horas na secção de Direito da biblioteca. Se um recluso de Trumble tinha um problema jurídico,
bastava marcar um encontro com um dos Confrades no pequeno gabinete destes. Hatlee Beech era especialista em sentenças e recursos. Finn Yarber lidava com falências, divórcios e pensões de alimentos a menores. Joe Roy Spicer, que não tinha qualquer experiência de leis, não possuía verdadeiramente uma especialidade. Nem a queria. Dirigia as fraudes.
Os Confrades estavam rigorosamente proibidos de cobrar honorários pelo seu apoio jurídico, mas o rigor tinha pouco significado. Afinal, eram condenados e, se pudessem arranjar algum dinheiro no exterior, todos ficariam satisfeitos. As sentenças eram uma fábrica de dinheiro. Cerca de um quarto dos reclusos que chegavam a Trumble tinham sido sentenciados indevidamente. Beech conseguia rever os processos de um dia para o outro e detectar as lacunas. Havia um mês, deduzira quatro anos à sentença de um jovem que fora condenado a quinze. A família concordara em pagar, e os Confrades tinham ganho cinco mil dólares, os seus honorários mais altos até à data. Spicer tratara do depósito secreto através do advogado do grupo em Neptune Beach.
Havia uma sala de reuniões acanhada nas traseiras da secção de Direito da biblioteca, atrás das estantes, e que mal se via da sala principal. A porta tinha uma grande janela envidraçada, mas ninguém se dava ao trabalho de olhar lá para dentro. Os Confrades refugiavam-se ali sempre que precisavam de tranquilidade no seu trabalho. Chamavam-lhe o seu gabinete.
Spicer tinha acabado de se encontrar com o advogado e recebera correspondência, entre a qual se encontravam algumas cartas preciosas. Fechou a porta e tirou um envelope de um dossier. Agitou-o no ar para Beech e Yarber verem.
- É amarelo - disse ele. - Não é uma maravilha? É para o Ricky.
- De quem é? - perguntou Yarber.
- Do Curtis, de Dálias.
- O banqueiro? - perguntou Beech, entusiasmado.
- Não, o Curtis é dono das joalharias. Ouçam.
Spicer desdobrou a carta, também ela de papel amarelo e macio. Sorriu, pigarreou e começou a ler:
- Caro Ricky, a sua carta de 8 de Janeiro fez-me chorar. Li-a três vezes antes de a pousar. Pobre homem! Porque o mantêm aí?
- Onde está ele? - perguntou Yarber.
- O Ricky está enclausurado num centro de reabilitação de luxo para toxicodependentes que o tio rico está a pagar. Está lá há um ano,
está limpo e totalmente recuperado, mas os monstros que dirigem a instituição só o deixam sair em Abril porque recebem vinte mil dólares por mês do tio rico, que só o quer bem fechado e nem lhe manda dinheiro para os alfinetes. Lembram-se disto?
- Agora lembro-me.
- Tu ajudaste a inventar a história. Posso continuar?
- Podes.
Spicer continuou a ler:
-- Sinto-me tentado a meter-me num avião e ir aí defrontar essa gente terrível. E o seu tio, que falhado! Os ricos como ele julgam que podem dar dinheiro sem se envolverem. Como eu lhe disse, o meu pai era bastante rico e foi a pessoa mais infeliz que conheci. É verdade que me comprou coisas, objectos que eram transitórios e que nada significavam quando desapareciam. Mas nunca teve tempo para mim. Era um homem doente, tal como o seu tio. Envio um cheque de mil dólares, caso precise de comprar alguma coisa de primeira necessidade. Ricky, estou ansioso por vê-lo em Abril. Já disse à minha mulher que há uma exposição internacional de diamantes em Orlando nesse mês, e ela não está interessada em acompanhar-me.
- Em Abril? - perguntou Beech.
- Sim. O Ricky tem a certeza de que sairá em Abril.
- Isso não é uma maravilha? - disse Yarber com um sorriso. E o Curtis tem mulher e filhos?
- O Curtis tem cinquenta e oito anos, três filhos adultos e dois netos.
- Onde está o cheque? - perguntou Beech. Spicer folheou a carta e passou para a segunda página:
- Temos de garantir que se encontrará comigo em Orlando. Tem a certeza de que poderá sair em Abril? Confirme-me, por favor. Estou sempre a pensar nisso. Tenho a sua fotografia escondida na gaveta da minha secretária, e quando olho para si sei que devíamos estar juntos.
- Isto é doentio - disse a Beech, ainda a sorrir. - E ele é do Texas.
- Tenho a certeza de que há muitos maricas no Texas - respondeu Yarber.
- E não há nenhum na Califórnia?
- O resto da carta é só mel - disse Spicer, dando uma leitura rápida. Tinha muito tempo para a ler mais tarde. Pegou no cheque de mil
dólares para os colegas verem. Em devido tempo, chegaria às mãos do advogado do grupo, que o depositaria na conta secreta.
- Quando é que o vamos espremer? - perguntou Yarber.
- Deixa-nos receber mais umas cartas. O Ricky precisa de sofrer mais um pouco.
- Talvez um dos guardas pudesse bater-lhe, ou coisa no género disse Beech.
- Eles não têm guardas - respondeu Spicer. - Aquilo é uma clínica de reabilitação, não te esqueças. Eles têm conselheiros.
- Mas é uma unidade fechada, não é verdade? Isso implica portões e vedações, portanto deve ter um ou dois guardas. E se o Ricky fosse atacado no duche ou no vestiário por algum matulão que desejasse o seu corpo?
- Não pode ser um ataque sexual - disse Yarber. - Isso poderia assustar o Curtis. Ele poderia pensar que o Ricky apanhara uma doença ou coisa do género.
E a ficção continuou durante alguns minutos, enquanto criavam mais infelicidade ao pobre Ricky. A fotografia do jovem fora retirada da caderneta de um colega, fotocopiada pelo advogado do grupo e enviada para mais de uma dúzia de indivíduos na América do Norte. Mostrava um universitário sorridente, de fato azul-marinho, chapéu e capa, com um diploma na mão. Um jovem muito elegante.
Ficou decidido que Beech trabalharia na nova história durante alguns dias e que depois faria um rascunho da carta a enviar a Curtis. Beech seria Ricky, e nesse momento o jovem atormentado, inventado pelo grupo, escrevia as suas histórias infelizes a oito almas preocupadas. O juiz Yarber era Percy, também um jovem internado por consumo de drogas, mas que agora se encontrava limpo e prestes a ter alta, à procura de um paizinho mais velho com quem passasse uns bons momentos. Percy tinha cinco anzóis na água e recolhia-os lentamente.
Joe Roy Spicer não escrevia muito bem. Era ele que coordenava as informações, ajudava na ficção, assegurava a continuidade das histórias e se encontrava com o advogado que trazia o correio. E que tratava do dinheiro.
Puxou de outra carta e anunciou:
- Esta, Meritíssimos, é do Quince.
Tudo parou quando Beech e Yarber olharam para a carta. Quince era um banqueiro rico de uma pequena localidade no lowa, de acordo com as seis cartas que ele e Ricky tinham trocado. Tal como aos outros, tinham-no descoberto através dos anúncios de uma revista de homossexuais
agora escondida na biblioteca. Fora a segunda presa do grupo; a primeira tornara-se desconfiada e desaparecera. A fotografia de Quince era um instantâneo tirado num lago. Estava em tronco nu, era barrigudo, tinha os braços magros e a falta de cabelo própria dos seus cinquenta e um anos. Estava rodeado pela família. Era uma fotografia de má qualidade, sem dúvida escolhida por Quince por ser difícil identificá-lo, se alguém tentasse fazê-lo.
- Gostavas de a ler, Ricky? - perguntou Spicer, dando a carta a Beech, que pegou nela e olhou para o envelope. Completamente impenetrável, sem remetente e escrito à máquina.
- Leste-a? - perguntou Beech.
- Não. Continua.
Beech tirou lentamente a carta do envelope. Era uma folha de papel branco, escrita a um espaço numa velha máquina. Beech pigarreou e leu:
«Caro Ricky, está feito. Nem posso acreditar que o fiz, mas consegui. Servi-me de um telefone público e de uma ordem de pagamento para não deixar vestígios... Creio que não conseguirão identificar-me. A empresa que sugeriste em Nova Iorque era óptima, muito discreta e útil. Para ser franco, Ricky, apanhei um susto dos diabos. Ir num cruzeiro para homossexuais é qualquer coisa que nunca sonhei fazer. E sabes uma coisa? Foi empolgante. Estou tão orgulhoso de mim próprio! Tenho uma suite, que custa mil dólares por noite, e não posso esperar mais.»
Beech calou-se e olhou por cima dos óculos que tinha no meio do nariz. Os seus dois colegas sorriam, saboreando as palavras.
Ele continuou a ler:
«Partimos no dia 10 de Março, e tenho uma ideia excelente. Chego a Miami no dia 9, e por isso não temos muito tempo para estarmos juntos e nos conhecermos. Encontramo-nos no barco, na nossa suite. Eu chego primeiro, faço o check-in, recebo o champanhe gelado e fico à tua espera. Não vai ser divertido, Ricky? Teremos três dias para nós. Aposto que não saímos do quarto.»
Beech não pôde deixar de sorrir, e conseguiu fazê-lo abanando a cabeça ao mesmo tempo, com um ar enojado.
Continuou a ler:
« Estou tão entusiasmado com a nossa viagenzinha. Resolvi descobrir quem sou verdadeiramente, e tu encorajaste-me a dar o primeiro passo. Apesar de não nos conhecermos, Ricky, nunca poderei agradecer-te o suficiente. Por favor, responde-me imediatamente e confirma. Cuida de ti, meu caro Ricky. Beijos, Quince.»
- Acho que vou vomitar - disse Spicer, mas não foi convincente. Havia muita coisa a fazer.
- Vamos espremê-lo - disse Beech.
Os outros apressaram-se a concordar. - Quanto? - perguntou Yarber.
- Pelo menos cem mil - respondeu Spicer. - A família dele é dona de bancos há duas gerações. Sabemos que o pai continua activo no meio, e podemos imaginar o velho a dar em maluco se o filho for expulso. O Quince não se pode dar ao luxo de ser afastado da fortuna da família, e portanto pagará o que nós pedirmos. É uma situação perfeita.
Beech já estava a tomar apontamentos. Assim como Yarber. Spicer começou a andar de um lado para o outro na sala, como um urso atrás da presa. As ideias surgiam lentamente, a linguagem, as opiniões, a estratégia, mas há muito que a carta ganhara forma.
Beech leu o rascunho:
«Caro Quince, gostei muito de receber a sua carta de 14 de Janeiro. Ainda bem que conseguiu a reserva para o cruzeiro de homossexuais. Que maravilha! Mas há um problema. Eu não poderei participar nele, e há dois motivos para isso. Primeiro, não serei libretado senão daqui a uns anos. Estou numa prisão, e não numa clínica de recuperação para toxicodependentes. E não sou homossexual, longe disso. Tenho mulher e dois filhos, que neste momento lutam com graves problemas financeiros porque estou preso e não posso sustentá-los. É aí que você entra, Quince. Preciso do seu dinheiro. Quero cem mil dólares. Podemos chamar-lhe o preço do silêncio. Você envia-mo e eu esqueço o caso Ricky, o cruzeiro para homossexuais, e ninguém em Bakers, lowa, saberá disso. A sua mulher, os seus filhos, o seu pai e o resto da sua abastada família nunca saberão da existência do Ricky. Se você não me mandar o dinheiro, inundo a sua vitória de cópias das nossas cartas. Isto chama-se extorsão, Quince, e você foi apanhado. É cruel, mesquinho e criminoso, e eu não me ralo. Preciso de dinheiro e você tem-no.»
Beech calou-se e olhou à sua volta, esperando aprovação.
- Está uma autêntica maravilha - disse Spicer, já a deitar contas aos ganhos.
- É nojento - disse Yarper. - E se ele se suicida?
- É um risco - disse Beech.
Voltaram a ler a carta e depois discutiram se o momento seria apropriado. Não se referiram à ilegalidade do seu jogo fraudulento nem
ao castigo se fossem apanhados. Essas discussões tinham terminado havia meses, quando Joe Roy Spicer convencera os outros dois ajuntarem-se a ele. Os riscos eram insignificantes quando comparados com os potenciais benefícios. Não era provável que os Quince, que tinham sido levados ao engano, fossem a correr à polícia para se queixarem de extorsão.
Mas ainda não tinham espremido ninguém. Trocavam correspondência com cerca de uma dúzia de vítimas potenciais, todos homens de meia idade que tinham cometido o erro de responder a este simples anúncio:
JOVEM DE 20 E TAL ANOS PROCURA CAVALHEIRO SIMPÁTICO E DISCRETO DE 40 OU 50 ANOS PARA CONVÍVIO ÍNTIMO
Um pequeno anúncio pessoal em letra pequena na contracapa de uma revista de homossexuais valera sessenta respostas, e coubera a Spicer fazer a triagem do que não prestava e identificar alvos ricos. A princípio, considerara a tarefa repugnante, mas depois divertira-se. Agora transformara-se num negócio, visto que estavam prestes a extorquir cem mil dólares a um homem totalmente inocente.
O advogado do grupo ficaria com um terço, o que, sendo habitual, não deixava de ser uma percentagem frustrante. Mas não tinham alternativa. O homem era uma peça fundamental nos seus crimes.
Trabalharam na carta para Quince durante uma hora. Depois, resolveram dormir sobre o assunto e fazer um rascunho final no dia seguinte. Havia outra carta de um homem que usava o pseudónimo de Hoover. Era a segunda, dirigida a Percy, e constituía uma dissertação de quatro parágrafos sobre a observação de aves. Yarber seria obrigado a estudar aves antes de responder na qualidade de Percy e de se mostrar muito interessado no assunto. Era óbvio que Hoover tinha medo da sua própria sombra. Não revelava dados pessoais e não havia quaisquer alusões a dinheiro.
Os Confrades resolveram dar-lhe mais corda. Falavam de aves e depois tentavam sondá-lo quanto ao tema do convívio físico. Se Hoover se fizesse de desentendido e não revelasse nada quanto à sua situação financeira, deixavam-no cair.
No gabinete das prisões, Trumble era oficialmente considerado um campo de reabilitação. Esta designação implicava que não havia pátios vedados, arame farpado, torres de vigia nem guardas armados à espera
de apanhar fugitivos. Um campo de reabilitação equivalia a segurança mínima, para que qualquer recluso pudesse pura e simplesmente ir-se embora se lhe apetecesse. Havia um milhar de homens em Trumble, mas poucos eram os que partiam.
Era mais agradável do que a maioria dos liceus do estado. Dormitórios com ar condicionado, um refeitório asseado que servia três refeições por dia, uma sala de pesos e halteres, bilhar, cartas, ténis, voleibol, pista de jogging, bibiloteca, capela, sacerdotes de serviço, conselheiros, assistentes sociais e horas de visita ilimitadas.
Trumble era tão boa como podia ser para os prisioneiros, todos eles considerados de baixo risco. Oitenta por cento estavam ali por crimes relacionados com drogas. Cerca de quarenta por cento tinham assaltado bancos sem ferir nem assustar ninguém. Os restantes eram tipos de colarinho branco, cujos crimes iam dos pequenos furtos ao Dr. Floyd, um cirurgião cujo consultório lesara a Medicare em seis milhões de dólares ao longo de duas décadas.
A violência não era tolerada em Trumble. As ameaças eram raras. Havia muitas regras e a sua aplicação dava pouco trabalho à direcção. Se os reclusos pisassem o risco, as autoridades mandavam-nos embora, para uma prisão de segurança média, com arame farpado e guardas desagradáveis.
Os prisioneiros de Trumble contentavam-se em portar-se bem e em contar os dias, à maneira federal.
Não havia conhecimento de actividade criminosa grave lá dentro, até à chegada de Joe Roy Spicer. Antes da sua queda, Spicer ouvira histórias acerca da fraude de Angola, que herdara o nome da infame penitenciária estatal de Louisiana. Alguns reclusos tinham aperfeiçoado um plano de extorsão de homossexuais e, antes de serem apanhados, tinham aliviado as suas vítimas em setecentos mil dólares.
Spicer era natural de uma zona rural perto da fronteira da Louisiana, e a fraude de Angola fora um caso muito falado na sua região. Nunca sonhara que havia de a copiar. Mas, um dia, acordou numa penitenciária federal e resolveu vitimar qualquer pessoa de quem conseguisse aproximar-se.
Todos os dias percorria a pista à uma hora da tarde, em geral sozinho, sempre com um maço de Marlboro. Antes de ser preso, passara dez anos sem fumar; agora chegara aos dois maços por dia. Por isso andava a pé para neutralizar o mal que fazia aos pulmões. Em trinta e quatro meses, tinha percorrido mil e oitocentos quilómetros. E perdera dez quilos,
embora talvez não por causa do exercício, como gostava de afirmar. A proibição de beber cerveja era a maior responsável pela perda de peso.
Trinta e quatro meses de marcha e de fumo, vinte e um meses para cumprir.
Noventa mil dólares do dinheiro roubado estavam literalmente enterrados no seu quintal das traseiras, a setecentos e cinquenta metros da sua casa, numa arrecadação, encerrados num cofre de betão feito em casa, cuja existência a mulher ignorava. Ela ajudara-o a gastar o resto do produto do roubo, cento e oitenta mil dólares ao todo, embora a polícia federal tivesse descoberto apenas metade. Tinham comprado Cadillacs e ido a Las Vegas de avião, em primeira classe, a partir de New Orleans, e tinham viajado nas limusinas do casino e ficado hospedados em suites.
Se ainda acalentava alguns sonhos, um deles era o de ser jogador profissional, sediado em Las Vegas mas conhecido e temido pelos casinos de toda a parte. O blackjack era o seu jogo preferido e, apesar de ter perdido muito dinheiro, Spicer continuava convencido de que conseguiria bater qualquer um. Havia casinos nas Caraíbas que ele nunca vira. A Ásia estava a aquecer. Viajaria pelo mundo, em primeira classe, com ou sem a mulher, ficaria instalado em suites de sonho, tomaria as refeições no quarto e assustaria qualquer jogador de blackjack que fosse suficientemente estúpido para dar as cartas.
Tiraria os noventa mil dólares do quintal, juntá-los-ia à sua parte da fraude de Angola e iria para Las Vegas. com ou sem a mulher. Havia quatro meses que ela não aparecia em Trumble, embora lá fosse habitualmente de três em três semanas. Spicer tinha pesadelos em que a via a cavar o quintal à procura do tesouro escondido. Tinha quase a certeza de que ela não sabia da existência do dinheiro, mas havia uma certa margem para a dúvida. Exagerara na bebida duas noites antes de o mandarem para a prisão e dissera qualquer coisa acerca dos noventa mil dólares. Não se lembrava exactamente das suas palavras. Por mais que tentasse, não se lembrava do que lhe dissera.
Acendeu outro Marlboro quando percorreu os primeiros mil e quinhentos metros. Talvez ela tivesse agora um namorado. Rita Spicer era uma mulher atraente, um pouco cheia em certos sítios, mas nada que noventa mil dólares não pudessem esconder. E se ela e um novo companheiro tivessem encontrado o dinheiro e andassem a gastá-lo? Um dos piores pesadelos recorrentes de Joe Spicer era uma cena de um filme mau - Rita e um desconhecido qualquer com pás na mão, a cavarem
como loucos, à chuva. Porquê à chuva? Spicer não sabia. Mas era sempre à noite, no meio de uma trovoada, e quando relampejava ele via-os a abrirem caminho no quintal, cada vez mais próximos da arrecadação.
Num dos sonhos, o novo namorado misterioso conduzia uma escavadora, espalhando montes de terra por toda a quinta dos Spicer, enquanto Rita apontava para aqui e para ali com a pá.
Joe Roy suspirava pelo dinheiro. Sentia-o nas suas mãos. Roubaria e extorquiria tudo o que pudesse enquanto contava os dias em Trumble, e depois iria resgatar o seu tesouro enterrado e rumaria a Las Vegas. Ninguém na sua terra natal teria o prazer de apontar e dizer em voz baixa: «Lá vem o velho Joe Roy. Acabou de sair da prisão.» Nem pensar nisso.
Viveria como um lorde. com ou sem a mulher.
IV
Teddy olhou para os seus frascos de comprimidos alinhados à beira da mesa, como pequenos carrascos prontos a afastar a sua infelicidade. York estava sentado à sua frente, a ler os seus apontamentos.
York disse:
- Ele esteve ao telefone até às três da manhã, a falar com amigos do Arizona.
- Quem?
- Bobby Lander, Jim Gallison, Richard Hassel, o grupo habitual. A sua gente do dinheiro.
- Dale Winer?
- Sim, também com ele - disse York, admirado com a memória de Teddy.
Naquele momento, Teddy estava de olhos fechados e esfregava as têmporas. Algures entre eles, algures nas profundezas do seu cérebro, sabia o nome dos amigos de Lake, dos seus financiadores, dos seus confidentes, dos seus colaboradores de campanha e dos seus antigos professores de liceu. Tudo isso estava cuidadosamente arrumado, pronto a ser utilizado se necessário. < - Alguma coisa invulgar?
- Não, não. Apenas as perguntas típicas que seriam de esperar num homem que pondera numa mudança tão inesperada na sua vida. Os amigos ficaram admirados, até chocados, e um pouco relutantes, mas hão-de mudar de ideias.
- Fizeram perguntas acerca de dinheiro?
- Evidentemente. Mas ele foi vago, disse que isso não seria problema. Eles estão cépticos.
- Ele guardou os nossos segredos?
- Claro que sim.
- Estava preocupado que nós estivéssemos à escuta?
- Não me parece. Fez onze telefonemas do gabinete e oito de casa. Nenhum dos telemóveis.
- Faxes? Correio electrónico?
- Nenhum. Passou duas horas com Schiara, o seu...
- Chefe de pessoal.
- Exactamente. No essencial, estiveram a planear a campanha. O Schiara quer organizá-la. Querem o Nance do Michigan como vice-presidente.
- Não é uma má escolha.
- Parece-me um bom elemento. Já investigámos os seus dados. Divorciou-se aos vinte e três anos, mas isso foi há trinta anos.
- Não é problema. O Lake está pronto a envolver-se?
- Oh, sim. Ele é um político, não é? Prometeram-lhe as chaves do reino. Já anda a escrever discursos.
Teddy tirou um comprimido de um frasco e engoliu-o sem a ajuda de qualquer líquido. Fez uma careta, como se fosse amargo. Franziu a testa e disse:
- York, diga-me que não nos está a escapar nada neste tipo. Que não há segredos inconfessáveis.
- Não há segredos inconfessáveis, chefe. Examinámos-lhe a roupa suja durante seis meses. Não há nada que nos possa prejudicar.
- Ele não vai casar com nenhuma tresloucada, pois não?
- Não. Sai com várias mulheres, mas não é nada de sério.
- Não vai para a cama com as colegas?
- Nada. Está limpo.
Repetiam um diálogo que tinham travado muitas vezes. Mais uma não fazia mal.
- Não há negócios escuros de outra fase da vida?
- Esta é a vida dele, chefe. Não há nada para trás.
- Álcool, drogas, comprimidos, jogo na Internet? *
- Não. É escorreito, sóbrio, recto, brilhante e tem uma boa presença.
- Vamos falar com ele.
Aaron Lake foi mais uma vez escoltado até à mesma sala subterrânea de Langley, desta vez por três jovens esbeltos que o guardavam como se
o perigo espreitasse a cada canto. Caminhava ainda mais depressa do que na véspera, com a cabeça ainda mais erguida e as costas sem a mais pequena curva. A sua estatura aumentava de hora a hora.
Mais uma vez cumprimentou Teddy e apertou-lhe a mão calosa. Depois, foi atrás da cadeira de rodas coberta pela manta, entrou no abrigo e sentou-se do outro lado da mesa. Trocaram cortesias. York observava de uma sala ao fundo do corredor, onde três monitores ligados a câmaras ocultas registavam todas as palavras, todos os movimentos. Ao lado de York estavam dois homens que passavam o tempo a estudar gravações de pessoas - o modo como elas falavam, respiravam e mexiam as mãos, os olhos, a cabeça e os pés -, tentando determinar o que queriam verdadeiramente dizer.
-Dormiu muito esta noite?-perguntou Teddy, esboçando um sorriso.
- Sim, por sinal - disse Lake, mentindo.
- Ainda bem. Assumo que está disposto a aceitar o nosso acordo.
- Acordo? Não sabia que se tratava exactamente de um acordo.
- Oh, sim, Mr. Lake, é exactamente um acordo. Prometemos conseguir que seja eleito, e você promete duplicar os gastos com a defesa e preparar-se para os russos.
- Então está feito o acordo.
- Ainda bem, Mr. Lake. Fico muito satisfeito. Vai dar um excelente candidato e um óptimo presidente.
As palavras retiniram nos ouvidos de Lake, que nem conseguia acreditar nelas. O Presidente Lake. O Presidente Aaron Lake. Andara de um lado para o outro até às cinco horas da manhã, tentando convencer-se de que lhe estavam a oferecer a Casa Branca. Parecia demasiado fácil.
E, por mais que tentasse, não conseguia ignorar as armadilhas. A Sala Oval. Todos aqueles aviões a jacto e helicópteros. As viagens pelo mundo. Uma centena de adjuntos às suas ordens. Jantares de Estado com os mais poderosos do planeta.
E, acima de tudo, um lugar na História.
Oh, sim, Teddy conseguira um acordo.
- Vamos falar da campanha propriamente dita - disse Teddy. Acho que você deve anunciar a sua candidatura dois dias depois de New Hampshire. Deixe assentar a poeira. Conceda quinze minutos aos vencedores e deixe os vencidos atirarem mais lama. Depois faça o anúncio.
- Isso é muito rápido - disse Lake.
- Não temos muito tempo. Ignoramos New Hampshire e preparamo-nos para o Arizona e para o Michigan no dia 22 de Fevereiro. É imperioso que vença nesses dois estados. Quando o fizer, constitui-se como um sério candidato, e está preparado para o mês de Março.
- Eu estava a pensar em anunciar quando regressasse ao Arizona, algures em Phoenix.
- No Michigan é melhor. É um estado maior, com cinquenta e oito delegados, em comparação com os vinte e quatro do Arizona. Espera-se que você ganhe em casa. Se vencer no Michigan no mesmo dia, é porque é um candidato de respeito. Anuncie primeiro no Michigan e faça o mesmo umas horas depois no seu estado. - É uma ideia excelente.
- Há uma fábrica de helicópteros em Flint, a D-L Trilling. Eles têm um grande hangar e quatro mil trabalhadores. O director-geral é um homem com que posso falar.
- Trate disso - disse Lake, certo de que Teddy já conversara com o director-geral.
- Pode começar a filmar anúncios depois de amanhã?
- Posso fazer seja o que for - respondeu Lake, instalando-se no lugar do passageiro. Estava a tornar-se óbvio quem é que ia ao volante.
- com a sua aprovação, vamos contratar um grupo de consultores externos para dar a cara pelos anúncios e pela publicidade. Mas temos cá gente melhor, que não lhe custará um cêntimo. Não é que o dinheiro seja problema, compreende?
- Creio que dez milhões darão para cobrir tudo.
- Também acho. De qualquer modo, vamos começar hoje a trabalhar nos anúncios para a televisão. Acho que vai gostar deles. Vão pintar um quadro totalmente negro, o estado lastimoso das nossas forças armadas e todo o tipo de ameaças externas. O fim do mundo, uma coisa desse tipo. Vão assustar muito as pessoas. Inserimos o seu nome e a sua cara e meia-dúzia de palavras, e pouco depois será o político mais célebre do país.
- A fama não ganha eleições.
- Não, não ganha. Mas o dinheiro sim. O dinheiro compra a televisão e as sondagens, e não é preciso mais nada.
- Gostaria de pensar que a mensagem é importante.
- É mesmo, Mr. Lake, e a nossa mensagem é muito mais importante do que a baixa dos impostos, os actos afirmativos, o aborto, a confiança e os valores familiares e todas as outras tretas que andamos a ouvir. A nossa
mensagem é a vida e a morte. A nossa mensagem vai mudar o mundo e proteger a nossa riqueza. Só isso é que nos interessa.
Lake concordava. Proteger a economia, manter a paz, e os eleitores americanos elegiam qualquer um.
-Tenho um homem bom para dirigir a campanha-disse Lake, ansioso por oferecer alguma coisa.
- Quem?
- Mike Schiara, o meu chefe de pessoal. É o meu conselheiro mais chegado, um homem em quem deposito confiança total.
- Ele tem alguma experiência a nível nacional? - perguntou Teddy, sabendo muito bem que não tinha nenhuma.
- Não, mas é bastante capaz.
- Está bem. A campanha é sua.
Lake sorriu e fez um gesto afirmativo ao mesmo tempo.
Era bom ouvir estas palavras. Começava a querer saber mais coisas.
- E o vice-presidente? - perguntou Teddy.
-Tenho dois nomes. O senador Nance do Michigan é um velho amigo. Também há o governador Guyce do Texas.
Teddy recebeu os nomes com cautela e ponderação. Não eram más escolhas, apesar de Guyce não resultar. Era um menino rico que passara pela universidade, jogara golfe aos trinta e tal anos e que depois gastara uma boa parte do dinheiro do pai para comprar a mansão do governador por quatro anos. Além disso, não teriam de se preocupar com o Texas.
- Agrada-me o Nance - disse Teddy. Então seria Nance, ia a dizer Lake.
Passaram uma hora a falar de dinheiro, da primeira vaga dos comités ide acção política e de como aceitar logo milhões sem levantar demasiadas suspeitas. Seguia-se a segunda vaga, proveniente dos industriais de armamento. Depois, a terceira vaga, constituída por donativos em dinheiro e outros financiamentos que não deixavam rasto.
Havia uma quarta vaga de que Lake nunca viria a saber. Consoante o número de votos, Teddy Maynard e a sua organização estavam preparados para atirar literalmente cofres cheios de dinheiro para as salas dos sindicatos, para as igrejas de negros e para os veteranos de guerra brancos em cidades como Chicago, Detroit e Memphis e em todo o Sul. Ao trabalharem com os elementos locais que já estavam a Identificar, estariam preparados para comprar todos os votos que conseguissem.
Quanto mais Teddy pensava no seu plano, mais se convencia de que as eleições seriam ganhas por Mr. Aaron Lakc.
O pequeno escritório de advogados de Trevor ficava em Neptune Beach, a vários quarteirões de Atlantic Beach, embora ninguém soubesse ao certo onde começava uma praia e acabava outra. Jacksonville ficava a vários quilómetros para oeste e continuava a avançar na direcção do mar. O escritório era um apartamento de Verão alugado e adaptado, e, do alpendre das traseiras em ruínas, Trevor via a praia e o mar e ouvia as gaivotas. Custava a acreditar que tivesse aquele espaço alugado há doze anos. A princípio, gostava de se esconder no alpendre, longe do telefone e dos clientes, sempre a observar as águas tranquilas do Atlântico, dois quarteirões mais à frente.
Trevor era de Scranton e, como todas as aves migratórias, acabara por se cansar de olhar para o mar, de vaguear pelas praias descalço e de atirar migalhas de pão aos pássaros. Agora, preferia passar o tempo fechado no escritório.
As salas de audiências e os juizes aterravam-no. Apesar de isto ser invulgar e até um pouco respeitável, fomentava um estilo diferente do exercício da advocacia. Relegava Trevor para a papelada - encerramento de empreendimentos imobiliários, testamentos, alugueres, loteamentos - para todas as áreas mundanas, desinteressantes e insignificantes da profissão, de que ninguém lhe falara na Faculdade de Direito. De vez em quando aceitava um caso de drogas, mas nenhum que envolvesse um julgamento, e fora um dos seus infelizes clientes de Trumble que o pusera em contacto com o Meritíssimo Joe Roy Spicer. Em pouco tempo, passara a ser o advogado oficial dos três - Spicer, Beech e Yarber. A Confraria, como até Trevor lhes chamava quando se referia a eles.
Era um correio, nada mais nada menos. Fazia entrar clandestinamente cartas disfarçadas de documentos legais oficiais e,, consequentemente, protegidos pelo sigilo devido entre advogado e cliente. E fazia sair as cartas deles às escondidas. Não lhes dava conselhos, e eles também não os pediam. Geria-lhes a conta bancária offshore e atendia telefonemas das famílias dos clientes deles em Trumble. Dava a cara pelos pequenos negócios sujos dos três e, ao fazê-lo, evitava salas de audiências, juizes e outros advogados, o que lhe convinha perfeitamente.
Trevor era também um membro da conspiração, facilmente indiciável se eles fossem descobertos alguma vez, mas não estava preocupado.
A fraude de Angola fora absolutamente brilhante porque as suas vítimas não se podiam queixar. Trevor colaborava com a Confraria em troca de honorários fáceis e de potenciais recompensas.
Saiu do gabinete sem ver a secretária e entrou no seu carocha de 1970, recuperado e sem ar condicionado. Desceu a First Street na direcção do Atlantic Boulevard, avistando o mar entre os edifícios, as vivendas e os apartamentos de aluguer. Vestia uma velhas calças de caqui, uma camisa de algodão branca, um lacinho azul e um casaco às riscas azuis e brancas, tudo muito amarrotado. Passou pelo Pete’s Bar and Grill, o antro mais antigo da zona das praias e o seu preferido, apesar de os miúdos da universidade terem descoberto aquele sítio. Tinha lá uma dívida pendente e muito antiga de trezentos e sessenta e um dólares, quase toda de Coors e de daiquiris de limão, e queria pagá-la.
Virou para oeste na direcção do Atlantic Boulevard e começou a sentir dificuldades com o trânsito na estrada para Jacksonville. Amaldiçoou a fila, o congestionamento e os automóveis de matrícula canadiana. Em seguida, entrou na estrada secundária, seguiu para norte, passou pelo aeroporto e pouco depois embrenhou-se na zona rural e plana da Florida. Cinquenta minutos depois, estacionou em Trumble. Somos obrigados a gostar do sistema federal, repetiu a si próprio. Uma profusão de espaços de estacionamento junto da entrada principal, campos bem tratados diariamente pelos reclusos e edifícios modernos e bem conservados.
-Olá, Mackey. Olá, Vmce-disse Trevor respectivamente aos guardas branco e negro que estavam à porta.
Na recepção, Rufus radiografou-lhe a pasta, enquanto Nadine preenchia o formulário da visita.
- Como vão as percas? - perguntou ele a Rufus.
- Não estão a morder o isco - respondeu Rufus.
Na breve história de Trumble, nenhum advogado fazia tantas visitas como Trevor. Tiraram-lhe de novo a fotografia, carimbaram-lhe as costas da mão com tinta invisível e fizeram-no atravessar duas portas e percorrer um pequeno corredor.
- Olá, Link - disse ele ao guarda seguinte.
- Bom-dia, Trevor - respondeu Link.
Link era o responsável pela zona das visitas, um grande espaço aberto com muitas cadeiras estofadas e máquinas de venda automática encostadas a uma parede, um parque infantil e um pequeno pátio ao ar livre onde
duas pessoas se podiam sentar a uma mesa de jardim e passar uns momentos juntas. Estava limpo, encerado e completamente vazio. Era um dia de semana. Os sábados e os domingos eram os dias de maior afluência, mas de resto Link não tinha ninguém para vigiar.
Dirigiram-se para a sala dos advogados, um de vários cubículos privados com portas que se fechavam e janelas através das quais Link podia exercer a sua vigilância, se estivesse para aí virado. Joe Roy Spicer estava à espera e a ler a secção de desporto, pois fazia apostas em basquetebol universitário. Trevor e Link entraram na sala juntos e, muito rapidamente, Trevor pegou em duas notas de vinte dólares e estendeu-as a Link. As câmaras de circuito fechado não os viam se eles fizessem isto mesmo à entrada da porta. Como era habitual, Spicer fingiu que não viu a transacção.
Em seguida, a pasta abriu-se e Link fez menção de a revistar. Fê-lo sem tocar em nada. Trevor tirou um grande envelope castanho, fechado, em que se lia «Documentos Legais». Link pegou nele e apalpou-o para se certificar de que lá dentro só havia papéis, e não uma arma nem um frasco de comprimidos. Depois, devolveu-o. Tinham feito aquilo dúzias de vezes.
O regulamento de Trumble exigia que um guarda estivesse presente na sala quando todos os papéis eram retirados e todos os envelopes eram abertos. Mas as duas notas de vinte deixaram Link do lado de fora da porta, onde não havia mais nada para guardar naquele momento. Desde que Trevor não traficasse armas nem drogas, Link não seria envolvido. A prisão tinha tantos regulamentos estúpidos. Link encostou-se à porta, de costas para ela, e pouco depois mergulhava numa das suas muitas sonecas, com uma perna esticada e a outra dobrada pelo joelho.
Na sala dos advogados, o apoio jurídico era escasso. Spicer continuava absorto nas apostas. A maior parte dos reclusos recebiam bem os seus convidados. Spicer limitava-se a tolerar o seu.
- Ontem à noite, recebi um telefonema do irmão do Jeff Daggett disse Trevor. - O miúdo de Coral Gables.
- Eu conheço-o - disse Spicer, baixando finalmente o jornal porque havia dinheiro no horizonte. - Apanhou doze anos num caso de drogas.
- Pois foi. O irmão diz que há um ex-juiz federal em Trumble que lhe examinou os documentos e considera que lhe pode tirar uns anos. Este juiz quer ser pago e o Dagget telefona ao irmão, que me telefona.
Trevor despiu o casaco amarrotado e atirou-o para cima de uma cadeira. Spicer detestava o lacinho dele.
- Quanto é que eles podem pagar? ’’
- Vocês já definiram a remuneração? - perguntou Trevor.
- Talvez o Beech o tenha feito, não sei. Tentamos receber cinco mil por uma redução dois-dois-cinco-cinco.
Spicer disse isto como se tivesse praticado Direito Criminal nos tribunais durante anos. A verdade é que a única vez que entrara numa sala de audiências de um tribunal federal fora no dia da leitura da sua sentença.
- Eu sei - disse Trevor. - Não tenho a certeza de que eles possam pagar cinco mil. O miúdo tem um defensor oficioso.
- Então, esprema o que puder, mas consiga pelo menos mil à cabeça. Ele não é mau tipo.
- Você está a ficar generoso, Joe Roy.
- Não. Estou a ficar mais mesquinho.
E de facto estava. Joe Roy era o gestor da Confraria. Yarber e Beech possuíam o talento e a experiência, mas tinham sido demasiado humilhados pela sua demissão para alimentarem qualquer ambição. Spicer, sem experiência e com pouco talento, tinha dotes de manipulação suficientes para manter os colegas nos eixos. Enquanto eles congeminavam, ele sonhava com o seu regresso.
Joe Roy abriu um dossier e retirou um cheque.
- Estão aqui mil dólares para depositar. Vêm de um tipo do Texas chamado Curtis.
- Qual é o potencial dele?
- Muito bom, creio eu. Estamos dispostos a espremer o Quince em lowa.
Joe Roy pegou num belo envelope cor de alfazema, bem fechado e dirigido a Quince Garbe, em Bakers, lowa.
- Quanto? - perguntou Trevor, pegando no envelope.
- Cem mil.
- Uau!
- Ele mordeu o isco e vai pagar. Eu dei-lhe as instruções para fazer a transferência. Previna o banco.
Em vinte e três anos de advocacia, Trevor nunca ganhara honorários que se aproximassem dos trinta e três mil dólares. De repente, via-os, tocava-lhes e, embora tentasse não o fazer, começava a gastá-los trinta e três mil dólares só por levar e trazer correspondência.
- Você acha mesmo que isso vai resultar? - perguntou ele, pagando mentalmente a dívida do Pete’s e dando instruções ao MasterCard para
descontar o cheque. Ficaria com o mesmo automóvel, o seu querido carocha, mas talvez se atirasse a um aparelho de ar condicionado.
- É claro que vai - respondeu Spicer, sem uma réstia de dúvida. Tinha mais duas cartas, ambas escritas pelo juiz Yarber, a fazer de jovem Percy em período de reabilitação. Trevor pegou nelas, ansioso.
- O Arkansas está em Kentucky esta noite - disse Spicer, voltando ao seu jornal. - A linha é a catorze. O que acha?
- Muito mais perto do que isso. O Kentucky é muito forte em casa.
- Aposta?
- E você?
Trevor tinha um agente de apostas no Pete’s Bar e, apesar de apostar pouco, aprendera a seguir os palpites do juiz Spicer.
- vou apostar cem no Arkansas - disse Spicer.
- Acho que vou fazer o mesmo.
Jogaram blackjack durante meia-hora. De vez em quando, Link olhava lá para dentro e franzia o sobrolho com ar de censura. Era proibido jogar às cartas durante as visitas, mas quem se importava com isso? Joe Roy jogava a sério porque estava a preparar-se para a sua carreira seguinte. O póquer e o gin rummy eram os seus preferidos na sala de visitas, mas, muitas vezes, tinha dificuldade em encontrar um parceiro para o blackjack.
Trevor não era particularmente bom, mas estava sempre disposto a jogar. Na opinião de Spicer, era a única qualidade que o redimia.
V
O anúncio tinha o ar próprio de uma festa de celebração da vitória, com estandartes vermelhos, azuis e brancos, bandeiras penduradas no tecto e música de fanfarra que atroava o hangar. Fora exigida a presença de todos os empregados da D-L Trilling, os quatro mil, e, para os contentar, fora-lhes prometido mais um dia de férias. Oito horas pagas, a um salário médio de vinte e dois dólares e quarenta cêntimos, mas a administração não se importava porque encontrara o seu homem. O palco construído à pressa também estava coberto de estandartes e preenchido com os elementos importantes da empresa, todos com um sorriso aberto e a aplaudir freneticamente, enquanto a música arrebatava a multidão. Havia três dias, ninguém sabia quem era Aaron Lake. Agora, ele era o seu salvador.
Aaron parecia de facto um candidato, com o cabelo um pouco mais curto, como lhe sugerira um consultor, e um fato castanho-escuro aconselhado por outro. Só Reagan é que conseguira usar fatos castanhos e alcançara duas vitórias esmagadoras.
Quando Lake finalmente apareceu e atravessou o palco com um ar importante, apertando vigorosamente a mão a responsáveis da empresa que nunca vira, os trabalhadores entraram em delírio. O volume da música subiu convenientemente, graças ao consultor de uma equipa de som que a gente de Lake contratara por vinte e quatro mil dólares para o efeito. O dinheiro tinha pouca importância.
Os balões caíam como maná. Alguns eram rebentados por trabalhadores aos quais tinha pedido que os rebentassem. Durante alguns segundos, o hangar parecia a primeira fase de um ataque terrestre. Preparem-se. Preparem-se para a guerra. Antes que seja demasiado tarde.
O director-geral da Trilling abraçou-o como se fossem irmãos da mesma confraria, apesar de ambos se terem conhecido duas horas antes. Em
seguida, subiu ao palco e esperou que o ruído amainasse. Scrvindo-se dos apontamentos que lhe tinham sido enviados por fax na véspera, começou a fazer uma apresentação palavrosa e bastante generosa de Auron Lake, o futuro presidente. Os aplausos, orquestrados, interromperam-no cinco vezes antes de terminar.
Lake acenou como um herói vencedor e esperou atrás do microfone. Em seguida, com um excelente sentido de oportunidade, avançou e disse:
- O meu nome é Aaron Lake, e estou a candidatar-me à presidência.
Mais aplausos atroadores. Mais fanfarra. Mais balões a caírem.
Quando se fartou, Lake atirou-se ao discurso. O tema, o programa, o único motivo que o levava a candidatar-se era a segurança nacional, e Lake insistiu nas estatísticas aterradoras que provavam até que ponto a Administração esgotara as forças armadas. Nenhum outro tema era tão importante como esse, afirmou ele abruptamente. Atirem-nos para uma guerra que não podemos vencer, e esqueceremos as velhas tricas acerca do aborto, do racismo, das armas, da acção afirmativa e dos impostos. Estão preocupados com os valores familiares? Comecem a perder os vossos filhos e filhas em combate e verão o que são famílias com problemas.
Lake era muito bom. O discurso fora escrito por ele, editado pelos consultores, aperfeiçoado por outros profissionais. Na noite anterior, Lake enviara-o a Teddy, que estava sozinho nos subterrâneos de Langley. Teddy aprovara-o, com pequenas alterações.
Teddy estava enfiado debaixo das suas mantas e assistia ao espectáculo com um grande orgulho. York encontrava-se junto dele, em silêncio como de costume. Era frequente estarem os dois sentados, sozinhos, de olhos nos ecrãs, a observarem o mundo que se tornava cada vez mais perigoso.
- Ele é bom - disse York tranquilamente, a dada altura. Teddy fez um sinal afirmativo e esboçou mesmo um sorriso. A meio do discurso, Lake enfureceu-se com os chineses.
- Durante vinte e um anos, permitimos-lhes que roubassem quarenta por cento dos nossos segredos nucleares!-exclamou.
Os trabalhadores assobiaram.
- Quarenta por cento! - gritou ele.
Fora quase cinquenta por cento, mas Teddy optou por fazer uma pequena redução. A CIA tinha a sua quota-parte de responsabilidade no roubo dos chineses.
Durante cinco minutos, Aaron atacou violentamente os chineses, os seus roubos e o seu reforço militar sem precedentes. A estratégia era de Teddy. Usar os chineses para assustar os eleitores americanos, e não os russos. Não falar neles. Proteger a verdadeira ameaça até chegar a uma fase posterior da campanha.
O momento escolhido por Lake fora quase perfeito. O seu ataque fez vir a casa abaixo. Quando ele prometeu duplicar o orçamento da defesa nos primeiros quatro anos da sua administração, os quatro mil empregados da D-L Trilling que construíam helicópteros militares entraram em delírio.
Teddy observava a cena em silêncio, muito orgulhoso da sua obra. Tinham conseguido montar o espectáculo em New Hampshire menosprezando-o. O nome de Lake não constava dos boletins de voto e, no espaço de décadas, ele era o primeiro candidato a orgulhar-se desse facto. «Quem precisa de New Hampshire? Eu vou conquistar o resto do país», era uma afirmação que lhe atribuíam.
Lake terminou no meio de aplausos estrondosos e voltou a apertar as mãos todas que havia no palco. A CNN regressou ao seu estúdio, onde os locutores passaram um quarto de hora a contar aos telespectadores o que tinham acabado de presenciar.
Na sua mesa, Teddy carregava em botões e as imagens mudavam no ecrã.
- Aqui está o produto acabado - disse ele. - A primeira prestação.
Era um anúncio televisivo do candidato Lake, e começava com um instantâneo de uma fila de generais chineses de aspecto austero, que integravam uma parada militar vendo passar equipamento pesado. «Consideram que o mundo é um lugar mais seguro?», perguntava uma voz off terrível e cavernosa. Seguiam-se imagens breves dos loucos do mundo actual, todos a assistirem ao desfilar dos seus exércitos Hussein, Kadafi, Milosevic e Kim da Coreia do Norte. Até o pobre Castro, com o que restava do seu exército esfarrapado a arrastar-se por Havana, teve o seu tempo de antena. «As nossas forças armadas não poderiam fazer agora o que fizeram em 1991 na Guerra do Golfo», disse a voz num tom grave, como se já tivesse sido declarada outra guerra. Seguia-se uma explosão, um cogumelo atómico, e milhares de indianos a dançarem nas ruas. Outra explosão, e os paquistaneses a dançarem também.
«A China quer invadir Taiwan», dizia a voz, enquanto milhares de soldados chineses marchavam com o passo impecavelmente alinhado.
«A Coreia do Norte quer a Coreia do Sul», dizia a voz, enquanto os tanques rolavam pelo DMZ. «E os Estados Unidos são sempre um alvo fácil.»
A voz subiu rapidamente de tom e o anúncio passou para uma sessão qualquer do Congresso, onde um general muito medalhado dizia a uma subcomissão: «Os senhores congressistas cada vez gastam menos com as forças armadas. Este orçamento da defesa é menor que o de há quinze anos. Esperam que estejamos prontos para a guerra na Coreia, no Médio Oriente e agora na Europa de Leste, mas o nosso orçamento continua a encolher. A situação é crítica». O anúncio desapareceu, dando lugar a um ecrã negro, e depois a primeira voz disse: «Há doze anos, havia duas superpotências. Agora não há nenhuma.» Surgiu o rosto atraente de Aaron Lake e o anúncio terminou com a voz a dizer: «Lake, Antes que seja demasiado tarde.»
- Não tenho a certeza se gosto - disse York pouco depois.
- Porquê?
- É tão negativo.
- Óptimo. Dá uma sensação de mal-estar, não é verdade?
- É isso mesmo.
- Ainda bem. Vamos inundar a televisão durante uma semana, e desconfio que os números de Lake vão descer ainda mais. Os anúncios vão obrigar as pessoas a retrair-se, e elas não vão gostar.
York sabia o que viria a seguir. As pessoas retraíam-se e não gostavam dos anúncios, depois assustavam-se e, de repente, Lake passava a ser um visionário. Teddy apostava no terror.
Havia duas salas de televisão em cada ala de Trumble; eram duas pequenas salas nuas onde se podia fumar e ver o que os guardas queriam que se visse. Não havia controlo remoto. A princípio, tentaram, mas só levantara problemas. As piores divergências surgiam de longe quando os rapazes não estavam de acordo quanto ao que queriam ver. Por isso, eram os guardas que escolhiam.
O regulamento proibia que os reclusos tivessem os seus próprios televisores.
Por acaso, o guarda de serviço gostava de basquetebol. Havia um jogo de universitários na ESPN e a sala estava cheia de reclusos. Hatlee Beech detestava desporto e estava sentado, sozinho, na outra sala de televisão a ver comédias banais, umas atrás das outras. Quando estava no tribunal e trabalhava doze horas por dia, nunca via televisão. Quem é
que tinha tempo para isso? Tinha um gabinete em casa, onde ditava sentenças até tarde, enquanto toda a gente estava colada ao horário nobre. Agora, ao ver aquele lixo, percebia como tivera sorte. Por muitas razões. Acendeu um cigarro. Não fumava desde os tempos da faculdade e, nos dois primeiros meses em Trumble, resistira à tentação. Agora, os cigarros ajudavam-no a quebrar a monotonia, mas Beech fumava apenas um maço por dia. A sua tensão arterial subia e descia. Havia problemas cardíacos na família. Aos cinquenta e cinco anos, com nove anos para cumprir, Beech sairia num caixão, tinha a certeza disso.
Três anos, um mês e uma semana, e Beech continuava a contar os dias, comparando-os com os que faltavam. Ainda há quatro anos construía a sua reputação de jovem juiz federal implacável e muito bem sucedido. Quatro anos deitados à rua. Quando ia de um tribunal para outro na zona leste do Texas, fazia-se acompanhar de um motorista, de uma secretária, de um funcionário e de um agente da polícia. Quando entrava numa sala de audiências, as pessoas levantavam-se em sinal de respeito. Os advogados não lhe poupavam elogios pela sua imparcialidade e diligência. A mulher era uma pessoa desagradável, mas graças à companhia petrolífera da família, Beech conseguira viver em paz com ela. O casamento era estável, não exactamente ardente, mas, com três belos filhos na universidade, o casal tinha motivos para se sentir orgulhoso. Tinham passado tempos difíceis e estavam decididos a envelhecer juntos. Ela tinha o dinheiro. Ele tinha o estatuto. Tinham criado uma família juntos. •
Para onde haviam de ir?
Decerto não para a prisão.
Quatro anos desgraçados.
A bebida viera não se sabia donde. Talvez fosse a pressão do trabalho, ou para escapar à conflituosidade da mulher. Durante anos, depois da Faculdade de Direito, Beech bebera um pouco em reuniões sociais, nada de grave. Não era um hábito. Uma vez, quando os filhos eram pequenos, a mulher levara-os para Itália durante duas semanas. Beech ficara sozinho, o que lhe convinha. Por qualquer razão que não conseguia apurar, nem recordar, voltou ao uísque. Em grandes quantidades, sem parar. O uísque tornou-se importante. Tinha-o sempre no escritório e, de madrugada, ia bebê-lo às escondidas. Beech e a mulher tinham camas separadas e por isso ele raramente era apanhado.
Na origem da ida a Yellowstone estivera uma conferência judicial de três dias. Beech conhecera a jovem num bar de Jackson Hole. Depois de várias horas a beber, tomaram a decisão infeliz de ir dar uma volta de automóvel. Enquanto Hatlee conduzia, ela despira-se, apenas por capricho. Não tinham falado de sexo, e nesse momento Hatlee era totalmente inofensivo. Os dois peões eram de Washington, estudantes universitários que tinham acabado de sair da berma. Morreram ambos ali mesmo, na curva de uma estrada estreita, esmagados por um automobilista embriagado que nunca os vira. O automóvel da jovem foi encontrado numa vala com Beech agarrado ao volante, sem se conseguir mexer. Ela estava nua e inconsciente.
Beech não se recordava de nada. Quando acordou, horas depois, viu pela primeira vez o interior de uma cela.
- O melhor é habituar-se - dissera-lhe o chefe da esquadra com um sorriso trocista.
Beech pediu todos os favores e mexeu todos os cordelinhos que é possível imaginar, mas de nada lhe serviu. Tinham morrido dois jovens. Fora apanhado na companhia de uma jovem nua. A mulher é que tinha o dinheiro do petróleo e os amigos fugiram como cães assustados. Por fim, ninguém apoiou o Meritíssimo Hatlee Beech.
Teve sorte em apanhar doze anos. As mães FURIOSAS e os estudantes DESOLADOS protestaram à porta do tribunal quando ele fez a sua primeira aparição oficial. Queriam a prisão perpétua. Queriam a vida dele!
Ele próprio, o Meritíssimo Hatlee Beech, fora acusado da morte de duas pessoas, e não havia defesa possível. Tinha álcool no sangue que era suficiente para matar mais uma. Segundo uma testemunha, seguia na faixa errada.
Olhando para trás, Beech tivera sorte pelo facto de o seu crime ter ocorrido em território federal. De outro modo, teria sido enviado para uma penitenciária estatal onde as coisas eram muito piores. Dissessem o que dissessem, as autoridades federais sabiam gerir uma prisão.
Beech fumava sozinho na penumbra, enquanto via uma comédia em horário nobre, escrita por jovens de doze anos, e havia um anúncio político, um dos muitos nessa época. Beech nunca o vira. Era um pequeno segmento ameaçador, com uma voz sombria que antevia o caos se os americanos não se despachassem a fabricar mais bombas. Estava muito bem feito, durava um minuto e meio, custava uma fortuna e transmitia uma mensagem que ninguém queria ouvir. Lake, antes que seja demasiado tarde.
Quem diabo era Aaron Lake?
Beech conhecia a sua política. Fora a sua paixão noutros tempos, e em Trumble era conhecido por estar atento a Washington. Era um dos poucos que se importava com o que lá se passava.
Aaron Lake? Beech não conhecia o tipo. Que estratégia esquisita a de entrar na corrida como um desconhecido que disputava New Hampshire. Não faltavam palhaços que queriam ser presidentes.
A mulher de Beech expulsara-o de casa antes de ser condenado pelo homicídio involuntário de duas pessoas. Como era natural, ficara mais irritada com a mulher nua do que com a morte dos jovens. Os filhos tomaram o partido da mãe, quer porque era ela quem tinha o dinheiro, quer porque o pai se saíra muito mal. Fora uma decisão fácil para eles. O divórcio foi decretado uma semana depois de Beech chegar a Trumble.
O filho mais novo fora vê-lo duas vezes em três anos, um mês e uma semana. Ambas as visitas foram às escondidas, não fosse a mãe descobrir. Proibira os filhos de ir a Trumble.
Depois, ele fora processado, dois casos mortais injustos levantados pelas famílias. Sem amigos dispostos a avançar, Beech tentara defender-se a partir da prisão. Mas não havia defesa possível. O tribunal exigia-lhe o pagamento de cinco milhões de dólares. Beech recorreu a partir de Trumble, perdeu e voltou a recorrer.
Na cadeira a seu lado, junto dos cigarros, estava um envelope trazido por Trevor, o advogado. O tribunal recusara o seu último recurso. A sentença era agora definitiva.
Não tinha importância, porque também já declarara falência. Ele próprio dactilografara os documentos na secção de Direito da biblioteca, juntara-lhes um atestado de pobreza e enviara-os para o mesmo tribunal do Texas onde em tempos fora um deus.
Acusado, divorciado, privado de exercer a sua profissão, preso, condenado e falido.
A maioria dos vencidos de Trumble aguentavam-se bem porque não tinham caído de muito alto. Eram quase todos reincidentes que tinham deitado a perder terceiras e quartas oportunidades. Quase todos gostavam do local, porque era melhor do que qualquer outra prisão que tinham visitado.
Mas Beech perdera muito, caíra muito fundo. Ainda há quatro anos tinha uma mulher milionária, três filhos que o adoravam e uma grande casa numa pequena cidade. Era juiz federal, nomeado vitaliciamente pelo presidente, e ganhava cento e quarenta mil dólares por ano, o que era
muito menos do que os lucros da empresa petrolífera da mulher, apesar de não ser um mau salário. Duas vezes por ano, era chamado a Washington para participar em reuniões no Ministério da Justiça. Beech fora uma pessoa importante.
Um velho amigo advogado fora visitá-lo duas vezes, de caminho para Miami, onde tinha filhos, e demorara-se o suficiente para lhe dar conta dos mexericos. Eram quase todos insignificantes, mas corria o boato de que a ex-mulher de Beech mantinha agora uma relação com outra pessoa. com uns milhões de dólares e umas ancas elegantes, era apenas uma questão de tempo.
Outro anúncio. Outra vez Lake, antes que seja demasiado tarde. Este começou com um vídeo granuloso de homens armados a caminharem no deserto, a esquivarem-se, a dispararem, no meio de um treino qualquer. Seguiu-se o rosto sinistro de um terrorista - olhos, cabelos, e traços sombrios, obviamente algum fundamentalista islâmico - que dizia em árabe com legendas em inglês: «Mataremos os Americanos onde quer que os encontremos. Morreremos na nossa guerra santa contra o grande Satã.» Depois, imagens rápidas de edifícios em chamas. Atentados à bomba em embaixadas. Um autocarro cheio de turistas. Os restos de um avião a jacto espalhados numa pastagem.
Surgiu um rosto atraente, o de Mr. Aaron Lake. Olhou de frente para Hatlee Beech e disse: «Sou Aaron Lake, e talvez você não me conheça. Candidato-me à presidência porque estou assustado. Assustado com a China, com a Europa de Leste e com o Médio Oriente. Assustado com um mundo perigoso. Assustado com o que aconteceu às nossas forças armadas. No ano passado, o governo federal teve um grande excedente, embora tenha gasto menos na defesa do que há quinze anos. Somos complacentes porque a nossa economia é forte, mas o mundo actual é mais perigoso do que julgamos. Os nossos inimigos são multidões e nós não podemos proteger-nos. Se for eleito, duplicarei os gastos com a defesa durante o meu mandato.»
Nada de sorrisos nem de cordialidade. Apenas conversa simples de um homem que sabia o que estava a dizer. Uma voz que se sobrepôs à dele disse: «Lake, antes que seja demasiado tarde.»
Nada mau, pensou Beech.
Acendeu outro cigarro, o último da noite, e ficou a olhar para o envelope que estava em cima da cadeira - cinco milhões de dólares que lhe eram exigidos pelas duas famílias. Beech pagaria se pudesse. Nunca vira os
miúdos, nem sequer antes de os matar. O jornal do dia seguinte trazia as fotografias deles com um ar satisfeito, um rapaz e uma rapariga. Eram apenas estudantes universitários que gozavam o Verão.
Beech não bebeu o uísque.
Podia alegar falência em relação a metade da sentença. A outra metade era por danos morais, cujo pagamento era obrigatório em qualquer circunstância. Por isso, segui-lo-ia para onde ele fosse, ou seja, para parte nenhuma, na sua opinião. Teria sessenta e cinco anos quando acabasse de cumprir a sentença, mas morreria antes disso. Levá-lo-iam de Trumble dentro de um caixão, enviá-lo-iam para a sua terra, no Texas, onde o sepultariam atrás da pequena igreja rural em que fora baptizado. Talvez um dos filhos lhe mandasse fazer uma lápide.
Beech saiu da sala sem desligar o televisor. Eram quase dez horas, tempo de apagar as luzes. Compartilhava um beliche com Robbie, um tipo de Kentucky que assaltara 240 casas antes de o apanharem. Vendia as armas, os micro-ondas e as aparelhagens estereofónicas para comprar cocaína. Robbie era um veterano de Trumble, onde se encontrava há quatro anos, e por isso escolhera a cama de baixo. Beech subiu para a de cima, deu as boas-noites a Robbie e apagou a luz.
- Boa-noite, Hatlee - disse Robbie em voz baixa.
Às vezes, conversavam às escuras. As paredes eram de escória prensada, a porta de metal e as palavras de ambos confinavam-se à pequena cela. Robbie tinha vinte e cinco anos e faria quarenta e cinco antes de sair de Trumble. Apanhara vinte e quatro anos, um por cada dez casas assaltadas.
O período entre o deitar e o adormecer era o pior do dia. O passado regressava, vingativo - os erros cometidos, a infelicidade, o que se podia e o que se devia ter tido. Por mais que tentasse, Hatlee não conseguia apenas fechar os olhos e adormecer. Primeiro, tinha de se autopunir. Tinha uma neta que nunca vira, e começava sempre por ela. Seguiam-se os três filhos. Esquecia a mulher. Mas pensava sempre no dinheiro dela. E nos amigos. Ah, os amigos. Onde estavam eles agora?
Três anos na prisão e, sem futuro, só existia o passado. Até o pobre Robbie lá em baixo sonhava com um novo começo aos quarenta e cinco anos. Não era o caso de Beech. Às vezes, quase ansiava pelo solo quente do Texas, por cima do seu corpo, atrás da igrejinha.
com certeza que alguém lhe havia de comprar uma lápide.
VI
Para Quince Garbe, o dia 3 de Fevereiro seria o pior da sua vida. Por pouco não foi o último, e teria sido se o seu médico não estivesse na cidade. Não conseguiu arranjar uma receita de comprimidos para dormir e não teve coragem de apontar a arma a si próprio.
Começou agradavelmente com um pequeno-almoço tardio, uma tigela de cereais junto da lareira do escritório, sozinho. A mulher de vinte e seis anos já fora para a cidade, para mais um dia de chás de caridade, de recolhas de fundos e do voluntarismo frenético característico de um meio pequeno que a mantinha ocupada e longe do marido.
Estava a nevar quando Garbe saiu da sua casa de banqueiro, grande e pretensiosa, na zona limítrofe de Bakers, lowa. Levou dez minutos a chegar ao emprego no seu grande Mercedes preto, com dez anos. Garbe era um homem importante na terra, membro de uma família proprietária do banco há várias gerações. Estacionou no seu lugar reservado atrás do banco, que dava para a Main Street, e deu um salto aos correios, o que fazia duas vezes por semana. Há vários anos que tinha ali uma caixa postal, longe da mulher e em especial da secretária.
Como era um dos poucos ricos que havia em Bakers, raramente cumprimentava as pessoas que encontrava na rua. Não se importava com o que elas pensavam. Adoravam o pai dele, o que bastava para manter o negócio.
Mas, quando o velho morresse, seria Garbe obrigado a alterar a sua personalidade? Seria forçado a sorrir nos passeios de Bakers e a aderir ao Clube dos Rotários, fundado pelo avô?
Quince estava cansado de depender dos caprichos do público por causa da sua segurança. Estava cansado de confiar no pai para manter os clientes satisfeitos. Estava cansado do banco, cansado de lowa e cansado da mulher, e o que ele mais desejava nessa manhã de Fevereiro era uma
carta do seu adorado Ricky. Umas linhas breves e simpáticas a confirmar o encontro.
O que Quince verdadeiramente desejava era passar três dias ardentes com Ricky, no barco do amor. Talvez nunca mais voltasse.
Bakers tinha dezoito mil habitantes e a estação central dos correios na Main Street estava geralmente cheia. E havia sempre um funcionário diferente do outro lado do balcão. Fora assim que ele alugara a caixa postal - esperara que um novo funcionário entrasse de serviço. A CMT Investments era o endereço oficial. Quince foi direito à caixa, que ficava a um canto, como centenas de outras.
Havia três cartas e, ao tirá-las e enfiá-las no bolso do casaco, ficou estarrecido ao ver que uma era de Ricky. Correu para a Main Street e, pouco depois, entrou no banco, precisamente às dez da manhã. O pai já lá estava há quatro horas, mas há muito que ambos tinham deixado de discutir acerca do horário de trabalho de Quince. Como sempre, parou junto da secretária e tirou as luvas à pressa, como se tivesse assuntos importantes à espera. Ela entregou-lhe a correspondência, duas mensagens telefónicas, e lembrou-lhe que, daí a duas horas, tinha um almoço com um agente imobiliário local.
Quince entrou no gabinete, fechou a porta à chave, atirou as luvas para um lado e o casaco para outro e abriu a carta de Ricky. Sentou-se no sofá e pôs os óculos, ofegante, não pela caminhada, mas pela ansiedade. Estava no auge da excitação quando começou a ler a carta.
As palavras tiveram o efeito de balas. Depois do segundo parágrafo, Quince soltou um estranho e doloroso «Ai». Em seguida, dois «Oh, meu Deus». Por fim, um «Filho da mãe», em voz baixa e sibilante.
Silêncio, que a secretária está sempre à escuta, pensou. A primeira leitura provocou o choque; a segunda a incredulidade. A realidade começou a instalar-se à terceira leitura, e o lábio de Quince começou a tremer. Não chores, raios, disse ele com os seus botões.
Atirou a carta para o chão e começou a andar à volta da secretária, ignorando o melhor que podia os rostos alegres da mulher e dos filhos. Vinte anos de fotografias de turmas e de retratos de família alinhavam-se na sua credencia, mesmo por baixo da janela. Quince olhou lá para fora e observou a neve, agora mais forte, que se acumulava nos passeios. Deus sabia como ele detestava Bakers. Julgara que conseguiria partir e dar uma escapadela à praia, onde se divertiria com um belo jovem, e talvez nunca mais voltar.
Agora partiria em circunstâncias diferentes.
Aquilo era uma piada, uma brincadeira, disse- a si próprio, mas nesse mesmo instante percebeu. O cerco era muito apertado. O golpe fora em cheio. Fora enganado por um profissional.
Passara a vida a combater os seus desejos. Acabara por arranjar coragem para lutar contra o conformismo e agora fora alvejado entre os olhos por um condenado. Estúpido, estúpido, estúpido. Como é que se envolvera numa situação tão difícil?
Os pensamentos erráticos surgiam de todas as direcções enquanto observava a neve. O suicídio era uma resposta fácil, mas o seu médico não estava na cidade e Quince não queria verdadeiramente morrer. Pelo menos por enquanto. Não sabia ao certo onde iria arranjar cem mil dólares, mas podia enviá-los sem levantar suspeitas. O velho pagava-lhe uma miséria e mantinha um controlo apertado sobre o dinheiro. A mulher insistia em verificar o extracto da conta. Havia algum dinheiro em fundos de pensões, mas Quince não lhes podia mexer sem o conhecimento dela. A vida de um banqueiro rico de Bakers, lowa, valia um título, um Mercedes, uma grande casa hipotecada e uma mulher que se dedicava a actividades sociais. Oh, como ele gostaria de fugir!
Iria para a Florida de qualquer maneira e enfrentaria este condenado, denunciaria a sua tentativa de extorsão e conseguiria que se fizesse justiça. Ele, Quince Garbe, não fizera nada de mal. com certeza estava a ser perpetrado um crime. Talvez pudesse contratar um detective e um advogado que o protegessem. Iriam até ao fundo desta fraude.
Mesmo que arranjasse o dinheiro e o enviasse de acordo com as instruções, a porta ficaria aberta e Ricky, fosse ele quem fosse, poderia querer mais. O que impediria Ricky de continuar a extorquir-lhe dinheiro?
Se tivesse coragem, fugiria para Key West, ou para algum sítio quente onde nunca nevasse, e viveria como lhe apetecesse, e deixaria que aquela gentalha miserável de Bakers, lowa, dissesse mal dele durante meio século. Mas Quince não tinha coragem e era isso que o entristecia.
Os filhos observavam-no, sorrindo com os seus rostos sardentos e os aparelhos nos dentes. Quince estava destroçado e sabia que havia de encontrar o dinheiro e de enviá-lo seguindo à risca as instruções. Tinha de protegê-los. Eles não tinham feito nada de mal.
As acções do banco valiam cerca de dez milhões de dólares e continuavam a ser fortemente controladas pelo velho, que nesse momento andava a ladrar pelo corredor. O velho tinha oitenta e um anos e muita
vida, mas sempre eram oitenta e um anos. Quando morresse, Quince teria de se haver com uma irmã que vivia em Chicago, mas o banco seria dele. Vendê-lo-ia o mais depressa possível e sairia de Bakers com alguns milhões no bolso. Mas, até lá, seria obrigado a fazer o que sempre fizera, a manter o velho contente.
Se Quince fosse desmascarado por um condenado, o pai ficaria destroçado e ainda se agarraria mais às acções. A irmã de Chicago é que ficaria com tudo.
Quando o barulho deixou de se ouvir lá fora, Quince esgueirou-se pela porta e passou pela secretária para ir tomar um café. Ignorou-a quando voltou para o gabinete, fechou a porta à chave, leu a carta pela quarta vez e ordenou os pensamentos. Havia de arranjar o dinheiro e havia de o mandar segundo as instruções. Furioso, esperava e rezava para que Ricky desaparecesse. Se tal não se verificasse, se viesse buscar mais, Quince telefonaria ao seu médico e tomaria uns comprimidos. O agente imobiliário com quem ia almoçar era um tipo que jogava forte, corria riscos e limava arestas, talvez um criminoso. Quince começou a fazer planos. Os dois haviam de arranjar alguns empréstimos um pouco obscuros; sobreavaliar algum terreno, emprestar o dinheiro, vender a um testa-de-ferro, etc. Ele sabia como havia de proceder.
Quince havia de arranjar o dinheiro.
Os anúncios catastrofistas da campanha de Lake aterraram com estrondo, pelo menos na opinião pública. A corrida às urnas na primeira semana revelou um aumento drástico no reconhecimento do nome, de 2 para 20 por cento, mas ninguém gostou dos anúncios. Eram assustadores, e as pessoas não queriam pensar em guerras, nem em terrorismo, nem em velhas bombas nucleares a serem arrastadas através de montanhas às escuras. As pessoas viam os anúncios (era impossível evitá-los) e ouviam a mensagem, mas a maioria dos eleitores não queriam ser incomodados. Andavam demasiado ocupados a fazer dinheiro e a gastá-lo. Quando eram confrontados com os assuntos em períodos económicos florescentes, limitavam-se aos velhos lugares-comuns dos valores familiares e das reduções nos impostos.
Os primeiros entrevistadores do candidato Lake trataram-no como mais um excêntrico até ele anunciar, em directo, que a sua campanha recebera mais de 11 milhões de dólares em menos de uma semana.
- Esperamos conseguir vinte milhões dentro de duas semanas disse ele sem fanfarronices, e aí começou a verdadeira notícia. Teddy Maynard garantira-lhe que o dinheiro apareceria.
Vinte milhões em duas semanas era algo que nunca acontecera, e no fim desse dia Washington foi devorada pela notícia. O frenesi atingiu o auge quando Lake foi entrevistado, mais uma vez em directo, por duas das três cadeias de televisão no telejornal da noite. O homem tinha um aspecto formidável: um grande sorriso, falinhas mansas, um belo fato e um bonito cabelo. O homem era elegível.
A confirmação final de que Aaron Lake era um sério candidato chegou mais tarde, quando um dos seus opositores o atacou. O senador Britt de Maryland andava em campanha há um ano e conquistara um forte segundo lugar em New Hampshire. Reunira nove milhões de dólares, gastara muito mais do que isso e fora obrigado a passar metade do tempo a pedir dinheiro em detrimento da campanha. Estava cansado de pedir, cansado de cortar no pessoal, cansado de se preocupar com os anúncios na televisão e, quando um repórter lhe perguntou o que pensava de Lake e dos seus vinte milhões de dólares, Britt disparou: «É dinheiro sujo. Nenhum candidato honesto consegue arranjar tanto tão depressa.» Britt distribuía apertos de mão à chuva, à entrada de uma fábrica de produtos químicos no Michigan.
O comentário sobre o dinheiro sujo foi recebido com muita satisfação pela imprensa e depressa se espalhou.
Aaron Lake tinha chegado.
O senador Brittde Maryland tinha outros problemas, embora tentasse esquecê-los.
Havia nove anos, andara pelo Sudeste Asiático em busca de factos. Como sempre, ele e os colegas do Congresso viajavam em primeira classe, ficavam hospedados em belos hotéis e comiam lagosta, tudo na tentativa de estudarem a pobreza existente na região e de irem ao fundo da controvérsia acesa desencadeada pela Nike e pela sua utilização da mão-de-obra barata. No princípio da viagem, Britt conheceu uma jovem em Banguecoque e, fingindo-se doente, resolveu ficar para trás enquanto os companheiros continuavam a sua busca de factos no Laos e no Vietname.
A jovem chamava-se Payka e não era prostituta. Tinha vinte e um anos e era secretária na embaixada dos Estados Unidos em Banquecoque. Como Paika era paga pelo país dele, o interesse de Britt por ela era eivado de um leve sentido de propriedade. Britt estava longe de Maryland,
da mulher, dos cinco filhos e dos seus eleitores. Paika era estonteante e escultural, e estava ansiosa por ir estudar para os Estados Unidos.
O que começou por ser uma aventura depressa se transformou num romance, e o senador Britt regressou contrafeito a Washington. Dois meses mais tarde, voltou a Banguecoque, devido a um assunto premente mas secreto, conforme disse à mulher.
Em nove meses, foi quatro vezes à Tailândia, sempre em primeira classe, sempre a expensas dos contribuintes, e até os viajantes crónicos do Senado começaram a murmurar. Britt puxou os cordelinhos junto do Departamento de Estado e tudo indicava que Payka iria para os Estados Unidos.
Tal nunca aconteceu. No quarto e último encontro, Payka confessou que estava grávida. Era católica e abortar estava fora de questão. Britt reagiu com dureza, disse que precisava de tempo para pensar e fugiu de Banguecoque de madrugada. A busca dos factos chegara ao fim.
No princípio da sua carreira de senador, Britt, implacável quanto às questões fiscais, arrancara um ou dois títulos na imprensa por ter criticado o esbanjamento da CIA. Teddy Maynard não dissera uma palavra, mas é claro que não apreciara o destaque dado ao assunto. O dossier bastante fino de Britt foi limpo do pó e passou a ser prioritário, e quando o senador foi a Banguecoque pela segunda vez a CIA acompanhou-o. Ele não soube, evidentemente, mas eles foram no mesmo voo, também em primeira classe, e tinham gente no terreno em Banguecoque. Vigiaram o hotel onde os dois pombinhos passaram três dias. Tiraram-lhes fotografias a comer em belos restaurantes. Viram tudo. Britt era distraído e estúpido.
Mais tarde, quando a criança nasceu, a CIA conseguiu ter acesso aos registos do hospital e depois à ficha clínica para comparar o tipo de sangue e o ADN. Payka continuava a trabalhar na embaixada e foi fácil de encontrar.
Quando a criança tinha um ano, foi fotografada ao colo da mãe num parque da baixa da cidade. Seguiram-se mais fotografias e, quando o menino tinha quatro anos, começou a apreciar à distância o senador Dan Britt de Maryland.
O papá desaparecera há muito. O zelo de Britt na busca de factos no Sudeste Asiático desvaneceu-se drasticamente, e o senador concentrouse noutras áreas críticas do mundo. Em devido tempo, foi acometido de ambições presidenciais, a velha doença que mais tarde ou mais cedo afecta todos os senadores. Nunca mais soubera de Payka, e não lhe fora difícil esquecer esse pesadelo.
Britt tinha cinco filhos lcgítimos e uma mulher muito indiscreta. Formavam uma equipa, o senador e Mrs. Britt, e ambos acreditavam cegamente nos valores familiares e na máxima « temos de Salvar os Nossos Filhos!» Escreveram um livro sobre a educação dos filhos no seio de uma cultura americana doente, apesar de o mais velho ter apenas treze anos. Quando o presidente se viu a braços com desventuras sexuais, o senador Britt tornou-se a virgem mais pura de Washington.
Ele e a mulher tocaram num ponto sensível, e o dinheiro jorrou dos conservadores. Britt saiu-se bem nas convenções do partido em lowa, conseguiu um segundo lugar em New Hampshire, mas estava a ficar sem dinheiro e a descer nas sondagens.
Iria descer ainda mais. Depois de uma jornada de campanha brutal, a sua equipa instalou-se num motel de Dearborn, Michigan, para passar a noite. Foi aí que o senador acabou por ser confrontado com o sexto filho, mas não pessoalmente.
O agente chamava-se McCord e seguira Britt durante uma semana, fazendo-se passar por jornalista. Disse que trabalhava para um jornal de Tallahassee, mas a verdade é que era agente da CIA há onze anos. Havia tantos repórteres à volta de Britt que ninguém se lembrou de verificar.
McCord fez-se amigo de um adjunto e, de madrugada, num bar do Holiday Inn, confessou que tinha algo em seu poder que destruiria o candidato Britt. Afirmou que lhe fora dado por um rival, o governador Tarry. Era um bloco de apontamentos, com uma bomba em cada página: um depoimento juramentado de Payka em que ela fornecia os pormenores principais do caso de ambos; duas fotografias do filho, a última das quais fora tirada havia um mês, e em que a criança, agora com sete anos, se parecia cada vez mais com o pai; análises de sangue e do ADN que revelavam traços indeléveis entre pai e filho; e documentos de viagens que mostravam, preto no branco, que o senador Britt estoirara trinta e oito mil e seiscentos dólares do dinheiro dos contribuintes para manter o seu caso amoroso do outro lado do mundo.
O acordo era simples e frontal: o senador retirava-se imediatamente da corrida e a história nunca seria divulgada. McCord, o jornalista, era ético e não tinha estômago para aquilo. O governador Tarry abafaria o caso se Britt desaparecesse. Ele que largasse o osso, e nem sequer Mrs. Britt viria a saber de nada.
Pouco depois da uma hora da madrugada, em Washington, Teddy Maynard recebeu o telefonema de McCord. A encomenda fora entregue.
Britt tencionava dar uma conferência de imprensa no dia seguinte, ao meio-dia.
Teddy tinha dossiers sujos de centenas de políticos, passados e presentes. Enquanto grupo, eram presas fáceis. Pusessem-lhes uma bela jovem no caminho, e em geral conseguiam recolher qualquer coisa para o dossier. Se as mulheres não resultassem, o dinheiro era infalível. Era vê-los a viajar, era vê-los a rebolar-se na cama com os angariadores de votos, era vê-los a cederem a qualquer governo estrangeiro que fosse suficientemente esperto para enviar rios de dinheiro para Washington, era vê-los a organizarem as suas campanhas e a formarem as suas comissões para recolha de fundos. Bastava vigiá-los, e os dossiers continuavam a engordar. Seria bom que os russos fossem assim tão fáceis de enganar.
Embora desprezasse os políticos enquanto grupo, Maynard respeitava alguns. Aaron Lake era um deles. Nunca perseguira mulheres, nunca bebera muito nem ganhara maus hábitos, nunca se mostrava preocupado com dinheiro e nunca tivera pendor para o espalhafato. Quanto mais observava Lake, mais gostava dele.
Tomou o último comprimido da noite e deitou-se. com que então, Britt desaparecera. Boa jogada! Era uma pena que não pudesse soprar a história. Aquele hipócrita merecia uma ensinadela. Guarda-a, disse ele com os seus botões. E volta a usá-la. Talvez o presidente Lake precisasse de Britt um dia e aquele rapazinho da Tailândia desse jeito.
VII
Picasso ia processar Sherlock e outros arguidos anónimos para tentar impedi-los de urinarem nas suas rosas. Um pouco de urina transviada não afectaria o equilíbrio da vida em Trumble, mas Picasso também queria uma indemnização por perdas e danos de quinhentos dólares. Quinhentos dólares era um caso sério.
A disputa rebentara no Verão anterior, quando Picasso apanhara Sherlock em flagrante e o director-adjunto acabara por intervir. Pedira aos Confrades que resolvessem o assunto. O processo foi apresentado; depois Sherlock contratou um ex-advogado chamado Ratliff, outro perito em fuga ao fisco, para travar, atrasar, adiar e arquivar casos frívolos, a rotina habitual para aqueles que exerciam advocacia no exterior. Mas a táctica de Ratliff não agradou à Confraria, e nem Sherlock nem o seu advogado eram muito respeitados pelo painel.
O roseiral de Picasso era um pedaço de terra cuidadosamente tratada ao lado do ginásio. Custara-lhe três anos de guerras burocráticas, o tempo que levara a convencer um qualquer manga-de-alpaca de Washington de que aquele passatempo era e sempre fora terapêutico, visto que Picasso sofria de vários transtornos. Assim que o jardim foi aprovado, o director apressou-se a assinar e Picasso começou a cavá-lo com todas as suas forças. Recebia as rosas de um fornecedor de Jacksonville, o que implicava mais uma série de papelada.
O seu trabalho consistia em lavar louça no refeitório, com o que ganhava trinta cêntimos por hora. O director recusou o pedido para que ele fosse considerado jardineiro, e ficou assente que as rosas eram um passatempo. Na época delas, era ver Picasso no seu pedaço de terra, ao princípio e ao fim do dia, de gatas, a lavrar, a cavar e a regar. Até falava com as suas flores. ,
As rosas em questão eram sonho-de-belinda, de um rosa-pálido não particularmente bonito, mas que Picasso adorava. Quando elas chegavam do fornecedor, toda a gente em Trumble sabia que as belindas estavam lá. Picasso plantava-as amorosamente à frente e no meio do seu jardim.
Sherlock começou a urinar em cima delas sem motivo. De qualquer modo, não gostava de Picasso por este ser um conhecido mentiroso, e urinar nas rosas do homem parecia-lhe apropriado. Seguiram-se outros. Sherlock estimulava-os, garantindo que eles estavam de facto a ajudar as rosas a crescer com o seu fertilizante.
As belindas perderam o seu tom rosado e começaram a empalidecer, e Picasso ficou aterrado. Um informador deixou-lhe um bilhete debaixo da porta, e o segredo foi desvendado. O seu adorado jardim estava a ser um ponto de rega de eleição. Dois dias depois, Picasso armou uma emboscada a Sherlock, apanhou-o em flagrante e os dois homens brancos, gordos e de meia idade, envolveram-se numa desagradável partida de luta livre no passeio.
As plantas ganharam um tom amarelo baço, e Picasso processou-o.
Quando por fim chegou o julgamento, depois de vários meses de adiamentos provocados por Ratliff, os Confrades já estavam cansados. Tinham delegado previamente o caso no juiz Finn Yarber, cuja mãe criara rosas em tempos; e, depois de algumas horas de investigação, ele informara os outros dois que, de facto, a urina não alterava a cor das plantas. Por isso, dois dias antes da audiência tinham tomado a decisão: proibiriam Sherlock e os outros porcos de borrifarem as rosas de Picasso, mas não aprovariam qualquer indemnização.
Passaram três horas a ouvir homens adultos a discutir acerca de quem mijava onde e quando, e com que frequência. De vez em quando, Picasso, agindo como advogado de si mesmo, ficava à beira das lágrimas e pedia às suas testemunhas que se queixassem dos seus amigos. Ratliff, o advogado de defesa, foi cruel, contundente e redundante e, uma hora depois, era óbvio que merecia ser impedido de exercer, fossem quais fossem os seus crimes.
O juiz Spicer passou o tempo a estudar as apostas nos jogos de basquetebol universitário. Quando não conseguia contactar Trevor, simulava apostas para todos os jogos. Em dois meses, atingira três mil e seiscentos dólares, no papel. Estava a sair-se bem, a ganhar nas cartas, a ganhar no desporto, e tinha dificuldade em adormecer à noite, sonhando
com a sua nova vida, em Las Vegas ou nas Bahamas, como um profissional. com ou sem a mulher.
O juiz Beech franziu o sobrolho, profundamente convencido da sua decisão judicial, e parecia tomar apontamentos exaustivos, quando de facto estava a fazer o rascunho de outra carta para Curtis em Dálias. Os Confrades tinham resolvido aliciá-lo outra vez. Vestindo a pele de Ricky, Beech explicava que um guarda cruel da unidade de reabilitação o ameaçava de toda a espécie de ataques físicos vis, a menos que Ricky arranjasse algum «dinheiro para protecção». Ricky precisava de cinco mil dólares para garantir a sua segurança em relação à besta. Poderia Curtis emprestar-lhos?
- Podemos apressar isto? - perguntou Beech em voz alta, interrompendo o ex-advogado Ratliff mais uma vez.
Quando era juiz a sério, Beech conseguia a proeza de ler revistas enquanto ouvia os advogados a perorar diante dos jurados. Uma admoestação sonora e oportuna do tribunal mantinha todos bem atentos.
Beech escreveu: «É um jogo viciado o que eles jogam aqui. Nós chegamos feitos em pedaços. A pouco e pouco, eles limpam-nos, secam-nos, colam-nos, pedacinho a pedacinho. Esvaziam-nos a cabeça, ensinam-nos disciplina e confiança e preparam-nos para regressar à sociedade. Fazem um bom trabalho, mas permitem que aqueles rufiões ignorantes que guardam os recreios nos ameacem, apesar de estarmos ainda muito frágeis, e ao fazê-lo destroem o que nos deu tanto trabalho a construir. Estou muito assustado com este homem. Escondo-me no meu quarto quando devia estar a apanhar sol e a fazer pesos e halteres. Não consigo dormir. Sinto a falta do álcool e das drogas como forma de escape. Por favor, Curtis, empreste-me cinco mil dólares para eu conseguir comprar este tipo, para eu conseguir terminar a minha recuperação e sair daqui inteiro. Quando nos conhecermos, quero ter saúde e estar em grande forma.»
O que pensariam os seus amigos? O Meritíssimo Hatlee Beech, juiz federal, a escrever prosa como um maricas, a extorquir dinheiro a pessoas inocentes.
Não tinha amigos. Não tinha regras. As leis que em tempos venerara tinham-no atirado para o sítio em que se encontrava e que, nesse momento, era o refeitório de uma prisão, envergando a toga verde desbotada de um membro do coro de uma igreja de negros e ouvindo uns réus furiosos a discutirem por causa da urina.
- Você já fez essa pergunta oito vezes - rosnou ele a Ratliff que, obviamente, já vira muitas séries de advogados de má qualidade na televisão.
Como o caso era do juiz Yarber, ele tinha pelo menos de fingir que estava atento. Não estava, nem se preocupava com as aparências. Como de costume, estava nu por baixo da toga e sentado de pernas cruzadas, a limpar as unhas compridas dos dedos dos pés com um garfo de plástico.
- Achas que elas ficavam castanhas se eu cagasse em cima delas?
- gritou Sherlock a Picasso, e no refeitório foi a gargalhada geral.
- A linguagem, por favor - admoestou o juiz Beech.
- Ordem no tribunal - disse T. Karl, o bobo da corte, debaixo da sua cabeleira cinzenta.
Não lhe competia exigir ordem na sala, mas era uma coisa que ele fazia bem, e os Confrades deixavam passar. Deu uma pancada seca com o martelo e disse:
- Ordem, senhores.
Beech escreveu: «Por favor, ajude-me, Curtis. Não tenho mais ninguém para quem me virar. Estou outra vez a ir-me abaixo. Tenho medo de outra recaída. Tenho medo de não voltar a sair daqui. Despache-se.»
Spicer apostou cem dólares no Indiana contra o Purdue, no Duke contra o Clemson, no Alabama contra o Vandy, no Wisconsin contra o Illinois. O que sabia ele do basquetebol de Wisconsin?, perguntou a si próprio. Não tinha importância. Era um jogador profissional, e dos bons. Se os noventa mil dólares ainda estivessem enterrados atrás da arrecadação, havia de os transformar num milhão dentro de um ano.
- Basta - disse Beech, levantando a mão.
- Também já ouvi o suficiente - disse Yarber, esquecendo as unhas dos pés e inclinando-se sobre a mesa.
Os Confrades aproximaram-se uns dos outros e deliberaram, como se o desfecho pudesse abrir um grave precedente, ou pelo menos ter um impacte profundo no futuro da jurisprudência americana. Franziram o sobrolho, coçaram a cabeça e, aparentemente, discutiram sobre os méritos do caso. Entretanto, o pobre Picasso continuava sentado, sozinho, quase a chorar, exausto com a táctica de Ratliff.
O juiz Yarber pigarreou e disse:
- Por dois votos contra um, chegámos a uma decisão. Vamos proibir todos os reclusos de urinarem nas malditas rosas. Quem for apanhado a
fazê-lo apanha uma multa de cinquenta dólares. Desta vez, nao haverá
lugar a nenhuma indenização por perdas e danos com um sentido de oportunidade perfeito, T. Karl buteu com o martelo na mesa e gritou:
- Está terminada a sessão. Todos de pé. Ninguém se mexeu, evidentemente.
- Eu quero recorrer - gritou Picasso.
- Também eu - disse Sherlock.
- Deve ser uma boa decisão - disse Yarber, pegando na toga e levantando-se. - Ambas as partes estão descontentes.
Beech e Spicer levantaram-se também, e os Confrades saíram pomposamente do refeitório. Um guarda meteu-se entre os litigantes e as testemunhas e disse:
- A sessão está encerrada, rapazes. Voltem ao trabalho.
O director-geral da Hummand, uma empresa de Seattle que fabricava mísseis e maquinaria para despistagem de radares, fora em tempos um congressista muito próximo da CIA. Teddy Maynard conhecia-o bem. Quando o director-geral anunciou numa conferência de imprensa que a sua empresa conseguira angariar cinco milhões de dólares para a campanha de Lake, a CNN interrompeu um programa sobre lipoaspiração para transmitir o acontecimento em directo! Quinhentos trabalhadores da Hummand tinham passado cheques de mil dólares cada, o máximo permitido pelas leis federais. O director-geral tinha os cheques guardados num cofre que mostrou às câmaras e depois meteu-se num jacto da empresa e foi entregá-los à sede da campanha de Lake em Washington.
Onde estivesse o dinheiro estava o vencedor. Desde o anúncio da candidatura de Lake que mais de onze mil trabalhadores da indústria aeroespacial e da defesa tinham contribuído com mais de 8 milhões de dólares. Os correios andavam a distribuir os seus cheques. Os seus sindicatos tinham enviado quase tanto e prometiam mais dois milhões. A equipa de Lake contratara uma empresa de contabilidade de Washington só para processar e contar o dinheiro.
O director-geral da Hummand chegou a Washington no meio da maior ostentação. O candidato Lake encontrava-se noutro jacto particular acabado de alugar por quatrocentos mil dólares por mês. Quando aterrou em Detroit, aguardavam-no dois Suburbans pretos, cujo aluguer custava mil dólares por mês. Lake tinha agora uma escolta, um grupo de pessoas
que se deslocavam em sincronia com ele, para onde quer que fosse e, embora tivesse a certeza de que se habituaria à situação, a princípio enervou-se. Andava sempre rodeado de desconhecidos. Jovens de aspecto grave, fato escuro e com pequenos microfones nos ouvidos e armas agarradas ao corpo. No avião seguiam dois agentes dos serviços secretos e esperavam-no mais três junto dos Suburbans.
E havia Floyd, do gabinete do Congresso. Floyd era um jovem limitado, pertencente a uma família distinta do Arizona, que só servia para fazer recados. Agora era motorista. Floyd agarrou-se ao volante de um Suburban, com Lake à frente e dois agentes e uma secretária atrás. Dois assessores e três agentes meteram-se no outro e partiram para o centro de Detroit, onde eram aguardados por jornalistas sérios da televisão local.
Lake não tinha tempo para fazer discursos ou para andar pelos subúrbios, nem para comer lampreia ou ficar à chuva, à porta de fábricas em laboração. Não podia andar a pé para as câmaras verem, participar em reuniões municipais, atravessar guetos em ruínas e atacar planos de acção falidos. Não havia tempo para fazer tudo o que se esperava dos candidatos. Ele estava a fazer uma entrada tardia, sem trabalho de sapa, sem raízes, sem apoio local de qualquer espécie. Lake tinha um rosto atraente, uma voz agradável, belos fatos, uma mensagem premente e muito dinheiro.
Se comprar a televisão pudesse comprar as eleições, Aaron Lake estaria prestes a conseguir um novo emprego.
Telefonou para Washington, falou com o seu homem do dinheiro e recebeu a notícia do anúncio dos cinco milhões. Nunca ouvira falar da Hummand.
- É uma empresa pública? - perguntou.
Não, responderam-lhe. Muito privada. Facturava quase um milhão por ano. Inovadora em equipamento para despistagem de radares. Podia fazer milhões se o homem certo se encarregasse das forças armadas e recomeçasse a gastar.
Já tinha dezanove milhões de dólares na mão, um recorde, evidentemente. E iam rever as projecções. A campanha de Lake iria angariar trinta milhões nas primeiras duas semanas. Não era possível gastar dinheiro tão depressa.
Lake desligou o telemóvel e devolveu-o a Floyd, que parecia perdido no trânsito.
- Daqui em diante, usaremos helicópteros - anunciou Lake por cima do ombro à secretária, que tomou nota das instruções: «Procurar helicópteros.»
Lake escondeu-se atrás dos óculos escuros e tentou analisar trinta milhões de dólares. A passagem de conservador na esfera fiscal para candidato em roda livre era estranha, mas o dinheiro tinha de ser gasto. Não fora extorquido aos contribuintes; pelo contrário, fora oferecido de livre vontade. Lake raciocinava. Depois de eleito, continuaria a sua luta em prol dos trabalhadores.
Voltou a pensar em Teddy Maynard, sentado numa sala escura algures nos subterrâneos de Langley, com as pernas embrulhadas numa manta, com o rosto crispado pelas dores, a puxar cordelinhos que só ele podia puxar, a fazer com que o dinheiro caísse das árvores. Lake nunca saberia as coisas que Teddy estava a fazer por ele, nem queria saber.
O director de operações para o Médio Oriente chamava-se Lufkin, um homem de vinte anos em que Teddy confiava cegamente. Havia catorze horas, estava em Telavive. Agora encontrava-se na sala de guerra de Teddy, com um aspecto fresco e atento. A sua mensagem tinha de ser entregue pessoalmente, cara a cara, sem fios, sinais ou satélites. E o que fosse dito entre eles nunca seria repetido. Era assim há muitos anos.
- Está iminente um ataque à nossa embaixada no Cairo - disse Lufkin.
Não houve reacção de Teddy. Nem um sobrolho franzido, nem surpresa, nem um semicerrar de olhos, nada. Recebera tantas vezes notícias como esta.
- Do Yidal?
- Sim. O responsável máximo deles foi visto no Cairo na semana passada.
- Visto por quem?
-Pelos israelitas. Também seguiram dois camiões cheios de explosivos vindos de Trípoli. Parece estar tudo a postos.
- Quando?
- Iminente.
- Até que ponto?
- Dentro de uma semana, creio eu.
Teddy puxou o lobo da orelha e fechou os olhos. Lufkin tentou não olhar e sabia que era preferível não fazer perguntas. Partiria dentro de
pouco tempo, e voltaria para o Médio Oriente. E ficaria à espera. O ataque à embaixada podia registar-se sem qualquer aviso. Dezenas de pessoas seriam mortas e ficariam mutiladas. Uma cratera na cidade ficaria a arder durante vários dias, e em Washington erguer-se-iam dedos acusadores. A CIA seria de novo responsabilizada.
Nada disto perturbava Teddy Maynard. Tal como Lufkin aprendera, às vezes Teddy precisava do terror para levar a cabo o que pretendia.
Ou talvez a embaixada fosse poupada e o ataque travado pelos comandos egípcios que trabalhavam com os Estados Unidos. A CIA seria elogiada pelos seus excelentes agentes secretos. Isso também não perturbaria Teddy.
- E você tem a certeza? - perguntou ele. „,
- Sim, tanto quanto podemos ter nestas situações.
Lufkin não sabia, evidentemente, que o director andava a conspirar para eleger um presidente. Lufkin mal ouvira falar de Aaron Lake. Para ser franco, era-lhe indiferente quem ganhasse as eleições. Estava no Médio Oriente há tempo suficiente para saber que a pessoa que estabelecia a política americana na região não interessava verdadeiramente.
Partiria daí a três horas no Concorde para Paris, onde passaria um dia antes de regressar a Jerusalém.
- Vá para o Cairo - disse Teddy, sem abrir os olhos.
- com certeza. E faço o quê?
- Espere.
- Espero por quê?
- Espere que o chão trema. Afaste-se da embaixada.
A reacção inicial de York foi de horror.
- Você não pode passar esse maldito anúncio, Teddy - disse ele. É demasiado violento. Nunca vi tanto sangue na minha vida.
- Isso agrada-me - disse Teddy carregando num botão do controlo remoto. - Um anúncio de campanha demasiado violento. Nunca se fez.
Viram-no outra vez. Começava com o som de uma bomba e depois viam-se as casernas dos fuzileiros americanos em Beirute; fumo, entulho, caos, fuzileiros a serem retirados dos escombros, corpos mutilados, cadáveres de fuzileiros alinhados. O presidente Reagan dirigia-se à imprensa e jurava vingança. Mas a ameaça parecia oca. Seguia-se a fotografia de um soldado americano entre dois homens armados e mascarados. Uma voz pesada e terrível dizia: «Desde 1980 que centenas
de americanos foram assassinados por terroristas em todo o mundo.» Outro cenário de bombas, mais sobreviventes ensanguentados e atordoados, mais fumo e caos. «Juramos sempre vingança. Ameaçamos sempre descobrir e castigar os responsáveis.» Imagens rápidas do presidente Bush em duas ocasiões distintas a prometer retaliação - outro ataque, mais cadáveres. Depois, terroristas à porta de um jacto comercial a arrastarem o corpo de um soldado americano. O presidente Clinton à beira das lágrimas, com a voz a fraquejar, a dizer: «Não descansaremos enquanto não encontrarmos os responsáveis.» Em seguida, o rosto atraente mas sério de Aaron Lake, olhando frontalmente para a câmara, a entrar nas nossas casas e a dizer: «O facto é que não retaliamos. Reagimos com palavras, gabamo-nos e ameaçamos, mas na realidade enterramos os nossos mortos e depois esquecemo-nos deles. Os terroristas estão a vencer a guerra porque nos falta a coragem para ripostar. Quando eu for o vosso presidente, usaremos as nossas novas forças armadas para combater o terrorismo onde quer que o encontremos. Nenhuma morte americana ficará sem resposta. Prometo. Não seremos humilhados por pequenos exércitos de maltrapilhos que se escondem nas montanhas. Vamos destruí-los.»
O anúncio durou exactamente sessenta segundos e custou muito pouco a fazer porque Teddy já tinha a sequência, e começaria a passar no horário nobre dentro de quarenta e oito horas.
- Não sei, Teddy - disse York. - É horrível.
- O mundo é horrível.
Teddy gostava do anúncio e isso é que interessava. Lake levantara objecções ao sangue, mas depressa mudara de opinião. O reconhecimento do seu nome subira aos trinta por cento, mas os seus anúncios continuavam a não ser apreciados.
Esperem, dizia Teddy a si mesmo. Esperem que haja mais cadáveres.
VIII
Trevor bebericava um café duplo e não sabia se havia de juntar um ou dois goles generosos de Amaretto apenas para ajudar a dissipar as neblinas matinais quando o telefonema chegasse. O seu gabinete atafulhado não tinha intercomunicador, nem era preciso. Jan podia simplesmente gritar-lhe qualquer mensagem pelo corredor e ele respondia se quisesse. Havia oito anos que ele e esta mesma secretária gritavam um ao outro.
- É de um banco qualquer das Bahamas! - anunciou ela.
Trevor ia entornando o café ao correr para o telefone.
Era um inglês cujo sotaque fora suavizado pelas ilhas. Tinham recebido uma transferência substancial de um banco de lowa.
Substancial até que ponto, quis saber Trevor, tapando o bocal para Jan não ouvir. . Cem mil dólares.
Trevor desligou, juntou o Amaretto, três goles, e sorveu a deliciosa bebida enquanto sorria para a parede, com enlevo. Na sua carreira, os seus honorários nunca se tinham aproximado dos trinta e três mil dólares. Uma vez, resolvera um caso de acidente de automóvel por vinte e cinco mil dólares, recebera sete mil e quinhentos dólares de honorários e gastara tudo em dois meses.
Jan não sabia da existência da conta offshore nem do estratagema que canalizava o dinheiro para lá. Por isso, Trevor foi obrigado a esperar uma hora, a fazer uma série de telefonemas inúteis e a tentar mostrar-se atarefado antes de anunciar que tinha de ir tratar de um assunto muito importante na baixa de Jacksonville e que depois precisavam dele em Trumble. Ela não se importou. Ele desaparecia constantemente e ela tinha leituras que a mantinham ocupada.
Trevor foi a correr para o aeroporto, ia perdendo o avião e bebeu duas cervejas durante o voo de trinta minutos para Fort Lauderdale, e depois mais duas no caminho para Nassau. Já em terra, atirou-se para o banco traseiro de um Cadillac de 1974 pintado de dourado, sem ar condicionado e com um motorista que também estivera a beber. A atmosfera estava quente e húmida, o trânsito lento e a camisa de Trevor colava-se-lhe às costas quando pararam no centro da cidade, junto do Geneva Trust Bank.
Lá dentro, Mr. Brayshears apressou-se a vir receber Trevor e levou-o para o seu pequeno gabinete. Apresentou-lhe uma folha de papel com os detalhes nus e crus: uma transferência de cem mil dólares do First lowa Bank de Dês Moines, remetida por uma entidade sem rosto denominada CMT Investments. O destinatário era outra entidade genérica chamada Boomer Realty, Ltd. Boomer era o nome do perdigueiro favorito de Joe Roy Spicer.
Trevor assinou os formulários destinados a transferir vinte e cinco mil dólares para a sua própria conta, à parte, no Geneva Trust. Era um dinheiro que ocultava à secretária e às Finanças. Os restantes oito mil foram-lhe entregues num envelope grosso, em dinheiro. Trevor guardou-o bem no fundo do bolso das calças de caqui, apertou a mão pequena e mole de Brayshears e saiu do edifício a correr. Sentiu-se tentado a ficar dois dias por ali, a arranjar um quarto na praia e uma cadeira à beira da piscina e a beber rum até se recusarem a servir-lho. A tentação levou-o quase a fugir do aeroporto e a correr para outro táxi. Mas conseguiu dominar-se, determinado a não esbanjar o seu dinheiro desta vez.
Duas horas depois, estava no aeroporto de Jacksonville a beber café forte, sem álcool, e a fazer planos. Meteu-se no carro, chegou a Trumble às quatro e meia e esperou quase meia hora por Spicer.
- Uma surpresa agradável - disse Spicer secamente ao entrar na sala de reuniões dos advogados.
Trevor não levava nenhuma pasta para inspeccionar, e por isso o guarda apalpou-lhe os bolsos e saiu. O dinheiro estava escondido debaixo do tapete do seu carocha.
- Recebemos cem mil dólares de lowa - disse Trevor, deitando uma vista de olhos à porta.
De repente, Spicer ficou radiante ao ver o seu advogado. Registou o «recebemos» no anúncio de Trevor e pensou na fatia destinada à comissão. Mas o plano não resultaria sem auxílio do exterior e, como era habitual, o
advogado era um mal necessário. Até aí, Trevor mostrara-se digno de confiança.
- Está nas Bahamas?
- Está. Acabei de o deixar lá. O dinheiro está escondido, os sessenta e sete mil.
Spicer respirou fundo e saboreou a vitória. Um terço do saque rendia-Ihe vinte e dois mil dólares e uns trocos. Chegara o momento de escrever mais cartas!
Meteu a mão no bolso da camisa cor-de-azeitona da prisão e tirou um recorte de jornal dobrado. Estendeu os braços, examinou-o por instantes e depois disse:
- O Duke está no Tech esta noite. A linha é a onze. Aposte cinco mil dólares no Tech.
- Cinco mil?
- Sim.
- Nunca apostei cinco mil num jogo.
- Que tipo de agente é que você tem?
- De segunda.
- Ouça, se for um agente a sério, sabe lidar com os números. Telefone-lhe assim que puder. Talvez ele seja obrigado a fazer alguns telefonemas.
- Está bem, está bem.
- Pode voltar amanhã? : - Talvez.
- Quantos mais clientes é que lhe pagam trinta e três mil dólares?
- Muito bem. Então venha cá amanhã. Terei correspondência para si.
Spicer deixou-o e saiu rapidamente do edifício da administração, limitando-se a fazer um aceno de cabeça ao guarda que estava à janela. Atravessou com determinação o relvado primorosamente tratado. O Sol da Florida aquecia o passeio, mesmo em Fevereiro. Os colegas estavam embrenhados nas suas tarefas vagarosas na pequena biblioteca, sozinhos como sempre, e Spicer não hesitou ao anunciar: -
- Conseguimos os cem mil do velho Quince de lowa!
As mãos de Beech imobilizaram-se no teclado. O homem espreitou por cima dos óculos, deixou descair o queixo e conseguiu dizer:
- Estás a gozar.
- Não. Acabei de falar com o Trevor. O dinheiro foi transferido exactamente de acordo com as instruções e chegou esta manhã às Bahamas. O Quincy saiu-se bem.
- Vamos apertá-lo outra vez - disse Yarber, antes de os outros pensarem nisso.
- O Quince?
- Claro. Os primeiros cem mil foram fáceis. Vamos espremê-lo outra vez. O que temos a perder?
- Absolutamente nada - disse Spicer, sorrindo. Gostaria de ter sido o primeiro a falar.
- Quanto? - perguntou Beech.
- Tentemos cinquenta mil - disse Yarber, atirando números ao ar como se tudo fosse possível.
Os outros dois concordaram e ficaram a pensar nos cinquenta mil seguintes. Depois, Spicer avançou e disse:
- Olhem, vamos avaliar em que ponto nos encontramos. Creio que o Curtis de Dálias está maduro. Vamos apertar o Quince outra vez. Isto está a resultar, e penso que devíamos mudar de táctica, tornarmo-nos mais agressivos. Percebem o que quero dizer? Vamos analisá-los um a um e aumentar a pressão.
Beech desligou o computador e pegou num dossier. Yarber desimpediu a pequena secretária. A sua pequena fraude de Angola acabara de receber uma injecção fresca de capital, e o aroma do dinheiro mal ganho intoxicava.
Começaram a ler todas as antigas cartas e a fazer rascunhos de outras. Eram necessárias mais vítimas, concluíram à pressa. Poriam mais anúncios na contracapa daquelas revistas.
Trevor conseguiu chegar ao Pete’s Bar and Grill mesmo a tempo das bebidas mais baratas, que no Pete’s começavam às cinco da tarde e se prolongavam até à primeira cena de murro. Encontrou Prep, um estudante de trinta e dois anos do Norte da Florida, a jogar snooker por vinte dólares o jogo. A pensão de Prep, cada vez mais reduzida, era de dois mil dólares por mês, que o advogado da família lhe pagava enquanto estivesse matriculado como estudante a tempo inteiro. Prep andava no segundo ano há onze anos.
Prep era também o agente de apostas mais ocupado do Pete’s, e quando Trevor lhe segredou que tinha dinheiro a sério para colocar no jogo Duke-Tech, Prep perguntou:
- Quanto?
- Cinco mil - respondeu Trevor, bebendo a sua cerveja.
- Estás a falar a sério? - perguntou Prep, tomando nota com o seu pau de giz e olhando à volta da mesa envolvida em fumo. Trevor nunca apostara mais de cem dólares em cada jogo.
- Estou.
Mais um gole. Trevor começava a sentir que estava com sorte. Se Spicer tivera coragem para apostar cinco mil dólares no jogo, Trevor dobraria a parada. Acabara de ganhar trinta e três mil dólares livres de impostos. E se perdesse dez mil? Isso era o que cabia às Finanças, de qualquer modo.
- Terei de fazer um telefonema - disse Prep, puxando de um telemóvel.
- Despacha-te. O jogo começa daqui a meia-hora.
O dono do bar era uma pessoa da terra que nunca saíra do estado da Florida, mas desenvolvera uma paixão intensa por futebol australiano. Estava a decorrer um jogo do Down Under, e Trevor teve de o subornar com vinte dólares para ele mudar de canal para o basquetebol do ACC.
com quinze mil dólares apostados no Georgia Tech, Duke não podia falhar um lance, pelo menos no primeiro tempo. Trevor comeu batatas fritas, bebeu garrafas umas atrás das outras e fez o possível por ignorar Prep, que estava de pé junto de uma mesa, num canto escuro, a observar.
No segundo tempo, Trevor quase pagou ao dono do bar para este voltar ao jogo australiano. Estava a ficar embriagado e, a dez minutos do final, amaldiçoava abertamente Joe Roy Spicer para quem o quisesse ouvir. O que percebia aquele pacóvio de basquetebol? O Duke comandava com vinte, a nove minutos do fim, quando o ataque do Tech se intensificou. Trevor tinha o Tech e onze.
Faltava um minuto para o jogo terminar. Trevor não se importava com quem ganhasse. Vencera. Pagou a conta, gratificou o dono do bar com mais cem dólares, dirigiu um cumprimento rápido a Prep e saiu. Prep fez-lhe um gesto obsceno.
Na frescura da sombra, Trevor seguiu pelo Atlantic Boulevard, aos saltos, afastando-se das luzes. Passou pelos apartamentos baratos encostados uns aos outros, pelas casinhas isoladas pintadas de fresco e com relvados impecáveis, desceu os velhos degraus de madeira que iam dar à areia, descalçou os sapatos e deambulou pela beira-mar. A temperatura não atingia os dez graus, o que não era invulgar em Jacksonville em Fevereiro, e daí a pouco Trevor tinha os pés frios e molhados.
Não era que sentisse muito... Ganhara quarenta e três mil dólares num só dia, livres de impostos, tudo às escondidas do governo. No ano anterior, depois das despesas, arrecadara vinte e oito mil dólares e fora trabalhar praticamente a tempo inteiro - a regatear com clientes demasiado pobres ou mesquinhos para pagarem, a evitar salas de audiências, a negociar com agentes imobiliários e banqueiros de meia-tigela, a discutir com a secretária e a cortar nos impostos.
Ah, a alegria do dinheiro rápido! Desconfiara da fraude dos Confrades, mas agora parecia-lhe brilhante. Extorquir àqueles que não se podiam queixar. Que inteligência!
E, como a coisa estava a correr tão bem, Trevor sabia que Spicer intensificaria a sua actividade. A correspondência engrossaria, as idas a Trumble passariam a ser mais frequentes. com os diabos, iria lá todos os dias, se fosse preciso, levar e trazer cartas, subornar os guardas.
Trevor meteu os pés na água quando o vento aumentou de intensidade e as ondas rugiram.
Ainda mais inteligente seria roubar os extorsionários, criminosos certificados pelo tribunal, que decerto não se poderiam queixar. Era um pensamento lamentável, e Trevor quase se envergonhava dele, mas era um pensamento válido. Todas as hipóteses ficariam em aberto. Desde quando é que os ladrões eram conhecidos pela sua lealdade?
Precisava de um milhão de dólares, nem mais nem menos. Fizera as contas muitas vezes, a caminho para Trumble, a beber um copo no Pete’s, sentado à sua secretária com a porta fechada à chave. Um bom milhão de dólares, e podia fechar o seu escritório triste e acanhado, devolver a carteira profissional, comprar um veleiro e passar o resto da vida a navegar ao sabor dos ventos das Caraíbas.
Estava mais perto do que nunca.
O juiz Spicer deu mais uma volta na cama inferior do beliche. O sono era um presente raro no seu quarto minúsculo, na sua cama minúscula, com um companheiro pequeno e fedorento chamado Alvin, que ressonava por cima dele. Alvin passara várias décadas a vaguear pela América do Norte, mas mais tarde sentira-se cansado e esfomeado. O seu crime fora o assalto a uma viatura dos Correios numa zona rural de Oklahoma. A sua detenção fora muito facilitada quando Alvin entrara no posto do FBI de Tulsa e declarara: «Fui eu.» O FBI levou seis horas a descobrir o crime.
Até o juiz percebeu que Alvin planeara tudo. Queria uma cama federal, e não uma oferecida pelo Estado.
,.. Spicer tinha ainda mais dificuldade em adormecer porque estava preocupado com o advogado. Agora que a fraude estava a progredir, havia muito dinheiro à solta. E vinha mais a caminho. Quanto mais a Boomer Realty recebesse nas Bahamas, maior seria a tentação de Trevor. Ele e só ele podia roubar o dinheiro mal ganho dos Confrades e fugir.
Mas o plano só funcionava com um colaborador externo. Alguém tinha de levar e trazer a correspondência às escondidas. Alguém tinha de ir buscar o dinheiro.
Tinha de haver uma maneira de contornar o advogado, e Joe Roy estava resolvido a encontrá-la. Se não dormisse durante um mês, não se importava. Nenhum advogado miserável ficaria com um terço do seu dinheiro, para depois lhe roubar o resto.
IX
O Comité de Acção Política da Defesa, ou CAP-D, como viria a ser rápida e amplamente conhecido, fez uma entrada estrondosa no terreno pantanoso da política financeira. Na história recente, nenhum comité de acção política parecia ter tanto músculo atrás de si.
As primeiras verbas vieram de um investidor de Chicago, chamado Mitzger, um americano que também tinha a nacionalidade israelita. Foi ele que ofereceu o primeiro milhão de dólares, que durou cerca de uma semana. Depressa se juntaram outros judeus da alta finança, apesar de a sua identidade estar protegida por empresas e contas offshore. Teddy Maynard conhecia os perigos de ter um grupo de judeus ricos a contribuir ostensivamente e de forma organizada para a campanha de Lake. Confiava em velhos amigos de Telavive para organizarem o dinheiro em Nova Iorque.
Mitzger era um liberal em política, mas nenhum tema lhe era tão caro como a segurança de Israel. Aaron Lake era demasiado moderado nas questões sociais, mas também era muito sério quanto à renovação das forças armadas. A estabilidade no Médio Oriente dependia de uma América forte, pelo menos na opinião de Mitzger.
Alugou uma suite no Willard de Washington, por um dia, e ao meio-dia do dia seguinte já alugara um piso inteiro num edifício de escritórios perto de Dalles. O seu pessoal de Chicago trabalhava ininterruptamente para resolver os mil e um pormenores necessários para equipar quinze mil metros quadrados com tecnologia de ponta. Mitzger tinha um pequeno-almoço marcado para as seis da manhã com Elaine Tyner, advogada e angariadora de votos de uma firma gigantesca de Nova Iorque que ela construíra com a sua vontade férrea e muitos clientes do petróleo. Elaine tinha sessenta anos e era considerada a angariadora de votos mais poderosa da cidade. Contra tudo e contra todos, aceitara representar o CAP-D em troca de um adiantamento de quinhentos mil dólares. A sua empresa enviaria imediatamente vinte colaboradores e outros tantos empregados para as novas instalações do CAP-D, onde um dos seus sócios assumiria o controlo das operações. Uma secção não faria mais nada senão angariar dinheiro.
Outra analisaria os apoios do Congresso a Lake e iniciaria, a pouco e pouco, o processo delicado de alinhar as adesões de senadores, representantes e até de governadores. Não seria fácil; a maior parte deles já estavam comprometidos com outros candidatos. Mas havia outra secção que só faria investigação - equipamento militar, seus custos, novos dispositivos, armas futuristas, inovações russas e chinesas - qualquer coisa que o candidato Lake precisasse de saber.
A própria Elaine se encarregaria de angariar dinheiro junto de governos estrangeiros, uma das suas especialidades. Estava muito próxima dos sul-coreanos, visto que fora a sua representante em Washington nos últimos dez anos. Conhecia os diplomatas, os empresários, as pessoas influentes.
Poucos países dormiriam melhor com umas forças armadas norte-americanas reforçadas do que a Coreia do Sul. - Tenho a certeza que eles entrarão pelo menos com cinco milhões - disse ela em tom de confidência. - Inicialmente, de qualquer modo.
De memória, fez uma lista de vinte empresas francesas e inglesas que iam buscar um quarto das suas vendas anuais ao Pentágono. Começou Imediatamente a trabalhar nelas. Nessa época, Elaine era a advogada típica de Washington. Não entrava numa sala de audiências havia quinze anos e todos os acontecimentos mundiais importantes tinham origem na Beltway e, de certo modo, afectavam-na. O desafio que estava em jogo não tinha precedentes - eleger um candidato desconhecido, de última hora, que, nesse momento, contava com 30 por cento de popularidade e 12 por cento de adesões. Mas o que o candidato deles tinha, ao contrário das outras aves raras que entravam e saíam do torneio presidencial, era, aparentemente, muito dinheiro. Elaine fora bem paga para eleger e derrotar políticos e mantinha a convicção inabalável de que o dinheiro vencia sempre. Dessem-lhe dinheiro, e ela vencia ou derrotava qualquer pessoa. Durante a sua primeira semana de existência, o CAP-D funcionou
com uma energia sem limites. Os escritórios estavam abertos vinte e quatro horas por dia, enquanto a equipa de Elaine se instalava e avançava.
Os que angariavam dinheiro elaboraram uma exaustiva lista cômputorizada de 310 000 trabalhadores à hora na indústria da defesa e similares, e depois atacaram-nos com uma carta em papel lustroso a pedir dinheiro. Doutra lista constavam os nomes de vinte e oito mil trabalhadores de colarinho branco na área da defesa, que ganhavam mais de cinquenta mil dólares por ano. Para estes foi enviado outro tipo de solicitação.
Os consultores do CAP-D que procuravam adesões localizaram os cinquenta membros do Congresso cujo trabalho estava mais ligado à defesa nas suas regiões. Trinta e sete eram de novo candidatos, o que facilitaria muito o braço-de-ferro. O CAP-D iria até às raízes, até aos trabalhadores da defesa e aos seus patrões, e orquestraria uma campanha telefónica em massa para apoiar Aaron Lake e mais gastos com as forças armadas. Seis senadores de estados fortes no domínio da defesa tinham opositores duros em Novembro, e Elaine Tyner marcou um almoço com cada um deles.
O dinheiro sem limites não conseguiu passar despercebido durante muito tempo em Washington. Um congressista novato de Kentucky, um dos mais baixos dos 435, precisava desesperadamente de dinheiro para combater o que parecia ser uma campanha falhada em casa. Ninguém conhecia o pobre homem. Não abrira a boca durante os dois primeiros anos de mandato, e agora os seus rivais tinham descoberto um opositor atraente na sua região. Ninguém lhe daria dinheiro. O homem ouvira boatos, andara atrás de Elaine Tyner, e a conversa de ambos fora mais ou menos isto:
- De quanto precisa? - perguntou ela.
- De cem mil dólares. Ele vacilou; ela não.
- Pode apoiar Aaron Lake para a presidência?
- Apoiarei seja quem for se o preço for justo.
- Óptimo. Dar-lhe-emos duzentos mil e organizaremos a sua campanha.
- É toda vossa.
A maioria não era tão fácil, mas o CAP-D conseguiu comprar oito apoios nos seus primeiros dez dias de existência. Eram todos congressistas insignificantes que tinham trabalhado com Lake e que gostavam dele. A estratégia consistia em alinhá-los diante das câmaras uma ou duas semanas antes da Super Terça-feira, 1 de Março. Quantos mais melhor.
No entanto, a maior parte deles já se tinham comprometido com outros candidatos.
Elaine apressou-se a fazer as rondas, comendo às vezes três refeições fortes por dia, todas alegremente pagas pelo CAP-D. O seu objectivo era dar a saber à cidade que o seu novo cliente chegara, que tinha rios de dinheiro e que estava a apoiar um candidato aparentemente fraco que se destacaria dentro de pouco tempo. Numa cidade em que a conversa era uma indústria em si mesma, Elaine não tinha problemas em difundir a sua mensagem.
A mulher de Yarber Finn chegou a Trumble sem se fazer anunciar. Era a sua primeira visita em dez meses. Calçava sandálias de couro gastas, vestia uma saia de ganga suja e uma blusa larga enfeitada com contas e penas e levava toda a espécie de velhas bugigangas hippie ao pescoço, nos pulsos e na cabeça. Tinha um grande golpe e pêlos debaixo dos braços e parecia-se muito com a refugiada gasta e estafada dos anos 60 que efectivamente era. Finn ficou emocionado quando lhe foram dizer que a mulher estava à espera dele à entrada.
Chamava-se Carmen Topolski-Yocoby, um nome que usara como arma durante toda a sua vida adulta. Era uma advogada feminista radical ’em Oakland e a sua especialidade era representar lésbicas que se queixavam de assédio sexual no emprego. Assim, todas as suas clientes eram mulheres furiosas em luta com um patrão furioso. O trabalho era o diabo.
Estava casada com Finn havia trinta anos, embora nem sempre tivessem vivido juntos. Ele vivera com outras mulheres e ela vivera com outros homens. Uma vez, pouco depois de se casarem, tinham vivido com muita gente, fazendo combinações diferentes todas as semanas. Ambos iam e vinham. Durante seis anos viveram juntos numa monogamia caótica e fabricaram dois filhos, nenhum dos quais saíra grande coisa.
Tinham-se conhecido nos campos de batalha de Berkeley em 1965, ambos a protestar contra a guerra e outros males, ambos estudantes de Direito, ambos comprometidos com o elevado nível moral da mudança social. Trabalharam com afinco no recenseamento de eleitores. Lutaram pela dignidade dos trabalhadores migrantes. Foram presos durante a ofensiva do Tet. Amarraram-se com correntes a sequóias. Combateram os cristãos nas escolas. Levantaram processos em defesa das baleias.
Calcorrearam as ruas de São Francisco em todas as marchas de protesto, fosse qual fosse a causa.
E bebiam muito, conviviam com grande entusiasmo e apreciavam a cultura da droga; entravam e saíam e dormiam por onde calhava, o que estava certo porque eram eles que definiam a sua própria moralidade. Lutavam pelos mexicanos e pelas sequóias, com os diabos! Tinham de ser boas pessoas!
Agora estavam cansados.
Ela estava envergonhada pelo facto de o marido, um homem brilhante que conseguira chegar ao Supremo Tribunal da Califórnia, estar agora encarcerado numa prisão federal. Sentia-se muito aliviado por a prisão ser na Florida e não na Califórnia; de outro modo, iria visitá-lo com mais frequência. Estivera primeiro em Bakersfield, mas conseguira transferência para outro lado.
Nunca escreviam um ao outro, nem telefonavam. Ela passara por ali porque tinha uma irmã em Miami.
- Que belo tom de pele! - disse ela. - Estás com bom aspecto. E tu estás engelhada como uma ameixa velha, pensou ele. com os diabos, ela tinha um aspecto ultrapassado e exausto.
- Como vai a vida? - perguntou ele, sem se importar verdadeiramente.
- Atarefada. Ando a trabalhar de mais.
- Isso é bom.
Era bom que ela estivesse a trabalhar e a governar a vida, algo que abandonara e recomeçara durante muitos anos. Faltavam cinco anos para Finn sacudir a poeira de Trumble dos seus pés deformados e descalços. Não tencionava voltar para ela, nem para a Califórnia. Se sobrevivesse, uma coisa de que duvidava todos os dias, sairia com sessenta e cinco anos e o seu sonho era descobrir um país em que não ficasse sob a alçada das Finanças, do FBI e daqueles rufiões alfabetizados do governo. Finn odiava a tal ponto o seu próprio governo que tencionava renunciar à cidadania e adquirir outra nacionalidade.
- Continuas a beber? - perguntou ele.
Finn não continuava a beber, evidentemente, embora conseguisse de vez em quando uma garrafinha através de um dos guardas.
- Continuo sóbria. Obrigada por perguntares.
Todas as perguntas eram farpas e todas as respostas réplicas mordazes. Finn perguntou honestamente a si próprio o que a levara a passar por ali. Depois, descobriu.
- Resolvi pedir o divórcio - disse ela.
Ele encolheu os ombros como que a dizer: «Para que te incomodas com isso?». Mas disse:
- Talvez não seja má ideia.
- Conheci outra pessoa - disse ela.
- Homem ou mulher? - perguntou ele, mais curioso do que nunca. Nada o surpreenderia.
- Um homem mais novo.
Ele encolheu de novo os ombros e ia a dizer «Avança, menina».
- Não é o primeiro - disse Finn.
- É melhor não irmos por aí - respondeu ela.
Tudo bem para Finn. Sempre admirara a sexualidade exuberante da mulher, a sua energia, mas era difícil imaginar aquela velha a fazer sexo com regularidade.
- Dá-me os papéis. Eu assino - disse ele.
- Estarão cá daqui a uma semana. É uma separação limpa, visto que temos tão pouco.
No auge da sua subida ao poder, o juiz Yarber e Miss Topolski-Yocoby tinham pedido uma hipoteca para uma casa na zona da marina de São Francisco. O formulário, devidamente expurgado de qualquer resquício de chauvinismo, sexismo, racismo ou preconceitos etários, com a linguagem branda dos advogados da Califórnia receosos de serem processados por qualquer alma ofendida, revelava uma lacuna de cerca de um milhão de dólares entre o activo e o passivo.
Não era que um milhão de dólares fosse importante para qualquer deles. Andavam demasiado ocupados a combater os interesses dos madeireiros e dos agricultores sem escrúpulos, etc. Na realidade, orgulhavam-se mesmo da sua escassez de meios.
A Califórnia era um estado de bens comunitários, o que não equivalia exactamente a uma divisão equitativa. Seria fácil assinar os documentos do divórcio, por muitas razões.
E havia uma a que Finn nunca faria referência. A fraude de Angola estava a dar dinheiro, oculto e sujo, e fora do alcance de qualquer agência gananciosa. De certeza que Miss Carmen nunca havia de saber da sua existência.
Finn não sabia ao certo como é que os tentáculos da comunidade podiam chegar a uma conta secreta num banco das Bahamas, mas não tencionava descobrir. Ela que lhe desse os documentos e teria muito gosto em assiná-los.
Conseguiram falar durante alguns minutos de velhos amigos, uma conversa breve porque a maior parte deles tinham desaparecido. Quando se despediram, não houve tristeza, nem remorso. Havia muito que o casamento morrera. Sentiram-se aliviados com o seu liin.
Ele desejou-lhe boa sorte, deu-lhe um abraço e depois foi para a pista dtjogging. Despiu-se, ficou apenas em cuecas e caminhou ao sol durante uma hora.
X
Lufkin estava a acabar o seu segundo dia no Cairo, jantando ao ar livre num café em Shari’el-Corniche, na zona da cidade conhecida por Garden City. Bebeu um café forte e observou os comerciantes que encerravam os seus estabelecimentos - vendedores de tapetes, jarras de latão, malas de couro e tecidos do Paquistão, tudo para os turistas. A menos de seis metros, um velho vendedor ambulante dobrou meticulosamente a sua tenda e desapareceu sem deixar rasto.
Lufkin era muito parecido com um árabe moderno - calças brancas largas, casaco de caqui de cor clara e um chapéu branco com orifícios e a pala bem puxada para os olhos. Via o mundo através de um chapéu e de um par de óculos escuros. Tinha o rosto e os braços bronzeados e o cabelo escuro cortado muito curto. Falava correctamente árabe e deslocava-se com facilidade entre Beirute, Damasco e o Cairo.
Estava hospedado no Hotel El-Nil, à beira do rio Nilo, a seis quarteirões dali, e quando deambulava pela cidade de repente foi abordado por um estrangeiro alto e magro, com uma certa classe, que falava mal inglês. Conheciam-se suficientemente bem para confiarem um no outro e continuaram a andar.
- Creio que esta noite é que é - disse o contacto, também de olhos ’escondidos.
- Continue.
- Há uma festa na embaixada.
- Eu sei.
- Sim, um belo cenário. Trânsito aos montes. A bomba estará numa carrinha.
- Que tipo de carrinha?
- Não sei.
- Mais alguma coisa?
- Não - disse ele, desaparecendo no meio de uma multidão compacta.
Lufkin bebeu uma Pcpsi no bar do holcl, so/inho. e pensou em telefonar a Teddy. Mas ainda há quatro dias o vira em Langley, e Teddy não fizera qualquer contacto. Antes disso, tinham-se telefonado. Teddy não iria intervir. Actualmente, o Cairo era um sítio perigoso para os ocidentais e ninguém podia acusar a CIA de não impedir um ataque. Seguir-se-ia o espalhafato e as acusações habituais, mas o terror depressa seria relegado para os recantos da memória nacional e depois esquecido. Estava a decorrer uma campanha, e o mundo movia-se depressa. com tantos ataques, assaltos e violência insensata, tanto no país como no estrangeiro, o povo americano estava calejado. Vinte e quatro horas de notícias, imagens constantes, o mundo sempre em crise em qualquer lado. Notícias de última hora, um choque aqui e outro acolá, e era quase impossível seguir os acontecimentos.
Lufkin saiu do bar e foi para o quarto. Da janela do quarto andar, a cidade vagueava eternamente, construía abrigos anti-aéreos havia séculos. O telhado da embaixada americana estava mesmo em frente dele, a um quilómetro e meio de distância.
Lufkin abriu um livro de bolso Louis d’Amour e esperou pelos foguetes.
O veículo era uma carrinha Volvo de duas toneladas, carregada do chão ao tecto com mil e quinhentos quilos de explosivos de matéria plástica feitos na Roménia. Na porta anunciavam-se alegremente os serviços de um fornecedor de alimentos muito conhecido na cidade, uma empresa cujo pessoal entrava com frequência nas embaixadas dos países ocidentais. A carrinha estava estacionada junto da entrada de serviço, na cave.
O motorista da carrinha era um egípcio grande e simpático, que os fuzileiros que guardavam a embaixada tratavam por Shake. Shake passava por eles muitas vezes, transportando alimentos e outros produtos destinados a acontecimentos sociais. Shake jazia agora morto no chão da sua carrinha, com uma bala na cabeça.
Às dez e vinte, a bomba foi detonada por um dispositivo de controlo remoto accionado por um terrorista escondido do outro lado da rua. Assim que carregou nos devidos botões, acocorou-se atrás de um automóvel, com receio de olhar.
A explosão destruiu vários pilares de suporte na cave e a embaixada tombou para um lado. Seguiu-se uma chuva de entulho. Quase todos os prédios mais próximos sofreram estragos nas estruturas. Os vidros das janelas estilhaçaram-se num raio de quatrocentos metros.
Lufkin estava a dormitar na cadeia quando sentiu o estrondo. Levantou-se de um salto, dirigiu-se à varanda estreita e viu a nuvem de pó. O telhado da embaixada deixou de ver-se. Poucos minutos depois, começou a ver chamas e a ouvir o ruído interminável das sirenes. Encostou a cadeira ao parapeito e deixou-se ficar ali sentado enquanto aquilo durou. Não conseguiria dormir. Seis minutos depois da explosão, faltou a electricidade em Garden City e o Cairo ficou às escuras, com excepção do clarão alaranjado da embaixada americana.
Telefonou a Teddy.
Quando o técnico de segurança de Teddy garantiu a Lufkin que a linha estava segura, ouviu-se a voz do velho, tão nítida como se estivessem a falar de Nova Iorque para Boston.
Fala Maynard.
- Estou no Cairo, Teddy. A ver a nossa embaixada a desfazer-se em fumo.
- Quando é que foi?
- Há menos de dez minutos.
- Qual a dimensão dos...
- É difícil dizer. Estou num hotel a um quilómetro e meio de distância. São extensos, diria eu.
- Telefone-me daqui a uma hora. Esta noite fico aqui no gabinete.
- Combinado.
Teddy aproximou-se de um computador, carregou nalguns botões e, no espaço de segundos, surgiu Aaron Lake. O candidato ia de Filadélfia para Atlanta, a bordo do seu novo e reluzente avião. Levava um telefone no bolso, um aparelho digital do tamanho de um isqueiro.
Teddy marcou mais números, o telefone começou a tocar e Teddy falou para o monitor.
- Mr. Lake, é Teddy Maynard.
Quem mais poderia ser? pensou Lake. Mais ninguém podia usar o telefone.
- Está sozinho? - perguntou Teddy.
- Espere um pouco. , Teddy ficou à espera e depois regressou.
- Agora estou na cozinha - disse Lake.
- O seu avião tem cozinha?
- Uma pequena, sim. É um belo avião, Mr. Maynard.
- Óptimo. Ouça, desculpe incomodá-lo, mas tenho uma notícia. Destruíram a embaixada americana no Cairo há um quarto de hora.
- Quem?
- Não me faça perguntas dessas.
- Desculpe.
- A imprensa vai andar em cima de si. Reserve uns minutos e prepare uns comentários. Será uma boa oportunidade para se mostrar preocupado com as vítimas e as suas famílias. Reduza a política ao mínimo, mas mantenha a determinação. Agora os seus anúncios são proféticos, e por isso as suas palavras serão repetidas muitas vezes.
- Vou fazê-lo imediatamente.
- Telefone-me quando chegar a Atlanta.
- Sim, telefono.
Quarenta minutos depois, Lake e o seu grupo aterraram em Atlanta. A imprensa fora devidamente avisada da sua chegada, e com a poeira ainda a assentar no Cairo havia uma multidão à espera. Ainda não tinham surgido imagens em directo da embaixada, mas algumas agências já falavam em «centenas» de mortos.
No pequeno terminal das aeronaves particulares, Lake encontrou-se diante de um grupo de repórteres ávidos, uns com máquinas fotográficas e microfones, outros com pequenas câmaras e outros apenas com velhos blocos de apontamentos. Lake disse com um ar solene, sem recorrer a quaisquer apontamentos:
- Neste momento, devíamos rezar por aqueles que foram feridos e mortos por este acto de guerra. Os nossos pensamentos e as nossas preces estão com eles e as suas famílias, e também com o pessoal de socorro. Não vou politizar este acontecimento, mas direi que é um absurdo este país sofrer de novo às mãos de terroristas. Quando for presidente, nenhuma vida americana ficará por explicar. Recorrerei às nossas novas forças armadas para encontrar e aniquilar qualquer grupo terrorista que mate americanos inocentes. É tudo o que tenho a dizer.
Afastou-se, ignorando os gritos e as perguntas que vinham do amontoado de jornalistas.
Brilhante, pensou Teddy, observando a cena em directo do seu abrigo. Rápido, compadecido, mas duro como aço. Soberbo! Congratulou-se de novo com o facto de ter escolhido um candidato tão bom.
Quando Lufkin voltou a telefonar, passava da meia-noite no Cairo. Os incêndios tinham sido extintos e andavam a retirar os corpos o mais depressa possível. Muitos estavam sepultados no entulho. Lufkin encontrava-se a um quarteirão de distância, atrás de uma barricada do exército, a observar, como milhares de outras pessoas. O cenário era caótico e a atmosfera estava envolvida numa nuvem espessa de fumo e de pó. Lufkin estivera várias vezes em locais onde tinham rebentado bombas, mas este era dos maus, segundo relatou.
Teddy deu a volta à sala na sua cadeira de rodas e serviu-se de mais um descafeinado. Os anúncios aterradores de Lake começariam a ser transmitidos no horário nobre. Nessa mesma noite, a campanha iria gastar três milhões de dólares numa avalancha de medo e de destruição. Começariam a transmitir os anúncios no dia seguinte, com aviso prévio. Por respeito para com os mortos e as famílias, a campanha de Lake suspenderia temporariamente as suas pequenas profecias. E as sondagens começariam ao meio-dia do dia seguinte, sondagens em grande escala.
A percentagem de adesão ao candidato Lake estava a subir. As primárias no Arizona e no Michigam estavam a menos de uma semana.
As primeiras imagens do Cairo eram de um repórter aflito, de costas para uma barricada do exército, com os soldados a deitarem-lhe um ar feroz como se ele pudesse levar um tiro se tentasse avançar. Ouviam-se sirenes por todo o lado; viam-se luzes a acender e a apagar. Mas o repórter pouco sabia. Uma bomba de grande potência explodira no interior da embaixada às dez e vinte, quando estava a decorrer uma festa; ignorava-se o número de vítimas, mas deviam ser muitas, prometia o repórter. A zona estava vedada pelo exército e, por precaução, tinham igualmente encerrado o espaço aéreo, por isso não haveria imagens captadas de helicópteros. Como sempre, ninguém assumira a responsabilidade, mas, pelo sim pelo não, o repórter indicou o nome de três grupos radicais, os suspeitos habituais.
- Pode ter sido um destes ou outro qualquer - disse, pressuroso.
Sem carnificina para filmar, a câmara era obrigada a manter-se junto do repórter, e como não havia nada para dizer, dissertava sobre o perigo
crescente no Médio Oriente, como se esta fosse uma notícia de última hora e ele estivesse a dá-la.
Lufkin telefonou cerca das oito horas da noite, hora de Washington, para dizer a Teddy que o embaixador americano no Egipto não conseguia ser localizado e começava a recear-se que estivesse no meio dos escombros. Pelo menos, era o que constava nas ruas. Enquanto falava ao telefone com Lufkin, Teddy observava o repórter emudecido; noutro ecrã, surgiu um anúncio de terror de Lake. Mostrava os destroços, a mortandade, os cadáveres, os radicais de outro ataque, e depois a voz branda mas determinada de Aaron Lake a prometer vingança.
Que sentido de oportunidade perfeito, pensou Teddy.
Um assessor acordou Teddy à meia-noite, com chá de limão e uma sanduíche de legumes. Como tantas vezes acontecia, adormecera na cadeira de rodas, com a parede de ecrãs de televisão cheios de imagens, mas sem som. Quando o assessor saiu, Teddy carregou num botão e ficou à escuta.
O Sol ia alto no Cairo. O embaixador não fora encontrado e começava agora a admitir-se que se encontrasse algures debaixo dos escombros.
Teddy nunca vira o embaixador americano no Egipto, um desconhecido absoluto que estava agora a ser transformado num ídolo pelos repórteres como um grande americano. A sua morte não incomodava particularmente Teddy, embora aumentasse as críticas à CIA. Também tornaria o ataque mais grave, o que, dadas as circunstâncias, beneficiaria Aaron Lake.
Já tinham sido recuperados sessenta e um corpos. As autoridades egípcias acusavam Yidal, o mais provável dos suspeitos, porque o seu pequeno exército atacara à bomba três embaixadas de países ocidentais nos últimos dezasseis meses e porque apelava ostensivamente à guerra com os Estados Unidos. O actual dossier da CIA sobre Yidal atribuía-lhe trinta soldados e um orçamento anual de cerca de cinco milhões de dólares, na sua maior parte oriundos da Líbia e da Arábia Saudita. Mas, para a imprensa, as fugas de informação apontavam para um exército de um milhar de homens, com fundos ilimitados para aterrorizar americanos inocentes.
Os israelitas sabiam o que Yidal comia ao pequeno-almoço e onde. Podiam tê-lo prendido uma dúzia de vezes, mas até aí o homem mantivera a sua pequena guerra longe deles. Enquanto ele matasse americanos e
ocidentais, os israelitas não se importavam. Só beneficiavam com o facto de o Ocidente odiar os radicais islâmicos.
Teddy comeu devagar e depois dormiu mais um pouco. Lufkin telefonou antes do meio-dia, hora do Cairo, com a notícia de que os corpos do embaixador e da mulher tinham sido encontrados. Os mortos elevavam-se agora a oitenta e quatro, mas só onze eram americanos.
As câmaras apanharam Aaron Lake à saída de uma fábrica em Marietta, Jórgia, a distribuir apertos de mão à noite, na mudança de turno. Quando lhe pediram que se pronunciasse sobre os acontecimentos no Cairo, afirmou:
- Há dezasseis meses, os mesmos criminosos colocaram bombas em duas das nossas embaixadas, matando trinta americanos, e nós nada fizemos para os impedir. Eles estão a agir com impunidade porque nós não estamos empenhados na luta. Quando for presidente, declararemos guerra a esses terroristas e acabaremos com as mortes.
O tom duro do discurso era contagiante, e quando a América acordou para as terríveis notícias do Cairo o país transformou-se num coro de ameaças e de ultimatos dos outros sete candidatos. Até os mais passivos pareciam agora criminosos armados.
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