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À ESPERA DE UM MILAGRE 2 / Stephen King
À ESPERA DE UM MILAGRE 2 / Stephen King

 

 

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À ESPERA DE UM MILAGRE

 

Parte III

AS MÃOS DO COFFEY

Revendo tudo aquilo que escrevi até agora, verifico que classifiquei Georgia Pines, onde vivo presentemente, como um lar para a terceira idade. Os fulanos que dirigem este estabelecimento não se sentiriam muito satisfeitos com essa descrição! De acordo com as brochuras que têm no vestíbulo e que enviam aos clientes em perspectiva, trata-se de "um complexo de primeira categoria destinado às pessoas de idade". Até tem um Centro Recreativo - de acordo com o que a brochura afirma. As pessoas que são forçadas a viver aqui (a brochura não lhes chama "internos", embora eu por vezes o faça) limitam-se a chamar-lhe "sala da televisão".

As pessoas consideram-me um tudo-nada distanciado, porque durante o dia não vou à sala da televisão, mas isso deve-se ao facto de não conseguir suportar os programas, e não as pessoas. Oprah, Ricki Lake, Carnie Wilson, Rolanda - o mundo está a desmoronar-se em redor dos nossos ouvidos, e tudo o que interessa a estes apresentadores é falar acerca de foder mulheres de saias curtas, e de homens que têm sempre as camisas abertas. Pois bem, que raio - não julgues, não vás tu próprio ser julgado, diz a Bíblia, por isso estou disposto a descer do meu estrado de orador improvisado. O que acontece é que se eu quisesse passar o meu tempo na companhia de gentalha que vive em caravanas, ter-me-ia mudado para o Parque de Caravanas Rodas Felizes, a cerca de três quilómetros mais abaixo, para onde os carros-patrulha da polícia parecem estar sempre a acorrer nas noites de sexta-feira e sábado com as sirenas a soar estridentemente e as luzes azuis a funcionarem, intermitentes. A minha amiga especial, a Elaine Connelly, pensa da mesma maneira. A Elaine já tem oitenta anos é alta e magra, ainda tem a postura direita e o olhar límpido, muito inteligente e refinada. Caminha com muita lentidão porque qualquer coisa não está bem com a sua bacia, e eu sei que a artrite que lhe afecta as mãos lhe provoca um grande sofrimento, mas possui um lindo pescoço comprido - quase um colo de cisne - e belos cabelos compridos, que lhe caem até aos ombros sempre que ela os solta.

Porém, o melhor de tudo é que ela não me considera um fulano peculiar nem reservado. Passamos muito tempo juntos, a Elaine e eu. Se eu não tivesse alcançado uma idade tão gro tesca, suponho que me referiria a ela como a minha namorada. Ainda assim, o facto de ter uma amiga que considero muito especial - somente isso - não é assim tão mau, e, sob certos aspectos, chega até a ser preferível. Uma grande quantidade dos problemas e dores do coração que existem entre namorados deixaram muito pura e simplesmente de existir dentro de nós. E, embora eu saiba que ninguém, digamos, abaixo dos cinquenta, acreditaria nisto, por vezes as braseiras são melhores do que as fogueiras. É estranho mas é verdade.

Por conseguinte, não vejo televisão durante o dia. Por vezes dou passeios; noutras ocasiões dedico-me à leitura; mas na maior parte do tempo, durante mais ou menos o último mês, escrevo estas memórias instalado entre as plantas do solário. Estou convencido de que existe mais oxigénio nesse recinto, o que ajuda a memória que já está enfraquecida. Sem dúvida que esta actividade ganha aos pontos qualquer programa bombástico de televisão, essa posso eu garantir-vos.

No entanto, sempre que não consigo conciliar o sono, às vezes desço sorrateirámente até ao andar de baixo e ligo o televisor. Em Georgia Pines dispomos dos serviços básicos da televisão por cabo, o que significa que temos acesso ao canal de filmes americanos. Esse é o canal em que (para o caso de o leitor não desfrutar dos serviços básicos da televisão por cabo) a maior parte dos filmes é a preto e branco, e onde nenhuma das mulheres despe as suas roupas. Para um peido velho como eu, esse é um aspecto tranquilizador. Houve um bom número de noites em que me deixei adormecer em cima do sofá de um verde horroroso, colocado em frente do televisor, enquanto Francis, a Múla Que Fala, tira uma vez mais do lume a frigideira do Donald O'Connor, ou o John Wayne corre com a escumalha, expulsando-a de Dodge, ou o Jimmy Cagney apelida alguém de ratazana asquerosa e saca de uma arma. Vi alguns na companhia da minha mulher, a Janice (a qual não era só a minha namorada, mas também a minha melhor amiga), e eles acalmam-me. O vestuário que as personagens usam, a maneira como andam e falam, até mesmo a música da banda sonora - todas essas coisas contribuem para me acalmar. Suponho que me tragam à recordação os tempos em que eu era um homem que caminhava sobre a pele do mundo, em vez de ser uma relíquia comida pelas traças que vai fenecendo num lar para a terceira idade, onde muitos dos residentes usam fraldas e cuecas de plástico.

No entanto, não havia nada de tranquilizante naquilo que tive oportunidade de ver esta manhã. Absolutamente nada. Em algumas ocasiões, a Elaine junta-se a mim para as tão famosas Sessões dos Pássaros Madrugadores, as quais têm início às quatro da manhã - ela não se abre muito sobre o assunto, mas eu sei que nessas alturas a artrite a faz sofrer atrozmente, e que as drogas que eles lhe dão já não surtem grande efeito.

Esta madrugada, quando ela desceu num passo deslizante, qual fantasma, envergando o seu roupão de turco branco, encontrou-me sentado no sofá cheio de altos e baixos, debruçado sobre as canelas escanzeladas que costumavam ser as minhas pernas, agarrado aos joelhos, a fim de tentar pôr cobro aos tremores que me percorriam o corpo, como se fossem um vento cortante. Sentia-me enregelado, à excepção da região das virilhas que me dava a sensação de arder como se fosse o fantasma da infecção urinária que tanto havia atormentado a minha vida no Outono de 1932 - o Outono do John Coffey, do Percy Wetmore e do Mister Jingles, o rato amestrado. O Outono que também fora o do William Wharton.

- Paul! - gritou a Elaine, dirigindo-se a mim num passo apressado... tão apressado quanto os pregos enferrujados e a placa de massa de vidro na sua bacia lhe permitia. - Paul, o que é que se passa contigo?

- Não tarda nada, estarei bem - respondi-lhe, apesar de as minhas palavras não soarem muito convincentes... Saíram-me da boca de forma pouco articulada, através de uns dentes que queriam bater uns nos outros. - Dá-me apenas um minuto ou dois e ficarei são que nem um pêro.

A Elaine sentou-se junto de mim, colocando um braço em redor dos meus ombros.

- Tenho a certeza que sim - disse ela. - Mas o que é que te aconteceu? Por amor de Deus, Paul, parece que viste um fantasma.

E vi, disse para comigo, sem me ter apercebido de que havia proferido aquelas palavras em voz alta, até que avistei os seus olhos arregalados.

- Não foi verdadeiramente isso - acrescentei, dando-lhe uma pancadinha na mão (suavemente - tão suavemente!). - Mas durante um minuto, Elaine... Meu Deus!

- Recordaste-te dos tempos em que eras um guarda da prisão? - perguntou ela. - Da época sobre que tens vindo a escrever quando estás no solário?

Acenei-lhe afirmativamente.

- Eu costumava trabalhar na nossa versão do Corredor da Morte... - afirmei.

- Eu sei...

- Com a diferença que lhe chamávamos a Milha Verde. Por causa do linóleo que cobria o chão. No Outono de trinta e dois, recebemos um fulano... um selvagem... chamado William Wharton. Ele gostava de se considerar uma espécie de Billy the Kid, e chegou ao ponto de ter uma tatuagem no braço com esse nome. Não passava de um rapazote, mas era bastante perigoso. Ainda me recordo daquilo que o Curtis Anderson, que nessa época era o assistente do director, escreveu sobre ele. "Um doido varrido e orgulhoso de o ser. O Wharton tem dezanove anos de idade e, muito simplesmente está-se nas tintas para o que lhe possa acontecer." Ele sublinhou esta frase.

O braço que até então rodeara os meus ombros esfregava-me naquele momento as costas. Começara a acalmar-me. Naquela altura, senti amor pela Elaine Connelly, e tinha podido cobrir-lhe as faces de beijos, tal como lhe disse. Talvez o devesse ter feito. É horrível estar-se sozinho e atemorizado em qualquer idade, mas estou convencido de que é muito pior quando se é velho. No entanto, eu tinha outra coisa no pensamento, aquele peso de algo antigo por concluir.

- Seja como for - continuei -,tens razão... Tenho andado a escrevinhar sobre a chegada do Wharton ao bloco e como ele quase matou o Dean Stanton, um dos tipos com quem eu trabalhava nesses tempos.

- Como é que ele foi capaz de fazer uma coisa dessas? perguntou a Elaine.

- Por maldade e também por falta de cuidado - respondi sombriamente. - O Wharton forneceu a maldade e os guardas que o acompanhavam a falta de cuidado. O grande

erro foi a corrente que prendia os pulsos do Wharton... Era um tudo-nada demasiado comprida. Quando o Dean abriu a porta que dava acesso ao Bloco E, o Wharton encontrava-se atrás dele, com um guarda de cada lado, mas o Anderson tivera razão... muito simplesmente, o Billy Selvagem não se preocupava com essas coisas. Deixou cair a corrente que lhe prendia os pulsos por cima da cabeça do Dean e começou a asfixiá-lo com ela.

A Elaine estremeceu.

- Então, pus-me a matutar em tudo aquilo e não fui capaz de adormecer, e foi por isso que vim até cá abaixo. Liguei para o canal dos filmes, pensando que tu talvez viesses até cá abaixo, e assim poderíamos ter um pequeno encontro...

A Elaine riu-se, beijando-me a testa mesmo acima do sobrolho. Sempre que a Janice me beijava na fronte, eu era percorrido por um arrepio, e senti a mesma coisa quando a Elai ne o fez naquela madrugada. Calculo que algumas coisas nunca se alterem.

- ... e no ecrã surgiu este filme antigo a preto e branco sobre os bandidos dos anos quarenta. Chama-se O Denunciante.

Senti-me prestes a recomeçar a tremer, o que me levou a empregár todos os esforços para o evitar.

- E com o Richard Widmark - acrescentei. - Parece-me que foi o seu grande primeiro papel. Nunca cheguei a vê-lo com a Janice... Normalmente, prescindíamos dos filmes de polícias e ladrões, mas ainda me recordo de ter lido algures que o Widmark desempenhou um papel extraordinário, interpretando a figura do malfeitor. Sem dúvida que sim. No filme está muito pálido... dá a impressão de não andar mas sim de deslizar pela cena... está sempre a chamar "borra-botas" às pessoas... a falar sempre dos bufos... do quanto odeia os bufos...

A despeito de todos os meus esforços, começava a tremer de novo. Não conseguia evitá-lo.

- Cabelos louros - acrescentei num sussurro. - Cabelos louros escorridos. Fiquei a ver até à parte onde ele empurra uma velhota, que está sentada numa cadeira de rodas, pelas escadas abaixo mas depois desliguei o televisor.

- Ele fez-te lembrar o Wharton?

- Ele era o Wharton, até ao mais ínfimo pormenor.

- Paul... - começou a Elaine a dizer, interrompendo-se.

Olhou para o ecrã em branco do televisor (onde continuava a poder ver-se o número dez no canto superior, correspondente ao canal dos filmes), e voltou a concentrar a sua atenção em mim.

- O quê? - perguntei. - O que é que ias a dizer, Elaine? - Pensei: Ela vai dizer-me que deveria deixar de escrever sobre este assunto. Que o melhor seria rasgar as páginas que já escrevi até agora, desistindo de tudo isso.

- Não permitas que isso te impeça de continuar - foi o que ela me disse. - Fiquei a olhar de boca aberta para a Elaine. - Fecha a boca, Paul... não vá entrar alguma mosca. Desculpa. É que... bem...

- Tu pensaste que eu me preparava para te dizer o oposto, não é verdade?

- Sim, de facto foi isso que pensei.

Suavemente, agarrou-me nas mãos (suavemente, tão suavemente - com os seus longos e maravilhosos dedos enclavinhados, formando um amontoado de nós retorcidos) e inclinou-se para a frente, olhando fixamente para os meus olhos azuis com os seus cor de avelã, com o esquerdo ligeiramente nublado devido à aglutinação de uma catarata.

- É possível que eu já seja demasiado velha e frágil para continuar a viver - acrescentou a Elaine -, mas não sou velha de mais para ainda ter a faculdade de pensar. Na nossa idade, que significado é que têm umas quantas noites sem dormir? E já agora, o que é que há de mais no facto de vermos um velho fantasma na televisão? Vais dizer-me que foi o único que já viste?

Pensei no director da cadeia, o Moores, no Harry Terwilliger, no Brutus Howell; ocorreu-me a imagem da minha mãe, assim como a da Jan, a minha mulher, que morrera em Alabama. Sem dúvida que eu tinha bastantes conhecimentos em matéria de fantasmas.

- Não - concordei. - Não foi o primeiro fantasma que vi. Mas, Elaine... foi um choque. Porque era ele, sem tirar nem pôr.

Ela beijou-me de novo e levantou-se, retraindo-se ao deslocar-se, fazendo pressão com a palma da mão sobre as ancas, como se receasse que a bacia rebentasse através da pele, caso não tivesse cuidado.

- Parece-me que mudei de ideias quanto à televisão acrescentou ela. - Tenho um comprimido guardado para um

dia... ou uma noite em que mais necessitasse dele. Acho que vou tomá-lo e depois volto para a cama. Talvez devesses seguir o meu exemplo.

- Sim - concordei. - Suponho que seja o que deveria fazer. - Durante um momento de loucura, pensei em sugerir que fôssemos juntos para a mesma cama, mas então detectei o sofrimento surdo que se reflectia nos olhos da Elaine, e reconsiderei a minha ideia. Porque é possível que ela tivesse anuído, apenas para me fazer a vontade. O que não me parecia ser muito aconselhável.

Deixámos a sala de televisão (não estou disposto a dignificá-la com o outro nome, nem sequer por uma questão de ironia) lado a lado, eu a atrasar o meu passo pelo dela, que era lento e dolorosamente cauteloso. No interior do edifício reinava o silêncio, com a excepção dos gemidos de alguém, apanhado .por um mau sonho, por detrás de uma qualquer porta cerrada.

- Achas que conseguirás adormecer? - perguntou a Elaine.

- Sim, parece-me que sim - respondi, embora soubesse de antemão que isso seria impossível; fiquei deitado na cama até ao nascer do Sol, a pensar no filme O Denunciante. Em pensamento via o Rìchard Widmark a rir-se de forma demente enquanto amarrava a senhora de idade à sua cadeira de rodas e a empurrava pelas escadas abaixo.

- É isto o que costumamos fazer aos bufos - dizia-lhe ele... E então o seu rosto adquiria a expressão fisionómica do William Wharton, a que ele mostrara no dia em que tinha chegado ao Bloco E e à Milha Verde, o Wharton a rir-se à socapa tal como o Widmark, o Wharton a gritar: Isto é que é uma festa de arromba, não acham? É ou não é? Não me dei ao ïncómodo de descer para o pequeno-almoço, depois daquela noite; limitei-me a ir para o solário, onde retomei a minha escrita.

Fantasmas? Com certeza.

Eu sei tudo o que há a saber sobre fantasmas.

 

- Ennaaa, rapazes! - exclamou o Wharton, rindo-se. Isto é que é uma festa de arromba, não acham? É ou não é? Continuando a gritar e a rir-se, o Wharton regressou para junto do Dean, a fim de continuar a asfixiá-lo com a corrente que lhe prendia os pulsos. E porque não? O Wharton sabia aquilo que o Dean, o Harry e o meu amigo Brutus Howell sabiam - que eles só poderiam fritar um homem uma vez.

- Bate-lhe! - gritava o Harry Terwilliger. Continuava agarrado ao Wharton, tentando pôr cobro àquela situação antes que se adiantasse mais, mas o Wharton conseguira libertar-se dele, pelo que naquele momento o Harry tentava levantar-se do chão. - Percy, bate-lhe!

Todavia, o Percy continuava imóvel, com o bastão de nogueira numa das mãos e os olhos tão arregalados que nem pratos de sopa. Ele adorava o raio daquele bastão, e qualquer pessoa teria dito que aquela era a sua grande oportunidade de o utilizar, a oportunidade por que ele ansiara desde o primeiro dia que chegara a Cold Mountain... mas agora que esta surgira, ele sentia-se demasiado atemorizado para a aproveitar. O prisioneiro não era nenhum pequeno franciú aterrorizado, como o Delacroix, nem o gigantesco negro que mal sabia que se encontrava no interior do seu corpo, como o John Coffey; era um demómio enraivecido.

Saí da cela do Wharton, deixando cair a prancheta com a papelada e sacando da minha calibre trinta e oito. Pela segunda vez naquele dia, esqueci-me por completo da infecção urinária que tanto ardor me provocava na região central do corpo. Não duvidei da história que os outros me contaram, quanto à expressão vazia do rosto do Wharton, assim como os seus olhos entorpecidos; contudo, esse não era o Wharton que eu tinha à minha frente. Aquilo que vi foi o rosto de um autêntico animal - não uma criatura inteligente, mas sim repleto de manha... de maldade... e de satisfação. Sim. Ele estava a pôr em prática aquilo que tencionara fazer. O local e as circunstâncias não tinham qualquer importância. A outra coisa que vi foram as faces inchadas e avermelhadas do Dean Stanton. Ele estava a morrer em frente dos meus olhos. O Wharton avistou a arma e posicionou o Dean na sua direcção, de forma a que, quase de certeza, eu seria forçado a alvejar um quando alvejasse o outro. Por cima do ombro do Dean, avistei um olho azul flamejante que me desafiava a disparar. O outro olho do Wharton encontrava-se oculto pelos cabelos do Dean. Por detrás deles avistei o Percy imobilizado numa atitude irresoluta, com o seu bastão meio empunhado ao alto. E foi então que, enchendo a ombreira da porta aberta que dava para o pátio da prisão, surgiu um milagre em carne e osso: o Brutus Howell. Já tinham acabado de mudar o que restava do equipamento da enfermaria, pelo que ele tinha ido até ao bloco "para perguntar quem é que queria café.

Ele agiu sem um único momento de hesitação - empurrou o Percy para o lado contra uma parede, com uma força capaz de abalar tudo e todos, sacou do seu próprio bastão e bateu na região posterior da cabeça do Wharton, utilizando toda a força do seu musculado braço direito. Ouviu-se o som ensurdecido de uma pancada - um ruído que era quase cavo, como se não existisse qualquer espécie de cérebro por baixo do crânio do Wharton - o que fez com que finalmente a corrente se soltasse em redor do pescoço do Dean. O Wharton foi-se abaixo como se fosse uma saca de farinha, o que permitiu ao Dean arrastar-se para longe daquela besta, a respirar com dificuldade e com a mão na garganta; os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas.

Ajoelhei-me junto dele e ele abanou a cabeça com violência.

- Eu estou bem... - proferiu numa voz enrouquecida. - Tomem conta... dele! - Fez um gesto na direcção do Wharton. - Fechem-no! Na cela!

Não me pareceu que ele precisasse de uma cela, depois da forma selvática como o Brutal o tinha atingido; imaginei que aquilo de que ele necessitaria era de um caixão. No entanto, a sorte não nos bafejou. O Wharton tinha perdido os sentidos, mas encontrava-se muito longe de estar morto. Ficara esparramado de lado, com um braço estendido e as pontas dos dedos a tocarem no linóleo da Milha Verde, os olhos fechados e a respiração lenta mas regular. No seu rosto via-se mesmo um sorriso beatífico, como se houvesse adormecido a ouvir a sua canção de embalar preferida. Do cabelo escorria um pequeno fio de sangue intensamente vermelho, manchando o colarinho da nova camisa do uniforme prisional. E era tudo.

- Percy! - chamei. - Dá-me uma ajuda!

Contudo, o interpelado não se mexeu, continuando encostado à parede, olhando fixamente para o vazio com olhos atordoados. Não me parece que ele soubesse com exactidão onde é que se encontrava.

- Percy, raios te partam, agarra nele!

Só então é que ele começou a mexer-se e o Harry foi em seu auxílio. Nós os três arrastámos o inconsciente Wharton para a sua cela, enquanto o Brutal auxiliava o Dean a pôr-se de pé, suportando-o com toda a suavidade, como qualquer mãe teria feito a um filho; o Dean dobrava-se sobre si mesmo, tossindo para conseguir encher os pulmões de oxigénio.

A nossa nova criança problemática não recobrou os sentidos durante quase três horas, mas, quando tal aconteceu, não parecia ter sido afectado pela violenta pancada que o Brutal lhe desferira. Voltou a si da mesma maneira como se movimentara - com rapidez. Num dado momento, estava estendido em cima da tarimba, absolutamente morto para o mundo. No segundo imediato, encontrava-se levantado junto das grades da cela - silencioso que nem um rato - olhando-me com fixidez quando eu me encontrava sentado à mesa do guarda de serviço, elaborando um relatório acerca da ocorrência. Quando finalmente pressentia presença de alguém que me fitava, soergui o olhar e ali estava ele exibindo um esgar que revelava um conjunto de dentes deteriorados e enegrecidos, entre os quais já se viam vários espaços. Senti um sobressalto ao avistá-lo ali, naquela postura. Tentei ocultar a minha reacção, mas tenho a impressão de que não lhe passou despercebida.

- Ei, lacaio - disse ele. - Da próxima vez calhar-te-à a ti. E nessa altura não vou falhar.

- Olá, Wharton - repliquei num tom tão calmo quanto me era possível. - Em vista das circunstâncias, calculo que possamos dispensar o discurso e o comité de boas-vindas, não te parece?

O seu esgar vacilou um tudo-nada. Aquela não era a resposta que ele tinha esperado e, muito provavelmente, não era a que eu teria dado noutras circunstâncias. Mas algo tinha acontecido enquanto o Wharton se mantivera inconsciente. Suponho que tenha sido uma das principais coisas que tenho tentado descrever-vos ao longo destas páginas. Agora vamos a ver se vocês acreditam.

 

À excepção de ter gritado numa ocasião ao Delacroix, o Percy manteve a boca fechada depois de todo aquele rebuliço ter chegado ao fim. Isso era, possivelmente, resultado do choque e não de uma tentativa destinada a mostrar um certo tacto - o Percy sabia tanto de tacto como eu das tribos mais primitivas de África - mas essa atitude veio muito a calhar, fosse por que motivo fosse. Se tivesse começado a lamentar-se quanto à forma como o Brutal o havia arremessado contra a parede, ou caso se interrogasse sobre a razão por que ninguém lhe dissera que por vezes homens tão maus como o Billy Selvagem acabavam por ir parar ao Bloco E, tenho a impressão que teríamos optado por matá-lo. Isso ter-nos-ia permitido percorrer a Milha Verde em moldes totalmente diversos. O que não deixa de ser uma ideia engraçada, se pensarmos bem. Desperdicei a minha grande oportunidade de agir como o James Cagney em Fúria Sanguinária.

Enfim, quando tivemos a certeza de que o Dean continuaria a respirar, e que não se encontrava prestes a perder os sentidos ali mesmo, o Harry e o Brutal levaram-no para a enfermaria. O Delacroix, que se mantivera num silêncio absoluto durante toda aquela confusão (já tinha estado na prisão muitas vezes, pelo que sabia quando era prudente manter a boca fechada e quando era relativamente seguro abri-la de novo), começou a gritar, fazendo um grande alarido no corredor, enquanto o Harry e o Brutal levavam o Dean para fora. O Delacroix queria saber o que tinha acontecido. Pelo seu tom de voz, até se poderia pensar que os seus direitos constitucionais haviam sido violados.

- Cala a boca, larilas! - berrou-lhe o Percy, tão furioso que as veias em ambos os lados do pescoço ficaram salientes. Coloquei uma mão sobre o seu braço, sentindo-o a tremer por baixo da camisa. Parte daquela atitude devia-se ao medo residual, como é evidente (de vez em quando, eu era forçado a recordar a mim mesmo que parte do problema do Percy era o facto de ele ter apenas vinte e um anos, não sendo muito mais velho que o Wharton), mas estou convencido de que, em grande medida, aquilo era resultado da raiva. Ele odiava o Delacroix, não sei bem por que motivo, mas o certo é que era assim.

- Vai ver se o director Moores ainda cá está - disse eu ao Percy. - Se estiver, apresenta-lhe um relatório verbal, bem completo, daquilo que sucedeu aqui. Diz-lhe que amanhã lhe entregarei um relatório escrito, se conseguir elaborá-lo.

Percy inchou visivelmente por causa da responsabilidade de que eu estava a incumbi-lo; durante um ou dois momentos horríveis, pensei que ele ia fazer-me continência.

- Sim, senhor. Assim farei.

- Começa por dizer-lhe que a situação no Bloco E já está normalizada. Isto não se trata de uma história, e o director não apreciará o facto de a arrastares, para criares mais expectativa.

- Não farei isso - replicou o Percy. - Muito bem. Vai-te embora.

Encaminhou-se para a porta, mas pouco depois deteve-se, voltando atrás. A única coisa que podíamos esperar era que ele fizesse o oposto daquilo que queríamos. Eu desejava desesperadamente que ele saísse dali, sentia as virilhas em fogo, e agora tudo indicava que ele não estava disposto a ir-se embora.

- Estás bem, Paul? - perguntou ele. - Talvez estejas a ficar com febre. Estás a chocar alguma gripe? Digo isto porque tens as faces cobertas de suor.

- Talvez esteja a chocar alguma, mas de uma maneira geral sinto-me bem - afirmei. - Despacha-te, Percy, vai informar o director.

Ele anuiu com um acenar de cabeça e afastou-se - graças a Deus pelos pequenos favores. Assim que a porta se fechou, dirigi-me rapidamente para o meu gabinete. Deixar a mesa do guarda de serviço desocupada era contra os regulamentos mas naquela altura esse aspecto não me interessava rigorosamente nada. Sentia-me bastante mal - tão mal como me sentira nessa manhã.

Consegui entrar no pequeno cubículo que servia de lavabo por detrás da mesa, e tirei o coiso para fora das calças antes que a urina começasse a jorrar, mas esteve mesmo por um triz. Fui obrigado a tapar a boca com uma mão para abafar um grito quando o mijo começou a jorrar, e com a outra agarrei-me ao bordo do lavatório, sem ver o que fazia. Não era como em minha casa, onde podia cair de joelhos e mijar até formar uma poça junto à pilha de lenha; se eu me pusesse de joelhos ali, a urina derramar-se-ia pelo chão todo.

Com grandes dificuldades lá consegui manter-me de pé sem gritar, embora tanto uma coisa como a outra tivessem estado por pouco. Parecia que a minha urina estava cheia de ínfimos estilhaços de vidro. O cheiro que se evolava da retrete era desagradável e pestilento, e vi uma substância esbranquiçada - calculo que se tratasse de pus - a flutuar à superfície da água.

Retirei a toalha do toalheiro e limpei o rosto com ela. Suava profusamente; a transpiração jorrava dos poros. Olhei para o espelho de metal e avistei as faces congestionadas de um homem cheio de febre, o qual retribuía o meu olhar. Trinta e oito e meio? Trinta e nove? Talvez fosse preferível não saber. Voltei a colocar a toalha no seu lugar, accionei a descarga de água e, num passo lento, atravessei o meu gabinete, dirigindo-me para a porta do bloco. Receava que o Bill Dodge, ou qualquer outra pessoa, pudesse ter aparecido, deparando com três prisioneiros desacompanhádos, mas aquele espaço encontrava-se vazio. O Wharton continuava inconsciente deitado em cima da sua tarimba, enquanto o Delacroix se remetera ao mutismo e o John Coffey nem sequer chegara a emitir um único ruído, apercebi-me eu inesperadamente. Nem um pio. O que era preocupante.

Comecei a percorrer a Milha, lançando um olhar para o interior da cela do Coffey, um pouco à espera de verificar que ele se tinha suicidado através de um dos dois meios mais comuns no Corredor da Morte - enforcar-se com as próprias calças ou dilacerar com os dentes os próprios pulsos. Veio a verificar-se que não sucedera nem uma coisa nem a outra. O Coffey limitara-se a continuar sentado na tarimba, com as mãos pousadas sobre as coxas; o homem mais corpulento que eu alguma vez vira em toda a minha vida, olhava para mim com os seus estranhos olhos lacrimosos.

- Capitão? - chamou ele.

- O que é que se passa, matulão? - perguntei. Preciso de falar consigo.

.- Por acaso não estarás tu a olhar para mim neste mesmo momento, John Coffey?

Não replicou àquela pergunta, continuando a examinar-me com o seu olhar estranho e humedecido.

- Num segundo, matulão - retorqui com um suspiro. Fixei a minha atenção no Delacroix, o qual se colocara junto das barras da sua cela. O Mister Jingles, o seu rato de estimação (o Delacroix não tinha o mínimo pejo em dizer-nos que havia ensinado o Mister Jingles a fazer habilidades, todavia, todos os que trabalhavam na Milha Verde achavam que o rato se amestrara a si mesmo), saltava desassossegadamente para lá e para cá, de uma das mãos estendidas do Del para a outra, qual acrobata a dar saltos de plataformas acima do centro da arena. Os seus olhos estavam muito arredondados, e tinha as orelhas encostadas ao crânio acastanhado de linhas esguias. Não me restava a mais pequena dúvida de que o rato reagia em função do nervosismo que o Delacroix sentia. Enquanto eu o observava, ele começou a correr pelas calças do Delacroix, atravessando o chão da cela até ao carretel de cores garridas que se encontrava encostado a uma parede. Empurrou o carretel até próximo dos pés do Delacroix, fitando-o ansiosamente, sem que o pequeno cajun tivesse prestado atenção ao amigo, pelo menos naquela altura.

- O que é que aconteceu, chefe? - perguntou ele. - Quem é que se magoou?

- Está tudo em ordem - respondi. - O nosso novo rapaz entrou com atitude de leão, mas agora está inconsciente e sossegado que nem um cordeirinho. Tudo está bem quando acaba bem.

- Ainda não acabou - retorquiu o Delacroix, erguendo o olhar por cima da Milha, na direcção da cela onde o Wharton continuava prostrado. - L'homme mauvais, c'est vrai!

- Pois bem - disse-lhe eu. - Não deixes que isso te deprima, Del. Ninguém te vai obrigar a saltar à corda com ele no pátio.

Vindo de trás, ouvi o som ranger de uma tarimba quando o Coffey se levantou.

- Chefe Edgecombe! - chamou ele de novo. Desta feita, a entoação da sua voz denotava urgência. - Preciso de falar consigo!

Voltei-me para ele, pensado: "Muito bem, não existe qualquer problema, falar faz parte das minhas funções." Durante todo este tempo, envidava esforços para não tremer, uma vez que a febre me provocava arrepios de frio, como por vezes acontece. Excepto na região das virilhas, que continuava a dar-me a sensação de ter sido golpeada, cheia com carvões em brasa e depois cosida.

- Nesse caso, diz o que tens a dizer, John Coffey - repliquei, tentando imprimir à voz um timbre ligeiro e calmo. Pela primeira vez desde que chegara ao Bloco E, o Coffey tinha o aspecto de quem se encontrava realmente ali, entre nós, de corpo e alma. O quase ininterrupto fio de lágrimas que lhe saía pelo canto dos olhos havia cessado, pelo menos de momento; eu apercebia-me de que ele via realmente aquilo para que olhava, Paul Edgecombe, o manda-chuva dos guardas do Bloco E, e não qualquer lugar para onde desejasse poder regressar, desfazendo a acção pavorosa que cometera.

- Não - disse ele. - Tem de vir aqui dentro.

- Ora vamos lá a ver, tu bem sabes que eu não posso fazer isso - redargui, continuando a manter um tom aligeirado -, pelo menos, neste preciso momento. Por agora encontro-me sozinho aqui e tu pesas, no mínimo, cerca de uma tonelada e meia a mais do que eu. Esta tarde já tivemos rebuliço de sobra. Por conseguinte, vamos ter de travar a nossa conversa através das grades, isto é, se" tu não vires inconveniente nisso...

- Por favor! - O Coffey apertava as barras com tanta força que os nós dos dedos tinham empalidecido e as unhas estavam brancas. O seu rosto era a expressão do desânimo,

vendo-se nos seus olhos uma necessidade premente que eu não conseguia compreender. Recordo-me de na altura ter pensado que talvez tivesse podido compreender se não me sentisse tão adoentado; isso poderia ter-me proporcionado um meio de o ajudar através do resto dessa situação. Quando se sabe do que um homem necessita, conhece-se o homem.

- Por favor, chefe Edgecombe! Tem de entrar na cela! Mas isto é a coisa mais disparatada que já ouvi, pensei, apercebendo-me de algo ainda mais insensato: eu estava disposto a aceder ao seu pedido. Tinha o molho de chaves fora do cinto, procurando entre elas as que abriam a cela do John Coffey. Ele teria podido agarrar em mim e ter-me quebrado em cima dos seus joelhos, como se eu fosse um mero galho, num dia em que eu me sentisse em boas condições de saúde e, decididamente, aquele não era um desses dias. Fosse como fosse, encontrava-me prestes a fazê-lo. Sozinho e tendo decorrido menos de meia hora depois da demonstração gráfica de até onde é que a estupidez e a falta de cuidado nos podem levar, quando se lida com assassinos condenados à morte, eu estava disposto a abrir a porta da cela daquele gigante negro, entrar e sentar-me junto dele. Se esse meu acto viesse a ser descoberto, poderia muito bem vir a perder o emprego, mesmo que ele não se comportasse de uma maneira tresloucada, mas, apesar de tudo, eu não ia hesitar.

"Pára", disse eu a mim mesmo, "pára neste mesmo momento, Paul." Contudo, não o fiz. Inseri uma das chaves na ranhura da fechadura de cima e outra na de baixo e fiz deslizar a porta sobre a calha.

- Sabe, chefe, isso talvez não seja uma ideia muito boa - disse o Delacroix numa voz tão enervada e efeminada que provavelmente, e noutras circunstâncias, me teria feito rir.

- Preocupa-te com os teus assuntos que eu preocupo-me com os meus - respondi-lhe sem olhar em redor. Mantinha os olhos fixos na figura do John Coffey, de uma forma tão intensa que se poderia dizer que estavam pregados no homem. Era como se eu houvesse sido hipnotizado. A minha voz soava aos meus próprios ouvidos como algo que tivesse vindo a ecoar através de um longo vale. Que diabo, talvez eu estivesse sob o efeito de hipnose. - Deita-te e descansa um pouco.

- Céus, este lugar é de loucos - comentou o Delacroix numa voz tremida. - Mister Jingles, quem me dera que eles me fritassem para acabar de uma vez por todas com este assunto!

Entrei na cela do Coffey. Quando comecei a avançar, ele afastou-se. Quando já se encontrava de costas contra a sua tarimba - tocando-lhe com a barriga das pernas, isto dá-vos a medida da altura do homem - sentou-se em cima do colchão. Os seus olhos não se desprendiam de mim; indicou-me o lugar na tarimba junto de si. Sentei-me onde ele me indicara, e o Coffey colocou o seu braço em redor dos meus ombros, como se nos encontrássemos no cinema e eu fosse a sua namorada.

- O que é que pretendes, John Coffey? - perguntei, continuando a fitar-lhe os olhos... Aqueles olhos tão serenos e tão entristecidos.

- Só quero conseguir evitar o mal - replicou ele. Suspirou como um homem que se vê perante uma tarefa que não lhe apetece muito levar a cabo; em seguida, baixou a mão até à minha região entre pernas, sobre o osso que fica mais ou menos trinta centímetros abaixo do umbigo.

- Eh! - gritei. - Tira já o raio da tua mão...

Nessa altura senti um impacte violento a atravessar-me o corpo, um golpe enorme sem dor que não consegui identificar. Fui sacudido por um solavanco em cima da tarimba que fez com que as minhas costas se curvassem; aquilo trouxe-me à mente a imagem do velho Pouca Terra a gritar que estava a ser frito, estava a ser frito, era um peru cozinhado. Não senti calor nem a passagem de corrente eléctrica, mas por breves instantes fiquei com a impressão de que as cores tinham saltado para fora de tudo, como se o mundo, de uma maneira qualquer, houvesse sido espremido. Conseguia distinguir todos os poros na pele do rosto do John Coffey, assim como todos os vasos sanguíneos que lhe atravessavam os olhos de expressão assombrada; via ainda um pequeno arranhão no seu queixo que já começara a sarar. Compreendi que os meus dedos eram ganchos, enclavinhando-se no vácuo, e que os meus pés batiam contra o chão da cela do John Coffey.

Em seguida, terminou tudo. O mesmo aconteceu à minha infecção urinária. Tanto o ardor como aquele latejar atroz, que tantas dores me causavam, tinham desaparecido das mi nhas virilhas, tal como a febre que me afligira a cabeça. Continuava a sentir a transpiração que aquilo fizera aflorar à minha pele, conseguindo cheirar o mal que me atormentara, mas que sem dúvida alguma desaparecera.

- O que é que se passa? - perguntou o Delacroix numa voz esganiçada. Eu tinha a impressão de que a sua voz vinha de muito longe, mas quando o John Coffey se inclinou para a frente, interrompendo o contacto visual que mantivera comigo até então, de súbito, a voz do pequeno cajun tornou-se clara. Era como se alguém houvesse retirado bolas de algodão, ou um par de tampões, das minhas orelhas. - O que é que ele lhe está a fazer, chefe?

Não lhe dei resposta. O Coffey continuava debruçado para a frente, com o rosto contorcido e a garganta que parecia querer rebentar. Os olhos estavam esbugalhados. Tinha a aparência de um homem com um osso de galinha atravessado na garganta.

- John! - gritei. Comecei a dar-lhe palmadas nas costas; não me ocorreu outra coisa para fazer. - John, o que é que aconteceu contigo?

Ele estremeceu por baixo da minha mão e emitiu um som engasgado, que deixava adivinhar ânsias de vómito. A sua boca abriu-se, da mesma forma que os cavalos, por vezes, abrem as suas, a fim de permitir a entrada do freio - relutantemente e com os lábios arreganhados para trás, revelando os dentes, numa espécie de esgar desesperado. Pouco depois, os seus dentes também se entreabriram e ele soltou uma nuvem de insectos negros pequeníssimos, os quais se assemelhavam a mosquitos ou a moscas. Esvoaçavam furiosamente entre os seus joelhos, mas logo depois ficaram brancos e desapareceram.

De repente, senti que todas as forças abandonavam a parte do meio do meu corpo. Era como se os músculos naquela região se tivessem transformado em água. Deixei-me descair contra a superfície da parede de pedra da cela do Coffey. Recordo-me de ter pensado no nome do Salvador - Cristo Cristo, Cristo, repetindo-o vezes sem conta - e também me lembro de que me ocorreu que a febre me fizera entrar em delírio. E foi tudo.

Nessa altura, dei-me conta de que o Delacroix gritava por ajuda; anunciava ao mundo que o John Coffey estava a matar-me, com toda a força dos seus pulmões. O Coffey encontrava-se debruçado sobre mim, sem dúvida, mas apenas para se certificar de que eu estava bem.

- Cala a boca, Del - ripostei, levantando-me da tarimba. Fiquei à espera que as dores me dilacerassem as entranhas, mas tal não aconteceu. Sentia-me muito melhor. De verdade. Embora tivesse uma ligeira tontura, esta desapareceu antes mesmo de eu ter estendido a mão para me agarrar às barras da porta da cela do Coffey, a fim de me equilibrar. - Estou muitíssimo bem.

- Saia já daí - disse o Delacroix numa voz que parecia a de uma velhota nervosa a dizer a uma criança que descesse de uma macieira. - Não deveria ter entrado na cela sem haver mais um guarda no bloco.

Olhei para o John Coffey, que continuava sentado na tarimba, tendo colocado as suas mãos enormes sobre os joelhos grossos que nem troncos. O John Coffey retribuiu-me o olhar.

Foi obrigado a inclinar a cabeça um pouco para cima, mas não muito.

- O que é que tu fizeste, matulão? - perguntei em voz baixa. - O que é que me fizeste?

- Consegui evitar o mal - respondeu ele. - Consegui evitar o mal, não é verdade?

- Sim, suponho que sim, mas como? Como é que conseguiste evitar o mal?

Abanou a cabeça - para a direita, esquerda e de volta ao centro, onde se imobilizou. Não sabia como é que tinha evitado o mal (como é que havia curado o mal); o seu rosto plácido sugeria que se estava nas tintas - tal como eu me estaria nas tintas acerca da mecânica de uma corrida se fosse à frente durante os últimos cinquenta metros dos três quilómetros da corrida do 4 de Julho. Ainda pensei em lhe perguntar como é que tinha descoberto que eu estava doente, só que eu sabia antecipadamente que teria como resposta outro sacudir de cabeça. Li algures uma frase de que nunca me esqueci, qualquer coisa sobre "um enigma envolto num mistério". Era isso mesmo o que o John Coffey era, e suponho que ele só conseguia dormir à noite porque não se interessava por nada. O Percy costumava apelidá-lo de mentecapto, o que era um termo cruel, mas que não se encontrava muito longe da verdade. O nosso matulão conhecia o seu nome, sabendo que não se escrevia da mesma forma que a bebida, e isso era mais ou menos tudo o que lhe interessava saber.

Como que a dar mais ênfase a essa realidade, abanou de novo a cabeça daquela maneira tão deliberada e estendeu-se em cima da tarimba com as mãos entrelaçadas por baixo da bochecha esquerda, como se esta fosse uma almofada, mantendo o rosto virado para a parede. As suas pernas estavam suspensas do fundo do colchão, desde as canelas até aos pés, mas isso nunca pareceu incomodá-lo. A parte de trás da camisa estava arrepanhada para cima, o que me permitia avistar as cicatrizes que se entrecruzavam na sua pele.

Abandonei a cela, fechei-a à chave e olhei para o Delacroix, que se encontrava agarrado às grades, olhando-me com uma expressão de ansiedade. Talvez até mesmo com um certo receio. O Mister Jingles estava empoleirado em cima do ombro, com os seus bigodes finos que fremiam como se fossem filamentos.

- O que é que aquele escarumba lhe fez? - perguntou o Delacroix. - Foi bruxedo? - Falava com aquele sotaque cajun que lhe era peculiar.

- Não sei de que é que estás para aí a falar, Del.

- O diabo é que não sabe! Olhe bem para si! Todo mudado! Chefe, até está a andar de uma maneira diferente! De facto, é provável que eu caminhasse de maneira diferente. Tinha uma sensação maravilhosa de calma nas minhas virilhas, um sentimento de paz tão extraordinário que quase se lhe poderia chamar êxtase - alguém que tenha sentido dores atrozes, e que depois recuperou, sabe perfeitamente o que quero dizer.

- Está tudo bem, Del - insisti. - O John Coffey teve um pesadelo e nada mais.

- Ele é um homem de bruxarias! - afirmou o Delacroix com toda a veemência. Acima do seu lábio superior haviam se agrupado várias gotículas de suor. Não conseguira ver muita coisa, somente o suficiente para o assustar de morte. - Ele é um homem de vodu! - acrescentou.

- O que é que te leva a dizer isso?

O Delacroix estendeu a mão e agarrou no rato. Com a palma da mão em forma de concha levou-o à face. Da algibeira retirou um fragmento de qualquer coisa amarelada um daqueles rebuçados de hortelã-pimenta. Estendeu-o para o rato, mas este inicialmente ignorou a guloseima, preferindo esticar o pescoço na direcção do homem, cheirando o seu bafo da mesma maneira que uma pessoa poderia cheirar um ramo de flores. Os seus pequenos olhos, semelhantes a contas negras e brilhantes, cerraram-se quase por completo, numa expressão que se igualava a um sentimento de êxtase. O Delacroix beijou-lhe o focinho, o que o rato permitiu. Em seguida agarrou no bocado de rebuçado, começando a mordiscá-lo. O Delacroix ficou a observar o bicho durante mais algum tempo, após o que olhou para mim. De chofre, percebi tudo. - O rato contou-te - disse eu. - Estou certo?

- Oui.

- Tal como te segredou o seu nome - acrescentei. - Oui - murmurou-me ao ouvido.

- Deita-te, Del - continuei. - Descansa um pouco. Todos esses segredos devem cansar-te muito.

O Delacroix acrescentou mais qualquer coisa - acusou-me de não acreditar no que ele me dizia, suponho eu. Uma vez mais, tive a impressão de que a sua voz vinha de muito longe. E quando regressei à mesa do guarda de serviço, mal tinha a sensação de estar a caminhar - era mais como se flutuasse, ou talvez mesmo nem sequer me deslocasse, com as celas a passarem por mim em ambos os lados, adereços de filmes e rodas escondidas.

Comecei a sentar-me de maneira normal, mas a meio dos meus movimentos, senti os joelhos a desfalecerem e deixei-me cair em cima da almofada azul que o Harry trouxera de casa no ano anterior, instalando-me sobre o assento da cadeira. Imagino que se a cadeira não tivesse estado ali, teria caído redondamente no chão.

Deixei-me ficar sentado, sentindo aquele nada nas partes íntimas, onde ainda não havia dez minutos tinha lavrado o incêndio de uma floresta. Eu consegui evitar o mal, não é verdade?, dissera o John Coffey, e isso era verdade no que dizia respeito ao meu corpo. No entanto, em relação à minha paz de espírito o assunto era outro. Isso ele não havia evitado nem um pouquinho.

O meu olhar pousou no amontoado de impressos debaixo do cinzeiro de zinco que tínhamos num dos cantos da mesa. Escritas em maiúsculas ao cimo estavam as palavras RELATÓRIO DO BLOCO, e abaixo, mais ou menos a meio da folha, havia um espaço em branco com o cabeçalho Relatório de Todas as Ocorrências Anormais. No relatório que elaboraria naquela noite, servir-me-ia desse mesmo espaço para descrever a chegada do William Wharton ao bloco, cheia de cor e de acção. Mas suponhamos que eu também relatava o que me acontecera na cela do John Coffey? Observei-me a mim próprio a agarrar no lápis - aquele cuja ponta o Brutal lambia constantemente - afim de escrever uma única palavra em letras maiúsculas: MILAGRE.

Certamente que isso teria imensa graça, mas em vez de sorrir, fiquei de repente com a certeza de que iria chorar. Cobri o rosto com as mãos, com as palmas contra a boca parapoder abafar os soluços - não queria assustar o Del outra vez, exactamente na  da garganta. Também não me assomaram lágrimas aos olhos. Ao fim de alguns momentos, baixei as mãos, pousando-as sobre o tampo da mesa, onde as entrelacei. Não sabia o que é que estava a sentir; o único pensamento claro que tinha na cabeça era o desejo de que ninguém aparecesse no bloco até eu ter recuperado um pouco o domínio sobre mim próprio. Receava aquilo que eles pudessem ler na minha expressão.

Agarrei num dos impressos intitulados "Relatório do Bloco". Tencionava aguardar até me ter acalmado um pouco mais para começar a descrever como é que a minha última criança problemática estivera quase a estrangular o Dean Stanton, mas entretanto poderia iniciar o preenchimento do resto de toda aquela treta. Pensei que a minha letra talvez ficasse esquisita - tremida - mas verifiquei que me saía quase como de costume.

Cerca de cinco minu tos depois de ter começado, pousei o lápis e dirigi-me para os lavabos adjacentes ao meu gabinete, a fim de urinar. Não tinha muita necessidade de ir, todavia, consegui reunir o suficiente para pôr à prova o meu novo estado. Enquanto ali fiquei, à espera que o líquido começasse ajorrar, tive a certeza de que iria doer-me tanto como nessa manhã, como se estivessem a passar pequenos estilhaços de vidro moído; ao fim e ao cabo, o que ele me tinha feito não seria mais do que o efeito de uma espécie de transe hipnótico, e que até certo ponto poderia ser um alívio, apesar das dores.

Só que não senti quaisquer dores, e o fluxo que saiu para a retrete era límpido, sem o mínimo vestígio de pus. Abotoei a braguilha, puxei a corrente do autoclismo e regressei à mesa do guarda de serviço, sentando-me uma vez mais.

Eu sabia o que tinha acontecido; suponho que o sabia mesmo quando tentava dizer a mim mesmo que fora hipnotizado. Eu experimentara uma cura milagrosa, uma autêntica "Jesus Seja Louvado, o Senhor É Todo-Poderoso". Como em rapaz estava acostumado a ir às igrejas baptistas ou pentecostalistas que num dado mês a minha mãe e as irmãs agraciavam com a sua presença, tinha ouvido o suficiente sobre as histórias miraculosas de "Jesus Seja Louvado, o Senhor É Todo-Poderoso". Não acreditava em todas elas, mas havia bastantes pessoas em que eu acreditava. Uma destas era um homem de nome Roy Delfines, que vivia com a sua família cerca de três quilómetros mais abaixo, na mesma rua que nós, quando eu tinha mais ou menos seis anos. Delfines tinha decepado acidentalmente com um machado o dedo mindinho do filho, quando o garoto, num gesto inesperado, deslocara a mão sobre o tronco que segurava sobre o cepo das traseiras, onde era costume o pai rachar a lenha. O Roy Delfines dissera que tinha, praticamente, desgastado a carpete com os seus joelhos durante esse Outono e Inverno; na Primavera, o dedo do rapaz tinha voltado a crescer. Até mesmo a unha tinha crescido de novo. Eu acreditei no Roy Delfines quando ele .apresentou o seu testemunho na reunião de júbilo, de quinta-feira à noite. Nas suas palavras adivinhava-se uma honestidade tão franca e tão pouco complicada quando ele falou ali à frente dos outros, com as mãos enfiadas nos bolsos do fato-macaco, que era impossível não se acreditar no que ele dizia.

- O rapaz sentia algumas comichões quando o dedo começou a crescer, e ficava acordado à noite - disse Roy Delfines -, mas ele sabia que aquelas comichões eram do Senhor, e ue não devia fazer nada. - Jesus Seja Louvado, o Senhor Todo-Poderoso.

A história do Roy Delfines era apenas uma de entre muitas; eu cresci numa tradição de milagres e de curas. Cresci também na crença das bruxarias: água mágica para as verrugas, musgo colocado debaixo da almofada para aliviar os desgostos de amor, e, é claro, aquilo a que costumávamos chamar haints - mas eu não estava em crer que o John Coffey fosse um homem de bruxarias. Eu tinha-o olhado bem no fundo dos olhos. Porém, mais importante do que isso, tinha sentido o toque da sua mão. Ter sido tocado por ele foi como se tivesse sido tocado por um médico estranho e maravilhoso. Eu consegui evitar o mal, não é verdade?

Aquilo continuava a ressoar na minha cabeça, como o trecho de uma canção que não conseguimos afastar do pensamento, ou palavras que se proferissem para lançar um encantamento.

Eu consegui evitar o mal, não é verdade?

Só que ele não o tinha feito. Deus tinha. A utilização que o John Coffey fazia da palavra "eu" poderia ser levada à conta da ignorância, e não à do orgulho, mas eu sabia – pelo menos acreditava - no que tinha aprendido sobre as curas nessas igrejas de Jesus Seja Louvado, o Senhor É Todo-Poderoso, amens proferidos no meio de igrejas em pinhais, que tanto a minha mãe de vinte e dois anos como as minhas tias muito amavam: esse género de curas nunca tem nada a ver com o que é curado, nem com o que cura, mas sim com a vontade de Deus. Que alguém rejubile perante os doentes que são curados é normal, mas a pessoa que foi curada passa a ter a obrigação de perguntar porquê - de meditar na vontade de Deus, assim como em todas as coisas que Deus teve de fazer para cumprir a Sua vontade.

O que é que Deus queria de mim, em relação a este caso? O que é que Ele desejava com tanta intensidade para colocar o poder da cura nas mãos de um assassino de crianças? Estar no bloco em vez de em casa, doente que nem um cão, a tremer na cama com o fedor das sulfamidas a ser expelido pelos poros? Talvez; é possível que o destino me tenha colocado ali, em vez de ter ficado em casa, para o caso de o Bill "Selvagem" Wharton decidir desencadear outra fúria, ou ainda para me assegurar de que o Percy Wetmore não enveredava por outra situação perigosa e potencialmente destrutiva. Nesse caso, muito bem. Pois que o fosse. Eu manter-me-ia de olhos bem abertos... e de boca bem fechada, muito em especial quanto às curas milagrosas.

Ninguém sentiria curiosidade, por eu estar com melhor aspecto; eu dissera a toda a gente que já me sentia melhor, e até esse dia acreditara sinceramente que era esse o caso. Dissera mesmo ao director Moores que já estava a caminho da cura. Apesar de o Delacroix ter visto qualquer coisa, eu estava certo de que ele também ficaria calado (provavelmente com receio de que o John Coffey lançasse um encantamento sobre ele próprio, caso falasse do assunto). Quanto ao próprio Coffey, muito possivelmente já se havia esquecido de tudo. Ao fim e ao cabo, ele não passava de um mero veículo de transmissão, além de que não existia em todo o mundo um único cano de esgoto que se recordasse da água que tinha corrido pelo seu interior, depois de a chuva ter amainado. Nesta conformidade, resolvi manter a minha boca completamente selada quanto àquele assunto, sem fazer ideia de que em breve estava a contar a história e de a quem a contaria.

O certo é que sentia curiosidade quanto ao nosso matulão, não servindo de nada querer negar esse facto. Depois do que me tinha acontecido ali, na cela, sentia-me mais curioso do que nunca.

 

Antes de me ir embora nessa noite, combinei com o Brutal para que me substituísse no dia a seguir, no caso de eu chegar um pouco mais tarde. Quando me levantei na manhã seguinte, pus-me a caminho de Tefton, localidade situada no município de Trapingus.

- Não sei se gosto que te preocupes tanto com esse fulano, o Coffey - dissera a minha mulher, entregando-me a merenda que preparara; a Janice nunca confiou nessas bancas de hambúrgueres que existem à beira da estrada; costumava dizer que em cada uma delas havia uma dor de barriga à espera., - Isso não parece nada teu, Paul.

- Eu não estou preocupado com ele - retorqui. - Estou apenas curioso e nada mais.

- A minha experiência diz-me que uma coisa leva à outra - retorquiu a Janice num tom acerbado, e deu-me um beijo na boca, vindo bem do fundo do coração. - Pelo menos estás com melhor aspecto, tenho de admitir isso. Durante algum tempo conseguiste pôr-me nervosa. A canalização está toda curada?

- Completamente curada - confirmei e lá me pus a caminho, entoando canções como por exemplo, Come, Josephine, in My Flying Machine e We're in the Money, a fim de fazer companhia a mim próprio.

Em primeiro lugar, dirigi-me para os escritórios do Intelligencer de Tefton, onde fui informado de que o Burt Hammersmith, o sujeito com quem eu queria falar, devia estar no tribunal. De facto assim fora, de acordo com o que me disseram no tribunal, mas ele saíra depois de ter rebentado um cano da água a meio do julgamento de um caso de estupro (nas páginas do Intelligencer o caso seria referido como "ataque a uma mulher", que era a forma de descrever esse género de ocorrência nesses tempos, antes do aparecimento em cena de Ricki Lake e Carnie Wilson). Calcularam que o mais certo seria ele ter ido para casa. Numa estrada de terra batida tão estreita e cheia de sulcos que nem sequer me atrevia a percorrê-la com o meu Ford, deram-me algumas indicações que segui até ter encontrado o homem que procurava. Fora o Hammersmith quem escrevera a maior parte dos artigos relativos ao julgamento do Coffey, e através dele eu tomara conhecimento da maior parte dos pormenores que haviam envolvido a breve caçada ao homem que culminara na detenção do Coffey. Como é evidente, estou a referir-me aos aspectos que a redacção do Intelligencer considerou serem demasiado macabros para publicação.

Mrs. Hammersmith era uma mulher ainda bastante jovem, senhora de um rosto bonito, mas que acusava cansaço, e tinha as mãos vermelhas por causa da lixívia. Não me perguntou o que é que me levara ali, limitando-se a conduzir-me através de uma pequena casa cheia da fragrância de biscoitos a cozerem no forno até um alpendre nas traseiras, onde o marido se sentava com uma garrafa de refrigerante na mão, tendo em cima das coxas uma edição da revista Liberty por abrir. O pequeno jardim das traseiras era em declive; na base deste encontravam-se dois garotos que discutiam e riam por causa de um baloiço. Do alpendre era impossível dizer qual era o seu sexo, mas fiquei com a impressão de que eram um rapaz e uma rapariga. É possível que fossem gémeos, o que colocava o pai numa perspectiva bastante interessante á luz do papel periférico que desempenhara no julgamento do Coffey. Mais próximo, como se fosse uma ilha no meio de uma zona coberta de cagalhões onde não havia nada plantado, encontrava-se uma casota de cão. Não se via o mais pequeno sinal do Fido; era outro dia anormalmente quente, e calculei que deveria estar dentro da sua casota, a passar pelas brasas.

- Burt, tens visitas - anunciou Mrs. Hammersmith. - Está bem - replicou ele. Olhou para mim, olhou para a mulher, depois olhou para os filhos, onde era óbvio que o seu coração se encontrava.

Era um homem magro - quase doentiamente magro, como se só há muito pouco tempo é que houvesse começado a recuperar de uma doença grave - e nas fontes o cabelo já começava a deixar ver umas entradas. A medo, a mulher tocou-lhe num dos ombros com as mãos avermelhadas e inchadas da lavagem da roupa. O marido não a olhou nem fez qualquer menção de lhe desejar tocar; momentos depois, ela retirou a mão. Foi então que me ocorreu, de uma maneira imprecisa, que eles mais pareciam irmã e irmão, em vez de marido e mulher - ele tinha a inteligência, enquanto ela possuía a beleza, mas nem um nem outro conseguira escapar a algumas parecenças que se adivinhavam mais do que se viam, a uma hereditariedade a que nunca se podia escapar. Mais tarde, já a caminho de casa, compreendi que eles não tinham nenhuma semelhança entre si; aquilo que dava essa impressão era o rescaldo de uma tensão latente e um desgosto que teimosamente se recusava a desaparecer. É bastante estranha a forma como o sofrimento marca as nossas feições, emprestando-nos as parecenças existentes entre familiares.

- Apetece-lhe uma bebida fresca, Mister?... - perguntou ela pouco depois.

- O nome é Edgecombe - apresentei-me. - Paul Edgecombe. Muito agradecido. Uma bebida refrescante seria uma maravilha, minha senhora.

Ela regressou ao interior de casa. Estendi a mão a Hammersmith, que a apertou num gesto breve. O seu apertar de mão era flácido e frio. Nunca afastou o olhar dos garotos que brincavam ao fundo do jardim.

- Mister Hammersmith, eu sou o superintendente do Bloco E da Prisão Estadual de Cold Mountain. E...

- Eu sei o que é - atalhou ele, fitando-me com um pouco mais de interesse. - Com que então, o manda-chuva dos guardas prisionais da Milha Verde encontra-se no jardim da minha casa, tão grande como a própria vida. O que é que o fez percorrer oitenta quilómetros para conversar com o único repórter a tempo inteiro do pasquim local?

- O John Coffey - respondi.

Estou convencido de que eu esperava que ele reagisse de uma maneira mais intensa (as crianças, que poderiam ter sido gémeos, gravadas no fundo da minha mente... e talvez também a casota do cão; os Detterick tinham tido um cão), contudo, o Hammersmith limitou-se a soerguer o sobrolho, bebendo um gole da sua bebida.

- Neste momento, o Coffey é um problema seu, não é verdade? - perguntou o Hammersmith.

- Ele não constitui um grande problema - repliquei. - Não gosta do escuro e passa muito tempo a chorar, mas na nossa linha de trabalho nenhum destes aspectos constitui um problema por aí além. Costumamos ver muito pior.

- Com que então chora muito? - comentou o Hammersmith. - Pois bem, eu diria que ele tem muitas razões para chorar. Tendo em consideração o que fez. O que é que deseja saber?

- Tudo o que me possa dizer. Eu já li os artigos que escreveu para o jornal; portanto, aquilo que me interessa é qualquer coisa que não tenha sido publicada na altura.

Lançou-me um olhar agreste e cheio de secura.

- Tal como por exemplo qual era o aspecto das garotinhas? O que é que ele lhes fez exactamente? É esse o género de pormenores que lhe interessam, Mister Edgecombe?

- Não - respondi, mantendo uma voz calma. - Não é nas gémeas Detterick que eu estou interessado, meu caro senhor. As pobrezinhas já morreram. Mas o Coffey não... pelo menos, ainda não, e sinto-me curioso a respeito dele.

- Muito bem - acedeu o Hammersmith. - Puxe uma cadeira e sente-se, Mister Edgecombe. Desculpar-me-á se lhe dei a impressão de ser um pouco acerbo, mas na minha profissão deparo com muitos abutres. Que diabo, eu próprio já fui acusado muitas vezes de ser um deles. Só queria certificar-me da espécie de pessoa que o senhor é.

- E conseguiu certificar-se? - perguntei.

- Calculo que sim - retorquiu ele num timbre de voz quase de indiferença.

A história que ele me contou assemelha-se bastante ao que eu descrevi anteriormente nesta narrativa - amaneira como Mrs. Detterick deparou com o alpendre vazio e com a porta de rede solta da dobradiça superior, os cobertores amontoados a um canto e o sangue nos degraus, a forma como o marido e o filho tinham ido em perseguição do raptor das garotas; como o corpo dos guardas civis os tinham alcançado em primeiro lugar e encontrado o John Coffey não muito depois. A forma como o Coffey estivera sentado na margem do rio a lamentar-se e a chorar, com os corpos envolvidos pelos seus braços maciços, como se as garotas fossem grandes bonecas de trapos. O repórter, magro que nem um espeto, com a camisa branca aberta no colarinho e calças cinzentas, expressava-se numa voz baixa desprovida de qualquer emoção... embora os seus olhos jamais se houvessem despregado dos seus próprios dois filhos, enquanto estes riam e implicavam um com o outro, sentando-se um de cada vez no baloiço colocado à sombra, ao fundo do declive do jardim. A certa altura a meio da história, Mrs. Hammersmith regressou com uma garrafa que continha uma bebida caseira não alcoólica feita de raízes, forte e deliciosa. Deixou-se ficar junto de nós por algum tempo, ouvindo a narrativa que interrompeu durante o tempo necessário para chamar as crianças, dizendo-lhes que tinha os biscoitos prestes a saírem do forno.

- Vamos já, mamã! - gritou a garotinha; a mãe voltou a entrar em casa.

- Portanto, o que é que o leva a querer saber mais? - perguntou o Hammersmith depois de ter concluído a sua narrativa. - Nunca fui visitado por um guarda prisional, é a primeira vez que isso acontece.

-Eu já lhe disse...

- Sim, a curiosidade. Eu sei que as pessoas se sentem curiosas, chego mesmo a dar graças a Deus por isso, pois se assim não fosse ficaria sem emprego e talvez me visse obri gado a trabalhar para ganhar a vida. Mas oitenta quilómetros é um percurso bastante grande apenas para satisfazer uma simples curiosidade, especialmente quando os últimos trinta e dois são por estradas más. Por conseguinte, porque é que não me diz a verdade, Edgecombe? Já satisfiz a sua curiosidade, agora é a sua vez de satisfazer a minha.

Pois bem, poderia eu dizer, eu tinha uma infecção urinária e o John Coffey pôs as suas mãos no meu corpo e curou-a. O homem que violou e assassinou essas duas garotinhas fez isso mesmo. Assim, comecei a questionar-me a seu respeito, é claro... qualquer outra pessoa também o faria. Cheguei mesmo a perguntar a mim mesmo se o Homer Cribus e o seu assistente Rob McGee não teriam prendido o homem errado.

Apesar de todas as provas incriminatórias que existiam contra ele, interroguei-me a esse respeito. Porque quando um homem tem nas suas mãos poderes como esse, regra geral não o consideramos capaz de violar e assassinar crianças. Não, talvez isso não fosse o mais adequado.

- Há duas coisas que me intrigam - continuei. - A primeira é saber se ele já tinha feito uma coisa semelhante anteriormente.

O Hammersmith voltou-se para mim; subitamente, os seus olhos reflectiam argúcia aliada a um brilho de interesse, e apercebi-me de que era um fulano inteligente. Talvez fosse mesmo brilhante.

- Porquê? - perguntou. - O que é que você sabe, Edgecombe? O que é que ele lhe disse?

- Nada. Mas um tipo que faz este género de coisa uma vez, normalmente já a fez noutra ocasião. Adquirem o gosto por isso.

- Sim - concordou ele. - De facto. Lá isso adquirem. - E ocorreu-me que seria bastante fácil investigar o seu passado e saber se é ou não verdade. Um homem do tamanho dele e ainda por cima negro, não deve ser muito difícil de localizar.

- Isso é o que o senhor pensa, mas chegaria à conclusão de que está redondamente enganado - retorquiu ele. - Pelo menos no caso do Coffey. Eu sei o que estou a dizer.

- Já tentou?

- Já e não cheguei a conclusão nenhuma. Dois homens que trabalham no caminho-de-ferro pensaram tê-lo avistado nos estaleiros de Knoxville, dois dias antes de as garotas Detterick terem sido mortas. O que não constituiu grande surpresa; ele encontrava-se do outro lado do rio em relação à linha do caminho-de-ferro da Great Southern quando eles o apanharam e, provavelmente, foi dessa maneira que aqui chegou vindo do Tennessee. Recebi uma carta de um homem que me disse que tinha contratado um negro, corpulento e calvo, para carregar e descarregar caixotes, no início da Primavera desse ano, no Kentucky. Enviei-lhe uma fotografia do Coffey e ele confirmou que se tratava do mesmo homem. Mas para além disso... - O Hammersmith encolheu os ombros e abanou a cabeça.

- Não acha que isso é um pouco estranho? - perguntei. - Parece-me que é até muitíssimo estranho, Mister Edgecombe. É como se ele tivesse caído do céu. E ele próprio não serve de grande ajuda; não é capaz de se recordar esta semana daquilo que aconteceu na anterior.

- Não, de facto, não é - concordei. - Como é que o senhor explica isso?

- Estamos no meio da Grande Depressão - respondeu ele -, é assim que eu explico a situação. Por todas as estradas só se vê gente. Os de Oklahoma querem ir para a Califór nia apanhar pêssegos, enquanto os brancos pobres vindos dos confins pretendem ir para Detroit trabalhar nas fábricas de automóveis; por seu lado, os negros do Mississipi desejam ir para a Nova Inglaterra trabalhar nas fábricas de calçado ou na indústria têxtil. Todos, quer sejam brancos ou negros, estão convencidos de que, a sua situação económica melhorará noutro lugar qualquer. E o raio da maneira de viver dos Americanos. Até mesmo um gigante como o Coffey não desperta as atenções onde quer que vá... isto é, até decidir matar duas rapariguinhas. Duas rapariguinhas brancas.

- Acredita realmente nisso? - perguntei.

- Por vezes acredito - respondeu o Hammersmith, lançando-me um olhar brando com o seu rosto demasiado magro. Entretanto, a mulher assomara à janela da cozinha, qual maquinista na dianteira de uma automotora.

- Meninos! Os biscoitos estão prontos! - Voltou-se para mim. - Apetece-lhe um biscoito de aveia com passas, Mister Edgecombe?

- Tenho a certeza de que estão deliciosos, minha senhora, mas desta vez declino a oferta.

- Está bem - redarguiu ela, regressando à cozinha. - Já reparou nas cicatrizes que ele tem no corpo? - perguntou o Hammersmith abruptamente. Continuava a observar os filhos, os quais não conseguiam afastar-se dos prazeres do baloiço, nem sequer perante a perspectiva de poderem comer biscoitos de aveia com passas.

- Sim - respondi, sentindo-me surpreendido por ele as ter visto.

O Hammersmith reparou na minha reacção e riu-se.

- A grande vitória do advogado de defesa foi fazer com que o Coffey despisse a camisa para mostrar essas mesmas cicatrizes ao júri. O advogado da acusação, o George Peterson, protestou que se fartou, mas o juiz permitiu que ele as mostrasse. O velho George poderia ter poupado o seu fôlego... Os jurados por estas bandas não se deixam convencer por toda essa psicologia da treta de que as pessoas que foram maltratadas não são capazes de conter os seus impulsos malévolos. Acreditam que as pessoas podem evitar essas acções. É um ponto de vista por que eu nutro bastante simpatia... mas o certo é que essas cicatrizes eram bastante chocantes. Reparou em alguma coisa de especial nelas, Edgecombe?

Tivera oportunidade de ver o homem nu no chuveiro... e claro que reparara; compreendia perfeitamente de que é que o Hammersmith estava a falar.

- São todas entrecruzadas, chegam mesmo a assemelhar.Se quase a uma treliça.

- Sabe o que é que isso significa?

- Que alguém o zurziu com toda a violência quando ainda era criança, como se quisesse matá-lo - respondi. - Antes de ter crescido tudo o que tinha a crescer.

- Mas a realidade é que ele não morreu, não é verdade, Edgecombe? Poderiam ter poupado o chicote, limitando-se a afogá-lo no rio, como se fosse um gatinho abandonado, não lhe parece?

Suponho que teria sido de boa política eu ter concordado, pondo-me a andar dali para fora, mas senti-me incapaz de o fazer. Eu tinha-o visto. E também o tinha sentido. Sentira o toque das suas mãos.

- Ele é... estranho - acrescentei. - Mas o certo é que parece não existir uma violência verdadeira no seu íntimo. Estou a par das circunstâncias em que ele foi encontrado, e é bastante difícil equacionar isso com o que vejo nele, dia após dia, lá na prisão. Sei como são os homens violentos, Mister Hammersmith. - Naquele momento, como é evidente, era no Wharton que eu pensava, no Wharton a tentar estrangular o Dean Stanton com a corrente que lhe prendia os pulsos, gritando: Ennaaa, rapazes! Isto é que é uma festa de arromba, não acham?

Naquele momento, o Hammersmith olhava para mim com toda a sua atenção, esboçando um pequeno sorriso de incredulidade que, devo confessar, não me agradou muito.

- O senhor não veio até minha casa para saber se ele teria ou não morto qualquer outra garotinha algures - observou ele. - Veio cá para averiguar se eu acho que ele possa

tê-lo feito. É isso, não é verdade? Confesse-se, Edgecombe. Bebi o que restava da minha bebida e coloquei a garrafa sobre uma mesinha.

- Pois bem. Acha que sim? - perguntei.

- Meninos! - gritou ele, chamando os filhos, e inclinando-se um pouco para a frente. - Venham já para aqui e vão comer os vossos biscoitos! - Em seguida, voltou a recostar-se para trás na cadeira, olhando para mim. Aquele pequeno sorriso, aquele que não me agradava muito, voltou a reaparecer nos seus lábios. - Vou dizer-lhe uma coisa - continuou ele. - Também vai querer ouvir com bastante atenção, porque isto poderá ser a tal coisa que precisa de saber.

- Estou a ouvir - redargui.

- Nós tínhamos um cão a que chamávamos Sir Galahad - disse ele, indicando a casota do cão com o polegar apontado. - Era um bom cão. De nenhuma raça em especial, mas meigo. Calmo. Sempre pronto a lamber-nos a mão ou a ir buscar um pau que tivéssemos arremessado. Há uma data de cães rafeiros como ele, não lhe parece?

Encolhi os ombros e assenti.

- Sob muitos aspectos, um bom cão rafeiro assemelha-se muito ao seu negro - continuou o Hammersmith. - Ficamos a conhecê-lo e com muita frequência começamos a dedicar-lhe afecto. Não serve qualquer objectivo em particular, mas ainda assim continuamos a mantê-lo connosco, porque pensamos que ele gosta de nós. Quando se tem sorte, Mister Edgecombe, nunca se chega a verificar qué isso não corresponde à verdade. A Cynthia e eu não tivemos essa sorte. - Suspirou... um som alongado e de uma certa forma fantasmagórico, como o vento a dispersar folhas mortas caídas no chão. Uma vez mais, apontou na direcção da casota do cão, o que me fez perguntar a mim mesmo como é que eu não tinha ainda reparado no estado geral de abandono a que fora votada, ou no facto de muitos dos excrementos terem adquirido na superfície uma camada esbranquiçada e esboroável. - Eu costumava limpar as porcarias que ele fazia - continuou o Hammersmith -, e mantinha sempre o tecto da casota em boas condições, para que não entrasse chuva no interior. Nesse aspecto, o Sir Galahad também era como o seu negro do Sul, que não é capaz de fazer essas coisas para seu benefício. Agora nem lhe toco, desde o acidente que não me aproximo da casota... se é que se lhe pode chamar um acidente. Fui até ali com a minha carabina e disparei sobre ele, mas desde então mantenho-me afastado. Não consigo aproximar-me. Suponho que acabarei por o fazer, com o tempo. Limparei as porcarias e destruirei a casota.

 

Naquele momento, as crianças dirigiam-se para casa e, de repente, eu não quis que elas avançassem; de súbito, aquela era a última coisa à face da Terra que eu desejava que aconte cesse. A garotinha não apresentava nada de anormal, mas o rapazinho...

Subiram os degraus com estrépito, olharam para mim e começaram a rir-se à socapa, dirigindo-se para a porta da cozinha...

- Caleb - chamou o Hammersmith. - Vem até aqui. Só por um minuto...

A garotinha - de certeza que era gémea do garoto, ambos tinham de ser da mesma idade - continuou em direcção à cozinha. O rapazito aproximou-se do pai, mantendo o olhar preso nos pés. Tinha consciência de que era feio. Teria apenas uns quatro anos, calculei eu, mas com aquela idade já tinha a percepção du que era feio. O pai colocou dois dedos por baixo do queixo do filho, tentando obrigá-lo a erguer o rosto. De início, o garoto opôs resistência, até o pai ter recomeçado a falar.

- Por favor, meu filho - proferiu ele num tom de tanta doçura, amor e tranquilidade, que o garoto fez como lhe era pedido.

Da linha do couro cabeludo, atravessando-lhe a testa, saía uma cicatriz enorme e circular, que percorria um olho sem vista, indiferente e retorcido, e se estendia até um dos cantos da boca, que apresentava um aspecto desfigurado, semelhante ao esgar cheio de cinismo de um batoteiro, ou talvez de um homem libertino. Uma das faces era macia e bonita; a outra estava toda arrepanhada como o cepo irregular de uma árvore. Calculo que naquela superfície tivesse existido um buraco, mas, pelo menos isso havia sarado.

- Ele só vê de uma vista - informou o Hammersmith, acariciando a face deformada do filho num gesto cheio de amor. - Suponho que ele teve sorte por não ter cegado dos dois olhos. Costumamos ajoelharmo-nos e dar graças a Deus por essa benesse. Não é verdade, Caleb?

- Sim, senhor - respondeu o garoto com timidez... o garoto que seria espancado sem qualquer piedade no recreio da escola pelos colegas arruaceiros que fariam troça de si, a troco de uns miseráveis anos de uma educação escolar de má qualidade; o garoto que nunca iriam chamar para tomar parte nas suas brincadeiras, e que, provavelmente, jamais haveria de ter oportunidade de dormir com uma mulher cujos serviços não houvesse pago antecipadamente, quando chegasse àquela idade adulta em que isso passaria a ser uma necessidade; o garoto que iria estar sempre à margem do círculo iluminado e acolhedor formado pelos seus pares, o garoto que iria olhar-se ao espelho durante os próximos cinquenta, sessenta ou setenta anos, pensando sempre: "Feio, feio, feio!"

- Vai à cozinha buscar os teus biscoitos - disse-lhe o pai, beijando a boca de esguelha do filho.

- Sim, senhor - aquiesceu Caleb, correndo para dentro de casa.

O Hammersmith retirou um lenço do bolso de trás das calças, e limpou os olhos: naquele momento estavam secos, mas imagino que se tenha habituado a tê-los sempre humedecidos.

- O cão já estava cá em casa quando eles nasceram - continuou ele. - Levei-o até casa para os farejar quando a Cynthia regressou com eles da maternidade; o Sir Galahad lambeu-lhes as mãos. As mãos pequenas dos meus filhos. - O Hammersmith acenou com a cabeça como se estivesse a confirmar aquele facto perante si mesmo. - Costumava brincar com eles; lambia o rosto da Arlen até ela não poder conter o riso. O Caleb costumava puxar-lhe as orelhas e, quando começou a dar os primeiros passos, às vezes circundava o jardim agarrado à cauda de Sir Galahad. O cão nem sequer lhe dirigia um rosnar. A nenhuma das crianças.

Naquele momento as lágrimas já lhe tinham assomado aos olhos; limpou-as num gesto automático, tal como um homem costuma fazer depois de ter adquirido muita prática.

- Não havia qualquer razão para isso - prosseguiu ele. - O Caleb não lhe fazia mal, não gritava com o animal, nada de nada. Eu sei. Estava sempre presente. Se não estivesse, quase de certeza que o meu filho teria morrido. O que aconteceu, Mister Edgecombe, resume-se a nada. O garoto limitou-se a colocar a sua face directamente em frente do focinho do cão, e ocorreu à mente do Sir Galahad... ou ao que quer que seja que um cão tem por mente... atirar-se a ele para lhe morder. Com a intenção de matar, se a oportunidade lhe surgisse. A criança encontrava-se mesmo à sua frente e o cão não hesitou em morder. E foi isso mesmo que aconteceu com o Coffey. Ele estava lá, viu as garotas no alpendre, apossou-se delas, violou-as e depois assassinou-as. O senhor diz que deve haver qualquer indício de que ele tenha cometido anteriormente algo semelhante, e eu compreendo o que quer dizer, mas acontece que talvez ele não tenha feito nada disso antes. O meu cão nunca tinha abocanhado ninguém; isso só aconteceu dessa vez. Talvez, caso o Coffey fosse libertado, nunca mais voltasse a cometer um acto desses. É possível que o meu cão jamais voltasse a morder em alguém. No entanto, eu não me preocupei com essa probabilidade, bem vê. Fui buscar a minha carabina, agarrei-o pela coleira e alvejei-o em cheio no focinho.          .

O Hammersmith respirava a custo.

- Sou uma pessoa tão esclarecida como qualquer outra, Mister Edgecombe. Frequentei a Universidade em Bowling Green, formei-me em História e Jornalismo, e também estudei Filosofia. Gosto de me considerar um homem esclarecido. Não me parece que a gente do Norte fosse dessa opinião, mas agrada-me pensar que sou um homem esclarecido. Por nada deste mundo estaria disposto a fazer reviver a escravatura. Na minha opinião, devemos ser humanos e generosos e envidar todos os esforços para resolver os problemas de natureza racial. Todavia, não podemos esquecer-nos de que o seu negro voltará a morder se a oportunidade lhe voltar a aparecer, tal como um cão rafeiro abocanhará se a hipótese lhe surgir e caso se lhe meta isso na cabeça. O senhor quer saber se ele cometeu esse acto, o seu Coffey lacrimoso, com o corpo coberto de cicatrizes, não é verdade?

Acenei afirmativamente.

- Oh, sim - prosseguiu o Hammersmith. - Fê-lo, sim. Que não lhe reste a mais pequena dúvida e tome a precaução de não se pôr de costas para ele. É possível que não lhe acon teça nada uma vez, ou cem vezes... até mesmo um milhar de vezes... mas no fim... - Ergueu uma mão em frente dos meus olhos e fez estalar os dedos rapidamente, transformando a mão numa boca que morde. - Está a compreender o que lhe digo?

Acenei que sim uma vez mais.

- Ele violou as garotas, em seguida matou-as e depois lamentou o seu acto... mas, apesar disso, essas duas meninas não deixaram de ter sido violadas, essas duas meninas continuaram mortas. Mas vai tratar-lhe da saúde, não é verdade, Edgecombe? Daqui a algumas semanas, certificar-se-á de que ele jamais volta a ter a oportunidade de cometer um acto desses. - Com aquelas palavras, o Hammersmith ergueu-se da cadeira e dirigiu-se para o alpendre, lançando um olhar vago na direcção da casota do cão, erguida no meio daquele bocado de terreno mal cuidado, no centro daqueles excrementos já antigos. - Talvez possa desculpar - continuou ele -, mas, uma vez que não tenho de passar a tarde no tribunal, pensei em aproveitar a aportunidade para estar um pouco com a família. Os filhos só são crianças uma vez.

- Não se prenda por mim - disse eu. Sentia os lábios dormentes, como se não me pertencessem. - Permita-me que lhe agradeça o tempo que me dispensou.

- Não tem importância - retorquiu ele.

Conduzi directamente da casa do Hammersmith para a penitenciária. Foi um percurso bastante longo, e desta feita não consegui encurtá-lo entoando canções. Tinha a impressão de que todas as canções me haviam abandonado, pelo menos durante algum tempo. Continuava a ter gravada na mente a imagem daquele garotinho com a face desfigurada. Assim como a mão do Hammersmith, com os dedos a deslocarem-se para cima e para baixo contra o polegar, simulando algo que abocanhava.

 

O Bill "Selvagem" Wharton efectuou a sua primeira jornada até à cela do isolamento logo no dia seguinte. Passou a manhã e a tarde sossegado e manso que nem um cordeirinho, um estado de espírito que, viemos a descobrir ao fim de pouco tempo, não era nada normal na sua maneira de ser e que só significava a aproximação de complicações. Então, por volta das sete e meia desse fim de tarde, o Harry sentiu algo morno a molhar-lhe a bainha das calças do uniforme que vestira limpas nesse mesmo dia. Era mijo. O William Wharton estava de pé junto das barras da cela, mostrando os seus dentes enegrecidos num esgar desmesuradamente arreganhado, e mijava na direcção dos sapatos e das calças do Harry Terwilliger.

- O porco do filho da puta deve ter andado a conter o mijo durante todo o dia - disse o Harry mais tarde, ultrajado e enfurecido.

Pois bem, foi assim que as coisas aconteceram. Tinha chegado a altura de mostrar ao William Wharton quem é que era o dono da festa do Bloco E. O Harry chamou-nos, ao Brutal e a mim; eu alertei o Dean e o Percy, que também estavam de serviço. Como estão recordados, naquela altura tínhamos três encarcerados e procedíamos àquilo a que chamávamos uma vigilância apertada, com o meu grupo a entrar ao serviço às sete da tarde e a sair às três da manhã - período da noite em que era mais provável ocorrerem complicações - e dois outros turnos cobriam o resto do dia. Estes dois últimos grupos eram constituídos maioritariamente por temporários, e o Bill Dodge era, por via de regra, o responsável por eles. Levando tudo em consideração, até que não era uma maneira ineficaz de gerir a situação, e eu achava que, assim que conseguisse transferir o Percy para o turno do dia, a vida melhoraria bastante. Contudo, nunca cheguei a ter oportunidade de concretizar esse plano. Por vezes, pergunto a mim mesmo se a situação se teria alterado, tivesse eu conseguido levar essa ideia a bom termo.

Seja como for, na arrecadação existia um ramal da canalização da água, numa das paredes afastada da Velha Faísca. O Dean e o Percy ligaram-lhe uma mangueira de lona. Ficavam junto da válvula para poderem abrir, caso tal fosse necessário.

O Brutal e eu dirigimo-nos num passo apressado para a cela do Wharton, onde este continuava de pé com o mesmo esgar e com a ferramenta pendurada fora da braguilha. Eu já tinha retirado o colete-de-forças da cela do isolamento e pusera-o em cima de uma prateleira no meu gabinete na noite anterior antes de ir para casa, pensando que o mais certo seria virmos a precisar dele para a nossa nova criança problemática. Naquele momento, já o tinha na mão, com o dedo indicador debaixo de uma das correias de lona. O Harry vinha atrás de nós, arrastando a mangueira, que atravessava o meu gabinete, descia pelos degraus da sala da arrecadação e ia até à válvula que deveria ser accionada pelo Percy logo que possível.

- Ei, gostaram da minha brincadeira? - perguntou o Bill Selvagem. Ria-se como uma criança num parque de diversões, as suas gargalhadas eram tantas que quase o impediam de falar, e pelas faces começaram a escorrer-lhe lágrimas gordas. - Vocês vieram todos tão depressa que devem ter gostado. Agora estou a preparar alguns cagalhões para acompanhar o mijo. Uns que sejam bem bons, macios. Amanhã já poderei oferecê-los a todos...

Entretanto, ele viu que eu abria a porta da cela; os seus olhos estreitaram-se. Viu que o Brutal empunhava o revólver numa das mãos e o bastão na outra; os seus olhos semicerraram-se ainda mais.

- Vocês podem entrar aqui trazidos pelas vossas pernas, mas sairão deitados de costas. É o Billy the Kid quem vos garante isso - disse-nos ele todo cheio de fanfarronice. O seu olhar desviou-se para mim. - E se estão a pensar que vão conseguir vestir-me esse casaco de malucos, preparem-se para uma grande surpresa, meus velhos.

- Não és tu quem dá as ordens por aqui - repliquei. - Já devias ter compreendido isso, mas calculo que sejas demasiado idiota para conseguir aprender alguma coisa.

Acabei de abrir a porta da cela, tendo-a feito correr sobre a calha. O Wharton recuou até junto da tarimba, continuando a manter a picha pendurada de fora da braguilha, embora ti vesse as mãos estendidas na minha direcção, com as palmas para cima, indicando-me com os dedos que me aproximasse. - Chega-te cá, meu grandessíssimo filho da puta. - insultou-me ele. - Podes ter a certeza que alguém vai aprender alguma coisa, mas aqui o rapaz é que está preparado para ser o professor. - Desviou o olhar para o Brutal, tendo-o mimoseado com o seu esgar de dentes enegrecidos. - Aproxima-te, matulão, tu vais ser o primeiro a levá-las. Desta vez não podes apanhar-me de surpresa pelas costas. Baixa a arma... em qualquer dos casos, não vais atrever-te a dispará-la, não tens coragem, vamos lá, de homem para homem. Vamos ver quem é que leva a melhor...

O Brutal entrou na cela, mas não se dirigiu ao Wharton. Depois de ter transposto a porta, deslocou-se para a esquerda. Os olhos que o Wharton mantivera semicerrados até então começaram a arregalar-se ao ver a mangueira apontada ao seu peito.

- Não, vocês não vão fazer isso - atalhou ele. - Oh, não, vocês...

-Dean! - gritei. - Abre a válvulal Abre-a toda!

O Wharton deu um salto em frente, e o Brutal acertou-lhe em cheio na testa - a espécie de golpe com que certamente o Percy passava a vida a sonhar - assentando o bastão com toda a força acima do sobrolho do Wharton. Este, que dava a impressão de estar convencido de que nunca nos víramos em situações daquelas antes de ele ter aparecido no bloco, caiu logo de joelhos, com os olhos abertos mas sem ver nada. Em seguida, a água começou a jorrar da mangueira, fazendo com que o Harry cambaleasse para trás devido ao impacte do jorro, mas ele equilibrou-se logo, mantendo o bocal nas mãos apontado como se fosse uma arma. O forte esguicho de água apanhou o Bill "Selvagem" Wharton em cheio no peito, fazendo-o rodopiar descontroladamente e arremessando-o para debaixo da tarimba. Na sua cela, mais abaixo no corredor, o Delacroix saltava ora em cima de um pé ora em cima do outro, cacarejando numa voz esganiçada e praguejando contra o John Coffey, exigindo que este lhe dissesse o que é que estava a passar-se, enquanto este, por seu lado, choramingava; no meio de toda aquela algaraviada, o Delacroix perguntava ainda como é que o grand foul do novo rapaz gostava daquele tratamento de água, estilo tortura chinesa. O John não lhe respondeu, limitando-se a ficar em silêncio com as suas calças demasiado curtas e as pantufas da prisão. Só lhe lancei um rápido olhar, mas este foi o suficiente para ver nele a mesma velha expressão, a qual reflectia uma mistura de tristeza e serenidade. Ficava-se com a sensação de que ele já tinha assistido a situações daquelas, não apenas uma ou duas vezes, mas sim num milhar de ocasiões diversas.

- Fecha a água! - gritou o Brutal por cima do ombro antes de avançar a correr pela cela adentro. Agarrou firmemente no semiconsciente Wharton por baixo dos sovacos, começando a arrastá-lo de debaixo da tarimba. O Wharton tossia, emitindo sons gorgolejados. O sangue escorria-lhe para os olhos esbugalhados, vindo da região acima das sobrancelhas, onde o bastão do Brutal lhe abrira um rasgo na pele.

Para o Brutal Howell e para mim, a rotina do colete-de-forças já se tinha transformado numa ciência cheia de precisão; ambos praticáramos o processo, como se fôssemos um par de dançarinos de sapateado a executar um novo número. De vez em quando, essa prática pagava os seus dividendos. Como por exemplo, naquela circunstância. O Brutal ajudou o Wharton a levantar-se do chão, estendendo os braços para mim, da mesma maneira que uma criança seguraria num boneco desconjuntado. A percepção do que tinha acontecido só naquele momento começava a espelhar-se no olhar do Wharton, ciente de que, se não começasse a debater-se de imediato, pouco depois seria tarde de mais, mas a ligação entre o seu cérebro e os músculos continuava sem funcionar e, antes que ele conseguisse voltar a activá-la, enfiei-lhe nos braços as mangas do colete-de-forças, enquanto o Brutal prendia as fivelas nas costas. Entretanto, agarrei nas correias dos punhos, puxei os braços do Wharton de forma a rodearem-lhe os flancos e uni-lhe os pulsos com outra correia de lona. O resultado final foi ele parecer que estava a abraçar-se.

- Raios te partam, meu grandessíssimo atrasado mental... Como é que eles se estão a sair com ele? - perguntava o Delacroix em altos berros. Também ouvi os guinchos do Mister Jingles, como se o rato também desejasse inteirar-se da situação.

Entretanto, apareceu o Percy com a camisa toda molhada e com a fralda de fora, devido ao esforço com a válvula da água; era tanta a excitação que ele sentia que tinha o rosto iluminado. O Dean surgiu logo atrás dele, trazendo à volta da garganta um colar formado por hematomas de tom púrpura, e com uma expressão muito menos excitada do que a do colega.

- Agora toca a andar, Bill Selvagem - disse eu, puxando pelo Wharton, para que ele se levantasse do chão. - Seu pacóvio.

- Não me chames isso! - vociferou ele, gritando esganiçadamente, e parece-me que, pela primeira vez, tivemos ocasião de detectar emoções verdadeiras, e não apenas aspectos camuflados de um animal esperto. - O Bill "Selvagem" Hickokl não era nenhum montanhês! Também nunca lutou contra nenhum urso com uma faca Bowie!2 Não passava de um outro tarado do mato que obedecia à lei! Um idiota de um filho da puta que se sentou de costas para a porta e foi morto por um bêbedo!

- Ora não querem lá ver isto, uma lição de história! - exclamou o Brutal, empurrando o Wharton para fora da cela. - Um tipo nunca sabe o que lhe vai acontecer quando inicia o seu dia de trabalho por aqui, só sabe que até pode ser uma  coisa agradável. Mas com tanta gente simpática como tu por estas bandas, calculo que isso tenha uma certa razão de ser, não concordas? E sabes que mais? Daqui a pouco tempo, serás tu quem terá passado à história, Bill Selvagem. Entretanto, toca a andar pelo corredor. Temos uma sala à tua espera. É um lugar onde podes arrefecer as ideias.

O Wharton soltou um berro enfurecido e desarticulado, investindo contra o Brutal, apesar de se encontrar manietado pelo colete-de-forças, com os braços em redor do torso e presos nas costas. O Percy fez menção de sacar do seu bastão - a Solução Wetmore para todos os problemas da vida - mas o Dean deteve-o, colocando-lhe uma mão no pulso. O Percy lançou-lhe um olhar intrigado e um tanto indignado, como que a dizer-lhe que, depois de tudo o que o Wharton lhe tinha feito, o Dean deveria ser a última pessoa à face da Terra a desejar impedi-lo de prosseguir.

O Brutal empurrou o Wharton para trás. Agarrei-o e empurrei-o na direcção do Harry. Por seu lado, este impeliu-o através da Milha Verde, passando pelo jubilante Delacroix e pelo impassível Coffey. O Wharton prosseguiu a correr para não cair de rosto em cheio no chão; durante todo o percurso não deixou de soltar imprecações. Cuspia-as da mesma forma que o maçarico de um soldador cospe fogo. Atirámo-lo para dentro da última cela do lado direito, enquanto o Dean, o Harry e o Percy (que para variar não reclamava pelo facto de o fazerem trabalhar em excesso) retiravam toda a tralha que se encontrava no interior da cela do isolamento. Enquanto eles tratavam daquela tarefa, tive uma pequena conversa com o Wharton.

- Estás convencido de que és um tipo duro - comecei a dizer -, e talvez sejas, meu menino, mas aqui a dureza não tem o mínimo significado. Os teus dias de arruaceiro chegaram ao fim. Se nos facilitares as coisas, nós também facilitaremos a tua vida aqui. Caso decidas dificultar a situação, acabarás por morrer à mesma, com a diferença de que te aguçaremos como a ponta de um lápis antes de marchares para o além.

- Vais sentir-te muito feliz quando me vires pelas costas - replicou o Wharton numa voz enrouquecida. Não parava de se debater dentro do colete-de-forças, embora soubesse que não lucraria nada com os seus esforços; as suas bochechas estavam tão vermelhas como um tomate maduro.

Mas até eu desaparecer, hei-de transformar a vossa vida num verdadeiro inferno. - Arreganhou-me os dentes como se fosse um gorila enfurecido.

- Se é isso o que desejas, transformar a nossa vida num inferno, podes desistir já, uma vez que conseguiste alcançar o teu objectivo - interveio o Brutal. - Mas quanto ao tempo que hás-de passar na Milha, Wharton, não nos incomoda minimamente que o passes todo fechado na sala com as paredes almofadadas. Também poderás usar esse casaco para tarados até os teus braços gangrenarem devido à falta de circulação sanguínea, acabando por te cair do corpo. - Fez uma pausa. - Não sei se sabes, mas não costuma vir muita gente até aqui abaixo. E se pensas que alguém se importa com o que possa acontecer-te, seja lá o que for, acho que é melhor reconsiderares. Para o mundo, tu já és um criminoso morto.

O Wharton examinava o Brutal com toda a atenção, tendo começado a desaparecer-lhe do rosto a fúria que sentira. - Deixem-me sair disto - pediu ele num tom de voz apaziguador... Um tom demasiado racional e sensato para ser verdadeiro. - Eu porto-me bem. Prometo que sim.

O Harry surgiu à entrada da cela. A extremidade do corredor assemelhava-se muito a uma venda ao ar livre, mas depois de metermos mãos à obra iríamos pôr tudo aquilo em or dem num ápice. Não seria a primeira vez que teríamos de dar conta daquela tarefa, já conhecíamos a rotina.

- Está tudo a postos - anunciou o Harry.

O Brutal agarrou na saliência da lona, por baixo da qual se encontrava o cotovelo direito do Wharton, e puxou-o para que se pusesse de pé.

- Vamos lá, Billy Selvagem. Olha para o lado positivo da situação. Vais ter pelo menos vinte e quatro horas para recordar a ti mesmo que nunca deverás sentar-te de costas para a porta, nem agarrar-te demasiado aos trunfos.

- Deixem-me sair disto - repetiu o Wharton. Olhou para o Brutal, para o Harry e por último para mim, com o tom avermelhado a voltar a apossar-se do seu rosto: - Eu porto-me bem... Garanto-vos que aprendi a lição. Eu... eu... aaaaahhhhhhh!...

De repente, sucumbiu; metade do corpo caiu dentro da cela e a outra metade estatelou-se sobre a Milha Verde, dando pontapés e contorcendo-se todo.

- Jesus Cristo! Ele está a ter uma convulsão - sussurrou o Percy.

- Com certeza, e a minha irmã é a prostituta da Babilónia - retorquiu o Brutal. - Ela costuma executar a dança do ventre para o Moisés aos sábados à noite, com um véu

branco muito comprido. - Baixou-se e passou uma mão por baixo de um dos sovacos do Wharton. Agarrei-o pelo outro. O homem debatia-se entre nós como se fosse um peixe que tivesse acabado de morder o anzol. Transportar o seu corpo que não parava de se agitar, ouvi-lo resmungar por uma das aberturas e a peidar-se pela outra, foi uma das minhas experiências de vida menos agradáveis. -

Ergui o olhar e por breves segundos ele cruzou-se com o do John Coffey. Os olhos dele estavam raiados de sangue e tinha as faces humedecidas. Uma vez mais, o homem havia estado a chorar. Ocorreu-me a imagem do Hammersmith a fazer com a mão o gesto de abocanhar, e senti o corpo percorrido por um pequeno arrepio. Voltei a dedicar toda a minha atenção ao Wharton.

Atirámos com ele para dentro da cela do isolamento, como se fosse uma saca de batatas, e vimo-lo no chão a escoicear dentro do colete-de-forças, junto do ralo onde em tempos havíamos procurado o rato que começara a sua existência no Bloco E sob o nome de Steamboat Willy.

- Não me incomodo muito se ele engolir a língua ou qualquer outra coisa e morra - disse o Dean na sua voz áspera e enrouquecida -, mas, rapazes, pensem na papelada a que isso dará origem! Nunca mais tinha fim.

- Não te incomodes com a papelada, pensa mas é no inquérito - atalhou o Harry com uma expressão desalentada. - Acabaríamos por perder a porra dos nossos empregos.

O nosso destino seria apanhar ervilhas no Mississípi. Sabem o que é o Mississípi, não sabem? É a palavra índia para olho do cu.

- Ele não vai morrer nem vai engolir a língua - atalhou o Brutal. - Amanhã, quando abrirmos esta porta, vão ver que estará bem de saúde. Acreditem no que vos digo.

E de facto foi assim que as coisas se passaram. O homem que conduzimos de regresso à sua cela na noite seguinte ia calado e pálido, dando a impressão de ter sido disciplinado.

Caminhava de cabeça baixa, não tendo feito menção de atacar alguém quando o retirámos do colete-de-forças, limitando-se a fitar-me com uma expressão absorta quando eu lhe disse que aquele processo se repetiria da próxima vez, pelo que ele só tinha de se interrogar sobre quanto mais tempo desejava passar a mijar nas próprias calças e a ingerir comida em papas que lhe eram dadas à colher.

- Eu porto-me bem, chefe. Já aprendi a lição - murmurou ele numa voz humilde e a medo quando o colocámos de novo na sua cela. O Brutal olhou para mim e piscou-me o olho.

Mais tarde, no dia seguinte, o William Wharton, que para si próprio era Billy the Kid e nunca aquele tarado do mato, o Hickok, homem cumpridor da lei, o Bill Selvagem, comprou um bolo ao velho Pouca Terra. O Wharton havia sido expressamente proibido de efectuar esse tipo de transacção comercial, mas o turno da tarde era composto apenas por temporários, tal como parece que já vos disse, pelo que o negócio se verificou. Sem dúvida que o próprio Pouca Terra deveria ter estado alertado em relação a tal facto, mas para ele o carrinho onde transportava a comida era sempre uma fonte de lucro.

Nessa mesma noite, quando o Brutal efectuou a ronda, o Wharton estava de pé junto das barras da cela. Aguardou que o Brutal erguesse o olhar para si, depois bateu fortemente com a palma das mãos nas bochechas que estavam inchadas, fazendo jorrar da boca um jacto espesso e espantosamente comprido de massa de chocolate, que foi acertar em cheio no rosto do Brutal. Tinha enfiado o bolo inteiro na boca, mantivera-o lá até se ter liquefeito e cuspira-o como se fosse um naco de tabaco mascado.

Em seguida, o Wharton deixou-se cair em cima da tarimba, com o queixo sujo de chocolate, esperneando e gritando por entre sonoras gargalhadas, enquanto apontava para o Brutal, cujo rosto estava todo sujo de chocolate.

- Tal e qual um escarumba, sim senhor, patrão, sim senhor, como é que vossemecê tem passado? - O Wharton agarrava-se à barriga, soltando uivos. - Se ao menos tivesse sido caca! Quem me dera que tivesse sido! Se eu tivesse tido alguma à mão...

- Tu é que és uma caca - vociferou o Brutal -, e espero bem que tenhas feito as malas, porque vais regressar à tua retrete preferida.

Uma vez mais, o Wharton foi manietado no colete-de-forças e voltámos a atirar com ele para dentro da sala de paredes almofadadas. Desta feita, ficou nessa cela durante dois dias. Às vezes chegavam-nos aos ouvidos os seus rugidos enfurecidos, outras vezes ouvíamo-lo a prometer que se portaria bem, que passaria a ter juízo e a ser bonzinho e às vezes gritava que precisava de um médico, que estava à beira da morte. No entanto, esteve calado durante a maior parte do tempo. E, quando voltámos a retirá-lo da cela do isolamento, também se remeteu ao mutismo, regressando à sua cela com a cabeça baixa e olhos inexpressivos, sem dar qualquer réplica quando o Harry lhe dirigiu a palavra.

- Recorda-te que isto só depende de ti. - Com certeza que se comportaria como devia ser durante algum tempo, mas depois tentaria outra coisa qualquer. Ele não podia fazer nada que não houvesse sido tentado em ocasiões anteriores (bem, talvez com a excepção da habilidade com o bolo de chocolate; até o Brutal foi forçado a admitir que tinha sido bastante original); no entanto, a persistência que ele mostrava era, por si só, assustadora. Eu tinha receio que, mais cedo ou mais tarde, isso chamasse a atenção de alguém, dando origem a um verdadeiro inferno. E aquela situação poderia vir a arrastar-se por mais algum tempo, uma vez que o Wharton tinha um advogado algures que não parava de arengar perante quem o gmsesse ourar o quanto seria errado executar aquele fulano na flor da idade... e que, incidentalmente, era tão branco como os melhores. Não fazia qualquer sentido protestar contra aquilo, porque manter o Wharton afastado da cadeira eléctrica era a função do seu advogado. Porém, mantê-lo seguramente imobilizado era tarefa que nos cumpria. E, no fim, quase de certeza a Velha Faísca o reclamaria para si, com advogado ou sem advogado.

 

Foi nessa semana que a Melinda Moores, a mulher do director da prisão, regressou a casa vinda de Indíanola. Os médicos já não podiam fazer nada por ela; haviam conseguido as suas muito interessantes radiografias com o tumor que ela tinha na cabeça; possuíam documentos sobre a fraqueza que a doente sentia na mão e as dores paralisantes que a atormentavam quase constantemente naquela fase; e tinham-na despachado. Entregaram ao marido uma grande quantidade de comprimidos de morfina e mandaram a Melinda para casa, a fim de morrer. O Hal Moores acumulara alguns dias de licença por doença - embora não fossem muitos; nessa época, não tinham por hábito conceder-nos muita coisa, mas ele tirou partido daquilo que era o seu direito, de forma a poder ajudá-la a fazer o que tinha a fazer.

Mais ou menos três dias depois de ela ter regressado a casa, a minha mulher e eu fomos visitá-la. Telefonei antes de irmos e o Hal disse que não havia inconveniente, uma vez que a Melinda estava a ter um bom dia, pelo que gostaria muito de nos ver.

- Detesto fazer este género de visitas - disse eu à Janice, enquanto seguíamos no carro para a casa onde os Moores haviam vivido durante a maior parte do seu casamento.

- Tal como toda a gente, meu querido - retorquiu ela, acariciando-me a mão. - Havemos de conseguir ultrapassar a dificuldade da mesma forma que ela.

- Espero que sim.

Quando chegámos, a Melinda encontrava-se sentada na sala de estar, sob um sol de Outubro anormalmente quente e luminoso; o meu primeiro pensamento, provocado pelo choque do que vi, foi que ela tinha perdido quarenta quilos. Claro que não era esse o caso - se ela tivesse perdido tanto peso, não poderia com certeza estar ali - mas foi essa a reacção inicial do meu cérebro face àquilo que os meus olhos lhe transmitiram. As suas faces haviam praticamente desaparecido, deixando adivinhar o contorno dos malares que se encontravam debaixo delas, e a sua tez estava tão esbranquiçada como pergaminho ressequido. Tinha olheiras muito escuras. Foi a primeira vez que dei com ela na cadeira de baloiço sem ter o regaço cheio de roupa para coser, ou de retalhos para fazer uma manta. Estava ali sentada sem fazer nada. Como uma pessoa que aguardasse na sala de espera de um apeadeiro.

- Melinda - saudou a minha mulher numa voz calorosa. Tenho a impressão de que se encontrava tão chocada quanto eu próprio, talvez mesmo mais ainda, mas conseguia

ocultá-lo na perfeição, como só algumas mulheres são capazes de o fazer. Aproximou-se da Melinda, ajoelhou-se sobre um joelho ao lado da cadeira de baloiço e agarrou-lhe uma das mãos. Durante aquele interior, o meu olhar dirigiu-se, por acaso, para o tapete azul que se encontrava em frente da lareira. Ocorreu-me que deveria ter a tonalidade das limas velhas, uma vez que, presentemente, aquela sala era apenas uma outra versão da Milha Verde. - Trouxe-te um pouco de chá - disse a Jan -, daquele que eu costumo tomar. É um chá muito calmante que nos ajuda a adormecer. Deixei-o na cozinha.

- Obrigada, minha querida - retorquiu a Melinda. A sua voz tinha uma entoação envelhecida e era áspera.

- Como é que te sentes? - perguntou a minha mulher. - Um pouco melhor - respondeu a Melinda na sua voz áspera e rouca. - Não se pode dizer que me apeteça ir a um baile, mas pelo menos hoje não sinto dores. Os médicos deram-me uns comprimidos para as dores de cabeça. Às vezes até conseguem fazer efeito.

- Isso é bom, não é verdade?

- Mas não tenho muita força.. Aconteceu qualquer coisa... à minha mão. - Ergueu-a, fitando-a como se nunca a houvesse visto, e voltou a pousá-la no regaço. - Aconteceu qualquer coisa... no corpo todo. - Começou a chorar num pranto silencioso, de uma maneira que me fez recordar a imagem de John Coffey. Aquilo que ele tinha dito começou a soar de novo na minha cabeça: Eu consegui evitar o mal, não é verdade? Eu consegui evitar o mal, não é verdade?, como se fosse uma ladainha que não conseguimos esquecer.

Nessa altura, o Hal entrou na sala. Agarrou-me e podem acreditar quando vos digo que me senti deveras satisfeito por ele me ter agarrado. Fomos os dois para a cozinha, e ele serviu-me um trago de uísque branco, uma bebida forte que devia ter acabado de vir do alambique ilegal de um camponês qualquer. Brindámos em silêncio, e bebemos. A bebida deslizou-me pela garganta que nem querosene, mas o impacte na barriga foi paradisíaco. Mesmo assim, quando o Moores aproximou de mim a vasilha de barro, perguntando-me sem palavras se queria mais, abanei a cabeça, afastando-a com um gesto da mão. Bill "Selvagem" Wharton encontrava-se fora do colete-de-forças, pelo menos de momento - e não seria nada seguro aproximar-me do homem com a cabeça toldada pela bebida. Nem mesmo com as barras a separar-nos.

- Não sei durante quanto mais tempo serei capaz de suportar esta situação, Paul - confessou ele numa voz segredada. - Todas as manhãs vem uma rapariga para me ajudar a tratar dela, mas os médicos dizem que talvez ela venha a sofrer de incontinência, e... e... - Deteve-se cóm a voz embargada, esforçando-se para não desatar a chorar de novo à minha frente.

- Só podes fazer aquilo que estiver ao teu alcance - disse eu. Estendi a mão através do tampo da mesa e agarrei na dele, uma mão trémula e com manchas de origem hepática. - Faz o que puderes dia após dia e deixa o resto por conta de Deus. Não podes fazer mais nada, pois não?

- Calculo que não. Mas mesmo assim é muito difícil, Paul. Rezo para que nunca venhas a descobrir até que ponto é dificil. - Fez um esforço para se recompor um pouco.

- Agora põe-me a par das novidades. Como é que estás a aguentar-te com o William Wharton? E como é que estão a correr as coisas em relação ao Percy Wetmore?

Durante algum tempo discutimos assuntos profissionais. Pouco depois, a visita chegou ao fim. Ao longo de todo o caminho até casa, com a minha mulher em silêncio a maior parte do tempo - pensativa e de olhos humedecidos - sentada ao meu lado, as palavras do Coffey assomaram-me ao pensamento, como se fossem o Mister Jingles a correr pela cela do Delacroix: Eu consegui evitar o mal, não é verdade?

- É terrível - disse a minha mulher, desalentada, a certa altura. - E ninguém pode fazer nada para a ajudar. Acenei num gesto de concordância, enquanto pensava: Eu consegui evitar o mal, não é verdade? Mas aquela ideia era uma loucura, pelo que envidei todos os esforços para a expulsar da minha mente.

Quando nos aproximámos da entrada da nossa casa, ela falou finalmente pela segunda vez desde que tínhamos saído da casa dos Moores - não sobre a sua velha amiga Melinda, mas sim sobre a minha infecção urinária. Queria saber se já tinha desaparecido de todo. Afirmei-lhe que sim.

-Nesse caso, óptimo - retorquiu ela, beijando-me acima do sobrolho, nessa região do meu corpo que me fazia ser percorrido por um calafrio de prazer. - Talvez devêssemos, compreendes, fazer uma pequena coisa. Isto é, se tiveres tempo e vontade.

Possuindo bastante da última e apenas o suficiente do primeiro, agarrei-a pela mão, conduzi-a para o quarto das traseiras e comecei a despi-la enquanto ela acariciava aquela parte de mim que pulsava e ficava tumefacta, mas que me deixara de doer por completo. Enquanto eu penetrava na doçura de Janice, deslizando no seu interior daquela maneira lenta que tanto lhe agradava - que agradava a ambos - pensei no John Coffey a dizer que tinha conseguido evitar o mal, que tinha conseguido evitar o mal, não era verdade? Como se fosse o trecho de uma canção que se recusa a abandonar a nossa mente até muito bem lhe apetecer.

Mais tarde, quando já seguia a caminho da prisão, comecei a pensar que dentro de pouco tempo teríamos de começar afiar a execução do Delacroix. E logo me lembrei que ocuparia o lugar na linha da frente, o que me provocou um estremecimento de temor. Disse a mim mesmo que deveeguimento ao planeado, só mais uma execução e provavelmente ficávamos livres do Percy Wetmore de uma vez por todas... Ainda assim, continuei a sentir um estremecimento, como se a infecção que tanto me atormentara não houvesse desaparecido de todo, apenas mudado de localização, deixando de me queimar as virilhas para me enregelar a coluna vertebral.

 

- Toca a andar - disse o Brutal ao Delacroix no dia seguinte, ao fim da tarde. - Vamos dar um pequeno passeio. Tu, eu e o Mister Jingles.

O Delacroix olhou para ele, com desconfiança, e levou a mão à caixa de charutos para agarrar no rato. Colocou-o na palma da mão em forma de concha, fitando o Brutal através de olhos semicerrados.

- De que é que estás a falar? - perguntou ele.

- Esta é uma grande noite para ti. e para o Mister Jingles - disse o Dean que entretanto se tinha aproximado do Brutal com o Harry. A corrente de nódoas negras em redor do pescoço do Dean tinha adquirido um desagradável tom amarelo, desagradável, sim, mas pelo menos ele já conseguia falar de novo sem parecer um cão a ladrar a um gato. Olhou para o Brutal. - Achas que devíamos colocar-lhe as grilhetas, Brute?

- Não - respondeu o interpelado por fim, depois de ter avaliado a pergunta. - Ele vai portar-se bem, não é verdade, Del? Tu e o rato. Ao fim e ao cabo, esta noite poderás exibir-te a alguns manda-chuvas importantes.

O Percy e eu estávamos junto da mesa do guarda de serviço, observando tudo aquilo, o Percy de braços cruzados, exibindo nos lábios um pequeno sorriso escarninho. Ao fim de algum tempo, tirou de uma algibeira o seu pente de osso, e começou a pentear-se. O John Coffey também observava tudo aquilo em silêncio, junto das barras da sua cela. O Wharton encontrava-se deitado sobre a tarimba, olhando fixamente para o tecto, ignorando todo aquele espectáculo. Continuava a "ser bonzinho", embora o que ele classificava de bom fosse aquilo a que os médicos se referiam no Briar Ridge como o estado catatónico. Também se encontrava presente uma outra pessoa. Estava escondido dos outros no interior do meu gabinete; contudo, a sua sombra emagrecida projectava-se através da abertura da porta, reflectindo-se na Milha Verde.

- O que vem a ser isto, meu grand fou? - perguntou o Del, quezilento, recolhendo os pés para cima da tarimba, enquanto o Brutal abria a porta da sua cela, fazendo-a deslizar sobre a calha. Os olhos do Delacroix iam de uns aos outros, percorrendo os três guardas.

- Pois bem, eu digo-te - começou o Brutal a responder. - Mister Moores vai estar ausente durante algum tempo... A mulher está um pouco em baixo, tal como possivelmente já ouviste dizer. Por conseguinte, Mister Anderson é quem manda agora. Mister Curtis Anderson.

- Sim? E o que é que isso tem a ver comigo?

- Bem - continuou o Harry -, o chefe Anderson ouviu falar do teu rato, Del, pelo que quer vê-lo a fazer as suas habilidades. Ele e mais seis fulanos estão na administração, à espera que apareças. E não estou a referir-me a uns simples guardas de uniforme azul. Estes são uns pássaros graúdos, tal como o Brute já te disse. Estou em crer que um deles é um político que fez a viagem toda desde a capital do estado.

O Delacroix inchou visivelmente ao ouvir aquilo, não tendo eu detectado o mínimo vestígio de desconfiança na expressão do seu rosto. É claro que eles desejavam ver o Mister Jingles; quem é que não desejaria?

Começou a mexer-se com toda a azáfama; primeiro procurou debaixo da tarimba e depois por baixo da almofada. Por fim, acabou por encontrar um daqueles grandes rebuçados de hortelã-pimenta de cor amarelada, assim como o carretel colorido com cores garridas. Olhou para o Brutal com uma expressão interrogadora, e este acenou afirmativamente.

- Sim. É a habilidade com o carretel que eles estão realmente desejosos de ver, calculo eu, embora a forma como ele come o raio desses rebuçados de menta também seja muito engraçada. E não te esqueças da caixa de charutos. Vais querer levá-lo dentro dela, nao é?

O Delacroix agarrou na caixa e colocou os adereços do Mister Jingles no seu interior, mas, quanto ao rato, colocou-o em cima do ombro da sua camisa. Em seguida, encaminhou-se para fora da cela, com o peito todo inchado a indicar o caminho, olhando para o Dean e para o Harry.

- Vêm, rapazes?

- Não - respondeu o Dean. - Temos outro peixe para fritar. Mas tu, Del, vai e deixa-os de boca aberta... Mostra-lhes o que é que acontece quando um rapaz da Luisiana põe mãos à obra e começa realmente a trabalhar.

- Pode crer - respondeu ele. Pelo seu rosto espelhou-se um sorriso enorme, tão repentino e tão simples em toda a sua felicidade que senti um pequeno aperto no coração por causa dele, apesar do terrível crime que tinha cometido. Mas que mundo este em que vivemos... mas que mundo este!

O Delacroix voltou-se para o John Coffey, com quem encetara uma amizade um tanto recalcitrante, não muito diferente da centena de outros relacionamentos que eu tivera ocasião de testemunhar naquela casa da morte.

- Deixa-os de boca aberta, Del - disse o Coffey numa voz cheia de solenidade. - Mostra-lhes todas as habilidades dele.

O Delacroix acenou que sim, levando a mão ao ombro. O Mister Jingles passou para ela como se fosse uma plataforma, e o Delacroix estendeu a mão na direcção da cela do Coffey. Este estendeu um gigantesco dedo indicador, e raios me partam se aquele rato não esticou o pescoço, lambendo a extremidade, tal como um cão o faria.

- Vamos lá, Del, pára de molengar - urgiu o Brutal. - Estes sujeitos estão a atrasar um jantar quente que os aguarda em suas casas para poder assistir às habilidades do teu rato. - Aquilo não era verdade, claro... O Anderson estava ali até às oito horas todas as noites e os guardas que ali se tinham dirigido para observar o "espectáculo" do Delacroix seriam forçados a ficar até às onze ou à meia-noite, dependendo da hora a que os seus turnos chegavam ao fim. O político que viera da capital do estado era apenas um funcionário da manutenção com uma gravata emprestada. Porém, o Delacroix não tinha maneira de saber tudo isto.

- Estou pronto - anunciou ele, exprimindo-se com a simplicidade de uma grande vedeta que conseguira não perder o contacto com o comum dos mortais. - Vamos lá. - E enquanto o Brutal o conduzia através da Milha Verde, com o Mister Jingles empoleirado em cima do ombro do Delacroix, este começou uma vez mais, a anunciar: - Messieurs et mesdames! Bienvenue au cirque de mousie! t - Contudo, embora tão profundamente mergulhado no seu mundo de fantasia, fitou o Percy com um olhar de desconfiança e um esgar.

O Harry e o Dean detiveram-se em frente da cela vazia oposta à do Wharton (aquela ilustre figura ainda nem sequer se mexera). Ficaram a observar o Brutal, enquanto ele abria a fechadura da porta que dava para o pátio de recreio, onde era aguardado por outros dois guardas, a fim de conduzir o Delacroix ao seu magnificente espectáculo, a que assistiriam os mais elevados zés-ninguéns da penitenciária de Cold Mountain. Esperámos até que a porta voltou a ser fechada à chave, e olhei nà direcção do meu gabinete. Aquela sombra continuava junto à porta, escanzelada e faminta; senti-me bastante satisfeito pelo facto de o Delacroix ter ficado tão excitado que nem sequer reparara nela.

- Sai cá para fora - disse eu. - E vamos lá a despachar este assunto, rapazes. Quero fazer dois ensaios e não dispomos de muito tempo.

O velho Pouca Terra, mostrando uns olhos tão cintilantes e com uma postura tão importante como sempre, saiu do gabinete, encaminhando-se para a cela do Delacroix, entrando pela porta aberta num passo descontraído.

- Estou a sentar-me - anunciou ele. - Estou a sentar-me, estou a sentar-me, estou a sentar-me.

"Este é que é o verdadeiro circo", pensei eu para comigo, cerrando os olhos por breves segundos. "O verdadeiro circo encontra-se precisamente aqui, e nós não passamos de um grupo de ratos amestrados." Em seguida, afastei aquele pensamento da minha mente, dando início àquele ensaio macabro.

 

O primeiro ensaio correu bem, o mesmo acontecendo com o segundo. O Percy saiu-se bastante melhor do que eu alguma vez poderia ter esperado nos meus sonhos mais fantasiosos.

No entanto, aquilo não significava que as coisas iriam correr bem quando chegasse o momento da verdadeira execução, em que o cajun percorreria a Milha, mas o ensaio fora um grande passo na direcção certa. Ocorreu-me que os ensaios tinham corrido pelo melhor, porque finalmente o Percy estava a fazer algo que deveras lhe agradava. Fui invadido por um certo desprezo perante aquele facto, mas afastei-o. O que é que isso interessava? Ele haveria de colocar o capacete na cabeça do Delacroix mas em seguida iriam ambos desaparecer. Se isso não era um fim feliz, o que é que seria? E, tal como o Moores havia acentuado, os tomates do Delacroix iam ficar estorricados, independentemente de quem interviesse directamente na sua electrocussão.

Apesar de todos esses considerandos, o Percy tinha-se mostrado à altura da sua nova tarefa, e apercebera-se disso. Tal como nós. No que me dizia respeito, sentia-me demasiado aliviado para nutrir grande aversão por ele, pelo menos de momento. Tudo parecia indicar que as coisas iriam correr da melhor maneira possível. O meu alívio foi ainda maior ao descobrir que o Percy prestara realmente atenção quando lhe sugerimos algumas alterações para melhorar ainda mais a sua actuação, ou pelo menos reduzir a probabilidade de algo correr mal. Se querem saber a verdade, sentimos-nos verdadeiramente entusiasmados com o assunto - até mesmo o Dean, que, regra geral, se mantinha bastante afastado do Percy... tanto em termos psicológicos como fisicos. Nada do que estava a suceder poderia ser classificado de surpreendente, suponho eu - para a maioria dos homens, nada é mais lisonjeiro do que haver uma pessoa jovem que preste realmente atenção aos seus conselhos, e nesse aspecto nós não diferíamos muito dos demais. Como resultado, nenhum de nós reparou que o Bill "Selvagem" Wharton já não fitava o tecto. Eu também não, mas o certo é que ele deixara de o fazer. Observava-nos enquanto estávamos junto da mesa do guarda de serviço, e, entre alguma conversa fiada, dávamos conselhos ao Percy. Dávamos conselhos! E ele a fingir que os ouvia! Até dá vontade de rir, tendo em conta a forma como as coisas vieram a desenrolar-se posteriormente!

O som de uma chave a ser inserida na fechadura da porta que dava para o pátio de recreio pôs cobro à nossa pequena crítica pós-ensaio. O Dean lançou ao Percy um olhar de advertência.

- Nem uma palavra nem uma expressão que lhe permita adivinhar - acautelou ele. - Não queremos que saiba aquilo que estivemos a fazer. Isso não é bom para os condenados. Transtorna-os.

O Percy aquiesceu com um acenar de cabeça, passando um dedo pelos lábios num gesto que significava que não iria abrir o bico e que deveria ter sido divertido mas não foi.

A porta que dava para o pátio abriu-se, e o Delacroix entrou, escoltado pelo Brutal, o qual transportava a caixa de charutos com o carretel às cores, da mesma maneira que o assistente de um ilusionista de feira poderia transportar para fora do palco os adereços do seu patrão, no fim de um espectáculo. O Mister Jingles vinha empoleirado no ombro do Delacroix. E quanto ao próprio Delacroix? Vou dizer-vos uma coisa: a Lillie Langtryl não devia ter exibido uma expressão mais radiante depois de ter actuado na Casa Branca.

- Eles adoraram o Mister Jingles! - declarou o Delacroix. - Riram-se, gritaram e bateram palmas!

- Que maravilha - comentou o Percy. Exprimia-se com uma entoação indulgente e paternalista, nada característica do Percy de antigamente. - E agora volta para a tua cela, velho veterano.

O Delacroix brindou-o com um olhar de desconfiança cómica, e o velho Percy surgiu de rompante. Mostrou os dentes num arreganho a fingir, como se se preparasse para agarrar o Delacroix. Era uma brincadeira, como é óbvio. O Percy estava bem-disposto e o seu estado de espírito não o impelia a mostrar-se agressivo, mas o Delacroix não tinha percepção disso. Num gesto brusco, afastou-se com uma expressão de medo e espanto e tropeçou num dos pés enormes do Brutal. Caiu desamparado com toda a violência, batendo com a parte de trás da cabeça no linóleo. O Mister Jingles conseguiu saltar do ombro a tempo de evitar ser esmagado, desatando a correr aos guinchos pela Milha Verde até à cela do Delacroix.

Este conseguiu pôr-se de pé e lançou ao Percy, que entretanto se ria à socapa, um único olhar pleno de ódio, e seguiu no encalço do seu animal de estimação num passo apressado, chamando-o enquanto ia esfregando a nuca. O Brutal (que desconhecia que o Percy, para variar, tinha mostrado sinais entusiasmantes de competência profissional) fitou o Percy com desprezo sem proferir uma única palavra, e foi logo atrás do Del com o molho de chaves que tinha na mão a chocalhar. Creio que aquilo que aconteceu em seguida foi porque o Percy se sentiu na obrigação de apresentar as suas desculpas - eu sei que é extremamente difícil acreditar numa coisa destas, mas nesse dia ele encontrava-se invulgarmente de bom humor. Caso isto seja verdade, só vem provar um velho adágio cheio de cinismo que em tempos ouvi, qualquer coisa que tinha a ver com o facto de as boas acções não passarem sem ser punidas. Recordam-se de eu vos ter contado como ele, depois de ter ido em perseguição do rato até à cela do isolamento e antes de o Delacroix ter sido colocado sob a nossa tutela, se tinha aproximado um tudo-nada de mais da cela do Presidente? Isso era perigoso, razão por que a Milha Verde era tão larga - quando se caminhava exactamente pelo meio, não se podia ser tocado por quem se encontrava no interior das celas. O Presidente não fizera nada ao Percy, mas recordo-me de nessa ocasião ter pensado que o Arlen Bitterbuck poderia ter feito qualquer coisa, uma vez que fora dele que o Percy se aproximara tanto. Apenas para lhe ensinar uma lição.

Pois bem, tanto o Presidente como o Chefe já tinham desaparecido, mas o Bill "Selvagem" Wharton preenchera o lugar que eles haviam deixado. Ele era muito mais malcomportado do que o Presidente ou o Chefe alguma vez tinham sonhado vir a ser, e estivera a observar a nossa pequena encenação, com a esperança de que surgisse a oportunidade de ele próprio poder entrar em palco. Naquele momento, essa hipótese foi-lhe oferecida de mão beijada, por obséquio do Percy Wetmore.

- Ei, Del! - chamou o Percy meio a rir, indo atrás do Brutal e do Delacroix, aproximando-se de mais do lado da Milha Verde onde estava situada a cela do Wharton, sem se aperceber de que o fazia. - Ei, tu, meu cabeça de merda, eu não quis fazer-te mal! Estás bem...

O Wharton levantou-se da tarimba e aproximou-se das grades da cela com a celeridade de um relâmpago - durante o tempo em que exerci o cargo de guarda prisional, nunca vi ninguém movimentar-se com tanta rapidez, nem sequer os jovens atléticos com quem o Brutal e eu posteriormente viemos a trabalhar no Estabelecimento Correccional Juvenil. Num gesto lesto, estendeu os braços por entre as barras e agarrou o Percy, primeiro pelos ombros da camisa e depois pela garganta. Conseguiu arrastá-lo contra a porta da sua cela. O Percy soltava guinchos que se assemelhavam ao grunhir de um porco num matadouro; li nos seus olhos que ele pensava estar prestes a morrer.

- Mas que querido - murmurou o Wharton. Uma das suas mãos abandonou a garganta do Percy para lhe despentear os cabelos. - Macios! - acrescentou com uma pequena

risada. - Como os de uma rapariga. Antes queria foder-te o olho do cu do que a rata da tua irmã. - Depois, foi ao ponto de beijar a orelha do Percy.

Estou em crer que este último - que espancara o Delacroix no bloco por este, acidentalmente, ter roçado a mão pelas suas virilhas, recordam-se desse incidente? - teve a percepção exacta daquilo que estava a acontecer. Duvido muito que o desejasse saber, mas estou convencido que sabia. Toda a cor havia abandonado as suas faces e as imperfeições sobressaíam como marcas de nascença. Tinha os olhos esbugalhados e humedecidos. De um dos cantos da sua boca trémula escorria um fio de saliva. Tudo aquilo se desenrolou com muita celeridade - eu diria que começou e terminou em menos de dez segundos.

O Harry e eu avançámos com os bastões empunhados. O Dean sacou da arma. Todavia, antes que as coisas pudessem avançar um centímetro que fosse, o Wharton largou o Percy e recuou para dentro da cela, erguendo as mãos até aos ombros e exibindo o seu medonho esgar.

- Eu larguei-o. Estava só a brincar e depois larguei-o - disse ele. - Nem sequer fiz mala um único cabelo desse rapaz tão bonito. Portanto, não venham com ideias de me enfiarem outra vez dentro daquela maldita cela de paredes almofadadas.

O Percy Wetmore atravessou que nem uma flecha a Milha Verde, encolhendo-se contra a porta de uma cela vazia no lado oposto; a sua respiração era tão rápida e elevada que quase parecia um choro convulsivo. Finalmente aprendera que devia manter-se sempre no centro da Milha Verde, afastado das mãos que agarravam com violência, dos dentes que abocanhavam e das ganas que dilaceravam. Creio que aquela lição iria ficar gravada na sua mente durante muito mais tempo do que todos os conselhos que lhe déramos depois dos ensaios. Havia no seu rosto uma expressão de profundo tenor e os seus preciosos cabelos estavam todos desgrenhados, todos espetados, pela primeira vez desde que eu o conhecia. O Percy parecia alguém que acabara de escapar a um crime de estupro. Fez-se um silêncio tão grande que o tempo pareceu imobilizar-se no espaço, um silêncio tão pesado que o único som que se ouvia era o silvo soluçante da respiração do Percy. Foi quebrado por um riso cacarejado tão repentino e tresloucado que chegava a ser chocante. O Wharton, foi o meu primeiro pensamento, mas não era ele. Era o Delacroix, que estava junto da porta aberta da sua cela, apontando para o Percy. Entretanto, o rato regressara ao seu ombro; o Delacroix parecia um bruxo pequeno mas malévolo, com o seu diabrete e tudo.

- Olhem para ele! Até mijou nas calças! - ululava o Delacroix. - Vejam bem o que o homem grande fez! Costuma rebentar os outros com o seu bastão, mais oui um mauvais homee, mas, quando alguém lhe toca, ele verte águas para as calças como se fosse um bebé!

Continuava a rir-se e a apontar, dando largas ao medo e ao ódio que nutria pelo Percy - naquele riso escarninho. O Percy olhava-o com fixidez, parecendo incapaz de se mexer ou de falar. O Wharton regressou para junto das barras da sua cela, baixando o olhar até à mancha escurecida na frente das calças do Percy - era pequena mas estava lá, e não deixava margem para dúvidas quanto à sua natureza - e fez uma careta risonha.

- Alguém devia comprar uma fraldinha a este rapaz tão duro - disse ele com sarcasmo, regressando à sua tarimba e continuando a rir-se.

O Brutal dirigiu-se para a cela do Delacroix, embora o cajun já tivesse entrado e se tivesse atirado para cima do colchão antes da chegada do Brutal.

Estendi a mão e agarrei no Percy pelo ombro.

- Percy... - comecei, mas não fui mais longe. Ele readquiriu vida, sacudindo a minha mão. Olhou para a parte dianteira das calças, viu a mancha que se espalhara e corou, ficando com as faces de um vermelho-escuro. Voltou a soerguer o olhar para mim, depois para o Harry e o Dean. Recordo-me de me ter sentido satisfeito pelo facto de o velho Pouca Terra já ter saído do bloco. Se ainda ali estivesse, aquela história teria circulado por toda a prisão num só dia. E, devido ao apelido do Percy - naquele contexto, era de facto um infortúnio - era uma história que haveria de ser contada com grande gáudio durante muitos anos.

- Se falarem disto a alguém, daqui a uma semana estão na bicha para a sopa dos pobres - declarou ele num sussurro enfurecido. Noutras circunstâncias, aquela observação teria feito com que eu desejasse ir-lhe às fuças, mas, dada a situação, a única coisa que senti foi pena do homem. Acho que ele detectou esse sentimento de piedade, o que fez com que o seu mal-estar se agravasse - como se tivesse uma ferida aberta que estivesse a ser limpa com urtigas.

- Aquilo que se passa no bloco não sai daqui - redarguiu o Dean numa voz plácida. - Não precisas de te preocupar com isso.

O Percy olhou por cima do ombro na direcção da cela do Delacroix. Naquele momento, o Brutal fechava a porta à chave; vindo do interior, de forma a não deixar dúvidas, ouvia-se o riso casquinado do Delacroix. A expressão do Percy era tão sombria como uma noite de trovoada. Ainda me apeteceu dizer-lhe que na vida costuma colher-se aquilo que se semeou, mas concluí que aquela talvez não fosse a melhor ocasião para uma lição extraída da Bíblia.

- Quanto a ele... - começou o Percy, mas não terminou a frase. Em vez disso, baixou a cabeça e dirigiu-se para a arrecadação à procura de um par de calças secas.

- Ele é tão bonitinho - insistiu o Wharton numa voz sonhadora. O Harry mandou-o calar antes que fosse para a cela do isolamento apenas por uma questão de princípio.

O Wharton cruzou os braços sobre o peito, fechou os olhos e pareceu ter intenções de dormir.

 

Na noite anterior à da execução do Delacroix, o tempo estava mais quente e abafado do que nunca - a temperatura era de vinte e oito graus, de acordo com o termómetro no exterior da administração quando o consultei às seis da tarde. Vinte e oito graus em finais de Outubro, com a trovoada a soar a oeste tal como era hábito em Julho. Nessa tarde, encontrara na cidade um membro da minha congregação, e ele perguntara-me, com uma seriedade aparente, se eu pensava que aquele tempo tão anormal para a altura do ano em que estávamos seria o anúncio do dia do Juízo Final. Eu respondi-lhe que tinha a certeza que não, mas ocorreu-me que, sem dúvida, aquele seria o dia do Juízo Final para o Eduard Delacroix. E assim foi.

O Bill Dodge encontrava-se junto à porta que dava para o pátio de recreio a beber café e a fumar.

- Ora vejam quem acaba de chegar - comentou ele, dirigindo-se a mim depois de ter olhado à sua volta. - O Paul Edgecombe, tão grande como a vida e duas vezes mais feio. - Como é que te correu o dia, Billy?

-Nada de especial. - E o Delacroix?

- Está óptimo. Dá a impressão de perceber que é para amanhã, mas ao mesmo tempo parece que não percebe. Sabes como fica a maior parte deles quando finalmente o seu fim se aproxima.

Fiz um acenar de cabeça afirmativo. - E o Wharton?

- Mas que comediante - retrucou Bill com uma gargalhada. - Faz com que o Jack Benny pareça um quacre. Disse ao Rolfe Wettermark que tinha comido doce de morango da rata da mulher dele.

- E o que é que o Rolfe respondeu? - perguntei.

- Que nem sequer era casado. E que ele devia era estar a pensar na mãe dele.

Ri-me a bandeiras despregadas. Aquilo realmente tinha graça, embora de uma maneira um bocado ordinária. E era bom poder rir-me à vontade sem ter a sensação de que alguém estava a chegar fósforos em chama às minhas partes baixas. O Bill fèz coro comigo, e depois despejou o resto do café no chão do pátio, que na altura não tinha ninguém, excepto alguns prisioneiros de confiança que por ali arrastavam os pés, a maioria deles vivendo na prisão há mais de um milhar de anos, ou coisa no género.

Os trovões faziam-se ouvir à distância, e uns quantos relâmpagos dispersos atravessaram o céu pardacento acima de nós. O Bill ergueu o olhar pouco à vontade e com o riso a morrer-lhe nos lábios.

- No entanto, deixa-me que te diga uma coisa - acrescentou. - Este tempo não me agrada muito. Dá a sensação de que está prestes a acontecer alguma coisa. Alguma coisa má.

Ele tinha toda a razão. A coisa má aconteceu precisamente por volta das dez e um quarto dessa mesma noite. Foi a essa hora que o Percy matou o Mister Jingles.

 

De início tudo indicava que aquela noite seria bastante boa, apesar do calor abafado - o John Coffey estava como sempre, calado, o Bill Selvagem preparava-se para entrar na pele do Bill Moderado, e o Delacroix mostrava um moral elevado para um homem que tinha um encontro marcado com a Velha Faísca dali a pouco mais de vinte e quatro horas.

Ele compreendia aquilo que o aguardava, pelo menos dentro dos parâmetros mais básicos; já tinha encomendado chili para a última refeição e dera-me instruções especiais a serem transmitidas ao pessoal da cozinha.

- Diga-lhes para carregarem no picante - pediu ele. - Diga-lhes que quero daquele que salta na garganta e pergunta como é que temos passado... daquele verde, não do fraco. Essa coisa apodera-se de mim como um filho da puta, no dia seguinte não sou capaz de sair da retrete, mas não me parece que desta vez vá ter problemas com isso, nest-ce pas?

A maioria dos condenados preocupa-se com a imortalidade das suas almas com uma espécie de ferocidade, mas o Delacroix ignorou as minhas questões quanto àquilo que desejava para conforto espiritual nas últimas horas de vida. Se "aquele tipo", o Schuster, tinha sido suficientemente bom para o "Grande Chefe" Bitterbuck, concluiu o Del, então também seria suficientemente bom para si. Não, aquilo que para ele era realmente importante - tenho a certeza que já adivinharam a que é que estou a referir-me - era o que viria a acontecer ao Mister Jingles depois de ele, Delacroix, ter ido para o outro mundo. Eu estava acostumado a passar longas horas junto dos condenados, na noite anterior à sua última caminhada; contudo, era a primeira vez que passava essas longas horas a ponderar no destino a dar a um rato.

O Del avaliou possibilidade após possibilidade, considerando pacientemente cada hipótese na sua mente um tanto obtusa. E enquanto ia pensando em voz alta, desejando assegurar-se de que não faltaria nada ao seu animal de estimação, como se este fosse uma criança que acabaria por ter de ir para a universidade, atirava o carretel colorido contra uma parede. De cada vez que o fazia, o Mister Jingles corria atrás do objecto, parava-o e em seguida fazia-o rolar até aos pés do Delacroix. Ao fim de algum tempo, aquilo começou a bulir-me com os nervos - primeiro foi o ruído que o carretel fazia quando batia contra a parede de pedra, depois era o barulho quase imperceptível das patas do Mister Jingles a correr. Embora aquela habilidade fosse muito engraçada, ao fim de mais ou menos noventa minutos começava a perder interesse. E o rato parecia nunca se sentir cansado. De vez em quando fazia uma pausa para se refrescar com um pouco de água do pires de café que o Delacroix tinha apenas com essa finalidade, ou para tasquinhar uma migalha do rebuçado amarelado de hortelã-pimenta, e regressava de imediato à sua habilidade. Por várias vezes estive para dizer ao Delacroix que parasse um pouco com aquilo, mas em cada uma dessas ocasiões recordei a mim mesmo que ele só dispunha daquela noite e do dia seguinte para poder fazer o truque do carretel com o Mister Jingles.

No entanto, já próximo do fim começou a ser-me francamente difícil manter esse pensamento em mente - sabem como é, quando um barulho se repete indefinida e monocordicamente. Ao fim de algum tempo ficamos com os nervos à flor da pele. Apesar de todas as considerações, comecei a dizer de minha justiça, mas então houve algo que me fez olhar por cima do ombro para fora da cela. O John Coffey encontrava-se de pé junto das barras da porta da sua cela, do outro lado do corredor, abanando a cabeça na minha direcção: para a direita, para a esquerda e de volta ao centro. Como se tivesse lido os meus pensamentos, dizendo-me que deveria reconsiderar o que estava prestes a dizer.

Assegurar-me-ia de que o Mister Jingles era entregue à tia solteirona do Delacroix, disse eu, a mesma que lhe havia enviado o saco grande cheio de rebuçados. O carretel colorido também seguiria com o rato, até mesmo a sua "casa" - entretanto, tínhamos feito uma colecta, acabando de vez com a reivindicação do Pouca Terra sobre a caixa de Coronas. Não, dissera o Delacroix depois de ter meditado um pouco (nesse interior, tivera tempo para lançar o carretel contra a parede, pelo menos cinco vezes, com o Mister Jingles a empurrá-lo com o focinho ou a fazê-lo rodar com as patas, para junto dele), isso não resultaria. A tia Hermione já era demasiado velha, nunca conseguiria compreender os modos atrevidos do Mister Jingles, e o que seria dele se lhe sobrevivesse? Não, não, a tia Hermione estava absolutamente fora de questão. E se um de nós ficasse com o rato?, perguntei. Um dos guardas prisionais? Poderíamos mantê-lo mesmo ali, no Bloco E. Não, recusou o Delacroix, agradecendo-me o pensamento generoso, certainement, mas o Mister Jingles era um rato que ansiava pela liberdade. Ele, Eduard Delacroix, sabia isso, porque o Mister Jingles - com certeza que já tinham adivinhado - lhe segredara essa informação ao ouvido.

- Muito bem - continuei -, nesse caso, um de nós levá-lo-á para casa, Del. Talvez o Dean. Ele tem um filho ainda pequeno que adoraria ter um rato de estimação.

Perante aquela sugestão, o Delacroix chegou ao ponto de empalidecer. Um garoto a tomar conta de um roedor de génio como o Mister Jingles? Como é que, em nome de le bom Dieu, se poderia esperar que um rapazinho tivesse capacidade para o manter amestrado e lhe ensinar novas habilidades? E suponhamos que o garoto perdia o interesse e se esquecia de lhe dar de comer durante dois ou três dias consecutivos? O Delacroix, que tinha assado seis seres humanos em vida, tentando encobrir as provas incriminatórias do seu primeiro crime, estremeceu, mostrando a delicada repulsa de um ardente antivivisseccionista.

Está bem, eu próprio o levarei para casa, disse-lhe eu (estão lembrados? Devemos prometer-lhes seja o que for; durante as suas últimas quarenta e oito horas, há que prometer-lhes tudo e mais alguma coisa). O que é que ele achava dessa sugestão?

- Não senhor, chefe Edgecombe - retorquiu o Del num tom de voz onde se adivinhava um pedido de desculpas. Voltou a arremessar com o carretel contra a parede. Este fez rico chete e rodopiou; em seguida, o Mister Jingles atirou-se ao carretel que nem gato a bofe, empurrando-o com o focinho de regresso ao Delacroix.

- Agradeço a sua generosidade... merci beaucoup, mas o senhor vive no bosque e o Mister Jingles teria medo de viver dans la forêt. Eu sei, porque...

- Parece-me que sou capaz de adivinhar como é que soubeste, Del - retorqui.

O Delacroix acenou com a cabeça, exibindo um sorriso rasgado antes de retomar a palavra.

- Mas nós vamos arranjar maneira de resolver o problema, Pode crer! - Uma vez mais, lançou o carretel contra a parede. O Mister Jingles lá foi a correr atrás dele. Tentei não me retrair.

No fim, foi o Brutal quem salvou o dia. Estivera sentado na mesa do guarda de serviço a ver o Dean e o Harry jogarem às cartas. O Percy também se encontrava presente, e o Brutal, ao fim de várias tentativas, cansou-se de tentar meter conversa com ele, uma vez que as únicas respostas que obtinha eram resmungos amuados. O Brutal veio até junto de mim e ficou do lado de fora da cela do Delacroix a ouvir a nossa conversa de braços cruzados.

- E que tal a Vila dos Ratos? - perguntou o Brutal, interrompendo o silêncio que se seguira à refeição do Delacroix da minha velha casa, que tão sinistra era no meio do arvoredo. Lançou aquela sugestão num tom de voz muito casual, como se fosse uma ideia que lhe ocorresse naquele momento.

- A Vila dos Ratos? - perguntou o Delacroix, lançando ao Brutal um olhar de interesse e pérplexidade. - Mas que Vila dos Ratos é essa?

- Uma atracção turística que há na Florida - respondeu ele. - Parece-me que em Tallahassee. Não é verdade, Paul? Em Tallahassee?

- Sim - concordei sem hesitação, pensando que Deus deveria abençoar o Brutus Howell. – Tallahassee só um bocado mais abaixo na estrada, logo ao pé da universidade dos cães. - Ao ouvir aquilo, a boca do Brutal desenhou um trejeito de riso, o que me levou a pensar que desataria a rir, borrando a pintura toda, mas lá conseguiu dominar-se, acenando com a cabeça. Calculei que mais tarde iria fartar-me de ouvir falar da universidade dos cães.

Desta vez, o Del não lançou o carretel, embora o Mister Jingles se encontrasse em cima da sua pantufa, com as patas dianteiras erguidas, indicando que esperava avidamente pela oportunidade de poder começar a correr atrás do carretel. O olhar do cajun pousou no Brutal e depois em mim, voltando a concentrar-se no Brutal.

- O que é que eles fazem na Vila dos Ratos? - perguntou ele.

- Achas que acolheriam o Mister Jingles? - perguntou-me o Brutal, ignorando a pergunta do Del, mas ao mesmo tempo incentivando-o a continuar. - Achas que ele tem o que é preciso, Paul?

 

Tentei dar a impressão de que meditava no assunto.

- Sabes - comecei a dizer -, quanto mais penso nisso, mais chego à conclusão de que se trata de uma ideia brilhante. - Pelo canto do olho vi o Percy a meio da Milha Verde

(ao passar pela cela do Wharton fez um grande desvio). Encostou um ombro às barras de uma cela vazia, prestando atenção à nossa conversa com um sorriso de desprezo nos lábios.

- O que é essa coisa da Vila dos Ratos? - continuou o Delacroix, ansioso por saber mais pormenores.

-É uma atracção turística, como já te disse - respondeu o Brutal. - Existem lá, oh, não sei bem, talvez uns cem ratos. Não te parece, Paul?

- Creio que já devem ser uns cento e cinquenta - reforcei eu. - Tem sido um grande sucesso. Tanto quanto sei, estão a pensar em abrir um na Califórnia e chamar-lhe Vila dos Ratos do Oeste; por aqui vês como o negócio tem vindo a prosperar. Os ratos amestrados estão na moda para a gente inteligente, calculo... embora eu não consiga compreender muito bem todo esse entusiasmo.

O Del estava sentado com o carretel colorido na mão, olhando para nós, tendo-se esquecido momentaneamente da sua própria situação.

- Eles só aceitam os ratos mais espertos - acrescentou o Brutal num tom de advertência -, os que sabem fazer habilidades. E não podem ser ratos brancos, porque esses vendem-se nas lojas.

- Sim, vendem-se nas lojas, aposto que sim! - atalhou o Delacroix com toda a veemência. - Odeio esses ratos das lojas!

- E há lá uma... - continuou o Brutal com o olhar fixo à distância, como se imaginasse a cena. - Existe uma tenda onde entramos...

- Sim, sim, como se fosse num circo! É preciso pagar para entrar?

- Estás a gozar comigo? É claro que é preciso pagar para entrar. Dez centavos por pessoa, dois centavos para as crianças. E há uma espécie de cidade feita de caixas de baquelite e rolos de papel higiénico, com janelas feitas de vidro de folha de mica para podermos ver os ratos no interior... - Sim! Sim!... - Naquele momento, o Delacroix tinha entrado em êxtase. Em seguida, voltou-se para mim. - Que vidro é esse?

- É como as portas dos fornos que deixam ver para dentro - expliquei.

-. Ah, estou a ver! Essa merda! - Fez um gesto com a mão ao Brutal, querendo que ele prosseguisse, enquanto os olhinhos de contas negras do Mister Jingles quase descreviam uma volta completa dentro das órbitas, tentando não perder de vista aquele carretel. Era uma cena deveras engraçada. Entretanto, o Percy aproximou-se um pouco mais, como se quisesse observar melhor; vi que o John Coffey lhe franzia o sobrolho, mas eu estava demasiado embrenhado na fantasia do Brutal para prestar mais atenção ao que se passava. Aquela situação conferia ao facto de dizer aos condenados tudo o que queriam ouvir uma dimensão inteiramente nova, e todo eu era admiração, acreditem.

- Pois bem - continuou o Brutal -, temos a cidade dos ratos, mas aquilo de que os miúdos gostam verdadeiramente é o Circo da Vila dos Ratos, onde há ratos que andam de baloiço, outros que rolam em cima de pequenos barris, outros que empilham moedas...

- Sim, é isso mesmo! Esse é que é o lugar para o Mister Jingles! - retorquiu o Delacroix, todo excitado. Os seus olhos cintilavam e as suas faces tinham ficado muito ruborizadas. Achei que o Brutus Howell era uma espécie de santo. - Sempre vais acabar por ir parar a um circo de ratos, Mister Jingles! Vais passar a viver numa cidade de ratos na Florida! Com todas as janelas de vidro de folha de mica! Hurra!!!

Arremessou o carretel com mais força do que o habitual. Atingiu a parede na zona inferior, fez ricochete de uma forma estranha e foi projectado por entre as barras da porta da cela do Delacroix, indo parar à Milha. O Mister Jingles não hesitou em ir a correr atrás do carretel, e o Percy viu ali a sua grande oportunidade.

- Não, grande idiota! - berrou o Brutal, mas o Percy não lhe prestou a mínima atenção. Assim que o Mister Jingles chegou junto do carretel, demasiado concentrado no objecto para se aperceber de que o seu velho inimigo se encontrava por perto, o Percy colocou-lhe em cima a sola dura do seu pesado sapato preto de trabalho. Ouviu-se um estalar bastante audível quando a espinha do Mister Jingles se partiu, tendo começado a jorrar-lhe logo sangue da boca. Os seus pequenos olhos negros imobilizaram-se esbugalhados nas órbitas; neles li uma expressão de agonia e de surpresa que era demasiado humana.

O Delacroix gritou de dor e de horror-. Lançou-se contra a porta da cela, enfiando os braços por entre as barras de ferro, esticando-se tanto quanto possível e gritando vezes sem conta o nome do rato.

O Percy voltou-se para ele com um sorriso nos lábios. - Já está - disse ele, dirigindo-se a nós três. - Sabia que acabaria por apanhá-lo. Na verdade, era uma questão de tempo. - Virou costas e começou a andar pela Milha Verde sem pressa, deixando o Mister Jingles estendido em cima do linóleo, no meio de uma poça do seu próprio sangue.

 

Parte IV

A MÁ MORTE DO EDUARD DELACROIX

Pondo de parte toda esta outra escrita, tenho vindo a manter um pequeno diário desde que fixei residência em Georgia Pines - nada de muito importante, só uns dois parágrafos por dia, em grande parte acerca das condições do tempo - e ontem ao fim do dia passei-lhe uma vista de olhos. O meu objectivo era saber há quanto tempo é que os meus netos, Christopher e Danielle, me tinham forçado a vir para este lar.

- É para o seu próprio bem, avô - haviam eles dito na altura. É claro que disseram. Não é isso o que a maior parte das pessoas costuma dizer, quando finalmente conseguem ver-se livres de um problema que anda e fala?

Passaram pouco mais de dois anos. Mas o mais estranho é que não sei se realmente parece que já passaram dois anos, mais tempo, ou menos. Tenho a sensação de que o meu sentido da passagem do tempo está a liquefazer-se, tal como o boneco de neve de uma criança que se derrete com o degelo de Janeiro. É como se o tempo, como sempre foi, tenha deixado de existir. Aqui existe apenas o Tempo de Georgia Pines, que é o mesmo que dizer, o Tempo do Homem Velho, o Tempo da Senhora de Idade e o Tempo de Mijar na Cama. O resto... desapareceu por completo.

Este é um lugar perigoso. Ao princípio não nos apercebemos disso, pensamos que é apenas um lugar enfadonho que se deve temer tanto como um jardim-infantil durante a hora da sesta; contudo, é perigoso, sem dúvida. Já tive ocasião de ver muita gente entrar num estado de senilidade desde que aqui cheguei e às vezes isso não se processa com suavidade - às vezes afundam-se à velocidade de um submarino a mergulhar no menor espaço de tempo possível. Essas pessoas dão entrada aqui em condições de saúde bastante razoáveis - com o olhar um pouco opaco, grudadas à bengala, talvez um pouco soltos dos intestinos, mas, fora isso, bem - e depois passa-se qualquer coisa com elas. Um mês mais tarde só conseguem estar sentados na sala da televisão, a olhar fixamente para o ecrã com uma expressão abstracta, o queixo descaído e um copo de sumo de laranja esquecido na mão, e que entretanto se inclinou e começou a gotejar. Um mês depois, é necessário dizer-lhes os nomes dos filhos quando estes vêm visitá-los. E um mês depois é o raio dos seus próprios nomes que é preciso recordar-lhes. De facto, há qualquer coisa que lhes acontece: é o Tempo em Georgia Pines o que lhes acontece. A passagem do tempo por aqui assemelha-se a um ácido fraco que primeiro apaga a memória, e que em seguida elimina o gosto pela vida.

É necessário lutar contra esse estado mórbido. É o que eu digo constantemente à Elaine Connelly, a minha amiga muito especial. No que me diz respeito, a situação melhorou desde que comecei a escrever sobre o que me aconteceu em 1932, o ano em que o John Coffey chegou à Milha Verde. Algumas destas recordações são horrorosas, mas o certo é que as sinto a aguçar-me a memória e o meu estado de alerta, da mesma forma que o gume de uma faca afia a ponta de um lápis, e só por isso compensam o sofrimento que causam. No entanto, a escrita e a memória por si só não são o suficiente. Também tenho um corpo, independentemente do quanto hoje em dia ele possa ser grotesco e estar deteriorado, e eu exercito-o tanto quanto possível. De início foi difícil - os velhos jarretas como eu não são muito dados ao exercício físico, quando este é feito sem um incentivo - mas agora é-me mais fácil, uma vez que passou a existir uma finalidade nos meus passeios.

Costumo sair antes do pequeno-almoço - na maior parte dos dias, assim que a manhã começa a despontar - para dar o meu primeiro passeio. Esta manhã estava a chover e o tempo húmido provoca-me dores nas articulações, mas vesti um impermeável que estava pendurado no bengaleiro à porta da cozinha, e mesmo com o tempo chuvoso saí. Quando um homem tem uma tarefa a cumprir, esta tem de ser levada a cabo, e se isso lhe causar dores, pois bem, tanto pior. Além do mais, há que levar em consideração todas as compensações. A principal é conseguirmos manter esse sentido do Tempo Verdadeiro, ao contrário do Tempo em Georgia Pines. E além disso, a chuva agrada-me, com dores ou sem dores. Especialmente, às primeiras horas da manhã, quando o dia ainda é jovem, e nos dá a impressão de estar repleto de possibilidades, até mesmo para um velhote desgastado como eu.

Atravessei a cozinha, detendo-me para implorar a um dos cozinheiros, de olhos ainda meio adormecidos, que me desse duas torradas, e saí. Percorri o campo de jogos e parte do pequeno campo de golfe coberto de ervas. Por detrás dessa área existe um arvoredo de pequenas dimensões, com uma vereda estreita e sinuosa, assim como dois barracões que já não são utilizados, e que se vão deteriorando com a passagem do tempo. Num passo lento, percorri este caminho, escutando o gotejar da chuva, suave e envolto em mistério, a tombar sobre os pinheiros, enquanto ia trincando as torradas com os poucos dentes que me restam. Sentia dores nas pernas, mas estas não eram muito intensas e conseguiam suportar-se. De uma maneira geral, sentia-me bastante bem. Inspirei o ar húmido e pardacento tão profundamente quanto me foi possível, os meus pulmões engolindo-o como se fosse comida.

Quando cheguei ao segundo dos velhos barracões que mencionei, entrei durante algum tempo e tratei do que tinha a tratar ali.

Vinte minutos mais tarde, quando voltei à vereda por onde tinha ido, comecei a sentir o bichinho da fome a agitar-se no meu estômago; pensei que já me apetecia alguma coisa um pouco mais substancial do que as torradas. Talvez uma tigela de papas de aveia, ou mesmo um ovo mexido com uma salsicha ao lado. Gosto de salsichas, sempre gostei, mas hoje em dia, se por acaso como mais do que uma, tenho propensão a ficar com diarreia. No entanto, só uma não deveria causar-me transtorno. Em seguida, com a barriga cheia e com o ar húmido ainda a espevitar-me o cérebro (ou assim o esperava), tencionava ir para o solário começar a escrever sobre a execução do Eduard Delacroix. Fá-lo-ia o mais depressa possível, para não perder a coragem.

Quando voltei a atravessar o campo de jogos, em direcção à porta da cozinha, era o Mister Jingles que me preenchia os pensamentos - a maneira como o Percy Wetmore o tinha es magado com o sapato, partindo-lhe a espinha, e de como o Delacroix havia desatado a gritar ao dar-se conta daquilo que o seu inimigo fizera - e só dei pela presença do Brad Dolan, que estava meio oculto pelos contentores do lixo, quando ele subitamente me agarrou pelo pulso.

- Com que então saíste para dar um pequeno passeio, não é verdade, Paulie? - perguntou ele.

Dei um safanão, soltando o pulso, sobressaltado - qualquer pessoa apanhada de surpresa faria a mesma coisa - mas não só. Recordam-se de que eu estivera a pensar no Percy Wetmore, e de cada vez que vejo o Brad lembro-me logo do Percy. Isso algibeira (no caso do Percy era sempre uma revista de aventuras; com o Brad são livros de anedotas que só têm graça no caso de se ser estúpido, ou ter mau coração), e à maneira como ele se comporta, como se fosse o maior, mas principalmente por ele ser matreiro e ter prazer em fazer mal aos outros. Reparei que acabara de pegar ao trabalho - nem sequer ainda tivera tempo de vestir o uniforme branco de servente do lar. Trazia um par de calças de ganga e uma camisa grosseira. Numa das mãos tinha o que restava de um bolo que roubara da cozinha. Estivera debaixo do beiral a comê-lo, para se proteger da chuva. E para poder observar a minha chegada, nesta altura estou bem certo disso. Também estou certo de outra coisa: preciso de ter cuidado com o Brad Dolan. Ele não gosta muito de mim. Não sei por que razão, mas também nunca cheguei a saber porque é que o Percy Wetmore sempre antipatizara com o Delacroix. Na realidade, antipatia é uma palavra demasiado fraca. O Percy odiara o Del com todas as veias da sua alma desde o primeiro instante em que o pequeno franciú surgira na Milha Verde.

- O que é que se passa com esse impermeável que trazes vestido, Paulie? - perguntou ele, sacudindo a gola. - Não é teu. - Tirei-o do corredor, junto à porta da cozinha - repliquei. Detesto que ele me chame Paulie e estou convencido de que ele está bem ciente disso, mas raios me partissem se eu lhe daria a satisfação de aludir ao assunto. - Há imensos impermeáveis pendurados no bengaleiro. Seja como for, não estou a danificá-lo, não te parece? E é exactamente para a chuva que eles se destinam.

- Mas não foram feitos para ti, Paulie - retorquiu ele com um pequeno sorriso de desdém. - Aí é que está o busílis. Esses impermeáveis são para os empregados e não para os residentes.

- Continuo sem compreender que mal é que posso ter feito.

Ele lançou-me um sorriso por entre os lábios cerrados.

- Isto não tem nada a ver com mal, mas sim com os regulamentos. O que seria a vida sem regulamentos? Paulie, Paulie, Paulie. - Abanou a cabeça, como se só o facto de ser forçado a olhar para mim fizesse com que lamentasse estar vivo. - Provavelmente, estás convencido de que um peido velho como tu não tem de se preocupar mais com os regulamentos, mas isso não é verdade. Paulie.

A sorrir para mim. Antipatizando comigo. Talvez chegasse ao ponto de me odiar. E porquê? Não sei. Por vezes não há qualquer motivo. Esse é que é o aspecto assustador da questão.

- Bom, lamento muito se desobedeci aos regulamentos - continuei. A minha voz saiu choramingada e um pouco esganiçada; detestei-me por ter falado daquela maneira, mas já sou velho e as pessoas de idade choramingam com facilidade. As pessoas velhas assustam-se com facilidade.

- As tuas desculpas são aceites - disse o Brad com um acenar de cabeça. - Agora vai pendurar isso. Em qualquer dos casos, não tens nada que andar a passear à chuva. Muito em especial, naquele arvoredo. E se escorregasses e caísses, fracturando o raio da bacia? Hem? Quem é que pensas que seria obrigado a arrastar a tua velha carcaça pela colina acima?

-Não sei - respondi-lhe. O meu único desejo era afastar-me dele. Quanto mais o ouvia falar, mais o achava parecido com o Percy. O William Wharton, o tresloucado que estivera na Milha Verde durante o Outono de 32 numa ocasião agarrou no Percy e assustou-o tanto que ele mijou nas calças. Se falarem disto a alguém, dissera-nos o Percy depois do ocorrido, daqui a uma semana estão na bicha para a sopa dos pobres. Agora, depois de decorridos todos esses anos, eu quase conseguia ouvir o Brad Dolan a articular aquelas mesmas palavras, exactamente no mesmo timbre de voz como se, ao escrever sobre esses tempos passados, eu tivesse aberto uma porta medonha que ligava o passado ao presente - o Percy Wetmore ao Brad Dolan, a Janice Edgecombe à Elaine Connelly, a penitenciária de Cold Mountain ao lar da terceira idade de Georgia Pines. Se este pensamento não me mantiver acordado à noite, estou em crer que nada o conseguirá.

Fiz menção de entrar pela porta da cozinha, e o Brad voltou a agarrar-me pelo pulso. Não sei quanto à primeira vez, mas desta feita ele fê-lo de propósito, apertando-me o pulso até me magoar. Os seus olhos percorriam tudo em seu redor, certificando-se que não havia ninguém por ali com aquele tempo húmido do início da manhã, ninguém que pudesse testemunhar que ele estava a abusar de uma das pessoas de idade das quais deveria cuidar.

- O que é que fazes quando vais por aquele caminho? - perguntou ele. - Eu sei que não vais por ali para bateres uma punheta, esses dias há muito que ficaram para trás. Portanto, o que é que vais fazer?

- Nada - respondi, dizendo a mim mesmo que me acalmasse, para não lhe dar a mostrar o quanto estava a magoar-me; era preciso manter a calma, ter em mente que ele só mencionara a vereda e não dissera nada sobre o barracão. - Vou só passear. Pôr as ideias em ordem.

- É tarde de mais para isso, Faulie, a tua mente nunca voltará a pensar com clareza. - Uma vez mais, apertou o meu pulso de homem fragilizado pela idade, fazendo pressão sobre os ossos quebradiços, sempre a olhar de um lado para o outro para se assegurar de que ninguém presenciava aquela cena. O Brad não receava infringir os regulamentos; o seu único receio era ser apanhado a fazê-lo. Até nisso ele agia como a Percy Wetmore, o qual nunca permitia que ninguém se esquecesse que ele era sobrinho do governador do estado. - Tão velho como és, é um autêntico milagre que sejas capaz de te recordar de quem és. És demasiado velho. Até mesmo para um museu como este. Causas-me arrepios na espinha, Paulie.

- Larga-me - ripostei, tentando falar numa voz que não fosse choramingada. O que não se devia apenas ao meu orgulho. Pensei que se ele o detectasse poderia ficar todo inflamado, da mesma forma que o cheiro do suor pode, por vezes, inflamar um cão de maus flgados - um cão que, noutras circunstâncias, se limitaria a rosnar - levando-o a morder. Aquilo trouxe-me à recordação a imagem do repórter que fizera a cobertura do julgamento do John Coffey. O repórter era um homem horroroso de nome Hammersmith, e a coisa mais horrível acerca dele é que nunca se apercebera de como era horroroso.

Em vez de me soltar, o Dolan voltou a apertar-me o pulso. Comecei a gemer. Não queria fazer tal coisa, mas foi mais forte do que eu. As dores percorreram-me o corpo até aos tornozelos.

- O que é que costumas fazer ali em baixo, Paulie? Diz-me. - Nada! - respondi. Não chorava, ainda não, mas receava que isso viesse a acontecer dentro em pouco, caso ele continuasse a magoar-me daquela maneira. - Nada, limito-me a passear, eu gosto de passear, larga-me o pulso!

Ele acedeu, mas somente pelo tempo suficiente para poder agarrar-me pela outra mão. Essa estava fechada num punho. - Abre-a - disse ele. - Deixa o papá ver o que é que tens aí.

Obedeci-lhe, o que lhe provocou um resmungo de nojo. Eram só os restos da minha segunda torrada. Quando ele começara a apertar-me o pulso esquerdo,. eu cerrara-a na outra mão e, como estava barrada de manteiga - que é como quem diz... com um sucedâneo, como é evidente, eles ali não tinham manteiga da verdadeira - lambuzara-me os dedos.

- Vai para dentro e lava a porcaria das mãos - ripostou ele, retrocedendo e dando outra dentada no seu bolo. - Jesus Cristo!

Subi os degraus. Sentia as pernas a tremer, e o meu coração pulsava como um motor que tivesse válvulas que não vedassem e pistões velhos. Enquanto rodava a maçaneta que abriria a porta da cozinha - eme proporcionaria segurança - o Dolan continuou a falar.

- Se contares a alguém que eu te torci esse pulso velho, Paulie, eu digo-lhes que andas a ver coisas. O início da demência provocada pela senilidade, muito plausivelmente. E sabes que eles acreditarão em mim. Se por acaso houver nódoas negras, pensarão que foste tu que as fizeste a ti próprio.

Sim. Aquilo era verdade. E, uma vez mais, poderia muito bem ter sido o Percy Wetmore a proferir aquelas palavras, um Percy que conseguira manter-se jovem e malévolo, enquanto eu tinha envelhecido, ficando com um corpo frágil.

- Não tenciono dizer nada seja a quem for - repliquei entre dentes. - Não tenho nada a dizer.

- É isso mesmo, minha velha doçura. - A sua voz era suave e mordaz, a voz de um mentecapto (para utilizar o termo do Percy) que estava convencido que se manteria jovem para sempre. - E podes crer que vou descobrir o que é que andas a tramar. Não hei-de descansar até saber. Estás a ouvir o que te digo?

Estava e muito bem, mas não lhe daria a satisfação de lho dizer. Entrei, atravessando a cozinha (chegava-me às narinas o aroma dos ovos e das salsichas, mas eu entretanto tinha perdido o apetite), e pendurei o impermeável no cabide. Em seguida, subi as escadas até ao meu quarto - descansando em cada degrau e dando tempo ao meu coração para que se acalmasse - afim de ir buscar o meu material de escrita.

Desci até ao solário; preparava-me para me sentar à pequena mesa junto das janelas, quando a minha amiga Elaine enfiou a cabeça pela porta entreaberta. Tinha um aspecto fatigado e, pensei, pouco saudável. Penteara os cabelos mas continuava com o roupão vestido. Nós, as velhas doçuras, não costumamos estar com muitas cerimónias, quanto ao traje que envergamos; na maior parte dos casos, não podemos dar-nos a esse luxo.

- Não quero incomodar - disse ela -, estou a ver que estás a preparar-te para começar a escrever...

- Não digas disparates - repliquei. - Tenho tempo de sobra. Entra.

O que a Elaine fez, mas continuando junto à porta.

- E que não consegui dormir... outra vez. E por acaso olhei pela janela ainda não há muito tempo... e...

- E viste o Dolan e eu próprio embrenhados numa pequena conversa deveras agradável - continuei. Esperava que ela se houvesse limitado a observar; que a janela dela se tivesse mantido fechada, impedindo-a de me ouvir a choramingar, pedindo ao homem que me largasse.

- Não me parece que tenha sido agradável nem tão-pouco amigável - acrescentou ela. - Paul, esse Dolan tem andado por aí a fazer perguntas a teu respeito. Fez-me pergun

tas sobre ti, na semana passada. Na altura não pensei muito no assunto, pois acho que ele é muito bisbilhoteiro em relação às outras pessoas, mas agora estou com algumas dúvidas.

- Fez perguntas sobre mim? - Só esperava que a minha voz não desse a entender o mal-estar que me invadira. - A perguntar o quê?

- Para começar, queria saber onde é que vais quando dás os teus passeios. E também por que razão vais passear. Tentei rir-me sem grande êxito.

- Aí está um homem que não acredita nos beneficios do exercício físico.

- Ele pensa que tu tens um segredo. - A Elaine fez uma pausa. - E eu também.

Abri a boca - não sei bem para dizer o quê - mas a Elaine ergueu uma das suas mãos enodadas, mas tão estranhamente bonitas, antes de eu ter oportunidade de proferir uma única palavra.

- Se for esse o caso, não pretendo saber o que é, Paul. Os teus assuntos só a ti dizem respeito. Foi assim que fui educada, embora isso não aconteça com toda a gente. Tem cuidado. Era só o que queria dizer-te. E agora vou deixar-te sozinho com a tua escrita.

A Elaine voltou-se, fazendo menção de se ir embora; antes que pudesse transpor a porta, chamei-a. Virou-se para mim com uns olhos inquiridores.

- Quando eu terminar o que tenho andado a escrever... - comecei a dizer, abanando ligeiramente a cabeça. Aquilo era incorrecto. - Se eu conseguir acabar o que tenho andado a escrever, estarias disposta a lê-lo?

Pareceu ter ficado a pensar no assunto; ao fim de algum tempo, brindou-me com aquela espécie de sorriso por que um homem se poderia apaixonar facilmente, até mesmo um homem envelhecido como eu próprio.

- Para mim, isso seria uma honra - respondeu a Elaine por fim.

- É preferível leres antes de começares a falar em honras - retorqui, pensando na morte de Delacroix.

- Seja como for, gostaria de ler os teus escritos - continuou ela. - Cada palavra. Prometo. Mas primeiro tens de acabar de escrever.

Com aquelas palavras, deixou-me sozinho, mas ainda decorreu muito tempo até que começasse a escrever qualquer coisa. Fiquei sentado a olhar pela janela durante quase uma hora, batendo com a caneta contra a mesa, observando o dia pardacento a iluminar-se um pouco por breves instantes, a pensar no Brad Dolan, o qual me chama Paulie e nunca se cansa das piadas sobre os chinocas, os saloios e os negros, a pensar no que a Elaine Connelly tinha acabado de me dizer. Ele pensa que tu tens um segredo. E eu também.

Talvez eu tivesse. É possível que sim. E, como é evidente, o Brad Dolan queria conhecê-lo. Não porque pensasse que era importante (e calculo que não fosse, excepto para mim), mas só porque pensava que os velhos como eu não deviam ocultar segredos. Tão-pouco devem tirar os impermeáveis dos bengaleiros junto da porta da cozinha. Ou ficar com a ideia de que os da nossa igualha continuam a ser seres humanos. E por que razão não deveria ser-nos permitido tal ideia? Ele não sabe. E também nesse aspecto é muito parecido com o Percy.

Por conseguinte, os meus pensamentos, como as águas que dobram o cotovelo de um rio, regressaram finalmente ao ponto onde haviam estado na altura em que o Brad Dolan es tendera a mão, perto da cozinha, para me agarrar o pulso: ao Percy, ao Percy Wetmore, o homem de espírito maldoso, e à forma como ele exercera a sua vingança sobre alguém que ousara rir-se de si. O Delacroix estava a lançar o carretel de cores garridas - aquele que o Mister Jingles ia buscar a correr - quando este fez ricochete na parede da cela, e saltou para o corredor. Não foi necessário mais nada; o Percy viu ali a sua grande oportunidade.

 

- Não, grande idiota! - berrou o Brutal, mas o Percy não lhe prestou a mínima atenção. Assim que o Mister Jingles chegou junto do carretel, demasiado concentrado no objecto para se aperceber de que o seu velho inimigo se encontrava por perto, o Percy colocou-lhe em cima a sola do seu pesado sapato preto de trabalho. Ouviu-se um estalar bastante audível quando a espinha do Mister Jingles se partiu, tendo começado a jorrar-lhe logo sangue da boca. Os seus pequenos olhos negros imobilizaram-se esbugalhados nas órbitas; neles li uma expressão de agonia e de surpresa que era demasiado humana.

O Delacroix gritou de dor e de horror. Lançou-se contra a porta da cela, enfiando os braços por entre as barras de ferro, esticando-se tanto quanto possível e gritando vezes sem conta o nome do rato.

O Percy voltou-se para ele com um sorriso nos lábios. Também se virou para o Brutal e para mim.

- Já está - disse ele. - Sabia que acabaria por apanhá-lo. Na verdade, era uma questão de tempo. - Virou costas e começou a andar pela Milha Verde, sem pressa, deixando o Mister Jingles estendido em cima do linóleo, o sangue vermelho a derramar-se por cima do verde.

O Dean levantou-se da mesa do guarda de serviço, batendo com o joelho num dos cantos, fazendo tombar o baralho de cartas com que tinha estado a jogar, que se espalharam em todas as direcções. Nem o Dean nem o Harry, que estavam quase a terminar o seu turno, prestaram a mínima atenção às

cartas.

- O que é que fizeste desta vez? - gritou o Dean ao Percy. - Que porra é que fizeste desta vez, meu estupor? O Percy não lhe deu resposta, passando junto da secretária a acamar o cabelo com os dedos. Atravessou o meu gabinete em direcção à sala da arrecadação.

Foi o William Wharton quem respondeu no seu lugar. - Chefe Dean? Parece-me que o que ele fez foi ensinar a um certo franciú que este não é muito esperto quando se ri dele - disse o Wharton, desatando a rir-se. Foi uma boa gargalhada, um riso do campo, jovial e profundo. Conheci pessoas ao longo desse período da minha vida (na sua maioria, pessoas deveras assustadoras), que só pareciam normais quando se riam. O Bill Selvagem era uma delas.

Uma vez mais, cheio de perplexidade, baixei o olhar até ao rato. Continuava ainda a respirar; viam-se pequenas gotículas de sangue entre os filamentos dos seus bigodes, e os olhos, que até então tinham estado brilhantes que nem pequenas contas negras, começavam a ficar toldados. O Brutal apanhou do chão o carretel colorido, olhou para o objecto e depois fitou-me. Mostrava-se tão aparvalhado quanto eu próprio. Atrás de nós, o Delacroix não parava de gritar, dando largas a todo o desgosto e horror que sentia. Não se tratava apenas do rato, como é óbvio. O Percy havia destruído o mecanismo de defesa do Delacroix, e todo aquele horror brotava do seu interior. Mas o Mister Jingles era o centro de todos esses sentimentos reprimidos; era horrível ouvi-lo.

- Oh, não - gritava ele repetidamente por entre os berros e as súplicas balbuciadas e as orações em cajun. - Oh, não, oh, não, pobre Mister Jingles, pobre velho Mister Jingles, oh, não.

- Dê-mo a mim.

Intrigado com aquela voz profunda e retumbante, ergui o olhar, sem que inicialmente soubesse a quem pertencia. Deparei com John Coffey. À semelhança do Delacroix, também enfiara os braços por entre as barras da porta da cela, mas ao contrário do Del, ele não os abanava. Limitava-se a mantê-los estendidos tão longe quanto podia, com as mãos abertas. Era uma postura quase de urgência. O seu timbre de voz possuía as mesmas características, motivo por que, suponho eu, de princípio não a reconheci como pertença sua. Dava a impressão de ser um homem diferente em relação àquela alma lacrimosa e perdida que ocupara a sua cela durante as últimas semanas.

- Entregue-mo, Mister Edgecombe! Enquanto ainda se vai a tempo!

Foi então que me lembrei do que ele fizera por mim, e compreendi. Supus que mal não faria, embora estivesse convencido de que também não iria servir de muito. Quando apanhei o rato do linóleo, retraí-me ao tocar-lhe no corpo - havia tantos ossos quebrados e espetados em vários pontos dos quartos traseiros e dianteiros do Mister Jingles, que a sensação era a de agarrar numa almofada de alfinetes coberta de pêlos. Aquilo não era nenhuma infecção urinária. Ainda assim...

- O que é que estás a fazer? - perguntou-me o Brutal quando coloquei o Mister Jingles na palma da gigantesca mão direita do John Coffey. - O que raio?...

O Coffey recolheu o rato através das barras. O animal mantinha-se inanimado na sua mão, com a cauda pendurada por cima do arco formado pelo polegar e dedo indicador, a agitar-se fracamente no ar. Em seguida, o Coffey cobriu a sua mão direita com a esquerda, criando uma espécie de concha, no interior da qual o rato se encontrava deitado. Tínhamos deixado de poder ver o Mister Jingles, víamos apenas a sua cauda, suspensa e contorcendo-se fracamente na ponta, qual pêndulo prestes a imobilizar-se. O Coffey ergueu as mãos até ao rosto e, ao fazê-lo, abriu os dedos da direita, criando espaços como os existentes entre as barras da prisão. Naquele momento, a cauda do rato continuava pendurada do lado das mãos virado para nós.

O Brutal aproximou-se de mim, continuando a segurar o carretel colorido.

- O que é que ele pensa que está a fazer? - Chüuuu - fiz-lhe eu.

Entretanto, o Delacroix parara de gritar.

- Por favor, John - sussurrou ele. - Oh, John ajuda-o, por favor ajuda-o, oh, s'il vous plaït.

O Dean e o Harry tinham-se juntado a nós; este último trazia numa das mãos o nosso velho baralho de cartas.

- O que é que se passa? - perguntou o Dean; como resposta, limitei-me a abanar a cabeça. Uma vez mais, estava a sentir-me hipnotizado, raios me partam se não estava.

O Coffey colocou a boca junto de dois dos seus dedos, inspirando profundamente. Por um momento, tudo se manteve em suspenso. Pouco depois, ergueu a cabeça, afastando-a das mãos, o que me permitiu ver a expressão de um homem que aparentava estar gravemente doente, ou sob um sofrimento terrível. Os seus olhos ardentes exibiam uma expressão alerta; os seus dentes superiores mordiam com força o lábio inferior; as suas faces negras tinham adquirido uma tonalidade desagradável, que mais se assemelhava a uma pasta de cinzas misturadas com lama. Emitiu um som estrangulado bem do fundo da garganta.

- Adorado Jesus, Senhor e Salvador - murmurou o Brutal. Os seus olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. - O que é que?... - A voz do Harry mais parecia um ladrar. - O quê?

- A cauda! Não estás a ver? A cauda!

A cauda do Mister Jingles deixara de se assemelhar a um pêndulo prestes a imobilizar-se, e zurzia vigorosamente de um lado para o outro, como a cauda de um gato pronto a caçar pássaros. E então, do interior das mãos em concha do Coffey, ouviu-se um guinchar perfeitamente familiar.

O Coffey soltou uma vez mais aquele som estrangulado de quem estava amordaçado, e rodou a cabeça para o lado, como um homem que houvesse puxado um jacto de escarros e pretendesse lançá-lo da boca para fora. Em vez disso, expeliu uma nuvem de insectos negros da boca e do nariz. - pelo menos, eu penso que fossem insectos, tal como os outros, mas até hoje não estou absolutamente certo disso. - Começaram a zunir à sua volta, formando uma nuvem escura que temporariamente obscureceu as suas feições.

- Credo, o que é aquilo?! - perguntou o Dean numa voz esganiçada e receosa.

- Não há problema - ouvi-me eu a dizer. - Não entres em pânico, está tudo bem, dentro de alguns segundos desaparecerão.

Tal como na ocasião em que o Coffey tinha curado a minha infecção urinária, os "bichinhos" ficaram brancos e desapareceram.

- Mas que merda é esta?! - sussurou o Harry atónito. - Paul? - chamou o Brutal numa voz pouco firme. - Paul?

O Coffey voltara a apresentar um bom aspecto – e como um fulano que tivesse conseguido cuspir um bocado de carne que estivera quase a sufocá-lo. Dobrou-se para baixo, colocou junto do chão as mãos que continuavam a formar uma concha, espreitou por entre os dedos e abriu-as. O Mister Jingles, são que nem um pêro - sem o mínimo defeito na espinha nem tão-pouco um único alto nos quartos - começou a correr. Deteve-se por breves instantes junto da porta da cela do Coffey, e em seguida atravessou a Milha Verde até à cela do Delacroix. Quando o rato ia a correr, reparei que ainda tinha algumas gotículas de sangue agarradas aos bigodes.

O Delacroix pegou no animal, rindo e chorando ao mesmo tempo, cobrindo o rato com beijos repenicados sem quaisquer mostras de embaraço. O DDean, o Harry e o Brutal obsevavam em silêncio, perplexos. Então, o Brutal avançou e entregou ao Delacroix o carretel colorido através das barras da cela. De princípio, este não reparou; estava demasiado enlevado com o Mister Jingles. Era como um pai cujo filho tivesse acabado de ser salvo de um afogamento. O Brutal bateu-lhe com o carretel no ombro. O Delacroix olhou, viu o que era, aceitou o carretel e voltou a dedicar toda a sua atenção ao Mister Jingles, acariciando-lhe o pêlo e devorando-o com os olhos, sentindo necessidade de renovar constantemente a sua percepção de que sim, o rato estava bem de saúde, o rato continuava inteiro e em excelente forma.

- Lança-o - disse o Brutal. - Quero ver como é que ele corre.

- Ele está bem, chefe Howell, ele está bem, louvado seja Deus...

- Lança o carretel - repetiu o Brutal, insistente. - Faz o que te digo, Del.

O Delacroix dobrou-se, um pouco relutante, pois não desejava que o Mister Jingles voltasse a sair-lhe das mãos, pelo menos de momento. Mas então, com toda a suavidade, arremessou o carretel. Este rolou pelo chão da cela, passando pela caixa de charutos Corona, até chegar à parede. O Mister Jingles foi atrás do objecto, embora o não fizesse com a celeridade que demonstrara anteriormente. Dava a impressão de coxear, ainda que ligeiramente, da pata traseira esquerda, pormenor que me despertou mais a atenção do que tudo o resto - era, suponho, o que tornava tudo aquilo tão real. Aquele pequeno coxear.

No entanto, o rato chegou junto do carretel, agarrou-o sem problemas e, com o focinho, empurrou-o para junto do Delacroix com o mesmo entusiasmo de sempre. Voltei-me para o John Coffey, que estava junto da porta da cela com um sorriso nos lábios. Era um sorriso cansado e não aquele que eu classificaria de realmente feliz; todavia, o sentido de urgência que eu lhe vira na fisionomia quando me implorara que lhe entregasse o rato tinha desaparecido, assim como a expressão de dor e de medo. Uma vez mais, era o nosso John Coffey, com o rosto de quem não se encontrava ali de corpo e alma e os estranhos olhos que pareciam fitar à distância.

- Conseguiste evitar o mal - disse eu. - Não foi, matulão?

- Foi isso mesmo - anuiu o Coffey. O sorriso alargou-se um pouco e, durante um momento ou dois, espelhou felicidade. - Eu consegui evitar o mal. Eu consegui evitar o mal, consegui evitar o mal no rato do Del. Eu ajudei... - A sua voz enfraqueceu incapaz de se recordar do nome.

- O Mister Jingles - adiantou o Dean. Observava o John com uns olhos intrigados e cautelosos, como se esperasse que ele ficasse envolto em chamas a qualquer instante, ou que talvez começasse a flutuar pela cela.

- É isso mesmo - disse o Coffey -, o Mister Jingles. Ele é um rato do circo. Vai viver numa casa com vidros de folha de mica.

- Podes apostar o que quiseres - retorquiu o Harry, juntando-se a nós na observação a que submetíamos o John Coffey. Por detrás de nós, o Delacroix deitara-se em cima da sua tarimba com o Mister Jingles em cima do peito. Entoava-lhe uma canção, uma qualquer melodia em francês que parecia ser uma canção de embalar.

Com o olhar, o Coffey percorreu a Milha Verde, detendo-se na mesa do guarda de serviço; fitou a porta que dava para o meu gabinete, concentrando-se na sala da arrecadação para lá deste.

- O chefe Percy é mau - disse ele. - O chefe Percy é mau. Pisou o rato do Del. Pisou o Mister Jingles.

E então, antes de lhe podermos dizer fosse o que fosse - isto é, se tivéssemos sido capazes de pensar em alguma coisa para lhe dizer - o John Coffey regressou à sua tarimba, deitou-se e voltou o rosto para a parede.

 

O Percy encontrava-se de costas para nós quando o Brutal e eu entrámos na arrecadação, cerca de vinte minutos mais tarde. Descobrira uma lata de pomada para polir mobília nu ma prateleira por cima do cesto da roupa onde costumávamos colocar os nossos uniformes (e por vezes, também as roupas à paisana; a lavandaria da prisão não se interessava pelo que lavava) e começara a puxar lustro à madeira de carvalho dos pés e dos braços da cadeira eléctrica. Isto, provavelmente, poderá parecer-vos aberrante, -talvez até mesmo macabro, mas, na minha opinião e na do Brutal, aquilo parecia ser a coisa mais normal que o Percy fazia em toda aquela noite. No dia seguinte, a Velha Faísca tinha encontro marcado com o seu público, e o Percy, finalmente, poderia dar a impressão de ser o responsável.

- Percy - chamei numa voz calma.

Voltou-se; a pequena canção que tinha estado a trautear morreu-lhe na garganta; olhou para nós. Não deparei com o receio de que estivera à espera, pelo menos de início. Apercebi-me de que o Percy parecia ter envelhecido. O John Coffey tinha razão. De facto, ele tinha um aspecto maligno. A maldade é como uma droga - ninguém à face da Terra se encontra mais qualificado do que eu para poder dizer isso - e ocorreu-me que, depois de ter experimentado, o Percy ficara viciado naquilo. Sentia prazer no que fizera ao rato do Delacroix. E sentia ainda mais prazer nos gritos de desgosto que o Delacroix soltara.

- Não comeces a implicar comigo - proferiu ele num tom de voz quase agradável. - Quer dizer, que diabo, não passava de um rato. Para começar, o seu lugar nunca foi aqui, como vocês muito bem sabem.

- O rato está de boa saúde - retorqui. Sentia o coração a bater-me aceleradamente dentro do peito, mas obriguei-me a falar numa voz calma, quase desinteressada. - Está ópti mo. Anda outra vez a correr e a guinchar atrás do carretel. Tu não és melhor a matar ratos do que a fazer a maior parte das outras coisas que fazes por aqui.

O Percy olhava fixamente para mim, espantado e sem querer acreditar no que eu lhe dizia.

- Estás à espera que eu acredite numa coisa dessas.

O raio do animal ficou esborrachado! Eu ouvi o barulho que fez! Portanto, não podes...

- Cala a boca - atalhei.

Olhou para mim de olhos esbugalhados. - O quê? O que é que acabaste de dizer?

Dei um passo, aproximando-me mais dele. Sentia uma veia a latejar a meio da testa. Não era capaz de me recordar de qual fora a última vez em que me encolerizara.

- Não estás satisfeito por o Mister Jingles se encontrar bem de saúde? Depois de todas as conversas que tivemos sobre a nossa função de manter os prisioneiros calmos, em especial quando se encontram próximos do seu fim, pensei que ficarias contente. Aliviado. Porque o Del amanhã terá de fazer a caminhada final e tudo o mais.

O olhar do Percy desviou-se de mim para o Brutal; a sua calma estudada dissolveu-se na incerteza.

- Que raio de brincadeira é que pensam que estão a fazer? - perguntou ele.

- Nada disto é brincadeira, meu amigo - replicou o Brutal. - O facto de pensares que é... pois bem, é apenas uma das razões por que não podemos confiar em ti. Queres saber qual é a verdade? Acho que inspiras piedade.

- Aconselho-te a teres atenção ao que dizes - redarguiu o Percy. Naquele momento, transparecia na sua voz uma certa agressividade. Ao fim e ao cabo, o medo apoderava-se dele a pouco e pouco... medo daquilo que talvez pretendêssemos dele, medo do que lhe pudéssemos vir a fazer. Senti-me satisfeito ao detectar aquele medo. Assim era mais fácil lidar com ele. - Eu tenho conhecimentos. Gente importante.

- Assim o dizes, mas és um grande sonhador - acrescentou o Brutal. Dava a impressão de estar prestes a rebentar em gargalhadas.

O Percy deixou cair o pano do pó em cima do assento da cadeira com as braçadeiras nos braços e nas pernas.

- Eu matei aquele rato - continuou ele numa voz pouco firme.

- Vai ver com os teus próprios olhos - aconselhei. - Estamos num país livre.

- É o que vou fazer - disse ele. - Vou, sim.

Passou por nós num passo brusco, lábios firmemente cerrados, e com as suas pequenas mãos (o Wharton tinha razão; elas eram bonitas) a remexer no pente. Subiu os degraus e baixou a cabeça para poder passar por baixo da ombreira da porta que dava para o meu gabinete. O Brutal e eu deixámo-nos ficar junto da Velha Faísca, à espera que ele regressasse, e sem trocarmos qualquer palavra. Não sei quanto ao Brutal, mas por mim não conseguia pensar numa única coisa para dizer. Nem sequer sabia o que pensar acerca do que acabáramos de testemunhar.

Decorreram três minutos. O Brutal agarrou no pano do pó que o Percy utilizara e começou a puxar lustro às travessas espessas das costas da cadeira eléctrica. Teve tempo de acabar uma e começar outra antes de o Percy ter regressado. Este ao descer os degraus do meu gabinete até à arrecadação, tropeçou e quase caiu por eles abaixo; quando se aproximou de nós, vinha num passo cambaleante. A sua expressão era de descrença e choque.

- Vocês trocaram de rato - afirmou ele com uma voz esganiçada e acusadora. - Não sei como, mas vocês substituíram o rato, grandes estupores. Estão a brincar comigo, mas garanto que irão arrepender-se, caso não ponham fim à brincadeira! Ainda hei-de vê-los no raio das filas da sopa dos pobres se não pararem com isso! Quem é que julgam que são?

Interrompeu-se, arquejando e com falta de ar; tinha as mãos enclavinhadas.

- Eu digo-te quem é que somos - repliquei. - Somos as pessoas com quem trabalhas, Percy... mas não durante muito mais tempo. - Estendi os braços e assentei firmemen te as minhas mãos sobre os seus ombros. Não com muita força, mas ainda assim com firmeza. Sim, de facto foi isso. - Tira as... - começou o Percy a dizer, erguendo as mãos até às minhas.

O Brutal agarrou-lhe na mão direita - envolvendo por completo aquela mão pequena, macia e branca, que desapareceu no interior do punho bronzeado do Brutal.

- Cala o buraco dos bolos, filho. Se sabes o que é bom para ti, aproveita esta última oportunidade para limpar a cera que te tapa os ouvidos.

Fi-lo dar meia volta, icei-o para cima do estrado e obriguei-o a retroceder até que a parte de trás dos seus joelhos bateu contra o assento da cadeira eléctrica, forçando-o a sentar-se. Toda a sua calma se esfumara, assim como a maldade e a arrogância. Aquelas facetas do seu carácter eram verdadeiras, mas é preciso não esquecermos que o Percy ainda era muito jovem. Naquela idade, elas não passavam de uma camada fina de verniz, como se fossem um tom desagradável de tinta de esmalte. Continuava a ser possível descascar a camada. Calculei que naquele momento o Percy estivesse pronto para ouvir o que tínhamos a dizer.

- Quero a tua palavra - disse eu.

- A minha palavra sobre o quê? - Os seus lábios continuavam a querer exibir um esgar escarninho, mas os olhos mostravam-se aterrorizados. A energia que vinha do quadro eléctrico estava desligada, mas o assento.de madeira da Velha Faísca possuía um poder muito próprio, e, naquele momento, imaginei que o Percy estaria a senti-lo.

- Atua palavra de que se amanhã à noite te deixarmos trabalhar na linha da frente irás de facto para o Briar Ridge, deixando-nos em paz de uma vez para sempre - declarou o Brutal, expressando-se com uma veemência que eu nunca lhe tinha ouvido. - Que pedirás transferência logo no dia seguinte.

- E se eu não quiser? E se eu decidir telefonar a umas determinadas pessoas, informando-as de que vocês me ameaçam e não param de me assediar? Que se comportam como arruaceiros para comigo?

- É possível que corram com os nossos traseiros daqui para fora se os teus conhecimentos forem tão bons como pareces acreditar que são - retorqui -, mas juro-te que antes disso trataremos de garantir que também deixarás derramado no chão o teu quinhão justo de sangue, Percy.

- Por causa desse rato? Pensam que alguém vai interessar-se por eu ter pisado o rato de estimação de um assassino condenado à morte? Fora das paredes deste asilo de doidos?

- Não. Mas há três homens que te viram de braços cruzados enquanto o Bill "Selvagem" Wharton tentava estrangular o Dean Stanton com a corrente que lhe prendia os pulsos. As pessoas interessar-se-ão por isso, Percy, garanto-te que sim. Se tiver conhecimento dessa situação, até o manda-chuva do teu tio governador se interessará.

A testa e as bochechas do Percy enrubesceram com manchas avermelhadas.

- E pensas que alguém acreditaria em ti? - perguntou ele; contudo, a sua voz tinha perdido muita da força que a ira lhe emprestara. Era evidente que o Percy pensava que alguém iria acreditar em nós. E não gostava de se ver metido em problemas. Infringir os regulamentos não era uma coisa por aí além. Mas ser apanhado a infringi-los já não era nada bom. - Quero acrescentar que tenho algumas fotografias do pescoço do Dean tiradas antes de os hematomas terem começado a desaparecer - continuou o Brutal. Eu não fazia a mais pequena ideia se aquilo corresponderia ou não à verdade, mas o que é certo é que soava bem. - Sabes o que é que essas fotografias dizem? Que o Wharton teve uma esplêndida oportunidade antes de alguém o ter impedido de continuar, embora tu te encontrasses mesmo junto dele, e ainda por cima numa posição em que ele não poderia ter dado pela tua presença. Ver-te-ias obrigado a dar resposta a umas quantas perguntas bem difíceis, não te parece? E uma coisa dessa natureza pode bem acompanhar um homem durante bastante tempo. O mais certo seria acompanhá-lo até muito depois de os seus familiares terem deixado de exercer funções na capital do estado e regressado a suas casas, onde passarão o tempo a beber uísque com folhas de hortelã-pimenta, sentados no alpendre da frente. A folha de serviço de um homem pode transformar-se numa coisa deveras interessante, e há muita gente que tem a oportunidade de a examinar ao longo de uma vida.

Os olhos do Percy percorriam cada um de nós, reflectindo desconfiança. A sua mão esquerda ergueu-se até aos cabelos, que alisou. Não disse nada, mas pensei que quase o tínhamos na mão.

- Vamos lá a pôr fim a isto - disse eu. - Não te apetece estar aqui mais do que nós te queremos aqui, não será verdade?

- Eu detesto trabalhar aqui! - explodiu ele. - Odeio a forma como sou tratado, o facto de nunca me teres dado qualquer oportunidade!

A última observação encontrava-se longe da verdade, mas considerei que a ocasião não era propícia a discutir o assunto. - Mas também não gosto que me dêem ordens a torto e a direito. O meu pai ensinou-me que assim que começamos a percorrer esse caminho, o mais certo é acabarmos por pernitir que as pessoas façam gato-sapato de nós durante toda a vida. - Os seus olhos, que não eram tão bonitos como as mãos, chisparam. - Muito em particular, não me agrada receber ordens de gorilas gigantescos como este tipo. - Lançou um olhar ao meu velho amigo e resmungou: - Brutal... Pelo menos deram-te a alcunha adequada.

Tens de compreender uma coisa, Percy - atalhei. - Quando se observam as coisas da nossa perspectiva, vemos que és tu quem tem andado a fazer gato-sapato de nós. Dizemos-te vezes sem conta como é que costumamos fazer as coisas e tu continuas a fazê-las como bem te apetece, escudando-te atrás dos teus conhecimentos na política sempre que as coisas dão para o torto. O facto de teres espezinhado o rato do Delacroix... - O Brutal olhou para mim, chamando-me a atenção, pelo que arrepiei rapidamente caminho. - De teres tentado pisar o rato do Delacroix... ilustra bem o nosso ponto de vista. Forças as coisas, forças e voltas a forçar; estamos apenas a pagar-te na mesma moeda e mais nada. Mas ouve bem, se andares acertadamente, acabarás por sair de tudo isto muito bem visto... como um jovem em franca ascenção, a cheirar a rosas. Ninguém precisa de vir a ter conhecimento desta nossa pequena conversa. Portanto, o que é que tens a dizer? Comporta-te como um adulto. Promete-nos que depois do Del te irás embora.

O Percy ficou a pensar no assunto. Após alguns momentos, surgiu-lhe no olhar uma determinada expressão, o género daquelas com que um fulano fica depois de ter tido uma boa ideia. Isso não me agradou muito, uma vez que qualquer ideia que pudesse parecer boa ao Percy não seria certamente boa para nós.

- Se não por mais nada - interveio o Brutal -, pensa pelo menos no quanto seria agradável ficares bem longe do saco de pus do Wharton.

O Percy assentiu com a cabeça; deixei-o levantar-se da cadeira. Endireitou a camisa do uniforme, meteu a fralda para dentro das calças e com o pente deu uma penteadela nos cabelos. Em seguida, olhou para nós.

- Muito bem, de acordo. Amanhã à noite estarei na linha da frente para o Del; peço a transferência para o Briar Ridge logo no dia seguinte. E a partir daí ficamos quites. Está bem assim?

- Suficientemente bem - respondi. Ele continuava a manter aquela expressão nos olhos; naquela altura, porém, eu sentia-me demasiado aliviado para me interessar por aquele Pormenor.

- Damos um aperto de mão para selar o assunto? - pergumtou o Percy, estendendo a mão.

Assim fiz. O Brutal também lhe apertou a mão. Conseguira enganar-nos uma vez mais.

 

O dia seguinte provou ser o mais abafado e o último do nosso estranho Outubro, que tão quente se mantivera até então. A oeste ouvia-se o ribombar da trovoada que me acompanhou até ao trabalho, e as nuvens enegrecidas haviam começado aí a formar um manto. À medida que a noite desciasobre nós, mais elas se aproximavam; por entre aquele manto nebuloso, avistávamos as forquilhas azuis e brancas dos relâmpagos que as aguilhoavam. Por volta das dez da noite, o município de Trapingus foi atingido por um tornado - provocou a morte a dez pessoas e arrancou os telhados das cavalariças municipais de Tefton - acompanhado de trovoadas de grande intensidade e vendavais, que se abateram sobre Cold Mountain. Mais tarde ocorreu-me que eram os próprios céus que protestavam pela má morte do Eduard Delacroix.

Ao princípio correu tudo melhor. O Del passara uma noite tranquila na sua cela, ocasionalmente a brincar com o Mister Jingles, mas a maior parte do tempo passou-o deitado na tarimba a acariciá-lo. O Wharton tentou arranjar problemas por duas vezes - da primeira, disse ao Del aos berros que iriam comer hambúrgueres de rato depois de o velho Pierre Felizardo já se encontrar a dançar no inferno - mas o pequeno cajun não lhe deu réplica, e o Wharton, aparentemente convencido de que aquela tinha sido a sua melhor tentativa, desistiu.

Às dez e um quarto, o Irmão Schuster apareceu, tendo-nos deliciado ao dizer que rezaria o padre-nosso juntamente com o Del em francês cajun. Aquilo parecia ser um bom presságio. É claro que estávamos redondamente enganados. Por volta das onze, as testemunhas começaram a chegar. Na sua maioria falavam em voz baixa, comentando as condições climatéricas que se avizinhavam e aventando a probabilidade de um corte de energia, que adiaria a electrocussão. Nenhuma dessas pessoas parecia ter conhecimento de que a Velha Faísca era alimentada por um gerador e, a menos que esse mecanismo fosse directamente atingido por um raio, o espectáculo haveria de prosseguir. Nessa noite, o Harry fora destacado para o compartimento do quadro eléctrico; portanto, era ele, juntamente com o Bill Dodge e o Percy Wetmore, que desempenhavam a tarefa de arrumadores, conduzindo as pessoas aos seus assentos e perguntando a cada uma delas se desejava um copo de água. Encontravam-se presentes duas mulheres: a irmã da rapariga que o Del violara e assassinara e a mãe de uma das vítimas que tinha sido imolada pelo fogo. A última senhora era corpulenta e tinha as faces pálidas, embora se mostrasse determinada. Confidenciou ao Harry Terwilliger que esperava que o homem que tinha vindo ver morrer estivesse com medo, sabendo antecipadamente que as chamas da fornalha o aguardavam. Em seguida, foi acometida por uma crise de choro e ocultou o rosto num lenço de renda que tinha quase o tamanho de uma fronha.

A trovoada, que mal era abafada pelo telhado de zinco, fazia ouvir os seus estrépitos alto e bom som. As pessoas erguiam o olhar até ao tecto, demonstrando um certo mal-estar. Os homens, que davam a impressão de não se sentir à vontade com as suas gravatas àquela hora tardia, limpavam o suor das faces coradas. Na sala da arrecadação estava um calor insuportável. E, como é claro, eles olhavam constantemente para a Velha Faísca. É possível que no início da semana tivessem dito algumas piadas quanto àquela tarefa, mas, mais ou menos por volta das onze e meia dessa noite, as piadas já haviam desaparecido. Comecei tudo isto contando-vos que o bom humor abandonava rapidamente as pessoas que eram obrigadas a sentar-se naquela cadeira de carvalho, mas os encarcerados condenados não eram os únicos a perder o sorriso quando a hora se aproximava inexoravelmente. Aquilo era chocante, um objecto atarracado sobre o estrado, com as braçadeiras das pernas parecidas com as coisas que os doentes de poliomielite eram forçados a usar. Não se ouviam muitas conversas e quando os trovões ribombaram de novo, tão presentes e pessoais como uma árvore fendida, a irmã da vítima do Delacroix soltou um pequeno grito. A última pessoa a sentar-se na secção reservada às testemunhas foi o Curtis Anderson, o substituto do director Moores.

Às onze e meia, dirigi-me à cela do Delacroix, acompanhado pelo Brutal e pelo Dean, ligeiramente atrás de mim. O Del estava sentado na tarimba, com o Mister Jingles no regaço. O rato tinha a cabeça esticada para a frente, na direcção do homem condenado à morte. O Del acariciava o topo da cabeça do animal entre as orelhas. Pelas faces do Del corriam lágrimas grandes choradas em silêncio, e eram elas que o Mister Jingles dava a impressão de estar a observar. Ao ouvir o som dos nossos passos, o Del ergueu o olhar. Estava muito pálido. Atrás de mim pressentia presença do John Coffey junto à porta da sua cela, observando tudo aquilo.

O Del retraiu-se ao ouvir as minhas chaves a entrar nas' fechaduras, embora se houvesse mantido calmo, continuando a acariciar a cabeça do rato enquanto eu fazia girar as chaves e corria a porta sobre a calha.

- Olá, chefe Edgecombe - saudou ele. - Olá, rapazes. Diz olá, Mister Jingles. - Mas o animal limitava-se a olhar enlevado para as faces do pequeno homem calvo, como se perguntasse a si mesmo qual a origem daquelas lágrimas. O carretel colorido fora cuidadosamente arrumado no interior da caixa de charutos Corona... arrumado pela última vez, pensei eu, sentindo um aperto no coração.

- Eduard Delacroix, na minha qualidade de funcionário autorizado pelo tribunal...

- Chefe Edgecombe?

Ainda pensei em dar seguimento ao resto do discurso da praxe, mas reconsiderei.

- O que se passa, Del?

- Aqui tem - disse ele, estendendo o rato na minha direcção. - Não deixe que aconteça alguma coisa de mal ao Mister Jingles.

- Del, não me parece que ele queira vir para mim. Ele não está...

- Mais oui, ele disse-me que queria. Ele diz que sabe tudo a seu respeito, chefe Edgecombe, e que o senhor vai levá-lo para esse lugar na Florida onde os ratinhos mostram as suas habilidades. Ele disse-me que confia em si. - Estendeu ainda mais o braço e raios me partam se o rato não saiu da palma da mão do Delacroix e passou para o meu ombro. Era tão leve que eu mal conseguia sentir o seu peso através do tecido do casaco do uniforme, mas dei-me conta da sua presença como se fosse uma pequena chama. - E chefe, não deixe que aquele homem mau faça mal ao meu rato.

- Não, Del. Não deixarei. - A questão que se me colocava era o que fazer com o rato naquele preciso momento. Não me parece que pudesse fazer marchar o Delacroix em frente das testemunhas, com um rato empoleirado no meu ombro.

_ Eu fico com ele, chefe - troou uma voz atrás de mim. Era a voz do John Coffey e, tendo surgido nessa altura, provocou-me uma sensação fantasmagórica, como se tivesse adivinhado os meus pensamentos. - Só por agora. Se o Del não se importar.

Com uma expressão de alívio, o Delacroix acenou afirmativamente.

- Sim, fica com ele, John, até que este disparate esteja terminado... bien! E depois... - O seu olhar centrou-se no Brutal e depois em mim. - O senhor vai levá-lo para a Florida. Para esse lugar, a Vila dos Ratos.

- Sim, o mais provável é o Paul e eu irmos juntos - replicou o Brutal, observando com um olhar perturbado e inquieto o Mister Jingles abandonar o meu ombro, indo para a enorme palma da mão que o Coffey estendera. O rato fez isso sem hesitar ou tentar fugir; na realidade, saltou com tanta prontidão para o braço do Coffey como havia passado para cima do meu ombro. - Tiramos alguns dias de férias. Não é verdade, Paul? - acrescentou o Brutal.

Acenei que sim. O Delacroix também manifestou a sua concordância, com os olhos cintilantes e o esboço de um sorriso nos lábios.

- Cada pessoa vai pagar dez cêntimos para poder vê-lo. Dois cêntimos para os miúdos. Não é verdade, chefe Howell? - É isso mesmo, Del.

- O senhor é um homem bom, Howell - continuou o Delacroix. - O senhor também, chefe Edgecombe. Às vezes grita comigo, oui, mas só quando é necessário fazê-lo. Todos vocês são bons, tirando esse Percy. Quem me dera poder ter-vos conhecido noutro lugar qualquer. Mauvais temps, mauvaise chance.

- Preciso de dizer uma coisa, Del - proferi eu. - São apenas as palavras que tenho de dizer a toda a gente antes de começarmos a andar. Nada de especial, mas faz parte do meu trabalho. De acordo?

- Oui, monsieur - anuiu ele, olhando para o Mister Jingles, pela derradeira vez, empoleirado no ombro largo do John Coffey. - Au revoir, mon ami. Até à vista, meu amigo - acrescentou ele, começando a chorar com mais intensidade. -Je t'aime, mon petit. - Soprou um beijo na direcção do rato. Deveria ter sido engraçado, aquele beijo soprado, ou talvez simplesmente grotesco, mas não era. Por uns breves momentos, o meu olhar cruzou-se com o do Dean, mas fui forçado a afastá-lo. O Dean pôs-se a olhar pelo corredor na direcção da sala do isolamento, esboçando um sorriso estranho. Estou em crer que ele se encontrava à beira das lágr¡_ mas. Quanto a mim, disse o que tinha a dizer, recomeçando na parte em que me referia a ser um funcionário judicial e, quando terminei, o Delacroix saiu da sua cela pela última vez.

- Espera uns segundos, homem - pediu o Brutal, inspeccionando a coroa do cabelo do Del onde o capacete teria' de assentar. Acenou-me, indicando-me que estava tudo em

ordem e deu uma palmada no ombro do Delacroix. - Tudo a postos, estamos prontos para seguir. A caminho.

E foi assim que o Eduard Delacroix iniciou a sua última caminhada pela Milha Verde. Nas suas faces misturavam-se as gotas de suor e as lágrimas, enquanto no firmamento acima de nós rolavam os trovões em sucessão. O Brutal caminhava à esquerda do condenado, eu à direita e o Dean à retaguarda.

O Schuster aguardava no meu gabinete, com os guardas Ringgold e Battle, que se mantinham de vigilância, colocados no canto. O Schuster olhou para o Del, sorriu e começou a falar com ele no francês cajun. A mim, aquilo pareceu ser empolado, mas o certo é que resultou às mil maravilhas. O Delacroix retribuiu o sorriso e aproximou-se do Schuster, colocou-lhe os braços à volta do torso e abraçou-o. O Ringgold e o Battle adquiriram uma postura tensa, mas eu fiz-lhes um gesto com as mãos, ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

O Schuster ouviu atentamente a torrente de palavras embargadas pelas lágrimas que o Del proferia no seu francês atabalhoado, acenando com a cabeça como se o compreendesse na perfeição, enquanto lhe dava umas pancadinhas calorosas nas costas. Olhou para mim por cima do ombro do pequeno homem, antes de começar a falar.

- Eu mal consigo compreender um quarto do que ele está a dizer-me.

- Acho que isso não interessa - resmungou o Brutal. - Também eu não, meu filho - retorquiu o Schuster com uma careta risonha. Ele era o melhor deles todos e agora apercebo-me de que não faço a mínima ideia do que foi feito dele. Só espero que tenha mantido a sua fé, independentemente de tudo o mais que o possa ter abandonado.

Incitou o Del para que se ajoelhasse e uniu as mãos. O Delacroix seguiu-lhe o exemplo.

- Vot' Père, qui ëtes aux cieux - começou o Schuster a rezar e o Delacroix juntou a sua voz à dele. Ambos proferiram o padre-nosso naquele francês cajun, até chegarem a "mais dehverez-vous du mal, ainsi soit-il". Nessa altura, as lágrimas do Del já haviam cessado e ele mostrava uma aparência calma. Seguiram-se alguns versículos da Bíblia (em inglês), sem que tivesse sido neglicenciado o velho arrimo acerca das águas mansas. Depois de concluída aquela parte, o Schuster começou a erguer-se, mas  o Del agarrou-o pela manga da camisa, dizendo-lhe algo no seu francês. O Schuster ouviu-o com toda a atenção, franzindo o cenho. Respondeu-lhe. O Del acrescentou mais qualquer coisa e ergueu o olhar até ao seu rosto, aguardando com uma expressão esperançosa.

- Ele tem algo mais a dizer, Mister Edgecombe - anunciou o Schuster, dirigindo-se a mim. - Uma oração em que eu não posso ajudá-lo, devido à minha fé. Vê algum inconveniente nisso?

Olhei para o relógio na parede e vi que faltavam dezassete minutos para a meia-noite.

- De acordo - acedi -, mas terá de ser rápido. Como sabe, temos um horário a cumprir.

- Sim, eu sei - retorquiu o Schuster. Voltou-se para o Delacroix e com um acenar de cabeça, indicou-lhe que prosseguisse.

O Del cerrou os olhos como se preparado para começar a rezar, mas durante um momento não disse nada. Enrugou a testa, e eu tive a impressão que ele procurava algo bem no fundo da sua mente, como um homem poderia procurar no seu pequeno sótão um objecto que não houvesse sido usado (ou sido necessário) durante muito, muito tempo. Uma vez mais, olhei para o relógio e estive prestes a falar - e tê-lo-ia feito se o Brutal não me tivesse tocado na manga da camisa, abanando a cabeça.

Então, o Delacroix começou a falar suave mas rapidamente naquele seu dialecto cajun, numa toada tão arredondada e sensual como os seios de uma mulher jovem.

- Marie! Je vous salue, Marie, oui, pleine de grâce; le Seigneur est avec vous; vous ëtes bénie entre toutes les femmes, et mon cher Jésus, le fruit de vos entrailles, est béni.

Delacroix recomeçara a chorar, mas não parecia que se ti vesse dado conta disso. - Sainte Marfe, Ô ma mère, Mèrt de Dieu, priez pour moi, priez pour nous, pauv' pécheurs, á maint'ant et à l'heure... 1'heure de nôtre mort. L'heure de mon mort. - Respirou fundo, um som estremecido. - Ainsi' soit-il.

Quando o Delacroix se pôs de pé, através da janela entrou o breve clarão azul-esbranquiçado de um relâmpago. Todos, os presentes se retraíram sobressaltados, com excepção do próprio Del; ele parecia continuar embrenhado na antiga oração. Estendeu uma mão sem ver para onde a dirigia. O Brutal agarrou-a e deu-lhe um breve aperto. O Delacroix olhou para ele, esboçando um pequeno sorriso.

- Nous voyons... - começou ele a dizer, mas deteve-se. Com um esforço consciente, começou a falar em inglês. - Agora já podemos ir, chefe Howell, chefe Edgecombe. - Estou de bem com Deus.

- Isso é óptimo - declarei eu, perguntando a mim mesmo até que ponto o Del se sentiria bem com Deus dali a vinte minutos, quando se encontrasse no outro extremo da corrente eléctrica. Eu só esperava que a sua última oração tivesse sido ouvida, e que a Mãe Maria rezasse por ele com toda a sua alma e coração, porque o Eduard Delacroix, assassino e violador, carecia naquele momento de todas as orações a que pudesse deitar mão. Lá fora, os trovões fizeram-se ouvir uma vez mais, atravessando os céus. - Vamos lá, Del. Já não falta muito.

- De acordo, chefe, vamos lá. Porque eu já não tenho medo. - Foi o que ele afirmou, mas eu vi nos seus olhos que... com padre-nosso ou sem padre-nosso, ave-maria ou

não ave-maria, ele estava a mentir. Quando chega a altura de percorrerem a última parte do tapete verde e de se dobrarem para poder transpor a entrada baixa, quase todos eles se mostravam atemorizados.

- Quando chegares ao fim pára, Del - disse-lhe eu em voz baixa enquanto ele transpunha a ombreira, mas era uma advertência que eu não necessitava de ter feito. Ele deteve-se ao fundo dos degraus, sem qualquer hesitação, completamente imóvel ao ver o Percy Wetmore ali no estrado com o balde da esponja junto de um dos pés e o telefone, que se encontrava directamente ligado ao governador, mal se vendo por detrás da sua anca direita.

- Non - proferiu Del numa voz baixa e horrorizada. - Non, non, ele, não!

- Segue em frente - disse o Brutal. - Mantém os olhos em mim e no Paul. Esquece que ele está ali.

- Mas...

As pessoas tinham-se virado, olhando para nós, mas, ao deslocar-me um pouco, ainda pude agarrar no Delacroix pelo cotovelo esquerdo, sem ser visto pela assistência.

- Acalma-te - incitei eu num tom de voz que só o Delacroix, e talvez o Brutal, conseguiam ouvir. - A única coisa de que estas pessoas se recordarão é da maneira como te portas; portanto, proporciona-lhes algo de bom que lhes fique gravado na memória.

Entretanto, ouviu-se o ribombar do trovão mais forte que se fizera ouvir até então; a intensidade foi tal que o telhado de zinco da arrecadação vibrou. O Percy deu um salto como se alguém se tivesse aproximado por trás sem ele se aperceber e o Del soltou uma pequena gargalhada escarninha.

- Se os trovões forem muito mais fortes do que este, ele vai mijar de novo nas calças - disse, endireitando os ombros... não que tivesse muito para endireitar. - Vamos lá. Acabamos com isto de uma vez.

Encaminhámo-nos para a plataforma. Com um olhar nervoso, o Delacroix percorreu as testemunhas - desta feita, encontravam-se presentes vinte e cinco - quando passámos por elas. O Brutal, eu e o Dean tínhamos os olhos fixos na cadeira. Parecia-me que estava tudo em ordem. Ergui um polegar e um sobrolho interrogador na direcção do Percy, que me brindou com um esgar, como se dissesse: O que é que queres saber, se está tudo em ordem? É claro que está!

Eu só esperava que ele não estivesse enganado. Automaticamente, o Brutal e eu agarrámos no Delacroix pelos cotovelos, enquanto ele subia para o estrado. Este fica acima do solo apenas uns escassos vinte centímetros, mas vocês ficariam surpreendidos se soubessem quantos deles, mesmo os tipos mais endurecidos, necessitam de ajuda para subir esse último degrau das suas vidas.

No entanto, o Del portou-se bem. Durante um momento Permaneceu em frente da cadeira eléctrica (firmemente resolvido a não olhar para o Percy) e falou para ela, quer acreditem quer não, como se estivesse a apresentar-se.

- C'est moi - disse o Delacroix. O Percy estendeu-lhe a mão, mas ele voltou-se sozinho e sentou-se. Ajoelhei-me junto do que naquele momento era o seu lado esquerdo e o Brutal no lado direito. Protegi as virilhas e a garganta da maneira que já descrevi, e, em seguida, posicionei a braçadeira de forma a que a parte que se abria cincundasse a carne emagrecida; e branca, exactamente acima do tornozelo do cajun. A trovoada ribombou de novo, sobressaltando-me. Senti o suor a escorrer-me para os olhos, que começaram a arder. Por qualquer razão que desconheço, pensava continuamente na Vila dos' Ratos. A Vila dos Ratos e o bilhete de ingresso que custava dez cêntimos. Dois cêntimos para as crianças, que poderiam ver o Mister Jingles através das janelas de folha de mica.

A braçadeira era volumosa e não queria fechar-se. Ouvia o Del a respirar em grandes arrancos secos, enchendo os pulmões de ar, pulmões que ficariam reduzidos a sacos carbonizados em menos de quatro minutos, esforçando-se por poder acompanhar o seu coração desenfreado que pulsava ao ritmo do medo. O facto de ter morto meia dúzia de pessoas dava naquela altura a impressão de ser a coisa menos importante acerca da sua pessoa. Não estou a tentar estabelecer agora aquilo que é correcto e o que não é; limito-me a descrever a situação como ela se me apresentava.

- O que se passa, Paul? - perguntou-me o Dean num sussurro ajoelhado junto de mim.

- Não sou capaz... - comecei a dizer, mas nessa altura a braçadeira fechou-se com um estalar bem audível. Também deve ter arrepanhado a pele do Delacroix, porque ele se retraiu, emitindo um pequeno som sibilado. - Desculpa - disse eu.

- Não tem importância, chefe - retorquiu Del. - Só vai doer por um minuto.

A braçadeira do lado do Brutal, a que tinha o eléctrodo acoplado e que levava sempre mais tempo a fechar, também se fechou. Pusemo-nos de pé, os três, quase exactamente ao mesmo tempo. O Dean agarrou na braçadeira do pulso do lado esquerdo do Del, e o Percy na do lado direito. Eu encontrava-me preparado para avançar, no caso de o Percy vir a necessitar de auxílio, mas ele saiu-se melhor com a braçadeira do pulso do que eu com a do tornozelo. Naquele momento, reparei que o Del tremia todo, como se o seu corpo tivesse começado a ser percorrido por uma corrente de fraca intensidade. Também me chegava às narinas o cheiro da sua transpiração era forte e acre, trazendo-me à recordação um cheiro fraco a picles.

O Dean acenou com a cabeça na direcção do Percy. Este voltou-se, começando a falar por cima do ombro. Eu conseguia avistar uma zona abaixo do seu queixo, onde ele se tinha cortado nessa manhã ao fazer a barba.

- Prosseguir com a fase um! - disse ele em voz baixa, embora firme.

Ouviu-se um zunido, do género .do que o motor de um velho frigorífico faz quando começa a funcionar; as luzes do tecto da arrecadação adquiriram uma luminosidade mais intensa. Ouviram-se alguns arquejos e murmúrios vindos da assistência. Na cadeira, o corpo do Del foi percorrido por um safanão, enquanto as suas mãos se agarravam aos extremos dos braços de carvalho da cadeira com força suficiente para que os nós dos dedos tivessem ficado brancos. Os seus olhos deslocaram-se rapidamente de um lado para o outro nas órbitas e a sua respiração seca acelerou-se ainda mais. Naquele momento ele estava quase a arquejar.

- Mantém-te firme - incentivou-o o Brutal num murmúrio. - Calma, Del, vais ver que não custa muito. Aguenta-te, estás a portar-te muito bem.

Ei, rapazes!, pensei. Venham ver o que o Mister Jingles é capaz de fazer! - Acima das nossas cabeças, a trovoada fez-se ouvir de novo.

Todo emproado, o Percy contornou a cadeira eléctrica. Aquele era o seu grande momento: ocupava o lugar central do palco, todos os olhares pousados na sua pessoa. Todos, com excepção do de uma pessoa. O Delacroix apercebeu-se da sua presença e baixou os olhos para o regaço. Eu teria apostado fosse o que fosse em como o Percy iria atamancar o que tinha a dizer quando chegasse o momento de se dirigir à audiência, mas a realidade é que ele se expressou sem hesitação, numa voz calma e soturna.

- Eduard Delacroix, o senhor foi condenado a morrer na cadeira eléctrica tendo a sentença sido lavrada por um júri formado pelos seus pares, e imposta por um juiz deste estado, Deus abençoe as pessoas deste estado. Tem alguma coisa a dizer antes de se dar cumprimento à sentença?

O Del tentou falar mas não lhe saiu qualquer som da garganta para além de um sussurro aterrorizado cheio de ar e de vogais. A sombra de um sorriso desdenhoso assomou aos lábios do Percy; seria com toda a satisfação que eu o teria abatido ali, naquele momento. Então, o Del lambeu os lábios e fez outra tentativa.

- Lamento muito tudo o que fiz - disse ele num tom contrito. - Daria fosse o que fosse para poder fazer recuar o tempo, mas ninguém tem poderes para uma coisa dessas. Por isso, agora... - Acima de nós, os trovões explodiram como fogo de morteiro. O Del deu um salto tão grande quanto as braçadeiras lhe permitiam, parecendo que os olhos lhe queriam saltar do rosto. - Por isso, agora tenho de pagar o preço. Que Deus me perdoe. - Uma vez mais, passou a língua pelos lábios e olhou para o Brutal. - Não se esqueça da promessa que me fez quanto ao Mister Jingles - acrescentou ele numa voz baixa que se destinava apenas aos nossos ouvidos.

- Não esqueceremos, não te preocupes - assegurei-lhe, tocando-lhe numa mão fria que nem mármore. - Ele irá para a Vila dos Ratos...

- Uma ova é que vai - atalhou o Percy, falando pelo canto da boca, assemelhando-se a um dos prisioneiros espertalhões no pátio, enquanto prendia a correia à largura do peito de Delacroix. - Isso não existe. Não passa de uma história da carochinha que estes tipos inventaram para te manterem calmo. Achei que devias ter conhecimento disto, meu maricas.

O brilho fulminante que encheu os olhos do Del disse-me que parte dele tinha sabido... mas que estava determinado a manter esse conhecimento afastado do resto da sua pessoa, se tal lhe fosse permitido. Olhei para o Percy, sentindo-me furioso e aparvalhado com a sua atitude; ele limitou-se a olhar bem de frente para mim, como se me perguntasse o que tencionava eu fazer a respeito daquilo. É evidente que ele me tinha na mão. Não havia nada que eu pudesse fazer naquela situação, sobretudo em frente das testemunhas, com o Delacroix sentado no extremo da sua vida. Não havia rigorosamente nada que se pudesse fazer de momento, a não ser prosseguir com aquilo, terminar de uma vez por todas.

O Percy retirou o saco negro do gancho e enfiou-o pela cabeça do Del, cobrindo-lhe o rosto e apertando-o bem por baixo do pescoço do pequeno homem, a fim de esticar o orifício do topo. Retirar a esponja que se encontrava dentro do balde e colocá-la dentro do capacete era o passo seguinte; foi aqui que o Percy se afastou da rotina pela primeira vez: em lugar de se debruçar para retirar a esponja do balde, agarrou no capacete de aço que se encontrava pendurado nas costas da cadeira e inclinou-se com ele na mão. Por outras palavras, em vez de levar a esponja ao capacete - o que teria sido a maneira lógica de proceder - levou o capacete à esponja. Nessa altura, eu devia ter compreendido que alguma coisa não estava bem, mas a realidade é que me sentia bastante perturbado. Aquela foi a única execução em que participei onde me senti inteiramente à margem dos acontecimentos. Quanto ao Brutal, nem sequer chegou a lançar um olhar ao Percy, pelo menos quando este se debruçou sobre o balde (de forma a bloquear o nosso ângulo de visão, impedindo-nos de ver o que estava a fazer), nem tão-pouco quando ele se endireitou e se voltou para o Delacroix, com o capacete nas mãos e o círculo de esponja castanha já no seu interior. Entretanto, o Brutal olhava para o bocado de tecido que ocultava as feições do Del, observando a forma como a seda negra fazia uma concavidade onde se delineava o formato da boca do condenado, para logo em seguida se enfolar com a sua respiração. A testa do Brutal estava perlada de gordas gotas de suor, o mesmo acontecendo às fontes logo abaixo da linha do cabelo. Nunca o vira a transpirar durante uma execução. Atrás dele, o Dean dava a impressão de estar distraído, demonstrando um certo mal-estar, como se lutasse para não perder o jantar. Agora compreendo que todos nós começávamos a perceber que qualquer coisa não estava a correr bem. Só que não conseguíamos apontar concretamente a falha. Ninguém sabia - nessa altura - que espécie de perguntas o Percy tinha feito ao Jack Van Hay. Haviam sido muitas, mas eu desconfio que a maior parte se destinava apenas a servir de camuflagem. Aquilo que o Percy queria saber - estou em crer que era a única coisa que lhe interessava - dizia respeito à esponja. A sua finalidade. O motivo por que era mergulhada em salmoura.., e o que é que aconteceria se não fosse mergulhada em salmoura.

O que aconteceria se a esponja estivesse seca.

O Percy enfiou o capacete na cabeça de Delacroix. O pequeno homem saltou de novo e soltou um gemido, desta vez mais audível. Algumas das testemunhas agitaram-se nas cadeiras desdobráveis, constrangidas. O Dean deu meio passo em frente com a intenção de ajudar a apertar a correia do pescoço; todavia, o Percy indicou-lhe que se afastasse num gesto breve. O Dean assim fez, vergando os ombros e retraindo-se quando o estrondo de outro trovão fez estremecer a arrecadação. Desta vez, seguiram-se-lhe as primeiras gotas de chuva que tombaram sobre o telhado. O som era parecido' com um punhado de berlindes a ser lançado sobre uma superfície metálica.

Já todos ouvimos pessoas a dizer: "Senti o sangue enrege_ lado", não é verdade? Certamente que sim. Já todos ouvimos essa expressão, mas a única vez em todos os meus anos de vida em que senti que isso estava realmente a acontecer comigo foi nessa madrugada de Outubro de 1932, diferente de todas as outras, em que a trovoada se fazia ouvir em toda a sua intensidade, cerca de dez segundos após a meia-noite. Não foi a expressão de triunfo venenoso no rosto do Percy; Wetmore, enquanto ele se afastava da figura encapuçada, presa por correias e com o capacete na cabeça, sentada na Velha Faísca; foi sim aquilo que eu deveria ter visto mas que não vi. Não se via água a escorrer pelas faces do Delacroix por baixo do capuz. Foi nessa altura que abarquei toda a situação.

- Eduard Delacroix - dizia o Percy -, a partir de agora, a corrente eléctrica atravessará o seu corpo até que o senhor esteja morto, de acordo com a lei deste estado.

Olhei para o Brutal, sentindo uma agonia tão grande que fazia com que a minha infecção urinária não tivesse passado de um dedo dorido. A esponja está seca!, disse-lhe eu formando as palavras com os lábios, mas ele abanou a cabeça, indicando-me que não compreendera, e voltou a concentrar a sua atenção no saco negro que ocultava as feições do franciú, dentro do qual os últimos fôlegos do homem recolhiam e enfolavam a seda negra.

Toquei no cotovelo do Percy mas ele afastou-se, fitando-me com um olhar inexpressivo. Foi apenas um olhar momentâneo, mas que me disse tudo. Mais tarde, ele iria apresentar as suas mentiras e meias verdades, e as pessoas que possuíam alguma influência acreditaram na maior parte, embora eu soubesse que a história era bem diferente. Sempre que fazia algo que o interessava, o Percy era um aluno aplicado, como descobríramos durante os ensaios; ouvira com a máxima atenção o Jack Van Hay explicar-lhe como é que a esponja mergulhada em salmoura era um bom método de transmissão da corrente eléctrica, canalizando-a e transformando a carga numa espécie de bala eléctrica que atingia o cérebro. Oh, sim, o Percy sabia perfeitamente o que estava a fazer. Acho que posteriormente, quando me disse que desconhecia até que ponto aquilo iria, acreditei nele, mas esse aspecto nem sequer conta na coluna das boas intenções, pois não? Não me parece. E para além de desatar a gritar em frente do assistente do director da prisão e de todas as testemunhas para que o Jack Van Hay não accionasse a alavanca, eu não podia fazer mais nada. Se tivesse podido dispor de mais cinco segundos, estou em crer que teria gritado isso mesmo; no entanto, o Percy não me concedeu aqueles cinco segundos suplementares.

- Que Deus tenha piedade da sua alma - disse ele à figura.aterrorizada e arquejante sentada na cadeira eléctrica, depois, olhou para lá do condenado, em direcção à janela de malha de rede por detrás da qual o Harry e o Jack se encontravam; o Jack tinha a mão sobre a alavanca etiquetada com as palavras SECADOR DE CABELO DA MABEL. O médico encontrava-se à direita dessa janela, com os olhos presos na maleta negra entre os seus pés, tão silencioso e discreto como era seu costume. - Prosseguir com a fase dois!

Ao princípio, o processo foi o mesmo de sempre: o zunido surdo que pouco mais elevado era do que um ciclo habitual de corrente eléctrica, o impulso involuntário que o corpo do Del deu para a frente e os espasmos que lhe percorreram os músculos.

E foi então que as coisas começaram a correr mal.

O zunido da electricidade perdeu a estabilidade e começou a fraquejar. Foi acompanhado por um estalar seco, como papel celofane a ser amachucado. Comecei a sentir um cheiro horroroso, que na altura não percebi que era o de cabelos queimados e esponja orgânica, até ter começado a ver pequenas espirais de fumo a evolar-se da base do capacete. Entretanto, começara a sair mais fumo do orifício recortado no cimo do saco, por onde entrava o cabo; assemelhava-se ao fumo que costumava sair do orifício superior das tendas dos índios.

O Delacroix começou a contorcer-se; o seu corpo foi atravessado por espasmos, enquanto a cabeça oculta pela seda negra, se agitava de um lado para o outro, no arremedo de um veemente gesto de recusa. As suas pernas começaram a erguer-se para cima e para baixo descontroladamente, em golpes curtos restringidos pelas braçadeiras que lhe prendiam os artelhos. A trovoada continuava a ribombar acima de nós e a chuva começou a cair com mais força.

Olhei para o Dean Stanton; ele olhou para mim completamente desnorteado. Ouviu-se um som abafado vindo de debaixo do capacete, como se fosse uma pinha a explodir nutrafogo que ardesse bem. Naquela altura, eu também via o fumo que saía do interior do saco negro, evolando-se em pequenas colunas sinuosas.

Lancei-me para o rectângulo de rede de arame existente entre nós e o compartimento do quadro eléctrico, mas, antes de poder ter aberto a boca, o "Brutal" Howell agarrou-me pelo cotovelo. A força com que me segurava era suficiente para eu sentir picadas nos nervos daquela região. As suas faces estavam tão lívidas como uma vela de sebo, embora não mostrassem sinais de pânico - não se via nenhuma reacção que se aproximasse disso.

- Não digas ao Jack que pare - aconselhou-me ele em voz baixa. - Faças o que fizeres, não lhe digas para parar. Já é demasiado tarde para isso.

De início, quando o Del começou a gritar, as testemunhas não o ouviram. A chuva que se abatia sobre o telhado de zinco transformara-se num som ensurdecedor, e os trovões fa ziam-se ouvir uns atrás dos outros, numa sequência contínua. Mas nós, em cima do estrado, conseguíamos ouvi-lo na perfeição - uivos de dor estrangulados que saíam do saco negro, de onde o fumo continuava a evolar-se, sons que um animal encurralado poderia ter emitido.

O zunido que na altura vinha do capacete não era uniforme, mas sim errático, interrompido por ruídos parecidos com os da electricidade estática. O Delacroix começou a agitar-se violentamente em cima da cadeira, para a frente e para trás, como se fosse uma criança a fazer birra. A plataforma estremecia; o corpo do Del investiu contra a correia que lhe prendia o peito, com força suficiente para quase a rebentar. A corrente eléctrica também o fazia contorcer-se de um lado para o outro; ouvi um estalar violento, como algo a esmigalhar-se, quando o seu ombro direito se quebrou ou deslocou. Provocou um som semelhante ao que ouviríamos se alguém tivesse atingido um caixote de madeira com um martelo de forja. A zona das calças entre as pernas que não se distinguia com nitidez devido ao movimento das mesmas, semelhante ao dos pistões, escureceu. Em seguida, ele começou a guinchar, emitindo uns sons apavorantes, extremamente agudos, como os guinchos das ratazanas, que ecoavam mesmo acima do ruído das bátegas de chuva.

- Mas que raio está a acontecer? - ouviu-se alguém perguntar.

- Será que aquelas braçadeiras vão conseguir aguentar. . Céus, o cheiro! Que fedor!

- Isto é normal? - perguntou uma das duas mulheres presentes.

O corpo do Delacroix sofreu um violento impulso para a frente, caiu para trás e voltou a ser impulsionado para a frente para logo voltar atrás. O Percy olhava-o fixamente, mantendo o queixo descaído numa expressão de horror. Sem dúvida que ele havia esperado que alguma coisa acontecesse, mas nunca com aquela dimensão.

O saco de seda negra por cima do rosto do Delacroix ficou envolto em chamas. Ao cheiro a cabelo queimado e a esponja juntava-se agora o de carne estorricada. O Brutal agarrou no balde onde estivera a esponja - como é evidente, nesta altura estava vazio - e como se fosse uma carga de cavalaria dirigiu-se ao lavatório, para uso do pessoal da limpeza, que se encontrava a um canto.

- Não achas que eu devia cortar a corrente, Paul? - perguntou o Van Hay aos gritos do outro lado da janela. A sua voz indicava que se sentia atordoado. - Não achas que devia...

-Não! - respondi-lhe num grito. O Brutal fora o primeiro a inteirar-se da situação, mas eu não lhe fiquei muito atrás: tínhamos de pôr cobro àquela situação macabra. O que quer que viéssemos a fazer ao longo do resto da nossa vida passara para segundo plano: naquele momento tínhamos de acabar com o Delacroix. - Continua, por amor de Deus continua! Continua, continua, continua!

Voltei-me para o Brutal, mal me apercebendo das pessoas que naquele momento conversavam atrás de nós; algumas delas já se tinham posto de pé, e um casal gritava.

- Pára com isso! - berrei, dirigindo-me ao Brutal. - Nada de água! Nada de água! Estás doido?

Ao ouvir-me, o Brutal voltou-se; no seu rosto reflectia-se uma espécie de compreensão entorpecida. Lançar água para cima de um homem que estava a ser electrocutado. Oh, sim! Isso é que seria uma grande esperteza. Olhou em redor, avistou o extintor pendurado na parede, e optou por ir buscá-lo. Lindo menino.

O saco de seda negra tinha-se descascado do rosto do Delacroix o suficiente para pôr a descoberto as suas feições mais; enegrecidas do que as do John Coffey. Naquele momento, os; seus olhos, que não passavam de globos brancos mutilados, uma massa gelatinosa e translúcida, haviam sido projectados; das órbitas e ficado colados às bochechas. As pestanas tinham desaparecido por completo e, enquanto eu o observava, as próprias pálpebras começaram a arder envoltas em chamas. Continuava a ouvir-se insistentemente o zunido da corrente eléctrica, invadindo-me e vibrando na minha cabeça. Imagino , que deve ser o mesmo som que as pessoas loucas devem ouvir, isso ou algo parecido.

O Dean começou a avançar, pensando, atordoado, que conseguiria extinguir com as próprias mãos as chamas da camisa do Del; puxei-o com tanta força que estive prestes a levantá-lo do chão. Se tivesse tocado no Delacroix naquela fase, teria sido electrocutado.

Continuei sem me voltar para trás para ver o que estava a acontecer entre as testemunhas; contudo, os sons que me chegavam eram indicadores de um pandemónio; as cadeiras tombavam e as pessoas berravam.

- Parem com isso, parem com isso, oh, não vêem que ele já sofreu o suficiente? - vociferava uma mulher com toda a força dos seus pulmões.

Entretando, o Curtis Anderson agarrou-me num ombro, perguntando-me o que é que se estava a passar, por amor de Deus, e por que motivo é que eu não mandava o Jack interromper a corrente?

- Porque não posso - respondi-lhe. - Já fomos longe de mais para poder retroceder, não vês? Em qualquer dos casos, dentro de alguns segundos estará tudo terminado.

No entanto, decorreram pelo menos dois minutos antes que a execução estivesse concluída; os dois minutos mais longos de toda a minha vida, e, durante todo aquele tempo,

estou em crer que o Delacroix permaneceu consciente. Gritava, sacolejava, agitando o corpo de um lado para o outro. O fumo saía-lhe das narinas, assim como de uma boca que havia adquirido a tonalidade da púrpura-enegrecida das ameixas maduras. O fumo soltava-se da sua língua da mesma maneira que costuma sair da chapa de um fogão. Todos os botões da sua camisa ou tinham rebentado ou derretido. A sua camisola interior não chegou a pegar fogo, mas estava toda negra, e o fumo filtrava-se através do algodão, de onde saía o cheiro dos pêlos queimados do peito. Por trás de nós, as pessoas dirigiam-se para a porta como se fossem gado à desfilada. Como não conseguiam transpô-la - ao fim e ao cabo, encontrávamo-nos no interior de uma penitenciária - amontoavam-se junto dela enquanto o Delacroix era frito (Agora estou a estorricar, dissera o velho Pouca Terra quando ensaiámos a execução do Arlen Bitterbuck, estou cozinhado como um peru); a trovoada continuava a ribombar acima de nós e a chuva caía numa fítria perfeita.

A certa altura pensei no médico -e olhei em volta a ver se o avistava. Continuava ali, todo amarfanhado no chão, junto à sua maleta negra. Tinha desmaiado.

O Brutal aproximou-se e ficou ao meu lado com o extintor nas mãos.

- Ainda não - disse eu. - Eu sei.

Olhámos em rredor, procurando o Percy, e vimo-lo atrás da Velha Faísca, imobilizado e de olhos esbugalhados, com o nó de um dedo enfiado na boca.

Por fim, o Delacroix caiu contra as costas da cadeira, com a cabeça tumefacta e disforme tombada sobre um ombro. O seu corpo continuava a ser sacolejado, mas já havíamos visto isso antes: eram os efeitos da corrente eléctrica que continuava a atravessá-lo. O capacete deslocara-se na cabeça e estava inclinado, mas, quando o retirámos um pouco mais tarde, a maior parte do couro cabeludo e o que restava dos poucos cabelos vieram agarrados, presos ao metal como se estivessem colados com uma cola muito resistente.

- Corta a corrente! - gritei ao Jack depois de terem passado trinta segundos sem haver qualquer reacção, para além dos espasmos provocados pela corrente eléctrica, no corpo daquele ser amarfanhado que tinha a figura de um homem, enegrecido e fumacento, e se balançava na cadeira eléctrica. O zunido parou imediatamente e eu acenei ao Brutal.

Este voltou-se e colocou o extintor nos braços do Percy com tanta força que ele cambaleou para trás, quase caindo sobre a plataforma.

- Tu é que vais fazer isso - disse-lhe o Brutal. - Ao fim e ao cabo, a festa é tua, não é verdade?

O Percy lançou-lhe um olhar que tanto tinha de mórbido como de assassino, soltou o mecanismo de segurança do extintor, accionou o êmbolo, ajustou a boca e projectou um lona go jacto de espuma branca por cima do homem na cadeira. Reparei que os pés do Delacroix se contorceram uma vez; quando o jacto de espuma lhe atingiu o rosto e pensei: Oh,, não, talvez tenhamos de repetir tudo, mas só houve aquele único espasmo.

O Anderson tinha feito meia volta, e gritava às testemunhas em pânico, garantindo que tudo estava bem, que toda aquela situação se encontrava sob controlo, que tinha sido apenas uma interferência na corrente eléctrica provocada pela tempestade, nada que pudesse causar a mínima preocupação. Só faltava dizer que aquilo que haviam cheirado - uma mistura demoníaca de cabelos queimados, carne assada e merda acabada de sair dos intestinos - era Chanel Número Cinco:

- Vai buscar o estetoscópio - disse eu ao Dean quando' o extintor ficou vazio. Naquele momento, o Delacroix estava coberto por uma camada branca e o pior do cheiro nauseabundo era camuflado por um cheiro acre a produtos químicos.; - O médico... achas que devo...

- Não ligues ao médico, vai só buscar o estetoscópio insisti. - Vamos lá a terminar com isto... para podermos le vá-lo daqui para fora.

O Dean acenou que sim. Terminar e dali para fora eram dois conceitos que lhe agradavam muito naquele preciso momento. Na realidade, agradavam a nós dois. Ele aproximou-se da maleta do médico e começou a remexer no seu interior. Entretanto, o médico começara a dar sinais de vida, o que indicava que, pelo menos, não tinha sofrido um ataque do coração ou uma trombose devido à tempestade. O que era bom. Todavia, a maneira como o Brutal olhava para o Percy não augurava nada de bom.

- Vai lá para baixo, para o túnel, e espera junto da maca - disse eu.

- Paul, ouve. Eu não sabia que... - começou o Percy a dizer depois de ter engolido em seco.

- Cala a boca. Vai para o túnel e espera junto da maca. Imediatamente.

Voltou a engolir em seco. Fez um esgar como se sentisse dores e dirigiu-se para a porta que dava acesso às escadas do túnel. Levava nos braços o extintor vazio, como se fosse um bebé. O Dean passou por ele quando se dirigia a mim, trazendo o estetoscópio. Tirei-o das suas mãos e coloquei as extremidades nos ouvidos. Já tinha feito aquilo na tropa e era como andar de bicicleta - nunca se esquece como é que se faz. Afastei a camada de espuma do peito do Delacroix e tive de conter os vómitos que me assomaram à garganta quando uma grande porção da sua pele ainda quente se destacou muito simplemente da carne que cobrira até então, da mesma forma que a pele deslizaria de um... bem, vocês sabem. "Sou um peru assado."

- Oh meu Deus! - exclamou uma voz que não reconheci à beira das lágrimas, vinda de trás de mim. - As execuções são sempre assim? Porque é que ninguém me avisou? Nunca teria vindo!

Agora é demasiado tarde, meu amigo, pensei.

- Levem este homem daqui para fora - disse eu, dirigindo-me ao Dean ou ao Brutal, ou a quem quer que estivesse a ouvir-me... o que fiz quando tive a certeza de que não desataria a vomitar em cima das coxas fumegantes do Delacroix. - Levem-nos todos para a porta das traseiras.

Couracei-me tanto quanto possível e coloquei o disco do estetoscópio sobre a região em carne viva que pusera a descoberto no peito do Del. Comecei a escutar enquanto rezava para não ouvir nada, e foi exactamente isso que aconteceu. - Ele está morto - disse eu ao Brutal.

Graças a Deus.

- Sim. Graças a Deus. Tu e o Dean vão buscar a padiola. Vamos desamarrá-lo e levá-lo daqui para fora o mais depressa possível.

 

Levámos o corpo sobre a maca pelos doze degraus abaixo, sem problemas de maior. O meu pesadelo era que a sua carne cozinhada começasse a desprender-se dos ossos enquanto o transportávamos - a frase do velho Pouca Terra, relativa ao peru assado, continuava gravada na minha mente - mas, como é evidente isso não veio a acontecer:

O Curtis Anderson~ estava no andar de cima a tranquilizar os espectadores - pelo menos a tentar - o que deu jeito ao Brutal, uma vez que o Anderson não se encontrava presente para ver quando ele deu um passo na direcção da frente da maca e encolheu o braço, pronto a desferir um murro no Percy, que continuava com uma expressão aparvalhada. Detive o_ seu braço a tempo, e ainda bem para ambos. Foi bom para', o Percy, porque o Brutal tencionava assentar-lhe um murro com a violência daqueles que quase decapitavam, e foi bom para o Brutal porque ele teria perdido o emprego se o murro acertasse, e possivelmente, ido parar à cadeia.

- Não - disse eu.

- O que é que queres dizer com esse não? - perguntou-me o Brutal, enfurecido. - Como é que podes dizer não? Bem viste o que ele fez! O que é que estás a tentar dizer-me? Que vais continuar a permitir que os seus conhecimentos

protejam? Depois do que ele fez?

- Sim. - O Brutal ficou a olhar para mim de boca aberta e com uns olhos tão furibundos que lacrimejavam. - Ou ve bem o que te digo, Brutus... tu dás-lhe um soco e o mais certo é todos nós sermos despedidos. Tu, eu, o Harry, o Dean e talvez até mesmo o Jack Van Hay. Todos os outros sobem um ou dois degraus na escada, a começar pelo Bill Dodge, e a Comissão Prisional contrata três ou quatro zés-ninguéns daqueles que fazem bicha para a sopa dos pobres para preencher os lugares mais inferiores da escala. Talvez tu possas viver com isso, mas... - Dobrei o polegar na direcção de Dean, que olhava para nós do outro extremo do túnel de tijolos, que gotejavam. Tinha os óculos numa das mãos, olhando para o Percy como se quase não o visse. - Mas... e a respeito do Dean? Ele tem dois filhos, um na escola secundária e outro prestes a entrar para lá.

- Por conseguinte, a que é que tudo isto se resume? -• perguntou-se o Brutal. - Vamos permitir que ele se safe desta? - Eu não sabia que a esponja devia estar molhada - interveio o Percy numa voz mecânica que mal se ouvia. Aquela era a história que ele havia ensaiado, como é evidente, quando esperava uma brincadeira dolorosa, em vez do autêntico cataclismo a que tínhamos assistido. - Sempre que ensaiávamos ela nunca era molhada.

- Ah, meu grande estupor.... - começou o Brutal a dizer, fazendo menção de se atirar ao Percy. Voltei a agarrá-lo, obrigando-o a retroceder. Entretanto, começou a ouvir-se o som de passos que desciam as escadas. Ergui o olhar, sentindo-me desesperadamente receoso de avistar o Curtis Anderson, mas era apenas o Harry Terwilliger. As suas faces estavam brancas como uma folha de papel e os lábios tinham uma tonalidade púrpura, como se tivesse acabado de comer uma torta de amoras pretas.

Voltei a dedicar a minha atenção ao Brutal.

- Por amor de Deus, Brutus, o Delacroix está morto, nada pode alterar esse facto, e o Percy não merece o que estarás a arriscar. - Começaria eu já a perceber o plano ou a sua fase inicial? Deixem que vos diga que desde então tenho vindo a interrogar-me sobre o assunto, sem contudo ter conseguido encontrar uma resposta satisfatória. Mas suponho que isso não tenha grande importância. Há muitas coisas que não importam, mas tenho reparado que isso não impede um homem de se questionar.

- Vocês estão para aí a falar de mim como se eu fosse invisível - comentou o Percy. Continuava a parecer entorpecido e atordoado, como se alguém lhe tivesse assentado um bom murro na barriga, mas podíamos ver que conseguira recobrar um pouco de ânimo.

- Tu és invisível, Percy - repliquei. - Eh, não podes...

Controlei muito a custo a vontade que sentia de o esmurrar. A água continuava a gotejar, com um som cavo, das paredes de tijolo do túnel; as nossas sombras gigantescas e distorcidas pareciam dançar sobre a sua superfície, como se fossem as sombras daquele conto do Poe sobre o gigantesco gorila da Rua da Morgue. Os trovões continuavam a fazer-se ouvir; contudo, ali em baixo, o seu ribombar era mais abafado.

- Só quero ouvir uma coisa da tua boca, Percy; a promessa de que amanhã entregarás o teu pedido de transferência para o Briar Ridge.

- Não te preocupes com isso - respondeu-me ele com uma expressão de amuo. Olhou para a figura coberta em cima da maca, afastou o olhar fitou-me por breves momentos e voltou a desviar o olhar.

- Isso será o melhor - atalhou o Harry. - Caso contráno, é possível que venhas a conhecer melhor o Bill "Selvagem" Wharton, muito melhor do que aquilo que desejas. - Uma ligeira pausa. - Nós podemos garantir que isso aconteça.

O Percy tinha medo de nós e, provavelmente, daquilo que pudéssemos fazer se ele ainda lá estivesse quando descobríssemos o que ele conversara com o Jack Van Hay sobre a esponja e por que motivo tínhamos sempre o cuidado de a mergulhar em salmoura; porém, a referência do Harry ao Wharton despelhou nos seus olhos um verdadeiro terror. Percebi que estava a recordar-se da maneira como o Wharton o agarrara despenteara, assim como das suas palavras.

- Não te atreverias - disse ele num murmúrio.

- Ah, isso é que me atreveria - replicou o Harry com toda a calma. - E queres saber que mais? Ninguém viria a saber. Porque já demonstraste que não tens cuidado nenhum quando lidas com os prisioneiros. E que também és incompetente.

Os punhos do Percy cerraram-se e as suas faces adquiri ram uma tonalidade rosada.

- Eu não sou...

-Claro que és - atalhou o Dean, juntando-se a nósj Formámos uma espécie de semicírculo em redor do Percy ao' fundo das escadas, e até a saída pela parte da frente do túnel se encontrava bloqueada; a maca estava atrás dele com o seu' amontoado de carne fumegante oculto debaixo de um velho lençol. - Acabaste de queimar o Delacroix vivo. Se isso não é uma demonstração de incompetência, o que é que será?

A expressão que se reflectia no olhar do Percy era pouco'' segura. Planeara proteger-se, invocando ignorância, e naquele momento verificava que o feitiço se virara contra o feiticeiro.

Nunca cheguei a saber o que é que ele teria alegado em se guida, porque, nesse momento, o Curtis Anderson apareceu vindo das escadas. Apercebemo-nos de que era ele e afastámo-nos um pouco do Percy, de forma a não darmos uma imagem tão ameaçadora.

- Que porra é que foi aquilo? - perguntou o Anderson num rugido. - Jesus, o chão lá em cima é só vomitado por todo o lado! E o cheiro! Eu já disse ao Magnusson e ao velho Pouca Terra que abrissem as duas portas, mas aquele cheiro não há-de sair durante pelo menos cinco anos, aposto tudo o que quiserem. E o monte de merda do Wharton está a cantar, acerca do assunto! Estou a ouvi-lo!

- E ele tem boa voz, Curt? - perguntou o Brutal. Sabem como é que se pode fazer com que o gás de iluminação entre em combustão apenas com uma centelha sem que daí

nos advenha qualquer dano físico, se o fizermos antes de a concentração ser excessiva? Foi o que aconteceu naquela situação. Ficámos uns instantes a olhar de boca aberta para ele gratos e desatámos a rir histericamente. As nossas gargalhadas cheias de histerismo ecoavam por aquele túnel lúgubre como o adejar de asas de morcegos. As nossas sombras disformes oscilavam sobre as paredes. Já no fim do nosso ataque de riso, até o Percy fez coro connosco. Por fim acalmámo-nos e, no rescaldo, todos nos sentimos melhor. Possuíamos de novo alguma sanidade mental.

- Muito bem, rapazes - atalhou o Anderson, limpando os olhos lacrimejantes com um lenço, continuando a soltar um soluço ocasional de riso -, o que raio se passou lá em cima?

- Uma execução - respondeu o Brutal. Estou em crer que o seu tom de voz neutro desarmou o Anderson, mas a mim não me surpreendeu, pelo menos não muito; o Brutal sempre tinha sido bom em tirar o maior partido de uma ocasião propícia. Bem sucedida.

- Como é que podes dizer uma coisa dessas? Algumas testemunhas serão incapazes de dormir durante um mês! Raios, aquela gaja gorda é capaz de não pregar olho durante um ano!

O Brutal apontou para a maca, para o corpo por baixo do lençol.

- Ele está morto, não é verdade? Quanto às tuas testemunhas, a maior parte delas dirá amanhã à noite aos amigos que se tratou de um acto de justiça perfeita... O Del queimou uma data de pessoas vivas, portanto, nós invertemos as coisas e queimámo-lo, a ele, vivo. Com a diferença de que não dirão que fomos nós. Dirão que foi a vontade de Deus que se manifestou através de nós. Talvez até haja alguma verdade nisso. E queres saber o melhor de tudo? A ironia suprema? A maior parte dos amigos das testemunhas vai desejar ter podido estar aqui, para ver com os seus próprios olhos. - Lançou um olhar ao Percy, que tanto tinha de sardónico como de escarninho.

- E se ficaram um tudo-nada abalados, o que é que isso tem de mais? - perguntou o Harry. - Eles ofereceram-se para o raio desta missão, ninguém os recrutou.

- Eu não sabia que a esponja tinha de estar molhada - interveio o Percy numa voz mecanizada. - Durante os ensaios nunca é costume molhá-la.

O Dean olhou para ele com o mais profundo dos desprezos.

- Durante quantos anos mijaste na tampa da retrete até; alguém te ter dito que a levantasses antes de urinar? - perguntou ele num timbre de voz que mais parecia um ladrar.

O Percy ainda abriu a boca para responder, mas eu disse -lhe que se calasse. E, surpresa das surpresas, ele obedeceu Voltei-me para o Anderson.

- O Percy lixou tudo, Curtis... Foi isso o que sucedeu muito pura e simplesmente. - Virei-me para o Percy, desafiando-o a contradizer-me. Ele não ousou fazê-lo ao ler a expressão nos meus olhos: "É preferível que o Anderson julgue` que foi um erro estúpido do que algo propositado." Além do' mais, fosse o que fosse que se dissesse ali no túnel não tinhaqualquer significado. Aquilo que interessava, o que interessa sempre aos Percy Wetmore deste mundo, é o que fica regis tado ou o que chega aos ouvidos dos manda-chuvas... da pessoas que interessam. O que tem relevância para os Percies, Wetmore deste mundo é o que é publicado nos jornais.

O Anderson olhou para nós, parecendo um pouco inseguro. Chegou mesmo ao ponto de olhar para o Delacroix, mas este não se encontrava em estado de falar.

- Imagino que poderia ter sido pior - comentou.

- Isso é verdade - concordei. - Ele ainda podia estar vivo.

O Curtis pestanejou confuso: aquela probabilidade parecia não lhe ter ocorrido.

- Amanhã quero ver em cima da minha secretária um relatório pormenorizado sobre este assunto - instruiu ele.

E nenhum de vocês falará disto ao director Moores até eu ter tido a oportunidade de conversar com ele. Estamos de acordo? Acenámos veementemente com a cabeça. Se o Curtis Anderson pretendia pôr o director ao corrente do sucedido; por' nós não havia qualquer inconveniente.

- Isto é, se nenhum desses caras de cu dos repórteres referir o assunto nos seus jornais...

- Não o farão - repliquei. - Ainda que o tentassem, os editores impediriam que o assunto viesse a lume. É demasiado macabro para um público constituído maioritariamente por famílias. Mas eles nem sequer tentarão. Os que se encontravam presentes esta noite são todos veteranos. Às vezes ~ coisas dão para o torto, mais nada. Eles sabem disso tão bem como nós.

O Anderson pensou por mais uns instantes, e pouco depois assentiu. Olhou para o Percy; no seu rosto, habitualmente bastante afável, reflectia-se uma expressão desdenhosa.

- És um verdadeiro idiota - declarou -, e não gosto de ti nem um bocadinho. - Assentiu com a cabeça perante o olhar estupidificado de surpresa do Percy. - E se contares a algum dos teus amigos de cu rosado que eu te disse isto, podes estar certo que o negarei até que as galinhas venham a ter dentes... e estes homens hão-de confirmar o que eu disser. Como vês, estás com um pequeno problema, meu filho.

Com aquelas palavras, voltou-se e começou a subir as escadas. Deixei-o percorrer quatro degraus antes de o chamar. - Curtis? - O interpelado deu meia volta, franziu o sobrolho e não disse nada. - Não vale a pena preocupares-te muito com o Percy - acrescentei. - Ele vai ser transferido para o Briar Ridge. Esperam-no coisas maiores e melhores. Não é verdade, Percy?

- Assim que a transferência seja aprovada - prosseguiu o Brutal.

- E até que tal aconteça, ele vai passar a dar parte de doente todas as noites - acrescentou o Dean.

Aquilo enfureceu o Percy; ainda não trabalhava na prisão há tempo suficiente para poder ter acumulado dias de dispensa por doença remunerados. Fitou o Dean com grande desdém.

- Isso querias tu - disse ele.

 

Regressámos ao bloco mais ou menos por volta da uma e um quarto da manhã (com excepção do Percy, que ficou a limpar a arrecadação muito mal-humorado) e eu ainda tinha de escrever um relatório. Decidi elaborá-lo na mesa do guarda de serviço; se eu me sentasse na cadeira do meu gabinete, que era mais confortável do que aquela, acabaria por passar pelas brasas. Muito provavelmente, isto poderá parecer-vos um pouco peculiar, em vista do que tinha acontecido há cerca de uma hora mas a realidade é que eu tinha a sensação de haver vivido três vidas desde as onze horas da noite anterior sem conseguir conciliar o sono.

O John Coffey encontrava-se junto das barras da porta da cela, com as lágrimas a brotarem dos seus olhos estranhos e de expressão distanciada - era como se estivéssemos a observar o sangue a escorrer de uma ferida que se recusava a sarar, mas que não provocava dores. Mais perto da secretária, no corredor, o Wharton estava sentado na sua tarimba, embalando-se em movimentos laterais, enquanto entoava uma canção da sua lavra que não era despropositada de todo. Tanto quanto me consigo recordar, a letra dizia qualquer coisa como isto:

"Chu...rras...co! Tu e eu!

Fedorento, rosadinho, mas que pivete!

Não foi o Billy nem o Philadelphia Philly, Não foi o Jackie nem o Roy!

Era um rapazinho, pequeno e pimpão, Que dava pelo nome de Delacroix."

- Cala a boca, idiota! - disse-lhe eu.

Wharton mimoseou-me com um esgar sorridente que pôs à mostra os seus dentes enegrecidos. Ele não estava a morrer, pelo menos ainda não; estava de pé, todo satisfeito, praticamente a executar um sapateado.

- Vem até aqui dentro e obriga-me a calar a boca - desafiou, trocista e todo contente, começando a entoar outro verso da Canção do Churrasco, formando frases que não

eram totalmente desprovidas de graça. Revelavam uma inteligência aberrante e nauseabunda, mas que à sua própria maneira raiava o brilhantismo.

Dirigi-me para a cela do John Coffey. Este limpou as lágrimas das faces com a palma da mão. Tinha os olhos vernelhos e inchados, e pareceu-me que também estava exausto.

Não percebia bem porquê, pois ele passava apenas duas horas por dia no pátio de recreio e o resto do tempo sentado ou deitado na tarimba da sua cela; eu não tinha a certeza, mas não duvidei daquilo que estava a ver. Era demasiado evidente. - Pobre Del - comentou ele numa voz baixa e áspera.

Coitado do velho Del.

- Sim - anuí. - Coitado do velho Del. John, tu estás' bem?

- Já deixou tudo isto - continuou o Coffey sem me responder. - O Del já está fora disto. Não é verdade, chefe?

Sim. Mas responde ao que te perguntei, John. Estás

bem? O Del deixou tudo isto, ele é que tem sorte. Não interessa a forma como aconteceu, ele é que tem sorte. Pensei que o Delacroix era muito capaz de contradizer aquela observação, mas decidi guardar aquele pensamento para mim próprio. Lancei um olhar pela cela do John Coffey. - Onde é que está o Mister Jingles?

- Foi a correr até ali ao fundo. - Apontou através das barras, indicando o fundo do corredor, onde se situava a cela do isolamento.

- Bem, ele há-de regressar - disse eu com um acenar de cabeça.

Mas a verdade é que não regressou; os dias do Mister Jingles na Milha Verde tinham chegado ao fim. O único vestígio que encontrámos da sua presença foi o que o Brutal descobriu nesse Inverno: umas quantas lascas de madeira coloridas e o cheiro a rebuçados de hortelã-pimenta, que emanava de um orificio na trave do tecto.

Tinha intenções de me ir embora nessa altura, mas não o fiz. Olhei para o John Coffey, e ele retribuiu-me o olhar, como se adivinhasse todos os meus pensamentos. Disse a mim mesmo para me pôr a mexer dali para fora, dar a noite por terminada e depois elaborar o relatório que tencionava escrever sentado à mesa do guarda de serviço. Em vez disso, ouvi-me a proferir o seu nome.

- John Coffey.

- Sim, chefe - retorquiu ele de imediato.

Por vezes, um homem sente a necessidade de saber uma determinada coisa, e era exactamente isso o que se passava comigo naquele momento. Baixei-me sobre um joelho e comecei a descalçar um dos meus sapatos.

 

Quando cheguei a casa a chuva já parara de cair. Acima da cordilheira a norte surgira no firmamento a Lua tardia. O sono que eu sentira antes dava a impressão de ter desaparecido com as nuvens. Estava completamente desperto e sentia em mim o cheiro do Delacroix. Pensei que talvez conseguisse cheirá-lo na minha pele - churrasco, tu e eu, fedorento, rosadinho, mas que pivete - ainda durante .muito tempo.

A Janice estava de pé à minha espera, como fazia sempre nas noites em que havia execuções. Tinha intenção de não lhe contar a história, uma vez que não vi qualquer finalidade em perturbá-la com aquilo; contudo, ela lançou um olhar ao meu rosto quando transpus a porta da cozinha e exigiu que eu lhe contasse. Assim, sentei-me, agarrei nas suas mãos quentes, envolvi-as com as minhas, que estavam frias (o sistema de aquecimento do meu velho Ford funcionava mal, e desde o desencadear da tempestade que a temperatura tinha executado um ângulo de cento e oitenta graus), e comecei a narrar-lhe aquilo que ela pensava desejar ouvir. A meio da história fui-me abaixo e comecei a chorar, não tinha contado com aquilo. Senti-me um pouco envergonhado, mas não muito; bem vêem, era ela, a Janice; que nunca me chamava a atenção para as ocasiões em que eu me desviava do comportamento que estava convencionado para um homem... pelo menos, do comportamento que eu julgava dever ser o meu. Um homem casado com uma boa mulher é a criatura de Deus que mais sorte tem, ao passo que um que não possua essa dádiva deve encontrar-se entre os mais desgraçados, creio eu, sendo única bênção das suas vidas o facto de não se aperceberem de quanto isso lhes faz falta. Chorei e ela encostou a minha cabeça junto dos seus seios; quando a minha própria tempestade se dissipou, senti-me melhor... pelo menos, um tudo-nada melhor. Estou convencido de que foi nessa altura que tive a primeira percepção consciente da minha ideia. Não foi o sapato; não é a isso que estou a referir-me. O sapato estava relacionado, mas de forma diferente. No entanto, a minha verdadeira ideia consistia, naquele momento, apenas numa percepção estranha: que o John Coffey e a Melinda Moores, tão diferenciados quanto podiam ser em tamanho, sexo, e cor da pele, possuíam exactamente os mesmos olhos: tristes, pesarosos e distantes. Olhos moribundos.

- Vem para a cama - disse por fim a minha mulher. Vem para a cama comigo, Paul.

Acedi; fizemos amor e, quando terminámos, a Janice adormeceu. Enquanto eu estava deitado a olhar para a face da Lua, ouvindo o ranger ocasional das paredes - finalmente, tinham começado a retrair-se, mudando do Verão para o Outono - pensei no John Coffey a dizer que tinha evitado o mal. Eu consegui evitar o mal no rato do Del. Eu consegui evitar o mal no Mister Jingles. Ele é um rato do circo. Com certeza. E talvez, pensei eu, todos nós fôssemos ratos de circo, a correr de um lado para o outro, tendo apenas uma noção vaga de que Deus e toda a Sua hoste no paraíso, nos observavam nas nossas pequenas casas de baquelite, através das janelas de folha de mica.

Quando o dia começou a clarear dormi um pouco - calculo que umas duas horas, talvez mesmo três; dormi da mesma maneira que costumo dormir hoje em dia, aqui, em Georgia Pines o que muito raramente me acontecia nessa época, um sono sobressaltado. Adormecia pensar nas igrejas da minha juventude. As tendências religiosas alteravam-se de acordo com os caprichos da minha mãe e das suas irmãs, mas na realidade eram todas o mesmo, resumiam-se à Primeira Igreja da Região Remota de Louvado Seja Jesus, o Senhor É Todo-Poderoso. À sombra daqueles campanários quadrados, o conceito de expiação surgia com a mesma regularidade do dobrar dos sinos que chamavam os fiéis à oração. Só Deus podia perdoar os pecados, podia e fazia-o, lavando-os no sangue do Seu Filho crucificado, mas esse facto não alterava a responsabilidade dos Seus filhos, que teriam de expiar esses pecados (e até mesmo os seus simples erros de discernimento) sempre que possível. A expiação era um instrumento poderoso; era a tranca na porta que se fecha a fim de encerrarmos o passado.

Adormeci a pensar em expiações que tinham lugar em pinhais frondosos, no Eduard Delacrorx, envolto em chamas montado no relâmpago, na Melinda Moores e no matulão com os seus olhos infinitamente lacrimosos. Estes pensamentos conseguiram formar um sonho. Nele, o John Coffey encontrava-se sentado na margem de um rio, balbuciando o seu pesar desarticulado em direcção ao firmamento de início do Verão, enquanto na outra margem se via um comboio de mercadorias que avançava veloz e incessantemente em direcção a um viaduto ferrugento que atravessava o Trapingus. Em cada braço, o homem de raça negra tinha o corpo de uma rapariguinha nua de cabelos louros. Os seus punhos, enormes rochedos castanhos nas extremidades desses braços, mantinham-se firmemente cerrados. Em seu redor os grilos cantavam e os insectos esvoaçavam; o calor do dia parecia zunir. No meu sonho dirigi-me a ele ajoelhando-me à sua frente e tomando as suas mãos nas minhas. Os seus punhos relaxaram-se, revelando os seus segredos. Numa delas encontrava-se um carretel pintado de verde, vermelho e amarelo. Na outra estava o sapato de um guarda prisional.

- Não consegui evitar o mal - dizia John Coffey, , Tentei desfazer o que estava feito, mas era demasiado tarde; E desta feita, no meu sonho, compreendi finalmente o homem.

 

Às nove horas da manhã seguinte, enquanto bebia a minha terceira caneca de café na cozinha (a minha mulher não fez qualquer comentário, mas vi a reprovação escrita no seu rosto quando me deu o café), o telefone começou a tocar. Dirigi-me para a sala a fim de o atender; a telefonista da Central disse a alguém que já tinha em linha a pessoa pretendida, em seguida desejou-me um dia muito feliz e abandonou a linha, presumivelmente. Com a Central nunca se podia ter a certeza.

A voz do Hal Moores chocou-me muito. Soava enrouquecida e vacilante, dando-me a impressão de que pertencia a um octogenário. Ocorreu-me então que tinha sido bom que as coisas tivessem corrido da melhor maneira com o Curtis Anderson, na noite anterior, quando estivéramos todos no túnel; era óptimo que ele pensasse mais ou menos o mesmo que nós em relação ao Percy, porque o homem com quem eu estava a falar provavelmente jamais voltaria a trabalhar em Cold Mountain.

- Paul, pelo que percebi, ontem à noite houve um pequeno problema. Também percebi que o nosso amigo, Mister Wetmore, esteve envolvido no assunto.

- Foi apenas uma ligeira complicação - admiti, colocando o auscultador bem junto ao ouvido e inclinando-me sobre o bocal -, mas o trabalho ficou concluído. E isso é o mais importante.

- Sim. Claro que sim.

- Posso perguntar quem é que te contou? - "Para poder atar-lhe uma lata à cauda", pensei.

- Podes perguntar, mas, como não é assunto onde devas meter o bedelho, vou ficar de boca fechada. Quando liguei para o meu gabinete, a fim de saber se havia algum recado ou qualquer assunto urgente, fui informado de uma coisa bastante interessante.

- Oh!

- Sim - retorquiu Moores. - Parece que um pedido de transferência foi aterrar na minha secretária. O Percy Wetmore quer ser transferido para o Briar Ridge logo que possível. Deve ter preenchido o papel antes mesmo do fim do turno da noite passada, não achas?

- Ao que tudo indica, parece que sim - concordei. - Em circunstâncias normais, eu deixaria que fosse o Curtis Anderson a tratar deste assunto, mas levando em consideração a... a atmosfera que tem reinado no Bloco E nestes últimos tempos, pedi à Hannah que me trouxesse pessoalmente esse pedido na sua hora de almoço. Gentilmente, ela acedeu. Vou aprovar a transferência e certificar-me de que é enviada para a capital do estado ainda esta tarde. Calculo que possas ver o Percy Wetmore pelas costas em menos de um mês. Talvez até menos.

O Moores esperava que eu ficasse satisfeito com aquela novidade, e tinha todo o direito a esperar. Interrompera a assistência à mulher para poder dispor do tempo necessário para dar andamento àquele assunto, o qual, não fora isso, poderia ter levado mais de seis meses a ser tratado, até mesmo através dos tão alardeados conhecimentos do Percy. No entanto, senti o coração cair-me aos pés. Um mês! Mas talvez isso não tivesse muita importância. Eliminava um desejo perfeitamente natural de aguardar e adiar um empreendimento arriscado, e o assunto que me preenchia a mente de momento seria efectivamente muito arriscado. Em certas ocasiões, quando é assim, é preferível dar o salto antes de perder a coragem. Se íamos ser obrigados a tratar do Percy (sempre partindo do pressuposto de que eu seria capaz de convencer os outros a apoiarem-me na minha loucura - por outras palavras, partindo do princípio de que existiria um "nós"), mais valia que fosse naquela mesma noite.

- Paul? Continuas em linha? - O Moores baixou um pouco a voz, como se pensasse que estava a falar consigo próprio. - Raios partam isto, está a parecer-me que a ligação foi cortada.

- Não. Continuo aqui, Hal. Deste-me uma bela novidade. - Sim - concordou ele; uma vez mais, senti-me espantado ao verificar o quanto a sua voz havia envelhecido. De uma forma estranha, parecia tão fina como papel. - Oh, eu sei bem em que é que estás a pensar.

"Não, não sabes, senhor director", pensei para comigo.

"Nem daqui a um milhão de anos conseguirias adivinhar em que é que estou a pensar."

- Estás a pensar que o nosso jovem amigo ainda andarà pelo bloco aquando da execução do Coffey. O que provavelj mente será verdade... O Coffey marchará antes do Dia de acção de Graças, de acordo com as minhas previsões, mas poderás muito bem recambiá-lo de novo para o compartimento do quadro eléctrico. Ninguém levantará a mínima objecção.! Incluindo ele próprio, calculo.

- É exactamente o que farei - repliquei. - Hal, como é que a Melinda tem passado?

Fez-se uma longa pausa - tão longa que eu poderia ter pensado que ele saíra da linha, não fora o som da sua respiração. Quando o Moores voltou a falar, fê-lo muito mais baixo.

- Ela está a apagar-se - disse ele.           ~ A apagar-se. Aquela expressão tão aterradora que os antigos costumavam usar, não para dizerem que uma pessoa estava a morrer, mas sim que tinha começado a desligar-se do mundo dos vivos.

- As dores de cabeça parecem ter abrandado um pouco... pelo menos por agora... mas não consegue caminhar sem ajuda, não consegue agarrar nas coisas, enquanto está a dormir não é capaz de controlar a bexiga... - Fez-se outra pausa, e então, num tom de voz ainda mais baixo o Hal acrescentou; qualquer coisa que me deu a impressão de ser: "Ela adeja".

- Adeja? O que é que queres dizer, Hal? - perguntei,, franzindo a testa. Entretanto a minha mulher tinha chegado à entrada da sala de estar e ficou ali a olhar para mim, a limpar as mãos a um pano da louça.

- Não - replicou o Moores numa voz que dava a impressão de vacilar entre a cólera e as lágrimas. - Ela pragueja.

- Oh! - exclamei, continuando sem saber o que é que ele pretendia dizer, embora não tivesse intenção de perguntar. Não foi necessário; ele encarregou-se de me explicar.

- Ela está muito bem, perfeitamente normal, a conversar acerca dos canteiros de flores ou de um vestido que viu no catálogo, ou a dizer que ouviu o Roosevelt no rádio, comentando que ele falou maravilhosamente, e então, sem mais nem menos, começa a dizer as coisas mais horrorosas que se possa conceber, coisas monstruosas... palavras. Não eleva a tom de voz. Na minha opinião, quase seria preferível se ela o fizesse... porque nesse caso... bem vês, então...

- Não se pareceria tanto consigo própria - adiantei. - É isso mesmo - aquiesceu o Moores numa voz agradecida. -            _Mas ouvi-la proferir aquelas coisas horríveis, linguagem reles, na sua doce voz... Desculpa-me Paul. - A sua voz enfraqueceu, e ouvi-o a aclarar ruidosamente a garganta.

Pouco depois, o Moores retomou a palavra, num tom um pouco mais forte mas tão entristecido como antes. - A Melinda quer que o pastor Donaldson venha cá a casa e eu sei que ele é um grande conforto para ela, mas como é que eu posso pedir-lhe que venha? Supõe que. ele está sentado na sala, lendo as Escrituras com ela e ela lhe chama um nome obsceno? A Melinda é muito capaz de o fazer; ontem á noite chamou-me nomes. Ela disse-me: "Chega-me essa revista, a Liberty, meu caralho de merda, se fizeres o favor." Oh, Paul, onde é que ela terá ouvido linguagem desta espécie? Como é que ela pode ter conhecimento deste género de palavras? - Não sei. Hal, tencionas ficar em casa esta noite?

Quando estava de posse de todas as suas faculdades, sem se sentir perturbado pelas preocupações e desgostos, o Hal Moores tinha uma faceta ríspida e sarcástica; acho que os seus subordinados receavam mais essa faceta do que a sua cólera ou desprezo. O seu sarcasmo, que habitualmente se revestia de impaciência e brusquidão, era capaz de nos aguilhoar como ácido. Naquele momento, senti um pouco desse sarcasmo. Foi bastante inesperado, mas, tudo considerado, fiquei satisfeito por detectar aquilo. Ao fim e ao cabo, parecia que nem todo o espírito de luta o abandonara.

- Não - respondeu-me o Hal -, tenciono levar a Melinda ao baile no celeiro. Tencionamos fartar-nos de dançar e depois dizer ao rabequista que é um filho da puta.

Tapeia boca com a mão para não me rir. Felizmente, a vontade de rir desapareceu com rapidez.

- Desculpa - acrescentou ele. - Ultimamente, não tenho andado a dormir muito. O que me torna rabugento. É claro que vamos estar em casa. Porque é que perguntas?

- Não interessa - retorqui.

- Não estás a pensar em passar por cá, pois não? Porque se estiveste de serviço ontem à noite, isso significa que hoje também trabalharás no turno da noite. A menos que tenhas trocado com alguém, não?

- Não, não troquei - confirmei. - Esta noite também estou de serviço.

- Em qualquer dos casos, a tua visita não seria muito boa ideia. Da forma como ela se sente neste momento.., - Talvez tenhas razão. Obrigado pelas notícias que me deste.

- Não tens de quê. Reza pela minha Melinda, Paul. Eu prometi-lhe que assim faria, pensando que talvez viesse a fazer um pouco mais do que rezar. Tal como eles costumam dizer na Igreja do Louvado Seja Jesus, o Senhor É Todo-Poderoso, Deus ajuda os que se ajudam a si próprios. Desliguei o telefone e olhei para a Janice.

- Como é que está a Melly? - perguntou-me ela.

- Não muito bem. - Contei-lhe o que o Hal me dissera, incluindo a parte respeitante à linguagem obscena, embora não tenha incluído a parte do caralho e do filho da puta. Concluí o meu relato, utilizando a expressão do Hal, "a apagar-se"; a Jan abanou a cabeça com uma expressão de tristeza. Em seguida, observou-me com mais atenção.

- Em que é que estás a pensar? Andas a matutar em qualquer coisa, provavelmente, nada de bom. Está escrito no teu rosto.

Mentir encontrava-se inteiramente fora de questão; essa não era a nossa maneira de ser. Limitei-me a dizer-lhe que seria preferível que ela não se inteirasse do assunto, pelo menos de momento.

- Trata-se de... Pode vir a causar-te algum problema? -perguntou ela, apesar de não parecer estar particularmente alarmada perante aquela hipótese, antes interessada, o que é um dos aspectos de que eu sempre gostei no seu carácter. - Talvez - respondi lacónico.

- É uma coisa boa?

- Talvez - repeti. Continuava no mesmo lugar enquanto com um dedo girava distraidamente a manivela do telefone. - Preferes que eu te deixe sozinho enquanto fazes o teu telefonema? - perguntou a Janice. - Que seja uma boa mulherzinha e não me meta onde não sou chamada? Que vá lavar a louça? Tricotar umas botinhas de lã?

Assenti.

- Não era bem nisso que eu estava a pensar, mas... - Vamos ter convidados para o almoço, Paul?

- Espero que sim - repliquei.

 

Contactei com o Dean e o Brutal sem mais demoras, uma vez que ambos se encontravam ligados à rede telefónica. Não era o caso do Harry, pelo menos nessa época, mas eu tinha o número de telefone do seu vizinho mais próximo. Cerca de vinte minutos mais tarde, o Harry retribuiu o meu telefonema, extremamente embaraçado por a chamada ter de ser paga no destino, mas prometendo "pagar o seu quinhão" quando nos fosse enviada a próxima factura. Eu repliquei-lhe que "tudo vem a seu tempo e os nabos no Advento"; entrementes, poderia ele vir almoçar a minha casa? O Brutal e o Dean já tinham aceite o convite, e a Janice prometera servir a sua famosa salada de repolho cru... para já não falar na sua ainda mais famosa tarte de maçã.

- Almoço sem ser por qualquer motivo especial? - perguntou o Harry com cepticismo.

Acabei por admitir que queria discutir com eles um certo assunto, mas não desejava entrar nessa questão ao telefone. O Harry concordou em ir almoçar a minha casa. Pousei o auscultador, dirigi-me para a janela e olhei para fora, pensativo. Embora houvéssemos trabalhado no turno da noite, eu não acordara o Brutal nem o Dean, e o Harry também não parecera ter acabado de sair de vale de lençóis. Tudo indicava que eu não era o único a estar incomodado com o que se passara na noite anterior, e tendo em conta a loucura que eu tencionava levar a cabo, isso não era mau.

O Brutal, que era o que vivia mais próximo de mim, chegou às onze e um quarto. O Dean apareceu quinze minutos mais tarde e o Harry - já vestido para o trabalho - outros quinze minutos depois deste último. A Jan serviu-nos o almoço na cozinha: sanduíches de carne assada, salada de repolho e chá gelado. Tivesse aquela refeição tido lugar no dia anterior e teríamos comido no alpendre, ao ar livre, satisfeitos por sentir a brisa todavia a temperatura havia descido uns bons catorze graus desde a tempestade da noite anterior, e das cumeeiras soprava um vento bastante agreste.

- Podes sentar-te à mesa connosco - disse eu à minha mulher.

- Acho que não quero saber o que andas a tramar - disse-me ela com um abanar de cabeça -, e fico menos preocupada se não souber. Eu como qualquer coisa na sala de estar. Esta semana tenho encontro marcado com Miss Jané Austen, a qual, devo dizer, é uma companhia excelente.

- Quem é a Jane Austen? - perguntou o Harry depois de a Janice ter saído da cozinha. - Da tua família ou da tua mulher, Paul? É alguma prima? É bonita?

- É uma escritora, idiota - esclareceu o Brutal. - Já morreu há uma eternidade.

- Oh! - exclamou o Harry, constrangido. - Eu não sou grande leitor. Na maior parte, manuais de rádio.

- O que é que andas a magicar, Paul? - perguntou o Dean sem rodeios.

- Para começar, temos o Mister Jingles e o John Coffey. Os três mostraram-se surpreendidos, tal como eu esperara... Tinham julgado que eu queria falar do Delacroix ou do Per cy. Talvez mesmo de ambos. Fitei o Dean e o Harry. - Aquilo com o Mister Jingles... o que o Coffey fez... aconteceu com bastante rapidez. Eu não sei se chegaste a tempo de ver até que ponto é que o rato ficou ferido.

- Não, mas ainda vi o sangue espalhado no chão - re plicou ele com um abanar de cabeça.

Voltei-me para o Brutal.

- O filho da puta do Percy esmagou-o - disse ele simplesmente. - Deveria ter morrido, mas tal não aconteceu: O Coffey fez-lhe qualquer coisa. Não sei como, mas o certo é que sarou. Eu sei que isto parece ser impossível, mas eu vi com os meus próprios olhos.

- Ele também me curou e eu não me limitei a ver, senti isso na pele - atalhei eu. Contei-lhes o que se passara com a minha infecção urinária, a forma como esta ressurgira, o sofrimento por que tinha passado (apontei através da janela da cozinha para a pilha de madeira a que fora obrigado a agarrar-me, na manhã em que as dores me prostraram de joelhos), e a forma como havia desaparecido completamente depois de o Coffey me ter tocado. E nunca mais voltara.

Não foi necessário muito tempo para esta narrativa. Depois de eu ter terminado, os três ficaram em silêncio por algum tempo, mastigando as suas sanduíches. O Dean foi o primeiro a retomar a conversa.

- Da boca dele saem coisas pretas. Parecidas com insectos. - É verdade - corroborou o Harry. - Pelo menos, de início eram pretas. Mas em seguida ficaram brancas e sumiram-se. - Olhou à sua volta com uma expressão pensativa. - Já me tinha esquecido do raio dessa coisa toda, Paul. Não acham que é engraçado?

Nao há nada de engraçado nem de estranho a respeito disso - interveio o Brutal. - Na minha opinião, é assim que a maior parte das pessoas procede em relação às coisas

que não é capaz de compreender... Limitam-se a esquecê-las. Não faz muito bem à cabeça de uma pessoa recordar-se de coisas que não têm explicação. O que é que tens a dizer quanto a isso, Paul? Também apareceram insectos quando ele te curou da infecção?

- Sim. Na minha opinião, eles é que são a doença... as dores... o sofrimento. Absorvem os males e depois libertam-nos de novo em pleno ar.

- Onde acabam por vir a morrer - acrescentou o Harry. Encolhi os ombros. Por mim, não sabia se morriam ou não, tão-pouco tinha a certeza se isso interessaria para o caso. - Ele sugou isso de ti? - perguntou o Brutal. - O Coffey deu-me a impressão de estar a sugar qualquer coisa directamente do rato. O sofrimento. O... vocês sabem o que quero dizer. A morte.

- Não - redargui. - Ele limitou-se a tocar-me. E eu senti o seu toque. Foi uma espécie de safanão, como um choque eléctrico, com a diferença de que não me provocou qualquer dor. Mas eu não estava a morrer, só sentia dores.

- O toque e a respiração - proferiu o Brutal com um acenar de cabeça. - Tal como se costuma ouvir desses apregoadores da palavra divina.

- Jesus seja Louvado, o Senhor é Todo-Poderoso - atalhei.

- Cá por mim, não sei se Jesus tem alguma coisa a ver com isto - acrescentou o Brutal -, mas o certo é que me parece que o John Coffey é um homem muito poderoso.

- Muito bem - interveio o Dean. - Uma vez que tu afirmas que tudo isso aconteceu, acho que sou obrigado a acreditar. Deus manifesta-se de maneiras misteriosas. Mas o que é que isso tem a ver connosco?

Bem, aquela é que era a grande questão, não era? Respirei fundo e disse-lhes aquilo que tencionava fazer. Aparvalhados, os três ouviram o que eu tinha a dizer. Até o Brutal, que gostava de ler aquelas revistas que traziam histórias sobre homenzinhos verdes vindos do espaço, apresentava uma expressão estupidificada. Desta vez, quando terminei, fez-se u silêncio ainda maior e as sanduíches pareciam ter sido esquecidas.

Por fim, numa voz suave cheia de sensatez, o Brutus Howell retomou a palavra.

- Se fôssemos apanhados, perderíamos o emprego, pau~, e já era uma sorte se fosse só isso. O mais provável era acabarmos por ir parar ao Bloco A como convidados do estado, a fabricar carteiras e a tomar duche aos pares.

- Sim - admiti. - Isso poderia muito bem vir a acontecer.

- Até certo ponto, sou capaz de compreender o que sen-tes - continuou ele. - Conheces o Moores muito melhor do que qualquer de nós e, para além de ele ser o chefe, também é teu amigo e sei que pensas muito no estado de saúde da mulher dele...

- A Melinda é a pessoa mais meiga do mundo - afirmei -, e para ele nada mais existe.

- Mas nós não a conhecemos da mesma forma que tu e a Janice - disse o Brutal. - Não é verdade, Paul?

- Se a conhecessem, também sentiriam afecto por ela retorqui. - Pelo menos teriam sentido se a tivessem conhecido antes de esta coisa se ter apoderado dela com as suas garras impiedosas. Ela costumava fazer muitas coisas em prol da comunidade, e é uma boa amiga e uma pessoa religiosa. Mas ainda mais é uma pessoa espirituosa. Enfim, costumava ser. A Melinda era capaz de nos contar coisas que nos faziam rir até às lágrimas. Mas não é por isso que quero ajudá-la a salvar a vida, isto é, caso possa vir a ser salva. O que está a acontecer com ela constitui uma ofensa, raios, uma verdadeira ofensa. Para os olhos, para os ouvidos e para o coração.

- Essa tua atitude é muito nobre, mas duvido muito que seja isso que está a incomodar-te - interpôs o Brutal. - Estou convencido de que a tua atitude se deve mais ao que aconteceu ao Del. De uma maneira qualquer, pretendes restabelecer o equilíbrio das coisas.

E ele tinha toda a razão. Claro que tinha. Eu conhecia a Melinda Moores melhor do que eles; porém, depois de tudo analisado, isso não bastava para lhes pedir que arriscassem os seus empregos por ela... e possivelmente também a sua liberdade. E já agora, o mesmo se aplicava ao meu emprego e à minha liberdade. Ao fim e ao cabo, eu tinha dois filhos, e a última coisa que desejava que viesse a suceder neste mundo de Deus era que a minha mulher fosse obrigada a escrever aos filhos para lhes comunicar que o pai ia ser julgado por... bem, porque é que seria? Não sabia. Por ajudar a instigar uma tentativa de fuga, parecia-me ser a razão mais plausível.

No entanto, a morte do Eduard Delacroix tinha sido o ac~ mais hediondo e ultrajante que eu presenciara ao longo de toda a minha vida - e não estou a referir-me apenas à minha vida profissional, mas sim à totalidade da minha existência - e eu tomara parte nele. Todos nós havíamos tomado uma vez que permitíramos que o Percy Wetmor tivesse continuado com as mesmas funções depois de sabermos que ele não possuía o mínimo de capacidades para trabalhar num lugar como o Bloco E. Sem objecções entráramos naquele jogo. Até o director Moores tinha a sua quota-parte de responsabilidade. "Os tomates dele vão ser estorricados quer o Wetmore faça parte do grupo ou não", dissera ele na altura; talvez isso não devesse causar-nos grandes apreensões, em virtude dos actos que o pequeno franciú cometera, mas, no fim, o Percy tinha feito muito mais do que estorricar os tomates do Del; fizera explodir os globos oculares para fora das órbitas e pegara-lhe fogo à cara. E porquê? Porque o Delacroix cometera seis assassínios? Não. Porque o Percy havia mijado nas calças e o pequeno cajun tivera a ousadia de se rir dele. Nós havíamos tomado parte num acto monstruoso e o Percy sair-se-ia daquilo com toda a impunidade. Ia ser transferido para o Briar Ridge, tão feliz como um gato ao sol num dia de Inverno, e ali teria um hospício cheio de lunáticos, sobre quem poderia exercer todas as suas sádicas crueldades. Não havia nada que pudéssemos fazer para impedir isso, mas talvez não fosse demasiado tarde para lavarmos alguma da sujidade que nos conspurcava as mãos.

- Na minha igreja classificam isto de expiação em vez de restabelecimento do equilíbrio - disse eu -, mas acho que no fim vem tudo a dar no mesmo.

- Acreditas realmente que o Coffey poderia salvá-la? - perguntou o Dean numa voz suave e perplexa... - Fazendo apenas.., o quê?... Sugando-lhe o tumor cerebral que lhe mina a cabeça? Como se fosse o... o caroço de um pêssego?

- Acho que seria capaz. Como é evidente, não é certo, mas depois do que ele fez comigo... e com o Mister Jingles... Não há duvida de que o rato estava bastante esborrachado - disse o Brutal.

- Mas estaria ele disposto a fazê-lo? - perguntou Harry ensimesmado. - Estaria?

- Se estiver ao seu alcance, sem dúvida que sim - repliquei.

- Porquê? O Coffey nem sequer a conhece!

- Porque essa é a sua missão. Foi com essa finalidade que Deus o criou.

O Brutal olhou ostensivamente em redor, recordando-nos que faltava alguém.

- E quanto ao Percy? Pensas que ele vai permitir que isto vá para a frente? - perguntou ele.

Aquela questão levou-me a contar-lhes o que eu planeara em relação ao Percy. Quando terminei, o Harry e o Dean olhavam para mim estupefactos e o Brutal esboçava um sorriso relutante de admiração.

- Bastante audacioso, Irmão Paul! - exclamou ele. Quase consegues cortar-me a respiração!

- Mas seria uma façanha e tanto! - observou o Dean quase num murmúrio, após o que desatou a rir sonoramente,, batendo palmas, como se fosse um garoto. - Quer dizer,

vuu.., duu... dü... oh... duu e macacos me mordam! - É preciso não esquecer que o Dean tinha um interesse muito especial na parte do plano que envolvia o Percy (ao fim e ao cabo, este teria permitido que o Dean morresse devido à sua inércia quando o Dean fora atacado pelo Wharton).

- Sim, mas... e depois? - perguntou o Harry. Parecia sentir-se acabrunhado, mas os seus olhos atraiçoaram-no; cintilavam, indicando que ele desejava ser convencido. - O que é que acontece depois?

- Costuma-se dizer que homem morto não ganha soldo - resmungou o Brutal. Lancei-lhe um rápido olhar para ter a certeza de que ele estava a brincar.

- Acho que ele vai ficar de bico calado - disse eu. - A sério?! - O Dean parecia céptico. Tirou os óculos do nariz e começou a limpar as lentes. - Convençam-me~ - Em primeiro lugar, ele nunca saberá o que realmente sucedeu... Vai julgar-nos pela sua bitola, pensando que se tratou apenas de uma partida. Em segundo lugar... e mais impor' tante ainda, ele terá receio de dizer seja o que for. É com isso que éu estou efectivamente a contar. Nós dizemos-lhe que se começar a escrever cartas e a fazer telefonemas também nós começaremos a escrever cartas e a fazer alguns telefonemas a respeito da execução - disse o Harry.

E da forma como ele ficou paralisado quando o Wharton atacou o Dean - interveio o Brutal. - Acho que a possibilidade de as pessoas poderem vir a tomar conhecimento destes assuntos é o que o Percy Wetmore teme mais. - Acenou lentamente com a cabeça, pensativo. - É capaz de resultar. Mas, Paul... não faria mais sentido levar Mistress Moores até junto do Coffey, do que o Coffey a Mistress Moores? Poderíamos tratar do Percy da forma que delineaste, e fazíamo-la passar pelo túnel, em lugar de ser o Coffey a percorrer esse caminho.

- Essa opção nunca poderá vir a ser concretizada - declarei com um sacudir de cabeça descrente. - Nem daqui a um milhão de anos.

- Por causa do director Moores?

- Exactamente. Ele é teimoso que nem uma mula. Se levarmos o Coffey a casa dele acho que ficará tão surpreendido que pelo menos não impedirá que ele faça uma tentativa. Caso contrário...

- O que é que estás a pensar em utilizar em termos de veículo? - inquiriu o Brutal.

- O meu primeiro pensamento foi a diligência - respondi -, mas nunca conseguiríamos tirá-la do pátio sem dar nas vistas, além de que toda a gente que habita num raio de trinta quilómetros conhece bem o seu aspecto. Calculo que talvez possamos ir no meu Ford.

- Calcula outra vez - disse o Dean, voltando a colocar os óculos no nariz. - Ainda que o despisses todo e lhe barrasses o corpo com banha, nunca conseguirias meter o John Coffey dentro do teu automóvel, nem com a ajuda de uma calçadeira. Estás tão acostumado a olhar para ele que te esqueceste do seu tamanho.

Não tive resposta para aquilo. Grande parte da minha atenção nessa manhã fora dedicada ao problema que o Percy representava - assim como ao problema menor, mas não menos considerável, que era o Bill "Selvagem" Wharton. Naquele momento começava a compreender que o meio de transporte não iria ser tão simples quanto eu tinha esperado.

O Harry Terwilliger agarrou no que restava da sua segunda sanduíche observou-a durante uns segundos e voltou a pousá-la no prato.

- Se decidíssemos levar a cabo esta coisa de loucos - disse ele -,imagino que poderíamos servir-nos da minha camioneta de caixa aberta. Colocá-lo-íamos na parte de trás. A essa hora da noite não há muita gente na estrada. Estamos a falar de uma hora por volta da meia-noite, não é verdade? - Sim - confirmei.

- Vocês estão a esquecer-se de um pequeno pormenor interveio o Dean. - Eu sei que o Coffey tem andado muito sossegado desde que chegou ao bloco, está sempre deitado na tarimba a choramingar constantemente, mas a realidade é que é um assassino. E também um homem gigantesco. Se por acaso decidisse que desejava fugir pela parte de trás da camioneta do Harry, a única maneira de o impedirmos seria matá-lo. E um tipo como ele exigiria uma grande quantidade de tiros, até mesmo com uma arma de calibre quarenta e cinco. Suponhamos que não éramos capazes de o abater? E que ele tinha oportunidade de matar alguém? Eu não gostava nada de perder o emprego e passar uma temporada na penitenciária... Tenho mulher e filhos que dependem de mim para comer, mas não me parece que odiaria qualquer destas coisas tanto como o ter na consciência o peso de outra garotinha morta.

- Isso não virá a acontecer - declarei.

- Como é que podes estar assim tão certo?

Não dei resposta imediata àquela pergunta. Não sabia bem por onde havia de começar. Eu soubera de antemão que aquela questão acabaria por vir à baila, claro que sim, mas o certo é que continuava sem saber como dizer-lhes o que sabia.; Foi o Brutal quem veio em meu auxílio.

- Não acreditas que ele tenha feito aquilo, pois não, Paul? - perguntou-me ele com uma expressão de incredulidade. - Achas que o idiota gigante está inocente.

- Tenho a certeza absoluta que está inocente - repliquei.

- Como é que podes ter tanta certeza?

- Existem duas coisas - respondi. - Uma delas é o meu sapato. - Debrucei-me sobre a mesa e comecei a falar.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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