Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
À ESPERA DE UM MILAGRE
Parte I
AS DUAS RAPARIGAS MORTAS
Isto aconteceu em 1932, quando a penitenciária estadual ainda se situava em Cold Mountain... Bem como, é claro, a cadeira eléctrica.
Os reclusos costumavam dizer piadas açerca da cadeira, da forma que as pessoas têm por hábito troçar sempre daquilo que lhes incute medo, sem que consigam afastar-se dessas mesmas coisas. Chamavam-lhe "Velha Faísca" ou "Grande Fritadeira". Diziam piadas relativas à conta da electricidade, e como o director Moores iria cozinhar o seu peru do jantar do Dia de Acção de Graças desse Outono, uma vez que a mulher, Melinda, se encontrava demasiado doente para poder cozinhar.
No entanto, para os que-eram realmente obrigados a sentar-se nessa cadeira, o humor desaparecia rapidamente da situação. Durante o período de tempo que passei em Cold Mountain, tive oportunidade de assistir a setegta e oito execuções (este é um número em relação ao qual nunca me senti confundido; recordar-me-ei dele até mesmo no meu leito de morte) e tenho a impressão de que; para a maiória desses homens, a verdade do que estava a acontecer-lhes penetrava finalmente nas suas mentes no momento em que sentiam os tornozelos a serem presos ao carvalho sólido das pernas da Velha Faísca. Era nessa altura que se instalava a percepção (que se podia ler nos seus olhos e que se traduzia numa expressão de frio desalento) de que as próprias pernas haviam chegado ao termo da sua carreira. O fluxo sanguíneo continuava a deslizar pelos seus organismos, os músculos continuavam fortes; no entanto, estavam acabados, jamais voltariam a percorrer outro quilómetro pelo campo, tão-pouco voltariam a ter a oportunidade de dançar com uma rapariga num baile no celeiro. Os clientes da Velha Faísca tomavam conhecimento das suas mortes dos artelhos para cima. Havia um saco de seda negra que lhes cobria a cabeça, depois de terem concluído os seus derradeiros comentários incoerentes e em grande parte desarticulados. Em princípio, aquilo era em seu beneficio; eu sempre estive convencido de que na realidade se destinava a nós, para nos impedir de presenciar a pavorosa vaga de terror que se espelhava nos seus olhos quando percebiam que estavam prestes a morrer com os joelhos dobrados.
Em Cold Mountain não existia um corredor da morte, apenas o Bloco E, distanciado dos outros quatro e tendo mais ou menos um quarto do seu tamanho, construído em tijolo em vez de madeira, com um telhado horrível de metal na sua cor natural, que durante o sol do Verão cintilava como se fosse um globo ocular em delírio. No interior, havia seis celas, três de cada lado de um amplo corredor central; cada uma delas tinha quase o dobro do tamanho das celas existentes nos outros quatro blocos. Também eram ocupadas por um único recluso. Umas acomodações fantásticas, levando em consideração que se tratava de uma prisão (especialmente durante a década de 30); todavia, os prisioneiros tê-las-iam trocado de bom grado por qualquer cela nos outros quatro blocos. Acreditem em mim, eles não teriam mostrado a mínima hesitação.
Nunca houve um único período durante todos os anos que ocupei o lugar de superintendente de bloco celular em que essas seis celas estivessem ocupadas ao mesmo tempo - graças a Deus pelos pequenos favores. Quatro era o número máximo, negros e brancos à mistura (em Cold Mountain não se verificava qualquer tipo de segregação racial entre os mortos-vivos); aquele lugar era um pequeno pedaço do inferno. Um destes reclusos era uma mulher, a Beverly McCall. Era tão negra como o ás de espadas e de uma beleza tão grande como o pecado que nunca temos a coragem de cometer. Suportara seis anos de espancamentos por parte do marido, embora não estivesse disposta a aguentar a sua traição por um só dia que fosse. Na noite em que descobriu que ele a enganava, fez uma espera ao infeliz Lester McCall, conhecido pelos amigos (e, presumivelmente, pela sua amante de duração extremamente curta) pelo nome de Cutter, tendo-se colocado ao cimo das escadas que davam acesso ao apartamento por cima da barbearia do marido. Esperou até ele ter o sobretudo meio despido e deixou cair as suas entranhas infiéis nos sapatos de duas tonalidades que ele usava. Serviu-se de uma das navalhas do próprio Cutter para o esquartejar. Duas noites antes do seu encontro marcado com a Velha Faísca, chamou-me à sua cela para me dizer que fora visitada em sonhos pelo seu pai espiritual africano. Este dera-lhe instruções para que se libertasse do seu nome de escrava, a fim de morrer com o seu apelido de mulher livre, Matuomi. Foi esse o seu pedido, que a sua sentença de morte fosse lida com o nome de Beverly Matuomi. Imagino que o seu pai espiritual não lhe tenha atribuído um nome próprio, ou pelo menos um que ela pudesse identificar. Eu disse-lhe que sim, que não haveria qualquer problema em satisfazer o seu pedido. Uma das coisas que aqueles anos em que trabalhei como mandão-chefe me ensinaram foi nunca recusar o pedido de um condenado, a menos que a isso fosse absolutamente forçado. No caso de Beverly Matuomi, tal não fez a mínima diferença, fosse de que maneira fosse. O governador do estado telefonou no dia seguinte, por volta das três da tarde, comunicando que a pena havia sido comutada para prisão perpétua, a ser cumprida nas instalações penais para mulheres de Grassy Valley - todas penais e sem pénis, como costumávamos dizer nessa época. Deixem-me que vos confesse que fiquei bastante satisfeito por ver o traseiro arredondado da Bex seguir para a esquerda, em vez de para a direita, quando ela se apresentou junto da minha mesa de trabalho.
Mais ou menos trinta e cinco anos mais tarde - tinham de ser pelo menos três décadas e meia - li esse nome na página do jornal onde eram publicados os anúncios de óbito, por baixo da fotografia de uma senhora de raça negra, de faces magras e com uma nuvem de cabelo encanecido, que usava uns óculos com armações de osso. Era a Beverly. Tinha passado os últimos dez anos da sua vida em liberdade, de acordo com o que o óbito dizia, e conseguira salvar a biblioteca da pequena cidade de Raines Falls quase sem ajuda. Também ensinara catequese aos domingos, tendo sido muito acarinhada naquela cidade dos confins do mundo. BIBLIOTECÁRIA MORRE DE ATAQUE CARDÍACO, rezava o cabeçalho, e abaixo deste, num tipo mais pequeno, como se tivesse sido um pensamento que ocorrera no último minuto: Cumpriu pena durante mais de vinte anos por homicídio. Só os olhos, grandes e cintilantes por detrás dos óculos com armações de osso, é que eram os mesmos. Os olhos de uma mulher que até mesmo aos setenta anos não hesitaria em retirar uma navalha do líquido desinfectante azul, caso a necessidade lhe parecesse premente. Sabemos como são os assassinos, ainda que acabem a sua vida como velhinhas que ocupam a posição de bibliotecárias em pequenas cidades meio adormecidas. Pelo menos temos a obrigação de saber, quando passámos tanto tempo a vigiar homicidas, tal como eu próprio. Só houve uma ocasião em que questionei a natureza das minhas funções. Estou convencido de que foi isso que me levou a escrever esta narrativa.
O amplo corredor no centro do Bloco E tinha o chão revestido a linóleo, da tonalidade de limas velhas; assim, o que nas outras prisões se chamava "Última Milha", na de Cold Mountain era conhecido por "Milha Verde". Calculo que teria a extensão de sessenta passos de sul a norte, desde um extremo ao outro. Ao fundo situava-se a cela do isolamento. Na extremidade do topo havia uma espécie de entroncamento. Uma viragem à esquerda significava a vida - isto é, no caso de se apelidar de vida aquilo que se passava no pátio, onde o sol incidia, inclemente, enquanto se faziam os exercícios fisicos; grande número dos reclusos vivia ali ao longo de muitos anos, sem que se lhes detectassem quaisquer efeitos secundários aparentes. Ladrões e piromaníacos, criminosos que haviam incorrido em ofensas sexuais, todos eles falavam entre si do que tinham a falar, davam as suas caminhadas e procediam às suas pequenas transacções.
No entanto, uma viragem à direita e tudo era inteiramente diferente. Em primeiro lugar, ia-se ao meu gabinete (onde a alcatifa também era esverdeada, uma coisa que eu pensava constantemente em alterar, mas que por qualquer razão acabei sempre por nunca fazer), tendo a pessoa em questão de se apresentar em frente da minha secretária, a qual era flanqueada pela bandeira americana à esquerda e pela bandeira do estado à direita. Na parede mais afastada existiam duas portas. Uma dava acesso a uns pequenos lavabos que eram utilizados por mim e pelos guardas prisionais do Bloco E (por vezes, até mesmo o director Moores se servia daquela casa de banho); a outra abria para uma espécie de sala de arrecadação. Era para ali que se acabava por ir, no caso de se ter de percorrer a Milha Verde.
Tratava-se de uma porta pequena - sempre que eu a transpunha era obrigado a baixar a cabeça, e o John Coffey foi forçado a sentar-se para poder transpô-la. Tinha-se acesso a um pequeno patamar, descendo-se depois três degraus em cimento até a um chão de madeira. Era uma sala esquálida e sem aquecimento que tinha um telhado de metal, exactamente igual ao do bloco que lhe ficava adjacente. Durante o Inverno, fazia ali frio suficiente para se poder observar a respiração a condensar-se, mas era sufocante ao longo do Verão. Durante a execução do Elmer Manfred - o que estou em crer ocorreu em Julho ou Agosto de 1930 - tivemos nove testemunhas que desfaleceram.
No lado esquerdo da arrecadação - uma vez mais - existia a vida. Ferramentas (todas presas em estruturas cobertas por correntes, como se fossem carabinas em vez de pás e picaretas), artigos secos, sacos de sementes que na Primavera eram semeadas nos jardins da penitenciária, caixas de papel higiénico, grades com materiais para a serralharia da pnsão... até mesmo sacos de cal para marcar as linhas do campo de basquetebol e de futebol - os condenados costumavam jogar naquilo que era conhecido por "Pastagem", e as tardes de Outono eram ansiosamente aguardadas em Cold Mountain.
À direita - uma vez mais - a morte. A própria Velha Faísca instalada num estrado de tábuas no canto sudeste da arrecadação, com as suas pernas de carvalho sólido, braços largos também de carvalho que haviam absorvido o suor aterrorizado de muitos homens durante os derradeiros minutos das suas vidas, e o capacete dé metal, o qual habitualmente se encontrava pendurado nas costas da cadeira de uma forma a dar nas vistas, qual capacete de robô num livro de banda desenhada do Buck Rogers. Dele saía um cabo eléctrico, que passava através de um orifício circular recortado num bloco de cimento da parede, que se encontrava por detrás da cadeira. Ao lado havia um balde de zinco galvanizado. Caso se olhasse para o seu interior, ver-se-ia um círculo de esponja cortado exactamente à medida para poder acomodar o capacete de metal. Antes de uma execução, era mergulhado em salmoura, para que a passagem da corrente directa, através do cabo eléctrico e da esponja, se fizesse nas melhores condições e entrasse no cérebro do condenado.
1932 foi o ano do John Coffey. Os pormenores poderiam ser encontrados nos jornais, onde continuariam para alguém interessado poder consultá-los - alguém que tivesse mais energia do que um homem já muito envelhecido que definhava no fim da vida, num lar da Jórgia para a terceira idade. Recordo-me bem de que esse Outono foi de muito calor; extremamente quente. Um mês de Outubro que mais se assemelhara a Agosto, e a mulher do director, Melinda, esteve internada durante algum tempo no hospital de Indianola. Também foi nesse Outono que tive a maior infecção urinária da minha vida; não foi tão grave que me obrigasse a ser também hospitalizado, embora quase suficientemente grave para que eu desejasse a morte de cada vez que tinha de verter águas. Foi o Outono do Delacroix, o pequeno franciú calvo que tinha um rato, aquele que costumava aparecer no Verão e que fazia aquele truque engraçado com o carretel. Mas, acima de tudo, aquele foi o Outono em que o John Coffey deu entrada no Bloco E, tendo sido condenado à morte pelo crime de estupro e assassínio das gémeas Detterick.
Durante cada um dos turnos havia quatro ou cinco guardas no bloco, apesar de muitos deles serem temporários. O Dean Stanton, o Harry Terwilliger e o Brutus Howell (os homens chamavam-lhe "Brutal", mas isso não passava de uma simples brincadeira, ele não faria mala uma mosca, salvo se a isso fosse forçado, a despeito da sua constituição física) já estão todos mortos, o mesmo acontecendo com o Percy Wetmore, o qual, efectivamente, era brutal.., e estúpido. A presença do Percy no Bloco E não tinha qualquer razão de ser, pois era um local onde um carácter malévolo se mostrava inútil e por vezes perigoso; porém, como ele tinha laços familiares por afinidade com o director, fora autorizado a trabalhar ali.
Foi o Percy Wetmore quem conduziu o Coffey até ao bloco soltando o supostamente tradicional grito de "Homem morto a caminhar! Homem morto a caminhar, a passar por aqui!"
O tempo continuava a estar tão quente quanto as dobradiças das portas do inferno, fosse ele Outubro ou não. A porta que dava acesso ao pátio onde tinham lugar os exercícios físicos abriu-se, deixando entrar uma torrente de grande luminosidade, acompanhada do maior homem que alguma vez me foi dado ver, com a excepção de alguns tipos que jogam basquetebol e que se vêem no televisor que temos no "Centro Recreativo" desta casa para cabeçudos atoleimados, onde eu acabei por vir parar. Estava preso com correntes que lhe manietavam os braços junto ao peito do tamanho de um barril de água; tinha grilhetas nos tornozelos, arrastando uma corrente que as unia e a qual produzia o som de uma cascata de moedas, enquanto era arrastada pelo corredor de linóleo cor de lima que existia entre as celas. O Percy Wetmore mantinha-se num dos lados do homem, e no outro o escanzelado minorca do HaiTy Terwilliger; pareciam crianças a caminhar junto de um urso que acabara de ser capturado. Até o Brutus Howell dava a impressão de ser um garoto junto do Coffey, e não esqueçamos que o Brutal media quase dois metros e era igualmente entroncado, um jogador de futebol norte-americano que jogava ao ataque, o qual ganhara uma bolsa para poder jogar pela Universidade Estadual da Luisiana, até que chumbou e foi obrigado a regressar a casa, de volta aos sulcos da terra.
O John Coffey era um indivíduo de raça negra, tal como o era a maior parte dos homens que passavam algum tempo no Bloco E antes de serem executados ao colo da Velha Faísca, e tinha mais de dois metros. No entanto, não era tão esguio como os tipos do basquetebol que apareciam na televisão - era largo de ombros e possuía um tórax portentoso, vendo-se os músculos fortes por todo o corpo. Tinham-lhe dado o maior par de calças de ganga que havia em armazém, embora a bainha lhe desse pelo meio da barriga das pernas entroncadas e cheias de cicatrizes. A camisa mantinha-se aberta até abaixo do peito, enquanto as mangas acabavam algures nos antebraços. Numa das suas mãos enormes trazia um boné, o que até era melhor; caso estivesse colocado na sua cabeça calva, que mais parecia uma bola de mogno luzidio, ter-se-ia assemelhado ao boné que os macacos dos tocadores de realejo costumavam usar, com a única diferença que seria azul em vez de vermelho. Parecia capaz de rebentar as correntes que o manietavam com tanta facilidade como qualquer pessoa poderia rasgar as fitas de um presente de Natal; todavia, quando se olhava para o seu rosto, sabia-se que não faria nada que se assemelhasse a isso. Não tinha uma expressão lorpa - embora essa fosse a opinião que o Percy havia formado; não foi preciso muito tempo para o Percy ter começado a chamar-lhe mentecapto - mas dava a impressão de que se sentia perdido. Continuava a olhar em seu redor como se tentasse compreender onde é que se encontrava. Talvez mesmo para descobrir quem ele próprio era. O meu primeiro pensamento foi de que ele se parecia com um Sansão negro.:. com a diferença de que seria depois de Dalila lhe ter rapado a cabeça com a sua pequena mão infiel, tendo-lhe extorquido todo o gosto pela vida.
- Homem morto a caminhar! - troava a voz do Percy, arrastando o homem de aspecto ursino pela algema que lhe rodeava o pulso, como se acreditasse realmente que tinha poder para o deslocar, ainda que o Coffey decidisse que não desejava fazer mais qualquer movimento de sua livre vontade. O Harry não fez o mínimo comentário, embora exibisse uma expressão de constrangimento. - Homem morto...
- Já chega dessa conversa - atalhei eu da cela que fora destinada ao Coffey; aguardava sentado em cima da sua tarimba. É claro que eu fora avisado da sua chegada, estava ali para lhe dar as boas-vindas e me responsabilizar por ele, mas não tinha a mais pequena noção do seu tamanho até o ver. O Percy brindou-me com um olhar que dizia que todos nós sabíamos que eu era um idiota (excepto, como é evidente, o mentecapto gigantesco, o qual só sabia violar e assassinar rapariguinhas), mas não disse nada.
Os três detiveram-se do lado de fora da porta da cela, que se mantinha aberta em cima das calhas por onde corria. Acenei para o Harry que me perguntou:
- Tem a certeza de que quer ficar ali dentro com ele, chefe? - Não haviam sido muitas às vezes em que eu tivera oportunidade de ver o Harry dar mostras de nervosismo; ele mantivera-se firmemente ao meu lado aquando dos tumultos que tinham ocorrido havia seis ou sete anos, sem nunca ter vacilado, até mesmo quando começaram a circular rumores de que alguns dos amotinados possuíam armas... Todavia, naquele momento, não conseguia ocultar o nervosismo que o invadia.
- Tencionas criar-me problemas, matulão? - perguntei, continuando sentado à beira da tarimba e tentando não deixar transparecer o quanto me sentia um desgraçado: a infecção urinária que mencionei anteriormente ainda não tinha atingido a gravidade que mais tarde veio a ter, mas deixem que vos diga que não era nenhum piquenique na praia.
O Coffey abanou lentamente a cabeça - uma vez para a esquerda e outra para a direita, parando em seguida ao meio. Logo que os seus olhos me encontraram nunca mais voltaram a largar-me.
O Harry segurava numa pequena prancha de madeira, à qual estavam presos os impressos referentes à admissão do Coffey.
- Entrega-lhe os papéis - ordenei eu ao Harry. - Coloca-os na mão dele.
O Harry fez como eu o havia instruído. O gigantesco rafeiro aceitou a papelada como se fosse um sonâmbulo.
-- Agora entrega-mos, matulão - acrescentei, e o Coffey obedeceu, com as correntes a chocalharem e a arrastarem. Para transpor a porta da cela, foi obrigado a vergar a cabeça.
Com o olhar percorri-o de alto a baixo, para poder abarcar toda a sua estatura, certificando-me de que não se tratava de uma ilusão de óptica. Era real: um pouco acima de dois metros de altura. O peso que fora indicado rondava os cento e quarenta quilogramas, mas acho que era apenas uma estimativa; deveria pesar uns cento e sessenta quilos. Por baixo do espaço reservado às cicatrizes e demais marcas de identificação, via-se uma palavra em letras de imprensa, na escrita laboriosa do Magnusson, o antigo prisioneiro de confiança que trabalhava nos registos: Numerosas.
Ergui o olhar. O Coffey tinha-se deslocado um pouco para um dos lados, o que me permitia ver o Harry de pé do outro lado do corredor, em frente da cela do Delacroix - este era o nosso único encarcerado no Bloco E, na altura em que o Coffey chegou. O Del era um homem esguio com uma acentuada calvície, exibindo a expressão preocupada de um contabilista que sabia que o desfalque que cometera seria descoberto dentro em pouco. O rato que ele domesticara encontrava-se sobre um dos seus ombros.
O Percy Wetmore mantinha-se encostado à ombreira da cela que acabara de ser atribuída ao John Coffey. Empunhava o bastão de nogueira que retirara de uma espécie de coldre feito de encomenda onde costumava mantê-lo, batendo-o contra a palma da mão como um homem que tem um brinquedo e anseia poder utilizá-lo. De súbito foi-me impossível suportar a sua presença ali. Talvez isso se devesse ao calor tão anormal para aquela época do ano, talvez à infecção urinária que me provocava um ardor nas virilhas, e tornava insuportável a comichão por baixo da roupa interior de flanela, talvez ao facto de eu saber que o estado me havia enviado um homem de raça negra, à beira da idiotice, para que eu o executasse, e que o Percy estava desejoso por poder trabalhá-lo um pouco antes que tal viesse a acontecer. Provavelmente, eram todas estas coisas. Fosse o que fosse, deixei de me preocupar com as . ligações políticas do Percy durante algum tempo.
-Percy - disse. - Estão a mudar de casa na enfermaria.
- O Bill Dodge está encarregado dessa tarefa...
- Eu sei - acrescentei. - Mas vai dar-lhe uma ajuda. - Isso não faz parte das minhas funções - retorquiu o Percy, renitente. - Este gigaparvalhado é que faz. - O Percy utilizava este termo para troçar com os grandes; uma combinação de gigante e aparvalhado. Invejava os homens de estatura elevada e entroncados. Não era escanzelado como, por exemplo, o Harry Terwilliger, mas era atarracado. Um tipo que se assemelhava a uma espécie de galo de capoeira, o género que gostava de provocar brigas, muito em especial quando as coisas não poderiam deixar de lhe correr de feição. E vaidoso no que dizia respeito ao cabelo. Mal conseguia manter as mãos afastadas da cabeleira.
- Nesse caso, já fizeste o que tinhas a fazer - acrescentei. - Vai já para a enfermaria.
O beiço inferior esboçou um trejeito de amuo. O Bill Dodge e os seus homens estavam a mudar caixas e pilhas de lençóis, até mesmo as camas; toda a enfermaria iria ser instalada num novo edificio situado na ala ocidental da prisão. Trabalho esforçado que implicava carregar coisas pesadas. O Percy Wetmore não queria ter nada a ver com aquele género de tarefas.
- Eles já têm todos os homens de que necessitam - insistiu.
- Nesse caso, vai até lá e faz de chefe - repliquei, erguendo a voz. Reparei que o Harry se retraía, embora eu não tivesse prestado atenção a isso. Se o governador do estado ordenasse ao director Moores que me despedisse por eu ter feito ondas onde não devia, quem é que o Hal Moores colocaria no meu lugar? O Percy? Isso teria muitíssima piada. - Francamente, Percy, não me interessa o que possas fazer, desde que saias daqui durante algum tempo.
Por breves instantes, pensei que ele iria defender a sua posição, provocando problemas a sério, com o Coffey a assistir a tudo aquilo, como se fosse o maior relógio para do domundo. O Percy, porém, optou por guardar o seu brinquedo na
de tarde - calculei que seria um dos temporários - mas o certo é que o Percy não deveria ter gostado muito da expressão no seu rosto, pois disse numa voz rosnada quando passou pelo homem:
- Tira esse sorriso estúpido da tua cara de merda ou sou eu quem o fará por ti. - Ouviu-se um entrechocar de chaves, uma momentânea vaga de luminosidade veio do pátio de recreio, e depois o Percy Wetmore desapareceu, pelo menos de momento. O rato do Delacroix correu de um ombro ao outro do pequeno franciú, com as cerdas dos bigodes a fremirem.
- Está sossegado, Mister Jingles -= disse o Delacroix, ao que o rato se deteve no seu ombro esquerdo, como se tivesse compreendido o que lhe fora dito. - Deixa-te estar quieto e sossegado. - No sotaque cajun' do Delacroix, as palavras adquiriam a entoação exótica de um estrangeirismo.
- Vai descansar, Del - disse eu de forma sucinta. - Vai-te deitar. Este assunto também não te diz respeito.
Ele fez como lhe disse. Tinha violado e morto uma rapariga e deixara o corpo atrás do prédio onde ela vivia, depois de o ter regado com querosene e de lhe ter chegado fogo na esperança de conseguir eliminar as provas incriminatórias do seu crime. O fogo acabou por se propagar até ao próprio edifício, envolvendo-o em chamas, e morreram mais seis pessoas, entre as quais duas crianças. Aquele era o único crime que havia cometido, não passando agora de um homem de maneiras brandas com um rosto preocupado, uma coroa calva e uns cabelos compridos que lhe chegavam ao colarinho da camisa. Dentro de pouco tempo, iria sentar-se na Velha Faísca, e esta poria fim aos seus dias... No entanto, o que o levara a cometer aquele crime pavoroso já desaparecera e agora encontrava-se estendido em cima da sua tarimba, permitindo que o seu pequeno companheiro lhe corresse pelas mãos enquanto soltava pequenos guinchos. De certa forma, aquilo era o pior de tudo: a Velha Faísca nunca incinerava o que se encontrava dentro deles, e as drogas com que os injectam hoje em dia não conseguem adormecer isso. Desocupa-se o corpo, a alma salta para dentro de qualquer outra pessoa, deixando-nos a nós a tarefa de matar as cascas secas que, de qualquer forma, não estão realmente vivas.
Nome que se dá aos descendentes dos colonizadores franceses do estado da Luisiana. (N. da T.)
Concentrei a minha atenção no homem gigantesco.
- Se eu deixar que o Harry te liberte dessas correntes, prometes portar-te bem?
Ele acenou afirmativamente. Um gesto que era como o seu abanar de cabeça: para baixo, para cima, de volta ao centro. Os seus olhos estranhos fitavam-me. Neles reflectia-se uma espécie de paz, mas não o género em que eu tivesse a certeza de poder confiar. Com o dedo dobrado indiquei ao Harry que se aproximasse, o que ele fez, passando a soltar as correntes. Não mostrou o mais pequeno receio, até mesmo quando se ajoelhou entre as pernas do Coffey, grossas como troncos, a fim de abrir as grilhetas que lhe prendiam os artelhos, o que até certo ponto me tranquilizou. Fora a presença do Percy que enervara o Harry, e eu confiava nos instintos deste último. Confiava nos instintos de todos os meus homens no Bloco E, excepto nos do Percy.
Tenho sempre um pequeno discurso para os recém-chegados ao bloco; todavia, senti-me a hesitar perante o Coffey: parecia-me tão anormal, e não apenas no tamanho.
Quando o Harry retrocedeu (o Coffey havia permanecido imobilizado durante toda a cerimónia da abertura das grilhetas e correntes, numa postura tão plácida como a de um percherão), soergui o olhar até ao novo homem que ficaria sob a minha responsabilidade, batendo na prancheta com o polegar. - Sabes falar, rapaz?
- Sim senhor, chefe, sei - respondeu ele. A sua voz era grave e tranquila, com uma entoação ribombaste. Trouxe-me à mente o motor de um tractor acabado de ser afinado. Não falava com a toada arrastada característica das gentes do Sul; no entanto, reparei posteriormente que o seu discurso, de certa forma, era estruturado à maneira de falar do Sul. Como se ele fosse oriundo dessa zona, mas não fosse de lá. Não dava a impressão de ser iletrado, embora não parecesse ter estudos. Na forma de se expressar, assim como em muitas outras coisas, o homem era um mistério. Acima de tudo, eram os seus olhos que me perturbavam - neles reflectia-se uma espécie de ausência beatífica, como se se encontrasse muito distante daquele lugar.
- Chamas-te John Coffey - continuei.
- Sim senhor, chefe, tal como a bebida, com a diferença de que não se escreve da mesma maneira'.
Trocadilho intraduzível: Coffey e coffee (café) são homófonas. (N. da T.)
. Isso quer dizer que és capaz de soletrar, não é verdade? Sabes ler e escrever?
. Só o meu nome, chefe - respondeu ele com grande serenidade.
Suspirei e comecei a apresentar-lhe uma versão encurtada do meu discurso habitual. Já tinha chegado à conclusão de que o homem não iria causar quaisquer problemas. Nisso eu estava tão certo quanto errado.
- O meu nomó é Paul Edgecombe - apresentei-me. - Sou o superintendente do Bloco E... o manda-chuva. Se pretenderes alguma coisa de mim, pergunta pelo meu nome. Se eu não estiver aqui, pede para falar com este outro homem, o Harry Terwilliger. Também poderás perguntar por Mister Stanton ou Mister Howell. Compreendes o que estou a dizer? O Coffey fez um gesto afirmativo com a cabèça.
- Quero ainda avisar-te de que não deves esperar obter aquilo que queres, a menos que nós decidamos que tens necessidade disso... Isto não é nenhum hotel. Continuas a perceber o que estou a dizer?
Uma vez mais, ele acenou que sim.
- Este lugar é muito tranquilo, matulão... não é como o resto da prisão. Aqui só estás tu e o Delacroix. Não serás obrigado a trabalhar; passarás a maior parte do teu tempo sentado. O que te dará a oportunidade de poder meditar nas coisas. - Para a maioria deles, aquilo era demasiado tempo, mas não partilhei este pensamento com o Coffey. - Quando tudo está em ordem, por vezes ligamos o rádio. Gostas de ouvir rádio?
Ele acenou que sim, ainda que num trejeito de dúvida, como se não tivesse a certeza daquilo que era um rádio. Mais tarde vim a descobrir que, até certo ponto, isso era verdade: o Coffey reconhecia as coisas quando voltava a vê-las; porém, durante o espaço de tempo em que estas não se encontravam. presentes, esquecia-as. Conhecia as personagens da série Our Gal Sunday, embora a recordação que guardava da acção do último episódio fosse bastante vaga.
- Se te portares como deve ser, comerás sempre a horas e nunca verás o interior da cela do isolamento ao fundo do corredor, nem serás obrigado a usar um desses casacões de lôna que abotoam nas costas. Poderás passar duas horas no pátio todas as tardes das quatro às seis, excepto aos sábados, quando o resto dos prisioneiros realiza os seus jogos de futebol. Se houver alguém que queira visitar-te, poderás receber as tuas visitas nas tardes de domingo. Tens alguém que queira ver-te, Coffey?
- Não tenho ninguém, chefe - retorquiu ele, abanando a cabeça.
- Bem, nesse caso, o teu advogado - adiantei.
- Acho que nunca mais vou vê-lo - proferiu. - Ele foi-me emprestado. Não me parece que seja capaz de descobrir o caminho até aqui, por entre estas montanhas.
Olhei-o atentamente, a fim de descortinar se estaria a tentar brincar comigo, mas não foi essa a impressão com que fiquei. Diga-se de passagem que não tinha esperado nada de diferente. Os recursos ao tribunal não se destinavam a gente da igualha do John Coffey, pelo menos nesses tempos; eles tinham direito ao seu dia em tribunal, após o que o mundo se esquecia da sua existência, até as pessoas lerem no jornal que um determinado fulano havia consumido, por volta da meia-noite, um pouco de electricidade a mais. Contudo, a realidade era que um homem que tivesse mulher, filhos ou amigos, e que aguardasse ansiosamente a sua visita aos domingos à tarde, era mais fácil de controlar, caso o controlo viesse a ser um problema. Naquele caso não seria essa a questão, o que era uma vantagem. Ele era tão diabolicamente grande...
Agitei-me um pouco em cima da tarimba, tendo chegado à conclusão de que era possível sentir-me um pouco mais confortável nas partes baixas se me levantasse, o que fiz. Numa atitude respeitosa, o Coffey retrocedeu, afastando-se de mim e entrelaçando as mãos à frente do corpo.
- O tempo que tiveres de passar aqui poderá ser fácil ou dificíl, matulão, tudo dependerá de ti. Estou aqui para te dizer que seria preferível que facilitasses as coisas a todos, porque, no fim, tudo isto irá dar ao mesmo. Tratar-te-emos de forma adequada, de acordo com o que venhas a merecer. Tens algumas dúvidas que queiras esclarecer?
- Depois da hora de dormir costumam deixar alguma luz ligada? - perguntou ele de imediato, como se só tivesse aguardado por uma oportunidade para poder fazer aquela pergunta.
Pestanejei, surpreendido. Todos os prisioneiros recém-chegados ao Bloco E já me haviam feito uma grande quantidade de perguntas estranhas - numa ocasião até me tinham perguntado qual o tamanho das mamas da minha mulher - mas nunca ninguém tinha abordado aquele assunto.
O Coffey esboçava um sorriso que reflectia um certo mal-estar, como se soubesse que íamos pensar que era um imbecil, embora lhe tivesse sido impossível evitar aquela pergunta. - É porque às vezes sinto-me um pouco assustado na escuridão - justificou ele. - Se estiver num lugar estranho. Olhei para ele - para o tamanho gigantesco daquele corpo - e senti-me estranhamente tocado. Não sei se sabem, mas eles conseguem comover-nos; não os víamos no seu pior, a malhar o ferro dos seus horrores, quais demónios numa forja.
- Sim, isto por aqui é bastante iluminado durante toda a noite - tranquilizei-o eu. - Metade das luzes a todo o comprimento da Milha está sempre ligada, desde as nove horas até às cinco da manhã. - Foi então que me dei conta de que ele não faria a mínima ideia do que eu estava a falar... Não deveria saber distinguir a Milha Verde do lodaçal do Mississipi, por isso indiquei: - No corredor.
Acenou com uma expressão de alívio. Não tenho bem a certeza se ele sabia ó que era um corredor; no entanto, podia ver as lâmpadas de duzentos watts nas suas armações de rede de arame.
Então, fiz algo que nunca fizera antes a nenhum prisioneiro: ofereci-lhe a minha mão. Ainda hoje não compreendo o que me levou àquela atitude. Talvez tenha sido o facto de ele me ter feito a pergunta sobre as luzes. Garanto-vos que o meu gesto fez com que o Harry Terwilliger pestanejasse de perplexidade. O Coffey agarrou-me na mão com uma ternura surpreendente, tendo esta desaparecido quase completamente no interior da sua, e foi tudo. Eu tinha recebido outra mosca na minha teia de aranha mortífera. Estávamos despachados.
Saí da cela. O Harry fez deslizar a porta na calha e fechou à chave as duas fechaduras. Durante um momento ou dois, o Coffey deixou-se ficar no mesmo lugar, como se estivesse indeciso quanto ao que fazer em seguida; depois, optou por se sentar em cima da tarimba, com as enormes mãos entre os joelhos, a cabeça vergada sobre o peito, como um homem que rezasse ou sofresse de um grande desgosto. Pouco depois, começou a dizer qualquer coisa na sua estranha voz, onde se adivinhava um sotaque que era quase do Sul. Ouvi-o com toda a clareza e, embora não estivesse muito a par daquilo que ele fizera - não é necessário que se tenha conhecimento das acções de um homem para poder alimentá-lo e cuidar dele, até chegar a hora em que terá de pagar a sua dívida para com a sociedade - senti-me percorrido por um calafrio.
- Não fui capaz de evitar, chefe - adiantou ele. - Tentei desfazer o que estava feito, mas já era demasiado tarde.
- Vais arranjar problemas com o Percy - advertiu-me o Harry quando começámos a percorrer o corredor até ao meu gabinete. O Dean Stanton, uma espécie de meu terceiro adjunto na cadeia de comando (na realidade, não tínhamos esse tipo de hierarquia, uma situação que o Percy Wetmore teria resolvido numa fracção de segundos), encontrava-se sentado por detrás da minha secretária, actualizando os processos, uma tarefa para a qual dava a impressão que eu nunca conseguia arranjar tempo. Quando entrámos, ele mal ergueu os olhos da papelada, limitando-se a dar um pequeno empurrão aos óculos com a ponta do polegar, regressando de imediato aos papéis.
- Tenho tido problemas com esse palerma desde que ele aqui entrou - redargui cautelosamente, afastando as calças da região . das virilhas com uma careta. - Ouviste o que ele gritou quando trouxe aquele gigante meio tolo cá para baixo? - Era impossível não ter ouvido - respondeu-me o Harry. - Não sei se sabes, mas eu encontrava-me presente. - Eu estava na retrete e ouvi-o na perfeição - interveio o Dean. Chegou uma folha de papel mais para junto de si, ergueu-a contra a luz de forma a que eu pudesse ver bem o círculo de café em cima das palavras dactilografadas e lançou-a para dentro do tabuleiro dos papéis. - "Homem morto a caminhar." Deve ter lido isso numa dessas revistas de que ele tanto gosta.
O que provavelmente fora o caso. O Percy Wetmore era um grande leitor da Argosy e da Stag, assim como da Men 's Adventure. Em cada uma dessas publicações havia sempre uma história passada na prisão, ou pelo menos era a impressão com que se ficava, e o Percy costumava lê-las com avidez, como um homem que se dedicasse a um trabalho de pesquisa. Parecia que tentava descobrir como é que deveria agir, e julgava que esse tipo de informação estaria contido naquelas revistas. O tipo começara a trabalhar ali depois de termos acabado com o Anthony Ray, o assassino do machado, e ainda não participara verdadeiramente numa execução, embora
já tivesse testemunhado uma delas do compartimento do quadro eléctrico. - - Ele tem conhecimentos - acrescentou o Harry. Gente influente. Vais ter de justificar porque correste com ele do bloco e de explicar ainda melhor porque é que esperaste que ele fizesse algum trabalho a sério.
- Eu nunca esperei isso - repliquei, e era verdade... embora houvesse albergado algumas esperanças. O Bill Dodge não era dos que deixava um homem ficar ao pé de si sem fazer nada, a olhar para quem trabalhava. - Neste momento estou mais interessado no matulão. Iremos ter alguns problemas com ele?
O Harry sacudiu a cabeça com grande determinação. - Ele esteve calado que nem um rato lá no tribunal do município de Trapingus - adiantou o Dean. Retirou do nariz os pequenos óculos sem aros e começou a limpar as lentes com a ponta do colete. - É claro que ele estava manietado com mais correntes do que aquelas que o Scrooge viu no fantasma do Marley, mas se quisesse poderia ter começado a dar pontapés a tudo o que tinha à sua frente. Não sei se sabes a quem é que me estou a referir, meu amigo.
- Sei muito bem - respondi, embora não soubesse. Mas acontece que detesto que o Dean Stanton me leve a melhor. - O homem é bem grandinho, não é verdade? - continuou Dean.
- De facto, é - concordei. - Monstruosamente grande. - O mais provável é termos de ajustar a Velha Faísca para o programa do Superassado para poder dar cabo do coiro do homem.
- Não te preocupes com a Velha Faísca - redargui distraidamente. - Ela faz com que os grandes se transformem em pequeninos.
O Dean apertou os lados do nariz, nas zonas onde se avistavam um par de manchas avermelhadas provocadas pelos óculos.
- Sim - disse ele com um acenar de cabeça. - Há alguma verdade no que acabaste de dizer.
- Algum de vocês sabe de onde é que ele veio antes de ter aparecido em... Teflon? - perguntei. - Foi em Teflon, não é verdade?
- Sim - anuiu o Dean. - Teflon, no município de Trapingus. Antes de ter aparecido por lá e de ter feito aquilo que fez, dá a impressão que ninguém sabe por onde é que andou. Imagino que andasse de um lado para o outro ao acaso. Talvez possas descobrir mais alguma coisa nos jornais da biblioteca da prisão, se estiveres realmente interessado. O mais provável é não os tirarem de lá até à próxima semana. - O Dean exibiu um esgar sorridente. - No entanto, é possível que tenhas de ouvir o teu amiguinho a gemer e a implicar no andar de cima.
- Seja como for, talvez vá dar só uma espreitadela - repliquei, e nessa mesma tarde foi exactamente o que fiz. A biblioteca da penitenciária situava-se nas traseiras do edifício, área que em breve estava destinada a transformar-se na oficina de reparação de automóveis - pelo menos era isso o que havia sido planeado. Na minha opinião, seriam mais uns dinheiros no bolso de alguém, mas o certo é que a Grande Depressão se tinha instalado entre nós, pelo que eu guardava as opiniões para mim próprio - da mesma maneira que deveria ter ficado de boca calada em relação ao Percy, mas acontece que por vezes um homem não é capaz de refrear aquilo que tem a dizer. Na maior parte das vezes, a boca de um homem arranja-lhe mais complicações do que o coiso alguma vez conseguiria causar-lhe. E em qualquer dos casos, o projecto da oficina nunca chegou a concretizar-se: na Primavera seguinte, as instalações da penitenciária mudaram-se para um local noventa e cinco quilómetros mais abaixo, à beira da estrada para Brighton. Calculei que isso se deveria a mais maquinações nos bastidores. Mais uns dinheiros que iriam parar à algibeira de alguém. Todavia, eu não tinha nada a ver com aquele assunto.
A administração ficara instalada num novo edifício, na ala oriental do pátio; a enfermaria também ia ser transferida para outro lugar (para começar, quem fora o grande labrego que tivera a ideia de instalar a enfermaria no primeiro piso? Aquilo era mais um dos mistérios da vida); a biblioteca continuava a manter-se parcialmente abastecida - não que alguma vez houvesse contido muito material de leitura - embora não se visse ninguém por ali. O velho edifício era uma espécie de caixa aquecida construída de sarrafos de madeira, encaixada entre os blocos A e B. As casas de banho destes últimos situavam-se nas traseiras da biblioteca, e aí pairava sempre um vago cheiro a urina, o que provavelmente seria a única razão que poderia justificar a mudança de instalações. A biblioteca tinha o traçado de um "L", não sendo muito maior do que o meu gabinete. Procurei uma das ventoinhas, mas estas já haviam sido todas retiradas. Ali dentro a temperatura deveria rondar os trinta e oito graus; quando me sentei, senti nas virilhas um latejar provocado pelo calor. Como se fosse um dente inflamado. Sei que é uma comparação absurda, levando em consideração a região do corpo a que estou a referir-me, mas era a única coisa que me ocorria para estabelecer uma comparação adequada. Aquela situação agravava-se bastante mais sempre que urinava ou depois de ter urinado, e acabara de fazer isso quando entrei naquele recinto.
Ao fim e ao cabo, havia outro tipo na biblioteca - um antigo prisioneiro de confiança, um homem esquelético, de nome Gbbons, que passava pelas brasas a um canto, tendo sobre as coxas um romance sobre o Oeste selvagem e a aba do chapéu a cobrir-lhe os olhos. O calor parecia não o incomodar, o mesmo acontecendo em relação aos resmungos, sons de passos pesados e o praguejar ocasional que vinham da enfermaria no andar de cima (onde deviam estar pelo menos cinco graus mais quente, e eu esperava que o Percy estivesse a saborear tal facto). Não incomodei o homem, tendo-me dirigido para a secção mais curta do "L,", onde se encontravam os jornais. Ocorreu-me que talvez tivessem levado o mesmo caminho das ventoinhas, apesar do que o Dean dissera. Verifiquei que isso ainda não tinha acontecido. O assunto das gémeas Detterick era bastante fácil de encontrar; fora notícia de primeira página desde que as investigações haviam tido início, em Junho, até ao julgamento em fins de Agosto, entrando por Setembro adentro.
Ao fim de pouco tempo, já eu me tinha esquecido do calor, dos passos que ecoavam vindos do andar de cima e do ressonar asmático do velho Gibbons. O pensamento daquelas duas rapariguinhas de nove anos, muito ao estilo das gémeas Bobbsey' - com os seus macios cabelos louros e sornsos irresistíveis - relacionado com o negrume da figura entroncada do Coffey era desagradável, mas impossível de ignorar. Dado o tamanho do homem, era fácil imaginá-lo a devorá-las, qual gigante de uma fábula. O que ele fizera era ainda pior do que isso, e tivera muita sorte por não ter sido linchado ali mesmo, na margem do rio. Isto é, no caso de se considerar uma sorte o facto de ele estar à espera de percorrer a Milha Verde, para acabar por se sentar no regaço da Velha Faísca.
O rei algodão fora deposto no Sul setenta anos antes de todas estas coisas terem acontecido, sem possibilidade de jamais voltar a ser rei, mas nesses anos da década de 30 havia atravessado uma pequena fase de revivalismo. Tinham deixado de existir plantações de algodão, embora houvesse quarenta ou cinquenta quintas prósperas que se dedicavam ao plantio do algodão, na região meridional do estado. Klaus Detterick era o proprietário de uma delas. De acordo com os padrões de sociedade que vigoravam nos anos 50, ele estaria apenas um furo acima do estado de pobreza; não obstante, segundo os valores que vigoravam nos anos 30, Detterick tinha uma vida desafogada, uma vez que costumava pagar em dinheiro a conta da mercearia no final de todos os meses, e poderia olhar bem de frente para o gerente do banco, caso se cruzasse com ele na rua. A casa da quinta era limpa e confortavelmente espaçosa. Para além do algodão, criava também umas quantas galinhas e vacas. Ele e a mulher tinham tido três filhos: Howard que deveria andar por volta dos doze anos e as gémeas, Cora e Kathe.
Numa noite quente de Junho desse ano, as meninas pediram e obtiveram autorização para dormir no alpendre lateral da casa, circundado por rede. Tanto para uma como para a outra aquilo era um grande acontecimento. A mãe deu-lhes um beijo de boas-noites muito próximo das nove da noite, quando os últimos raios de luz estavam prestes a desaparecer no horizonte. Foi a última vez em que teve oportunidade de ver as filhas, até que estas foram colocadas nos respectivos caixões pelo cangalheiro, que entretanto reparara a maior parte das mutilações infligidas nos seus corpos.
Naquele tempo, as famílias rurais tinham por hábito deitár-se cedo - "assim que começasse a fazer escuro debaixo da mesa", como a minha mãe dizia por vezes – dormindo um sono profundo. O que foi certamente o caso em relação a Klaus, Marjorie e Howie Detterick na noite em que as gémeas foram arrebatadas de sua casa. Sem dúvida que Klaus teria sido despertado por Bowser, o velho cão da família, arraçado de collie, caso este houvesse ladrado, o que não se verificóu. Nem nessa noite nem nunca mais.
As primeiras horas da manhã, Klaus já estava a pé para ordenhar as vacas. O alpendre era num dos lados da casa, afastado da vacaria, não tendo sequer passado pela cabeça de Klaus ir ver como é que estavam as meninas. O facto de Bowser não o ter acompanhado não era motivo para alarme. O cão considerava que as galinhas e as vacas eram seres desprezíveis, pelo que habitualmente se escondia na sua casota, por detrás do celeiro, quando essas tarefas da quinta eram levadas a cabo, a menos que o chamassem... e só se isso fosse feito com toda a energia.
Mais ou menos cinco minutos depois de o marido ter calçado as botas na barraca que servia de arrecadação e de se ter dirigido num passo determinado para a vacaria, Marjorie desceu até ao andar térreo. Começou a preparar o café e pôs o toucinho defumado a frigir. A combinação daqueles aromas trouxe Howie do seu quarto, situado logo abaixo do beiral, mas continuava a não haver sinais da presença das raparigas que haviam dormido no alpendre. Marjorie disse ao filho que fosse chamá-las, enquanto quebrava os ovos para dentro da gordura do toucinho. Klaus haveria de querer que as filhas fossem buscar os ovos acabados de pôr, assim que houvessem terminado o pequeno-almoço. Só que o pequeno-almoço não teve lugar em casa dos Detterick nessa manhã. Howie regressou do alpendre com as faces lívidas e com os olhos, que até então tinham estado inchados devido à sonolência, completamente arregalados.
- Elas desapareceram - anunciou o rapaz.
Marjorie dirigiu-se para o alpendre, mostrando-se inicialmente mais irritada do que preocupada. Mais tarde disse que tinha suposto, isto é, se é que na altura supusera alguma coisa, que as filhas haviam decidido dar um passeio, a fim de colher flores à primeira luz do alvorecer. Ou isso ou qualquer outro disparate característico das garotas daquela idade. Após um rápido olhar compreendeu logo por que motivo é que o filho ficara tão pálido.
Gritou por Klaus - berrou por ele - e Klaus veio a correr com as botas esbranquiçadas por ter derramado em cima delas metade de um balde cheio de leite. Aquilo com que se deparou no alpendre teria transformado em borracha os joelhos de qualquer pai, ainda que este fosse muito corajoso. Os cobertores em que as raparigas se haviam enrolado, quando a noite começara a arrefecer, tinham sido arremessados para um canto. A porta de rede fora arrancada violentamente da dobradiça superior e pendia suspensa da ombreira. Nas tábuas tanto do soalho do alpendre como dos degraus, para lá da porta de rede danificada, viam-se várias manchas de sangue.
Marjorie implorou ao marido que não fosse procurar as filhas sozinho, e que não levasse o filho caso se sentisse forçado a procuaá-las, mas poderia muito bem ter poupado o fôlego.
O homem foi buscar a carabina que se encontrava pendurada no barracão que servia de arrecadação, bem fora do alcance de mãos pequenas, e entregou a Howie a de calibre 22, que tinha andado a guardar para lhe oferecer no seu aniversário, o qual teria lugar em Julho. Em seguida, pai e filho puseram-se a caminho, sem prestar a mais pequena atenção aos gritos e ao choro da mulher, que queria saber o que ambos tencionavam fazer, no caso de depararem com um bando de maltrapilhos vadios, ou com um grupo de negros de maus ligados fugidos da quinta de Laduc. Neste aspecto, quero dizer-vos que me parece que os homens procederam acertadamente. O sangue já perdera a sua fluidez, embora ainda estivesse bastante viscoso, muito próximo da vermelhidão que lhe era característica, em vez de ter adquirido a tonalidade acastanhada que costumava ter quando já se encontrava bem seco. O rapto das garotas não acontecera há muito tempo. Klaus deveria ter raciocinado que ainda seria possível salvar as suas filhas e não tinha a mínima intenção de deixar escapar essa oportunidade.
Nenhum deles conseguiu avistar qualquer rasto das garotas - ambos eram recolectores, não caçadores, homens que costumavam ir para os bosques, atrás de guaxinins e veados na época própria, não porque o desejassem com muita veemência, mas sim porque se tratava de uma coisa que se esperava deles. O terreno que circundava a casa estava numa confusão de terra espezinhada, cheio de trilhos confusos que não permitiam discernir fosse o que fosse. Deram a volta ao celeiro, tendo visto imediatamente por que motivo Bowser, um animal que mordia mal mas que ladrava bem, não dera o alarme. O seu corpo encontrava-se meio dentro e meio fora da casota, a qual fora construída com os restos das tábuas utilizadas na construção do celeiro (havia uma tabuleta onde estava escrita a palavra Bowser traçada com grande perfeição sobre o arco da entrada na parte da frente - vi uma fotografia publicada num dos jornais), com a cabeça quase todá torcida num ângulo de cento e oitenta graus. Teria sido necessário um homem com uma força extraordinária para poder fazer aquilo a um animal de tão grande porte, dissera o promotor de justiça, ao júri do julgamento de John Coffey... para em seguida fitar alongada e significativamente a figura portentosa do arguido, sentado por detrás da mesa do advogado de defesa, mantendo o olhar baixo e envergando um fato-macaco novinho em folha que o estado lhe havia oferecido e que por si só já era o prenúncio da danação: Além do cão, Klaus e Howie haviam encontrado um bocado de salsicha cozinhada. De acordo com a teoria prevalecente - que não duvido ter tido bases sólidas - Coffey tinha atraído o cão por meio daquele petisco e depois, à medida que Bowser consumia a iguaria, lançara-lhe as mãos à volta do pescoço, que quebrara com um gesto violento dos seus pulsos cheios de força.
Por detrás do celeiro ficava a pastagem norte de Detterick, onde naquele dia nenhuma das vacas iria pastar. O solo encontrava-se todo empapado com o orvalho da madrugada, e era atravessado na diagonal em direcção a noroeste pelas pegadas de um homem, tão nítidas como a luz do dia.
Até mesmo no seu estado de semi-histeria, Klaus Detterick hesitou inicialmente em seguir aquele rastro. Não era com medo do homem ou dos homens que haviam levado as suas filhas; era, isso sim, o receio de seguir o caminho que o raptor tomara até sua casa... de haver possibilidade de se encaminhar exactamente na direcção errada, numa altura em que todos os segundos poderiam ser de grande importância.
Howie resolveu esse dilema ao retirar um bocado de tecido de algodão amarelo de um arbusto situado precisamente no perímetro da área que circundava a casa. Quando se sentou no banco das testemunhas, alguém mostrou a Klaus aquele mesmo bocado de tecido, e ele começou a chorar ao identificá-lo como um pedaço dos calções com que a filha Kathe dormira. Cerca de vinte metros mais à frente desse lugar, pendurado no ramo saliente de um zimbro, fora encontrado um bocado de um tecido de um verde desbotado, que condizia com a camisa de noite que Cora usava quando dera um beijo de boas-noites à mãe e ao pai.
Os Detterick, pai e filho, prosseguiram num passo quase de corrida, levando as armas empunhadas à frente, à maneira dos soldados quando atravessam um campo de batalha sob uma barragem de metralha cerrada. Se alguma coisa nesse dia me espanta é o facto de o rapaz, que corria desesperadamente atrás do pai (muitas vezes quase sendo deixado para trás), nunca ter caído, e disparado, inadvertidamente, uma bala contra as costas do pai.
A quinta encontrava-se ligada à rede telefónica local - outro indicador para os vizinhos de que os Detterick eram uma família próspera, pelo menos de uma forma moderada,
numa época considerada economicamente desastrosa - pelo que Marjorie utilizou a central telefónica para ligar ao máximo número possível de vizinhos que estivessem abrangidos pelo mesmo sistema, informando-os da tragédia que se abatera sobre a sua família como um relâmpago que houvesse cruzado um céu desanuviado, sabendo de antemão que cada um dos telefonemas produziria uma reacção em cadeia, como seixos arremessados numa sucessão rápida sobre um charco de águas mansas. Por fim, ergueu o auscultador uma última vez, proferindo as palavras que eram quase uma marca registada nos primórdios da era das redes telefónicas da altura, pelo menos na região sul do mundo rural: "Alô, central, está alguém em linha?"
A central encontrava-se em linha, mas por breves instantes não disse coisa alguma; aquela mulher de mérito estava absolutamente aparvalhada. Por fim, lá conseguiu articular alguma coisa.
- Sim, minha senhora, Mistress Detterick, com certeza que estou em linha. Oh, meu bom e doce Jesus, neste momento estou a rezar para que as suas pequenitas se encontrem bem...
- Sim, estou-lhe muito agradecida - interrompeu Marjorie. - Mas diga ao Senhor que espere o tempo suficiente para que me possa ligar ao xerife em Tefton, de acordo?
O xerife do município de Trapingus era' um velho matreiro com o nariz de quem abusava do uísque, com uma pança que mais parecia uma selha de roupa e cabelos brancos tão esparsos que se assemelhavam a cerdas para limpar cachimbos. Eu conhecia-o bastante bem; o homem fora várias vezes a Cold Mountain visitar aqueles a quem chamava "os seus rapazes", quando estes se preparavam para entrar no grande além. As testemunhas que assistiam às execuções costumavam sentar-se nas mesmas cadeiras desdobráveis em que todos provavelmente já se sentaram numa ou duas ocasiões, durante funerais ou ceias na igreja, ou ainda durante as sessões de bingo nas granjasl (de facto, nesses tempos, tínhamos o costume de pedir emprestadas as que utilizávamos à Granja Ligação Mística Número 44) e, de cada vez que o xerife Homer Cribus se sentava numa delas, eu estava sempre à espera de ouvir aquele estalar seco que anunciaria o colapso. Temia esse dia e ansiava simultaneamente por ele, mas foi um dia que nunca veio. Não muito tempo depóis - não poderia ser mais do que um Verão após as garotas Detterick terem sido sequestradas - ele teve um ataque do coração no seu gabinete, aparentemente enquanto fornicava com uma rapariga de raça negra de dezassete anos, de nome Daphne Shurtleff. Houve muito falatório por causa dessa ocorrência, uma vez que ele tinha por hábito exibir-se sempre de forma proeminente na companhia da mulher e dos seus seis filhos por altura das eleições - esses eram os tempos em que, quando alguém pretendia candidatar-se a fosse o que fosse, costumava dizer-se: "Sê baptista ou desaparece." Mas as pessoas adoram um hipócrita - reconhecem sempre os da sua raça e sabe sempre bem quando alguém é apanhado com as calças na mão e de pau feito e esse alguém não somos nós.
Para além de ser um rematado hipócrita, ele era um incompetente, o tipo de fulano que se deixava fotografar enquanto fazia festas ao gato de alguma senhora, quando fora outra pessoa - o seu ajudante Rob McGee, por exemplo - quem na realidade quase partira uma clavícula ao subir à árvore para onde a bichana trepara e ao trazê-la para baixo.
McGee ouviu o arrazoado de Marjorie durante talvez dois minutos, depois interrompeu-a com quatro ou cinco perguntas - rápidas e incisivas, como se fosse um pugilista com experiência a desferir pequenos golpes sobre as faces do adversário, o género de ataques que são tão pequenos, mas tão violentos, que o sangue começa a jorrar quase antes do impacte. Depois de ter obtido as respostas às suas perguntas, ele acrescentou:
- Vou telefonar ao Bobo Marcham. Ele tem uns cães. A senhora deixe-se ficar sossegadinha onde está, Mistress Detterick. Se o seu homem e o seu rapaz regressarem, diga-lhes que se deixem estar também sossegados. Pelo menos, tente que eles façam isso.
Entretanto, o homem e o rapaz de Marjorie haviam continuado a seguir o trilho do sequestrador ao longo de quatro quilómetros e meio para noroeste; todavia, quando a pista saiu de terreno aberto, entrando no arvoredo cheio de pinhais, acabaram por perdê-la. Ambos eram lavradores e não caçadores, tal como já disse, e nessa altura já se tinham apercebido de que se encontravam na peugada de um animal. Ao longo do caminho haviam encontrado o top que condizia com os calções amarelos de Kathe, assim como um outro pedaço da camisa de dormir de Cora. Ambos os artigos se encontravam empapados de sangue, e naquele momento nem Klaus nem Howie estavam com tanta pressa como no início; nas suas esperanças já devia ter principiado a infiltrar-se uma certeza cheia de frialdade, começando a descer tal como a água fria o faz, afundando-se por ser mais pesada.
Entraram no bosque à procura de vestígios, não encontraram nada, entraram numa segunda área e tiveram um resultado idêntico, e depois numa terceira zona. Desta feita depararam com um leque de sangue derramado por cima de um amontoado de agulhas de pinheiro. Seguiram na direcção que lhes parecia indicada durante algum tempo, depois recomeçaram a procurar ao acaso. Nessa altura já eram nove horas da manhã; ambos começaram a ouvir atrás de si os gritos de homens e o latir de cães presos por trelas. Rob McGee conseguira organizar um corpo de guardas civis no mesmo espaço de tempo que teria levado ao xerife Cribus terminar o seu primeiro café adoçado com brande; passados quinze minutos já tinham alcançado Klaus e Howie Detterick, os dois caminhando num passo desesperadamente cambaleante em redor do perímetro do bosque. Pouco depois, os homens puseram-se de novo em movimento, com os cães de Bobo à frente. McGee permitiu que Klaus e Howie os acompanhassem - ainda que lhes tivesse dado ordem contrária, ambos teriam recusado voltar atrás, independentemente do quanto temessem o desfecho daquela perseguição, o que McGee teria compreendido; no entanto, forçou-os a descarregarem as armas. Os outros haviam feito o mesmo, argumentara McGee; assim era mais seguro. O que não lhes disse (no que foi imitado por todos os outros) foi que os Detterick eram os únicos a quem havia sido pedido que retirassem as munições das espingardas, entregando-as ao ajudante do xerife. Sem se aperceberem bem da situação e desejando apenas prosseguir até ao fim daquele pesadelo, pai e filho fizeram o que lhes foi dito. Quando Rob McGee conseguiu convencer os Detterick a descarregarem as armas e a entregarem as munições, salvara provavelmente a desgraçada vida de John Coffey.
Não parando de ganir, os cães presos pelas trelas arrastaram os homens durante três quilómetros pelo solo coberto de pinhas, seguindo sempre pelo trilho em direcção a noroeste. Em seguida, detiveram-se na margem do rio Trapingus, cujo leito é largo e de águas lentas naquele ponto, correndo para sudeste através de colinas baixas e arborizadas, onde famílias de nome Cray, Robinette e Duplissey continuavam a manufacturar os seus próprios mandolins e frequentemente cuspiam os seus próprios dentes apodrecidos, enquanto lavravam a terra; eram regiões rurais bem para o interior, onde os homens conseguiam apanhar serpentes aos domingos de manhã e deitar-se à noite em amplexos carnais com as próprias filhas. Eu conhecia as suas famílias; a maior parte deles contribuía de tempos a tempos com uma refeição para a Velha Faísca. No extremo mais afastado do rio, os homens do corpo de voluntários podiam ver aquele sol de Junho reflectido nos carris de aço do ramal ferroviário do Sul. Mais ou menos a quilómetro e meio para a direita, rio abaixo, havia um viaduto que atravessava o caminho em direcção às minas de carvão de West Green.
Foi ali que encontraram um trilho largo com o solo bastante revolvido entre as ervas e os arbustos baixos, um rasto tão ensanguentado que muitos dos homens foram forçados a correr para o arvoredo, aliviando-se dos pequenos-almoços que haviam ingerido. Também encontraram o resto da camisa de noite de Cora, que estava caída naquele caminho coberto de sangue derramado, e Howie, que até então se tinha aguentado de forma admirável, retrocedeu para junto do pai, prestes a desfalecer.
E foi naquele lugar que os cães de Bobo Marcham tiveram o seu primeiro e único desacordo do dia. Ao todo eìam seis animais dois perdigueiros, dois malhados de negro e um par de terriers cruzados de aspecto feroz. Os dois últimos queriam continuar em direcção a noroeste, seguindo pelo Trapingus acima; os demais pretendiam seguir rumo a sudeste. Os seis enredaram-se nas suas próprias trelas e, embora os jornais não tivessem feito qualquer menção a esse acontecimento, eu era capaz de imaginar o praguejar horrível que deve ter saído da boca de Bobo, destinado aos animais, enquanto se servia das mãos - certamente a parte mais bem-educada do seu corpo - para desenredar as trelas que os prendiam. Nos meus tempos tive oportunidade de conhecer alguns donos de cães de caça, e diz-me a experiência que, como classe, são todos muito parecidos.
Bobo manteve-os com a trela curta, numa matilha ordeira, depois passou a camisa de dormir de Cora feita em farrapos por baixo do nariz dos animais, como se os estivesse a recordar do motivo que os havia levado àquele lugar, num dia em que a temperatura atingiria certamente os trinta e dois graus por volta do meio-dia, e os insectos, em enxames, já descreviam círculos à volta das cabeças dos membros da milícia. Os ; cães de caça farejaram mais uma vez, decidiram votar todos no mesmo número e lá foram em direcção ao rio, seguindo para jusante a toda a velocidade.
Ainda mal tinham passado dez minutos quando os homens detiveram a sua caminhada, dando-se conta de que ouviam algo mais além dos latidos dos cães. Na realidade, era mais um uivar do que um ladrar ou rosnar, um som que cão algum jamais havia emitido, nem sequer nas vascas da morte. ', Era um som que nenhum dos homens alguma vez ouvira ser articulado fosse pelo que fosse, embora todos eles soubessem, sem qualquer margem para dúvida, que saíra da boca de um homem. Foi o que eles disseram na altura, e eu acreditei piamente. Tenho a impressão de que também o teria reconhecido. Já tive oportunidade de ouvir homens a gritarem daquela mesma maneira, quando iam a caminho da cadeira eléctrica. Não muitos - quase todos os condenados se fecham em si mesmos e vão ora calados ora dizendo piadas, como se fossem ao piquenique da sua turma - mas uns quantos. Geralmente, aqueles que acreditam na existência do inferno, sabendo de antemão que ele os aguarda no final da Milha Verde.
Uma vez mais, Bobo manteve os seus cães com as trelas curtas. Os animais eram valiosos e ele não tinha a mínima intenção de vir a perder qualquer deles por causa do psicopata que uivava e proferia um arrazoado sem nexo mais abaixo na margem do rio. Os homens carregaram as suas carabinas e começaram a fazer pontaria. Aquele uivar provocara-lhes calafrios de gelar as almas, fazendo com que a transpiração lhes corresse pelas costas abaixo e se acumulasse nos sovacos, como se fosse água gelada. Quando as pessoas se encontram numa situação apavorante como aquela necessitam de um dirigente, a fim de poder prosseguir; coube ao ajudante de xerife, McGee, chefiá-los. Tomou a dianteira do grupo e começou a caminhar num passo vigoroso (não obstante aquela aparente determinação, aposto que ele naquela altura não se sentiu lá muito vigoroso), até chegar a um maciço de amieiros que saíam do bosque à sua direita, com o resto dos companheiros a seguir a cerca de cinco passos atrás de si, num andar que denotava um certo nervosismo. McGee parou uma só vez, para indicar por gestos ao homem de maior porte entre eles - Sam Hollis - que se mantivesse perto de Klaus Detterick.
Do outro lado dos amieiros havia mais terreno aberto, que se estendia até ao início do bosque à direita, enquanto à esquerda se avistava uma longa encosta suavemente ondulada, junto à margem do rio. Todos eles pararam onde se encontravam, como se houvessem sido fulminados por um raio. Estou convencido de que estariam dispostos a dar muito do que possuíam para poder apagar o que tinham à frente dos olhos, e que nenhum deles jamais conseguiria esquecer... Era o género de pesadelo que paira para lá dos factores e dos elementos que formam as vidas boas e comuns - as ceias na igreja, os passeios pelas veredas dos campos, o trabalho honesto, beijos de amor trocados na cama. Existe uma caveira em todos os homens, e deixem-me que vos diga que existe uma caveira na vida de todos os homens. Nesse dia, aqueles homens viram-na - viram aquilo que por vezes esboça um esgar sinistro por detrás de um sorriso.
Sentado na margem, envergando um fato-macaco desbotado e manchado de sangue, encontrava-se o homem mais corpulento que muitos deles alguma vez tiveram ocasião de ver - John Coffey. Os seus pés enormes de dedos achatados e largos estavam descalços. À volta da testa usava uma faixa de um vermelho desbotado, da mesma maneira que qualquer mulher do campo usaria um lenço para ir à igreja. Os mosquitos que o rodeavam formavam uma nuvem escura. Aninhado em cada um dos seus braços estava o corpo de uma menina nua. Os cabelos louros das garotas, anelados e de uma tonalidade clara, como se fossem a penugem de algodão do campo, estavam colados às cabeças, empastados de sangue. O homem que as mantinha presas nos braços vociferava contra o firmamento, como se fosse um vitelo aluado, com ~ faces de tez castanha erguidas e cheias de lágrimas; as suas feições surgiam contorcidas num esgar monstruoso de desgosto. A sua respiração era entrecortada, fazendo com que a caixa torácica se soerguesse, até se ver a tensão exercida nas fivelas das alças do fato-macaco; o homem sustinha a respira_ ção, soltando-a juntamente com um daqueles uivos alongados que os outros haviam ouvido. Era muito frequente ler-se no jornal que "o assassino não mostrou qualquer remorso"; todavia, esse não era o caso naquela situação. John Coffey sentia-se despedaçado pela acção que cometera... mas haveria de continuar a viver. Para as raparigas isso seria totalmente impossível. Haviam sido esventradas.
Ninguém pareceu lembrar-se do período de tempo que ali permaneceram, observando o homem que continuava a uivar, o qual, por seu turno, fitava um comboio que passava na outra margem do rio de vastas águas calmas e que se dirigia velozmente através dos carris na direcção do viaduto que atravessava o rio. Tinham a sensação de que haviam estado a observar durante uma hora, ou talvez para todo o sempre, embora o comboio desse a impressão de não avançar, parecendo deter-se, bruscamente imobilizado, qual criança com uma birra; tão-pouco o Sol se ocultou por detrás de uma nuvem, permitindo que aquela visão se apagasse dos seus olhos. Encontrava-se ali, perante eles, tão verdadeira como a dentada de um cão. O homem negro embalava-se para a frente e para trás. Kathe e Cora eram embaladas ao mesmo ritmo do seu corpo, como se fossem meras bonecas de trapos nos braços de um gigante. Os músculos manchados de sangue dos gigantescos braços desnudados do homem, flectidos e distendidos, flectidos e distendidos, flectidos e distendidos.
Foi Klaus Detterick quem quebrou aquele silêncio sinistro. Soltando gritos de dor, arremessou-se contra o monstro que violara e assassinara as filhas. Sam Hollis sabia bem co mo cumprir a tarefa que lhe fora reservada, a tentou levá-la a cabo, embora não tivesse sido capaz. Era cerca de quinze centímetros mais alto do que Klaus, e o seu peso excedia o do outro em pelo menos trinta e cinco quilos, mas Klaus dava a impressão de quase ter a força suficiente para se libertar dos seus braços, que o rodeavam. Klaus lançou-se através daquele terreno aberto, desferindo um violento pontapé contra a cabeça do Coffey. A sua bota de lavoura, manchada com o leite seco que havia derramado e que já azedara por força do calor, atingiu em cheio a fronte esquerda do Coffey, mas este pareceu não ter sentido o violento impacte. Limitou-se a permanecer sentado, enquanto chorava e se baloiçava, olhando fixamente para a outra margem do rio; imagino que poderia muito bem ter feito parte da imagem de um sermão do dia de Pentecostes, o fiel seguidor da cruz, a olhar contemplativamente para a terra prometida... isto é, não fora a presença dos dois cadáveres.
Foi necessária a força de quatro homens para conseguir arrastar o lavrador histérico para longe de John Coffey, apesar de ele ter conseguido atingir este último não sei bem quantas vezes antes de os esforços dos outros serem bem sucedidos. Nada do que estava a acontecer parecia despertar o mínimo interesse em Coffey, fosse de que maneira fosse; o homem limitava-se a observar ensimesmado a outra margem do rio, dando largas à mágoa que o dominava. Quanto a Detterick, todo o espírito de luta o abandonou quando por fim o afastaram do assassino - como se uma estranha corrente galvanizadora atravessasse o corpo do gigantesco homem negro (eu continuo a ter uma certa propensão para pensar em metáforas ligadas à electricidade; vão ter de me desculpar esta minha faceta peculiar); quando o contacto que Detterick mantivera com essa fonte de energia foi finalmente interrompido, o seu corpo ficou flácido, como um homem que houvesse sido arremessado de um cabo eléctrico descarnado. Ajoelhou-se com as pernas abertas na margem do rio, mantendo as faces ocultas pelas mãos enquanto chorava convulsivamente. Howie juntou-se ao pai e ambos se abraçaram testa contra testa.
Dois dos homens mantinham-nos sob uma vigilância apertada, ao mesmo tempo que o resto do grupo, de carabinas em punho, formava um círculo em redor do homem negro que não parava de se embalar e de gemer. Dava a impressão de ainda não se ter apercebido da presença dos homens. McGee deu alguns passos em frente, apoiando o peso do corpo ora sobre um pé ora sobre o outro durante algum tempo, até que se agachou.
- Mister - disse ele numa voz tranquila que teve o condão de calar Coffey imediatamente. McGee olhou para uns olhos congestionados devido ao choro que parecia não querer interromper-se, como se alguém tivesse deixado uma torneira aberta dentro do homem. Aqueles olhos choravam, no entanto pareciam intocados... distantes e serenos. Foram os olhos mais estranhos que tive oportunidade de ver em toda a minha vida. McGee também chegou a uma conclusão bastante aproximada. "Como se fossem os olhos de um animal que nunca tivessem visto um homem", disse ele a um repórter de nome Hammersmith pouco antes do julgamento.
- Mister, está a ouvir-me? - perguntou McGee. Devagar, Coffey acenou afirmativamente. Continuava a rodear com os braços as suas bonecas macabras, as quais mantinham o queixo sobre o peito, de forma a que os rostos não podiam ser vistos com clareza, um dos poucos actos de misericórdia que Deus achou por bem conceder naquele dia fatídico.
- Tem algum nome? - acrescentou McGee.
- John Coffey - respondeu o homem numa voz empastada e embargada pelas lágrimas. - Coffey como a bebida, com a diferença que não se escreve da mesma maneira.
McGee acenou com a cabeça e em seguida apontou com o polegar na direcção do bolso no peito do fato-macaco de Coffey, que exibia uma forma saliente. McGee pensou que talvez contivesse uma arma - embora um homem do tamanho de Coffey não necessitasse de recorrer a uma arma para provocar danos consideráveis, caso estivesse decidido a isso.
- O que é que tens aí dentro, John Coffey? Talvez uma bola? Uma pistola?
- Não, senhor - respondeu Coffey na sua voz entaramelada e com aqueles seus olhos estranhos, marejados de lágrimas e que reflectiam uma expressão agonizante, embora bem no fundo se mostrassem aberrantemente serenos, como se o verdadeiro John Coffey se encontrasse algures que não ali, fitando uma outra paisagem qualquer, onde as garotinhas assassinadas não fossem motivo de grande preocupação, olhos que nunca se desprenderam do ajudante de xerife, McGee. - É somente uma pequena merenda que trouxe comigo.
- Oh, com que então temos uma pequena merenda, não é verdade? - replicou McGee, ao que Coffey acenou que sim, dizendo "sim senhor" com os seus olhos arrasados de lágrimas, enquanto o ranho lhe escorria pelas narinas. - E onde é que um homem da tua igualha foi arranjar uma merenda, John Coffey? - acrescentou McGee, forçando-se a manter a calma, embora já lhe tivesse chegado ao nariz o cheiro a cadáver das duas garotas e pudesse ver as zonas ensanguentadas dos corpos a serem sobrevoadas e saboreadas pelas moscas. Afirmou mais tarde que a região dos cadáveres que mais o impressionara tinha sido os cabelos... e não se tratou apenas de uma declaração destinada aos jornais; era uma história demasiado macabra para ser lida por famílias. Não, eu obtive essa informação através do repórter que relatou o acontecimento, Mr. Hammersmith. Posteriormente falei com ele, porque, tempos mais tarde, o John Coffey transformou-se numa espécie de obsessão para mim. McGee disse a este Hammersmith que os cabelos louros das duas tinham deixado de ser louros. Haviam adquirido uma tonalidade castanho-avermelhada. O sangue escorrera-lhes da cabeça pelas faces abaixo, qual trabalho de cabeleireira mal executado; não era preciso ser-se médico para compreender que os seus frágeis crânios haviam sido esmagados um contra o outro, com a força daqueles braços tão poderosos. Possivelmente, as duas rapariguinhas teriam chorado. Provavelmente, ele teria tentado fazer com que elas se calassem. Com um pouco de sorte, aquilo teria acontecido antes dos estupros.
Ao olhar para tal quadro, qualquer homem teria dificuldade em pensar com clareza, até mesmo um homem tão determinado em levar a bom termo o seu trabalho como o ajudante de xerife, McGee. Um raciocínio pouco claro poderia dar origem a erros, talvez mesmo a mais derramamento de sangue. McGee respirou fundo e acalmou-se. Ou pelo menos tentou.
- Pois bem, senhor, não me lembro bem... Macacos me mordam se me lembro - disse Coffey na sua voz embargada pelas lágrimas. - Mas o certo é que é uma pequena merenda... pouca coisa, parece-me que uma sandes e um pepino doce em picles.
- Sou bem capaz de ver com os meus próprios olhos, se não vires inconveniente - retorquiu McGee. - Agora não te mexas, John Coffey. Não te atrevas, rapaz, porque como podes ver estás soba mira de armas suficientes para fazerem com que desapareças da cintura para cima, caso decidas mexer nem que seja um só dedo.
Coffey continuou a fitar o outro lado do rio, sem fazer qualquer movimento, enquanto McGee, suavemente, levou a mão ao interior da algibeira do peito do fato-macaco, de onde retirou qualquer coisa embrulhada em papel de jornal e atada com um cordel. McGee desfez o nó e abriu o papel, embora tivesse quase a certeza que encontraria aquilo que Coffey dissera, uma pequena merenda. Era composta por um sanduíche de toucinho fumado com rodelas de tomate e um doce com gelatina. Também havia picles embrulhados numa página com uma história aos quadradinhos, que John Coffey jamais seria capaz de compreender. Não se viam quaisquer salsichas. Bowser tinha comido todas as salsichas da pequena merenda com que John Coffey viera prevenido.
McGee entregou a comida por cima do ombro a um dos homens que o tinham acompanhado, sem nunca despregar os olhos de Coffey. Agachado como se encontrava, não se poderia dar ao luxo de qualquer distracção, nem que fosse por um segundo. A merenda, que entretanto fora de novo embrulhada e atada para maior segurança, acabou por ir parar às mãos de Bobo Marcham, o qual a colocou dentro da mochila onde costumava guardar os petiscos para os seus cães (e não me espantaria muito se também lá guardasse algum isco para a pesca). Durante o julgamento, aquilo não foi apresentado como prova incriminatória - a justiça naquela parte do mundo costumava ser célere, embora não o fosse ao ponto de permitir que um sanduíche, de toucinho fumado e tomate, estivesse em boas condições até essa data - o que não impediu que fossem apresentadas fotografias da mesma.
- O que é que aconteceu por aqui, John Coffey? - perguntou McGee na sua voz veemente e sussurrante. - Queres contar-me o que é que se passou?
Coffey começou a dizer-lhe, assim como aos outros homens presentes, quase exactamente a mesma coisa que me disse a mim; aquelas palavras também foram as últimas que o promotor de justiça dirigiu ao júri, durante o julgamento de Coffey.
- Não consegui evitar o mal - afirmou John Coffey, enquanto continuava a manter nos braços os corpos nus das garotas violadas e assassinadas. Uma vez mais, as lágrimas começaram a jorrar-lhe pelas faces abaixo. - Tentei desfazer o que estava feito, mas já era demasiado tarde - acrescentou ele. - Rapaz, estás preso pelo crime de homicídio - anunciou McGee, após o que escarrou para o rosto de Coffey. O júri retirou-se para deliberar durante quarenta e cinco minutos. Precisamente o espaço de tempo suficiente para comerem a sua própria pequena merenda. Pergunto a mim mesmo como é que puderam ter estômago para comer.
Acho que vocês sabem que não vim a tomar conhecimento de tudo isto numa tarde quente de Outubro, num espaço que estava prestes a tornar-se a defunta biblioteca da prisão, graças à leitura de uns quantos jornais antigos empilhados sobre um par de caixotes de laranjas Pomona; no entanto, fiquei a saber o suficiente para não conseguir conciliar o sono nessa noite. Quando a minha mulher se levantou da cama às duas da manhã e deu comigo sentado à mesa da cozinha, a beber leitelho e a fumar cigarros Bugler enrolados em mortalhas por mim mesmo, perguntou-me o que é que me preocupava e eu respondi-lhe com uma das poucas mentiras que lhe disse durante o nosso já longo casamento. Disse-lhe que tinha tido outra discussão com o Percy Wetmore. Claro que isso correspondia à verdade, mas não era a razão que me levava a estar acordado àquela hora já avançada. Por via de regra, conseguia deixar sempre a imagem do Percy no escritório.
- Pois bem, esquece essa ovelha ranhosa e vem para a cama - aconselhou ela. - Tenho uma coisa que te ajudará a dormir e podes servir-te dela à tua vontade.
- Isso parece ser boa ideia, mas acho preferível não o fazermos - retorqui. - Tenho um pequeno problema com a minha canalização urinária e não desejo pegar-to.
- Com que então, a canalização? - comentou ela, erguendo o sobrolho. - Calculo que te tenhas metido com a rapariga de esquina menos adequada da última vez que estiveste em Baton Rouge. - Eu nunca tinha ido a Baton Rouge nem nunca tocara sequer numa rapariga da rua, e ambos o sabíamos.
- Não passa de uma vulgar infecção urinária - acrescentei. - A minha mãe costumava dizer que os rapazes costumam apanhar isto quando vertem águas numa altura em que o vento sopra do Norte.
- Atua mãe também costumava fechar-se em casa todo o dia quando entornava sal - comentou a minha mulher. O doutor Sadler...
- Não, senhora - atalhei erguendo uma mão. - Ele vai querer que eu tome sulfamidas, o que fará com que eu vomite por todos'os cantos do meu gabinete lá para o fim da semana. Temos de dar à infecção o tempo necessário para que passe por si própria, mas, entretanto, calculo que o melhor será mantermo-nos afastados das brincadeiras.
Ela beijou-me a testa mesmo acima da sobrancelha esquerda, o que tem o condão de me provocar sempre arrepios... tal como a Janice muito bem sabe.
- Pobre querido. Como se esse horroroso do Percy Wetma re não fosse suficiente. Não te demores em vir para a cama,; Assim fiz, mas não sem que antes tivesse saído para o alpendre das traseiras, a fim de aliviar a bexiga (depois de ter verificado a direcção do vento com um polegar molhado, antes de urinar - aquilo que os nossos pais costumam dizer-nos quando ainda somos pequenos só muito raramente é' ignorado, independentemente do quão disparatado possa parecer). Urinar ao ar livre é uma das alegrias de viver no campo que nunca foi devidamente abordada pelos poetas, embora nessa noite não tenha sido alegria nenhuma para mim; as águas que eu vertia queimavam-me como se fossem um fio de querosene em combustão. No entanto, tive a sensação de, que nessa tarde fora um pouco pior e tive a certeza de que fora pior dois ou três dias antes. Albergava algumas esperanças de que talvez me encontrasse em vias de melhorar. Nunca uma esperança foi tão mal fundamentada. Ninguém me tinha informado de que por vezes um micróbio que se aloja nessa região do nosso organismo, quente e húmida, poderá levar um dia ou dois a descansar antes de investir de novo com toda a virulência. Tivesse eu estado a par desse aspecto e ter-me-ia sentido deveras surpreendido. Mas teria ficado ainda' mais surpreendido se soubesse que dentro de outros quinze ou vinte anos existiriam uns comprimidos que-eliminariam do nosso organismo, num tempo recorde, essa espécie de infecções... e, embora esse medicamento pudesse incomodar-nos um pouco o estômago, ou soltar os nossos intestinos, era muito raro que nos fizesse vomitar da forma como os comprimidos de sulfamidas do Dr. Sadler faziam. Em 1932, pouco mais se podia fazer para além de aguardar pacientemente e tentar ignorar aquela sensação de que alguém derramara querosene no interior da nossa canalização e lhe chegara um fósforo.
Acabei de urinar e regressei ao quarto, tendo finalmente conseguido adormecer. Sonhei com rapariguinhas de sorrisos tímidos que tinham os cabelos empapados de sangue.
Na manhã seguinte, deparei com um memorando escrito em papel amarelado em cima da minha secretária, onde me era pedido que passasse pelo gabinete do director logo que tal me fosse possível. Sabia do que tratava aquela mensagem - naquele jogo existiam alguns regulamentos por escrever que nem por isso deixavam de ser muito importantes, e na véspera, durante algum tempo, eu não tinha jogado de acordo com eles, por conseguinte, adiei aquele assunto durante tanto tempo quanto me foi possível. Era como se tivesse de ir ao médico por causa do problema com a minha canalização, supunha eu. Sempre estive convencido de que este negócio do "pôr cobro ao assunto o mais depressa possível" se encontrava sobrevalorizado.
Seja como for, não me apressei em comparecer no gabinete do director Moores; em vez disso, despi o casaco do meu uniforme de lã, pendurei-o nas costas da minha cadeira e liguei a ventoinha que se encontrava a um canto do gabinete - estava outro dia de calor. Em seguida, sentei-me e comecei a ler o relatório elaborado pelo Brutus Howell sobre os acontecimentos da noite anterior. Nele não havia nada que fosse causa para alarme. Depois de se ter deitado, o Delacroix tinha chorado durante algum tempo - o que ele fazia na maior parte das noites, mais por autocomiseração do que por lamentar as pessoas que havia assado em vida, tenho a certeza - e depois retirara Mister Jingles, o rato, da caixa de charutos onde o animal costumava dormir. Isso tinha acalmado Del, que dormira como um bebé durante o resto da noite. O mais certo era Mister Jingles ter passado a noite sobre o estômago dele, com a cauda enroscada por cima das suas manápulas e os olhos sem pestanejarem. Era como se Deus houvesse decidido que o Delacroix tinha necessidade de um anjo-da-guarda, tendo decretado em toda a Sua sabedoria, que só um rato serviria para uma ratazana como o nosso amigo da Luisiana com tendências homicidas. Nem tudo aquilo constava do relatório do Brutal, como é evidente, mas eu próprio tinha feito suficientes turnos de noite para poder preencher as lacunas existentes entre as entrelinhas. Havia um pequeno apontamento que dizia respeito ao Coffey: "Ficou deitado acordado, de uma maneira geral sossegado, é possível que tenha chorado um pouco. Tentei encetar uma conversa com ele, mas, de. pois de ter recebido algumas respostas resmungadas, decidi desistir. Talvez o Paul ou o Harry tenham melhor sorte do' que eu."
"Encetar uma conversa" era efectivamente um dos pontos'; mais fulcrais da nossa missão. Nessa altura eu não o sabia, mas olhando para trás, graças à perspectiva vantajosa desta estranha idade avançada (acho que todas as pessoas de idade devem parecer um tanto estranhas aos olhos das pessoas que' são obrigadas a viver com elas), sei que assim era e conheço o motivo por que na altura não o compreendia - era demasiado grande, uma parte tão fundamental para o nosso trabalho como a respiração para as nossas vidas. Não era importante que os temporários "encetassem uma conversa", embora isso fosse um factor vital tanto para mim como para o Harry, o Brutal e o Dean... razão por que o Percy Wetmore era um' desastre de tal dimensão. Os prisioneiros odiavam-no, os' guardas detestavam-no... presumivelmente, toda a gente sentia aversão pelo homem, excepção feita aos seus amigos políticos, ao próprio Percy, e talvez (mas apenas talvez) à sua mãe. Ele era como uma dose de arsénico branco que se polvilhasse por cima de um bolo de casamento, e estou convicto', que desde o início ele soube que a sua presença significava desastre. O homem era um acidente à espera de se concretizar. Quanto a nós, teríamos escarnecido da ideia de que agia-mos de forma mais útil não como guardas de homens condenados à morte, mas sim como seus psiquiatras - hoje em' dia, parte de mim continua a sentir vontade de escarnecer' dessa ideia; no entanto, sabíamos bem como é que haveríamos de encetar esse género de conversa... e sem essa conversa os homens que teriam de se apresentar perante a Velha Faísca tinham o péssimo hábito de enlouquecerem.
Tomei um apontamento no fundo do relatório do Brutal, a fim de não me esquecer de ter uma conversa com o John Coffey - pelo menos, tentar - e depois passei para a mensagem do Curtis Anderson, o assistente principal do director da prisão. Dizia que ele, o Anderson, aguardava uma ordem de DDE relativa ao Edward Delacrois (o Anderson escrevera erradamente o nome do homem, que, na realidade, era Eduard Delacroix) dentro de muito pouco tempo. DDE significava data de execução e, de acordo com aquele apontamento, uma fonte bem informada dissera ao Curtis que o pequeno franciú faria essa caminhada perto da Noite das Bruxas - vinte e sete de Outubro era o seu melhor palpite; os palpites do Curtis Anderson eram sempre muito bem informados. Todavia, antes dessa data poderíamos contar com a chegada de um novo residente, o qual dava pelo nome de William Wharton. "Ele é aquilo a que se gosta de chamar uma criança problemática", escrevera o Curtis na sua escrita inclinada para a esquerda, que até certo ponto era presumida. "Doido varrido e orgulhoso de o ser. Durante o último ano deambulou por todo o estado, tendo finalmente dado o grande passo. Assassinou três pessoas durante um assalto, sendo uma delas uma grávida, e abateu uma quarta vítima durante a fuga. Um polícia de trânsito. Só não acertou numa freira e num cego." Esbocei um sorriso ao ler aquilo. "O Wharton tem dezanove anos e na parte superior do antebraço tem tatuado Billy the Kid. Posso afiançar que será necessário esbofeteá-lo uma ou duas vezes, mas é preciso ter cuidado quando isso acontecer. Este homem está-se nas tintas para o que lhe possa acontecer." A última observação fora sublinhada com dois traços, depois ele terminara: "Também é possível que venha a manter-se por aqui. Tem tentado recorrer da sentença e para além disso, é menor."
Um miúdo louco, que recorre da sentença, muito capaz de se manter por ali durante algum tempo. Oh, tudo aquilo soava que era uma maravilha. De súbito, tive a impressão de que o dia ficaria mais quente do que anteriormente, e vi que não poderia continuar a adiar a minha visita ao gabinete do director Moores.
Durante o tempo em que exerci a profissão de guarda em Cold Mountain, trabalhei para três directores; o Hal Moores foi o último e o melhor deles todos. Conclusão a que se poderia chegar ao fim de pouco tempo. Era um homem honesto e directo, que nem sequer possuía a esperteza rudimentar do Curtis Anderson, embora estivesse munido da sabedoria política suficiente para lhe permitir manter o emprego durante aquele período difícil... e com integridade suficiente para o impedir de se deixar seduzir por aquele jogo de interesses. Nunca ascenderia a uma posição mais elevada, mas isso parecia não o incomodar por aí além. Nessa altura, deveria andar pelos cinquenta e oito ou cinquenta e nove anos e tinha uma cara tão parecida com o focinho de um cão que o Bobo Marcham se teria sentido completamente à vontade com ele. Possuía cabelos brancos, e as suas mãos estavam sempre a tremer devido a uma qualquer ameaça de paralisia, embora ele fosse um homem forte. No ano anterior, quando um dos prisioneiros se acercara agressivamente dele no pátio de recreio, empunhando o cabo de madeira de um pé-de-cabra, Moores mantivera-se firme; agarrara vigorosamente no pulso do rufião e torcera-o com tanta força que o estalar dos ossos a que brarem-se se assemelhara ao som de galhos secos a arder numa fogueira. O agressor, tendo-se esquecido de todas as suas razões de queixa, vergara-se até ficar ajoelhado no solo enquanto gritava pela mãe.
- Eu não sou ela - dissera Moores na sua maneira culta de falar de homem oriundo do Sul -, mas, se o fosse, levantaria as saias e mijar-te-ia em cima através da região do meu corpo que te viu nascer.
Quando entrei no seu gabinete, ele fez menção de se levantar da cadeira, mas com um gesto indiquei-lhe que permanecesse onde estava. Sentei-me na cadeira em frente dele, do outro lado da secretária e comecei a perguntar pelo estado de' saúde da mulher... só que nestas paragens as coisas não se' processam exactamente dessa maneira.
- Como é que está a tua bonita rapariga? - perguntei,, como se a Melinda tivesse acabado de completar dezassete primaveras, em vez de sessenta e duas ou sessenta e três.
O meu interesse era bastante genuíno - ela era uma mulher que eu próprio poderia ter amado e com quem podia ter casado se as linhas das nossas vidas se tivessem cruzado – e não me incomodava muito desviar-lhe um pouco a atenção do assunto principal que me havia levado ali.
- Ela não tem passado muito bem, Paul - retrucou ele com um profundo suspiro. - Nada bem, mesmo.
- Mais dores de cabeça?
- Esta semana só teve uma, mas foi a pior de todas... Forçou-a a ficar estendida na cama durante a maior parte do dia, anteontem. E agora começou a sentir uma inércia na mão direita... - Ergueu a sua própria mão direita cuja pele tinha manchas hepáticas acastanhadas. Ambos pudemos observar o tremor no membro enodoado durante breves momentos, após o que baixou a mão. Consegui perceber que ele teria dado tudo para não ser forçado a dizer-me o que estava a dizer, e pela minha parte, eu teria procedido exactamente da mesma maneira para não ser forçado a ouvir. As dores de cabeça dá Melinda tinham começado na Primavera e, durante todo aquele Verão, o médico insistira que eram "enxaquecas provocadas pela tensão nervosa", o que poderia muito bem ter como causa a próxima aposentação do Hal. Só que nenhum deles podia esperar que ele se reformasse, e a minha própria mulher tinha-me dito que as enxaquecas não eram um incómodo que costumasse afligir as pessoas de idade, mas sim os mais novos; quando os seus sofredores alcançavam a idade da Melinda Moores, habitualmente sentiam-se melhor e não pior. E agora surgira-lhe aquela fraqueza na mão. Quanto a mim, nenhum daqueles sintomas indicava a existência de tensão nervosa; eram, isso sim, indicadores do raio de um enfarte iminente.
- O doutor Haverstrom quer que ela seja internada no hospital em Indianola - continuou Moores. - Para ser submetida a alguns exames. Está a referir-se é a radiografias à cabeça. Quem sabe o que mais. Ela anda assustada de morte - acrescentou ele, fazendo uma pausa. Verdade seja dita, também eu tenho medo.
- Sim, mas tens de te certificar que ela faz o que o médico the disse - repliquei. - Não deves esperar. Se for alguma coisa que eles possam detectar através das radiografias, é possível que se trate de algo que possam vir a curar.
- Sim - concordou ele e em seguida, apenas por breves instantes, os únicos durante aquela parte da nossa conversa, tanto quanto me é dado recordar, o nosso olhar cruzou-se e manteve-se assim. Verificou-se aquela espécie de compreensão perfeita, nua e crua, entre nós dois, que não carece de quaisquer palavras. Sim, poderia ser um enfarte. Também poderia tratar-se de um cancro a desenvolver-se no seu cérebro, e, caso fosse isso, as hipóteses de os médicos em Indianola poderem fazer alguma coisa eram bastante escassas, se não mesmo nulas. Não se esqueçam de que estávamos em 1932, quando uma doença relativamente simples como uma infecção do tracto urinário ou era tratada com sulfamidas, até uma pessoa estar prestes a morrer de náuseas, ou deixava-se o doente sofrer esperando que o mal acabasse por desaparecer.
- Estou te muito agradecido pelo teu cuidado, Paul. Mas agora falemos sobre o Percy Wetmore.
Gemi e cobri os olhos.
- Esta manhã recebi um telefonema da capital do estado - começou o director da prisão numa voz neutra. - Tratou-se de uma conversa bastante irritada, tal como tenho a certeza que serás capaz de imaginar. Paul, o governador está tão casado que quase não está lá, se é que estás a compreemder. E a mulher tem um irmão, que por sua vez tem um filho Esse filho é o Percy Wetmore. Ontem à noite, o Percy telefonou ao paizinho, o qual por seu turno ligou para a tia do Percy. Terei de continuar a explicar-te o resto desta situação: - Não - respondi. - O Percy bufou. Tal como o mari quinhas da turma que conta à professora que viu dois colegas a apalparem-se no bengaleiro.
- Sim - aquiesceu Moores -, a situação é mais ou menos essa.
- Por acaso sabes o que é que aconteceu entre o Percy o Delacroix quando este chegou à prisão? - perguntei.
O Percy e o seu maldito bastão de nogueira de estimação? - Sim, mas...
- E sabes que por vezes ele tem o hábito de o fazer correr pelas barras das celas, sem que haja qualquer justificação: É um homem mau, além de ser estúpido, e não sei durante quanto mais tempo conseguirei aguentar a sua presença. Essá é que é a verdade.
Havia cinco anos que nos conhecíamos. Isso poderá ser bastante tempo para dois homens que se dão bem, especialmente quando parte das nossas funções é substituir a vida pela morte. O que estou a dizer é que o Moores compreendia i bastante bem o que eu tentava dizer-lhe. Não que eu estivesse pronto para me demitir; isso não aconteceria com a Grande Depressão ao virar da esquina, do lado de fora dos muros da penitenciária, qual criminoso perigoso, um criminoso que não poderia ser encarcerado, tal como acontecia aos homens que se encontravam sob a nossa responsabilidade. Havia homens mais capazes do que eu que eram obrigados a calcorrear as estradas, forçados a valerem-se de tudo o que lhes aparecia pela frente. Eu fora bafejado pela sorte e encontrava-me bem ciente desse facto - com os filhos já crescidos e a hipoteca, da casa (que me parecera ser um bloco de mármore de cem quilos) fora do meu peito havia já dois anos. Contudo, um homem tem de comer, o mesmo acontecendo à sua mulher. Além de que tínhamos o costume de enviar à nossa filha, e ao nosso genro, vinte dólares sempre que podíamos dar-nos a esse luxo (o que por vezes acontecia até mesmo quando não tínhamos meios para isso, sempre que as cartas da Jane deixavam adivinhar uma situação particularmente desesperada).
O marido era professor do ensino secundário, mas estava desempregado. Em consequência de tudo isto, não se desprezava um emprego certo como o meu... Sobretudo a sangue-frio, para ser mais concreto. Mas acontece que, nesse Outono, eu não sentia o sangue frio. A temperatura no exterior era anormalmente elevada para a estação do ano, para além de que a infecção, que alastrava no interior do meu corpo, fazia subir ainda mais o termóstato. E quando um homem se vê metido numa situação daquelas, ora bem, por vezes acontece que o seu punho age sem que esteja em consonância com o seu raciocínio. E, no caso de se atingir, uma vez que seja, um homem que tem tão bons conhecimentos como o Percy Wetmore, é possível que continuemos a atacá-lo insistentemente, uma vez que não existirá retrocesso possível.
- Vê se consegues aguentar-te - continuou o Moores numa voz tranquila. - Foi para te dizer isto que te chamei ao meu gabinete. Fui informado de boa fonte, de facto pela mesma pessoa que me telefonou esta manhã, que o Percy anda a ver se consegue arranjar um emprego no Briar, e tudo indica que o seu pedido de transferência será aceite.
- O Bnar! - exclamei. Moores estava a referir-se ao Briar Ridge, um dos dois hospitais administrados pelo estado. - O que é que esse rapazelho anda a fazer? Uma digressão pelas instituições estatais?
- Trata-se de um trabalho de carácter administrativo. O salário é melhor e só terá de despachar papéis, em vez de empurrar camas de hospital com o calor que faz. - O Moores brindou-me com um sorriso de esguelha. - Sabes, Paul, o mais certo era já te teres livrado dele se não o tivesses colocado no compartimento do quadro eléctrico com o Van Hay, quando o Chefe foi desta para melhor.
Durante alguns momentos, o que ele acabara de dizer pareceu-me tão peculiar que eu não fazia a mínima ideia de onde.é que pretendia chegar. Talvez eu não desejasse fazer a mais pequena ideia.
- Em que outro lugar é que eu poderia tê-lo posto? perguntei. - Jesus Cristo, ele mal sabe o que é que anda a fazer no bloco! Integrá-lo na equipa que trata das execuções... - Não acabei o meu pensamento. Era impossível. O potencial para a existência de complicações parecia não ter fim.
- Apesar de tudo, seria uma atitude assisada da tua parte colocá-lo na linha da frente da execução do Delacroix. Isto é, no caso de desejares ver-te livre dele.
Fiquei a olhar para o Moores com o queixo descaído. Finalnente, consegui erguê-lo até à posição onde pertencia, de molde a poder continuar a falar.
- O que é que estás para aí a dizer? Que ele quer ter uma nova experiência de forma a poder cheirar bem os tomates estorricados do fulano?
O Moores encolheu os ombros. Os seus olhos, que tinham mostrado uma expressão tão suave enquanto falara da mulher, exibiam agora uma expressão empedernida.
- Os tomates do Delacroix vão ser electrocutados, quer o Wetmore faça parte da equipa de execução ou não - acrescentou ele. - Certo?
- Sim, mas ele poderá lixar as coisas. De facto, Hal, o mais certo é ele vir a lixar as coisas. E em frente de trinta e tal testemunhas... entre elas, os repórteres que vêm da Luisiana...
- Tu e o Brutus Howell certificar-se-ão de que ele não arranja qualquer complicação - acrescentou o Moores. -ï Mas se ainda assim isso vier a acontecer, ficará registado na sua folha de serviço, onde permanecerá até muito depois de os seus conhecimentos a nível governamental terem desaparecido. Estás a compreender-me?
Eu compreendia. Aquele aspecto nauseava-me e assustava-me, mas o certo era que percebia até muito bem.
- É possível que ele queira ficar por aqui até à execução do Coffey, mas se tivermos um pouco de sorte, o Percy satisfará todas as suas necessidades mórbidas com o Delacroix. Assegura-te apenas de que o colocarás na linha da frente dessa execução.
Eu já planeara recambiar, uma vez mais, o Percy para o compartimento do quadro eléctrico, que na altura se situava no túnel, após o que ele seguiria ao lado da maca que levasse o Delacroix para a ambulância estacionada do outro lado da prisão. No entanto, naquela altura pus todos os planos para trás das costas, sem sequer pensar duas vezes. Indiquei ao Moores o meu acordo com um acenar de cabeça. Tive a percepção de que aquilo se tratava de um risco que eu estava a assumir, mas isso não me incomodou. Se pudesse livrar-me da presença do Percy Wetmore, estaria até disposto a fazer cócegas no nariz do próprio diabo. Ele poderia fazer parte da equipa que trataria da execução, poderia até ser ele a prender o capacete e olhar através da pequena janela de rede para dizer ao Van Hay que accionasse a alavanca para a fase dois; por mim, poderia muito bem observar o pequeno franciú a seguir no relampago que ele, Percy Wetmore, faria sair da lâmpada mágica. Enfim, permitir que ele sentisse o seu pequeno empolgamento macabro, se para ele isso se traduzisse no assassínio cometido com o beneplácito do estado. Que fosse trabalhar para o Briar Ridge, onde poderia ter o seu próprio gabinete com uma ventoinha que o arrefecesse. E se o tio por afinidade deixasse de exercer o cargo público para que fora investido durante as próximas eleições, e ele fosse obrigado a descobrir o que era trabalhar a sério neste velho mundo cheio de dificuldades que assava sob o sol escaldante, onde nem todos os tipos de maus (gados eram encarcerados atrás das grades, e onde por vezes levávamos na cabeça, tanto melhor.
- Muito bem - proferi eu por fim, levantando-me da cadeira. - Pô-lo-ei na linha da frente aquando da execução do Delacroix. E entretanto, esforçar-me-ei por manter a paz.
- Óptimo - replicou o Moores, que também se pôs de pé. - A propósito, como é que está o teu problema? - perguntou ele, apontando delicadamente para a região das minhas virilhas.
- Dá-me a impressão de que está um pouco melhor - respondi.
- Pois bem, isso é excelente. - O Moores acompanhou-me até à porta. - E a respeito do Coffey, há alguma coisa de novo? Parece-te que ele venha a provocar algum problema?
- Não - redargui. - Até agora ele tem-se mantido tão calado como um galo morto. É um homem estranho... tem uns olhos esquisitos, mas é calado. Contudo, tencionamos manter-nos atentos ao seu comportamento. Não te preocupes com esse assunto.
- É claro que estás bem a par do que ele fez. - Com certeza - assenti.
O Moores tinha-me acompanhado até ao gabinete que antecedia o seu onde a velha Miss Hannah matraqueava na sua máquina de escrever Underwood, como sempre havia feito desde que a última Idade do Gelo tinha chegado ao fim, ou pelo menos era o que dava a impressão. Sentia-me satisfeito por poder sair dali. Tudo resumido e concluído, senti que me tinha safado com muita facilidade daquela situação delicada. E era bastante agradável saber que, ao fim e ao cabo, existia uma hipótese de conseguir sobreviver ao Percy.
- Diz à Melinda que lhe envio uma cesta cheia de carinho - disse eu. - E não te prepares para arranjar problemas. O mais provável é chegar-se à conclusão de que tudo não passa de meras enxaquecas.
- Aposto que sim - retrucou o Moores e, sob os olhos adoentados, os seus lábios esboçaram um sorriso. Aquela combinação fisionómica encontrava-se diabolicamente próxima do fantasmagórico.
Quanto a mim, regressei ao Bloco E a fim de dar início a outro dia de trabalho. Havia uma data de papelada que devia' ser lida e redigida. Chão que precisava de ser lavado, refeições que teriam de ser servidas, uma escala de trabalho a ser elaborada para a semana seguinte, enfim, uma centena de pormenores que necessitavam da minha atenção. Mas acima de tudo havia espera - na prisão há sempre muito disso. Espera que o Eduard Delacroix começasse a percorrer a Milha; Verde, espera que o William Wharton chegasse com o seu lábio contorcido, fazendo-se acompanhar da tatuagem de Billy the Kid, e, acima de tudo o mais, espera que o Percy Wetmore desaparecesse da minha vida de uma vez por todas.
O rato do Delacroix era um dos mistérios de Deus. Eu nunca tinha visto uma criatura daquelas no Bloco E antes daquele Verão, e nunca mais voltei a avistar outra depois daque
le Outono, altura em que o Delacroix deixou a nossa companhia, numa noite abafada e de trovoada em Outubro deixou-a de uma forma tão inqualificável, que mal consigo forçar-me a recordar essa ocasião. O Delacroix afirmara que havia domesticado aquele rato, que iniciou a sua vida entre nós com o nome de Steamboat Willy, mas eu estou realmente convencido de que as coisas se processaram na ordem inversa. O Dean Stanton era da mesma opinião, bem como o Brutal. Tanto um como o outro se encontravam presentes na noite em que o rato fez a sua primeira aparição.
- A criatura já está meio domesticada e é duas vezes mais esperta do que esse cajun que pensava ser o seu dono - dissera Brutal então.
O Dean e eu estávamos no meu gabinete, examinando a caixa com os ficheiros do ano transacto, a prepararmo-nos para escrever cartas de acompanhamento da situação às testemunhas de cinco execuções, e outras cartas de acompanhamento das de acompanhamento enviadas anteriormente, relativas a outras seis execuções que recuavam até 1929. Basicamente, pretendíamos saber apenas uma coisa: sentiam-se essas pessoas satisfeitas com os nossos serviços? Eu sei que isso pode parecer grotesco, mas de facto tratava-se de um assunto bastante importante. Na sua qualidade de contribuintes, aquelas pessoas eram os nossos clientes, embora tivessem características muito especiais. Um homem ou uma mulher que apareça na prisão à meia-noite para poder assistir à morte de um ser humano tem de ter uma razão premente e muito especial para ali ir, uma necessidade bastante peculiar, e, se a execução é um castigo adequado, nesse caso essa necessidade terá de ser satisfeita. Eles tiveram um pesadelo. A finalidade das execuções é mostrar-lhes que esse pesadelo chegou ao fim. Talvez as coisas funcionem realmente dessa maneira. Por vezes.
- Ei! - chamou o Brutal do lado de fora da porta, onde se encontrava na secretária do guarda de serviço situada ao fundo do corredor. - Ei, vocês dois! Venham até aqui fora!
O Dean e eu trocámos um olhar de alarme, pensando que deveria ter acontecido alguma coisa ao índio de Oklahoma (o nome dele era Arlen Bitterbuck, mas costumávamos chamar-lhe Chefe... ou, no caso do Harry Terwilliger, Chefe Queijo de Cabra, porque era a isso que o Harry afirmava que o Bitterbuck cheirava), ou ao tipo que apelidávamos de Presidente. Mas foi então que o Brutal começou a rir-se; corremos a saber o que estava a passar-se. Os risos no Bloco E eram quase tão profanos como os risos no interior de uma igreja.
O velho Pouca Terra, o prisioneiro de confiança que nesse tempo costumava empurrar o carrinho da comida, encontrava-se presente com o seu arsenal, e o Brutal já se tinha abastecido para a longa noite que teria pela frente - três sanduíches, dois refrigerantes e uns dois bolos. Também uma porção de salada de batata que o Pouca Terra devia ter fanado das cozinhas da prisão, instalações que, supostamente, deveriam estar fora do seu alcance. O Brutal mantinha o livro de registos aberto à sua frente e, caso para grande admiração, ainda não derramara nada em cima das folhas. Como é evidente, tinha acabado de começar o seu turno.
- O que é que se passa? - perguntou Dean. - O que é que foi?
- Ao fim e ao cabo, o corpo legislativo do estado deve ter aberto suficientemente os cordões à bolsa para este ano poder contratar outro guarda - acrescentou o Brutal com uma gargalhada. - Olhem bem para ali.
Apontou e nós avistámos o rato. Também comecei a rir-me, e o Dean juntou-se a nós. Era impossível evitar que nos ríssemos, uma vez que qualquer guarda que estivesse a fazer os seus quartos de ronda teria tido o mesmo aspecto daquele rato; um guarda peludo e ínfimo que se assegurava de que! ninguém tentava fugir ou suicidar-se. Dava uma pequena corrida ao longo da Milha Verde na nossa direcção, após o que rodava a cabeça de um lado para o outro, como se passasse revista ao interior das celas. Em seguida, encetava outra corrida em frente. O facto de podermos ouvir o ressonar dos doi reclusos que na altura ocupavam aquele bloco, apesar dos gritos e os risos, tornava a situação ainda mais caricata e divertida.
Tratava-se de um rato de pêlo castanho perfeitamente vul gar, excepto quanto à forma como parecia estar a investigar o interior das celas. Chegou mesmo ao ponto de entrar numa esgueirando-se habilmente por entre as barras inferiores, de uma maneira que faria inveja a muitos dos nossos prisioneiros, passados e presentes. Com a excepção de que, como era evidente, seria para fora que os reclusos haveriam sempre de querer fugir.
O rato não entrou em nenhuma das celas que estavam ocupadas, tendo ido apenas às vazias. Finalmente, encontrava-se prestes a chegar ao sítio onde nos encontrávamos. Fi quei sempre à espera que retrocedesse, mas não o fez. Nã mostrava sentir qualquer receio da nossa presença.
- Não é normal que um rato se abeire das pessoas desta forma - comentou o Dean com um certo nervosismo. - Talvez ele esteja raivoso.
- Oh, meu bom Jesus! - retorquiu o Brutal com a boca cheia de pão com carne de conserva. - Temos aqui o grande perito em ratos. O Homem dos Ratos. Estás a vê-lo a espumar aos cantos da boca, Homem dos Ratos?
- Nem sequer sou capaz de ver a boca do bicho - resorquiu o Dean, provocando outra vaga de hilaridade. Eu tam bém não conseguia vislumbrar a boca da criatura, embora distinguisse as duas pequenas contas negras e cintilantes que eram os seus olhos, não me dando a impressão de estarem raivosos ou tresloucados. Pelo contrário, exibiam uma expressão interessada e inteligente. Eu já tivera oportunidade de conduzir homens até à morte - homens que, supostamente, possuíam uma alma imortal - que haviam exibido uma expressão mais estúpida do que a daquele rato.
Recomeçou a percorrer velozmente a Milha Verde até um ponto apenas a cerca de noventa centímetros da mesa do guarda de serviço... a qual não tinha nada de rebuscado, como poderão imaginar, sendo apenas o género de secretária a que os professores costumavam sentar-se na escola secundária. Chegado a esse ponto, a criatura deteve a sua corrida, enrolando a cauda à volta das patas, numa atitude tão composta como a de uma velha senhora a ajeitar as saias.
De repente, passou-me a vontade de rir, sentindo eu, inesperadamente, o meu corpo a ser percorrido até aos ossos por um calafrio gélido. Gostaria de poder dizer que não sabia por que motivo é que tivera aquela sensação - ninguém gosta de dar mostras de algo que nos pode ridicularizar aos olhos dos outros - mas é claro que sabia e, se é que posso dizer a verdade a respeito do resto, creio que também possa dizer a verdade sobre isto. Por breves instantes, imaginei como seria estar na pele daquele rato, deixando de ser um guarda prisional, mas apenas um outro criminoso que se encontrasse ali, na Milha Verde, acusado e condenado, mas ainda capaz de erguer o olhar corajosamente para aquela mesa, que deveria parecer ter uma altura de vários quilómetros (tal como o assento em que se encontra Deus no dia do juízo sem dúvida parecerá um dia a todos nós), fitando também os gigantes de casacos azuis e vozes profundas que se sentavam por detrás dela. Gigantes que disparavam contra os da sua própria espécie, ou que os vergastavam com o cabo de vassouras, ou que lhes montavam armadilhas, armadilhas que partiam o dorso a qualquer um que rastejasse cautelosamente por cima da palavra VENCEDOR a fim de poder mordiscar o queijo sobre o pequeno prato de cobre.
Junto da mesa do guarda de serviço não se via qualquer vassoura, mas havia um balde com uma esfregona, estando esta dentro da parte com orifícios onde era torcida; eu já tinha cumprido a minha quota-parte de lavar o linóleo verde do
corredor e das seis selas pouco antes de me sentar com o Dean na companhia da caixa dos arquivos. Reparei que o Dean tinha intenção de agarrar na esfregona, cumprindo aquela parte da sua tarefa. Toquei-lhe no pulso quando os seus dedos se dirigiram para o cabo fino de madeira.
- Deixa estar - disse eu.
Ele encolheu os ombros e retirou a mão da esfregona. Sentia que ele tinha tanta vontade de lavar o chão quanto eu próprio tivera.
O Brutal separou um bocado do canto da sua sanduíche de carne em conserva e manteve-o suspenso acima da parte da frente da mesa, delicadamente seguro entre dois dedos;
O rato dava a impressão de erguer o olhar com um interesse ainda mais vivaz, como se soubesse exactamente o que era aquilo. Provavelmente sabia; eu avistava os seus bigodes a fremirem enquanto ele torcia o focinho.
- Ei, Brutal, não! - exclamou o Dean, olhando para mim. - Não o deixes fazer isso, Paul! Se começarmos a dar de comer a tipos desses é o mesmo que estendermos o tapete de boas-vindas para qualquer coisa que ande sobre quatro patas. - Eu só quero ver o que é que ele faz - disse o Brutal à guisa de justificação. Como se fosse no interesse da ciência. Olhou para mim, eu era o chefe, até mesmo no que dizia respeito aos pequenos desvios da rotina, como aquele. Pensei no assunto e encolhi os ombros, como se não tivesse qualquer importância. Mas a verdade era que eu também sentia curiosidade em ver o que é que o rato faria.
Pois bem, como é evidente, comeu o que lhe deram. Ao fim e ao cabo, não devíamos esquecer-nos de que nos encontrávamos no meio da Grande Depressão. Mas a forma como ele comeu fascinou-nos a todos. Aproximou-se do bocado de sanduíche, começou a farejá-lo descrevendo um círculo em seu redor, sentou-se à sua frente como se fosse um cão a fazer uma habilidade, foi-se a ele, e afastou o pão para poder chegar à carne. Procedia com tanta deliberação e conhecimento como se fosse um homem a atacar um bom rosbife no seu restaurante preferido. Eu nunca tinha visto um animal comer daquela maneira, nem sequer um cão bem ensinado. E durante todo o tempo em que esteve a comer, os seus olhos nunca se desprenderam de nós.
- Das duas uma: ou se trata de um rato muito esperto ou está com uma fome dos diabos - comentou uma nova voz. Era o Bitterbuck. Tinha despertado entretanto e naquele momento encontrava-se junto às barras da sua cela, todo nu à excepção de uns calções largos no traseiro que lhe davam pelo meio da coxa. Entre os nós do indicador e do dedo médio da mão direita tinha um cigarro que enrolara nume mortalha; os seus cabelos de um grisalho cor do ferro pendiam-lhe por cima dos ombros, outrora talvez musculosos, mas que agora começavam a ficar flácidos, presos num par de tranças.
- Conheces algum provérbio índio sobre ratos, Chefe? - perguntou o Brutal, observando o rato que continuava a comer. Todos nos sentíamos encantados com a maneira como ele segurava num pedaço de carne de conserva, com as patas dianteiras, voltando-a de vez em quando para a examinar bem, como se admirasse e apreciasse o naco de alimento.
- Não - respondeu o Bitterbuck - Em tempos conheci um bravo que possuía um par de luvas daquilo que clamava ser de pele de rato, mas nunca acreditei nisso. - Em seguida, o homem soltou uma gargalhada, como se tudo aquilo fosse uma piada, e afastou-se das barras de ferro. Ouvimos a tarimba a ranger; voltara a deitar-se.
Para o rato, aquilo pareceu ser o sinal de que estava na hora de se ir embora. Terminou o bocado de carne que segurava nas patas, farejou o que tinha ficado (na sua maior parte o pão amarelado ensopado com mostarda) e olhou para trás, fitando-nos, como se não desejasse esquecer-se dos nossos rostos, caso voltássemos a encontrar-nos. Em seguida, deu meia volta e começou a correr pelo mesmo caminho por onde viera; desta feita, não se deteve para inspeccionar qualquer das celas. A pressa com que ele se deslocava trouxe-me ao pensamento o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, o que me fez sorrir. Não parou junto da porta da cela do isolamento, tendo desaparecido por baixo desta. Aquela sala tinha paredes almofadadas e destinava-se às pessoas cujos cérebros haviam enfraquecido. Era ali que costumávamos guardar os materiais de limpeza, sempre que não necessitávamos de utilizar aquele espaço para a finalidade a que se destinava, assim como alguns livros (na sua maioria da autoria de Clarance Mulford e sobre o velho Oeste, mas havia um - que só era emprestado em ocasiões especiais - que contava uma história profusamente ilustrada, na qual Popeye, Pluto e até mesmo Wimpy, os fanáticos dos hambúrgueres, tiravam à vez fornicar com a Olívia Palito). Também havia vários materiais de desenho incluindo os lápis de cera a que, posteriormente, o Delacroix deu boa utilização. Não que ele já houvesse começado a ser o nosso problema; não se esqueçam de que isto se passou numa data anterior. Na cela do isolamento também havia um colete-de-forças que ninguém queria usar - branco, feito de lona reforçada e pespontada, que tinha todos o botões, fechos e fivelas na parte de trás. Todos nós sabíamoy como manietar uma criança problemática, restringindo-a naquele colete à velocidade de um golpe súbito. Não era muito frequente os reclusos tornarem-se violentos, mas, sempre que tal acontecia, meu amigo, não ficávamos à espera que a situa ção viesse a melhorar por si própria.
O Brutal abriu a gaveta da secretária por cima do espaço para as pernas, de onde retirou o livro volumoso encadernado a pele, em cuja capa estava escrita a palavra VISITANTES a letras folheadas a ouro. Habitualmente, aquele livro permanecia no interior da gaveta de um mês para o outro. Sempre que um prisioneiro recebia visitas - amenos que se tratasse de um advogado ou de um reverendo - costumava dirigir-se à sala adjacente ao refeitório, que era especialmente reservada para esse efeito. Costumávamos chamar-lhe "a Arcada". Não sei bem por que motivo.
- O que raio pensas que estás a fazer? - perguntou Dean Stanton, espreitando por cima das lentes dos óculos en quanto o Brutal abria o livro, folheando, numa atitude de grande formalidade, as páginas referentes aos anos anteriores onde estavam inscritos os nomes dos visitantes dos homens que naquele momento já tinham morrido.
- Estou a obedecer ao Regulamento Número Dezanove --+. replicou o Brutal, chegando à página actual. Agarrou no lápis e lambeu a ponta, um hábito bastante desagradável que ele não conseguia perder, e preparou-se para começar a escrever.' O Regulamento 19 dizia muito simplesmente: "Todas as visitas que venham ao Bloco E têm de mostrar um passe amarelo, emitido pela administração, devendo o seu nome ser registado sem falta nenhuma."
- Passou-se do juízo - comentou o Dean, dirigindo-se a mim.
- O rato não nos mostrou o passe, mas desta vez estou disposto a deixar passar essa lacuna - acrescentou o Brutal.; Deu outra lambidela extra à ponta do lápis para lhe trazer sorte, e começou a escrever 9h 49m por baixo da coluna intitulada HORA DE CHEGADA AO BLOCO.
- Com certeza, e porque não? Provavelmente os manda-chuvas fazem excepções em relação aos ratos - adiantei eu. - Claro que fazem - concordou o Brutal.
Virou-se para ver as horas no relógio de parede que se encontrava por detrás da mesa e registou 10h 01m na coluna encimada pelo título HORA DE SAIDA Do BLOCO. O espaço mais alongado entre estas duas colunas tinha por título NOME DO VISITANTE. Depois de ter pensado com uma expressão bastante concentrada durante uns momentos - plausivelmente para avaliar as suas limitadas capacidades de soletrar, uma vez que tenho a certeza de que a ideia já se havia formado na sua cabeça - o Brutus Howell escreveu com todo o cuidado Sr e senhora Y, nome que a maior parte das pessoas dessa época costumava chamar ao Rato Mickey. Isso era por causa daquele primeiro desenho animado falado, onde ele revirava os olhos, batendo com as ancas em todo o lado, enquanto puxava pela corda do apito na cabina do timoneiro do barco a vapor.
- Aqui está - disse o Brutal, fechando o livro com estrondo e voltando a colocá-lo no interior da gaveta -, tudo concluído e encerrado.
Ri-me, mas o Dean, que não conseguia evitar uma expressão de seriedade em relação a tudo, ainda que soubesse que uma determinada coisa era uma Simples brincadeira, franzia o sobrolho irritado enquanto limpava furiosamente as lentes dos óculos.
- Se alguém ler isso acabarás por ter problemas. - Hesitou um pouco, acrescentando: - Se esse alguém for pessoa errada... - Vacilou uma vez mais, olhando em seu redor da forma característica dos curtos de vista, como se esperasse ver que as paredes tinham adquirido orelhas, antes de terminar a sua linha de raciocínio: - Alguém como, por exemplo o Percy "Lambe-me-o-olho-do-cu-e-vai-para-o-paraíso" Wetmore.
- Hum... - resmungou o Brutal. - No dia em que o Percy Wetmore sentar o seu traseiro escanzelado aqui em baixo, a esta mesa será o dia em que me demito.
- Não terás necessidade de chegar a esse ponto - atalhou o Dean. - Antes que isso aconteça, serás despedido por escreveres palermices no livro dos visitantes, no caso de o Percy segredar ao ouvido certo as palavras adequadas. O que ele pode muito bem fazer. Sabes que é assim.
O Brutal mostrou um semblante enfurecido, mas não proferiu qualquer palavra. Mais tarde, nessa mesma noite, cheguei à conclusão de que ele tencionava apagar o que tinha escrito. Caso não o fizesse eu próprio trataria desse assunto.
Na noite seguinte, depois de ter primeiro levado o Bitter, buck e depois o Presidente até ao Bloco D, onde o nosso grü po tomava duche após os prisioneiros comuns já estare" fechados para a noite, o Brutal perguntou-me se não deveria mos procurar o Steamboatlly na cela do isolamento.
- Acho que sim - respondi. Ainda nos tínhamos divertido à custa do rato na noite anterior; todavia, eu sabia que se o Brutal e eu o descobríssemos na cela do isolamento, muito em particular se verificássemos que começara a fazer um ninho, esburacando uma das paredes almofadadas, seríamos forçados a matá-lo. Era preferível eliminar o batedor, independentemente do quão divertido ele pudesse ser, do que ser-se obrigado a viver com os colonizadores. E, como calculam nenhum de nós sentia grande relutância em levar a cabo uma pequena matança de ratos. Ao fim e ao cabo, o estado pagava-nos para matarmos homens que não eram melhores do que ratazanas.
No entanto, não descobrimos o paradeiro do Steamboa. - o qual mais tarde viria a ser conhecido pelo nome de Mister Jingles - nessa noite; não se encontrava aninhado em,
nenhuma das paredes acolchoadas, nem atrás de qualquer dos tarecos que levámos para o corredor. De facto, havia uma grande quantidade de tralha, mais do que eu esperara encontrar, uma vez que já há muito tempo não éramos obrigados a usar a cela do isolamento. Essa situação viria a alterar-se com o surgimento do William Wharton, mas, como é evidente, naquela altura não sabíamos que assim seria. Que sorte a nossa!
- Para onde é que ele terá ido? - perguntou o Brutal por fim, limpando o suor que se lhe tinha acumulado na nuca' com um grande lenço azul. - Não existem buracos nem fendas... como se pode ver, mas... - Apontou para um ralo no chão. Por baixo da grade, através da qual o rato poderia ter escapado, havia uma rede apertada de aço, por onde nem sequer uma mosca conseguiria passar. - Como é que ele teria entrado? E como é que conseguiu sair?
- Não sei - repliquei.
-Ele entrou para aqui, não é verdade? Quer dizer, nós; os três vimos que assim foi.
- Sim, através da fresta inferior da porta. Teve de se espremer um bocado, mas o certo é que conseguiu passar. -Meu Deus! - exclamou o Brutal... As palavras soavam de forma estranha vindas de um homem tão corpulento.
É uma grande sorte para nós que os prisioneiros não tenham poderes para ficar assim tão pequenos, não achas?
- Podes apostar que sim - redargui, percorrendo com o olhar as paredes de lona, o que fiz uma última vez à procura de um orifício qualquer ou uma fenda, enfim, qualquer coisa. Não avistei nada do género. - Vamos embora, já vimos tudo.
O Steamboat Willy brindou-nos de novo com a sua presença três noites mais tarde, numa altura em que o Harry Terwilliger se encontrava de serviço na mesa do corredor. O Percy também estava de serviço, e perseguiu o rato que fugia pela Milha Verde, servindo-se da mesma esfregona que o Dean pensara em utilizar. O roedor esquivou-se do Percy com toda a facilidade, escapando-se pela fresta por baixo da porta da cela do isolamento; o animal saiu vencedor sem a mínima dificuldade. Praguejando em altos berros, o Percy abriu a porta fechada à chave, tendo removido de novo do interior toda a cangalhada que lá se encontrava. A sua atitude era simultaneamente divertida e assustadora, de acordo com as palavras do Harry. O Percy jurava que haveria de encontrar o maldito do rato, após o que lhe arrancaria impiedosamente a pequena cabeça, mas, como é óbvio, não teve oportunidade de o fazer. Todo transpirado e desalinhado, com a fralda da camisa da farda fora das calças nas costas, regressou à secretária trinta minutos mais tarde, afastando o cabelo dos olhos e dizendo ao Harry (o qual, durante a maior parte daquele rebuliço, se tinha mantido calmamente sentado a ler) que estava decidido a colocar fita isoladora na parte inferior da porta; isso acabaria por resolver o problema do verme, declarou ele enfaticamente.
- Aquilo que achares melhor, Percy - dissera o Harry, virando uma página do romance de cordel que estava a ler. Calculava que o Percy acabaria por se esquecer de tapar a fresta da porta, no que não se enganou.
Mais tarde nesse mesmo Inverno, muito depois de se terem passado todas estas coisas, o Brutal veio falar comigo numa bela noite em que só nós dois estávamos presentes, dado que o Bloco E se encontrava temporariamente vazio, pois os outros guardas haviam sido destacados para outras funções, com carácter temporário. Entretanto, o Percy já tinh ido para o Briar Ridge.
- Anda cá - disse-me o Brutal com uma voz estranha e constrangida que fez com que eu olhasse atentamente à sua volta. Eu acabara de sair de uma noite fria com granizo, e estava a sacudir os ombros do meu sobretudo antes de o pendu rar no bengaleiro.
- Passa-se alguma coisa de anormal? - perguntei, sur preendido.
- Não - respondeu ele -, mas já descobri onde é que o Mister Jingles estava instalado. Quero dizer, quando ele apareceu pela primeira vez, antes de o Delacroix ter começado a tratar dele. Estás interessado em ver?
Claro que estava. Seguiu-o pela Milha Verde até à cela do isolamento. Toda a tralha que costumávamos guardar ali fora arrastada para o corredor; aparentemente, o Brutal tinha aproveitado a ausência de tráfego de clientes para proceder a algumas arrumações. A porta mantinha-se aberta, o que me permitiu avistar no interior da cela o nosso balde com a esfregona. O chão, revestido com aquele mesmo linóleo de umesverdeado doentio, à semelhança da própria Milha Verde, ainda não secara por completo. No meio da cela fora armada uma escada de mão, aquela que habitualmente era guardada na sala da arrecadação, e que, por acaso, também era a que servia como ponto de paragem dos condenados pelo estado. Da parte de trás do escadote saía uma espécie de prateleira, junto ao topo, o tipo de superfície que um trabalhador utilizaria para colocar a sua caixa de ferramentas, ou onde um" pintor poria as suas latas de tinta. Sobre ela via-se uma lanterna de bolso. O Brutal entregou-ma:
- Sobe até ali. Tu és mais baixo do que eu, por isso vais ter de subir quase até ao cimo, mas eu seguro-te pelas pernas. - Tenho cócegas aí em baixo - disse eu, começando a , subir a escada de mão. - Especialmente na região dos joelhos.
- Eu tenho cuidado com isso.
- Óptimo - repliquei -, porque uma bacia quebrada é um preço demasiado elevado para descobrir as origens de um só rato.
- Hem?
Não faças caso. - Nessa altura, a minha cabeça já se encontrava ao mesmo nível da lâmpada dentro de uma armadura no centro do tecto e eu sentia que o escadote estremecia um pouco sob o peso do meu corpo. Vindos do lado de fora, ouvia os gemidos do vento. - Presta atenção e segura-me bem.
- Tenho-te bem seguro, não te preocupes. - O Brutal mantinha as minhas coxas firmemente agarradas e subi mais um dos degraus; agora, o cimo da minha cabeça encontrava-se a menos de tenta centímetros do tecto, sendo-me possível avistar as teias das aranhas mais empreendedoras nas funções das vigas do tecto. Fiz incidir o feixe de luz em redor, sem descortinar nada que valesse o risco que a minha pessoa corria naquele lugar.
- Não - disse o Brutal. - Estás a olhar para muito longe, Paul. Olha para a tua esquerda, para o ponto onde essas duas vigas se juntam. Estás a vê-las? Uma delas está um bocado descolorida.
- Estou a ver - afirmei.
- Faz incidir a luz sobre a junção.
Fiz como ele me dizia e deparei quase de imediato com o que o Brutal queria que eu visse. As duas vigas haviam sido unidas com cavilhas, meia dúzia delas, tendo desaparecido uma que deixara um orifício circular e escurecido, do tamanho de uma moeda de vinte e cinco cêntimos. Olhei para aquilo e afivelei uma expressão de dúvida, fitando o Brutal por cima do ombro.
- De facto, era um rato pequeno - disse eu -, mas assim tão pequeno? Ó pá, não me parece.
- Mas foi aí que ele se escondeu - afirmou o Brutal, convicto. - Aposto o que quiseres.
- Não estou a ver como é que podes ter assim tanta certeza.
- Inclina-te mais... não te preocupes, estou a segurar-te as pernas, e sopra.
Fiz como ele me dizia, agarrando-me a uma das outras traves com a mão esquerda, sentindo-me um pouco mais equilibrado depois de me ter firmado bem. O vento que continuava a soprar lá fora fez-se ouvir de novo; sentia no rosto o ar a sair daquele orificio. Conseguia cheirar a lufada agreste de uma noite de Inverno na linha limítrofe do Sul... juntamente com algo mais.
O cheiro a hortelã-pimenta.
Não permitam que aconteça alguma coisa ao Mister Jingles, ouvia eu a voz do Delacroix a dizer-me num timbre que se recusava a manter-se firme. Ouvia aquelas palavras ao mesmo tempo que sentia o calor do corpo do Mister Jingles, quando o francês mo passou para as mãos, somente um mero rato, sem dúvida que mais esperto do que os da maioria da espécie, mas que não deixava de ser um simples rato, independentemente de tudo o mais. Não deixem que esse tipo malvado faça mal ao meu rato, dissera ele, e eu prometera-lho, tal como acabo sempre por lhes prometer tudo quando o fim se aproxima, na ocasião em que percorrer a Milha Verde{ deixara de ser um mito, ou uma mera probabilidade, passando a ser algo a que eles não podiam fugir. "Ponha esta carta no correio para o meu irmão que já não vejo há vinte anos." Eu prometia. "Diga quinze ave-marias pela minha alma." Eu prometia. "Deixe-me morrer com o meu nome espiritual e certifique-se de que fica escrito na minha lápide." Eu prometia. Era a maneira de fazermos com que eles fossem sem criar grandes complicações, a maneira de os vermos sentados na cadeira situada ao fundo da Milha Verde, mantendo intacta a sua sanidade mental. Era-me impossível cumprir todas aquelas promessas, como é evidente, mas mantive a que tinha feito ao Delacroix. Quanto ao próprio franciú, tinham surgido graves complicações. O sujeito malvado tinha feito mal ao Delacroix, tinha-o magoado e muito. Oh, eu sei bem o que ele fez, sem dúvida, contudo, ninguém merecia aquilo que aconteceu ao Eduard Delacroix quando ele foi enlaçado pelo abraço mortífero da Velha Faísca.
Um cheiro a hortelã-pimenta.
E outra coisa mais. Algo que se encontrava bem no interior do orificio.
Retirei uma caneta do bolso da minha camisa, servindo-me da mão direita e continuando a manter-me bem agarrado à viga com a esquerda; tinha deixado de me preocupar com a possibilidade de o Brutal, inadvertidamente, me fazer cócegas nos joelhos que tão sensíveis eram. Com uma só mão desenrosquei a tampa da caneta, e com a ponta arrastei qualquer coisa para fora do buraco. Era uma lasca ínfima de madeira que havia sido tingida de um amarelo rutilante; comecei a ouvir a voz do Delacroix uma vez mais, desta feita com tanta clareza que o seu fantasma deve ter pairado naquela cela junto de nós - aquela onde o William Wharton passava tanto do seu tempo.
Eh, vocês aí!, disse a voz desta vez - a voz espantada e risonha de um homem que se esqueceu, pelo menos durante algum tempo, do lugar onde se encontra e daquilo que o aguarda.
Venham ver o que é que o mister Jingles consegue fazer!
Meu Deus! - sussurrei. Senti-me como se alguém me houvesse cortado a respiração.
- Descobriste outro, não é verdade? - perguntou o Brutal. - Eu descobri três ou quatro - acrescentou ele. Desci pela escada de mão e fiz incidir a luz da lanterna sobre a palma da sua grande mão, que ele mantinha aberta. Sobre ela viam-se espalhadas várias lascas de madeira, como se fossem um jogo de pauzinhos de elfos. Duas delas eram amarelas, iguais à que eu tinha encontrado. Também havia outra verde e uma vermelha. Não haviam sido pintadas, mas sim coloridas, com os lápis de cera Crayola.
- E esta, hem! - exclamei numa voz baixa e estremecida. - Não querem lá ver! São bocados de carretel, não é verdade? Mas porquê? Porquê aqui em cima? - perguntei.
- Quando eu era mais novo, não era tão grande como sou agora - disse o Brutal. - A maior parte do meu crescimento ocorreu entre os quinze e os dezassete anos. Até essa idade, era quase um anão. Quando fui para a escola da primeira vez, senti-me tão pequeno como se fosse... ora bem, tão pequeno como um rato, calculo que se possa estabelecer essa comparação. Sentia-me quase a morrer de medo. Assim, sabes o que é que eu fiz?
Abanei a cabeça. Lá fora, ouviram-se de novo as rajadas de vento. Nos ângulos formados pelos barrotes, as teias de aranha estremeceram, fazendo oscilar os seus delicados fios, como se fossem renda esfarrapada. Eu jamais tinha estado num lugar que me provocasse uma sensação de assombração tão intensa, e foi precisamente nesse momento, enquanto nós dois olhávamos para os restos lascados do carretel que tantas complicações havia causado, que a minha cabeça começou a ter a percepção daquilo que o meu coração compreendera, desde que o John Coffey percorrera a Milha Verde: eu não poderia continuar a exercer aquelas funções durante muito mais tempo. Com ou sem Grande Depressão, não seria capaz de observar muitos mais homens a entrar no meu gabinete, como se este fosse a antecâmara da morte. Até mesmo só mais um poderia vir a ser demasiado.
- Pedi à minha mãe que me desse um dos seus lenços de assoár - continuou o Brutal. - Por conseguinte, quando sentia que estava prestes a choramingar, sentindo-me muito pequeno, podia tirá-lo da algibeira e cheirar o seu perfume, o que tinha o efeito de fazer com que eu não me sentisse tão mal.
- Estás a pensar... em quê? Que o rato roeu um bocado desse carretel colorido, com o fim de se recordar do Dela. croix? Que um rato...
O Brutal soergueu o olhar. Por uns momentos fugazes pareceu-me ter visto lágrimas nos seus olhos, mas calculo que me deveria ter enganado quanto a isso.
- Eu não estou a afirmar nada, Paul. Mas o certo é que as encontrei ali em cima e cheirou-me a hortelã-pimenta, tal como a ti... Sabes que isso é verdade. E não sou capaz de continuar a fazer isto. Recuso-me a continuar a fazer isto. O facto de ser obrigado a ver outro homem sentado naquela cadeira será o suficiente para dar cabo de mim. Na segunda-feira tenciono apresentar um pedido de transferência para o Estabelecimento Correccional Juvenil. Se conseguir ser transferido antes da próxima execução seria óptimo. Se tal não se verificar, demito-me e regresso à lavoura.
- O que é que tu alguma vez amanhaste, para além de pedras?
- Isso não interessa para o caso - respondeu o Brutal: - Eu sei que não - redargui. - Parece-me que vou fazer a mesma coisa que tu.
Olhou-me atentamente, assegurando-se de que eu não es tava a brincar com ele, e acenou com a cabeça como se aquele assunto fosse uma coisa mais que decidida. Uma vez mais ouviram-se rajadas de vento suficientemente violentas para fazer ranger as traves do tecto; ambos olhámos para as paredes almofadadas, sentindo um certo mal-estar. Parece-me que por momentos conseguimos ouvir o William Wharton - e não o Billy the Kid, esse não, para nós sempre fora o Bill Selvagem desde o primeiro dia em que aparecera no bloco a gritar e a rir-se, dizendo-nos que iríamos sentir-nos diabolicamente satisfeitos quando nos livrássemos dele, mas que nunca conseguiríamos esquecê-lo! Ele tivera toda a razão.
Quanto àquilo em que o Brutal e eu tínhamos concordado naquela noite, na cela do isolamento, as coisas vieram a desenrolar-se dessa forma. Era quase como se houvéssemos proferido um juramento sagrado sobre aqueles pequenos pedaços de madeira colorida. Nenhum de nós voltou a participar numa execução. O John Coffey foi o último.
Parte II
O RATO NA MILHA
O lar para a terceira idade onde ponho os últimos pontos nos "is" e cruzo os últimos "tês" chama-se Georgia Pines. Situa-se a menos de cem quilómetros de Atlanta, e a duzentos anos-luz do dia-a-dia da maior parte das pessoas - estou a referir-me às pessoas com menos de oitenta anos de idade. O leitor que está a ler este livro deverá acautelar-se certificando-se duque não existe um lugar destes à sua espera num futuro próximo. Não é que seja um sítio cruel, pelo menos na maioria dos seus aspectos; temos televisão por cabo e a alimentação é boa (embora haja muito poucos alimentos que um homem possa mastigar), mas, de certa forma, tem tanto de antecâmara da morte, sem tirar nem pôr, como acontecia com o Bloco E, em Cold Mountain.
Até há aqui um fulano que me traz à recordação a imagem do Percy Wetmore; este conseguiu arranjar o emprego na Milha Verde porque era parente, por afinidade, do governador do estado. Duvido muito que o sujeito que trabalha no lar seja da família de alguém importante, embora isso não o impeça de se comportar como se o fosse. Chama-se Brad Dolan. Passa o tempo a pentear o cabelo, tal como o Percy costumava fazer, e tem sempre alguma coisa para ler dentro do bolso traseiro das calças. No caso do Percy eram revistas, como por exemplo Argosy e Men's Adventure; no que diz respeito ao Brad são estes pequenos livros de bolso com o nome de Piadas Porcas e Anedotas Nojentas. Anda sempre a perguntar às pessoas porque é que o francês atravessou a rua, ou quantos polacos é que são precisos para enroscar uma lâmpada, ou ainda quantos homens é que são necessários para carregar um caixão num funeral em Harlem. À semelhança do Percy, o Brad é um simplório que está convencido de que nada é engraçado, a menos que possua uma conotação maldosa.
No outro dia, o Brad disse algo que me surpreendeu pela sua sagacidade, embora ele não me mereça muito crédito por isso; até um relógio cujos ponteiros estejam parados está certo duas vezes por dia, tal como se costuma dizer.
- Tens muita sorte por não teres essa tal doença de Alz-heimer, Paulie - foi o que ele me disse. Detesto que me tratem por esse nome, Paulie; porém, apesar do meu desagrado, ele continua a fazê-lo; já desisti de lhe pedir que não o fizesse. Existem outras coisas, não são bem provérbios, que se apli cam ao Brad Dolan: "Pode levar-se um cavalo até à água, mas não se pode obrigá-lo a beber", é um desses dizeres "É mais fácil levar um boi ao mourão que um ignorante à razão" era outro. Também se adequa muito à personalidade do Percy, pelo facto de não entrar nada naquela cabeça.
Quando fez o comentário sobre a doença de Alzheimer, andava ele a lavar com uma esfregona o chão do solário, onde eu me encontrava a rever as páginas que escrevera. Já reuni bastantes e estou em crer que irão existir muitas mais antes de eu dar a minha escrita por concluída.
- Essa tal... Alzheimer, sabes o que realmente é? - perguntou-me ele.
- Não - respondi -, mas tenho a certeza de que vais esclarecer-me, Brad.
- É a sida das pessoas de idade - disse ele, tendo desatado a rir-se, um riso seco e aos arranques, tal como costumava fazer depois de contar uma das suas piadas idiotas.
Não me ri; as palavras dele tinham-me tocado num nervo qualquer. Não que eu sofra de Alzheimer; embora por aqui, no maravilhoso Georgia Pines, se tenha a oportunidade de ver muitos casos desses, limito-me a sofrer da falta de memória proverbial que costuma atacar as pessoas de idade avançada. Os problemas que se prendem com esse estado parecem estar mais relacionados com o quando do que com o quê. Ao rever aquilo que escrevi até ao momento ocorre-me que me recordo de tudo o que aconteceu em 1932; é a ordem sequencial dos acontecimentos que por vezes se confunde na minha cabeça. Contudo, se eu tiver cuidado, estou convencido de que sou capaz de remediar essas lacunas. Até certo ponto.
O John Coffey deu entrada no Bloco E e na Milha Verde em Outubro desse mesmo ano, tendo sido condenado pelo assassínio das gémeas Detterick, que na altura tinham apenas nove anos de idade. Esse é o meu principal ponto de referência, e se o mantiver sempre presente, poderei organizar cronologicamente tudo o mais, sem problemas de maior. O William Wharton, o Bill Selvagem chegou depois do Coffey; o Delacroix tinha chegado anteriormente. O mesmo aconteceu com o rato, aquele a que o Brutus Howell - Brutal para os amigos - chamava Steamboat Willy, enquanto o Delacroix acabou por lhe dar o nome de Mister Jingles.
Fosse qual fosse o nome, o rato chegou primeiro, até mesmo primeiro que o Del - ainda era Verão quando ele fez a sua primeira aparição, numa altura em que tínhamos outros dois encarcerados na Milha Verde: o Chefe, Arlen Bitterbuck e o Presidente, Arthur Flanders.
Aquele rato. O raio do rato. O Delacroix tinha paixão pelo bicho, mas era inegável que o mesmo não se passava com o Percy Wetmore.
O Percy odiara a criatura desde o primeiro momento.
Decorridos apenas três dias após o Percy ter corrido com ele da Milha Verde, o rato voltou a aparecer. O Dean Stanton e o Bill Dodge falavam de política... o que nessa época signïficava que o tema da conversa era Roosevelt e Hoover - Herbert, não J. Edgar'. Ambos comiam bolachas de água e sal Ritz de uma caixa que o Dean tinha comprado ao velho Pouca Terra havia mais ou menos uma hora. O Percy encontrava-se à porta do gabinete, enquanto praticava sacar rapidamente do bastão que ele tanto adorava e ouvindo a conversa dos outros. Tinha-o retirado daquela espécie de coldre ridículo feito por medida que arramara não se sabia onde, fazendo-o rodopiar (ou a tentar fazê-lo; na maior parte das suas tentativas tê-lo-ia deixado cair, não fora a correia de couro que o prendia ao pulso) e voltando a metê-lo dentro do coldre. Nessa noite, eu estava de folga, o que não me impediu de receber um relatório completo elaborado pelo Dean no fim do dia seguinte.
O rato apareceu na Milha Verde, tal como anteriormente, numa corrida rápida e detendo-se de vez em quando para examinar as celas vazias. E lá ia prosseguindo desta maneira, sem se sentir desencorajado, como se sempre tivesse sabido que aquela seria uma procura longa e estivesse firmemente decidido a não desistir.
Desta feita, o Presidente encontrava-se acordado, junto das grades da porta da sua cela. Aquele tipo era especial: conseguia ter um aspecto garboso até mesmo com as roupas azuis dos prisioneiros. Bastava olhar para o seu aspecto para ficarmos a saber que não fora feito para a Velha Faísca, e tínhamos razão - menos de uma semana depois de o Percy ter corrido com o rato dali pela segunda vez, a sentença do Presidente foi comutada para prisão perpétua, tendo-se ele reunido à população prisional de delito comum.
- Olhem! - exclamou ele. - Está aqui um rato! Mas que diabo de espelunca é esta? - Perguntou aquilo meio a rir-se, mas o Dean comentou que não deixava de manifestar uma espécie de indignação, como se até uma acusação de homicídio não houvesse sido suficiente para the abalar a postura cheia de nove horas. Ele fora o director regional de uma empresa de imobiliário chamada Mid-South Realty Associates, e julgara-se suficientemente esperto para conseguir sair impune do facto de ter arremessado o pai, já meio senil, pela janela de um terceiro andar e recebido o seguro de vida. Nessa avaliação ele enganara-se, mas talvez por muito pouco.
- Cala a boca, meu mentecapto - invectivou o Percy, numa atitude que nele era quase automática. Estava de olho no rato. Tinha voltado a guardar o bastão no coldre e agarrara numa das suas revistas, mas atirara-a para cima da mesa do guarda de serviço, sacando de novo do bastão. Com gestos distraídos, começou a bater com ele contra o nó dos dedos da mão esquerda.
- Filho da puta! - exclamou o Bill Dodge. - É a primeira vez que vejo um rato por aqui.
- Eh, até que ele é engraçado - atalhou Dean. - Nãa parece ter medo nenhum de nós.
- Como é que sabes isso?
- Há umas noites ele esteve aqui. O Percy também o viu. O Brutal chama-lhe Steamboat Willy.
Ao ouvir aquilo, o Percy exibiu uma expressão desdenhosa, embora, pelo menos de momento, se tivesse abstido de fazer qualquer comentário. Recomeçara a bater mais rapidamente com o bastão nas costas da mão.
. Vejam isto - acrescentou o Dean. - Da outra vez, ele chegou até à mesa. Quero ver se consegue fazer isso agora. E conseguiu, afastando-se bastante do Presidente quando passou junto dele, como se não lhe agradasse o cheiro do nosso nsonho parricida. Inspeccionou duas das celas desocupadas, chegou mesmo a dar uma corrida até uma das tarimbas que nem sequer tinha colchão, farejou-a e regressou à Milha Verde. O Percy manteve-se no mesmo lugar durante todo aquele tempo, batendo continuamente com o bastão e sem falar, o que nele não era nada vulgar, desejando fazer com que o rato se arrependesse de ter voltado ali. Querendo ensinar-lhe uma lição.
- É uma sorte vocês não terem de o sentar na Velha Faísca - comentou o Bill com ironia, interessado nas andanças do rato contra a sua própria vontade. - Teriam uma grande trabalheira para conseguir prender as correias do capacete.
O Percy continuava sem proferir uma única palavra; contudo, em gestos muito lentos, firmou o bastão entre os dedos, da mesma maneira que um homem agarraria num bom charuto.
O rato deteve-se no mesmo lugar onde o fizera antes, a uma distância de não mais de um metro da mesa do corredor, soerguendo 0 olhar para o Dean, como se fosse um prisioneiro perante a barra de um tribunal. Durante breves instantes fitou o Bill, para logo voltar a concentrar a sua atenção no Dean. O Percy mal dava a impressão de se aperceber daquilo que acontecia em seu redor.
- É um animalzinho cheio de coragem, sou obrigado a admiti-lo - acrescentou o Bill. Ergueu um pouco a voz: - Ei! Ei! Steamboat Willy!
O rato retraiu-se ligeiramente enquanto as orelhas lhe fremiam, mas não fugiu nem sequer mostrou qualquer sinal de que o desejasse fazer.
- Agora, olhem bem para isto - continuou o Dean, recordando-se da forma como o Brutal lhe tinha dado um naco de carne em conserva da sua sanduíche. - Não sei se ele se comportará da mesma maneira, mas...
Quebrou ao meio uma das bolachas de água e sal Ritz, tendo deixado cair um pedaço em frente do rato. Durante um segundo ou dois o animal limitou-se a olhar para o bocado de bolacha de tom alaranjado, com os seus olhos vivazes de um negro cintilante, enquanto os bigodes filamentados fremiam ao cheirar o petisco. Chegou-se mais à frente, agarrou com as patas da frente, sentou-se e começou a comer.
- Que eu seja descascado e cozinhado! - exclamou o; Bill, perplexo. - Come com tantas maneiras como uma pessoa durante a ceia da igreja num sábado à noite!
- Para mim parece-se mais com um negro a comer melancia - comentou o Percy com mordacidade, embora nenhum dos outros guardas lhe tivesse prestado a mínima atenção. O que também aconteceu com o Chefe e com o; Presidente. O rato terminou o pedaço de bolacha e continuo sentado, dando a impressão de se encontrar equilibrado sobre a cauda enrolada em espiral, observando os gigantes com uniformes azuis.
- Deixa-me experimentar - disse o Bill. Quebrou outr , bocado de bolacha de água e sal, inclinou-se até à frente da; mesa e deixou-o cair cuidadosamente. O rato cheirou-o mas não lhe tocou.
- Hum! - exclamou o Bill. - Já deve estar de estômago cheio.
- Não me parece - contrapôs o Dean. - Ele sabe que tu és temporário, é só isso.
- Temporário, ai é? Gosto disso! Estou aqui há quase; tanto tempo como o Harry Terwilliger! Talvez até há mais tempo do que ele!
- Acalma-te, meu veterano, acalma-te - aconselhou a Dean com um esgar sorridente. - Mas vê se eu tenho ou não razão. - Lançou outro pedaço de bolacha por cima da secretária. Sem qualquer hesitação, o rato agarrou na bolacha, ten-` do recomeçado a mastigar e continuando a ignorar por completo o contributo alimentar oferecido pelo Bill Dodge' Todavia, antes de ter podido dar uma ou duas trincadelas preliminares, o Percy lançou o bastão contra o animal, arremes- sando-o como se fosse uma lança.
O rato era um alvo pequeno e, por muito que custasse, a verdade tinha de ser dita - foi um lançamento traiçoeiramente certeiro, que poderia ter desfeito a cabeça do Willy, se os reflexos da criatura não tivessem sido tão apurados como o olfacto de um cão. O rato esquivou-se - sim, tal e qual como um ser humano o teria feito - tendo deixado cair o bocado de bolacha. O pesado bastão de nogueira passou por cima da sua cabeça e espinha, suficientemente perto para os pelos se terem agitado (pelo menos, foi o que o Dean afirmou, pelo que me Imponho a transcrever, embora não tenha a certeza de acreditar realmente nisso), e foi embater no chão de linóleo esverdeado, tendo feito ricochete contra as barras de uma cela vazia, O rato não se deixou ficar por ali, a fim de averiguar se se teria tratado de um simples engano; tendo-lhe ocorrido, aparentemente, um encontro muito importante noutro sítio qualquer, deu meia volta e afastou-se disparado pelo corredor fora, seguindo em direcção à cela do isolamento.
O Percy rugiu de frustração - sabia o quão perto estivera de atingir o animal - e foi em sua perseguição. O Bill Dodge agarrou-o por um braço, muito provavelmente movido por um simples instinto, mas o Percy afastou-se dele com um gesto brusco. Ainda assim, o Dean afirmou que, possivelmente, foi a reacção do Bill que salvou a vida do Steamboat Willy, apesar de ter sido por um triz. O Percy não só pretendia apanhar o rato, como também o queria esborrachar; pôs-se a correr, dando uns saltos enormes e cheios de comicidade, como um veado, pisando o chão com toda a força com os pesados sapatos pretos de trabalho. O rato conseguiu evitar os dois últimos saltos do Percy, correndo em ziguezague a toda a velocidade. Passou pela fresta inferior da porta, com um zurzir final da sua cauda cor-de-rosa, e... até mais ver, forasteiro - desapareceu.
- Foda-se! - vociferou o Percy, batendo violentamente com a palma da mão contra a superficie da porta. Em seguida, começou a procurar no seu molho de chaves aquela que lhe permitiria entrar na cela do isolamento, continuando assim a perseguir o rato.
O Dean foi no seu encalço, caminhando em passos deliberadamente lentos, a fim de adquirir o controlo das suas emoções. Parte do seu ser desejava rir-se do Percy, disse-me ele mais tarde, enquanto outra parte só queria agarrá-lo e sacudi-lo, encostá-lo e imobilizá-lo contra a porta da cela do isolamento, para lhe poder dar uma carga de porrada. Como é evidente, a maior parte daquilo que ele sentia traduzia-se numa grande perplexidade; as nossas funções no Bloco E, em grande parte, eram reduzir qualquer tumulto ao mínimo, e tumulto era praticamente o segundo nome do Percy Wetmore. Trabalhar com ele assemelhava-se muito à tarefa de tentar desactivar bombas com alguém atrás de nós que, de vez em quando, batesse estridentemente com os dois pratos de um címbalo.
Numa palavra, era uma situação deveras enervante. O Dean disse que conseguiu detectar esse nervosismo nos olhos do Arlen Bitterbuck... até mesmo na expressão do Presidente, embora este cavalheiro, regra geral, se comportasse de uma maneira tão fria como um bloco de gelo. Mas havia algo mais. Em algum recanto da sua mente, o Dean já tinha começado a aceitar o rato como se este fosse - bem, talvez não um amigo, mas sim como parte da vida no bloco. Isso tornava o comportamento do Percy, bem como aquilo que ele tentava fazer, muito pouco correcto. Levando mesmo em consideração que a sua raiva se dirigia contra um rato. O facto de o Percy jamais conseguir vir a compreender o motivo por que a sua acção era recriminável revelava mais que sobejamente que ele não era a pessoa adequada para as funções que desempenhava.
Na altura em que o Dean chegou ao fundo do corredor, já se tinha conseguido dominar, sabendo como é que deveria agir naquela situação. A única coisa que o Percy era incapaz de suportar, era fazer figura de idiota, e todos sabíamos isso. - A merda do rato fugiu outra vez - comentou o Dean com um pequeno sorriso, tentando desanuviar o ambiente. O Percy lançou-lhe um olhar de poucos amigos, afastando o cabelo dos sobrolhos.
- Vê lá como é que falas, caixa-de-óculos. Estou chateado. Não tornes as coisas piores do que já estão.
- Com que então, hoje é outra vez dia de mudanças, não' é verdade? - perguntou o Dean sem mostrar uma expressão risonha... embora se risse com os olhos. - Pois bem, desta vez, quando puseres tudo cá fora, importas-te de passar a esfregona pelo chão?
O Percy olhou para a porta. Fitou as suas chaves. Pensou em mais uma incursão, longa, quente e vã por aquela cela de paredes acolchoadas, enquanto todos os outros se mantinham por perto a observá-lo... No que se incluía o Chefe e o Presidente.
- Raios me partam se eu compreendo o que é que tem tanta piada - disse ele. - Não necessitamos de ratos nas celas... Já temos vermes suficientes por aqui, sem que precisemos de lhes acrescentar a presença de ratos.
- Tens toda a razão, Percy - retorquiu o Dean, erguendo as mãos num gesto de apaziguamento. Por breves instantes, contou-me ele na noite seguinte, acreditou verdadeiramente que o Percy talvez se virasse contra ele.
Entretanto, o Bill Dodge aproximou-se numa atitude plácida e consegmu acalmar as coisas.
- Parece-me que deixaste cair isto - disse ele, entregando ao Percy o seu bastão. - Uns dois centímetros mais abaixo e terias apanhado o mafarrico em cheio nos lombos.
Ao ouvir aquelas palavras, o tórax de Percy expandiu-se. - Sim, não foi um golpe muito mau - redarguiu ele e, com todo o cuidado, voltou a meter o estala-cabeças dentro do coldre de aspecto tão disparatado. - No liceu, eu costumava jogar ao ataque. Metia muitos golos.
- A sério? Não sabia - retrucou o Bill, e o som respeitoso do seu timbre de voz (embora tivesse piscado o olho ao Dean quando o Percy virou costas) foi o suficiente para desactivar aquela situação acalorada.
- Sim - insistiu o Percy. - Uma vez em Knoxville fiz um golo em cheio. Aqueles rapazes da cidade não sabiam o que é que lhes acontecera. Passei por dois. Podia ter sido um jogo perfeito, se o idiota do árbitro não tivesse estragado tudo.
O Dean poderia ter deixado que a conversa morresse por ali, mas hierarquicamente ele era o superior do Percy e parte das suas funções era instruir; nessa época - antes do Coffey e antes do Delacroix - ele ainda pensava que o Percy poderia ser ensinado. Assim, estendeu a mão e agarrou no pulso do homem mais novo.
- Deves pensar no comportamento que tiveste há pouco - admoestou o Dean. A sua intenção, afirmou ele mais tarde, era mostrar uma expressão séria sem que fosse de reprovação. Pelo menos, que não fosse demasiado reprovadora.
Só que com o Percy aquela abordagem não resultava. Ele nunca chegaria a aprender... mas nós acabaríamos por ser forçados a fazê-lo.
- Ouve bem, caixa-de-óculos, eu sei muito bem o que é que estava a fazer... a tentar apanhar aquele rato! O que é que tu és? Cego ou quê?
- Também me pregaste um grande susto, assim como ao Bill e àqueles - retorquiu o Dean, apontando na direcção do Bitterbuck e do Flanders.
- E então? - perguntou o Percy, provocador, endireitando as costas. - Eles não estão em nenhum infantário, caso ainda não tenhas reparado. Apesar de vocês os tratarem como se estivessem, grande parte do tempo.
- Pois bem, a mim não me agrada nada sentir-me assustado - adiantou o Bill entre dentes - além de que trabalho aqui, Wetmore, para o caso de ainda não teres reparado. Eu não sou um dos teus mentecaptos.
O Percy lançou-lhe um olhar por entre as pálpebras semicerradas, exibindo uma expressão onde se adivinhava uma certa insegurança.
- E não os assustamos mais do que aquilo que é necessário, porque eles já se encontram sob uma grande tensão - atai lhou o Dean. Continuava a manter um tom de voz baixo. Os homens que estão sob uma grande tensão podem ir-se abaixo. Causar danos a si próprios. Fazer mal aos outros. Por vezes, fazem com que fulanos como nós fiquem metidos em pro blemas.
Ao ouvir aquilo, os lábios do Percy esboçaram um trejeito. "Em problemas" era uma ideia que exercia um certo po der sobre ele. Provocar problemas não fazia mal. Ver-se metido neles é que não era nada bom. - O nosso trabalho é falar e não gritar - continuou Dean: - Um homem que berre com os prisioneiros é um homem que perdeu o controlo sobre as emoções.
O Percy sabia quem é que tinha lavrado aquela escritura:; eu. O chefe. Entre o Percy Wetmore e o Paul Edgecombe nãá existia um grande amor, e não se esqueçam de que ainda estávamos em pleno Verão - muito antes do início das verdadeiras festividades.
- Seria preferível para ti - continuou o Dean num tom conciliatório - começares a encarar este lugar como uma espécie de unidade de cuidados intensivos de um hospital. É melhor não fazer muito barulho...
- Eu penso nisto como se fosse um balde cheio de mija que serve para se afogar ratos - retorquiu o Percy -, e é tudo. Agora, se não te importas, larga-me o pulso.
Soltou-se da mão do Dean, deslizou entre este e o Bill e começou a andar pelo corredor num passo pesado, mantendo a cabeça baixa. Passou um pouco rente de mais às grades da cela do Presidente - tão rente que o Flanders poderia ter estendido o braço, tê-lo agarrado e ter-lhe dado umas cacetadas na cabeça com o seu tão amado bastão, caso o Flanders fosse homem para isso. É claro que não era, mas talvez o Chefe fosse. O Chefe, se lhe dessem essa oportunidade, teria muito bem sido capaz de dar uma tareia dessas ao Percy, apenas para lhe ensinar uma boa lição. Aquilo que o Dean me revelou acerca desse assunto, quando me contou a história na noite seguinte, ficou gravado em mim desde essa altura, uma vez que veio a verificar-se ser uma espécie de profecia.
- O Wetmore não compreende que não tem o mínimo poder sobre eles - dissera o Dean. - Que nada daquilo que faz contribui para piorar as coisas para eles, que eles só podem ser electrocutados uma vez. Até ele meter isso na cabeça, constituirá um perigo não só para si próprio, como para todos os que se encontram aqui em baixo.
Entretanto, o Percy dirigiu-se ao meu gabinete e deixou a porta bater atrás de si.
- Olhem bem para isto! - exclamou o Bill Dodge. - Não é que ele se porta como se tivesse um testículo gravemente infectado?!
- E não sabes da missa nem a metade - retrucou o Dean.
- Pois bem, vejamos as coisas pelo lado mais animador - continuou o Bill. Ele passava a vida a dizer às pessoas que elas deveriam olhar para as coisas pelo lado mais animador; até dava vontade de lhe assentar um murro em cheio no nariz de cada vez que aquelas palavras lhe saíam da boca. - Do mal o menos; o teu rato que faz habilidades conseguiu fugir.
- Sim, mas nunca mais voltaremos a pôr-lhe a vista em cima - retorquiu o Dean. - Estou em crer que o estupor do Percy Wetmore conseguiu assustá-lo de uma vez por todas.
Aquela observação era lógica, mas errada. Logo no princípio da noite seguinte, o rato estava de volta, e por acaso isso coincidiu com a primeira noite das duas que o Percy Wetmore tinha de folga antes de passar para o turno da noite.
O Steamboat Willy apareceu por volta das oito horas. Eu encontrava-me presente, o que me permitiu assistir ao seu reaparecimento; o Dean também lá estava, o mesmo acontecendo com o Harry Terwilliger. O Harry encontrava-se sentado à secretár~ia.
Tecnicamente, eu deveria trabalhar durante o dia, mas tinha-me deixado ficar por ali durante uma hora a mais, para poder falar com o Chefe, cuja execução se aproximava.
Exterior-mente, o Bitterbuck apresentava uma atitude de estoicismo, de acordo com a tradição da sua tribo; contudo, eu, adivinhava o medo que crescia dentro de si, como se fosso uma flor envenenada. Por conseguinte, conversámos. Podemos falar com eles durante o dia, embora não fosse tão agradável devido aos gritos e conversas (para não mencionar ocasionais cenas de pugilato) que vinham do pátio, à mistura com o chonque-chonque-chonque da maquinaria da serralharia, o grito ocasional de um dos guardas, ordenando a alguém que largasse uma picareta ou que agarrasse numa determinada enxada, ou então: "Arrasta esse coiro até aqui, Harveyi"' Habitualmente, depois das quatro horas as coisas melhoravam um pouco e depois das seis ainda era melhor. Das seis às oit horas era o melhor período do dia. Depois disso, podíamo ver os pensamentos profundos começarem a assenhorarem-se das suas mentes uma vez mais - viam-se nos seus olhos;, quais sombras da tarde - nessa altura era preferível parar,, Eles continuavam a ouvir o que lhes dizíamos, mas as nossas palavras deixavam de fazer qualquer sentido. Depois das oito horas, eles preparavam-se para os quartos de ronda da noite, imaginando qual a sensação de terem o capacete bem preso na cabeça e qual seria o cheiro do ar no interior do saco negro que acabava de ser enfiado por cima das faces transpiradas.
Contudo, eu apanhei o Chefe numa boa altura. Começou a falar-me da sua primeira mulher e de como, em conjunto, os dois tinham construído uma cabana de madeira em Montam. Aqueles haviam sido os dias mais felizes de toda a sua vida, de acordo com o que ele dizia. A água era tão pura e fria que uma pessoa sentia a boca cortada de cada vez que a bebia.
- Eh, Mister Edgecombe - disse ele. - Acha que se , um homem se arrepende sinceramente daquilo que fez de mal ainda pode regressar ao tempo em que ele foi mais feliz, ficando a viver aí para sempre? Parece-lhe que talvez o paraíso seja assim?
- Tenho acreditado nisso - repliquei, sabendo que estava a dizer uma mentira e sem sentir o mínimo remorso por isso. Eu aprendera os assuntos da eternidade em cima do belo regaço da minha mãe, e acredito naquilo que o Bom Livro diz a respeito dos assassinos: que para eles não existe vida eterna. Na minha opinião, vão direitinhos para o inferno, onde ficarão a arder no meio de um grande tormento, até que Deus, (malmente, faz sinal ao arcanjo Gabriel para que este asopre as Trombetas do Juízo Final. Quando isso acontece, eles apagam-se... e sentem-se provavelmente bastante satisfeitos com Isso. No entanto, eu nunca dei a entender ao Bitterbuck a mais ínfima destas crenças, nem tão-pouco a nenhum dos outros. Mas estou convencido que bem no seu coração eles o sabiam. "Onde está Abel, teu irmão? A voz do sangue dele clama da terra até Mim", disse Deus a Caim, mais ou menos nestas palavras, e duvido muito que as palavras tenham sido uma grande surpresa para essa chança problemática em particular; aposto que Ele ouviu o sangue de Abel a gemer-Lhe da terra, com cada passo que dava.
Quando o deixei, o Chefe sorria; talvez estivesse a pensar na sua cabana de madeira em Montam, na companhia da mulher de seios nus, deitada à luz das chamas da fogueira. Dentro em pouco, ele caminharia por entre um fogo mais ardente, disso eu não duvidava.
Percorri o corredor, e o Dean pôs-me a par da desavença que tivera lugar entre ele e o Percy na noite anterior. Estou em crer que ele se deixou ficar por ali só para poder falar comigo, por isso ouvi-o com toda a tenção. Eu tinha por hábito ouvir com muita atenção sempre que o assunto se relacionava com o Percy, dado que estava cem por cento de acordo com o Dean - na minha opinião, o Percy era o género de homem que poderia vir a provocar graves complicações, tanto a todos nós como a si próprio.
Quando o Dean estava prestes a terminar a sua narrativa, o velho Pouca Terra aproximou-se com o seu carrinho vermelho, cheio de pequenas coisas para comer, o qual estava coberto por citações da Bíblia desenhadas à mão ("Pertencem-Me a vingança e as represálias..." Dt. 32:35, "... pedirei contas do vosso sarrGUE a todos os animais..." Gn. 9:5, assim como demais pensamentos alegres, próprios para levantar o moral), e vendeu-nos algumas sanduíches e refrigerantes. O Dean procurava alguns trocados nas algibeiras, enquanto dizia que nunca mais voltaríamos a ver o Steamboat por ali, que o estuporado do Percy Wetmore tinha assustado o
animal, obrigando-o a fugir para sempre, quando o velho Pouca Terra perguntou:
_ O que é aquilo ali?
Ambos olhámos e lá estava o rato do momento, em carne e osso, saltitando pelo meio da Milha Verde. Andava um pouco, detinha-se, olhava em volta com os seus olhinhos brilhantes e recomeçava a sua corrida.
- Ei, rato! - chamou o Chefe, ao que a criatura parou, olhou para ele com os bigodes a fremir. Deixem-me que vos diga, era exactamente como se a maldita coisa soubesse que o tinham chamado. - Por acaso, és um desses guias espirituais? - perguntou o Bitterbuck, atirando um pequeno pedaço de queijo, que retirara do seu próprio jantar, na direcção do rato. Foi cair mesmo em frente do animal, mas o Steam_ boat willy mal lançou um olhar ao queijo, tendo retomado o seu caminho e continuado a percorrer a Milha Verde, enquanto ia espreitando para dentro das celas desocupadas.
- Chefe Edgecombe! - chamou o Presidente. - Acha que esse pequeno estupor sabe que o Wetmore não está cá? Por Deus, a mim parece-me que sim!
Eu sentia mais ou menos a mesma coisa... mas não estava disposto a admitir isso em voz alta.
Entretanto, o Harry apareceu no corredor, a coçar as calças da maneira que fazia sempre depois de ter passado alguns minutos refrescantes na retrete, e parou, de olhos esbugalhados. O Pouca Terra também olhava fixamente, com uma careta descaída num trejeito que dava uma aparência desagradável à metade inferior do seu rosto, ~lácido e desdentado.
O rato parou naquele que se estava a tornar o seu lugar habitual, enrolou a cauda à volta das patas e ficou a olhar para nós. Uma vez mais, ocorreram-me as imagens que eu tinha visto de juízes a julgarem condenados desafortunados... e contudo, alguma vez teria existido um prisioneiro tão pequeno e tão destemido como aquele? Não que ele fosse um encarcerado na verdadeira acepção da palavra, como é evidente;; tinha a liberdade de ir e vir como bem lhe apetecesse. E no entanto, aquela ideia recusava-se a abandonar-me a mente, e ocorreu-me de novo que quase todos nós nos sentiríamos assim tão pequenos, quando chegasse o dia de nos aproximar-~{ mos do assento de onde Deus nos julgava, depois das nossas vidas terem chegado ao fim, mas que só um número muito restrito de pessoas poderia apresentar um ar tão destemido.
- Pois bem, nunca vi uma coisa destas - declarou o velho Pouca Terra. - Ali está ele sentado, tão importante como o Rei da Caca.
- Ainda não viste nada, Pouca Terra - retorquiu o Harry. - Olha para isto. - Levou a mão ao bolso da camisa de onde retirou um biscoito de maçã polvilhado com canela, embrulhado em papel encerado. Partiu uma extremidade e atirou-a para o chão. Estava seca e endurecida e eu pensei que faria ricochete, passando pelo rato sem se deter, mas este estendeu uma pata num gesto tão desinteressado, como um homem que se preparasse para apanhar uma mosca que voasse perto dele, dando uma palmada no pedaço de biscoito, que se imobilizou. Todos nos rimos, de admiração e surpresa, numa explosão de gargalhadas que deveria ter tido o efeito de fazer com que o rato fugisse desarvorado, mas este mal piscou um olho. Agarrou no bocado de biscoito seco, deu-lhe umas duas lambidelas e deixou-o cair no chão, olhando para nós como se dissesse: "Nada mau, que mais é que têm?"
O Pouca Terra abriu o seu carrinho, tirou uma sanduíche, desembrulhou-a e cortou um bocado de um enchido.
- Não te incomodes - disse-lhe o Dean.
- O que é que queres dizer com isso? - perguntou o Pouca Terra. - Não há um único rato à face da Terra que desdenhe uma rodela de enchido se conseguir deitar-lhe a pata. Tu estás mas é maluco!
No entanto, eu sabia que o Dean tinha razão; via na expressão do Harry que este também sabia disso. Havia os temporários e os permanentes. Fosse de que maneira fosse, aquele rato parecia dar-se conta da diferença. Era de loucos, mas era a verdade.
O velho Pouca Terra arremessou-lhe a rodela de enchido e, a provar que tínhamos razão, o rato não quis ter nada a ver com aquilo; cheirou uma vez e retrocedeu um passo.
- Que eu seja o filho de uma grandessíssima cadela! - exclamou o velho Pouca Terra, dando a impressão de se sentir ofendido.
- Dá-me isso - disse-lhe eu, estendendo a mão. - O quê... a mesma coisa?
- O mesma sanduíche. Eu pago-ta.
O Pouca Terra entregou-me o que lhe pedi. Ergui a fatia de cima do pão, retirei outra rodela de enchido e deixei-a cair por cima da borda da frente da secretária do guarda de serviço. De imediato, o rato avançou, agarrou na carne com as patas e começou a comer. O enchido desapareceu antes de eu ter tempo de esfregar um olho.
- Que eu seja amaldiçoado! - vociferou o Pouca Terra. - Inferno maldito! Dá-me isso!
Arrancou-me a sanduíche da mão, tirou um bocado bastante maior de carne - desta vez não foi só um bocadinho, mas sim um bom naco - e deixou-a cair tão perto do SteQm, boat Willy que o rato esteve prestes a usá-la como chapéu. Uma vez mais, o animal retrocedeu, cheirou a carne (com toda a certeza que nenhum rato é assim tão tarado durante a Grande Depressão - pelo menos, não no nosso estado), e em seguida ergueu o olhar até nós.
- Vá lá, come! - incitou o Pouca Terra, dando a impressão de se sentir mais ofendido do que nunca. - O que é que se passa contigo?
O Dean agarrou na sanduíche e deixou cair um pedaço do enchido - naquela altura, a cena já tinha atingido o carácter de uma estranha comunhão. Sem hesitações, o rato apanhou a
carne e comeu-a imediatamente. Depois de ter terminado voltou-se e começou a percorrer o corredor até à cela do isolamento, parando a meio do caminho para espreitar para dentro de duas das celas desocupadas, e fez uma pequena digressão inquiridora a uma terceira. Uma vez mais, ocorreu-me a possibilidade de o animal andar à procura de alguém; desta feita, afastei o pensamento da minha mente com maior lentidão do que anteriormente.
- Não tenciono falar acerca deste assunto - disse o Harry Adivinhava-se que ele falava meio a sério meio a brincar. Em primeiro lugar, ninguém se interessaria. E em segundo, ainda que fosse esse o caso, ninguém acreditaria em mim.
- Ele só comeu o que vocês lhe deram - comentou o Pouca Terra. Abanou a cabeça num gesto de quem não conseguia acreditar naquilo, debruçou-se sobre o carrinho e agarrou no que o rato tinha desdenhado, começando a comer com a sua boca desdentada e a triturar o alimento com as gengivas até ao ponto de submissão. - Vamos lá a saber, porque é que ele terá agido assim?
- Tenho uma ideia melhor - interveio o Harry. - Como é que ele sabia que o Percy está de folga?
- Não sabia - repliquei. - O facto de esse rato ter aparecido hoje à noite não passa de uma mera coincidência. Só que, com o passar dos dias, cada vez se tornava mais dificil acreditar que um simples rato só desse a conhecer a sua presença quando o Percy se encontrava de folga, a trabalhar noutro turno, ou em funções numa outra zona da prisão. Nós - o Harry, o Dean, o Brutal e eu próprio - chegámos à conclusão de que o animal deveria conhecer a voz do Percy ou o seu cheiro. Cautelosamente, evitávamos discutir em demasia o próprio rato - o próprio. Decidimos tacitamente que isso poderia contribuir para arruinar uma coisa que era muito espetral... e maravilhosa, em virtude da estranheza e delicadeza que a envolviam. Ao fim e ao cabo, o Willy escolhera_nos de uma maneira que, até mesmo agora, eu nunca consegui compreender. É possível que o Harry tenha tido razão, quando disse que não valeria a pena partilhar aquilo com outras pessoas, não só porque elas não acreditariam, mas também porque não iriam demonstrar o mais pequeno interesse.
Foi então que chegou a data da execução do Arlen Bitterbuck, o qual, na realidade, não era o chefe da sua tribo mas sim o primeiro dos anciãos na Reserva de Washington, assim como membro do Conselho dos Cherokees. Sob o efeito do álcool ele tinha assassinado um homem - na verdade, ambos tinham estado embriagados. O Chefe esmagara a cabeça do homem com um bloco de cimento. O pomo da discórdia entre os dois fora um par de botas. Portanto, em 17 de Julho daquele Verão chuvoso, o meu conselho de anciãos determinou que a sua vida deveria ser extinta.
As horas de visita, para a maior parte da população prisional de Cold Mountain, eram tão rígidas como vigas de aço, mas essa norma não se aplicava aos nossos rapazes do Bloco E. Assim, no dia 16, o Bitterbuck teve autorização para se dirigir à espaçosa sala adjacente ao refeitório - a Arcada. Estava dividida exactamente a meio por uma rede de arame entrelaçada com arame farpado. Era ali que o Chefe recebia a visita da sua segunda mulher, assim como alguns dos seus filhos que ainda falavam com ele. Chegara o momento do adeus.
Foi o Bill Dodge quem o levou àquela sala, juntamente com dois dos outros temporários. Nós tínhamos trabalho a fazer - uma hora para, pelo menos, dois ensaios. Três, se conseguíssemos.
O Percy não levantou muitos protestos por ter sido destacado para o compartimento do quadro eléctrico com o Jack Van Hay, para a electrocussão de Bitterbuck; ainda estava demasiado verde para perceber se lhe tinha sido dado um bom lugar ou não. Aquilo que ele sabia era que dispunha de uma pequena janela rectangular com rede de arame, através da qual poderia ver tudo, e, embora provavelmente ele não se importasse de estar a olhar para as costas da cadeira em vez de para a frente, continuaria a estar suficientemente próximo; para poder avistar as faíscas a saltarem para todos os lados:
Do lado de fora da janela, mesmo junto desta, havia um telefone negro sem manivela nem mostrador de números. Esse telefone só servia para receber chamadas, as quais poderiam ser feitas somente de um lugar: do gabinete do governador. Ao longo dos anos, vi uma série de filmes sobre a vida prisional em que o telefone oficial começa a tocar no momento exacto em que se preparam para accionar a alavanca que; terminará com a vida de um desgraçado qualquer inocente;; contudo, o nosso nunca tocou durante todos os anos em que trabalhei no Bloco E. Nos filmes, a salvação é barata. Assim como a inocência. Pagam-se vinte e cinco cêntimos e obtém-se exactamente aquilo que esse montante pode proporcionar-nos. A vida real custa mais e a maioria das respostas é bem diferente.
Lá em baixo, no túnel, tínhamos um manequim de alfaiate que ocupava o lugar na ambulância, enquanto o velho Pouca Terra fazia o resto. Ao longo dos anos, não se sabia bem como, o Pouca Terra tinha vindo a ocupar o lugar do tradicional substituto do condenado, um lugar tão respeitado à sua maneira como o do peru que fará as honras da mesa da ceia: de Natal, quer se goste de peru ou não. A maior parte dos outros guardas da prisão gostava dele, o homem falava com um sotaque engraçado, o que os divertia - também era de origem francesa, embora fosse canadiano e não cajun, e possuía uma maneira de falar muito peculiar que era suavizada pelos muitos anos de encarceração no Sul. Até mesmo o Brutal se divertia com o velho Pouca Terra. Mas eu não me incluía nesse número. Estava convencido que ele era, muito à sua maneira, uma versão mais envelhecida e diluída do Percy Wetmore, a espécie de homem que sentia grandes melindres em matar e cozinhar a sua própria carne, mas que, ainda assim, adorava sentir o cheiro do churrasco.
Estávamos todos presentes para o ensaio, tal como estaríamos ali durante o acontecimento principal. O Brutos Hwell tinha sido o "designado", como costumávamos dizer, o que significava que lhe caberia a tarefa de colocar o capacete, vigiar a linha telefónica do governador, chamar o médico que estaria no seu lugar junto à parede, no caso de os serviços deste virem a ser necessários, e dar a ordem para o desenrolar dos eventos quando chegasse a hora. Se tudo corresse bem, não haveria elogios para ninguém. Caso contrário, o Brutal seria recriminado pelas testemunhas enquanto eu seria responsabilizado pelo director. Nenhum de nós reclamava desta situação; os protestos não nos teriam servido de nada. Muito simplesmente, o mundo continua a girar. Podemos aguentar-nos e girar com ele, ou tentar fazer valer os nossos protestos, sendo imediatamente cuspidos desse .mundo.
O Dean, o Harry Terwilliger e eu encaminhámo-nos para a cela do Chefe, a fim de dar início ao primeiro ensaio; ainda não haviam passado três minutos desde que o Bill e as suas tropas tinham escoltado o Bitterbuck do bloco até à Arcada. A porta da cela encontrava-se aberta e o velho Pouca Terra estava sentado na tarimba do Chefe, com os seus cabelos ralos e encanecidos espetados em todas as direcções.
- O lençol está todo manchado com nódoas de se ter vindo - comentou o Pouca Terra. - Deve estar a tentar livrar-se disso tudo antes de vocês o estorricarem - acrescentou com um riso cacarejado.
- Cala a boca, Pouca Terra - ripostou o Dean. - Vamos lá a fazer isto de uma forma séria.
- De acordo - anuiu o Pouca Terra, compondo imediatamente as suas feições e adquirindo uma expressão de solenidade grandiosa. Todavia, os seus olhos mantinham-se brincalhões. O velho Pouca Terra nunca dava a impressão de estar tão vivo como quando desempenhava o papel do morto.
- Arlen Bitterbuck - comecei a dizer, dando alguns passos em frente -, na minha qualidade de funcionário de justiça e do estado, e por aí adiante... venho munido de uma sentença, e blá-blá... execução essa que terá lugar às vinte e Quatro horas do dia blá-blá... pelo que lhe peço que se levante. O Pouca Terra levantou-se da tarimba.
- Estou a levantar-me, estou a levantar-me, estou a levantar-me - declarou ele repetidamente.
- Dê meia volta - interveio o Dean e, quando o Pouca Terra se virou, começou a examinar o topo da sua cabeça coberta de caspa. No dia seguinte à noite, a região superior da cabeça do Chefe seria escanhoada, e a verificação do Dean na altura teria a finalidade de ver se ele não precisaria de alguns retoques. Os cabelos mal rapados impediriam uma boa condutibilidade de energia, dificultando todo o processo. Tudo aquilo que fazíamos naquele momento pretendia facilitar as coisas.
- Muito bem, Arlen, vamos embora - disse eu ao Pouca Terra, e todos saímos da cela.
- Estou a caminhar pelo corredor, estou a caminhar pelo corredor, estou a caminhar pelo corredor - repetiu o Pouca Terra. Pus-me à sua esquerda, e o Dean à sua direita. O Harry seguia directamente atrás dele. Chegados ao fim do corredor virámos à direita, afastando-nos da vida como ela era vivida no pátio do recreio, seguindo em direcção à morte como era sofrida na sala da arrecadação. Prosseguimos para o meu gabinete, onde o Pouca Terra caiu de joelhos sem que fosse necessário pedir-lhe que o fizesse. Ele conhecia bem o argu_ mento daquela peça, extremamente bem, provavelmente melhor do que qualquer de nós. Deus era testemunha de que ele vivia naquele lugar há mais tempo do que nós.
- Estou a rezar, estou a rezar, estou a rezar - acrescentou o Pouca Terra, erguendo as mãos enodadas num gesto de oração. Assemelhavam-se àquela famosa gravura que vocês provavelmente conhecem, aquela que quer dizer: "O Senhor é . o meu pastor..." e assim por diante.
- Quem é que o Bitterbuck arranjou? - perguntou o Harry. - Não vamos permitir aqui a presença de um curaudefiro cherokee que lhe agarre na picha, pois não?
- Na verdade...
- Continuo a rezar, continuo a rezar, continuo na companhia de Jesus - acrescentou o Pouca Terra, interrompendo-me. - Cala a boca, velho idiota - ripostou o Dean.
- Estou a rezar! - insistiu o Pouca Terra. - Nesse caso, reza para ti próprio.
- O que é que está a atrasar-vos? - gritou a voz do Brutal vinda da sala da arrecadação. Também havia sido esvaziada para nosso uso. Encontrávamo-nos de novo na zona da matança; isso era algo que quase se conseguia cheirar.
- Aguenta os cavalos! - gritou-lhe o Harry. - Que raio, não sejas tão impaciente!
- A rezar - continuou o Pouca Terra, brindando-nos com o seu esgar sorridente, desagradável e encovado. - A rezar para que me seja concedida paciência, porra, apenas um pouco de paciência.
- Na verdade, o Bitterbuck é cristão... de acordo com o que ele diz - continuei dirigindo-me aos outros. - Vai sentir-se satisfeito com aquele tipo baptista que aqui esteve por ocasião do Tillman Clark. Acho que o nome dele é Schuster. Eu também gosto dele. É rápido e não faz com que eles fiquem todos enervados. Põe-te de pé, Pouca Terra. Já rezaste que chegue para um dia.
- Estou a andar - disse ele. - Estou a andar outra vez, estou a andar outra vez, sim senhor, a caminhar pela Milha Verde.
Baixo como ele era, ainda assim tinha de se encolher um pouco para conseguir transpor a porta, situada na parede mais afastada do meu gabinete. Nós tivemos de nos baixar ainda mais. Sempre que em presença de um verdadeiro condenado, este momento era deveras vulnerável; quando olhei para a plataforma onde se encontrava a Velha Faísca, tendo avistado o Brutal com a arma empunhada, acenei com uma expressão de satisfação. Estava tudo exactamente como devia estar.
O Pouca Terra começou a descer os degraus e parou. As cadeiras desdobráveis de madeira, cerca de quarenta, já se encontravam a postos nos seus lugares. O Bitterbuck atravessaria aquele espaço até à plataforma, num ângulo que o manteria afastado dos espectadores, havendo mais seis guardas que reforçariam a segurança para o que desse e viesse. O Bill Dodge é que seria o responsável por esses. Nunca uma testemunha fora ameaçada por um prisioneiro, apesar da situação de grande tensão... e era assim que eu tencionava manter as coisas.
- Estão prontos, rapazes? - perguntou o Pouca Terra depois de termos reassumido a nossa formação original, ao fundo dos degraus que saíam do meu gabinete. Acenei num gesto afirmativo e encaminhámo-nos para a plataforma. Acima de tudo, aquilo a que mais nos assemelhávamos, pensava eu muitas vezes era a um corpo de guarda de honra que se tinha esquecido da bandeira.
- O que é que eu devo fazer? - perguntou o Percy por detrás da pequena janela com rede de arame, entre a sala da arrecadação e o compartimento do quadro eléctrico.
- Observa e aprende - respondi-lhe em voz alta.
- E mantém as mãos afastadas da tua salsicha - acrescentou o Harry num resmungo. No entanto, o Pouca Terra ouviu-o e soltou uma risada cacarejada.
Escoltámo-lo até à plataforma, onde o Pouca Terra se voltou sem que ninguém lhe dissesse para o fazer: o velho veterano em acção.
- A sentar-me - anunciou ele -, a sentar-me, a sentar-me, a ocupar o assento no regaço da Velha Faísca. Ajoelhei-me sobre o joelho direito em frente da sua perna direita, enquanto o Dean se ajoelhou sobre o joelho esquerdo em frente da sua perna esquerda. Era nesta altura que nós próprios estaríamos na posição mais vulnerável, sujeitos a um ataque físico, no caso de o homem condenado se passar dos carretos... o que, de quando em quando, acontecia. Ambos posicionámos o joelho dobrado ligeiramente para dentro, a fim de proteger a região das virilhas. Deixámos descair o queixo para poder salvaguardar a zona da garganta. E, como é evidente, avançámos para prender os tornozelos do condenado, neutralizando desta forma e o mais depressa possível qualquer situação de perigo. O Chefe usaria pantufas quando desse o seu derradeiro passeio, mas a frase "poderia ser muito pior, não serve de grande conforto a um homem com a laringe dilacerada. Ou já agora, a contorcer-se no chão com os tomates inchados do tamanho de um grande boião de vidro Mason, enquanto cerca de quarenta espectadores - muitos deles cavalheiros da imprensa - sentados naquelas cadeiras das granjas, observavam tudo com muita atenção.
Prendemos os artelhos do velho Pouca Terra. A grilheta do lado do Dean era ligeiramente maior, uma vez que era aquela por onde passava a corrente. Quando, no dia seguinte à noite, o Bitterbuck se sentasse na cadeira, teria a barriga da perna esquerda rapada. Os Índios têm muito poucos pêlos no corpo, mas nós não queríamos correr o mínimo risco.
Enquanto prendíamos os tornozelos do Pouca Terra, o Brutal manietou-lhe o pulso direito. Por seu lado, o Harry' avançou em passadas mansas, prendendo o esquerdo. Depois de terem terminado, este último acenou ao Brutal que se dirigiu a Van Hay em voz alta.
- Prossegue com a fase um!
Ouvi o Percy a perguntar ao Jack Van Hay qual o significado daquilo (era difícil acreditar na escassez de conhecimentos que ele tinha, no pouco que apreendera desde que começara a trabalhar no Bloco E), ao que se seguiu uma explicação sussurrada do Van Hay. Naquele momento, a expressão Prosseguir com a fase um não teria qualquer significado, mas, quando no dia seguinte a ouvisse da boca do Brutal, o Van Hay rodaria o puxador que accionava o gerador da prisão situado atrás do Bloco B. As testemunhas ouviriam o ruído ensurdecido do mecanismo em funcionamento, enquanto as luzes por toda a prisão seriam mais intensas. Nos outros blocos, os prisioneiros observariam as luzes que emitiriam uma luminosidade invulgar, deduzindo que a execução fora concluída, quando de facto aquilo indicava que estava apenas no início.
O Brutal contornou a cadeira de forma a que o Pouca Terra o pudesse ver.
- Arlen Bitterbuck, o senhor foi condenado a morrer na cadeira eléctrica, tendo a sentença sido lavrada por um júri formado pelos seus pares, e imposta por um juiz deste estado. Deus abençoe as pessoas deste estado. Tem alguma coisa a dizer antes de se dar cumprimento à sentença?
- Sim - replicou o Pouca Terra com os olhos cintilantes e lábios unidos que esboçavam um esgar desdentado pleno de felicidade. - Quero um jantar de galinha frita com molho em cima das batatinhas, quero cagar dentro do teu chapéu e tenho de ter a Mae West sentada em cima da minha cara, porque sou um filho da puta cheio de tesão.
O Brutal tentou manter uma expressão empedernida, mas foi-lhe absolutamente impossível. Lançou a cabeça para trás e desatou a rir às gargalhadas. O Dean, que se encontrava na extremidade da plataforma, perdeu toda a compostura como se houvesse sido atingido por um projéctil, com a cabeça baixada entre os joelhos, a uivar como se fosse um coiote e com uma mão a tapar os sobrolhos, dando a impressão de que impedia os miolos de saírem do lugar onde deveriam manter-se. Por seu lado, o Harry batia com a cabeça contra a parede, enquanto proferia ah-ah-ah como se tivesse um naco de comida entalado na garganta. Até mesmo o Jack Van Hay, um homem que não era conhecido pelo seu sentido de humor, não conseguira conter o riso. É claro que a mim também me apeteceu rir, mas a custo consegui refrear essa vontade. Na noite seguinte tudo aquilo seria a sério e, no lugar onde o Pouca Terra estava sentado haveria um homem destinado a morrer.
- Pára com isso, Brutal - disse eu. - Tu também, Dean. Harry. E pouca Terra, o próximo comentário semelhante a esse que saia da tua boca será o último que farás. Ordenarei ao Van Hay que prossiga de facto com a fase dois.
O Pouca Terra mimoseou-me com uma careta risonha, como se me dissesse: "Essa foi muito boa, chefe Edgecombe, mesmo muito boa." Quando viu que não obtinha qualquer reacção da minha parte, lançou-me um olhar intrigado por entre as pálpebras semicerradas.
- O que é que se passa consigo? - perguntou ele. - O que disseste não tem graça nenhuma - retorqui.
É isso que se passa comigo e, se não és suficientemente esperto para compreenderes isso, o melhor é manteres a pia fechada. - Só que era engraçado, à sua maneira muito especial, e suponho que fora isso o que realmente me enfurecera.
Olhei à minha volta e vi que o Brutal olhava fixamente para mim, continuando a sorrir um pouco.
- Merda! - exclamei. - Estou a ficar demasiado velho para este trabalho.
- Não - retorquiu o Brutal. - Estás no teu melhor, Paul.
Mas não estava e ele também não, pelo menos no que respeitava aquelas malditas tarefas, e ambos sabíamos que assim era. Fosse como fosse, o importante era que o ataque de riso tinha passado. O que era bom, visto que a última coisa de que eu precisava era que alguém se recordasse, na noite seguinte, do comentário do chico-esperto do Pouca Terra, o que daria origem a mais risadas. Poder-se-ia dizer que isso seria absolutamente impossível, um guarda que desatasse a rir às gargalhadas na altura em que escoltava um homem condenado, ao passar pela frente das testemunhas enquanto o conduzia à cadeira eléctrica; porém, quando os homens se encontram sujeitos a uma grande tensão psicológica, tudo pode acontecer. Caso se verificasse uma coisa dessas, as pessoas iriam falar do assunto durante pelo menos vinte anos.
- Tencionas ficar calado, Pouca Terra? - perguntei. Sim - respondeu ele; a expressão do seu rosto, que mantinha desviado, reflectia a da criança mais amuada do mundo.
Fiz sinal ao Brutal, indicando-lhe que deveria prosseguir com o ensaio. Ele retirou o saco negro, que se encontrava pendurado no gancho de bronze nas costas da cadeira, e colocou-o na cabeça do Pouca Terra, ajustando-o bem abaixo do queixo, o que abriu o orifício em cima, na parte mais larga. Em seguida, o Brutal inclinou-se para a frente, agarrou na esponja molhada que retirou do balde, fez pressão com um dedo sobre a esponja e lambeu a ponta do dedo. Concluído aquilo, voltou a colocar a esponja dentro do balde. No dia seguinte, não o faria. No dia seguinte, ajeitá-la-ia dentro do capacete que se encontraria pendurado nas costas da cadeira.
No entanto, naquele dia não procederia assim; não havia necessidade de molhar a cabeça do velho Pouca Terra.
O capacete era de aço e, com aquelas estranhas correias suspensas dos dois lados, tinha a aparência de uma espécie de capacete feito de plasticina. O Brutal colocou-o na cabeça do velho Pouca Terra, ajustando-o por cima do orifício recortado no saco negro.
- Estão a pôr-me o capacete, estão a pôr-me o capacete, estão a pôr-me o capacete - anunciou o Pouca Terra, cuja voz naquele momento soava abafada,. saindo-lhe a custo da garganta. As correias mantinham-lhe os maxilares quase cerrados, e desconfio que o Brutal as havia apertado um tudo-nada em excesso, mais do que aquilo que seria estritamente necessário para um ensaio. Retrocedeu e olhou de frente para as cadeiras desocupadas.
- Arlen Bitterbuck - anunciou ele -, a partir de agora a corrente eléctrica atravessará o seu corpo até que o senhor esteja morto, de acordo com a lei deste estado. Que Deus tenha piedade da sua alma.
O Brutal voltou-se para a pequena janela rectangular de rede de arame.
- Prossigam com a fase dois.
O velho Pouca Terra, talvez numa tentativa de retomar a anterior genialidade de cómico, começou a estrebuchar e a espernear na cadeira, de uma maneira que quase nunca acontecia com os verdadeiros clientes da Velha Faísca.
- Agora estou a estorricar! - gritou ele. - A estorricar! A estoricaarrr! Aaauuuu! Estou cozinhado como um peru! Reparei que o Dean e o Harry não observavam esta cena. Tinham voltado costas à Velha Faísca e fitavam um ponto para além da sala da arrecadação vazia, nomeadamente a porta que dava acesso ao meu gabinete.
- Macacos me mordam! - exclamou o Harry. - Uma das testemunhas chegou com um dia de antecedência. Sentado na ombreira com a cauda cuidadosamente enrolada em redor das patas, observando tudo com os seus olhos negros e brilhantes como contas, encontrava-se o rato.
A execução correu bem - se existia qualquer coisa naquele processo que pudesse ser considerada "boa" (uma proposição de que eu duvido veementemente) então a execução do Arlen Bitterbuck, ancião dos Cherokees de Washita, fora-o. As suas tranças não tinham ficado bem feitas - as mãos haviam-lhe tremido tanto que não conseguira entrançar o cabelo como deve ser - e a filha mais velha, uma mulher de trinta e poucos anos, tivera autorização para as entrançar como devia ser. Ela queria entrelaçá-las com penas nas extremidades, as penas novas de um falcão, o pássaro do pai, mas eu não pude permitir isso. Havia a possibilidade de pegarem fogo, começando a arder. É claro que eu não lhe disse isso, limitei-me a dizer-lhe que era contra os regulamentos. Ela não levantou qualquer objecção, tendo apenas inclinado a cabeça e levado as mãos à fronte, como mostra do seu desgosto e da sua reprovação. A mulher conduziu-se sempre com uma dignidade extraordinária, e, ao manter aquela compostura, prati= camente garantiu que o pai procederia da mesma maneira.
O Chefe deixou a sua cela sem qualquer objecção, sem tentar protelar a situação quando chegou o momento. Por vezes éramos obrigados a soltar os dedos dos homens que se agarravam às grades da cela - nos meus tempos, cheguei mesmo a quebrar um ou dois; nunca consegui esquecer-me do estalar abafado dos ossos quando isso acontecia; todavia, o Chefe não era um desses, graças a Deus. Caminhou determinantemente pela Milha Verde até ao meu gabinete, onde se deixou cair de joelhos para rezar com o Irmão Schuster, que tinha vindo da Igreja Baptista Luz Celestial no seu velho calhambeque. Schuster leu ao Chefe alguns salmos, e ele começou a chorar quando o reverendo chegou àquele que falava em deitar-se ao lado das águas tranquilas. Não obstante isso, as coisas correram mais ou menos, não tendo havido histeria nem nada do género. Eu tinha a impressão de que ele estaria a pensar em águas tranquilas, tão frias e tão puras que nos davam a sensação de cortar a boca de cada vez que as bebíamos.
Na verdade, eu gosto de os ver chorar um pouco. Quando eles não choram é que eu fico preocupado.
Muitos deles não são capazes de se levantar sem ajuda depois de se terem ajoelhado; todavia o Chefe portou-se bem nesse departamento. De início, vacilou um pouco, como se não soubesse o que estava a fazer, e o Dean estendeu-lhe uma mão, embora o Bitterbuck já tivesse sido capaz de se recompor sem auxílio, o que nos permitiu dar seguimento à sessão.
Quase todas as cadeiras se encontravam ocupadas por pessoas que falavam entre si numa voz sussurrada, tal como se costuma fazer quando se aguarda o início de um casamento ou de um funeral. Essa foi a única ocasião em que o Bitterbuck se deixou ir um pouco abaixo. Não sei se foi por ter estado presente alguém que o tenha perturbado em especial, ou o conjunto de toda aquela assistência, mas o certo é que comecei a ouvir um gemer ensurdecido que começava a sair-lhe da garganta, e, de repente, o braço em que eu segurava adquiriu uma tensão muscular que não tivera antes. Pelo canto do olho, vi que o Harry Terwilliger se aproximava, a fim de cor= tar qualquer tentativa de recuo do Chefe, se de súbito este decidisse dificultar as coisas.
Apertei com mais força a mão que mantinha presa no cotovelo do Bitterbuck, tendo-lhe tocado com um dedo na região interior do braço.
- Calma, Chefe - disse-lhe eu pelo canto da boca sem mexer os lábios. - A única coisa que ficará gravada na memória da maior parte desta gente é a forma como saíres desta vida, portanto, dá-lhes algo de bom... mostra-lhes como é que um washita se comporta.
Ele lançou-me um olhar de revés e acenou com a cabeça. Em seguida, agarrou numa das tranças que a filha havia entrançado e deu-lhe um beijo. Olhei para o Brutal, que se mantinha na posição militar de descanso por detrás de uma cadeira, todo aprumado no seu melhor uniforme azul, com os botões do casaco bem polidos e a brilhar, e o chapéu de pala perfeitamente posicionado na sua cabeça avantajada. Fiz-lhe um ligeiro acenar de cabeça, que ele retribuiu de imediato, avançando para ajudar o Bitterbuck a subir para a plataforma, caso a sua ajuda viesse a ser necessária. Não foi.
Decorreu menos de um minuto desde o momento em que o Bitterbuck se sentou na cadeira, até que o Brutal gritou "Prosseguir com a fase dois!", numa voz suave, falando por cima do ombro. As luzes voltaram a enfraquecer, embora por pouco tempo; nem se teria reparado nisso, caso não se esperasse que tal viesse a acontecer. O que significava que o Van Hay accionara o interruptor, que um engraçadinho qualquer tinha etiquetado como "o SECADOR DE CABELO DA MABEL. Ouviu-se um zunir abafado vindo do capacete, e o Bitterbuck inclinou-se para a frente com um estremecimento, contra as fivelas e a correia estendida a toda a largura do seu peito. Junto à parede, o médico da prisão observava sem deixar adivinhar qualquer expressão, mantendo os lábios tão cerrados que a sua boca se assemelhava a uma linha esbranquiçada. Não houve qualquer estrebuchar nem tão-pouco espernear, tal como o velho Pouca Terra fizera durante o ensaio, só aquele forte estremecimento para a frente, das ancas para cima, como se sob o efeito de um poderoso orgasmo. A camisa azul do Chefe esticou-se toda junto dos botões, criando pequenos vincos que se assemelhavam a sorrisos de carne entre eles.
E foi então que surgiu o cheiro. Em si mesmo não era muito mau, embora se tornasse desagradável devido ao que nele se encontrava implícito. Nunca fui capaz de descer até á cave da casa da minha neta, quando me levam até lá, embora seja aí que o seu filho, ainda pequeno, tem montada a linha do comboio que muito gostaria de partilhar com o avô. Os comboios não me incomodam, tal como certamente terão adivinhado - é o transformador que não sou capaz de suportar. A maneira como zune e o cheiro que deita depois de ter aquecido. Até mesmo depois de terem passado todos estes anos, aquele cheiro traz-me sempre à memória a imagem de Cold Mountain.
O Van Hay deu-lhe trinta segundos e cortou a corrente. O médico avançou, afastando-se do seu lugar para auscultar o coração com o estetoscópio. Naquele momento não se ouvia qualquer conversa entre as testemunhas. O médico endireitou-se e olhou através do pequeno rectângulo de malha de rede. - Desorganizado - anunciou ele, fazendo um gesto giratório com um dedo, como se desse à manivela. Tinha ouvido algumas pulsações esporádicas no peito do Bitterbuck, provavelmente tão desprovidas de significado como as convulsões finais de uma galinha a quem tivessem cortado a cabeça, mas era preferível não correr o mínimo risco. Ninguém queria que ele, inesperadamente, se sentasse na maca quando ~ fosse a meio caminho do túnel, começando a gritar que se sentia a arder.
O Van Hay prosseguiu com a fase três e, uma vez mais, i o corpo do Chefe foi percorrido por um estremecimento que o impulsionou para a frente, agitando-se um pouco de um lado
para o outro sob os efeitos da corrente eléctrica. Desta feita, quando o médico o auscultou de novo acenou com a cabeça Estava tudo terminado. Uma vez mais tínhamos alcançado êxito em destruir aquilo que não podíamos criar. Algumas das pessoas entre a assistência recomeçaram a conversar no mesmo tom de voz sussurrada; contudo, a maior parte dos presentes mantinha-se de cabeça baixa e com os olhos presos no chão, como se estivessem atordoados. Ou mesmo envergonhados.
O Harry e o Dean surgiram com a padiola. Na realidade, era tarefa do Percy colocar-se numa das extremidades, mas ele não sabia disso e ninguém se tinha dado ao trabalho de o informar O Chefe, que continuava a ter a cabeça coberta pelo saco de seda negra, foi colocado sobre a padiola por mim e pelo Brutal, e conduzimo-lo através da porta que dava acesso ao túnel o mais depressa possível, sem que desatássemos a correr. O fumo - demasiado fumo - começara a evolar-se do ori~cio no topo do saco, provocando um fedor insuportável.
- Ó pá! - gritou o Percy numa voz vacilante. - Que cheiro é esse?
- Sai do meu caminho e mantém-te bem afastado - ripostou o Brutal, empurrando-o ao passar por ele para poder chegar à parede, onde estava montado um extintor. Era um dos antigos, que continha um produto químico e que era necessário bombear. Entretanto, o Dean havia retirado a espécie de capuz. Não era tão mau como poderia ter sido; a trança esquerda do Bitterbuck estava a fumegar, como se fosse um amontoado de folhas humedecidas.
- Deixa essa coisa sossegada - disse eu ao Brutal. Não desejava ter de limpar do rosto do velho um monte de substâncias químicas viscosas antes de o colocar na parte de trás da ambulância. Comecei a bater na cabeça do Chefe (durante todo o tempo, o Percy olhava para mim com os olhos esbugalhados) até que o fumo se extinguiu.
Em seguida, conduzimos o corpo pelos doze degraus de madeira que iam dar ao túnel. Aquele lugar era tão frio e húmido como uma masmorra, ouvindo-se o som cavo de água a gotejar. Do tecto estavam suspensas lâmpadas protegidas por quebra-luzes toscos de zinco - estes haviam sido feitos na oficina da prisão - as quais deixavam ver uma conduta de tijolo que passava a cerca de nove metros abaixo da auto-estrada. O tecto molhado tinha uma forma curva. De todas as vezes que eu era obrigado a passar por ali, sentia-me sempre como se fosse uma das personagens de uma das histórias de Edgar Allan Poe. Havia uma maca à nossa espera. Colocámos o corpo do Bitterbuck em cima dela e eu procedia uma última verificação, certificando-me de que o cabelo deixara de arder. Aquela trança ficara bastante estorricada; lamentei ver que a pequena laçada, que fora dada de maneira tão astuta naquela região da cabeça, não passava agora de um amontoado enegrecido.
O Percy esbofeteou uma das faces do homem morto O estrépito provocado pelas pancadas da sua mão sobressaltou-nos a todos. O Percy olhou em redor, fitando-nos a todos com um sorriso matreiro nos lábios e olhos que cintilavam, Voltou a olhar para o Bitterbuck.
-Adiós, Chefe - disse ele. - Espero que o inferno seja suficientemente quente para ti.
- Não faças isso - atalhou o Brutal numa voz que soava cava e declamatória, no túnel onde a água continuava a gotejar. - Ele já pagou a sua dívida para com a sociedade. Voltou a ter as suas contas em dia. Mantém as mãos afastadas do seu corpo.
- Ei, acaba com isso - retorquiu o Ferey, embora houvesse recuado, mostrando um certo mal-estar quando o Brutal começou a encaminhar-se na sua direcção, com a sombra que se erguia atrás de si como se fosse a sombra de um gorila na história que fala da Rua Morgue. Mas em vez de agarrar no Percy, o Brutal agarrou na maca e começou a empurrar o Arlen Bitterbuck com lentidão, em direcção ao fundo do túnel, onde a sua última boleia o aguardava estacionada na berma macia da auto-estrada. As rodas de borracha dura da maca gemiam sobre as tábuas do soalho; a sua sombra, de contornos pouco nítidos, alongava-se contra a parede de tijolos. O Dean e o Harry agarraram no lençol que estava ao fundo da maca e cobriram o rosto do Chefe, que começara já a adquirir a máscara cerácea e descaracterizada comum às faces mortas, tanto dos inocentes como dos culpados.
Quando eu tinha dezoito anos, o meu tio Paul - o homem que me dera o nome - morreu de um ataque cardíaco. Os meus pais levaram-me a Chicago para o funeral, aproveitando para visitar familiares do lado da família do meu pai, a maioria dos quais eu nunca tinha visto. Ficámos nessa cidade durante quase um mês. Sob certos aspectos, foi uma viagem agradável, uma jornada necessária e empolgante, mas que de certa forma também se tornou horrível. Bem vêem, eu estava profundamente apaixonado pela jovem mulher que mais tarde haveria de ser a minha noivaa duas semanas depois de ter completado dezanove anos. Uma noite em que as saudades que sentia dela eram como chamas queimando-me descontroladamente o coração e a cabeça (oh sim, de acordo, e também os tomates), escrevi-lhe uma carta que parecia não ter fim - nela esvaziei todo meu coração, sem nunca voltar atrás para rever o que tinha escrito, porque receava que a cobardia me impedisse a mão de continuar. Não parei de escrever, e quando uma voz no interior da minha cabeça bradou que seria uma loucura enviar uma carta daquelas, uma vez que eu estava a pôr a nu o meu coração perante ela, que o poderia agarrar com a sua mão, ignorei-a com a mesma atitude de desinteresse de uma criança pelas consequências dos seus actos. Perguntei-me frequentemente se a Janice teria guardado essa carta, apesar de nunca ter sido capaz de reunir coragem suficiente para lhe fazer essa pergunta. O que eu sei com toda a certeza é que não a encontrei, quando examinei as suas coisas depois do seu funeral, o que, como é claro, por si só não tem qualquer significado. Suponho que nunca lhe cheguei a perguntar, porque receava descobrir que aquela epístola, cheia de ardor, tivera menos significado para ela do que para mim próprio.
Era composta por quatro páginas e eu estava convencido de que jamais voltaria a escrever uma missiva tão alongada como aquela, em toda a minha vida, e agora olhem bem para isto. Toda esta escrita e o fim ainda não se encontra à vista. Se eu soubesse que esta narrativa se alongaria desta forma, possivelmente nunca a teria começado. Nunca me tinha apercebido da quantidade de portas que o acto de escrever abre, como se a antiga caneta de tinta permanente do meu pai não fosse realmente uma caneta mas sim uma estranha variedade de chave-mestra. Muito provavelmente, o rato constitui o melhor exemplo daquilo que estou a tentar ilustrar. Steamboat Willy, Mister Jingles, o rato da Milha. Até ter começado a escrever, nunca tinha compreendido até que ponto é que ele (sim, ele) fora importante. Por exemplo, a forma como parecia procurar o Delacroix antes de este ter chegado à prisão - não me parece que esse aspecto me tenha ocorrido alguma vez, pelo menos de forma consciente, até ter começado a escrever e a relembrar as coisas.
Calculo que aquilo que pretendo dizer é que não me apercebi do quanto teria de recuar no tempo para vos falar do John Coffey, ou durante quanto tempo é que teria de o deixar na sua cela, um homem tão gigantesco que os seus pés não se limitavam a sair pelo fundo da tarimba; pendiam até ao chão. Não quero que se esqueçam dele, de acordo? Quero que o imaginem ali, erguendo o olhar até ao tecto da sua cela, vertendo as suas lágrimas em silêncio ou colocando os braços . sobre as faces. Quero que o ouçam, os seus suspiros trémulos' como um choro, os seus gemidos ocasionais trespassados de lágrimas. Não eram sons de agonia e de lamento, como os , que por vezes ouvíamos no Bloco E, gritos agudos com lascas de remorso; tal como os seus olhos lacrimosos, distanciavam-se da dor com que estávamos habituados a lidar. De certa forma - eu sei que isto pode parecer um disparate, claro que sei, mas não faz o mínimo sentido escrever uma coisa tão extensa como esta se não pudermos expressar aquilo que temos no nosso coração - de certa forma era como se aquilo que ele sentia fosse pena de todo o mundo, algo demasiado, imenso para poder ser minimamente atenuado. Por vezes, eu sentava-me e conversava com ele, tal como costumava fazer com todos os outros - conversar era a nossa maior tarefa e a mais importante, como estou em crer que já vos disse - ten-; tendo confortá-lo. Não me parece que alguma vez tenha conseguido fazê-lo, e parte do meu coração sentia-se satisfeito por ele sofrer. Sabem, eu sentia que ele merecia sofrer. Por vezes chegava mesmo a pensar em telefonar ao governador (ou dizer ao Percy que lhe telefonasse - que diabo, ele era o raio do tio do Percy e não meu), a fim de lhe pedir que adiasse a execução. Não deveríamos pôr-lhe fim agora, diria eu. ~~, Ele continua a sentir-se demasiado magoado, o seu acto ainda lhe morde em demasia, contorcendo-lhe as entranhas como um aguilhão de ponta aguçada. Peço a Vossa Excelências que lhe conceda outros noventa dias. Deizai que ele inflija.a si próprio aquilo que nós não temos meios de lhe infligir.;
É este John Coffey que eu tenho de manter num recanto da vossa mente, enquanto me ponho em dia até ao ponto onde comecei - este John Coffey deitado em cima da sua tarimba, este John Coffey que tinha medo do escuro, o que talvez se devesse a uma boa razão, porque ao abrigo da escuridão não se encontrariam duas figuras de cabelos anelados e louros - que haviam deixado de ser rapariguinhas para
se transformarem em harpias vingadoras - que estariam à sua espera. Este John Coffey de cujos olhos brotavam constantemente lágrimas, como sangue que nunca cessa de jorrar de uma chaga que jamais sara.
E assim o Chefe foi electrocutado e o Presidente caminhou - pelo menos, até ao Bloco C, que era o lar da maioria dos cento e cinquenta condenados a prisão perpétua de Cold Mountain. Para o Presidente, a prisão perpétua resumiu-se a doze anos. Ele acabou por morrer afogado na lavandaria da prisão, em 1944. Não na lavandaria da penitenciária de Cold Mountam. Esta encerrou os seus portões em 1933. Não me parece que isso fosse de grande interesse para os encarcerados - paredes são paredes, tal como os reclusos costumam dizer, e a Velha Faísca era tão mortífera na sua pequena câmara de morte de pedra como sempre o fora na sala de arrecadação de Cold Mountain.
Quanto ao Presidente, alguém lhe enfiou a cabeça dentro de uma cuba cheia de fluidos de limpeza a seco, tendo-o mantido naquela posição. Quando os guardas o retiraram, o seu rosto tinha desaparecido quase por completo. Foram forçados a identificá-lo através das impressões digitais. Levando tudo em consideração, ele talvez tivesse ficado a ganhar com a Velha Faísca... mas nesse caso não teria gozado esses doze anos a mais, não é verdade? Todavia, duvido muito que ele tivesse levado isso em grande consideração durante mais ou menos o último minuto da sua vida, quando os seus pulmões tentaram aprender a respirar Hexlite e lixívia.
Nunca chegaram a apanhar quem lhe fez aquilo. Nessa altura já eu me tinha afastado do sistema prisional, mas o Harry Terwilliger escreveu a contar-me. "Ele teve a pena comutada, em grande parte por ser branco", escreveu ele, "mas no fim acabou porter o que merecia. Penso no assunto como se fosse uma execução bastante adiada, cujo prazo finalmente expirou."
Houve um período de tempo tranquilo para nós no Bloco ean depois de o Presidente ter sido transferido. O Harry e o Dean foram temporariamente destacados para outro serviço, pelo que só ficámos durante algum tempo, eu, o Brutal e o Percy na Milha Verde. Na realidade era só o Brutal e eu, uma vez que o Percy era muito metido consigo mesmo. Deixem-me que vos diga que esse jovem era um autêntico génio em descobrir as coisas que não seria obrigado a fazer. E de vez em quando (mas só quando o Percy não se encontrava presente), os outros tipos costumavam aparecer, para aquilo a que o Harry gostava de chamar "uma bela conversa fiada". Em muitas destas ocasiões, o rato também nos brindava com a sua presença. Nós alimentávamo-lo e ele sentava-se ali a' comer, tão solene como Salomão, olhando-nos com os seus pequenos olhos negros que se assemelhavam a contas cintilantes.
Aquelas foram algumas semanas boas, calmas e sem complicações de maior, não obstante as lamentações mais do que ocasionais do Percy, mas o certo é que todas as coisas boas têm um fim, e numa segunda-feira chuvosa em fins de Julho - já vos disse como o tempo se mantinha abafado e chuvoso nesse Verão? - dei comigo sentado na tarimba de uma cela aberta à espera do Eduard Delacroix.
Surgiu inesperadamente. A porta que dava para o pátio do recreio abriu-se com estrondo, deixando entrar um jorro de luz, acompanhada por um entrechocar confuso de correntes, uma voz balbuciada e assustada que se exprimia em inglês e no francês dos Cajuns (um patoá que os prisioneiros de Cold Mountain costumavam chamar da bayou) e os gritos do Brutal.
- Ei! Pára com isso! Por amor de Deus! Pára com isso, Percy.
Eu tinha estado meio adormecido no que passaria a ser a tarimba de Delacroix, o que não me impediu de me levantar de supetão, com o coração quase a querer saltar para fora do peito. Era muito raro acontecer um tumulto daquelas dimensões no Bloco E, isto é, até ao aparecimento do Percy; ele trouxe-os consigo, qual cheiro nauseabundo.
- Anda para a frente, meu franciú maricas de merda! - gritava o Percy, ignorando por completo os protestos do Brutal. E ali estava ele a arrastar por um braço um sujeito que não era muito mais alto do que um pino de bowling. Com a outra mão, o Percy empunhava o bastão. Tinha os lábios arre' ganhados, revelando os dentes num esgar de tensão; as suas faces estavam congestionadas, de um vermelho intenso. E, contudo, a sua aparência não denotava uma grande unta" ção. O Delacroix esforçava-se por acompanhar o seu passo, mas como estava acorrentado com grilhetas, e independentemente da rapidez com que arrastasse os pés, o Percy continuava a puxá-lo mais depressa. De um salto saí da cela a tempo de o apanhar quando se encontrava prestes a cair; e foi assim que o Del e eu ficámos a conhecer-nos.
O Percy mantinha-se ameaçadoramente junto dele com o bastão empunhado; agarrei-o por um braço. O Brutal aproximou-se de nós a deitar os bofes pela boca, mostrando-se tão chocado e estupefacto com aquela cena como eu próprio.
- Não deixe que ele me bata mais, monsieur - tartamudeou Delacroix. - S'il vous plaït, s'il vous plaït!
- Deixa-me ir a ele, deixa-me ir a ele! - gritou o Percy, lançando-se para a frente. Com o bastão, começou a espancar os ombros do Delacroix. Este ergueu os braços, enquanto berrava desalmadamente, e o bastão zurziu-o de novo contra as mangas da camisa azul da prisão. Nessa noite vi-o sem a camisa e verifiquei que aquele rapaz tinha o corpo cheio de nódoas negras. Ao ver aquilo senti-me encolerizado. Ele era um assassino, não uma pessoa por quem se nutrisse grande amizade, mas aquela não era a maneira como costumávamos proceder no Bloco E. Pelo menos, nunca o fizemos até o Percy ter aparecido.
- Alto aí! - vociferei. - Pára já com isso! Mas o que é que se passa aqui? - Entretanto, tentava colocar-me entre o Percy e o Delacroix, mas os meus esforços não estavam a ter grandes resultados. O Percy continuava a fustigar com o bastão, ora por um dos meus lados, ora pelo outro. Mais cedo ou mais tarde, era inevitável que ele me atingisse a mim, ao que se seguiria uma rixa, ali, no corredor, independentemente de quem eram os seus familiares. Eu seria incapaz de me conter e o mais certo seria o Brutal juntar-se a mim. Sabem, levando em consideração certos aspectos, quem me dera que o tivéssemos feito. Era possível que viessem a ser alteradas muitas das coisas que sucederam mais tarde.
- Maricas de merda! Eu ensino-te a manter as mãos afastadas de mim meu vadio asqueroso!
Palavras que foram seguidas de mais pancadaria por parte do Percy. Naquele momento, o Delacroix já sangrava de uma orelha e não parava de berrar. Desisti de tentar protegê-lo e agarrei-o por um ombro empurrando-o para o interior da cela, onde caiu esparramado em cima da tarimba. O Percy contornou-me tendo-o açoitado uma última vez no traseiro - poder-se-ia dizer que aquela agressão era para o caminho. Mas o Brutal agarrou-o - estou a referir-me ao Percy - pelos ombros e empurrou-o pelo corredor fora.
Fiz deslizar a porta da cela sobre a calha até se ter fechado. Voltei-me para o Percy, o meu choque e estupefacção misturados com uma fúria enorme. Naquela altura, já havia vários meses que o Percy trabalhava ali, e era tempo suficiente para que já tivéssemos chegado à conclusão de que o afecto que nutríamos por ele não era muito, mas aquela foi a primeira vez que compreendi até que ponto ele estava descontrolado.
O Percy observava-me sem conseguir ocultar um certo receio - bem fundo do seu coração, o homem era um cobarde, disso eu nunca tivera dúvida - embora confiasse que os seus' conhecimentos iriam protegê-lo. E estava certo. Desconfio que existem pessoas que não conseguem compreender por que razão as coisas se passavam assim, mesmo depois de tudo o que eu já disse; contudo, são pessoas que só conhecem a expressão Grande Depressão dos livros de história. Caso tivessem vivido nessa época, verificariam que essa fase foi muito mais do que um mero termo num livro, e, no caso de ter um emprego certo, meu irmão, qualquer homem estaria disposto a fazer quase tudo para poder manter esse emprego.
Naquela altura, a cor do rosto do Percy tinha começado a esmaecer um pouco, embora as suas faces ainda estivessem bastante coradas; os seus cabelos, luzidios de brilhantina e habitualmente penteados para trás, tinham-lhe descaído para a testa.
- Em nome de Cristo, o que é que foi todo este rebuliço? - perguntei. - Eu nunca... mas, nunca tive um prisioneiro espancado no meu bloco!
- O maricas insignificante tentou agarrar-me pelos tomates quando o tirei da carrinha - explicou o Percy. - Mereceu a tareia que lhe dei e devo acrescentar que voltaria a fazê-lo de novo, nas mesmas circunstâncias.
Olhei para ele, demasiado embasbacado para poder dizer fosse o que fosse. Era incapaz de imaginar o homossexual mais rapace, ao de cima da terra verdejante de Deus, a proceder da forma como o Percy acabara de descrever. Por via de regra, nem o mais aberrante dos prisioneiros se sentia com disposição para quaisquer actividades sexuais, quando estava prestes a mudar-se para um apartamento de barras de ferro na Milha Verde.
Olhei para o Delacroix todo encolhido na sua tarimba, ainda de braços erguidos para proteger o rosto. Tinha algemas nos pulsos e grilhetas nos tornozelos. Voltei a concentrar a minha atenção no Percy.
- Põe-te a andar daqui para fora - disse-lhe eu. - Mais tarde quero falar contigo.
- Isto vai constar do teu relatório? - perguntou ele num tom de voz truculento. - Porque, se for esse o caso, não sei se sabes que eu também posso apresentar um relatório.
Eu não queria elaborar relatório nenhum; só desejava que ele desaparecesse da minha vista. O que não hesitei em lhe dizer.
- O assunto está encerrado - concluí. Reparei que o Brutal olhava para mim com uma expressão de reprovação, mas ignorei-o. - Põe-te a mexer. Sai daqui para fora. Vai para os serviços administrativos e diz-lhes que tens de ler cartas e ajudar na sala de expedição.
- Com certeza - retorquiu ele; voltara a recuperar a sua compostura, ou melhor, aquela arrogância de tarado que passava por compostura.
Correu os dedos pelo cabelo, afastando-o da testa - mãos pequenas brancas e macias, como as de uma rapariga na adolescência, pensar-se-ia - e aproximou-se da cela. Delacroix avistou-o, tendo-se encolhido ainda mais para trás na tarimba, a tartamudear numa mistura de inglês e francês desaguisado.
- Ainda não acabei o assunto contigo, Pierre - anunciou ele, dando um salto ao sentir uma das enormes mãos do Brutal em cima do ombro.
- Já acabaste, sim - declarou o Brutal. - Agora põe-te a caminho. Toca a andar daqui para fora.
- Não sei se sabes, mas não me assustas - redarguiu o Percy, desafiador. - Nem um bocadinho. - Os seus olhos fitaram-me. - O mesmo se aplica a ti. - Mas isso não era verdade. Esse receio reflectia-se nos seus olhos, com tanta clareza como a luz do dia o que o tornava ainda mais perigoso. Um tipo como o Percy nem sequer sabe o que tenciona fazer de um minuto para o outro, e de segundo para segundo.
O que ele fez de imediato foi afastar-se de nós, começando a percorrer o corredor num passo alongado e arrogante. Acabara de mostrar ao mundo o que acontecia quando um pequeno franciú meio calvo e escanzelado tentava agarrar-lhe
os tomates, por Deus, e preparava-se para abandonar o campo com uma atitude vitoriosa.
Comecei a debitar o discurso de ocasião previamente preparado, mencionando a Delacroix a existência dos programas de rádio Make Believe Ballroom e Our Gal Sunday, e ainda que o trataríamos como deve ser, caso ele fizesse o mesmo em relação a nós. Aquela pequena homilia não foi exactamente um dos meus maiores triunfos. Ele chorou durante todo o tempo em que apresentei a minha dissertação, sentado, todo encolhido, ao fundo da tarimba, mantendo-se tão afastado de mim quanto possível sem acabar por se sumir no canto. De todas as vezes que eu me deslocava, o Delacroix retraía-se ainda mais; não me parece que ele tenha ouvido uma palavra em seis. O que provavelmente talvez tenha sido preferível. Em qualquer dos casos, tenho a impressão de que aquele pequeno discurso não fazia muito sentido.
Quinze minutos mais tarde, encontrava-me já de regresso à secretária do guarda de serviço, atrás da qual estava sentado um Brutal Howell de aspecto perturbado, enquanto lambia a ponta do lápis que estava preso ao livro das visitas.
- Por amor de Deus! Queres parar com isso antes que te envenenes? - perguntei.
- Jesus Cristo Todo-Poderoso - replicou ele, largando o lápis. - Nunca mais quero assistir a outro rebuliço destes quando um prisioneiro der entrada neste bloco.
- O meu pai costumava dizer que as coisas aconteciam numa sequência de três - repliquei.
-Pois bem, só espero que o teu pai estivesse errado a respeito do assunto - disse ele, mas é claro que o meu pai estava certo. Houvera um distúrbio aquando da chegada do John Coffey, e, na altura em que o Bill Selvagem se juntou a nós, verificou-se um autêntico tumulto - é engraçado, mas de facto as coisas parece que efectivamente surgem em sequências de três. A história da nossa apresentação ao Bill Selvagem, tudo o que rodeou a sua chegada à Milha, altura em que tentou cometer um assassínio, é algo que abordarei dentro em breve.
- Que história é essa de o Delacroix ter tentado agarrar-lhe os tomates? - perguntei.
- O homem tinha grilhetas nos artelhos - começou ° Brutal a explicar com uma expressão escarninha -, e o velho Percy começou a paxá-lo com demasiada força, nada reais. O Delacroix tropeçou e esteve quase a cair quando saiu da carrinha. Estendeu as mãos para a frente, como qualquer outra pessoa teria feito ao sentir que estava prestes a cair, e uma delas roçou pela parte da frente das calças do Percy. Tudo isso não passou de um simples acidente.
- Achas que o Percy se apercebeu disso? - perguntei. - Ou talvez ele estivesse a servir-se disso como desculpa, porque lhe apetecia malhar um pouco no Delacroix? Para lhe mostrar quem é que manda aqui?
- Sim - confirmou o Brutal com um lento acenar de cabeça. - Acho que provavelmente foi isso que se passou. - Nesse caso, temos de nos manter de olho nele - acrescentei, passando os dedos pelo cabelo. Como se o nosso trabalho já não fosse suficientemente difícil. - Meu Deus, como eu odeio isto. Como eu o odeio a ele.
- Também eu. E queres saber que mais, Paul? Não consigo compreendê-lo. O homem está bem relacionado, sou capaz de compreender isso, mas por que motivo é que se serviria dos seus conhecimentos para arranjar um emprego na merda da Milha Verde? Já agora, em qualquer outra das prisões do estado? Porque não como paquete no senado do estado, ou para o lugar do tipo que trata das marcações de agenda do vice-governador? Com certeza que a sua gente teria podido arranjar-lhe qualquer coisa melhor, se ele lhes tivesse pedido; portanto, porquê aqui?
Sacudi a cabeça. Não sabia. Nessa época havia muita coisa de que eu não tinha conhecimento. Suponho que ainda era muito ingénuo.
Depois disto, as coisas regressaram ao normal... pelo menos, durante algum tempo. No tribunal do município, o estado preparava-se para levar o John Coffey a julgamento. O xerife do município, Homer Cribus, andava borrado de medo com receio de que se formasse uma turba para linchar o homem, o que o levou a apressar um pouco os trâmites da justiça. Nada disso tinha o mínimo interesse para nós; no Bloco E ninguém prestava muita atenção às notícias. A vida na Milha Verde era, de uma certa forma uma existência passada numa sala à prova de som. De tempos abafados que, muito provavelmente, seriam explosões no mundo que nos rodeava, mas isso era tudo. Eles não se apressaram em relação ao John Coffey; haviam de querer certificar-se bem de tudo o que se relacionasse com os seus actos,
Houve duas ocasiões em que o Percy decidiu implicar com o Delacroix. Da última vez chamei-o à parte e disse-lhe que fosse ao meu gabinete. Não foi a minha primeira reunião com o Percy em que abordámos o tema do seu comportamento, tal como não seria a última, mas esta teve origem naquilo que, provavelmente, seria a mais clara compreensão da ma_ neira de ser do homem. Possuía o coração de um rapaz cruel, como alguém que vai ao Jardim Zoológico, não para poder observar os animais, mas sim para atirar-lhes pedras para as jaulas.
- Mantém-te afastado dele, estás a ouvir? - ordenei eu. - Amenos que eu te dê uma ordem específica, quero que te mantenhas afastado dele.
Com os dedos, o Percy penteou o cabelo para trás e acamou-o com as suas pequenas mãos cheias de doçura. O rapaz adorava tocar nos seus próprios cabelos.
- Eu não estava a fazer-lhe nada - redarguiu ele. - Limitei-me a perguntar-lhe qual era a sensação de saber que se tinham queimado uns quantos bebés, mais nada. - O Percy olhou-me com uns olhos arredondados de espanto e cheios de candura.
- Ou paras com isso ou terei de elaborar um relatório quanto a esta situação - ameacei-o.
- Faz todos os relatórios que muito bem te apetecer - replicou o Percy com uma gargalhada. - Em seguida, serei eu quem fará os meus. Tal como te disse que faria quando ele veio para cá. Veremos qual de nós é que se sai melhor.
Inclinei-me para a frente com os dedos entrelaçados em cima da secretária, tendo começado a falar num tom de voz que esperava soasse como a de um amigo que se abria em confidências.
- O Brutus Howell não gosta muito de ti - disse.
E quando o Brutal não gosta de uma pessoa, sabe-se que costuma apresentar os seus próprios relatórios. Ele não é grande coisa com a caneta e parece não ser capaz de parar de lamber a ponta daquele lápis, pelo que tem uma grande propensão para elaborar os seus relatórios com os punhos. Não sei se estás a entender o significado das minhas palavras.
O sorriso de complacência do Percy esmoreceu. ._ O que é que estás a tentar dizer-me?
- Eu não estou a tentar dizer coisa nenhuma. Acabei de o dizer, e no caso de contares a algum dos teus... amigos... esta conversa, direi que é tudo fruto da tua imaginação. - Olhei para ele de olhos bem abertos onde creio que se reflectia uma grande sinceridade. - Além do mais, estou a tentar ser teu amigo, Percy. Costuma-se dizer que quem te avisa teu amigo é. E para começar, por que motivo é que havias de te meter com o Delacroix? Ele nem sequer merece isso.
Durante algum tempo, aquela táctica resultou. A paz reinava no bloco. Em duas ocasiões consegui mesmo enviar o Percy juntamente com o Dean ou o Harry, quando chegou a vez de o Delacroix tomar um duche. Nessa noite, tínhamos ligado o rádio; o Delacroix já começara a descontrair-se um pouco, tendo entrado na rotina restrita que vigorava no Bloco E, e o sossego instalou-se entre nós.
Então, houve uma noite em que o ouvi rir-se.
O Harry Terwilliger era o guarda de serviço e ao fim de pouco tempo ouvi-o também a rir-se. Levantei-me da cadeira e dirigi-me para a cela do Delacroix, a fim de descobrir que motivo é que ele teria para tanto riso.
- Olhe, capitão - disse ele quando me avistou. - Acabei de domesticar um rato.
Era o Steamboat Wily. O rato encontrava-se dentro da cela do Delacroix. Mais ainda, estava sentado em cima do seu ombro, olhando para nós com toda a serenidade através das barras, com os seus pequenos olhos que se assemelhavam a contas negras cintilantes. Tinha a cauda enrolada à volta das patas, mostrando-se completamente à vontade. Quanto ao Delacroix... Meus amigos, jamais se poderia adivinhar que era o mesmo homem que se sentara todo encolhido e a tremer ao fundo da sua tarimba ainda não havia uma semana. Apresentava o mesmo aspecto da minha filha numa manhã de Natal, quando descia as escadas e deparava com os presentes.
- Veja isto! - disse o Delacroix. O rato encontrava-se sentado no seu ombro direito e ele estendeu o braço esquerdo. O animal trepou até ao topo da sua cabeça, servindo-se do cabelo do homem (que era, pelo menos, suficientemente basto na nuca) para poder trepar. Em seguida, desceu aos saltos pelo outro lado com o Delacroix a tentar conter o riso, uma vez que a cauda lhe fazia cócegas na região lateral do pescoço. O rato percorreu toda a extensão do braço até ao pulso, em seguida virou-se, e, a correr, regressou ao ombro esquerdo do Delacroix, onde, uma vez mais, enrolou a cauda em redor das patas.
- Raios me partam! - exclamou o Harry, estupefacto. - Eu treinei-o para que fizesse isto - afirmou o Delacroix, todo orgulhoso. Pensei: Uma ova é que o fizeste, mas mantive a boca fechada. - O nome dele é Mister Jingles. - Não me parece - retorquiu o Harry afavelmente. É Steamboat Willy, como nos desenhos animados. Foi o chefe' Howell, quem lhe pôs o nome.
- E Mister Jingles - insistiu o Delacroix. A respeito de qualquer outro assunto, ele teria dito que a merda cheirava bem, caso quiséssemos que ele o dissesse, mas no que dizia respeito ao nome do rato, mantinha-se inabalável que nem uma rocha. - Foi ele que o segredou ao meu ouvido. Capitão, pode arranjar-me uma caixa para ele? Pode arranjar-me uma caixa para o meu rato, para ele poder dormir aqui comigo? - A sua voz adquiriu aquela entoação bajuladora que eu já ouvira mil vezes anteriormente. - Posso pô-lo debaixo da minha tarimba e ele nunca incomodará nem um niquinho, nem um só.
- O teu inglês melhora diabolicamente quando queres alguma coisa - repliquei, tentando ganhar tempo.
- Oh, oh - murmurou Harry, dando-me uma pequena cotovelada. - Os problemas estão a chegar.
O Percy, porém, não me parecia constituir qualquer pro-`` blema, pelo menos nessa noite. Não passava os dedos pelos cabelos, nem brincava com o seu querido bastão, chegando mesmo a ter o botão do colarinho da camisa do uniforme desabotoado. Foi a primeira vez que o vi com aquele aspecto, e fiquei surpreendido ao verificar a diferença que uma pequena alteração como aquela podia fazer. Mas, acima de tudo, o que me espantou mais foi a expressão do seu rosto. Nele reflectia-se uma certa tranquilidade. Não se tratava de serenidade - duvido muito que o Percy Wetmore tivesse um único osso sereno no seu corpo - era, sim, o aspecto de um homem que tem razões para poder esperar que lhe aconteçam as coisas que deseja. Uma transformação bastante acentuada, vinda do jovem que eu ameaçara com os punhos do Brutus Howell apenas há alguns dias.
No entanto, o Delacroix não reparara nessa alteração; retraiu-se todo contra a parede da sua cela, recolhendo os joelhos até ao peito. Os seus olhos davam a impressão de se arregalarem até terem ocupàdo metade do seu rosto. O rato correu para a sua careca e ficou aí sentado. Não sei se ele se recordou de que também tinha razões para não confiar no Percy, mas não havia dúvida de que dava a impressão de não se ter esquecido. Provavelmente farejava apenas o medo que emanava do pequeno franciú, reagindo de acordo com essa percepção.
- Ora muito bem - disse o Percy. - Parece que encontraste um amigo, Eddie.
O Delacroix tentou responder - uma espécie de tom de desafio quanto ao que aconteceria ao Percy, caso o Percy fizesse mal ao seu novo camarada, foi o que calculei - mas da sua boca não saiu qualquer palavra. O seu lábio inferior tremeu um pouco, mas foi tudo. No cimo da sua cabeça, o Mister Jingles não tremia. Continuava sentado, perfeitamente imobilizado, com as patas traseiras firmemente agarradas aos cabelos do Delacroix, enquanto as dianteiras se apoiavam no crânio calvo, fitando o Percy como se estivesse a avaliá-lo. Com a mesma atitude que uma pessoa teria ao avaliar um velho inimigo.
- Aquele não é o mesmo rato que eu persegui? - perguntou o Percy, olhando para mim. - Aquele que mora na cela do isolamento?
Acenei que sim. Eu tinha a impressão de que o Percy não tinha visto o recentemente baptizado Mister Jingles desde a última perseguição, e parecia não desejar persegui-lo naquele momento.
- Sim, é o mesmo - confirmei. - Com a diferença de que ali o Delacroix diz que ele se chama Mister Jingles, e não Steamboat Willy. Afirma que o rato lhe segredou o nome ao ouvido.
- A sério? - retorquiu o Percy. - As surpresas nunca cessam, pois não? - Até certo ponto, eu estava à espera que ele sacasse do bastão e que começasse a bater com ele nas barras da cela para mostrar ao Delacroix quem mandava ali; tod
avia, limitou-se a ficar no mesmo lugar, com as mãos nas ilhargas enquanto olhava para o interior da cela.
E, Por qualquer razão que não sou capaz de explicar por palavras, acrescentei:
- Ah o Delacroix acabou de me pedir uma caixa, Percy.
Está convencido de que o rato dormirá na caixa. Que conseguirá mantê-lo junto de si como um animal de estimação. _ Imprimi à minha voz uma entoação cheia de cepticismo, pressentindo, mais do que vendo, o Harry a olhar para mim, deveras surpreendido. - Qual é a tua opinião?
- Acho que numa noite destas, muito provavelmente, o rato cagar-lhe-á em cima do nariz enquanto ele estiver a dormir, e depois desatará a fugir - respondeu o Percy com uma expressão neutra -, mas calculo que ele será o amigo de atalaia do franciú. Há umas noites vi no carrinho do Pouca Terra uma bela caixa de charutos. No entanto, não sei se ele estará disposto a dá-la a troco de nada; o mais certo é querer cinco cêntimos por ela, talvez mesmo dez.
Naquela altura arrisquei um olhar na direcção do Harry e vi que este estava de boca aberta. Aquela não era exactamente a alteração que o Ebenezer Scrooge sofrera na manhã do dia de Natal, depois de os fantasmas lhe terem aparecido, mas não se encontrava muito longe disso.
O Percy inclinou-se mais na direcção do Delacroix, colocando o rosto entre as barras da cela. O pequeno cajun encolheu-se ainda mais para trás. Juro por Deus que ele se teria fundido com aquela parede se tal fosse fisicamente possível. ; - Tens cinco cêntimos ou talvez mesmo dez para pagares essa caixa de charutos, meu grande mentecapto? - perguntou ele.
- Tenho só quatro pence - respondeu o Delacroix. - Estou disposto a dá-los por uma caixa, se for boa, s'il est bon.
- Vou dizer-te o que é que vamos fazer - continuou o Percy. - Se esse velho libertino desdentado te vender a caixa de Coronas por quatro pence, trarei algum algodão da enfermaria para a forrares. Teremos um verdadeiro Hilton para ratos, quando tivermos terminado - O Percy desviou o olhar na minha direcção. - Tenho de elaborar um relatório sobre o quadro eléctrico na execução do Bitterbuck - continuou ele. - Tens alguma caneta no teu gabinete, Paul?
- Na realidade, tenho - repliquei. - E também tenho impressos. Na gaveta de cima do lado esquerdo.
- Pois bem, isso calha que nem ginjas - disse ele, afastando-se num andar folgazão.
O Harry e eu entreolhámo-nos, admirados.
- Achas que ele está doente? - perguntou o Harry.
Talvez o médico lhe tenha dito que só lhe restavam três meses de vida, não?
Respondi-lhe que não fazia a mais pequena ideia do que estava a suceder com o Percy. O que nessa altura era verdade; aquela situação manteve-se durante algum tempo, mas com o passar das semanas vim a descobrir o que motivara a sua mudança de atitude. E, alguns anos mais tarde, travei uma conversa muito interessante com o Hal Moores, à mesa. Nessa altura já podíamos falar com toda a liberdade, uma vez que ele se tinha aposentado e eu trabalhava no Estabelecimento Correccional Juvenil. Foi durante uma dessas refeições onde se bebe um pouco de mais e se come muito pouco, o que permite que as línguas se soltem. O Hal contou-me que o Percy tinha ido ao seu gabinete para apresentar queixa contra mim e contra a vida na Milha Verde, de uma maneira geral. Isso acontecera logo a seguir à chegada do Delacroix ao bloco, e de o Brutal e eu termos impedido o Percy de espancar o prisioneiro quase até à morte. Aquilo que mais havia afectado o Percy fora o facto de eu lhe ter dito que saísse da minha vista. Não lhe parecia que um homem que tinha laços familiares com o governador devesse ser obrigado a suportar aquele tipo afrontoso de conversa.
Pois bem, o Moores empatara o Percy tanto quanto lhe fora possível, e quando se lhe tornou evidente que este estava na disposição de puxar alguns cordelinhos para que eu fosse oficialmente repreendido, acabando, no mínimo dos mínimos, por ser transferido para outro serviço da penitenciária, ele, o Moores, levara o Percy ao seu gabinete e dissera-lhe que, se deixasse de fazer ondas, ele próprio lhe garantia que seria colocado na linha da frente aquando da execução do Delacroix. o que, na realidade aconteceu. ficou mesmo ao lado da cadeira eléctrica. Como sempre, eu seria o responsável por todo o processo mas as testemunhas não teriam conhecimento desse aspecto; ~da perspectiva destas pareceria que Mr. Percy Wetmore é que era o mestre-de-cerimónias do cotilhão. O Moores não lhe prometera mais do que aquilo que já havíamos discutido, pelo que eu não tencionava apresentar a mínima objecção, embora o Percy não tivesse conhecimento disto. Concordou em desistir das suas ameaças no sentido de que eu fosse transferido o que teve como resultado a melhoria do ambiente no Bloco E. Chegara mesmo ao ponto de concordar com que o Delacroix pudesse ficar com o seu antigo nemesis como seu animal de estimação. É espantosa a forma comá alguns homens são capazes de se modificar, depois de se lhes ter proporcionado o incentivo adequado; no caso do Percy, tudo o que o director Moores teve de lhe oferecer foi a oportunidade de tirar a vida a um pequeno franciú calvo.
O Pouca Terra achou que quatro pence eram uma quantia irrisória por uma bela caixa de charutos Corona, no que provavelmente teria toda a razão - no interior da prisão, as cai xas de charutos eram artigos deveras valiosos. Nelas poderia ser guardado um milhar de pequenos objectos diversos, o seu cheiro era agradável, e havia ainda algo nelas que recordava aos nossos clientes o que era serem homens livres. Imagino que isto acontecesse porque, embora os cigarros fossem permitidos na prisão, o mesmo não acontecia aos charutos. I
O Dean Stanton, que entretanto já regressara ao bloco, depositou um cêntimo no boião, exemplo que eu próprio segui. Dado que o Pouca Terra continuava a mostrar-se relutante, o Brutal decidiu trabalhá-lo um pouco, começando por lhe dizer que deveria sentir-se envergonhado com o seu comportamento, por ser assim tão sovina, e prometendo-lhe que ele mesmo, Brutus Howell, haveria de entregar, pessoalmente, ao Pouca Terra a caixa que contivera Coronas logo no dia seguinte áo da execução do Delacroix.
- É possível que pudéssemos discutir se seis cêntimos são ou não suficientes se estivéssemos a falar de vender essa caixa de charutos - acrescentou o Brutal -, mas tens de admitir que é um preço óptimo pelo seu aluguer. O Delacroix vai percorrer a Milha dentro de um mês, no máximo dos máximos, seis semanas. Repara bem, essa caixa estará de volta ao estrado inferior do teu carrinho quase antes mesmo de teres dado pela sua falta.
- Talvez ele apanhe um juiz bonzinho que lhe conceda uma suspensão - retorquiu o Pouca Terra embora ele soubesse que isso não aconteceria e o Brutal ~ soubesse que ele sabia.
O velho Pouca Terra andava a empurrar o raio daquele carrinho cheio de citações da Bíblia por toda a Cold Mountain desde os primeiros dias dos serviços postais da Pony Express, e tinha muitas fontes a que recorrer... melhores do que as nossas, pensava eu na altura. Ele sabia bem que o Delacroix não tinha qualquer hipótese de apanhar um juiz de bom coração. Tudo o que lhe restava era o governador, o qual, regra geral, não tinha o hábito de mostrar clemência para com os fulanos que haviam assado meia dúzia de membros do seu círculo eleitoral.
- Mesmo que ele não consiga uma suspensão, o rato há-de cagar-lhe a caixa toda até Outubro, talvez mesmo até ao Dia de Acção de Graças - argumentou o Pouca Terra, mas o Brutal apercebeu-se de que ele começara,a vacilar. - Quem é que vai querer comprar uma caixa de charutos que um rato qualquer usou como retrete?
- Que raio de argumento o teu! - ripostou o Brutal. - Essa é a coisa mais disparatada que alguma vez te ouvi dizer, Pouca Terra. Bate tudo o mais. Em primeiro lugar, o Delacroix haverá de manter a caixa suficientemente limpa, para se poder comer dela... Da maneira como ele adora esse rato, se fosse necessário até a lamberia para que se mantivesse sempre limpa.
- Calma lá com esse tipo de conversa - disse o Pouca Terra, nauseado, franzindo o nariz.
- E em segundo lugar - continuou o Brutal -, a merda dos ratos não é uma coisa por aí além. São apenas umas caganitas duras, parece chumbo de atirar aos pardais. Sacode-se e sai tudo. Não tem nada de especial.
O velho Pouca Terra sabia que não lhe serviria de nada continuar com os protestos; já vivia na penitenciária há tempo suficiente para saber quando é que poderia seguir ao sabor da brisa, e quando é que era preferível vergar-se perante o vendaval. Aquela situação não era propriamente um vendaval, mas nós, os de uniforme azul, gostávamos do rato e agradava-nos o facto de o Delacroix poder ficar com o animal, o que no mínimo tornava aquela situação semelhante a borrasca. Por conseguinte, o Delacroix conseguiu a sua caixa e o Percy cumpriu a sua palavra - dois dias mais tarde, o fundo da caixa estava coberto por uma camada macia de algodão que ele trouxera da enfermaria. Foi o próprio Percy quem o entregou na cela; detectei o medo que se reflectiu nos olhos do Delacroix quando estendeu a mão por entre as barras para o aceitar. Receava que o Percy lhe agarrasse a mão e lhe quebrasse os dedos. Eu também temia um pouco que isso pudesse acontecer, mas tal não se verificou. Aquela ocasião foi o mais próximo que alguma vez estive de gostar do Percy, mas até mesmo naquelas circunstâncias foi difícil ser-se enganado pela expressão de satisfação calculista que os seus olhos não ocultavam. O Delacroix tinha um animal de estimação; o Percy também conseguira um. O Delacroix manteria o seu, acariciando-o e mostrando amor por ele durante tanto tempo quanto lhe fosse possível; por seu lado, o Percy aguardaria pacientemente (com tanta paciência quanta um homem como ele poderia reunir), após o que queimaria o seu animal, ainda vivo.
- O Hilton dos ratos abriu as suas actividades - comentou o Harry, trocista. - A única questão que se põe é esta: será que o sacaninha o utilizará?
Essa pergunta foi logo respondida assim que o Delacroix apanhou o Mister Jingles, baixando-o com suavidade até ao interior da caixa. O rato aninhou-se no algodão branco, como se fosse o cachecol da tia Bea. A caixa passou a ser a sua casa desde então até... bem, a seu tempo regressarei ao final da história do Mister Jingles.
As preocupações do velho Pouca Terra, de que a caixa de charutos ficasse cheia de merda de rato, vieram a provar não ter qualquer fundamento. Eu nunca lá vi uma única caganita, e o Delacroix também afiançava que isso era verdade... e que nunca encontrara quaisquer dejectos na sua cela. Bastante tempo depois, por volta da altura em que o Brutal me mostrou o orifício na trave, e ambos descobrimos as lascas de madeira colorida, afastei uma cadeira que se encontrava no canto virado a leste da cela do isolamento, tendo deparado com um pequeno amontoado de caganitas de rato nesse lugar. Aquilo provava que o animal tinha ido sempre ao mesmo lugar para tratar daquele assunto, tão afastado de nós quanto podia. E ainda outra coisa: nunca o vi a fazer chichi e, habitualmente, os ratos não conseguem manter a torneira fechada por mais de dois minutos seguidos, muito em especial quando estão a comer. Eu já vos disse, o raio daquela criatura era um dos mistérios de Deus.
Mais ou menos uma semana depois de o Mister Jingles se ter instalado na sua caixa de charutos, o Delacroix chamou-me a mim e ao Brutal para irmos à sua cela ver uma coisa. Ele fa zia aquilo com tanta frequência que chegava a ser incómodo - se Mister Jingles se rebolasse pelo chão e ficasse deitado de costas com as patas para cima, isso era a coisa mais engraçada ao cimo da Terra, pelo menos para aquele meia-teca cajun - todavia, desta feita a habilidade que ele fazia era bastante finteressante.
Após a sua condenação, o Delacroix havia sido relegado pelo mundo para o esquecimento, mas tinha um familiar - uma velha tia solteirona, creio eu - que costumava escrever-lhe uma vez por semana. Também lhe enviara um saco enorme cheio de rebuçados de hortelã-pimenta. Pareciam-se com umas pílulas gigantescas de uma tonalidade amarelada. O Delacroix não teve autorização para ficar com todo o conteúdo do saco de uma só vez, como é natural - pesava dois quilos e meio e certamente que ele os teria devorado todos, até ter ido parar à enfermaria com dores de barriga.
À semelhança de qualquer dos outros assassinos que tivéramos na Milha, o Delacroix não possuía a noção do que era a moderação. Costumávamos dar-lhe os rebuçados aos seis de cada vez, e só se ele se lembrasse de os pedir.
Quando chegámos à cela, o Mister Jingles encontrava-se em cima da tarimba, sentado ao lado do Delacroix, segurando com as patas um dos rebuçados verde-amarelados enquanto o mordiscava, todo satisfeito da vida. O Delacroix sentia-se simplesmente enlevado ao ver aquilo - era o protótipo do pianista clássico, assistindo à prática das primeiras escalas do seu filho de cinco anos. Mas não me interpretem mal; aquilo era mesmo engraçado, de morrer a rir. O rebuçado tinha metade do tamanho do Mister Jingles, e a sua barriga branca já se mostrava distendida por causa da guloseima.
- Tira-lhe o rebuçado, Eddie - disse o Brutal num misto de riso e de horror. - Deus do céu, ele vai comer até rebentar. Mesmo daqui, sinto o cheiro a hortelã-pimenta. Quantos é que o deixaste comer?
- Este é o segundo - respondeu o Delacroix, olhando com um certo nervosismo para a barriga do Mister Jingles. - Acha realmente que ele... sabe o que quero dizer... pode ficar com as entranhas rebentadas?
- É possível que sim - retorquiu o Brutal.
Para o Delacroix aquela era uma fonte de autoridade suficiente. Estendeu a mão para o rebuçado amarelo-esverdeado de menta, já meio comido. Eu estava à espera que o rato lhe desse uma mordidela mas o Mister Jingles cedeu a guloseima - pelo menos o que restava dela - com tanta humildade quanto era possível. Olhei para o Brutal e este abanou ligeiramente a cabeça; ele também não compreendia aquilo. Em seguida, o Mister Jingles instalou-se na sua caixa, deitando-se de lado numa postura exausta, o que fez com que nós os três desatássemos a rir. Depois disso, acostumámo-nos a ver o rato sentado ao lado do Delacroix, segurando um rebuçado que ia mordiscando com tantas maneiras como se fosse uma senhora de idade a tomar o seu chá das cinco; tanto um como o outro se encontravam envoltos no cheiro que mais tarde me chegou às narinas vindo do orifício na trave do tecto - um cheiro meio amargo e meio adocicado característico dos rebuçados de hortelã-pimenta.
Existe ainda outra coisa que devo revelar-vos sobre o Mister Jingles antes de passar ao assunto da chegada do William Wharton, quando um autêntico ciclone se abateu realmente sobre o Bloco E. Mais ou menos uma semana depois do incidente dos rebuçados de menta - mais ou menos na altura em que ficámos convencidos de que Delacroix haveria de alimentar o seu animal de estimação até que este rebentasse - o pequeno franciú chamou-me à sua cela. Naquele momento, encontrava-me sozinho, pois o Brutal fora ao comissariado tratar de um assunto qualquer, e, de acordo com os regulamentos, eu não devia aproximar-me de um prisioneiro em tais circunstâncias. Contudo, uma vez que, num dos meus dias bons, eu teria podido alvejar o Delacroix com uma só mão à distância de vinte metros, decidi não cumprir o regulamento, indo ver o que é que ele queria.
- Veja isto, chefe Edgecombe - disse ele. - Vai ver o que é que o Mister Jingles consegue fazer. - Levou a mão atrás da caixa de charutos de onde retirou um pequeno carretel de madeira.
- Onde é que arranjaste isso? - perguntei-lhe, embora calculasse que já sabia a resposta. Só havia uma pessoa que lhe poderia ter dado aquilo.
- Foi o velho Pouca Terra - respondeu o Delacroix. - Observe bem isto.
Eu já tinha começado a olhar, observando Mister Jingles na sua caixa, o qual se pusera de pé com as patas dianteiras firmadas no bordo, mantendo os olhinhos negros fixos no carretel que Delacroix segurava entre o polegar e o indicador da mão direita. Senti a espinha percorrida por um pequeno arrepio estranho. Nunca tinha visto um simples rato tentar fazer qualquer coisa com tanta argúcia - com tanta inteligência. Na realidade, não estou em crer que o Mister Jingles fosse um visitante sobrenatural e, se por acaso vos dei essa impressão, lamento muito; no entanto, nunca duvidei de que a criatura fosse um génio entre os da sua espécie.
O Delacroix inclinou-se para a frente, fazendo rolar o carretel que não tinha linhas pelo chão da sua cela. Deslizou facilmente, como se tivesse um par de rodas ligadas por um eixo, Veloz que nem um relâmpago, o rato saiu da sua caixa e correu atrás do carretel, tal como um cão que fosse no encalço de um pau. Dei largas à perplexidade que sentia, e o Delacroix esboçou uma careta risonha.
O carretel bateu contra a parede e ressaltou. Mister Jingles contornou-o, empurrando-o de volta à tarimba, alternando de um extremo ao outro do carretel, sempre que este parecia querer desviar-se da rota certa. Empurrou-o até ter chegado junto de um dos pés do Delacroix. Olhou para ele por breves momentos, como que a certificar-se de que o Delacroix não tinha mais tarefas imediatas que ele tivesse de levar a cabo (talvez uns quantos problemas aritméticos ou a análise de um texto em latim). Aparentemente satisfeito, o Mister Jingles regressou à sua caixa de charutos, voltando a instalar-se no seu interior.
- Foste tu que lhe ensinaste essa habilidade - disse eu. - Sim senhor, chefe Edgecombe - admitiu o Delacroix, esboçando,um sorriso abstracto. - De todas as vezes, ele foi buscá-lo. É esperto que nem um raio, não acha?
- E o carretel? - perguntei. - Como é que soubeste que tinhas de o arranjar para ele, Eddie?
- Ele segredou-me ao ouvido que o desejava - respondeu o Delacroix com uma grande serenidade. - Da mesma maneira que sussurra o seu nome.
O Delacroix mostrou a todos os outros tipos as habilidades do seu rato... isto é, a todos com a excepção do Percy. Para o Delacroix não fazia a mínima diferença que tivesse sido este a sugerir a caixa de charutos e a arranjar o algodão para cobrir o fundo. O Delacroix assemelhava-se a alguns cães: dê-se-lhes um único pontapé e eles jamais voltarão a confiar no agressor, independentemente do quanto nos possamos mostrar agradáveis para com eles.
Neste momento, parece que ainda estou a ouvir a voz do Delacroix a gritar: Ei, vocês! Venham ver as habilidades que o Mister Jingles consegue fazer! E todos eles, com os seus uniformes azuis, iam em grupo até lá abaixo - o Brutal, o Harry, o Dean e até mesmo o Bill Dodge. Também eles tinham mostrado o espanto adequado às circunstâncias, à semelhança do que eu próprio fizera.
Três ou quatro dias depois de o Mister Jingles ter começado a mostrar aquela habilidade com o carretel, o Harry Terwilliger passou revista aos materiais de arte que guardávamos na cela do isolamento, e encontrou os lápis de cera Crayola que entregou ao Delacroix com um sorriso que era quase de constrangimento.
- Pensei que talvez gostasses de pintar esse carretel de diversas cores - justificara ele. - Assim, o teu pequeno amigo poderia transformar-se numa espécie de rato do circo, ou algo parecido.
- Um rato do circo! - exclamara o Delacroix, mostrando uma expressão de completa felicidade, mesmo de êxtase. Suponho que se sentisse inteiramente feliz pela primeira vez em toda a sua desgraçada vida. - Mas é isso exactamente o que ele é! Um rato de circo! Quando eu sair daqui, ele vai fazer com que eu fique rico, num circo! ~o ver se ele não vai fazer isso.
Sem dúvida que o Percy Wetmore teria chamado a atenção do Delacroix para o facto de que, quando chegasse a altura de este deixar Cold Mountain, seria levado numa ambulân cia que não precisava de ter as luzes nem a sirena ligadas, mas o Harry tinha demasiado bom senso para isso. Limitou-se a dizer ao Delacroix que colorisse o carretel tanto e tão depressa quanto lhe fosse possível, uma vez que teria de repor os lápis de cera no seu lugar logo depois do jantar.
Não há dúvida de que o Del conseguiu colori-lo. Quando terminou a sua tarefa, uma das extremidades do carretel estava pintada de amarelo e a outra de verde, enquanto a extensão no meio era de um vermelho de carro de bombeiros. Habituámo-nos a ouvir o Delacroix a dizer triunfalmente: Maintenant, m'sieurs et mesdames! Le cirque présentement le mous'amusant et amazeant!' Não era isto precisamente, mas chega para dar uma ideia do francês atabalhoado do Delacroix. Em seguida começava a emitir um som que vinha bem do fundo da sua garganta - acho que supostamente representaria o rufar de um tambor - e lançava o carretel. Como um relâmpago, o Mister Jingles ia atrás dele, quer trazendo-o de volta, empurrando-o com o focinho, quer servindo-se das patas. A segunda modalidade, penso eu, era de facto algo que
Num francês não muito correcto: qualquer pessoa teria pago para ver num circo. O Delacroix e o seu rato, este e o seu carretel garridamente colorido, eram o nosso divertimento principal, na época em que o John Coffey passou a estar sob a nossa tutela e aos nossos cuidados; foi assim que as coisas permaneceram por algum tempo. Pouco depois, a minha infecção urinária, que se tinha mantido dormente durante algum tempo, voltou a atormentar-me, e foi também nessa altura que o William Wharton chegou, dando origem a uma situação absolutamente caótica.
Na sua maior parte, as datas desapareceram da minha memória. Calculo que poderia ter pedido à minha neta, a Danielle, que verificasse algumas delas através dos arquivos dos jornais, mas qual seria o objectivo de uma coisa dessas? As datas mais importantes, como por exemplo o dia em que descemos até à cela do Delacroix e deparámos com o rato sentado em cima do seu ombro, ou o dia em que o William Wharton chegou ao bloco, não tendo morto o Dean Stanton por um triz, não teriam sido mencionadas na imprensa escrita. Talvez seja preferível continuar nos mesmos moldes que tenho seguido até aqui; ao fim e ao cabo, calculo que as datas não tenham grande importância, desde que uma pessoa seja capaz de se recordar dos acontecimentos que presenciou na sequência adequada.
Sei que nessa altura as coisas ficaram um tudo-nada apertadas. Quando os papéis relativos à data da execução do Delacroix foram finalmente enviados do gabinete do Curtis Anderson, senti-me perplexo ao verificar que o encontro do nosso amigo cajun com a Velha Faísca fora antecipado, em relação à data com que tínhamos contado, uma coisa rara até mesmo nesses dias em que não era preciso revolver metade dos céus e toda a Terra para executar um homem. Foi uma questão de dois dias, penso eu, de 25 a 27 de Outubro. Não me obriguem a dizer-vos com exactidão, mas sei que não ando muito longe dessa data. Recordo-me de ter pensado que o Pouca Terra poderia reaver a sua caixa de Coronas mais cedo do que esperara.
Entretanto, o Wharton chegou ao nosso bloco mais tarde do que estava previsto. Por um motivo: o seu julgamento durara mais tempo do que aquilo que as fontes, habitualmente de toda a confiança, do Anderson pensaram que duraria (quando o assunto dizia respeito ao Bill Selvagem, nada era de confiança, haveríamos nós de descobrir ao fim de pouco tempo, incluindo os nossos métodos de controlo de prisioneiros, supostamente infalíveis). Então, e depois de se ter chegado à conclusão de que ele era culpado - pelo menos essa parte esteve de acordo com o argumento - foi levado para o Hospital Geral de Indianola a fim de ser submetido a alguns exames. Parece que fora acometido por um certo número de convulsões durante o julgamento; por duas ocasiões estas tinham sido suficientemente graves para o terem deitado por terra, onde ficou a estrebuchar e a bater com os pés contra o soalho. O defensor oficioso do Wharton afirmou que ele sofria de "ataques de epilepsia", tendo cometido os seus crimes quando se encontrava desarranjado do juízo; por seu lado, aacusação clamou que os seus ataques eram o estratagema de , um cobarde desesperado, que tentava salvar a própria vida. Depois de ter observado em primeira mão os tão famosos ; "ataques de epilepsia", o júri concluiu que estes não passavam de uma encenação. O juiz corroborou aquela opinião, mas ordenou que fossem levados a cabo uma série de exames clínicos depois de o júri ter apresentado o seu veredicto. Deus saberá por que motivo; talvez ele sentisse apenas curiosidade.
O facto de o Wharton não ter fugido do hospital constitui , um verdadeiro mistério (e a ironia de a mulher do director Moores, Melinda, se encontrar internada no mesmo hospital, nessa altura não escapou à atenção de nenhum de nós), mas o certo é que não o fez. Suponho que o tenham mantido sempre rodeado de guardas e que ele ainda albergasse a esperança de vir a ser considerado inimputável por causa da epilepsia, se é que tal é possível.
Isso, porém, não veio a verificar-se. Por seu lado, os médicos não detectaram nada de anormal no seu cérebro - pelo menos de natureza fisiológica - e o Billy "the Kid" Whar"
ton foi finalmente despachado para Cold Mountain. Isso deverá ter acontecido por volta do dia 16 ou 18; as minhas recordações dizem-me que o Wharton chegou mais ou menos duas semanas depois de John Coffey e uma semana ou dea dias antes de o Delacroix ter percorrido a Milha Verde.
O dia em que o nosso novo psicopata se nos reuniu foí para mim um dia recheado de acontecimentos. Acordei às quatro horas da manhã, sentindo as partes baixas a latejarem, e o pénis entupido e inchado. Antes mesmo de ter posto os pés no chão, compreendi que a infecção urinária não estava a melhorar como eu esperara. Tinha atravessado uma breve fase de melhoras, nada mais, e ela entretanto chegara ao fim.
Fui à latrina no exterior fazer o que tinha a fazer - isto aconteceu três anos antes de termos instalado a nossa primeira retrete com descarga de água - e ainda mal chegara à pilha de madeira à esquina da casa quando percebi que não conseguiria conter-me por mais tempo. Baixei as calças do pijama precisamente na altura em que a urina começou a verter; esse fluxo foi acompanhado pelas dores mais excruciantes que sofri em toda a minha vida. Em 1956, tive uma pedra na vesícula; sei que as pessoas costumam dizer que essa dor é a pior de todas, mas o certo é que essa pedra da vesícula foi para mim como uma ligeira indisposição provocada por acidez no estômago, em comparação com o que sofri nessa altura.
Os meus joelhos deram de si e caí pesadamente sobre eles, tendo rasgado o traseiro das calças do pijama ao abrir as pernas a fim de evitar perder o equilíbrio e cair de cara em cima da poça do meu próprio mijo. Ainda assim, poderia ter acabado por cair se não me tivesse agarrado com a mão esquerda a um tronco de lenha. No entanto, tudo aquilo poderia estar a acontecer na Austrália ou até mesmo em outro planeta. Tudo o que me preenchia a mente eram as dores atrozes que pareciam querer consumir-me como o fogo. Sentia o baixo-ventre a arder, enquanto o meu pénis - um órgão de que eu me havia esquecido quase por completo, exceptuando as alturas em que me proporcionava o mais intenso prazer físico que um homem poderá sentir - me dava naquele momento a impressão de estar a derreter-se. Se baixasse o olhar, esperava ver sangue a jorrar da sua extremidade; contudo, o que vi pareceu-me ser um fluxo normal de urina.
Agarrei-me à pilha de lenha com uma mão enquanto mantinha a outra sobre a boca, concentrando-me em mantê-la cerrada. Não queria assustar a minha mulher, despertando-a com um grito inesperado. Pareceu-me que haveria de mijar para sempre, mas finalmente o fluxo de urina cessou. Nessa altura, as dores já se haviam albergado bem no fundo do meu estômago, assim como nos testículos, dando a sensação de que mordiam como dentes ferrugentos. Durante bastante tempo - é possível que se tenha alongado por um minuto - senti-me fisicamente incapaz de endireitar o corpo. Por fim, as dores começaram a abrandar e foi com esforço que consegui pôr-me na posição erecta. Olhei para a minha urina, que já tinha em_ papado o solo, perguntando a mim mesmo se algum Deus de perfeito juízo poderia dar origem a um mundo onde uma quantidade tão insignificante de urina pudesse jorrar a extensão de dores tão excruciantes.
Pensei que iria dar parte de doente e que, apesar da relutância que sentia, teria de consultar o Dr. Sadler. Não desejava sofrer os efeitos nauseantes das cápsulas de sulfamidas dele, mas qualquer coisa seria preferível a ter de me ajoelhar junto da pilha de lenha envidando todos os esforços para não gritar, enquanto a minha picha me informava que havia sido regada com querosene e posta a arder.
Pouco depois, enquanto tomava algumas aspirinas na cozinha, ouvindo a Jan ressonar suavemente no nosso quarto, ocorreu-me que aquele era o dia em que o William Wharton deveria chegar ao bloco e que o Brutal não estaria presente, uma vez que a escala de serviço o destacara para outra zona da prisão, a fim de ajudar a mudar o que restava da biblioteca e da enfermaria para o novo edificio. Havia uma coisa acerca da qual eu não me sentia bem, apesar das dores que me atormentavam: deixar o Wharton apenas a cargo do Harry e do Dean. Ambos eram eficientes, mas o relatório enviado pelo Curtis Anderson indicava que o William Wharton era verdadeiramente uma má rês. Ele escrevera: Este homem está-se nas tintas para o que lhe possa acontecer, frase que havia sublinhado para lhe dar mais ênfase.
Ao fim de algum tempo, as dores tinham abrandado um pouco, o que me permitiu pensar com mais coerência. Parecia-me que a melhor ideia seria sair mais cedo para a prisão. Poderia chegar às seis, que era a hora a que o director Moores costumava chegar. Ele poderia voltar a destacar o Brutos Howell para o Bloco E durante o tempo suficiente para dar entrada ao Wharton, o que me permitiria efectuar a consulta ao Dr. Sadler que eu tinha vindo a adiar indefinidamente. Na realidade, Cold Mountain ficava-me em caminho.
Por duas vezes, durante o percurso de trinta e dois quilómetros até à penitenciária, senti-me assolado por uma enorme vontade de urinar. Nas duas ocasiões pude encostar à berma, tratando desse problema, sem grande embaraço para mim próprio (por uma razão, o movimento de tráfego nas estradas regionais àquela hora da manhã era quase inexistente). Nenhuma destas duas ejaculações urinárias foi tão dolorosa como a que me tinha feito ir abaixo dos joelhos a caminho da latrina em minha casa, mas em ambas as ocasiões fui forçado a agarrar-me ao fecho da porta do lado do passageiro do meu pequeno Ford descapotável sentindo o suor a escorrer-me pelas faces ardentes abaixo. Não havia dúvida de que eu estava doente, muito doente.
No entanto, lá consegui chegar ao fim da viagem; tendo transposto o portão virado a sul, estacionei no meu lugar habitual e fui imediatamente falar com o director da prisão. Nessa altura já eram quase seis horas. O gabinete de Miss Hannah encontrava-se vazio - ela não chegaria antes das sete, que era a hora das pessoas civilizadas chegarem - contudo, a luz do gabinete de Moores já se encontrava ligada; via-a através do vidro fosco e com nervuras. Bati num gesto mecânico, abrindo logo a porta. O Moores soergueu o olhar, surpreendido por ver alguém àquela hora matutina, e eu teria dado qualquer coisa para não o ter visto naquelas condições, com a expressão de quem havia sido apanhado de surpresa. O seu cabelo branco, habitualmente tão bem penteado, estava naquela altura todo espetado e emaranhado; quando entrei no seu gabinete, tinha os dedos nos cabelos, arrepelando-os e puxando-os. Os seus olhos estavam extremamente congestionados, com a pele abaixo deles tumefacta e balofa. Os seus tremores eram os piores que eu lhe tinha visto; o aspecto era o de um homem que acabara de entrar no gabinete, depois de uma longa caminhada numa noite terrivelmente fria.
- Hal, desculpa, volto mais tarde... - comecei a dizer. - Não - replicou ele. - Por favor, Paul. Entra. Entra e fecha a porta. Se alguma vez precisei da companhia de alguém em toda a minha vida, é precisamente neste momento. Entra e fecha a porta.
Fiz como ele me dizia, esquecendo-me das minhas próprias dores pela primeira vez desde que acordara nessa manhã.
- É um tumor no cérebro - acrescentou Moores. - Descobriram-no nas radiografias. Na realidade, pareciam estar muito satisfeitos com as suas radiografias. Um deles até disse que eram as melhores radiografias que alguém alguma vez tinha tirado, pelo menos até agora; acrescentaram ainda que vão publicá-la numa grande publicação médica da Nova Inglaterra. Disseram que era do tamanho de um limão e que se encontra bem entranhado no cérebro, num sítio onde não poderiam operar. Disseram também que ela estará morta por altura do Natal. Eu ainda não lhe disse nada. Por muito que pense, não sei como é que hei-de dar-lhe uma notícia destas.
Foi então que começou a chorar, um choro intenso e convulsivo que me provocou uma amálgama de pena e uma espécie de horror - quando um homem tão reservado como o Hal Moores acaba por perder o controlo das suas emoções, isso assusta. Fiquei imobilizado por uns momentos, até que me aproximei dele e coloquei o meu braço em redor dos seus ombros. Moores abraçou-me com ambos os braços; parecia um homem prestes a afogar-se e começou a soluçar contra o meu estômago; todas as reservas o tinham abandonado. Mais tarde, depois de ter conseguido recuperar a compostura, pediu-me desculpa. Fê-lo sem que o seu olhar tivesse ido ao encontro do meu, tal como qualquer homem faria ao aperceber-se de que procedera de forma confrangedora, tão confrangedora que nunca poderia esquecer-se daquela situação. Um homem é muito capaz de vir a odiar o sujeito que o viu em circunstâncias como aquelas. Mas eu estava convencido de que o director Moores era uma pessoa que poderia ultrapassar isso; nunca me passou pela cabeça tratar do assunto que ali me havia levado originalmente, uma vez que, quando saí do gabinete do Moores, encaminhei-me para o Bloco E; em vez de regressar ao meu automóvel. Nessa altura, a aspirina já começara a produzir o seu efeito, pelo que as dores que eu sentia na região central do meu corpo se tinham reduzido a um fraco latejar. Concluí que havia de conseguir chegar ao fim do dia, instalar o Wharton na sua cela, voltar a falar com o Hal Moores ainda nessa mesma tarde e dar parte de doente só no dia seguinte. O pior já passara, pensei, sem fazer a mais pequena ideia de que o pior de todas as desventuras desse dia ainda nem sequer tinha começado.
- Calculámos que ele ainda se encontrava sob o efeito dos tranquilizantes das análises - disse o Dean no fim desse mesmo dia.
A sua voz soava baixa e rouca, assemelhando-se mais a um ladrar; no seu pescoço tinham começado a aparecer umas equimoses de púrpura-enegrecida. Eu compreendia que lhe devia custar bastante falar, e pensei em dizer-lhe que deixasse o assunto de lado, mas acontece que por vezes é mais difícil não abordar as questões. Cheguei à conclusão que aquela era uma dessas ocasiões, pelo que decidi manter a minha própria boca fechada.
- Todos pensámos que ele estava drogado, não é verdade? - insistiu o Dean.
O Harry Terwilliger acenou afirmativamente. Até mesmo o Percy, sentado um pouco afastado de nós, formando o seu pequeno grupo amuado de uma só pessoa, também corroborou aquela versão com um gesto de cabeça.
O Brutal fitou-me, e por breves instantes os nossos olhares cruzaram-se. Tínhamos o mesmo pensamento, que as coisas aconteciam assim. Os dias decorriam dentro de toda a normalidade, mas cometia-se um só erro e pumba!, o firmamento abatia-se inexoravelmente sobre nós. Tinham calculado que o homem se encontrava sob o efeito de sedativos, o que era uma suposição bastante razoável, embora ninguém houvesse inquirido se ele estava efectivamente drogado ou não. Pensei ter detectado algo mais no olhar do Brutal: o Harry e o Dean aprenderiam com o seu erro. Muito em especial o Dean, o qual poderia, facilmente, ter sido entregue já morto à família. Mas não o Percy. Talvez isso fosse impossível com o Percy. Tudo o que este podia fazer era manter-se sentado a um canto, amuado por estar outra vez atolado na merda.
Ao todo eram sete, os que foram a Indianola para assumir a tutela de Bill "Selvagem" Wharton: o Harry, o Dean, o Percy, mais outros dois guardas que seguiam atrás (já me esqueci dos seus nomes, apesar de ter a certeza de que em tempos os conheci) e mais dois que seguiam à frente. Iam naquilo a que costumávamos chamar a diligência - uma pequena camioneta Ford com painéis de madeira que fora reforçada com placas de aço, e equipada com o que devia ser vidro à prova de bala. Aquele veículo assemelhava-se a uma mistura de carrinha de distribuição de leite e carro blindado.
Harry Terwilliger, tecnicamente, era a pessoa responsável por aquela expedição. Entregou toda a papelada ao xerife do município (não era o Homer Cribus, mas sim outro labrego eleito nos mesmos moldes imagino eu), o qual por seu turno entregou Mr. William Wharton, o arruaceiro extraordinaire, tal como diria o Delacroix. Antecipadamente, havia sido enviado um uniforme prisional de Cold Mountain, embora o xerife e os seus homens não se tivessem dado ao incómodo de dizerem ao Wharton que o usasse; deixaram essa tarefa para os nossos rapazes. O Wharton estava vestido com umas roupas de algodão do hospital e calçava umas pantufas baratas de feltro quando o viram pela primeira vez no segundo pi_ so do hospital; era um indivíduo escanzelado com um rosto de feições afiladas e faces cheias de borbulhas, possuidor de uma longa cabeleira loura e emaranhada. O seu traseiro também era estreito e estava coberto de borbulhas, podendo ser visto através da abertura daquela espécie de bata. Aquela fora a zona da sua anatomia que o Harry e os demais viram, uma vez que o Wharton se encontrava junto de uma janela, a observar o parque de estacionamento, quando eles entraram na enfermaria. O homem não se voltou, ficou no mesmo lugar a segurar os cortinados com uma das mãos, silencioso como um boneco, enquanto o Harry implicava com o xerife do município por este ser demasiado preguiçoso para obrigar o Wharton a vestir o uniforme da prisão, e o xenfe começava a dissertar - tal como todos os funcionários do município que eu tive oportunidade de conhecer - sobre aquilo que fazia parte das suas funções e aquilo que não fazia.
Quando o Harry se cansou desse aspecto da conversa (duvido que isso tenha levado muito tempo), ordenou ao Wharton que se virasse. O que este fez. O homem tinha o mesmo aspecto, disse-nos o Dean mais tarde na sua voz rouca e meio sufocada, dos milhares de labregos arruaceiros que haviam passado por Cold Mountain enquanto lá trabalhámos. Caso se observasse bem essa aparência, tudo nele se resumiria ao aspecto de um mentecapto de maus flgados. Por vezes também se vislumbrava neste tipo de fulanos uma certa cobardia quando se viam encostados à parede, mas, na maior parte das vezes, não passavam de arruaceiros maldosos. Há gente que vê nobreza em indivíduos da laia do Billy Wharton; todavia, eu não me insiro nesse grupo. Caso se veja encurralada, qualquer ratazana também nos dará luta. O rosto daquele homem parecia não ter mais personalidade do que o seu traseiro cheio de acne, de acordo com o que o Dean nos disse. O seu maxilar inferior não era firme e o olhar mantinha-se distante, os ombros descaídos, as mãos pendendo, flácidas, junto dos flancos. Tinha o aspecto de estar drogado com morfina, e parecia tão apático como todos os drogados que conhecíamos.
Perante isto, o Percy fez um dos seus acenos de cabeça carrancudos.
- Veste isto - ordenou Harry, indicando o uniforme prisional aos pés da cama. Já fora retirado do interior do saco de papel castanho em que viera, mas ninguém lhe tocara mais; continuava dobrado tal como chegara da lavandaria da prisão, juntamente com um par de cuecas de algodão branco que saíam de uma das mangas da camisa, enquanto a espreitar do punho da outra se via um par de meias também brancas.
O Wharton deu a impressão de querer obedecer ao que lhe fora dito, embora não tivesse conseguido fazer grandes progressos sem auxílio. Lá conseguiu vestir as cuecas, mas, quando chegou a vez das calças teimou, insistentemente, em enfiar as duas pernas pelo mesmo buraco. Por fim, o Dean resolveu dar-lhe uma ajuda, fazendo com que os pés do homem entrassem nos sítios adequados para o efeito, e puxou-lhe as calças para cima, apertando-lhe a braguilha e abotoando-lhe o botão do cós. O Wharton limitou-se a ficar especado, sem sequer tentar fazer qualquer gesto para se vestir, ao ver que o Dean tratava daquela tarefa por si. Olhava absortamente para o outro lado da enfermaria, com as mãos inertes, sem que houvesse ocorrido a nenhum dos guardas que ele estaria a maquinar alguma. Não com a esperança de fugir (pelo menos estou convencido de que não era esse o caso), mas somente com a esperança de provocar o maior número de complicações possível quando a ocasião lhe parecesse ser a mais propícia.
Os papéis foram assinados. O William Wharton, que se havia transformado em propriedade do município aquando da sua prisão, passara agora a ser propriedade do estado. Foi conduzido pelas escadas das traseiras, atravessando a cozinha do hospital, rodeado de uniformes azuis. Caminhava com a cabeça baixa e as suas mãos de dedos afuselados oscilavam flacidamente. Da primeira vez que o seu boné caiu, o Dean apanhou-o e voltou a colocar-lho na cabeça. Da segunda vez, colocou-lho simplesmente na algibeira de trás das calças.
O Wharton teve outra oportunidade de criar problemas na Parte traseira da diligência, na altura em que lhe colocavam as grilhetas, embora não o tivesse feito. Se por acaso possuísse a faculdade de pensar (até mesmo agora, não estou certo se seria capaz e, em caso afirmativo, até que ponto), teria concluído que o espaço era bastante confinado e o número de polícias demasiado elevado para conseguir provocar qualquer estardalhaço minimamente satisfatório. E assim se colocaram , as correntes, um conjunto de grilhetas à volta dos tornozelos e um outro - que veio a verificar-se ser demasiado longo - entre os pulsos.
A viagem até Cold Mountain levou uma hora. Durante todo o percurso, o Wharton manteve-se sentado no banco lateral esquerdo, junto da cabina, com a cabeça baixa e as mãos pendentes entre os joelhos. De vez em quando, trauteava um pouco, disse o Harry, e o Percy condescendeu em acrescentar que o mentecapto deixava que o cuspo lhe escorresse pela frouxa queixada inferior, uma gota de cada vez, até começar a formar uma pequena poça aos pés. Como se fosse um cão num dia de Verão, a escorrer saliva da ponta da língua.
Entraram pelo portão virado a sul assim que chegaram à penitenciária; calculo que tenham passado pelo meu carro. O guarda, que se encontrava de serviço na passagem a sul, fez correr os portões enormes entre o parque de estacionamento e o pátio de recreio, tendo permitido o acesso da diligência. Naquela altura do dia, o pátio tinha pouco movimento, não havendo muitos homens no oxterior, e os que ali se encontravam tratavam do jardim. Deve ter sido na hora de descanso. Conduziram directamente para o Bloco E, onde se detiveram. O motorista abriu a porta do seu lado, dizendo-lhes que ia levar a diligência para a oficina, a fim de mudar o óleo, acrescentando que tinha sido um prazer trabalhar com eles. Os guardas suplementares seguiram no veículo, indo dois deles na parte de trás a comer maçãs; naquela altura, as portas estavam abertas sobre as calhas.
Assim, só ficaram o Dean, o Harry e o Percy com o prisioneiro acorrentado. Deveria ter sido o suficiente, teria sido o suficiente, se eles não houvessem sido ludibriados pela atitude atoleimada do campónio que continuava de cabeça baixa enquanto avançava no piso de terra batida, com os artelhos e pulsos acorrentados. Fizeram-no caminhar os mais ou menos doze passos até à porta que dava acesso ao Bloco E, mantendo a formação habitual de quando escoltávamos qualquer prisioneiro através da Milha Verde. O Harry seguia à esquerda do Wharton, o Dean à direita e o Percy fechava o cortejo, de bastão na mão. Ninguém me disse isso, mas eu tenho a certeza que ele o desembainhara; o Percy tinha paixão por aquele bastão de nogueira. Quanto a mim, eu estava sentado naquilo que passaria a ser a casa do Wharton, até chegar o momento de ele se apresentar na chapa dos grelhados - a primeira cela à direita, quando nos dirigíamos através do corredor para a cela do isolamento. Segurava nas mãos a prancha de madeira com a documentação e pensava no meu pequeno discurso, ansiando por poder pôr-me dali para fora. As dores que sentia nas virilhas tinham recomeçado a intensificar-se, e tudo o que eu mais desejava era poder ir para o meu gabinete, onde aguardaria que passassem.
O Dean avançou para abrir a porta .que estava fechada à chave. Seleccionou a chave do molho que tinha preso ao cinto e inseriu-a na ranhura da fechadura. Na altura em que o Dean fez girar a chave e puxou a maçaneta, o Wharton regressou ao mundo dos vivos. Soltou um grito, um berro desarticulado - uma espécie de grito dos rebeldes - que imobilizou temporariamente o Harry, e arrumou o Percy Wetmore durante todo aquele confronto. Ouvi aquele berro através da porta parcialmente aberta, não o tendo associado a nada de humano, pelo menos de princípio; pensei que um cão qualquer conseguira entrar no pátio, e alguém o magoara, que talvez algum prisioneiro de maus fígados o tivesse atingido com uma enxada.
O Wharton ergueu os braços e deixou cair a corrente que unia as grilhetas que lhe envolviam os pulsos por cima da cabeça do Dean, começando a asfixiá-lo. O Dean soltou um grito estrangulado, cambaleando para a frente sob a fria luz eléctrica do nosso pequeno mundo. O Wharton sentiu-se feliz por poder acompanhar os seus movimentos, tendo mesmo chegado a dar-lhe um empurrão, enquanto durante todo esse tempo gritava e falava sem nexo, soltando gargalhadas. Tinha os braços dobrados, os punhos cerrados e erguidos até às orelhas do Dean, e puxava a corrente, mantendo-a tão esticada quanto possível, zurzindo-a para a frente e para trás.
O Harry atirou-se às costas do Wharton, agarrando com uma mão num punhado de cabelos louros e sebosos do nosso novo rapaz, e com a outra batendo com toda a força numa das faces do Wharton. Tinha o seu próprio bastão e uma pistola à ilharga, mas no meio de toda aquela confusão não lhe ocorreu sacar de qualquer destas armas. Podem crer que já passáramos por problemas com outros prisioneiros, mas nunca tínhamos deparado com um que nos houvesse apanhado tão de surpresa como o Wharton. A manha do homem ultrapassava toda a nossa experiência. Eu nunca tinha visto nada assim e nunca mais voltaria a ver.
E ele era bastante forte. Toda a inércia tinha desaparecido. Mais tarde, o Harry disse que tivera a sensação de saltar para um amontoado de molas de aço que haviam adquirido vida. O Wharton, que naquela altura já tinha entrado no bloco e estava próximo da mesa do guarda de serviço, rodopiou para a esquerda, e arremessou o Harry. Este embateu contra a secretária, indo estatelar-se no chão.
- Ennaaa, rapazes! - exclamou o Wharton com uma gargalhada. - Isto é que é uma festa de arromba, não acham? É ou não é?
Continuando a gritar e a rir-se, o Wharton regressou para junto do Dean, a fim de continuar a asfixiá-lo com a corrente que lhe prendia os punhos. E porque não? O Wharton sabia aquilo que todos nós sabíamos: só o poderiam fritar uma vez.
- Bate-lhe, Percy, bate-lhe! - gritava o Harry, esforçando-se por conseguir pôr-se de pé. Mas o Percy continuou imóvel, empunhando o seu bastão de nogueira, com os olhos tão arregalados como pratos de sopa. Qualquer pessoa teria dito que ali estava a oportunidade por que ele tanto ansiara, a hipótese de dar uma boa utilização ao seu estala-cabeças; no entanto, o homem sentia-se demasiado confuso e amedrontado para poder agir. O prisioneiro não era nenhum pequeno franciú aterrorizado, nem tão-pouco um gigante negro, o qual mal sabia que se encontrava no interior do seu próprio corpo; era um demónio enraivecido.
Saí da cela do Wharton deixando cair a prancheta com a papelada e sacando da minha calibre trinta e oito. Pela segunda vez naquele dia, esqueci-me por completo da infecção que tanto ardor me provocava na região central do corpo. Não duvidei da história que os outros me contaram quanto à expressão vazia do rosto do Wharton, assim como dos seus olhos entorpecidos; contudo, esse não era o Wharton que eu tinha à minha frente. Aquilo que vi foi o rosto de um autêntico animal - não uma criatura inteligente, mas sim repleta de manha... de maldade... e de satisfação. Sim. Ele estava a pôr em prática aquilo que tencionara fazer. O local e as circunstâncias não tinham qualquer importância. A outra coisa que vi foram as faces inchadas e avermelhadas do Dean Stanton. Ele estava a morrer em frente dos meus olhos. O Wharton avistou a arma e posicionou o Dean na sua direcção, de forma a que, quase de certeza, eu seria forçado a alvejar um quando alvejasse o outro. Por cima do ombro do Dean, avistei um olho azul flamejante que me desafiava a disparar.
Carlos Cunha Arte & Produção Visual
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