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A TORRE NEGRA 2 / Stephen King
A TORRE NEGRA 2 / Stephen King

 

 

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A TORRE NEGRA

 

Parte II

CÉU AZUL - DEVAR-TOI

 

O DEVAR-TETE

Os quatro viajantes reunidos (cinco, contando Oi do Mundo Médio) pararam na frente da cama de Mia, contemplando o que restara da gêmea de Susannah, sua dupla, como também se poderia dizer. Sem as roupas murchas dando ao cadáver alguma definição, provavelmente nenhum deles seria capaz de dizer com certeza o que fora aquilo. Mesmo o emaranhado de cabelosobre a cumbuca quebrada da cabeça de Mia não parecia ter nada de humano; lembrava antes uma bola de poeira excepcionalmente grande.

Roland baixou os olhos para os traços que iam desaparecendo, admirado de que tão pouco restasse da mulher cuja obsessão — o chapinha, o chapinha, sempre o chapinha — chegara muito perto de fazer a missão delesafundar para sempre. E fora eles cinco, quem ainda poderia enfrentaro Rei Rubro e seu chanceler diabolicamente esperto? John Cullum, AaronDeepneau e Moses Carver eram três velhos, um deles com a enfermidade de boca preta, que Eddie chamava can’t, sir, câncer.

Você fez tanto, Roland pensou, olhando embevecido para a face seca, poeirenta. Você fez tanto e teria feito muito mais, ié, e tudo sem uma dúvida ou preocupação. Assim o mundo vai terminar, eu acho, antes uma vítima do amorque do ódio. Pois o amor sempre foi a arma mais destrutiva, sem dúvida.

Ele se inclinou, sentindo um cheiro de flores murchas ou velhos temperos, e soltou o ar. A coisa que parecia vagamente uma cabeça mesmo agoravoou, como paina ou uma bola de dente-de-leão.

— Ela não pretendia prejudicar o universo — disse Susannah, a voz não de todo firme. — Só queria o privilégio de toda mulher: ter um bebê. Alguém para amar e criar.

— É — Roland concordou —, você diz a verdade. E isso é o que torna seu fim tão negro.

— Às vezes penso — disse Eddie — que todos nós estaríamos melhor se as pessoas que têm boas intenções se afastassem de mansinho e morressem.

— Esse seria também o nosso fim, Grande Ed — Jake alertou.

Todos pensaram no assunto e, quando se deu conta, Eddie estava se perguntando quantos eles já haviam matado com suas intromissões bem-intencionadas. Não se importava com os maus, mas tinha havido outros — Susan, o amor perdido de Roland, fora somente um desses.

Então Roland deixou os restos poeirentos do cadáver de Mia e se aproximou de Susannah, que estava sentada numa das camas vizinhas com as mãos entrelaçadas entre as coxas.

— Conte tudo que aconteceu desde que nos deixou na estrada do Leste, após a batalha — disse ele. — Precisamos sa...

— Roland, nunca pretendi deixar vocês. Foi Mia. Ela me dominou. E se eu não tivesse um lugar de socorro... um Dogan... talvez tivesse me dominado completamente.

Roland abanou a cabeça para mostrar compreensão.

— Mesmo assim conte como chegou a este devar-tete. E Jake, gostaria de ouvir o mesmo de você.

— Devar-tete — disse Eddie. A expressão não lhe era de todo desconhecida. Não tinha algo a ver com Chevin de Chayven, o vago mutante que Roland livrara de sua desgraça em Lovell? Achava que sim. — O que significa?

Roland sacudiu a mão no quarto com todas aquelas camas, cada uma com um capacete e tubos segmentados de ferro, sem dúvida alguma parte de alguma máquina; camas onde só os deuses sabiam quantas crianças das Callas tinham se deitado e sido arruinadas.

— Significa pequena prisão ou câmara de tortura.

— Não me parece tão pequena — disse Jake. Não podia dizer quantas camas havia lá, mas calculava algo em torno de trezentas. Pelo menos trezentas.

 — Talvez ainda venhamos a nos deparar com uma bem maior antes de concluirmos nossa tarefa. Conte sua história, Susannah, e você também, Jake.

— Daqui vamos para onde? — Eddie perguntou.

— Talvez a história nos diga — Roland respondeu.

 

Roland e Eddie ouviram em silenciosa fascinação Susannah e Jake recontarem suas aventuras, de cá para lá e de lá para cá. Roland deteve Susannah pela primeira vez quando ela falava sobre Mathiessen van Wyck, que lhe dera dinheiro e lhe alugara um quarto de hotel. O pistoleiro questionou Eddie sobre a tartaruga no forro da bolsa.

— Eu não sabia que era uma tartaruga. Achei que fosse uma pedra.

— Se me contar de novo esta parte, vou ouvir com prazer — disse Roland.

Então, pensando com cuidado, tentando se lembrar completamente (pois tudo parecia ter acontecido há muito, muito tempo), Eddie relatou como ele e Père Callahan tinham subido até a Gruta da Porta e aberto a caixa de madeira reaproveitada que guardava o Treze Preto. Esperavam que o Treze Preto lhes abrisse a porta, e assim foi, mas primeiro...

— Colocamos a bolsa entre nós — disse Eddie. — A bolsa que dizia SOMENTE STRIKES NAS PISTAS DA MIDTOWN em Nova York e SOMENTE STRIKES NAS PISTAS DO MUNDO MÉDIO no lado de Calla Bryn Sturgis. Estão lembrados?

Todos lembravam.

— E senti alguma coisa no forro da bolsa. Me virei para Callahan e ele disse... — Eddie refletiu um pouco. — Ele disse: “Não é hora de investigar isto.” Ou algo parecido. Concordei. Me lembro de ter pensado que já tínhamos suficientes mistérios nas mãos, era melhor deixar aquele para outro dia. Roland, quem, em nome de Deus, pôs aquela coisa na bolsa, o que você acha?

— E para aproveitar, quem deixou a bolsa no terreno baldio? — Susannah perguntou.

— Ou a chave? — Jake fez coro. — Encontrei a chave da casa em Dutch Hill naquele mesmo terreno. Foi a rosa? Será que a rosa, de alguma maneira... não sei... fez tudo isso?

Roland pensou.

— Se eu tivesse que adivinhar — disse ele —, diria que sai King deixou esses sinais e siguls.

— O escritor — disse Eddie. Ele pesou a idéia, depois abanou devagar a cabeça. Lembrou-se vagamente de um conceito da escola secundária: o deus-da-máquina, como era chamado. Havia também um sofisticado termo latino, mas desse ele não conseguiu lembrar. Provavelmente estaria escrevendo o nome de Mary Lou Kenopensky na carteira enquanto os outros garotos fariam obedientemente suas anotações. O conceito básico era que se um dramaturgo ficasse sem saída poderia fazer descer o deus, que descia do alto numa carruagem cheia de flores e resgatava os personagens que estivessem em apuros. Isto sem dúvida agradava aos espectadores mais religiosos, que acreditavam que Deus — não o efeito-especial que descia de alguma plataforma no alto do palco, que a platéia não podia ver, mas Aquele que habitava no céu — realmente salvava as pessoas que o mereciam. Tais idéias tinham sem a menor dúvida saído de moda na era moderna, mas Eddie achava que os romancistas populares — do tipo que sai King parecia em vias de se tornar — provavelmente ainda usavam a técnica, ainda que sob um certo disfarce. Como pequenos alçapões. Ou cartazes dizendo PASSE LIVRE, ESCAPOU DOS PIRATAS. Ou ainda: TEMPESTADE INESPERADA PROVOCA FALTA DE ENERGIA, EXECUÇÃO ADIADA. O deus da máquina (que na realidade era o escritor), trabalhando pacientemente para manter os personagens a salvo para que sua história não acabasse com um parágrafo nada agradável tipo: “E assim o ka-tet foi varrido da colina de Jericó e os maus venceram, a Discórdia tomou conta de tudo, pena, talvez tenham mais sorte da próxima vez (que próxima vez?, ah-ah), THE END.”

Pequenas redes de segurança como uma chave. Para não mencionar uma tartaruga de marfim.

— Se ele introduziu essas coisas na história — disse Eddie —, foi logo após o encontrarmos em 1977.

— Ié — Roland concordou.

— E não acho que as tenha criado — disse Eddie. — Não realmente. Ele apenas... não sei, ele é só um...

— Um imbustor? — Susannah perguntou, sorrindo.

— Não! — disse Jake, parecendo meio chocado. — Isso não. É um comunicador. Um transmissor. — Estava pensando em seu pai e no trabalho do pai na rede de TV.

— Bingo — disse Eddie, apontando um dedo para o garoto. Aquela idéia o levou a outra: que se Stephen King não permanecesse vivo o tempo suficiente para escrever aquelas coisas na história, a chave e a tartaruga não estariam ali quando precisassem dela. Jake teria sido comido pelo porteiro na casa em Dutch Hill... sempre presumindo que conseguisse chegar até aquele ponto, o que provavelmente não teria acontecido. E se ele escapasse do monstro da Dutch Hill, teria sido comido pelos Avós (os vampiros Tipo Um de Callahan) no Dixie Pig.

Susannah pensou em contar sobre a visão que tivera quando Mia estava dando início à sua última jornada do Plaza-Park Hotel para o Dixie Pig. Nesta visão ela estava presa na cela de uma cadeia em Oxford, no Mississippi, e havia vozes vindo de uma TV. Chet Huntley, Walter Cronkite, Frank McGee: locutores de noticiários entoando os nomes dos mortos. Alguns desses nomes, como o do presidente Kennedy e os irmãos Diem, ela conhecia. Outros, como Christa McAuliffe, não. Mas um dos nomes fora o de Stephen King, ela estava bem certa disso. O parceiro de Chet Huntley

(boa-noite Chet boa-noite David) *

dizia que Stephen King fora atingido e morto por uma minivan Dodge, enquanto caminhava perto de casa. De acordo com Brinkley, King tinha 52 anos.

Se Susannah tivesse lhes contado isso, muitíssimas coisas podiam ter acontecido de modo diferente, ou talvez nem tivessem ocorrido. Ela estava abrindo a boca para adicionar esse detalhe à conversa (uma lasca de pedra caindo numa encosta de montanha bate numa pedra que bate numa pedra maior que bate então em duas outras e dá início a uma queda de barragem) quando ouviu o barulho de uma porta se abrindo e o estalar de passos se aproximando. Todos se viraram, Jake estendendo a mão para pegar um prato ’Riza, os outros buscando os revólveres.

— Relaxem, companheiros — Susannah murmurou. — Está tudo bem. Conheço este cara. — Ela então se virou para o DNK 45932, DOMÉSTICO: — Não esperava vê-lo de novo tão cedo. De fato dei como certo que nunca mais ia vê-lo. Qual é a boa, Nigel, meu velho?

Desta vez algo que podia ter sido falado não foi e o deus ex machina que podia ter descido para resgatar um escritor que tinha um encontro com uma minivan Dodge num dia do final da primavera no ano de 1999 ficou onde estava, bem acima dos mortais que, lá embaixo, desempenhavam seus papéis.

 

O que os robôs tinham de bom, na opinião de Susannah, era que a maioria deles não guardava ressentimentos. Nigel disse a ela que não havia ninguém disponível para consertar seu equipamento visual (talvez ele próprio fosse capaz de fazê-lo, mas só se tivesse acesso ao componentes, aos discos certos e aos tutoriais de ajuda), por isso voltara para lá, confiando no infravermelho, para pegar os restos da incubadeira estraçalhada (e inteiramente desnecessária). Agradeceu a ela pelo interesse e se apresentou a seus amigos.

— Prazer conhecê-lo, Nige — disse Eddie —, mas você vai querer começar os seus reparos, eu tenho certeza, por isso não vamos deter você. — A voz de Eddie era simpática e o revólver voltara para o coldre, mas a mão continuava pousada na coronha. Na verdade, estava um pouco assustado pela semelhança entre Nigel e um certo robô mensageiro da cidade de Calla Bryn Sturgis. Aquele tinha guardado ressentimento.

— Não. Fique — disse Roland. — Talvez tenhamos tarefas para você, mas por enquanto eu prefiro que fique quieto. Desligado, se não se importar. — E também se se importar, o tom sugeria.

— Certamente, sai — Nigel respondeu em seu afetado sotaque britânico. — Pode me reativar com as palavras: Nigel, preciso de você.

— Está ótimo — disse Roland.

Nigel cruzou os braços no peito, braços de aço inox, magrelos (mas sem a menor dúvida potentes), e ficou parado.

— Voltou para pegar o vidro quebrado — disse Eddie maravilhado. — Talvez a Tet Corporation pudesse vendê-los. Cada dona-de-casa da América ia querer dois... um para a casa e um para o quintal.

— Quanto menos estivermos envolvidos com ciência, melhor — Susannah disse num tom sombrio. Apesar de um breve cochilo quando estava encostada na porta entre Fedic e Nova York, parecia pálida, quase morrendo de cansaço. — Não esqueça para onde ela levou este mundo.

Roland acenou para Jake, que contou suas aventuras com Père Callahan na Nova York de 1999, começando com o táxi que quase atropelara Oi e terminando com o ataque dos dois aos homens baixos e aos vampiros no salão de jantar do Dixie Pig. Não deixou de contar como tinham se livrado do Treze Preto guardando-o num guarda-volumes do World Trade Center, onde ficaria seguro até o início de junho de 2002, e contou como tinham encontrado a tartaruga, que Susannah deixara cair, como uma mensagem numa garrafa, no meio-fio na frente do Dixie Pig.

— Coisa tão valente — disse Susannah, mexendo no cabelo de Jake. Depois se curvou para alisar a cabeça de Oi. O trapalhão esticou o pescoço comprido para maximizar a carícia, os olhos semicerrados e um sorriso no pequeno focinho de raposa. — Tão incrivelmente valente. Obrigado-sai, Jake.

— Gado Ake! — Oi concordou.

— Se não fosse pela tartaruga, teriam pegado nós dois. — A voz de Jake estava firme, mas o rosto tinha ficado pálido. — Mesmo assim, o Père... ele... — Jake enxugou uma lágrima com as costas das mãos e encarou Roland. — Você usou a voz dele para me mandar em frente. Ouvi muito bem.

— É, tive de fazer isso — o pistoleiro concordou. — Nada mais do que o Père queria.

— Os vampiros não o pegaram — disse Jake. — Ele usou minha Ruger antes que pudessem pegar seu sangue e transformá-lo num deles. Se bem que não iam fazer exatamente isso. Iam dilacerá-lo e comê-lo. Estavam furiosos.

Roland assentiu.

— O último recado que ele mandou... acho que disse em voz alta, mas não tenho certeza... foi... — Jake pensou um pouco. Agora estava chorando abertamente. — Ele disse: “Que você encontre sua Torre, Roland, consiga penetrar nela e escalá-la até o topo!” Depois... — Jake deixou escapar um pequeno sopro pelos lábios apertados. — Ele se foi. Como a chama de uma vela. Para outros dos mundos que há.

Calou-se. Por vários momentos, todos calaram e o silêncio parecia algo premeditado. Então Eddie falou:

— Tudo bem, voltamos a nos reunir. E agora que diabo vamos fazer?

 

Roland sentou-se com uma careta no rosto, depois dispensou a Eddie Dean um olhar que dizia (mais claramente que quaisquer palavras que pudessem ser ditas): Por que põe à prova minha paciência?

— Tudo bem — disse Eddie —, é só um hábito. Pare de me olhar desse jeito.

— O que é um hábito, Eddie?

Naqueles dias Eddie pensava com menos freqüência no último ano que passara drogado, amargurado, ao lado de Henry, mas pensou naquele momento. Só que não quis revelar isso, não porque tivesse vergonha (Eddie realmente achou que havia superado isso), mas porque voltou a sentir a impaciência do pistoleiro com as explicações que dava envolvendo o irmão mais velho. E talvez fosse compreensível. Henry tinha sido a força definidora, formadora, na vida de Eddie, ok. Exatamente como Cort tinha sido a força definidora, formadora, na de Roland... Só que o pistoleiro não ficava o tempo todo falando do velho professor.

— Minha mania de fazer perguntas cuja resposta já sei — disse Eddie.

— E desta vez qual é a resposta?

— E que vamos voltar a Trovoada antes de continuarmos nosso avanço para a Torre. Vamos matar os Sapadores ou soltá-los. O que for preciso para deixar os Feixes seguros. Vamos matar Walter, Flagg ou seja lá como esteja se chamando agora. Porque ele é o marechal-de-campo, não é?

— Era — disse Roland —, mas agora um novo ator entrou em cena. — Olhou para o robô. — Nigel, preciso de você.

Nigel descruzou os braços e ergueu a cabeça.

— Em que posso servi-lo?

— Me consiga algo para escrever. É possível?

— Há canetas, lápis e giz no compartimento do supervisor no final da Sala de Extração, sai. Ou pelo menos havia da última vez que tive a oportunidade de estar lá.

— Sala de Extração — Roland ponderou examinando as fileiras cerradas de camas. — É assim que chama isso?

— É, sai. — E então, quase timidamente. — Elisões vocais e fricativas sugerem que está bravo. É esse o caso?

— Trouxeram centenas, milhares de crianças para cá... em geral crianças saudáveis, tiradas de um mundo onde muitos ainda nascem deformados... e sugaram suas mentes. Por que eu ficaria bravo?

— Sai, tenho certeza de que não sei — disse Nigel talvez já lamentando sua decisão de voltar para lá. — Mas nunca participei dos procedimentos de extração, eu lhe asseguro. Estava encarregado de serviços domésticos, incluindo manutenção.

— Traga um lápis e um pedaço de giz.

— Sai, o senhor não vai me destruir, certo? O dr. Scowther é que foi o responsável pelas extrações nos últimos 12 ou 14 anos, e o dr. Scowther está morto. A dama-sai ao nosso lado o baleou, e com o revólver dele. — Havia um toque de reprovação na voz de Nigel, bastante expressivo mesmo levando-se em conta seu pequeno alcance.

Roland se limitou a repetir:

— Traga um lápis, um pedaço de giz e faça isso agora mesmo.

Nigel foi cumprir a missão.

— Quando fala de um novo ator, está se referindo ao bebê — disse Susannah.

— Certamente. Ele tem dois pais, esse bah-bo.

Susannah assentiu. Estava pensando na história que Mia lhe contara durante a visita todash à abandonada cidade de Fedic — abandonada mas com a presença de Sayre, Scowther e dos Lobos saqueadores. Duas mulheres, uma branca e uma negra, uma grávida e a outra não, sentadas em cadeiras na frente do Gin-Puppy Saloon. Ali Mia contara muita coisa à esposa de Eddie Dean — talvez mais do que qualquer uma delas realmente pudesse saber com certeza.

Foi onde eles me transformaram, Mia dissera, “eles” presumivelmente se referindo a Scowther e uma equipe de outros médicos. E mais alguns magos? Pessoas como os mannis, só que comprometidos com o outro lado? Talvez. Quem poderia dizer? Na Sala de Extração, Mia fora tornada mortal. Então, com o esperma de Roland já dentro dela, algo mais tinha acontecido. Mia não se lembrava muito bem dessa parte, só de uma escuridão vermelha. Susannah se perguntava agora se o Rei Rubro se aproximara dela em pessoa, trepando com seu enorme e velho corpo de aranha, ou se seu execrável esperma fora transportado de alguma outra forma para se misturar ao de Roland. De qualquer forma, o bebê se desenvolveu no híbrido repugnante que Susannah tinha visto: não um lobisomem mas uma aranhomem. E agora estava em algum lugar lá fora. Ou talvez estivesse ali, a observá-los enquanto palestravam e Nigel retornava com vários apetrechos de escrita.

Sim, ela pensou. Está nos vigiando. E nos odiando... mas não por igual. E principalmente Roland, o dan-tete, que ele odeia. Seu primeiro pai.

Ela estremeceu.

— Mordred pretende matá-lo, Roland — disse. — É este seu trabalho. Foi feito para isso. Para acabar com você, sua missão e a Torre.

— Sim — disse Roland —, e para governar no lugar de seu pai. Pois o Rei Rubro é velho e tenho passado a acreditar cada vez mais que está, de alguma forma, aprisionado. Se assim for, ele não é mais nosso verdadeiro inimigo.

— Vamos até seu castelo do outro lado da Discórdia? — Jake perguntou. Era a primeira vez que falava em meia hora. — Vamos, não vamos?

— Acho que vamos sim — disse Roland. — Le Casse Roi Russe, diz a antiga lenda. Vamos até lá em ka-tet e liquidar com o que vive lá.

— Que assim seja — disse Eddie. — Por Deus, que assim seja.

— É — Roland concordou. — Mas nosso primeiro trabalho são os Sapadores. O feixemoto que sentimos em Calla Bryn Sturgis, pouco antes de chegarmos aqui, sugere que o trabalho deles está quase concluído. Mas mesmo se isso não...

— Parar o que estão fazendo é trabalho nosso — disse Eddie.

Roland abanou afirmativamente a cabeça. Parecia mais cansado que nunca.

— É — disse ele. — Matá-los ou libertá-los. De um modo ou de outro,temos de dar fim a suas ações contra os dois Feixes que restam. E temosde dar fim ao dan-tete. Àquele que pertence ao Rei Rubro... e a mim.

 

Nigel acabou sendo bastante útil (embora não apenas para Roland e seu ka-tet, como as coisas aconteceram). Para começar, ele trouxe dois lápis, duas canetas (uma delas uma grande coisa dourada que teria parecido perfeitamente natural nas mãos de um escritor como Dickens) e três pedaços de giz, um deles num estojo prateado que parecia o batom de uma dama. Rolandescolheu este e deu a Jake um dos outros pedaços.

— Não posso escrever palavras que você entenda com facilidade — disse ele —, mas nossos números são os mesmos, ou quase os mesmos. Coloque aí pelo dado o que eu disser, Jake, e sem errar.

Jake fez o que lhe era pedido. O resultado foi tosco mas bastante compreensível, um mapa com legendas.

— Fedic — disse Roland, apontando para 1 e logo traçando uma curta linha a giz para 2. — E aqui está o Castelo da Discórdia com as portas debaixo dele. Um considerável emaranhado de portas, pelo que sabemos. Deve haver uma passagem que nos conduza daqui para lá, sob o castelo. Agora, Susannah, diga de novo como os Lobos vão e o que fazem. — Passou-lhe o giz no estojo.

Ela o pegou, observando com alguma admiração que o giz se apontava ao passo que era usado. Um pequeno truque, mas impressionou.

— Passam por uma porta de sentido único que os deixa aqui — disse ela, traçando uma linha de 2 a 3, que Jake tinha apelidado de Estação Trovoada. — Devemos reconhecer esta porta quando a virmos, porque deve ser grande, a não ser que eles andem em fila indiana.

— Talvez andem — disse Eddie. — Salvo erro, não têm muita coisa além do que o Povo Antigo os deixou.

— Você não está errado — disse Roland. — Continue, Susannah. — Ele não estava agachado, mas sentado com a perna direita um pouco esticada. Eddie se perguntou quanto doía o quadril e se ainda havia algum óleo de gato de Rosalita na bolsa recentemente recuperada. Duvidava disso.

— Os Lobos — disse ela — vêm de Trovoada acompanhando os trilhos da estrada de ferro, pelo menos até saírem da sombra... ou da escuridão... ou seja lá o que for. Você sabe, Roland?

— Não, mas logo vamos ver. — Com a mão esquerda, ele fez seu gesto circular de impaciência.

— Atravessam o rio para Callas e pegam as crianças. Quando voltam à estação Trovoada, acho que devem embarcar os cavalos e os prisioneiros num trem e retornar a Fedic assim, pois a porta já não serve para eles.

— É, acho que é assim que fazem — Roland concordou. — Em certo momento dão volta ao devar-toi, a prisão que marcamos com um 8, por enquanto.

— Scowther e seus médicos nazistas usavam os capacetes que há nessas camas para extrair algo dos garotos. É o que dão aos Sapadores. Dão como comida ou injeção, acho. Os guris e a coisa dos cérebros voltam à estação Trovoada pela porta. As crianças são mandadas de volta a Calla Bryn Sturgis, talvez também a outras Callas, e no que você chama de devar-toi...

— Ali, Mestre, o jantar era servido — disse Eddie num tom frio.

Neste ponto Nigel deu sua contribuição, num tom radicalmente jovial.

— Querem beliscar alguma coisa, sais?

Jake consultou seu estômago e viu que estava roncando. Era horrível estar com tanta fome logo depois da morte do Père (e após as coisas que tinha visto no Dixie Pig), mas mesmo assim estava.

— Tem comida, Nigel? Tem mesmo?

— Sim, de fato, meu jovem — disse Nigel. — Acho que só enlatados, mas posso oferecer mais de duas dúzias de opções, incluindo feijão, atum, vários tipos de sopa...

— Para mim o tatum — disse Roland —, mas traga uma seleção, se puder.

— Certamente, sai.

— Acho que não pode me arranjar um Elvis Special — disse Jake num tom ansioso. — E manteiga de amendoim, banana e bacon...

— Santo Deus, garoto! — disse Eddie. — Não sei se você enxerga nesta luz mas estou ficando verde.

— Infelizmente não tenho bacon nem bananas — disse Nigel (pronunciando ba-NAAA-nas) —, mas sem dúvida tenho manteiga de amendoim e três tipos de geléia. Também tenho manteiga de maçã.

— Manteiga de maçã seria bom — disse Jake.

— Continue, Susannah — disse Roland quando Nigel andou para cumprir sua missão. — Embora eu não ache que seja preciso apressá-la tanto; depois de comer, teremos de descansar um pouco. — Não parecia muito satisfeito com a idéia.

— Acho que não há mais nada a dizer — disse ela. — Soa confuso... parece confuso, também, principalmente porque nosso pequeno mapa não tem escala... mas é essencialmente apenas um circuito que eles completam mais ou menos a cada 24 anos: de Fedic a Calla Bryn Sturgis, depois de volta a Fedic com os garotos, para que possam fazer a extração. Em seguida levam as crianças de volta às Callas e o alimento cerebral a esta prisão onde estão os Sapadores.

— O devar-toi — disse Jake.

Susannah abanou a cabeça.

— A questão é o que fazer para interromper o ciclo — disse.

— Atravessamos a porta para a estação Trovoada — disse Roland — e da estação vamos para onde os Sapadores são mantidos. Ali... — Olhou para cada elemento do seu ka-tet, um após o outro, depois ergueu o dedo e fez um gesto secamente expressivo de atirar.

— Haverá guardas — disse Eddie. — Talvez um bom número deles. O que vamos fazer se forem muito mais numerosos que nós?

— Não seria a primeira vez — disse Roland.

 

O VIGIA

Quando Nigel retornou, trazia uma bandeja do tamanho de uma roda de carruagem. Nela havia pilhas de sanduíches, duas vasilhas térmicas cheias de sopa (de carne e frango) e bebidas em lata. Havia Coca, Sprite, Nozz-A-La e uma coisa chamada Juízo Verde. Eddie tentou esta última, pronunciando o nome da forma mais louca possível.

Todos reparavam que Nigel não era mais o sujeito batuta, bom companheiro que fora só Deus sabia por quantas décadas e séculos. A cabeça em forma de losango não parava de se sacudir para um lado ou para o outro. Quando ia para a esquerda, ele murmurava: “Un, deux, trois!” Para a direita era: “Ein, zwei, drei!” Um estalar baixo e contínuo havia começado em seu diafragma.

— Docinho, o que há de errado com você? — Susannah perguntou quando o robô doméstico pousou a bandeja no chão entre eles.

— A série de exames de autodiagnóstico sugere total colapso sistêmico durante as próximas duas a seis horas — disse Nigel, parecendo sombrio, apesar de calmo. — Problemas lógicos preexistentes, em quarentena até agora, vazaram para o SGM. — Ele então torceu desagradavelmente a cabeça para a direita. — Ein, zwei, drei! Vivo livre ou morro, cá está Greg no seu olho!

— O que é SGM? — Jake perguntou.

— E quem é Greg? — Eddie perguntou.

— SGM significa “sistema geral de mentação” — disse Nigel. — Há dois sistemas desse tipo, o racional e o irracional. Consciente e subconsciente, como vocês poderiam dizer. Quanto a Greg, tratar-se-ia de Greg Stillson, um personagem de um romance que estou lendo. Muito divertido. Chama-se A Zona Morta, de Stephen King. Quanto a saber por que o trouxe para este contexto, não tenho idéia.

 

Nigel explicou que problemas lógicos eram comuns no que chamou de robôs Asimov. Quanto mais esperto o robô, maiores as falhas lógicas... e mais cedo começavam a aparecer. O Povo Antigo (Nigel os chamava de Construtores) compensava isto recorrendo a um rigoroso sistema de quarentena, tratando distúrbios mentais como se fossem varíola ou cólera (Jake achou que aquilo parecia de fato um ótimo meio de lidar com insanidade, embora acreditasse que os psiquiatras não se interessariam muito pela idéia; ela os tornaria obsoletos). Nigel achava que o trauma de ter os olhos baleados acabara enfraquecendo seus sistemas de sobrevivência mental e agora todo tipo de coisa ruim estava solto nos circuitos, corroendo as aptidões para o raciocínio dedutivo e indutivo, devorando sistemas lógicos à esquerda e à direita. Ele disse a Susannah que, em hipótese alguma, a culpava, e Susannah levou um punho à testa para lhe agradecer em grande estilo. Na verdade, não chegava de todo a acreditar no velho e bom DNK 45932, embora não soubesse de jeito nenhum explicar por quê. Talvez fosse apenas algum resquício da época de Calla Bryn Sturgis, onde um robô não muito diferente de Nigel acabara se convertendo num patife horroroso, cheio de ressentimento. E havia outra coisa.

Espreito com meu pequeno olho, Susannah pensou.

— Estenda as mãos, Nigel.

Quando o robô obedeceu, todos viram os fios rijos de cabelo presos nas juntas dos dedos de aço. Havia também uma gota de sangue num... seria o nó dos dedos?

— O que é isto? — ela perguntou, levantando alguns cabelos.

— Sinto muito, madame, não posso...

Não podia ver. Não, é claro que não. Nigel tinha infravermelhos, massua verdadeira visão se fora, cortesia de Susannah Dean, filha de Dan, pistoleirado Ka-Tet dos Dezenove.

— São cabelos. Também observo um pouco de sangue.

— Ah, sim — disse Nigel. — Ratos na cozinha, madame. Estou programadopara terminar com roedores quando os detectar. Têm aparecido muitos ultimamente, sinto dizer; o mundo está seguindo adiante. — E então, sacudindo a cabeça violentamente para a esquerda: — Un-deux-trois!Minnie Mouse est la mouse pour moi!

— Hum... você matou a Minnie e o Mickey antes ou depois de ter feitoos sanduíches, Nige, meu velho? — Eddie perguntou.

— Depois, sai, eu lhe garanto.

— Bem, acho que não estou com fome — disse Eddie. — Comi um poorboyno Maine e ele continua grudado como um filho-da-puta na minhabarriga.

— Você devia dizer un, deux, trois — disse Susannah. As palavras estavamfora antes mesmo que ela tivesse consciência de que ia dizê-las.

— Pois não? — Eddie estava sentado com o braço em volta dela. Desdeque os quatro tinham se reunido de novo, ele tocava em Susannah a todahora, como se precisando confirmar o fato de que ela era mais que apenasum sonho.

— Não é nada. — Mais tarde, quando Nigel estivesse fora dali ou completamente quebrado, ela falaria de sua intuição. Achava que robôs dotipode Nigel e Andy, como os das histórias de Isaac Asimov que lera quandoadolescente, não deviam mentir. Talvez Andy tivesse sido modificado ou tivesse se modificado a si mesmo para que isso não fosse um problema. Com Nigel, sem dúvida, ela achava que ainda era um problema: problema mesmo, grande-grande. Desconfiava que, ao contrário de Andy, Nigel era essencialmente um robô de bom coração, mas sim... ele já tinhamentido ou pelo menos camuflado a mensagem acerca dos ratos na despensa. Talvez também sobre outras coisas. Ein, zwei, drei e un, deux, troiserasua válvula de escape. Ao menos temporariamente.

É Mordred, pensou olhando para o lado. Pegou um sanduíche porque tinha de comer alguma coisa (como Jake, estava faminta), mas o apetite se fora e ela percebeu que realmente não ia desfrutar o que empurrou severamente garganta abaixo. Abordou Nigel e agora está nos vigiando de algum lugar. Eu o sei... Eu o sinto.

E, ao dar a primeira mordida numa carne meio misteriosa, há longo tempo preservada e embalada a vácuo:

Uma mãe sempre sabe.

 

Nenhum deles quis dormir na Sala de Extração (embora pudessem ter escolhido entre trezentas ou mais camas recentemente forradas) nem na cidade deserta do lado de fora, por isso Nigel levou-os para seu alojamento, parando de vez em quando para uma desagradável sacudida de cabeça, para clarear as idéias, e para contar em alemão ou francês. A isto começou a acrescentar números em alguma outra língua que nenhum deles conhecia.

O caminho passava por uma cozinha — cheia de máquinas de aço inox que roncavam baixo, coisa bem diferente da antiga e enorme cozinha que ficava sob o castelo da Discórdia e que Susannah visitara em todash — e, embora vissem a moderada desordem da refeição que Nigel preparara para eles, não havia sinal de ratos, vivos ou mortos. Nenhum deles fez comentários sobre o assunto.

A sensação que Susannah tinha de estar sendo observada ia e vinha.

Além da despensa havia um bom apartamentozinho de três cômodos onde Nigel presumivelmente morava. Não havia quarto, mas depois da sala de estar e de uma copa de serviço cheia de equipamento de monitoramento havia um belo gabinete cheio de livros com uma escrivaninha de carvalho e uma confortável poltrona sob um abajur de leitura de halogêneo. O computador que havia sobre a escrivaninha fora fabricado pela North Central Positronics, ali nenhuma surpresa. Nigel trouxe cobertores e travesseiros que assegurou serem novos e estarem limpos.

— Talvez você durma de pé, mas aposto que, para ler, gosta de sentar como qualquer um — disse Eddie.

— Ah, sim de fato, um-dois-trêêês — disse Nigel. — Gosto muito de um bom livro. Faz parte de minha programação.

— Vamos dormir seis horas, depois seguimos caminho — disse Roland.

Jake, enquanto isso, examinava os livros mais de perto. Oi movia-se com ele, sempre junto, e Jake ia verificando as lombadas, puxando uma ou outra para dar uma olhada melhor.

— Parece que ele tem tudo de Dickens — disse. — Também de Steinbeck... Thomas Wolfe... muita coisa de Zane Grey... alguém chamado Max Brand... outro cara chamado Elmore Leonard... e o sempre popular Steve King.

Todos dedicaram algum tempo para contemplar as duas prateleiras com livros de King, no todo mais de trinta, pelo menos quatro deles muito grandes e dois de tamanho suficiente para segurar uma porta ao vento. Ao que parecia, King fora um escritor extremamente ativo desde seus dias de Bridgton. O volume mais recente chamava-se Hearts in Atlantis (Corações na Atlântida) e fora publicado num ano com o qual estavam bastante familiarizados: 1999. Pelo que podiam ver, a única coisa que faltava eram os livros sobre eles. Presumindo, é claro, que King tivesse seguido adiante para escrevê-los. Jake verificou as páginas de copyright, mas havia poucas discrepâncias. O que podia significar nada, sem dúvida, porque ele escrevia muito.

Susannah perguntou a Nigel, que disse que nunca vira livros de Stephen King falando de Roland de Gilead ou da Torre Negra. Então, tendo dito isso, torceu ferozmente a cabeça para a esquerda e contou em francês, desta vez até dez.

— Mesmo assim — disse Eddie após Nigel ter se retirado clicando, estalando e rangendo na saída do aposento —, aposto que aqui há muita informação que podemos usar. Roland, você acha que podemos embrulhar os livros de Stephen King e levá-los conosco?

— Talvez — disse Roland —, mas não vamos levar. Eles podem nos confundir.

— Por que está dizendo isso?

Roland se limitou a balançar a cabeça. Não sabia por que tinha dito aquilo, mas sabia que era verdade.

 

O centro nervoso da Estação Experimental Arco 16 ficava quatro andares abaixo da Sala de Extração, da cozinha e do estúdio de Nigel. A pessoa entrava na Suíte de Controle através de um vestíbulo em forma de cápsula. O vestíbulo só podia ser aberto do lado de fora usando três cartões de identificação magnéticos, um após o outro. A música ambiente naquele nível mais baixo do Dogan de Fedic soava como canções dos Beatles tocadas pelo Quarteto Comatoso de Cordas.

No interior da Suíte de Controle havia cerca de uma dúzia de aposentos, mas o único com o qual precisamos nos preocupar era o que estava cheio de monitores de TV e dispositivos de segurança. Um desses últimos dispositivos de segurança comandava um pequeno, mas feroz exército de robôs caçadores-matadores equipados com bastões e pistolas a laser; outro devia liberar gás venenoso (do mesmo tipo que Blaine usara para chacinar os habitantes de Lud) na eventualidade de um avanço hostil. Operação que, na visão de Mordred Deschain, já havia acontecido. Ele tentara ativar ambos os caçadores-matadores e o gás; nada respondera. Agora Mordred tinha um nariz sangrando, uma contusão azulada na testa e um lábio inferior inchado, pois havia caído da cadeira em que estava sentado e rolado pelo chão, proferindo esganiçados gritos de criança que de modo algum refletiam a verdadeira profundidade de sua fúria.

Ser capaz de vê-los em pelo menos cinco diferentes monitores e não ser capaz de matá-los, sequer de feri-los! Não era de admirar que estivesse furioso! Tinha sentido a escuridão se fechar sobre ele como coisa viva, a escuridão que assinalava sua alteração. Ele se obrigara a ficar calmo para que a mudança não pudesse acontecer. Já tinha descoberto que a transformação de humano a aranha (e vice-versa) consumia somas chocantes de energia. Mais tarde aquilo podia nem importar, mas por enquanto tinha de ser cuidadoso, para não morrer de fome como uma abelha num trecho queimado de floresta.

O que gostaria de lhe mostrar é muito mais bizarro que qualquer coisa que tenhamos visto até aqui e advirto antecipadamente que seu impulso será rir. Nenhum problema. Ria se tiver de rir. Só não tire o olho do que vai ver, pois, mesmo que só em sua imaginação, temos aqui uma criatura que pode lhe fazer mal. Lembre que ela veio de dois pais, ambos matadores.

 

Agora, só algumas horas após seu nascimento, o chapinha de Mia já pesava dez quilos e tinha a aparência de um saudável bebê de seis meses. Mordred usava uma única peça de roupa, uma fralda improvisada com a toalha que Nigel lhe pusera ao levar para o bebê a primeira refeição da vida selvagem do Dogan. A criança precisava de uma fralda, pois ainda não conseguia segurar os dejetos. Mordred compreendia que o controle sobre essas funções chegaria logo (talvez antes mesmo de aquele dia terminar, pelo menos se tudo continuasse a se desenvolver em seu ritmo atual), mas não suficientemente rápido para deixá-lo tranqüilo. Por enquanto estava aprisionado naquele idiota corpo infantil.

Ser preso daquele jeito era hediondo. Como era hediondo cair da cadeira e não conseguir fazer nada além de ficar ali deitado, agitando os braços e pernas machucados, sangrando e berrando! O DNK 45932 teria vindo pegá-lo, poderia tanto resistir aos comandos do filho do Rei quanto um peso de chumbo caído de uma janela alta poderia resistir à força da gravidade, mas Mordred não se atreveu a chamá-lo. A puta marrom já suspeitava de que havia algo errado com Nigel. A puta marrom era perversamente perceptiva e Mordred estava terrivelmente vulnerável. Era capaz de controlar cada peça de maquinaria na estação Arco 16, acasalar com maquinaria era um de seus muitos talentos, mas caído ali, no chão daquela sala com a placa CENTRO DE CONTROLE na porta (fora chamada “cabeça” muito tempo atrás, antes de o mundo seguir adiante), Mordred começava a descobrir o quanto era pequeno o número de máquinas a controlar. Por isso que seu pai queria derrubar a Torre e começar tudo de novo! Aquele mundo estava quebrado.

Precisara de uma nova metamorfose em aranha para recuperar o assento na cadeira, onde mais uma vez recuperara sua forma humana... Mas O estômago já estava roncando, a boca azeda de fome. Não fora apenas a metamorfose que sugara sua energia, ele agora suspeitava; a aranha ficava mais próxima de seu verdadeiro aspecto e quando estava nessa forma seu metabolismo era vibrante e rápido. Os pensamentos também se alteravam, o que tinha um atrativo próprio, porque seus pensamentos humanos eram coloridos por emoções (sobre as quais ele parecia não ter controle, embora achasse que, no momento certo, iria adquiri-lo) que eram basicamente desagradáveis. Como aranha, os pensamentos não chegavam absolutamente a ser pensamentos reais, pelo menos não no sentido humano; eram coisas escuras, ululantes, parecendo brotar de algum úmido solo interior. Eram sobre

(COMER)

e

(VAGAR)

e

(ESTUPRAR)

e

(MATAR)

Os tantos modos deliciosos de fazer essas coisas passavam roncando pela consciência rudimentar do dan-tete como enormes máquinas de faróis ligados, máquinas que iam distraidamente se acelerando pelo clima mais escuro do mundo. Pensar dessa maneira — livre de sua metade humana — era extremamente atraente, mas ele achou que fazer isso naquele momento, quando estava quase sem defesas, o levaria à morte.

E quase já o levara. Ergueu o braço direito — rosado, liso e perfeitamente despido — para poder olhar para o quadril direito. Fora lá que levara o tiro da puta marrom e embora tivesse se desenvolvido consideravelmente desde então, tendo duplicado em comprimento e peso, a ferida permanecia aberta, vertendo sangue e uma coisa pastosa, amarelo-escura e fedorenta. Mordred achava que aquele ferimento em seu corpo humano jamais ia cicatrizar. Assim como seu outro corpo jamais seria capaz de recuperar a perna que o tiro da puta arrancara. E se ela não tivesse perdido o equilíbrio — ka, não tinha dúvida disso —, o tiro teria lhe arrancado a cabeça em vez da perna e o jogo estaria acabado, pois...

Ouviu um zumbido estridente, áspero. Ele observou o monitor que mostrava o outro lado da entrada principal e viu o robô doméstico parado ali com um saco numa das mãos. O saco estava se mexendo e o bebê de cabelos negros, com uma fralda improvisada amarrada no corpo, sentado diante de painéis com monitores, começou de imediato a salivar. Estendeu a simpática mão rechonchuda e apertou uma série de botões. A porta externa de segurança da sala, meio curva, abriu deslizando, e Nigel pisou o vestíbulo, que era construído como uma câmara de compressão. Mordred passou de imediato aos botões que abririam a porta interna em resposta à seqüência 2-5-4-1-3-1-2-1, mas seu controle motor era ainda quase inexistente e ele foi recompensado por outro zumbido estridente e uma vozfeminina que o enfureceu (enfureceu porque lembrava a voz da putamarrom) e que dizia: VOCÊ ERROU AO DIGITAR A SENHA DE SEGURANÇA PARA ESTA PORTA. PODERÁ REDIGITAR UMAVEZ DENTRO DOS PRÓXIMOS DEZ SEGUNDOS. DEZ... NOVE...

Mordred teria dito foda-se se fosse capaz de falar, mas não era. O melhorque pôde fazer foi balbuciar como um bebê, o que sem a menor dúvidateria feito Mia exultar com um orgulho de mãe. Agora já não mexia comosbotões; queria demais o que o robô trazia na sacola. Os ratos (presumiaque fossem ratos) desta vez estavam vivos. Vivos, por Deus, o sangueainda correndo nas veias!

Mordred fechou os olhos e se concentrou. A luz vermelha que Susannahtinha visto antes de sua primeira transformação apareceu de novona pele clara, correndo do alto da cabeça para o manchado calcanhar direito. Quando essa luz ultrapassou a ferida aberta no quadril do bebê, o lentofluxo de sangue e matéria pastosa por algum tempo ficou mais forte e Mordred proferiu um grito abafado de angústia. Sua mão foi para o ferimentoe espalhou sangue sobre a pequena concavidade de sua barriga numimpensado gesto de conforto. Por um momento houve um senso de escuridãobrotando para substituir o jorro vermelho, acompanhado por umaoscilação da forma da criança. Desta vez, no entanto, não houve transformação. O bebê desmoronou na cadeira, respirando forte, um pequenofilete de urina clara pingando de seu pênis para molhar a frente da toalhaque ele usava. Veio um estalo abafado do painel de controle que ficava na frente da cadeira onde o bebê, arfando como um cachorro, afundara de lado.

Do outro lado da sala, uma porta com a inscrição ACESSO PRINCIPAL se abriu deslizando. Nigel entrou com ar imperturbável e passos pesados, agora torcendo quase sem parar a cabeça em formato de cápsula econtando não em duas ou três línguas diferentes, mas talvez numa dúzia delas.

— Senhor, eu realmente não posso continuar a...

Mordred fez um alegre som ga-ga-gu-gu de bebê e estendeu as mãos para a sacola. O pensamento que enviou foi ao mesmo tempo claro e frio: Cale a boca. Me dê o que eu preciso.

Nigel pôs a saca no colo. Do seu interior vinha um gorjeio que era quase como fala humana e, pela primeira vez, Mordred percebeu que os safanões na sacola estavam vindo de uma única criatura. Não um rato, sem dúvida! Algo maior! Maior e mais sangrento!

Abriu a sacola e espreitou. Um par de olhos cercados de dourado o olharam com ar de súplica. Por um momento pensou que fosse o pássaro que voava à noite, o pássaro uh-uh, ele não sabia seu nome, e então viu que a coisa tinha pêlo, não penas. Era um throcken, conhecido em muitas partes do Mundo Médio como zé-trapalhão, este mal saído da teta da mãe.

Tudo bem, agora, ele pensou diante da criatura, a boca se enchendo de baba. Estamos no mesmo barco, meu pequeno parceiro — somos crianças sem mãe num mundo duro, cruel. Fique quieto e eu o consolarei.

Lidar com uma criatura tão jovem e de cabeça tão rudimentar como aquela não era muito diferente de lidar com as máquinas. Mordred examinou os pensamentos do trapalhão e localizou o nódulo que controlava a elementar força daquela vontade. Aproximou-se do nódulo com uma das mãos de seu próprio pensamento (de sua própria vontade) e segurou-o. Por um momento pôde ouvir o pensamento tímido, suplicante da criatura

(não me machuque por favor não me machuque; por favor me deixe viver; quero viver me divertir brincar um pouco; não me machuque por favor não me machuque por favor me deixe viver)

e respondeu:

Está tudo bem, não tenha medo, parceiro, está tudo bem.

O trapalhão na saca (Nigel o encontrara no pátio de veículos, separado da mãe, irmãos e irmãs pelo fechamento de uma porta automática) relaxou — não acreditando, exatamente, mas ansiando por acreditar.

 

No alojamento de Nigel, as luzes tinham se reduzido a um quarto de seu brilho. Quando Oi começou a ganir, Jake acordou de imediato. Os outros continuariamdormindo, pelo menos por mais algum tempo.

Qual é o problema, Oi?

O trapalhão não respondeu, só continuou com o ganido no fundo da garganta. Os olhos rodeados de dourado espreitavam para a sombria extremidadedo alojamento, como se estivessem vendo alguma coisa terrível. Jake selembrava de espreitar daquele jeito o canto de seu quarto após acordarde algum pesadelo nas primeiras horas da manhã, um sonho com Frankenstein, Drácula ou (Tiranorrex sauro) algum outro bicho-papão, só Deus sabia qual. Agora, pensando que talvezos trapalhões também tivessem pesadelos, se empenhou ainda mais em tocar a mente de Oi. A princípio não houve nada, depois uma imagem profunda, borrada (olhos... olhos olhando da escuridão) de algo que podia ser um zé-trapalhão num saco.

— Shhhh — Jake sussurrou no ouvido de Oi, pondo os braços em voltadele. — Não os acorde, eles precisam dormir.

— Mir — disse Oi, muito baixo.

— Você teve apenas um pesadelo — Jake murmurou. — Às vezes eu tambémtenho. Eles não são reais. Ninguém o colocou num saco. Volte a dormir.

— Mir. — Oi pousou o focinho na pata direita. — Oi fi-quié.

Está certo, Jake pensou para ele, Oi fica quieto.

Os olhos cercados de dourado, ainda meio intranqüilos, ficaram um poucomais tempo abertos. Então Oi piscou para Jake com um dos olhos e fechouambos. Um momento depois, o trapalhão estava dormindo de novo. Em algum lugar por perto, um animal como ele havia morrido... mas morrereraa regra do mundo; era um mundo duro, sempre tinha sido.

Oi sonhou que estava com Jake sob a grande esfera laranja da Lua do Mascate. Jake, também dormindo, percebeu aquilo pelo toque e os dois sonharam juntos com o Velho Mascate Errante, o homem da Lua.

Oi, quem morreu?, Jake perguntou sob o esperto piscar de um olhodo Mascate.

Oi, disse seu amigo. Delah. Muitos.

Sob o vazio olhar alaranjado do Velho Mascate, Oi nada mais disse; tinha, de fato, encontrado um sonho dentro de seu sonho, e Jake também foi junto com ele para lá. Aquele sonho era melhor. Nele, os dois brincavam juntos sob um sol brilhante. Então outro trapalhão se aproximou: um tipo triste, a julgar pela cara. Tentou falar com eles, mas nem Jake nem Oi puderam entender o que ele dizia, pois estava falando em inglês.

 

Mordred não era forte o bastante para tirar o trapalhão da sacola, e Nigel não quis ou não pôde ajudá-lo. O robô se limitou a ficar parado do lado de dentro da porta do Centro de Controle, torcendo a cabeça para um lado e para o outro, contando e tilintando mais alto que nunca. Um cheiro quente de coisa cozida começara a sair de suas entranhas.

Mordred conseguiu virar a saca, e o trapalhão, provavelmente com uns seis meses de idade caiu em seu colo. Os olhos estavam semicerrados, com pupilas amarelas e pretas, foscas, inertes.

Mordred atirou a cabeça para trás, fazendo uma careta concentrada. Aquele clarão vermelho correu pelo seu corpo e o cabelo começou a se arrepiar. Contudo, antes que o processo avançasse mais, ele e o corpo da criança ao qual estava ligado sumiram. A aranha surgiu. Ela dobrou quatro de suas sete patas ao redor do corpo do trapalhão e puxou-o sem dificuldade para a boca faminta. Em vinte segundos havia sugado todo o líquido do trapalhão. Depois mergulhou a boca na parte de baixo da barriga macia da criatura, rasgou-a, ergueu um pouco mais o corpo e comeu as vísceras que começaram a se derramar: deliciosos bocados de carne gotejante, cheios de energia. A coisa foi comendo até o fundo, produzindo sons abafados, miados de satisfação, quebrando a espinha do zé-trapalhão e sugando o breve gotejar do tutano. A maior parte da energia estava no sangue — é, sempre no sangue, como os Avós sabiam muito bem —, mas também havia energia na carne. Como bebê humano (Roland já tinha usado o tratamento carinhoso da velha Gilead, bah-bo), não poderia se nutrir do sangue ou da carne. Provavelmente teria morrido sufocado com eles. Mas como aranha...

Acabou e atirou o cadáver no chão, exatamente como fizera com os cadáveres consumidos, dissecados dos ratos. Nigel, mordomo dedicado, zeloso, tinha se livrado deles. Mas não ia se livrar daquele. Nigel ficou em silêncio por mais que Mordred berrasse: Nigel, eu preciso de você!Em volta do robô, o cheiro de plástico queimado tinha ficado suficientemente forte para ativar os ventiladores do teto. O DNK 45932 permaneceu com a face sem olhos virada para a esquerda. Isso lhe concedia um ar estranhamente indagador, como se ele tivesse morrido à beira de formular alguma pergunta importante: Qual é o sentido da vida, talvez, ou O morena bonita, como é que se namora? Num caso ou noutro, sua breve carreira como caçador de rato e trapalhão estava acabada.

Naquele momento Mordred estava cheio de energia — a refeição fora fresca e maravilhosa —, mas isso não ia durar muito tempo. Se permanecesse em sua forma de aranha, esgotaria ainda mais depressa aquele novo reservatório de energia. Se voltasse, no entanto, a ser um bebê, não seria sequer capaz de descer da cadeira onde estava sentado ou vestir de novo a fralda — que tinha, é claro, escorregado de seu corpo quando ele mudou de forma. Mas tinha de mudar de novo, pois na forma de aranha não conseguia absolutamente pensar com clareza. Mesmo deixando de lado o raciocínio dedutivo. Aliás, esta simples idéia era uma piada amarga.

O nódulo branco nas costas da aranha fechou seus olhos humanos e o corpo negro embaixo dele estimulou o surgimento de um vermelho congestionado. As pernas se retraíram para o corpo e desapareceram. O nódulo que era a cabeça do bebê se desenvolveu e ganhou seus detalhes quando o corpo clareou e adquiriu forma humana; os olhos azuis da criança — olhos de artilheiro, olhos de pistoleiro — cintilaram. Mordred ainda estava cheio da energia do sangue e da carne do trapalhão, podia senti-los enquanto a metamorfose corria para sua conclusão, mas uma certa quantidade do alimento (algo como a espuma no alto de um copo de cerveja) já tinha se dissipado. E não só por causa da mudança de um estado para outro. O fato era que ele estava crescendo num ritmo impetuoso. Esse tipo de crescimento requeria uma nutrição incessante e o alimento que podia ser tirado da Estação Experimental Arco 16 era tremendamente escasso. Da estação e também de Fedic atrás dela, sem dúvida. Havia comida enlatada, refeições em papel-laminado e bebidas feitas com pó de refresco, sim, essas coisas não faltavam, mas nada que havia ali o alimentava como ele precisava ser alimentado. Tinha necessidade de carne fresca e, mais do que carne, precisava de sangue. E o sangue de animais só sustentaria por algum tempo a avalanche de seu desenvolvimento. Logo ia precisar de sangue humano, ou o ritmo de seu crescimento iria primeiro desacelerar, depois parar. A dor da fome chegaria, mas essa dor, mesmo que revirasse de modo incessante seus órgãos vitais como uma broca, nada seria em comparação à dor mental e espiritual de observar o grupo nas telas dos vários monitores: ainda vivos, agrupados em sua irmandade, consolados por uma causa.

A dor de ver a ele. Roland de Gilead.

Mordred se perguntava como sabia das coisas que sabia. Ouvira da mãe? Algumas sim, pois absorvera um milhão de pensamentos e memórias de Mia (um bom número deles, inclusive, surripiados de Susannah), sentira-os fluindo para dentro de si enquanto se alimentava de Mia. Mas saber também da vida dos Avós, como sabia disso? Como sabia, por exemplo, que um vampiro alemão que bebia o sangue de um francês poderia ficar uma semana ou dez dias falando francês, falando como um nativo, e depois essa aptidão, assim como as recordações de sua vítima, começariam a desbotar...

Como podia saber de uma coisa dessas?

Isso tinha importância?

Agora os via dormindo. O garoto chamado Jake tinha despertado, mas só brevemente. Um pouco antes Mordred os vira comendo, quatro bobalhões e um trapalhão (cheios de sangue, cheios de energia), jantando juntos num círculo. Sentavam-se sempre em círculo, formavam aquele círculo mesmo quando paravam para descansar cinco minutos em alguma trilha do caminho, faziam isso sem sequer terem consciência da coisa, daquele círculo que mantinha o resto do mundo de fora. Mordred não tinha círculo. Embora fosse novo, já compreendia que seu ka era lá fora, justamente como era o ka do vento do inverno passar através de somente metade dos pontos cardeais: do norte para leste e depois novamente de volta ao frio norte. Aceitava isto, mas ainda olhava para eles com o ressentimento de quem ficava de fora, de quem ia machucá-los e teria uma satisfação amarga. Ele era de dois mundos, a profetizada junção de Primal e Am, de gadosh e godosh, de Gan e Gilead. Era, de certo modo, como Jesus Cristo, mas de uma forma ainda mais pura que o homem-deus-cordeiro, pois o homem-deus-cordeiro só tinha um pai verdadeiro, que estava no altamente hipotético céu, e um padrasto que estava na Terra. Pobre e velho José, que usava chifres postos pelo Próprio Deus.

Mordred Deschain, por outro lado, tinha dois pais reais. Um dos quais agora dormia no monitor diante dele.

Você está velho, pai, ele pensou. Dava-lhe um prazer perverso pensar assim; também o fazia se sentir pequeno, ordinário, não mais que... bem, não mais que uma aranha, olhando de sua teia. Mordred era um duplo e ia permanecer como duplo até Roland do Eld estar morto e o último ka-tet destruído. E a voz saudosa que o mandava ir para Roland e chamá-lo de pai? Chamar Eddie e Jake de irmãos, Susannah de irmã? Aquela era a voz ingênua de sua mãe. Eles o matariam antes que uma só palavra conseguisse sair de sua boca (presumindo que já então tivesse alcançado um estágio onde pudesse fazer mais do que balbuciar). Eles iriam cortar suas bolas e as dar de comida para o trapalhão do pirralho. Iriam enterrar seu cadáver castrado, cagar no chão onde ele se encontrasse e depois seguir adiante.

Você finalmente envelheceu, pai, e agora você anda meio coxo e, no fim do dia, vejo você esfregar o quadril com a mão que já manifesta um pequeno tremor.

Olhem, se quiserem. Aí está um bebê com sangue sujando a pele clara. Aí está um bebê vertendo lágrimas silenciosas, medrosas. Aí está um bebê que ao mesmo tempo sabe demais e de menos, e embora devamos manter nossos dedos longe de sua boca (ele morde, este bebê; morde como filhote de crocodilo), estamos autorizados a ter uma certa pena dele. Se o ka é um trem — e é, um monotrem grande e brutal, talvez são, talvez não —, então esta pequena e repugnante licantrope é seu mais vulnerável reftém, não amarrado aos trilhos como a pequena Nell, mas preso no próprio farol da coisa.

Ele pode dizer a si mesmo que tem dois pais e pode haver alguma verdade nisso, mas não vemos mais pai e muito menos mãe. Comeu a mãe viva, essa é a verdade, comeu-a legal, foi sua primeira refeição e, afinal, que opção ele teve? Ele é o último milagre gerado pela Torre Negra ainda de pé, a cicatriz que une o racional e o irracional, o natural e o sobrenatural, e, no entanto está sozinho e está hiper com fome. O destino pode ter pretendido que governasse uma cadeia de universos (ou destruísse todos), mas ele ainda não conseguiu estabelecer domínio sobre coisa alguma, a não ser um velho robô doméstico que foi agora para a clareira no fim do caminho.

Ele contempla o pistoleiro adormecido com amor e ódio, abominação e ânsia. Mas vamos supor que se aproximasse deles e não fosse morto? Vamos supor que o aceitassem no grupo. Idéia ridícula, sim, mas vale pelo amor à reflexão. Mesmo assim iam querer que ele colocasse Roland acima dele, iam querer que aceitasse Roland como dinh e isso ele nunca vai fazer, nunca, não, nunca.

 

O FIO BRILHANTE

— Você os estava vigiando — disse uma voz suave, rindo. Então a voz entoou um trecho de uma absurda cantiga de ninar que Roland teria se lembrado muito bem dos primeiros anos de sua própria infância. — “Tostão, buquê, Jack é um tatu! Não achas que sim? Sim, acho como tu! Ele é meu fofo, saboroso, querido bah-bo!” Você gostou do que viu antes de cair no sono? Não os viu seguir adiante com o resto do mundo que desmorona?

Talvez dez horas tenham se passado desde que Nigel, o robô doméstico, havia desempenhado sua última tarefa. Mordred, que de fato tinha dormido profundamente, virou a cabeça para a voz do estranho sem nenhum vestígio de confusão mental ou surpresa. Viu um homem de calça jeans e um casacão com capuz parado nos ladrilhos cinzentos do Centro de Controle. Sua tralha — que não passava de uma velha bolsona de lona — estava aos pés dele. As faces eram coradas, a cara bonita, os olhos muito brilhantes. Trazia na mão uma pistola automática e, quando Mordred Deschain olhou para dentro da escuridão de seu focinho, ele percebeu, pela segunda vez, que até os deuses podem morrer quando sua divindade se diluir com sangue humano. Mas não estava com medo. Não daquele sujeito. Ele realmente tornou a se virar para os monitores que mostravam os aposentos de Nigel e confirmou que o recém-chegado tinha razão: estavam vazios.

O estranho sorridente, que parecia ter brotado do próprio chão, ergueu a mão que não segurava o revólver para o capuz do casaco e virou um pouco a aba. Mordred viu um brilho de metal. Uma espécie de fio trançado revestia o interior do capuz.

— Chamo isto meu “bloqueador de pensamentos” — disse o estranho. — Não posso ouvir seus pensamentos, o que é um inconveniente, mas você também não consegue entrar em minha cabeça, o que é...

(o que sem a menor dúvida é uma vantagem, você não concorda)

— ...o que sem a menor dúvida é uma vantagem, você não concorda? Havia dois patches no casaco. Um dizia U.S. ARMY e mostrava um pássaro... o pássaro-águia, não o pássaro uh-uh. A outra inscrição era um nome: RANDALL FLAGG. Mordred descobriu (também sem grande surpresa) que lia com facilidade.

— Porque se você for parecido com seu pai... quer dizer, o pai rubro... seus poderes mentais podem exceder a mera comunicação. — O homem no casacão deixou escapar um riso abafado. Não queria que Mordred soubesse que estava com medo. Talvez tivesse convencido a si mesmo de que não tinha medo, de que fora até lá por livre e espontânea vontade. E talvez fosse verdade. De qualquer modo, isso não interessava a Mordred. Nem os planos do homem, que se misturavam e corriam na sua cabeça como sopa quente. O homem realmente acreditava que o “bloqueador” estava protegendo seus pensamentos? Mordred olhou mais de perto, espreitou mais fundo e viu que a resposta era sim. Muito conveniente.

— Seja como for — continuou o estranho —, creio que um pouco de proteção é muito prudente. Prudência é sempre o caminho mais sábio; senão como eu teria sobrevivido à queda de Farson e à morte de Gilead? Não gostaria que entrasse em minha cabeça e fizesse com que eu me atirasse de um prédio, você compreende? Mas por que você faria isto? Precisa de mim ou de alguém, agora que seu balde de parafusos ficou em silêncio e você é apenas um bah-bo que não consegue amarrar a própria fralda pela fenda de um rabo cagão!

O estranho — que na realidade não era absolutamente estranho — riu. Sentado na cadeira, Mordred o contemplava. Em sua face de criança havia uma marca rosada, pois ele dormira com a mãozinha encostada no lado do rosto.

— Acho — disse o recém-chegado — que podemos nos comunicar muito bem se eu falar e você inclinar a cabeça para sim ou sacudi-la para não. Bata na cadeira se não entender. É fácil! Está de acordo?

Mordred inclinou a cabeça. O recém-chegado achou o firme clarão azul daqueles olhos inquietante — très inquietante —, mas tentou não deixar isso transparecer. Tornou a se perguntar se ir até lá fora a coisa certa a fazer, mas rastreara Mia desde que ela tinha engravidado, e por que, senão para aquilo? Era um jogo perigoso, sem dúvida, mas agora só havia duas criaturas que podiam destrancar a porta na base da Torre antes de a Torre cair... o que ia acontecer, e logo, porque ao escritor só restavam dias de vida em seu mundo e os últimos Livros da Torre (três deles) continuavam não escritos. No último, que já fora escrito sim naquele mundo-chave, o ka-tet de Roland banira sai Randy Flagg de um palácio de sonho numa estrada interestadual, um palácio que Eddie, Susannah e Jake tinham achado muito parecido com o Castelo de Oz, o Grande e Terrível (Oz, o Rei Verde, que lhe faça bem). Tinham, de fato, quase matado aquele mau e velho imbustor, Walter das Sombras, providenciando, assim, o que alguém sem dúvida chamaria de final feliz. Mas além daquela parte em Mago e Vidro Stephen King não tinha escrito mais uma só palavra sobre Roland e a Torre Negra, e Walter considerava isto o verdadeiro final feliz. As pessoas de Calla Bryn Sturgis, as crianças roont, Mia e o bebê de Mia, todas essas coisas ainda estavam dormindo, em estado rudimentar, no subconsciente do escritor, criaturas sem respirar atrás de uma porta não encontrada. E agora Walter achava que era tarde demais para libertá-las. Por mais rápido que King tivesse escrito ao longo de sua carreira — um escritor genuinamente talentoso que se transformara num medíocre (mas rico) artista de traço rápido, um Algernon Swinburne sem rima, que lhe agrade —, não ia conseguir completar sequer as primeiras cem páginas do final da história no tempo que lhe restava, mesmo se escrevesse noite e dia.

Tarde demais.

Houvera um dia de opção, como Walter bem sabia: ele tinha estado em Le Casse Roi Russe e vira isto na bola de cristal que a Velha Coisa Vermelha ainda possuía (embora a esta altura ela sem dúvida estivesse jogada em algum canto de castelo). Até o verão de 1997, King claramente sabia da história dos Lobos, os gêmeos e os pratos voadores chamados Orizas. Mas para o escritor tudo isso parecera excesso de trabalho. Ele optara por trabalhar num livro de histórias relativamente inter-relacionadas chamado Hearts in Atlantis, e mesmo agora, em sua casa na Via do Casco da Tartaruga (onde nunca vira sequer um aparecido), o escritor estava desperdiçando o resto de seu tempo escrevendo sobre paz, amor e Vietnã. Era verdade que um personagem, no que seria o último livro de King, tinha um papel a desempenhar na história da Torre Negra, mas esse sujeito — um homem velho com talento nos miolos — nunca teria a chance de ter falas que realmente importassem. Maravilha.

No único mundo que realmente importava, o verdadeiro mundo onde o tempo jamais volta para trás e onde não há (vamos dizer a verdade) segundas chances, era 12 de junho de 1999. O tempo do escritor tinha encolhido para menos de duzentas horas.

Walter das Sombras sabia que não tinha assim tanto tempo para alcançar a Torre Negra, porque o tempo (como o metabolismo de certas aranhas) corria mais rápido e mais quente daquele lado da realidade. Digamos cinco dias. Cinco e meio visto de outro ângulo. Tinha esse tempo para alcançar a Torre com o pé amputado de Mordred Deschain, o que trazia a marca de nascença, na tralha... Para abrir a porta embaixo e subir aqueles degraus murmurantes... Para se desviar do encurralado Rei Rubro...

Se pudesse encontrar um veículo... ou a porta certa...

Era tarde demais para tornar-se o Deus de Tudo?

Talvez não. De qualquer modo, que mal havia em tentar?

Walter das Sombras tinha perambulado durante muito tempo e sob uma centena de nomes, mas a Torre sempre fora sua meta. Como Roland, queria subir até seu topo e ver o que vivia lá. Se alguma coisa houvesse.

Não pertencera a nenhuma das cliques, cultos, fés e facções que tinham surgido nos confusos anos desde que a Torre começara a vacilar, embora usasse seus siguls quando lhe convinha. Seu serviço para o Rei Rubro era uma coisa tardia, como era o serviço para John Farson, o Homem Bom, que mergulhara Gilead, o último bastião da civilização, numa maré de sangue e assassinato. Walter executara sua própria cota de crimes naqueles anos, vivendo uma vida longa e apenas quase-mortal. Testemunhara o fim do que ele então acreditara ser o último ka-tet de Roland na Colina de Jericó. Testemunhara? Era um certo excesso de modéstia, por todos os deuses e peixes! Sob o nome de Rudin Filaro, lutara com o rosto pintado de azul, gritara e atacara com o resto dos bárbaros fedorentos, e tinha acertado o próprio Cuthbert Allgood com uma flecha no olho. Ainda assim, durante tudo aquilo, nunca tirara seu olhar da Torre. Talvez tenha sido por isso que o maldito pistoleiro (Roland de Gilead, com o sol se pondo e encerrando o trabalho do dia, fora o último deles) conseguira escapar, tendo se enterrado numa carroça cheia de mortos e saindo escondido ao pôr-do-sol para fora da pilha de massacrados, pouco antes que tudo fosse posto em chamas.

Vira Roland anos antes, em Mejis, e fora lá também que perdera a chance de acabar com ele (por culpa principalmente de Eldred Jonas, o sujeito da voz trêmula e cabelo grisalho e comprido, e Jonas tinha pago por isso). O Rei tinha lhe dito então que os problemas com Roland ainda não estavam encerrados, que o pistoleiro iria começar o fim das coisas e acabar causando a queda daquilo que queria salvar. Walter só começou a acreditar nisso no deserto de Mohaine, onde certo dia, ao olhar para trás, descobriu um pistoleiro em seu rastro, um pistoleiro que tinha envelhecido nos últimos anos. Ele, no entanto, só chegou a acreditar realmente no que estava acontecendo quando Mia reapareceu cumprindo a velha e sombria profecia ao dar à luz um filho do Rei Rubro. Certamente a Velha Coisa Vermelha não tinha mais utilidade para ele, mas mesmo em seu encarceramento e insanidade, ele — a coisa — continuava sendo perigoso.

Contudo, até ter Roland para completá-lo (talvez para fazê-lo maior que seu próprio destino), Walter das Sombras fora pouco mais que um nômade, sobrevivente dos velhos tempos, um mercenário com a vaga ambição de penetrar na Torre antes que ela desabasse. Afinal, não fora isso que o tinha levado ao Rei Rubro? Sim. E não era sua culpa se a grande aranha-rei, cheia de pernas, havia enlouquecido.

Não importa. Ali estava seu filho com a mesma marca no calcanhar — Walter podia vê-la naquele momento —, e tudo estava equilibrado. Precisaria ter cuidado, é claro. A coisa na cadeira parecia vulnerável, talvez até se considerasse vulnerável, mas não valia a pena subestimá-la só porque parecia um bebê.

Walter passou o revólver para o bolso (provisoriamente; só provisoriamente) e estendeu as mãos vazias, palmas para cima. Depois fechou uma delas num punho, que levou à testa. Devagar, sem tirar os olhos de Mordred, não querendo ser surpreendido por uma mudança (Walter tinha visto essa mudança e o que acontecera à mãe da pequena besta), o recém-chegado pousou um joelho no chão.

— Salve, Mordred Deschain, que de Roland de Gilead fora filho e agora o é do Rei Rubro, cujo nome foi outrora dito do Fim do Mundo ao Fora do Mundo; salve, filho de dois pais, ambos descendentes de Arthur Eld, primeiro rei coroado após o recesso do Primal, Guardião da Torre Negra.

Por um momento nada aconteceu. Houve apenas silêncio no Centro de Controle e o cheiro persistente dos circuitos fritos de Nigel.

Então o bebê moveu os punhos gorduchos, abriu-os e ergueu as mãos: Levante-se, vassalo, e se aproxime.

 

— O melhor é não “pensar forte” em momento algum — disse o recém-chegado se aproximando. — Podem descobrir que você está aqui e Roland é esperto, por Cristo o Senhor; muito esperto, pode crer. Certa vez me alcançou, você sabe, e pensei que ia me liquidar. Realmente pensei. — De sua tralha, o homem que às vezes se autodenominava Flagg (em outro nível da Torre, levara um mundo inteiro à ruína usando este nome) tinha tirado manteiga de amendoim e cream crackers. Pedira permissão a seu novo dinh e o bebê (embora ele mesmo extremamente faminto) assentira regiamente com a cabeça. Agora Walter se sentava de pernas cruzadas no chão, comendo rapidamente, protegido por seu “bloqueador de pensamentos”, inconsciente de que já havia um intruso dentro de sua cabeça e tudo que ele sabia estava sendo saqueado. Estaria seguro até que o saque se completasse, mas depois...

Mordred levantou uma gorducha mão de bebê e, graciosamente, deslocou-a na forma de um ponto de interrogação.

— Como escapei? — Walter perguntou. — Ora, fiz o que qualquer vigarista genuíno faria naquelas circunstâncias... Contei a verdade! Mostrei a Torre, pelo menos vários andares dela. Isso deixou Roland atordoado, realmente atordoado, e enquanto a mente dele permanecia assim, aberta, tirei uma folha de seu próprio livro mental e o hipnotizei. Estávamos numa das fístulas de tempo que às vezes rodopiam para fora da Torre e o mundo se movia por toda a nossa volta enquanto fazíamos nossa palestra naquele lugar cheio de ossos, é! Trouxe mais ossos... ossos humanos... e enquanto ele dormia vesti-os com o que havia sobrado de minhas roupas. Podia tê-lo matado então, mas o que seria da Torre se eu fizesse isso, hã? E o que seria de você? Você nunca teria vindo à luz. É justo dizer, Mordred, que ao permitir que Roland vivesse e escolhesse aqueles três, salvei sua vida antes mesmo que ela fosse engendrada, foi o que fiz. Escapuli para o litoral... tive necessidade de umas pequenas férias, oh!, Roland, ao chegar lá, seguiu direto para as três portas. Eu pegara outro caminho, Mordred meu caro, e aqui estou!

Riu por entre um punhado de cream crackers, deixando cair farelo no queixo e na camisa. Mordred sorria, mas estava revoltado. Era com aquilo que ia ter de trabalhar, com aquilo? Um palerma devorador de cream crackers, espalhador de farelos, vaidoso demais de antigas proezas para sentir o perigo presente e perceber que suas defesas tinham sido rompidas? Por todos os deuses, o sujeito merecia morrer! Mas antes que isso pudesse acontecer, havia duas coisas a mais que ele, Mordred, precisava. Queria saber para onde Roland e seus amigos tinham ido. A outra coisa era se alimentar, e aquele palerma podia servir às duas necessidades. E o que tornava tão fácil usá-lo dessa forma? Ora, que Walter tivesse ficado velho — velho e letalmente seguro de si mesmo — e vaidoso demais para se enxergar.

— Você pode estar se perguntando por que estou aqui e não cuidando dos assuntos de seu pai — disse Walter. — Não é?

Não era, mas mesmo assim Mordred inclinou a cabeça. Seu estômago roncava.

— Na verdade, vim até aqui por causa dos assuntos dele — disse Walter, dispensando-lhe seu mais charmoso sorriso (um tanto estragado pela manteiga de amendoim grudada no dente). Provavelmente um dia já soubera que qualquer declaração começando com as palavras na verdade é quase sempre uma mentira. Não sabia mais. Velho demais para saber.

Vaidoso demais para saber. Burro demais para se lembrar. Mas não perdera toda a cautela. Podia sentir a força da criança. Em sua cabeça? Revirando em sua cabeça? Certamente não. A coisa presa no corpo do bebê era poderosa, mas sem dúvida não tão poderosa assim.

Walter se inclinou avidamente, segurando os joelhos.

— Seu Pai Vermelho está... incapacitado. Em virtude de ter vivido, por tanto tempo, tão perto da Torre e ter pensado tão profundamente nela, não tenho dúvida. Caberá a você terminar o que ele começou. Vim para ajudá-lo nessa tarefa.

Mordred abanou a cabeça, como se estivesse gostando de ouvir aquilo. Estava gostando. Mas, ah, estava também com tanta fome.

— Também já pode ter se perguntado como o descobri nesta câmara supostamente tão segura — disse Walter. — Na verdade, ajudei a construir este lugar, no que Roland chamaria “tanto tempo atrás”.

De novo aquela expressão, nítida como um piscar de olhos.

Walter tinha posto o revólver no bolso esquerdo do casaco. Agora tirava do bolso direito uma engenhoca do tamanho de um maço de cigarros, puxava uma antena prateada e empurrava um botão. Uma parte dos ladrilhos cinzentos recuou silenciosamente, revelando um lance de degraus. Mordred abanou a cabeça. Walter — ou Randall Flagg, se era assim que estava se chamando naquele momento — tinha de fato saído do chão. Um belo truque, mas é claro que ele um dia servira a Steven, pai de Roland, como mago da corte de Gilead, não era? Sob o nome de Marten. Um homem de muitas faces e muitos belos truques, assim era Walter das Sombras, mas nunca tão esperto quanto parecia achar que era. Nem metade disso. Pois Mordred agora tinha a última coisa que estava procurando: o modo como Roland e seus amigos tinham saído dali. Afinal, não houve necessidade de arrancar isto do esconderijo na mente de Walter. Ele só precisava seguir as pegadas do bobo.

Primeiro, no entanto...

O sorriso de Walter tinha desbotado um pouco.

— Disse alguma coisa, alteza? Pensei ter ouvido o som de sua voz bem no fundo de minha mente.

O bebê balançou negativamente a cabeça. E quem é mais digno de crédito que um bebê? Seus rostos, afinal, não são a própria definição de sinceridade e inocência?

— Eu o levo comigo e vamos atrás deles, se este for o seu desejo — disse Walter. — Que dupla formaríamos! Foram para o devar-toi em Trovoada, para soltar os Sapadores. Prometo que vou encontrar seu pai... seu Pai Branco... e todo o ka-tet se eles se atreverem a dar mais um passo, e é uma promessa que pretendo cumprir. Porque me escute bem, Mordred, o pistoleiro Roland Deschain tem aproveitado cada oportunidade para se opor a mim e não vou suportar mais isto. Não vou! Está me ouvindo? — Sua voz estava se erguendo em fúria.

Mordred balançava inocentemente a cabeça, arregalando os belos olhos de bebê no que podia ser tomado por medo, fascínio ou ambos. Certamente Walter das Sombras parecia envaidecido com aquele olhar e, realmente, a única dúvida agora era saber quando pegá-lo: de imediato ou mais tarde? Mordred estava muito faminto, mas achou que ia agüentar pelo menos um pouco mais. Havia algo estranhamente instigante em ver aquele idiota costurando, com tamanho zelo, os últimos centímetros de seu destino.

Mais uma vez Mordred desenhou no ar a forma de um ponto de interrogação.

Qualquer último vestígio de um sorriso desbotou no rosto de Walter.

— O que eu realmente quero? É isso que está perguntando?

Mordred abanou afirmativamente a cabeça.

— Não se trata absolutamente da Torre Negra, se quer saber a verdade; é Roland quem está em minha mente e em meu coração. Quero que ele morra. — Walter falava com simples, severa determinação. — Pelas longas e poeirentas léguas em que ele me caçou; por todo o problema que me causou; e também pelo Rei Vermelho... o verdadeiro Rei, você bem sabe; por sua presunção em se recusar a desistir da busca, por mais obstáculos que se colocassem em seu caminho; mais que tudo pela morte de sua mãe, que um dia eu amei. — E, a meia-voz: — Ou por quem, pelo menos, tive desejo. De um modo ou de outro, foi ele quem a matou. Não importa que parte eu ou Rhea da colina Cöos tenhamos desempenhado no assunto; foi o próprio garoto quem a fez parar de respirar com as malditas armas, raciocínio lento e mãos rápidas.

— Quanto ao fim do universo — ele continuou —, que venha como tiver de vir, em gelo, fogo ou escuridão. O que o universo já fez por mim para que eu me preocupasse com seu bem-estar? Tudo que sei é que Roland de Gilead já viveu tempo demais e eu quero esse filho-da-puta debaixo da terra! E também os que escolheu para seguirem com ele.

Pela terceira e última vez, Mordred desenhou um ponto de interrogação no ar.

— Há uma única porta que funcionava daqui ao devar-toi, jovem mestre. É a que os Lobos usam... ou usavam; acho que eles já fizeram sua última corrida, pois é. Roland e seu amigos passaram por esta porta, mas não há problema, ainda encontrarão muita coisa de que se ocupar no ponto mesmo onde vão sair... Podem achar a recepção um pouco quente! Talvez possamos cuidar deles quando tiverem de se defrontar com os Sapadores, o resto dos Filhos de Roderick e os verdadeiros guardas da vigília. Não gostaria disso?

Sem hesitar, a criança balançou afirmativamente a cabeça. Depois colocou os dedos na boca e começou a mascá-los.

— Sim — disse Walter. O brilho do sorriso se apagou. — Fome, é claro que está com fome. Mas tenho certeza que podemos conseguir coisa melhor do que ratos e zé-trapalhões crescidos pela metade quando chegar a hora do jantar. Não acha?

Mordred balançou de novo a cabeça. Tinha certeza que achava.

— Posso desempenhar o papel do paizão e carregá-lo? — Walter perguntou. — Assim você não terá de mudar para a aranha. Ugh! Não é um formato fácil de se gostar, ou mesmo de ter alguma simpatia, sem dúvida não é.

Mordred estava com os braços para cima.

— Não vai fazer cocô em cima de mim, não é? — Walter perguntou casualmente, parando pela metade do caminho até o bebê. Sua mão deslizou para o bolso e Mordred percebeu, com um toque de alarme, que o sonso patife estivera escondendo alguma coisa: ele sabia que o chamado “bloqueador de pensamentos” não estava funcionando. E agora, afinal, pretendia usar o revólver.

 

De fato, Mordred dera a Walter das Sombras fé demais, mas não é isso uma característica do jovem, talvez mesmo uma técnica de sobrevivência? Para um rapaz de olho arregalado, os truques surrados do mágico mais canastrão do mundo parecerão prodígios. Na realidade, Walter não percebeu o que estava acontecendo até muito para o final do jogo, mas era um manhoso e velho sobrevivente, sem a menor dúvida, e quando a compreensão veio, ela veio inteira.

Há uma frase, o elefante na sala de estar, que descreve como é viver com um viciado em drogas, um alcoólatra, um transgressor. Pessoas que nunca viveram um relacionamento desses às vezes perguntam: “Como você permitiu que uma coisa dessas continuasse por tantos anos? Não via o elefante na sala de estar?” E é muito difícil que alguém vivendo numa situação mais normal entenda a resposta que mais se aproxima da verdade: “Me desculpe, mas ele já estava lá quando me mudei. Eu não sabia que era um elefante, pensei que fosse parte da mobília.” Chega um momento de bocas abertas para algumas pessoas — as de sorte — em que elas de repente percebem a diferença. E esse momento chegou para Walter. Mas, por uma pequena diferença, chegou tarde demais.

Você não vai fazer cocô em cima de mim, não é?, foi a pergunta que ele fez, mas entre a palavra cocô e a expressão em cima de mim, ele de repente percebeu que havia um intruso em sua casa... e que estivera lá o tempo todo. Mas não era um bebê; era um adolescente desengonçado, de cabeça caída, pele com marcas de espinhas e olhos estupidamente curiosos. Era talvez a melhor, a mais verdadeira visualização que Walter podia ter feito de Mordred Deschain, do modo como ele existia naquele momento: um adolescente assaltante, provavelmente embriagado por algum produto de limpeza em aerossol.

E estivera lá o tempo todo! Deus, como não tinha dado conta? O criador de caso nem estava escondido! Ficara bem no aberto, ali encostado na parede, de boca escancarada e devorando tudo.

Seus planos de levar Mordred — de usá-lo para dar fim à vida de Roland (isto é, se os guardas do devar-toi não dessem cabo dela primeiro), depois matar o pequeno bastardo e pegar seu valioso pé esquerdo — entraram instantaneamente em colapso. No minuto seguinte, um novo plano surgiu e era a própria simplicidade. Ele não pode perceber que eu sei. Um tiro é tudo que posso arriscar, e só porque tenho de arriscar. O importante é fugir. Se ele morrer, ótimo. Caso contrário, talvez morra de fome antes que...

Então Walter percebeu que sua mão tinha parado. Quatro dedos tinham se fechado ao redor da coronha do revólver no bolso do casaco, mas estavam agora imobilizados. Um se achava bem próximo do gatilho, mas também não podia se mover. Era como se estivesse enterrado em cimento. E agora Walter via claramente o fio brilhante pela primeira vez. Emergiu da boca de gengivas rosadas e sem dentes do bebê sentado na cadeira e cruzou a sala, cintilando sob as luzes do teto, cercando Walter na altura do peito, amarrando seus braços ao lado do corpo. Ele compreendeu que o fio não estava realmente ali... mas ao mesmo tempo estava.

Não podia se mexer.

 

Mordred não viu o fio brilhante, talvez porque nunca tivesse lido Watership Down. Tivera a oportunidade de explorar a mente de Susannah, contudo, e o que via agora lembrava incrivelmente o Dogan de Susannah. Só que, em vez de controles dizendo coisas como CHAPINHA e TEMPO EMOCIONAL, via botões que controlavam além da perambulação de Walter (que ele rapidamente pôs em OFF) suas cogitações e motivações. Isto era certamente mais complexo que as coisas existentes na cabeça do jovem trapalhão (onde ele nada encontrara além de alguns nódulos simples, como nós comuns), mas ainda assim não difíceis de operar.

O único problema era que ele era um bebê.

Um maldito bebê largado numa cadeira.

Se realmente pretendesse transformar aquela delicatessen sobre pernas em frios sortidos, teria de agir depressa.

 

Walter das Sombras não era velho demais para ser ingênuo, ele agora compreendia isso — subestimara o pequeno monstro, confiando demais na aparência que tinha e não o bastante em seu conhecimento do que ele era —, mas estava pelo menos além da armadilha de pânico total de um homem jovem.

Se ele pretende fazer qualquer coisa além de ficar sentado naquela cadeira me olhando, terá de se transformar. Quando o fizer, pode perder o controle. Essa será minha chance. Não é muita coisa, mas é a única que me restou.

Nesse momento ele viu uma luz muito vermelha descendo na pele do bebê, do cocuruto aos pés. Enquanto isso, o corpo rechonchudo e rosado do bah-bo começou a escurecer e inchar, as pernas da aranha irrompendo pelos lados. De repente o fio brilhante saindo da boca do bebê desapareceu e Walter sentiu que a tira sufocante que o estivera prendendo no lugar também sumira.

Não há tempo para arriscar sequer um tiro, não agora. Corra. Corra dele... da coisa. É tudo que você pode fazer. Antes de mais nada, você nunca devia ter vindo aqui. Deixou que a raiva do pistoleiro o cegasse, mas talvez ainda não seja tarde demais...

Ele se virou para o alçapão enquanto seus pensamentos disparavam pela mente e estava prestes a pôr o pé no primeiro degrau quando o fio brilhante reapareceu, desta vez não circundando seus braços e peito mas rodeando a garganta, como um garrote.

Engasgando, sufocando, vomitando cuspe, olhos saltando das órbitas, Walter se virou bruscamente para o lado. O laço em volta do pescoço se enfraqueceu muito pouco. Ao mesmo tempo ele sentiu alguma coisa muito parecida com uma mão invisível deslizando pela testa e empurrando o capuz para trás da cabeça. Gostava de andar sempre vestido daquela maneira; em certas províncias até o sul de Garlan fora conhecido como Walter Hodji, a última palavra significando ao mesmo tempo sombra e capuz. Mas aquela cobertura especial (emprestada de uma certa casa abandonada na cidade de French Landing, no Wisconsin) não o ajudara em nada, não é?

Acho que posso ter chegado ao fim do caminho, ele pensou ao ver a aranha avançando com suas sete patas, uma coisa viva e inchada (mais viva que o bebê, ié, e quatro mil vezes mais feia), com um extravagante caroço na forma de uma cabeça humana se projetando da curva peluda do dorso. Na barriga, Walter podia ver a marca vermelha que aparecia no calcanhar do bebê. Agora tinha forma de ampulheta, como aquela que existe na fêmea da viúva-negra, e ele compreendeu que era a marca que ele teria preferido pegar; matar o bebê e amputar seu pé provavelmente não lhe teria servido de nada. Parecia que tivera errado desde o começo.

A aranha se levantou nas quatro patas traseiras. As três da frente bateram no jeans de Walter, fazendo um baixo e fantasmagórico som de raspar. Os olhos da coisa saltaram com aquela obtusa curiosidade do intruso que ele já tinha imaginado dentro de si.

Ah, sim, receio que seja o fim do caminho para você. Palavras enormes em sua cabeça. Ecoando como um alto-falante. Mas você quer o mesmo para mim, não é?

Não! Pelo menos não de imediato...

Mas você quis! “Você tá perdendo a noção do perigo”, como Susannah diria. Portanto agora eu faço àquele que você chama de meu Pai Branco um pequeno favor. Talvez você não seja seu maior inimigo, Walter Padick (como o chamavam quando você pegou a estrada, muito tempo atrás), mas é o mais antigo, eu garanto. E agora eu o tiro do caminho dele.

Walter não percebeu que mantivera uma esperança precária de escapar, mesmo com a coisa repugnante diante dele, em pé, os olhos a contemplá-lo com avidez obtusa e a boca salivando; até ouvir, pela primeira vez em mil anos, o nome ao qual o garoto de uma fazenda em Delain um dia respondera: Walter Padick. Walter, filho de Sam, o Moleiro do Baronato de Eastar. Ele, que fugira de casa aos 13 anos, fora currado no rabo por outro vagabundo um ano depois e, ainda assim, conseguira resistir à tentação de voltar rastejando para casa. Em vez disso, seguira adiante, em direção a seu destino.

Walter Padick.

Ao som dessa voz, o homem que tinha às vezes se autodenominado Marten, Richard Fannin, Rudin Filaro e Randall Flagg (entre muitíssimos outros) abriu mão de toda esperança, exceto da esperança de morrer bem.

Estou hiperfaminto, Mordred está hiperfaminto, falou a voz incansável no meio da cabeça de Walter, uma voz que chegava até ele pelo fio brilhante da vontade do pequeno rei. Mas vou comer direito, começando com o tira-gosto. Seus olhos, eu acho. Dê pra mim.

Walter resistiu valorosamente, mas sem um só momento de sucesso. O fio era forte demais. Viu suas mãos se erguerem e pairarem na frente do rosto. Viu os dedos se curvarem como anzóis. E então eles repuxaram as pálpebras como se dobrassem cortinas. Depois cavaram as esferas de cima para baixo. Pôde ouvir os sons que elas fizeram quando foram rasgadas dos tendões que as viravam e dos nervos ópticos que carregavam suas maravilhosas mensagens. O som da rasgada que marcou o fim da visão foi baixo e úmido. Brilhantes faixas de luz vermelha encheram sua cabeça, antes que ela fosse tomada para sempre pela escuridão. No caso de Walter, o para sempre não demoraria muito, mas se o tempo é subjetivo (e a maioria de nós reconhece isso), seria de fato demasiado longo.

Dê pra mim, estou dizendo! Não perca mais tempo! Estou hiperfaminto!

Walter das Sombras — agora realmente da Escuridão — virou as mãos para baixo e soltou os globos oculares. Eles deixaram filamentos para trás enquanto caíam, ficando um pouco parecidos com girinos. A aranha pegou um deles em pleno ar. O outro quase se esborrachou no ladrilho onde a unha surpreendentemente ágil na ponta de uma perna o pegou, enfiando-o na boca de aranha. Mordred o fez estourar como uva, mas não engoliu; preferiu deixar o maravilhoso muco escorrer garganta abaixo. Uma delícia.

Agora a língua, por favor.

Walter cercou-a com a mão obediente e puxou, mas só conseguiu soltá-la parcialmente. No fim era escorregadio demais. Ele teria chorado de agonia e frustração se os buracos sangrentos onde os olhos tinham estado pudessem produzir lágrimas.

Tornou a segurar a língua para puxá-la de novo, mas a aranha estava ansiosa demais para esperar.

Curve-se! Ponha a língua de fora como você faria diante da buceta de sua amadinha. Rápido, pelo amor de seu pai! Mordred está hiperfaminto!

Walter, ainda com total consciência do que estava lhe acontecendo, lutou contra aquele novo horror com o mesmo insucesso com que lutara com o anterior. Curvou-se com as mãos nas coxas, e a língua sangrenta pendurou desajeitadamente entre os lábios, oscilando fracamente enquanto os músculos sofrendo hemorragia no fundo da boca tentavam segurá-la. Mais uma vez ele ouviu sons de arranhar quando as pernas dianteiras de Mordred roçaram nas pernas de sua calça de brim. A boca peluda da aranha fechou-se na língua de Walter, chupou-a como um pirulito por um ou dois abençoados segundos, depois rasgou-a com um único e violento puxão. Walter — agora sem fala assim como sem visão — proferiu um pastoso grito de dor e caiu para a frente, agarrando-se à face distorcida, rolando de um lado para o outro sobre os ladrilhos.

Mordred mordia a língua que entrara na sua boca. Ela explodiu num jorro de sangue que temporariamente removeu todo o pensamento da aranha. Walter tinha rolado para um lado e tateava agora cegamente pelo alçapão, pois algo dentro dele ainda gritava que não devia desistir, que devia continuar tentando escapar do monstro que o estava comendo vivo.

Com o gosto de sangue na boca, todo o interesse em preliminares abandonou Mordred. Ele foi reduzido à sua essência central, que era principalmente apetite. Precipitou-se sobre Randall Flagg, Walter das Sombras ou Walter Padick, que era sempre o mesmo. Houve novos gritos, mas não muitos. E então o velho inimigo de Roland não existia mais.

 

O homem fora quase-imortal (uma expressão pelo menos tão tola quanto “extremamente singular”) e deu uma lendária refeição. Após se empanturrar ao máximo, o primeiro impulso de Mordred — forte mas não de todo insuperável — foi vomitar. Ele se controlou, como controlou seu outro desejo, que era ainda mais forte: retomar sua identidade de bebê e dormir.

Se queria encontrar a porta da qual Walter havia falado, aquele era o momento para fazer a coisa e numa forma que lhe permitisse correr a uma grande velocidade: a forma da aranha. Assim, passando sem um olhar pelo cadáver dissecado, Mordred avançou entorpecido pelo alçapão, descendo os degraus e entrando num corredor abaixo. A passagem tinha um forte cheiro de álcalis e parecia ter sido aberta na própria rocha do deserto.

Todo o conhecimento de Walter — pelo menos mil e quinhentos anos dele — berravam em seu cérebro.

O rastro do homem das sombras acabou levando a um elevador. Quando uma garra arrepiada apertou o botão SUBIR, o único efeito foi um rumor cansado vindo muito de cima e um cheiro de couro de sapato sendo frito vindo dos fundos do painel de controle. Mordred, então, subiu pela parede interior do carro, empurrou a escotilha de manutenção com uma perna delgada e se espremeu por ela. Que tivesse de se espremer não o espantou; estava maior agora.

Subiu pelo cabo

(a pequena aranha pela mangueira d’água subindo)

até chegar à porta onde, pelo que diziam seus sentidos, Walter tomara o elevador, e daí levado na sua última descida. Vinte minutos mais tarde (e ainda enegrecido por todo aquele maravilhoso sangue; galões da coisa, ao que parecia), chegou a um lugar onde o rastro de Walter se bifurcava. Aquilo podia tê-lo confundido, pois no fundo ainda era uma criança, mas ali o odor e a percepção da presença de outros juntaram-se ao rastro de Walter. Mordred seguiu por aquele caminho, já agora mais preocupado com Roland e seu ka-tet que com as meras pegadas do mago. Walter devia tê-los seguido por algum tempo e depois feito a volta para encontrar Mordred. Para encontrar seu destino.

Vinte minutos depois, o carinha chegou a uma porta onde não havia palavra alguma, só um sigul que ele pôde entender com facilidade:

 

A dúvida era se devia abri-la de imediato ou esperar. A impaciência infantil clamava pela primeira hipótese, a prudência em formação pela segunda. Tinha se alimentado bem e não precisaria de mais alimento, principalmente se retornasse por algum tempo à forma humana. Além disso, Roland e seus amigos podiam estar ainda do outro lado daquela porta. E se realmente estivessem e sacassem as armas ao vê-lo? Eram diabolicamente rápidos e ele poderia ser morto pelos tiros.

Podia esperar; não sentia qualquer necessidade mais profunda, apesar da avidez da criança que queria tudo e queria já. Certamente não experimentava a vigorosa intensidade do ódio de Walter. Suas sensações eram mais complexas, tingidas pela tristeza, pela solidão e — sim, era melhor admitir isso — pelo amor. Mordred sentiu que queria desfrutar por algum tempo esta melancolia. Haveria bastante comida do outro lado daquela porta, tinha certeza disso. Ia comer e crescer. E ficar de olho. Ia vigiar seu pai, sua mãe-irmã e seus irmãos em ka, Eddie e Jake. Ia observá-los acampando à noite, acendendo suas fogueiras e formando seu círculo em volta delas. Ia vigiá-los de fora, que era seu lugar. Talvez percebessem sua presença e olhassem inquietos na escuridão, se perguntando o que havia lá fora.

Aproximou-se da porta, ergueu-se diante dela e tocou-a indagadoramente com uma das patas. Pena, sem dúvida, não haver um olho mágico. E quem sabe não seria mais seguro atravessar agora. O que Walter havia dito? Que o ka-tet de Roland pretendia soltar os Sapadores, quem quer que eles pudessem ser (isso estava na mente de Walter, mas Mordred não se preocupara em procurar).

Encontrarão muita coisa de que se ocupar no ponto mesmo onde saíram... Podem achar a recepção um pouco quente!

Será que Roland e seus filhos tinham sido mortos do outro lado? Emboscados? Mordred acreditava que saberia se isso tivesse acontecido. Teria sentido a coisa na mente, como um Feixemoto.

De qualquer modo, esperaria um pouco antes de se introduzir pela porta com o sigul da nuvem e do raio. E quando tivesse atravessado? Ora, ia encontrá-los. E ouvir alguma coisa da palestra deles. E observá-los, tanto acordados quanto dormindo. Mais que tudo, observaria aquele que Walter tinha chamado seu Pai Branco. Agora seu único verdadeiro pai, se Walter estivesse certo sobre o Rei Rubro ter ficado insano.

E no momento?

Agora posso dormir um pouquinho.

A aranha subiu pela parede daquele cômodo, que estava cheio de grandes objetos pendurados, e fiou uma teia. Mas foi o bebê — nu, e agora parecendo já ter um ano de idade — que dormiu nela, cabeça para baixo, o corpo bem acima de quaisquer predadores que pudessem ir caçar por ali.

 

A PORTA PARA TROVOADA

Quando os quatro viajantes despertaram de seu sono (Roland primeiro e após exatamente seis horas), havia mais popquins empilhados numa bandeja coberta de pano e também mais refrigerantes. Não havia, contudo, sinal do robô doméstico.

— Tudo bem, então — disse Roland após chamar Nigel pela terceira vez. — Ele nos disse que estava nas últimas; parece que enquanto dormíamos o ciclo se completou.

— Estava fazendo algo que não queria fazer — disse Jake. Seu rosto parecia pálido e inchado. De dormir demais, foi o primeiro pensamento de Roland, mas logo ele se perguntou como podia ser tão tolo. O garoto estivera chorando por Père Callahan.

— Fazendo o quê? — Eddie perguntou, passando a tralha sobre um ombro e levantando Susannah para apoiá-la no quadril. — Para quem? E por quê?

— Não sei — disse Jake. — Ele não queria que eu soubesse e não me senti no direito de me intrometer. Sei que era apenas um robô, mas com aquele belo sotaque inglês e tudo parecia muito mais.

— Isso é um escrúpulo que talvez você precise superar — disse Roland, o mais gentilmente que pôde.

— Estou muito pesada, docinho? — Susannah perguntou jovialmente a Eddie. — Ou talvez o que eu devesse perguntar fosse: “Está sentindo muita falta daquela boa e velha cadeira de rodas?” Para não mencionar o colete de ombro.

— Suze, você sempre detestou ser metida naquele suporte e nós dois sabemos disso.

— Num tava perguntando sobre isso, e tu sabe disso.

Roland sempre ficava fascinado quando Detta deslizava de mansinho para a voz de Susannah ou — de forma ainda mais fantasmagórica — para seu rosto. Susannah, no entanto, parecia inconsciente dessas incursões, como seu marido agora constatava.

— Eu te carregaria até o fim do mundo — disse Eddie sentimentalmente, beijando a ponta do nariz dela. — Claro, a não ser que você ganhe mais uns quatro ou cinco quilos. Então talvez eu tenha de deixá-la e procurar uma dama mais leve.

Ela lhe deu uma cotovelada — e não das mais suaves — e se virou para Roland:

— Este lugar é grande pra caramba quando a gente chega aqui embaixo. Como vamos achar a porta que leva a Trovoada?

Roland balançou a cabeça. Não sabia.

— E você, bacurau? — Eddie perguntou a Jake. — Você é o melhor no toque. Não pode usá-lo para encontrar a porta que queremos?

— Talvez se eu soubesse como começar — disse Jake —, mas não sei.

E com isso, os três olharam de novo para Roland. Três não, calculem quatro, porque até o maldito trapalhão estava olhando. Eddie teria feito uma piada para afastar o mal-estar que ia sentir se fosse alvo daquele olhar conjunto. Roland chegou a procurar uma. Alguma coisa sobre como olhos demais podem azedar o pastel, quem sabe? Não. Aquela tirada, que ouvira de Susannah, envolvia cozinheiros e caldo, não pastel. No fim, ele se limitou a dizer:

— Vamos sondar um pouco por aqui, como fazem os cães quando perdem o cheiro da presa, e ver o que encontramos.

— Talvez outra cadeira de rodas onde eu possa viajar — disse Susannah num tom animado. — Este horroroso rapaz branco tem posto as mãos por toda a minha intimidade.

Eddie deu-lhe um olhar sincero.

— Se fosse realmente pura, querida — ele disse —, não seria rachada como é.

 

Foi Oi quem realmente assumiu a coisa e conduziu-os, mas só quando retornaram à cozinha. Os humanos rodavam de um lado para o outro com uma espécie de falta de objetivo que Jake estava achando um tanto perturbadora quando Oi começou a latir o nome dele:

— Ake! Ake-Ake!

Eles se juntaram ao trapalhão numa porta semi-aberta que dizia NI-VEL-C. Depois de avançar um pouco pelo corredor, Oi sé virou e olhou para trás, olhos brilhantes. Quando viu que não o estavam seguindo, latiu desapontado.

— O que acham? — Roland perguntou. — Devemos segui-lo?

— Sim — disse Jake.

— Que cheiro ele pegou? — Eddie perguntou. — Você sabe?

— Talvez alguma coisa vinda do Dogan — disse Jake. — O verdadeiro, do outro lado do rio Whye. Onde eu e Oi ouvimos por acaso o pai de Ben Slightman e o... você sabe, o robô...

— Jake? — Eddie perguntou. — Tudo bem com você, garoto?

— Sim — disse Jake, embora não tivesse uma sensação de todo agradável ao se lembrar de como o pai de Benny gritara. Andy, o Robô Mensageiro, aparentemente cheio das reclamações de Slightman, tinha golpeado ou beliscado alguma coisa no cotovelo do homem (provavelmente um nervo) e Slightman havia “berrado como uma coruja”, como Roland diria (e provavelmente com pelo menos um leve desprezo). Slightman, o Jovem, estava agora além dessas coisas, é claro, e era essa percepção (um garoto, que fora um dia cheio de alegria e agora estava frio como barro em beira de rio) que tinha feito o filho de Elmer vacilar. Você tinha de morrer, sim, e Jake esperava poder fazer isso pelo menos moderadamente bem quando a hora chegasse. Afinal, já tivera algum treinamento sobre como fazer. Foi a idéia de todo esse tempo de sepultura que lhe deu calafrios. Esse tempo inativo. Esse tempo tipo repouse-quieto-e-continue-a-estar morto.

O cheiro de Andy (metálico, mas oleoso e singular) impregnara todo o Dogan na outra margem do rio Whye, pois ele e Slightman, o Velho, se encontraram muitas vezes lá antes da incursão dos Lobos, a incursão que ia se deparar com Roland e sua milícia improvisada. Aquele odor não era exatamente o mesmo, mas era interessante. Por certo era o único cheiro familiar que Oi tinha descoberto até agora, e ele queria segui-lo.

— Espere um minuto, espere um minuto — disse Eddie. — Estou vendo algo de que precisamos.

Pôs Susannah no chão, atravessou a cozinha e voltou empurrando uma mesa de aço inox provavelmente destinada a transportar pilhas de pratos lavados ou utensílios maiores.

— Cá em cima, beleza, é sua mesa — disse Eddie, pondo Susannah sobre a mesa.

Ela se sentiu bastante confortável, agarrando as bordas, mas mostrou um ar de dúvida.

— E quando houver um lance de degraus? E aí, garotinho doce?

— Garotinho doce queimará a ponte quando se deparar com ela — disse Eddie, empurrando a mesa com rodinhas para o corredor. — Oi, vamos lá! Em frente, você puxa o trenó!

— Oi! Nó! — O trapalhão correu com disposição à frente, abaixando de vez em quando a cabeça para mergulhar no cheiro, mas não aparentando grande preocupação. O cheiro era fresco e forte demais para precisar de muita atenção. Era o odor dos Lobos que tinha encontrado. Após uma hora de caminhada, passaram por uma porta do tamanho de hangar com a inscrição AOS CAVALOS. Atrás dela, a trilha levou-os para outra porta, agora com a inscrição ÁREA DE CONCENTRAÇÃO e SÓ PESSOAS AUTORIZADAS. (Que tivessem sido seguidos durante parte da caminhada por Walter das Sombras era coisa de que nenhum deles, nem mesmo Jake — forte no toque como era —, suspeitava. Pelo menos com o garoto o “bloqueador de pensamento” do homem do capuz funcionara bastante bem. Quando Walter teve certeza do lugar para onde o trapalhão os estava levando, dera meia-volta para ter uma palestra com Mordred — um erro, como ficou provado, mas pelo menos com uma consolação: ele jamais cometeria outro.)

Oi sentou-se diante da porta fechada, do tipo que abria para ambos os lados, com sua cauda retorcida de desenho animado presa ao traseiro, e latiu.

— Ake, abi-abi! Abi, ake!

— É, é — disse Jake —, num minuto. Segure sua água.

— ÁREA DE CONCENTRAÇÃO — disse Eddie. — Isto soa pelo menos moderadamente promissor.

Continuavam empurrando Susannah na mesa de aço inox, tendo vencido a única escada por que tiveram de passar (uma escada razoavelmente curta) sem muito problema. Susannah descera primeiro de bunda seu modo habitual de descer — enquanto Roland e Eddie carregavam a mesa atrás dela. Jake ia entre a mulher e os homens com o revólver de Eddie preparado, o comprido cano ornado por volutas apoiado na cavidade do ombro esquerdo, uma posição conhecida como “em guarda”.

Roland agora puxava seu próprio revólver, encostava-o na cavidade do ombro direito e empurrava a porta. Atravessou-a numa posição ligeiramente agachada, pronto para mergulhar para um lado ou saltar para trás se a situação o exigisse.

A situação não exigiu. Se Eddie tivesse sido o primeiro, podia ter acreditado (mesmo que só momentaneamente) estar sendo atacado por alguma espécie de Lobos voadores, como os macacos voadores de O Mágico de Oz. Roland, no entanto, não tinha exatamente excesso de imaginação e, embora a maioria das lâmpadas fluorescentes do teto estivessem apagadas naquele espaço enorme como um celeiro, ele não perdeu tempo — nem adrenalina — confundindo os objetos suspensos com qualquer outra coisa além do que realmente eram: carcaças de robôs quebrados esperando reparo.

— Vamos entrar — disse, e suas palavras voltaram ecoando para ele. De algum lugar, das sombras no alto, veio um agitar de asas. Andorinhas ou talvez rouxinóis que tinham encontrado o caminho para lá. — Acho que está tudo bem.

Entraram e olharam para o alto em respeitoso silêncio. Só o amigo quadrúpede de Jake não ficou impressionado. Oi aproveitava o intervalo para se arrumar, primeiro à esquerda, depois à direita.

— Vou dizer uma coisa a vocês — disse Susannah por fim, ainda sentada na mesa de aço rolante —, já vi muita coisa, mas nunca vi nada que pudesse se comparar a isso.

Nem os outros tinham visto. O enorme salão estava repleto de Lobos que pareciam suspensos no meio de um vôo. Alguns usavam os capuzes e capas de cavaleiros do apocalipse; outros balançavam vestindo apenas peitorais de ferro. Alguns estavam sem cabeça, outros sem braços e em alguns faltava uma perna ou outra. As cinzentas faces metálicas pareciam estar rosnando ou sorrindo, dependendo de como fossem atingidas pela luz. Caídos no chão, uma camada de capas verdes e um monte de manoplas também verdes. E a cerca de 40 metros de lá (o salão se estendia pelo menos por 200 metros de uma ponta à outra) havia um único cavalo cinza, deitado de costas, as pernas rigidamente esticadas para cima. Perdera a cabeça. Do pescoço emergiam emaranhados de fios encapados de amarelo, verde e vermelho.

Andaram vagarosamente atrás de Oi, que trotava com animada despreocupação. A mesa rolante fazia muito barulho lá dentro e o eco que retornava era um ronco sinistro. Susannah continuava olhando para cima. A princípio — e só porque havia agora pouca luz no que antes devia ter sido um local de muito brilho — achou que os Lobos estavam flutuando, mantidos por algum tipo de sistema antigravitacional. Então o grupo chegou a um lugar onde a maioria das lâmpadas fluorescentes ainda funcionava e ela viu os fios de sustentação.

— Os reparos aconteciam aqui — disse ela. — Isto é, se sobrara alguém para fazer isto.

— E acho que era aí onde eram providos de energia — disse Eddie apontando. Ao longo da parede oposta, que só agora começavam a ver com clareza, havia uma fileira de boxes. Havia lobos rigidamente parados em alguns. Outros estavam vazios e, nesses, via-se um certo número de tomadas para a plugagem em alguma rede.

Jake irrompeu de repente numa risada.

— Que foi? — Susannah perguntou. — O que é?

-— Nada — disse ele. — É só que... — Seu riso tornou a ressoar, parecendo fabulosamente jovem naquela câmara sombria. — É só que parecem passageiros de trem, na estação Pennsylvania, fazendo fila junto aos telefones públicos para ligar para casa ou para o escritório.

Eddie e Susannah pensaram um momento naquilo e também explodiram numa risada. Então, Roland pensou, a visão de Jake devia ser verdadeira. Depois de tudo que passaram, isto não o surpreendia. O que o deixava feliz era ouvir o riso do garoto. Jake, sem dúvida, tinha toda a razão em chorar pelo Père, que fora seu amigo, mas era bom que ainda pudesse rir. Muito bom mesmo.

 

A porta que queriam ficava à esquerda dos boxes de recarga. Todos identificaram de imediato o sigul nuvem-e-relâmpago que havia nela pela nota que “R.F.” tinha deixado no verso de uma folha do Diário Marrom de Oz, mas a porta em si era muito diferente das que tinham encontrado até ali; tirando a nuvem e o relâmpago, parecia estritamente utilitária. Embora estivesse pintada de verde, perceberam que era de aço, não de carvalho ou de alguma pesada madeira reutilizada. Em volta dela havia uma moldura cinzenta, também de aço, com numerosos e grossíssimos fios elétricos insulados de cada lado. Os fios entravam em uma das paredes. De trás dessa parede vinha um ronco áspero que Eddie achou que estava reconhecendo.

— Roland — ele disse em voz baixa —, está lembrado daquele Portal do Feixe a que nós chegamos bem no início da viagem? Antes mesmo de Jake se unir ao nosso grupo de gente feliz.

Roland abanou a cabeça e confirmou:

— Onde atiramos nos Pequenos Guardiães. O séquito de Shardik. Aqueles que ainda sobreviviam.

Eddie assentiu.

— Encostei minha orelha naquela porta e ouvi. “Tudo silencioso nas salas da morte” pensei. “Estas são as salas da morte, onde as aranhas tecem e os grandes circuitos caem, um a um, em silêncio.”

Na realidade, Eddie dissera aquilo em voz alta, mas Roland não estava espantado por Eddie não se lembrar disto; estivera hipnotizado ou próximo disso.

— Estávamos então do lado de fora — disse Eddie. — Agora estamos no interior. — Apontou para a porta que ia para Trovoada, depois traçou com um dedo o curso dos fios gordos. — A maquinaria que transmite energia através deles não parece muito saudável. Se vamos usar esta coisa, acho que devemos pôr mãos à obra. A qualquer momento isso pode parar para sempre e aí o que vamos fazer?

— Chamamos a Triple-A Viagens — disse Susannah num tom sonhador.

— Acho que não. Íamos ser torrados... como era mesmo, Roland?

— Torrados no forno. “Estas são as salas da ruína”, isso foi você quem disse. Está lembrado?

— Eu disse isso? E em voz alta?

— Foi. — Roland levou-os até a porta. Estendeu a mão, tocou amaçaneta e recuou.

— Quente? — Jake perguntou.

Roland balançou negativamente a cabeça.

— Eletrificada? — Susannah perguntou.

O pistoleiro tornou a negar.

— Então ande, vá em frente — disse Eddie. — A dança continua.

Todos se amontoaram atrás de Roland. Eddie estava mais uma vez segurando Susannah pelo quadril e Jake tinha posto Oi no colo. O trapalhão arfava por entre o habitual sorriso alegre e dentro dos círculos dourados os olhos brilhavam como ônix polido.

— O que vamos fazer... — se estiver trancada, era como Jake pretendia terminar, mas, antes que o fizesse, Roland girou a maçaneta com a mão direita (tinha o revólver que lhe restava na esquerda) e puxou a porta. O barulho das máquinas atrás da parede aumentou um pouco, o que pareceu quase desesperador. Jake achou que estava sentindo o cheiro de alguma coisa quente: isolante queimado, talvez. Acabava de dizer a si mesmo para não ficar imaginando coisas quando alguns ventiladores começaram a funcionar no alto do galpão. Eram barulhentos como caças taxiando num filme sobre a Segunda Guerra Mundial e todos deram um salto. Susannah chegou a pôr uma mão na cabeça, como se quisesse se proteger de objetos caindo.

— Vamos — Roland falou asperamente. — Rápido! — Deu um passo à frente sem um único olhar para trás. Durante o breve momento em que esteve a meio caminho entre dentro e fora, pareceu estar quebrado em duas partes. Atrás do pistoleiro, Jake pôde ver uma sala vasta e sombria, muito maior que a Área de Concentração. E linhas prateadas se cruzando, que pareciam traços de pura luz.

— Vamos, Jake — disse Susannah. — Você agora.

Jake respirou fundo e passou. Não houve correnteza forte, tal como havia experimentado na Gruta das Vozes, nem estrépito de sinos. Nenhuma impressão de estar entrando em todash, nem sequer momentânea. Em vez disso, teve a horrível sensação de ser virado pelo avesso e foi atacado pela náusea mais violenta que jamais conhecera. Deu um passo e o joelho se curvou. Um momento depois estava arriado em ambos os joelhos. Oi pulou de seus braços. Jake mal reparou. Começou a vomitar. Roland estava de quatro ao lado dele, fazendo o mesmo. De algum lugar veio o barulho baixo, mas nítido, de descarga de motor, o persistente ding-ding-ding-ding de um sino e uma ecoante voz amplificada.

Jake virou a cabeça, pretendendo dizer a Roland que agora entendia por que tinham mandado robôs incursionarem através daquela maldita porta e então tornou a vomitar. Os restos da última refeição escorriam, soltando vapor pelo concreto rachado.

De repente Susannah estava gritando: “Não! Não!”, com uma voz transtornada. Depois:

— Me ponha no chão! Eddie, me ponha no chão antes que eu... — Sua voz foi interrompida por ásperos sons ofegantes. Eddie conseguiu depositá-la no concreto rachado antes de ela virar a cabeça e se juntar ao Coro do Vômito.

Oi caiu de lado, com uma tosse rouca, depois voltou a ficar de pé. Parecia tonto, desorientado... ou talvez Jake estivesse somente atribuindo ao trapalhão o modo como ele se sentia.

Quando a náusea começava a diminuir um pouco, Jake ouviu passos estalando, ecoando. Três homens corriam para eles, todos vestindo calças jeans, camisas de cambraia azul e meias e calçados estranhos, que pareciam artesanais. Um deles, um sujeito idoso com um monte desgrenhado de cabelo branco, estava à frente dos outros dois. Todos os três tinham as mãos no ar.

— Pistoleiros! — gritou o homem de cabelo branco. — Vocês são pistoleiros? Se são, não atirem! Estamos do lado de vocês!

Roland, que não parecia estar em condições de atirar em ninguém (se bem que eu não gostaria de colocar isto à prova, pensou Jake), tentou se levantar, quase conseguiu, mas voltou a cair sobre um joelho e a produzir um novo ruído estrangulado de vômito. O homem de cabelo branco pegou um de seus pulsos e levantou-o sem cerimônia.

— O enjôo é muito ruim — disse o velho —, ninguém sabe disso melhor que eu. Felizmente passa depressa. Vocês têm de vir conosco agora. Sei que não sentem a menor disposição de fazer isto, mas façam, há um alarme no escritório do Ki’-dam...

Ele parou. Os olhos, quase tão azuis quanto os de Roland, estavam se arregalando. Mesmo na obscuridade Jake conseguiu ver a face do velho perdendo a cor. Seus amigos tinham se emparelhado com ele, mas ele parecia nem reparar. Era para Jake Chambers que estava olhando.

— Bobby? — disse num tom não muito mais alto que um sussurro. — Meu Deus, é Bobby Garfield?

 

STEEK-TETE

Os companheiros do cavalheiro de cabelo branco eram bem mais jovens (Roland achou que um deles ainda não chegara aos vinte) e ambos pareciam absolutamente aterrorizados. Medo de serem baleados por engano, é claro — por isso é que tinham saído rapidamente do escuro com as mãos levantadas —, mas medo também de outra coisa, porque já tinha de estar claro para eles que não seriam assassinados de imediato.

O homem mais velho deu um solavanco quase espasmódico, como se safando de algum lugar muito particular.

— Claro que você não é Bobby — ele murmurou. — Para começar, o cabelo é de outra cor... e...

— Ted, temos de sair daqui — disse ansioso o mais jovem dos três. E estou querendo dizer inmediatamento.

— Sim — disse o homem mais velho, mas seu olhar continuava em Jake. Pôs a mão sobre os olhos (Eddie achou que parecia um telepata esperto se preparando para iniciar uma bela e rotineira leitura de mentes), depois tornou a baixá-la. — Sim, é claro. — Olhou para Roland. — Você é o dinh? Roland de Gilead? Roland do Eld?

— Sim, eu... — Roland começou, depois se curvou e pareceu que ia vomitar de novo. Nada saiu a não ser um comprido e prateado filete de cuspe; a parte da sopa e dos sanduíches de Nigel já fora perdida. Então, num cumprimento, ele ergueu um punho ligeiramente trêmulo para a testa e disse: — Sim. Você me pegou num mau momento, sai.

— Isso não importa — respondeu o homem de cabelo branco. — Quer vir conosco? Você e seu ka-tet?

— Com certeza — disse Roland.

Atrás dele, Eddie se curvou e vomitou de novo.

— Porra! — gritou com uma voz engasgada. — E eu achava que era ruim viajar pela Greyhound! Essa coisa faz os ônibus parecerem um... um...

— Um camarote de primeira classe do Queen Mary — disse Susannah com voz fraca.

— Vamos... já! — disse o homem mais jovem num tom de urgência. — Se o Fuinha estiver a caminho com seu regimento taheen, chegará em cinco minutos! O gato sabe ganhar terreno!

— Sim — concordou o homem de cabelos brancos. — Temos realmente de ir, sr. Deschain.

— Vão na frente — disse Roland. — Nós os seguiremos.

 

Não tinham saído numa estação ferroviária, mas numa espécie de colossal pátio de manobras coberto por um telhado. As linhas prateadas que Jake tinha visto eram linhas de trem se entrecruzando, talvez umas setenta diferentes duplas de trilhos. Em algumas, locomotivas atarracadas, automatizadas, andavam de um lado para o outro em manobras que tinham de estar há séculos obsoletas. Uma empurrava um vagão-plataforma cheio de enferrujadas vigas de ferro. A outra começou a gritar numa voz de autômato:

— Camka-A, por favor queira se dirigir ao portão 9. Camka-A para o portão 9, por favor.

Saltar como um boneco para cima e para baixo no quadril de Eddie começou a fazer Susannah sentir-se novamente muito enjoada, mas ela pegara como um resfriado a urgência do homem de cabelos brancos. Além disso, agora sabia o que eram os taheens: monstruosas criaturas com corpo de seres humanos e cabeças de pássaros ou outros animais. Eles a faziam lembrar as coisas naquela pintura de Bosch, O Jardim das Delícias Terrestres.

— Talvez eu tenha de vomitar outra vez, torrão de açúcar —- disse ela. — Não se atreva a perder o ritmo se for o caso.

Eddie deixou escapar um grunhido que ela tomou como concordância. Podia ver o suor escorrendo no rosto pálido de Eddie e teve pena dele. Estava igualmente enjoado. Agora Susannah sabia como era passar por um aparelho de teletransportação científica que já não estivesse funcionando muito bem. Não sabia se seria capaz de se obrigar a viver outra dessas experiências.

Jake ergueu os olhos e viu um telhado feito de um milhão de placas de diferentes formas e tamanhos; era como olhar para um mosaico de azulejos, todos pintados uniformemente de cinza-escuro. Então um pássaro passou voando por um deles, e ele percebeu que não eram azulejos o que havia lá em cima, mas vidraças, algumas quebradas. Aquele cinza-escuro era, ao que parecia, simplesmente como o mundo exterior surgia em Trovoada. Como um eclipse permanente, ele pensou e estremeceu. A seu lado, Oi produziu outra seqüência daquelas tosses roucas e secas, mas logo continuou trotando, balançando a cabeça.

 

Passaram por uma coleção de maquinário ocioso — geradores, talvez —, depois entraram num labirinto desordenado de vagões de trem que eram muito diferentes daqueles puxados pelo Mono Blaine. Alguns lembravam a Susannah o tipo de vagões de passageiros diários da New York Central, que ela podia ter visto na Grand Central Station em seu próprio quando de 1964. Como se para sublinhar esta noção, ela reparou num vagão com a inscrição CARRO BAR pintada do lado. Contudo, havia outros que pareciam muito mais velhos que isso; feitos de estanho ou de um aço escuro com rebites, em vez de aço cromado fosco, pareciam o tipo de vagão de passageiros que aparecem num velho faroeste ou num enlatado de TV como Maverick. Ao lado de um desses vagões havia um robô com fios brotando desordenadamente do pescoço. Estava segurando a cabeça debaixo do braço e nela um boné com distintivo dizia: CONDUTOR CLASSE A.

A princípio Susannah tentou não perder a conta das voltas à esquerda e à direita que faziam naquele labirinto, mas logo achou que era uma tarefa impossível. E eles finalmente emergiram a cerca de 50 metros de um barraco, com paredes de lambris e uma inscrição na porta: CARGA/BAGAGEM EXTRAVIADA. Entre o grupo e o barraco havia uma superfície de cimento cheio de rachaduras e salpicado com carrinhos de bagagem abandonados, pilhas de caixotes e dois Lobos mortos. Não, Susannah pensou, são três. O terceiro estava apoiado na parede, numa sombra profunda, bem no fundo do canto da CARGA/BAGAGEM EXTRAVIADA.

— Vamos — disse o velho com o tufo de cabelos brancos —, agora já não falta muito. Mas temos de nos apressar, porque se os taheens da Casa da Dor nos pegarem, eles os matarão.

— Matariam também a nós — disse o mais novo dos três, tirando o cabelo dos olhos. — Todos exceto Ted. Ted seria o único indispensável. Ele só é modesto demais para dizer isso.

Depois de CARGA/BAGAGEM EXTRAVIADA havia (o que era bastante razoável, Susannah pensou) ESCRITÓRIO DE EXPEDIÇÃO. O sujeito de cabelos brancos mexeu na maçaneta da porta. Estava trancada. O que pareceu antes agradá-lo que transtorná-lo.

— Dinky? — chamou.

Dinky, ao que parecia, era o mais jovem dos três. Ele se apoderou da maçaneta e Susannah ouviu um som de alguma coisa estalando lá de dentro. Dinky deu um passo atrás. Desta vez, quando Ted mexeu na maçaneta, ela abriu facilmente.

Penetraram num escritório escuro, dividido por um balcão alto. Em cima do balcão havia uma placa que quase deu a Susannah uma sensação de nostalgia: PEGUE O NÚMERO E ESPERE.

Quando a porta foi fechada, Dinky agarrou mais uma vez a maçaneta. Houve outro estalo vigoroso.

— Acabou de trancá-la de novo — disse Jake. O tom era acusador, mas havia um sorriso no rosto e a cor voltava a suas faces. — Não trancou?

— Agora não, por favor — disse Ted, o homem de cabelos brancos. — Não temos tempo. Sigam-me, por favor.

Puxou para cima uma seção do balcão e fez com que passassem. Do outro lado havia uma área de escritório com dois robôs, que pareciam há muito tempo mortos, e três esqueletos.

— Diabo, por que estamos sempre encontrando ossos? — Eddie perguntou. Assim como Jake, estava se sentindo melhor e só pensava em voz alta; de fato não esperava uma resposta. Mas conseguiu uma. De Ted.

— Já ouviu falar do Rei Rubro, meu jovem? Já ouviu, é claro que sim. Creio que, a certa altura, ele cobriu toda esta parte do mundo com gás venenoso. Provavelmente por pura diversão. Matou quase todos. A escuridão que você vê é um efeito que persiste até hoje. Ele é louco, claro. O que constitui uma boa parte do problema. Por aqui.

Conduziu-os através de uma porta com a inscrição PARTICULAR. Entraram numa sala que provavelmente já pertencera a algum mandachuva no mundo maravilhoso da expedição de cargas. Susannah viu pegadas no chão, sugerindo que aquele lugar fora recentemente visitado. Talvez por aqueles mesmos três homens. Havia uma escrivaninha sob 15 centímetros de pó e penugem, duas cadeiras e uma poltrona. Atrás da escrivaninha havia uma janela. Antigamente fora coberta por venezianas, que agora jaziam caídas no chão, revelando uma vista ao mesmo tempo proibitiva e fascinante. A terra além da estação Trovoada lembrava as extensões desertas e planas na margem oposta do rio Whye, mas era uma área mais pedregosa e ainda mais árida.

E, é claro, era mais escura.

Trilhos (em alguns havia trens eternamente parados) de lá se irradiavam como fios de uma teia de aranha feita de aço. Sobre eles, um céu da mais escura ardósia cinzenta parecia se arquear quase a ponto de tocar a terra. Entre céu e terra, o ar parecia um tanto espesso; Susannah sentiu que contraía os olhos para enxergar as coisas, embora não parecesse haver névoa ou fumaça na atmosfera.

— Dinky — disse o homem de cabelo branco.

— Sim, Ted.

— O que deixou para nosso amigo, o Fuinha?

— Um operário de manutenção — respondeu Dinky. — Vai parecer que ele conseguiu entrar pela porta de Fedic, disparou o alarme e acabou frito em um trilho na extremidade do pátio de manobras. Sem dúvida um bom número ainda continua eletrificado. A gente está sempre vendo pássaros mortos por aqui, tostados de tão fritos, até mesmo uma rola de bom tamanho e pequena demais para ativar o alarme. Um operário, então... E tenho realmente a certeza de que ele vai cair nessa. O Fuinha não é estúpido, mas a cena será bem crível.

— Bom. Isso é muito bom. Olhem lá, pistoleiros! — Ted apontou para um escarpado aglomerado de rocha no horizonte. Susannah pôde avistá-lo com facilidade; naquele campo escuro todos os horizontes pareciam próximos. Não conseguiu, no entanto, ver nada de notável ali, só manchas mais profundas de escuridão e estéreis encostas de rocha caída. — Isto é Can Steek-Tete.

— A Pequena Agulha — disse Roland.

— Excelente tradução. É para onde estamos indo.

O coração de Susannah se apertou. A montanha — ou talvez fosse melhor chamar de morrinho uma coisa daquelas — tinha de estar a uns 12 ou 15 quilômetros de distância. Seja como for, no limite mesmo da visão. Eddie, Roland e os dois homens mais novos do grupo de Ted não conseguiriam carregá-la até aquele ponto, ela achava que não. E, além disso, como ter certeza de que poderiam confiar naqueles novos companheiros de viagem?

Por outro lado, ela pensou, que outra opção nós temos?

— Não precisará ser carregada — Ted lhe disse —, mas Stanley vai precisar da sua ajuda. Vamos dar nossas mãos, como pessoas numa sessão espírita. Quero que todos vocês visualizem essa formação rochosa quando começarmos a atravessar. E tenham o nome bem vivo em suas mentes: Steek-Tete, a Pequena Escarpa.

—Ô, ô! — Eddie exclamou. Tinham se deparado com mais uma porta, agora a porta aberta de um guarda-roupa. Cabides de ferro e um antigo blazer vermelho pendurado. Eddie agarrou o ombro de Ted e fez com que ele se virasse. — Atravessar o quê? E atravessarmos para onde? Porque se for uma porta como a última que...

Ted ergueu os olhos para Eddie — teve de levantá-los, porque Eddie era mais alto — e Susannah viu algo espantoso e desanimador: os olhos de Ted pareciam estar se sacudindo nas órbitas. Mais um momento e ela percebeu que não era bem esse o caso. Na realidade, as pupilas do homem estavam aumentando e depois encolhendo com sinistra rapidez. Era como se não conseguissem decidir se estava claro ou escuro.

— Não é absolutamente uma porta que vamos atravessar, pelo menos não do tipo com o qual talvez já estejam familiarizados. Tem de confiar em mim, meu jovem. Escute.

Ficaram todos em silêncio e Susannah ouviu o ronco de motores se aproximando.

— É o Fuinha — disse Ted. — Haverá taheens com ele, pelo menos quatro, talvez meia dúzia. Se nos avistarem aqui, Dink e Stanley quase certamente vão morrer. Na realidade não precisam nos prender, mas apenas nos avistar. Estamos arriscando nossas vidas por vocês. Isto não é um jogo e preciso que parem de me fazer perguntas e me sigam!

— Vamos seguir — disse Roland. — E vamos pensar na Pequena Agulha.

— Steek-Tete — Susannah concordou.

— Não voltarão a ficar enjoados — disse Dinky. — Prometo.

— Graças a Deus! — respondeu Jake.

— Ga-Deus — Oi concordou.

Stanley, o terceiro membro do grupo de Ted, continuou sem dizer absolutamente nada.

 

Era apenas um guarda-roupa, e aliás um guarda-roupa de escritório — estreito e cheirando a mofo. O antigo blazer vermelho tinha uma plaqueta de latão no bolso da frente com as palavras CHEFE DE EXPEDIÇÃO estampadas nela. Stanley foi abrindo caminho para os fundos do guarda-roupa, que não passava de uma parede branca. Os cabides batiam uns nos outros fazendo barulho. Jake teve de ver por onde andava para não cair em cima de Oi. Ele sempre tivera uma leve predisposição para a claustrofobia e já começava a sentir os dedos gorduchos do Senhor Pânico acariciando seu pescoço: primeiro de um lado, depois do outro. Os ’Rizas tilintavam baixo em sua saca. Sete pessoas e um zé-trapalhão amontoados no guarda-roupa de um escritório abandonado? Era loucura. Ele ainda podia ouvir o ronco dos motores se aproximando. O encarregado daquilo chamava-se O Fuinha.

— Dêem as mãos — Ted murmurou. — E se concentrem.

— Steek-Tete — Susannah repetiu, mas, para Jake, desta vez ela soava pouco convincente.

— Pequena Ag... — Eddie começou, e então se deteve. A parede branca no fundo do guarda-roupa tinha desaparecido. Em seu lugar havia agora uma pequena clareira com grandes pedregulhos de um lado e uma encosta íngreme, forrada de mato, do outro. Jake estava disposto a apostar que aquilo era o tal de Steek-Tete e, sendo um caminho para escapar daquele espaço fechado, estava deliciado em vê-lo.

Stanley deu um pequeno gemido de dor, esforço ou ambos. Os olhos do homem estavam fechados e lágrimas escorriam de suas pálpebras.

— Agora — disse Ted —, abra o nosso caminho, Stanley. — E para os outros, acrescentou: — E tentem ajudá-lo! Ajudem, pelo amor de seus pais!

Jake tentou se concentrar numa imagem do morrinho que Ted apontara pela janela do escritório e começou a avançar. Segurava a mão de Roland na frente dele e a de Susannah atrás. Sentiu um bafo de ar frio na pele suada e então atravessou para a encosta de Steek-Tete em Trovoada, pensando brevemente no sr. C. S. Lewis e no maravilhoso guarda-roupa que levava a Narnia.

 

Não saíram em Narnia.

Estava frio na encosta do morro e Jake logo começou a tremer. Ao olhar pelo ombro, ele não viu sinal do portal que tinham atravessado. A atmosfera era sombria e cheirava a alguma coisa pungente, não particularmente agradável, como querosene. Havia uma pequena gruta quase escondida no flanco da encosta (realmente não era muito mais que outro guarda-roupa) e Ted trouxe de lá uma pilha de cobertores e um cantil onde havia uma água amarga, com gosto de álcalis. Jake e Roland se embrulharam em cobertores. Eddie pegou dois e se enrolou com Susannah. Jake, tentando não deixar que os dentes começassem a bater (se começassem, não haveria como pará-los), invejava o calor extra que o casal produzia.

Dink também havia se embrulhado num cobertor, mas nem Ted nem Stanley pareciam sentir o frio.

— Olhem ali embaixo — Ted convidou Roland e os outros. Ele estava apontando para a teia dos trilhos. Jake pôde ver o irregular telhado de vidro do pátio de manobras e uma estrutura de telhado verde ao lado, que tinha que ter uns 800 metros de comprimento. Saíam trilhos em cada direção. Estação Trovoada, ele se maravilhou. Onde os Lobos põem as crianças seqüestradas no trem e despacham-nas ao longo do Caminho do Feixe Luminoso até Fedic. E onde as trazem de volta após elas serem transformadas em roonts.

Mesmo depois de tudo por que tinha passado, era difícil para Jake acreditar que, há menos de dois minutos, estavam lá embaixo, a 10 ou 12 quilômetros de distância. Desconfiava que todos tinham contribuído para manter o portal aberto, mas fora principalmente o sujeito chamado Stanley que o criara. Agora ele parecia pálido e cansado, quase esgotado. A certa altura seus pés vacilaram, mas Dink (um apelido muito infeliz,* na humilde opinião de Jake) agarrou-lhe o braço e conseguiu firmá-lo. Stanley pareceu nem reparar. Olhava para Roland com temor respeitoso.

Não apenas respeito, Jake pensou, e também não exatamente medo. Alguma outra coisa. O quê?

Duas carroças motorizadas com grandes pneus-balão — ATVs — aproximavam-se da estação. Jake presumiu que se tratasse do Fuinha (fosse ele quem fosse) e seus camaradas taheens.

— Como vocês podem ter deduzido — disse Ted —, há um alarme no escritório do supervisor do Devar-Toi. No gabinete do carcereiro, se preferirem. Ele dispara quando alguém ou alguma coisa usa a porta entre a área de concentração de Fedic e a estação...

— Acredito que o termo que vocês usavam — disse Roland secamente — não era supervisor nem carcereiro, mas ki’-dam.

Dink riu.

— É uma boa sacada sua, parceiro.

— O que quer dizer ki’-dam? — Jake perguntou, embora tivesse uma certa noção. Havia alguns termos que as pessoas usavam na Calla: cabeçacaixa, coraçãocaixa, ki’caixa. Que significavam, respectivamente, os processos de pensamento, as emoções e as funções inferiores. Funções animais, talvez alguns dissessem; ki’caixa podia ser traduzido como merdacaixa se você era um sujeito mais para vulgar. Ted deu de ombros.

— Ki’-dam significa merda-miolos. É o apelido que Dinky pôs em sai Prentiss, o chefe Devar. Mas você já sabia disso, não é?

— Acho que sim — disse Jake. — Mais ou menos.

Ted olhou-o demoradamente e, quando Jake identificou a expressão, ela ajudou-o a definir como Stanley estava olhando para Roland: não com medo, mas com fascinação. Jake realmente desconfiava que Ted ainda estava pensando em quanto ele se parecia com um tal de Bobby e tinha bastante certeza de que Ted sabia que ele possuía o toque. E qual era a fonte da fascinação de Stanley por Roland? Ou talvez estivesse exagerando um pouco a coisa. Talvez o mistério fosse apenas Stanley jamais ter esperado encontrar um pistoleiro em carne e osso.

De repente o olhar de Ted se desviou de Jake e voltou a Roland.

— Agora olhem para lá — disse ele.

— Ô! — Eddie gritou. — Que diabo...?

Susannah estava ao mesmo tempo achando aquilo divertido e impressionante. O que Ted apontava lhe trazia à memória Os Dez Mandamentos, o épico bíblico de Cecil B. DeMille, especialmente a parte em que o mar Vermelho, aberto por Moisés, ficava curiosamente parecido com uma gelatina e a voz de Deus, vindo da chama do arbusto, realmente lembrava bastante a de Charles Laughton. Contudo, era impressionante. Pelo menos no estilo barato dos efeitos especiais dos filmes de Hollywood.

O que viam era um vasto, esplêndido raio de luz do sol projetando-se de um buraco nas nuvens bojudas. Ele cortava a atmosfera estranhamente escura como um facho de lanterna e iluminava um complexo de construções que devia estar a uns 10 quilômetros da estação Trovoada. E “a uns 10 quilômetros” era realmente tudo que se podia dizer, porque não havia mais norte nem sul naquele mundo, pelo menos não norte e sul em que se pudesse confiar. Agora havia apenas o Caminho do Feixe Luminoso.

— Dinky, há um binóculo na...

— Na gruta de baixo, certo?

— Não, eu o subi da última vez que estivemos aqui — Ted respondeu com uma paciência cuidadosamente administrada. — Está naquela pilha de caixotes que há lá dentro. Pegue-o, por favor.

Eddie mal reparou naquele aparte. Estava fascinado demais (e muito contente) com aquele amplo raio de sol brilhando sobre um verde e simpático pedaço de terra, tão improvável naquele deserto escuro e estéril quanto... bem, ele supôs, improvável como o Central Park devia parecer a turistas do Meio-Oeste fazendo uma primeira viagem a Nova York.

Ele pôde ver prédios que pareciam dormitórios de faculdade — de boas faculdades — e outros que pareciam velhas e imponentes mansões senhoriais com grandes extensões de gramados verdes na frente. No lado oposto da área banhada pelo sol havia uma espécie de rua cheia de lojas. A perfeita rua principal de uma pequena cidade da América, exceto por uma coisa: ela acabava sempre num deserto sombrio e pedregoso. Eddie viu quatro torres de pedra, as paredes aprazivelmente forradas pela hera verde. Não, eram seis torres. As outras duas estavam quase inteiramente ocultas por fileiras de elegantes e velhos olmos. Olmos no deserto!

Dink voltou com o binóculo e ofereceu-o a Roland, que fez não com a cabeça.

— Não o leve a mal — disse Eddie. — Os olhos dele... bem, digamos que são demais. Mas eu não me importaria de dar uma espiadinha...

— Eu também não — disse Susannah.

Eddie entregou-lhe o binóculo.

— Primeiro as damas.

— Não, realmente, eu...

— Parem com isso — e foi quase um rosnado de Ted. — Nosso tempo aqui é curto, nosso risco enorme. Por favor, não desperdicem um e aumentem outro.

Susannah se sentiu atingida, mas conteve uma resposta. Pegou o binóculo, levou-o aos olhos e ajustou. O que viu meramente intensificou sua sensação de olhar para um pequeno, mas perfeito campus de universidade que se fundia belamente com o povoado vizinho. Nenhuma tensão entre estudantes e residentes permanentes aqui, eu aposto, ela pensou. Aposto que a Vila dos Olmos e o U Sapador convivem como manteiga de amendoim e geléia, Abbott e Costello, mão e luva. Sempre que havia uma história de Ray Bradbury no Saturday Evening Post, ela a procurava de imediato, adorava Bradbury, e o que estava olhando através do binóculo a fazia pensar em Greentown, a cidadezinha do Illinois idealizada por Bradbury. Um lugar onde adultos sentavam nas varandas em cadeiras de balanço, tomando limonada, e as crianças, no crepúsculo ziguezagueado de vaga-lumes das noites de verão, brincavam de pega-pega com lanternas. E o câmpus da universidade nas proximidades? Nada de bebida ali, pelo menos não em excesso. Nem joysticks, anfetaminas ou rock and roll. Seria um lugar onde as moças dariam beijos de boa-noite nos rapazes com casto ardor e estavam felizes ao assinar a presença na entrada para que a inspetora do dormitório não ficasse pensando mal delas. Um lugar onde o sol brilhava o dia inteiro, onde Perry Como e as Irmãs Andrews cantavam no rádio e ninguém suspeitava que na verdade estava vivendo nas ruínas de um mundo que tinha seguido adiante.

Não, ela pensou friamente. Há quem saiba. Foi por isso que esses três vieram ao nosso encontro.

— Esse é o Devar-Toi — Roland disse secamente. Não era uma pergunta.

— É — disse Dinky. — O bom e velho Devar-Toi. — Ele parou ao lado de Roland e apontou para um grande prédio branco perto dos dormitórios. — Está vendo aquele branco? É a Casa da Dor, onde vivem os can-toi. Ted os chama de homens baixos. São híbridos de humanos com taheens. E eles não chamam isso aí de Devar-Toi, chamam de Algul Siento, que quer dizer...

— Céu Azul — disse Roland e Jake percebeu por quê: todos os prédios, exceto as torres rochosas, tinham telhados azuis. Não Narnia, mas Céu Azul. Onde um monte de pessoas estavam ocupadas provocando o fim do mundo.

Todos os mundos.

 

— Parece o lugar mais agradável que existe, pelo menos desde a queda do Mundo Interior — disse Ted. — Não é?

— Muito bonito, sem dúvida — Eddie concordou. Tinha pelo menos umas mil perguntas a fazer e achava que Suze e Jake, somados os dois, teriam provavelmente outras mil, mas não era hora de perguntar. Seja como for, ele continuava olhando para aquele maravilhoso e pequeno oásis de 40 hectares. O único ponto ensolarado e verde em toda a Trovoada. O único lugar bonito. E por que não? Nada a não ser o melhor para Nossos Companheiros Sapadores.

E, a despeito de si mesmo, uma pergunta acabou escapando.

— Ted, por que o Rei Rubro quer pôr a Torre abaixo? Você sabe?

Ted dispensou-lhe uma rápida olhada. Eddie achou-a fria, talvez até glacial, mas logo o homem sorriu. E quando o fez, todo o seu rosto se iluminou. Além disso os olhos tinham parado de dar aquela sinistra sacudida dentro-e-fora, o que representava uma grande melhoria.

— Ele é louco — disse Ted. — Mais doido que uma salada de frutas. Pirado como o Gato de Botas. Ainda não tinha dito isso a vocês? — E então, antes que Eddie pudesse responder: — Sim, este lugar é bem bonito. Quer o chamem Devar-Toi, Grande Prisão ou Algul Siento, parece um deleite para os olhos. É um deleite para os olhos.

— Acomodações da mais alta categoria — Dinky concordou. Até Stanley contemplava o complexo banhado de sol com uma certa expressão de reverência.

— A comida é da melhor — Ted continuou —, e o programa duplo no Cine-Teatro Jóia muda duas vezes por semana. Quem não gostar de ir ao cinema, pode levar os filmes para casa em DVDs.

— O que é isso? — Eddie perguntou, mas logo sacudiu a cabeça. — Não importa. Continue.

Ted deu de ombros, como se a dizer. Do que mais se pode precisar?

— O sexo é absolutamente fantástico — disse Dinky. — Simulado, mas incrível. — Só numa semana transei com Marilyn Monroe, Madonna e Nicole Kidman. — Disse isto com um certo embaraço, mas orgulhoso. — Se quisesse, poderia ter tido todas ao mesmo tempo. O único modo de sentir que não são reais é soprar diretamente sobre elas, de muito perto. Quando se faz isso, a parte soprada... costuma desaparecer. É meio perturbador.

— Birita? Drogas? — Eddie perguntou.

— Birita em quantidades limitadas — Ted respondeu. — Se você se interessar por enologia, vai experimentar novas maravilhas a cada refeição.

— O que é enologia? — Jake perguntou.

— O estudo do esnobismo vinhático, pãozinho doce — disse Susannah.

— Se você chega ao Céu Azul viciado em alguma coisa — disse Din-ky —, vão livrá-lo do vício. De modo gentil. E os poucos caras que se mostraram cabeças especialmente duras nessa área... — Seus olhos encontraram brevemente os de Ted. Ted deu de ombros e abanou a cabeça. — Esses caras desapareceram.

— Na verdade, os homens baixos não precisam de mais Sapadores — disse Ted. — Já têm um número suficiente para concluir o trabalho sem problemas.

— Quantos são? — Roland perguntou.

— Cerca de trezentos — disse Dinky.

— Trezentos e sete, para ser exato — disse Ted. — Estamos alojados em cinco dormitórios, embora essa palavra sugira a imagem errada. Temos nossas próprias suítes e cada um decide o nível de contato, muito ou pouco, que quer manter com os colegas Sapadores.

— E todos sabem o que estão fazendo? — Susannah perguntou.

— Sim. Embora a maioria não perca muito tempo pensando no assunto.

— Não entendo por que não se amotinam.

— Qual é o seu quando, senhora? — Dinky perguntou.

— Meu...? — Então ela entendeu. — 1964.

Ele suspirou e balançou a cabeça.

— Então não conhece Jim Jones e o Templo do Povo. É mais fácil explicar quando a pessoa já sabe. Quase mil pessoas se suicidaram num acampamento religioso que um filho de Jesus, vindo de San Francisco, fundou na Guiana. Beberam um caldeirão de Kool-Aid envenenado, enquanto ele contemplava as pessoas da varanda de sua casa e usava um megafone para contar histórias da mãe.

Susannah arregalava os olhos com um horrorizado ar de incredulidade, Ted com mal disfarçada impaciência. Contudo, ele deve ter pensado que havia alguma coisa importante naquela conversa, pois se manteve calado.

— Quase mil — Dinky repetiu. — Porque estavam confusos, solitários e achavam que Jim Jones era amigo deles. Porque... pense nisso... não tinham deixado nada para trás. E assim é isso aqui. Se os Sapadores se unissem, poderiam criar um martelo mental que mandaria Prentiss, o Fuinha, os taheens e os can-toi direto para a próxima galáxia. Em vez disso, há somente eu, Stanley, e o supersapador, o favorito de todos, o totalmente imprevisível sr. Theodore “Ted” Brautigan, de Milford, Connecticut. Classe de Harvard de 1920, Círculo do Teatro, Clube de Debates, editor de O Rubro e... é claro... membro da fraternidade Phi Beta Caga.

— Podemos confiar em vocês três? — Roland perguntou. A questão parecia decepcionantemente ociosa, pouco mais que um passatempo verbal.

— Têm de confiar — disse Ted. — Não têm mais ninguém a quem recorrer. Nem nós.

— Se estivéssemos do lado deles — disse Dinky —, nossos pés não estariam calçando mocassins feitos da borracha de velhos pneus. Porque no Céu Azul se consegue tudo, exceto uma ou duas coisas básicas. Coisas que geralmente as pessoas não consideram indispensáveis, mas coisas que... bem, é mais difícil fugir quando não se tem nada para calçar além dos chinelos Algul Siento, vamos pôr a coisa assim.

— Ainda não posso acreditar — disse Jake. — Quero dizer, toda essa gente trabalhando para destruir os Feixes. Não quero ofender, mas...

Dinky se virou para ele com os punhos fechados e um sorriso contraído e furioso no rosto. Oi se colocou de imediato na frente de Jake, rosnando baixo, arreganhando os dentes. Dinky não reparou ou não deu importância.

— É? Bem, você acha o quê, garoto? Eu fico ofendido. Fico ofendido como uma boa filha-da-puta. O que você sabe sobre o que significa passar toda a sua vida do lado de fora, ser todo o tempo alvo de piada, ser sempre Carrie na porra do baile de estudantes?

— Quem? — Eddie perguntou, confuso, mas Dinky estava muito exaltado e não prestou atenção.

— Há sujeitos ali que não podem andar ou falar. Uma menina nasceu sem braços. Vários são hidrocéfalos, isto é, têm cabeças pra lá de Bagdá. — Pôs as mãos a meio metro da cabeça, de um lado e de outro, um gesto que todos viram como exagero. Mais tarde iam descobrir que não era. — O velho e pobre Stanley aqui do meu lado é um dos que não pode falar.

Roland deu uma olhada em Stanley, o rosto pálido, de barba muito cerrada e cachos de um cabelo preto, crespo. E o pistoleiro quase sorriu.

— Eu acho que ele pode falar — disse, e então: — Ainda usas o nome de teu pai, Stanley? Acredito que uses.

Stanley baixou a cabeça, a cara ficou meio vermelha, mas ele estava sorrindo. Ao mesmo tempo, no entanto, começou de novo a chorar. Que diabo afinal está acontecendo aqui?, Eddie se perguntou.

Ted sem dúvida também estava querendo saber.

— Sai Deschain, será que posso saber por que...

— Não, me desculpe mas não — disse Roland. — O tempo já é bem curto, foi o que você mesmo disse e todos nós sentimos isso. Os Sapadores sabem como estão sendo alimentados? Do que estão sendo alimentados, para aumentar suas forças?

Ted sentou-se abruptamente numa pedra e baixou os olhos para a brilhante teia dos trilhos de ferro.

— Isso tem a ver com os garotos trazidos pela estação, não é?

— Sim.

— Eles não sabem e eu não sei — disse Ted naquele mesmo tom de gravidade. — Não mesmo. Tomamos dezenas de comprimidos por dia. São dados de manhã, ao meio-dia e à noite. Alguns são vitaminas. Outros, sem dúvida, são para manter a nossa docilidade. Até certo ponto consegui purgar estes últimos do meu organismo e dos organismos de Dinky e Stanley. Só que... para que a purgação funcione, pistoleiro, você tem de querer que funcione. Consegue entender?

Roland fez que sim.

— Achei, durante muito tempo, que também deviam estar nos ministrando alguma espécie de... não sei... estimulante cerebral... mas com tantas pílulas fica impossível dizer que é. Qual, por exemplo, nos transforma em canibais, vampiros ou ambas as coisas. — Fez uma pausa, baixando os olhos para o improvável raio de sol, e estendeu as mãos pelos lados do corpo. Dinky pegou uma delas, Stanley a outra.

— Vejam isto — disse Dinky. — É interessante.

Ted fechou os olhos. Os outros dois fizeram o mesmo. Por um momento não houve nada além de três homens contemplando o raio de sol de Cecil B. DeMille atrás do deserto escuro... E eles o estavam vendo, como Roland sabia. Mesmo com os olhos fechados.

Então o raio de sol apagou. Por um período de uns 12 segundos o Devar-Toi ficou escuro, assim como o deserto, a estação Trovoada e as encostas de Steek-Tete. Depois o absurdo brilho dourado voltou. Dinky deixou escapar um suspiro barulhento (mas não insatisfeito) e deu um passo atrás, largando a mão de Ted. Pouco depois Ted soltou Stanley e se virou para Roland.

— Foram vocês que fizeram isso? — o pistoleiro perguntou.

— Nós três juntos — disse Ted. — Principalmente Stanley, que é um emissor muito poderoso. Uma das poucas coisas que deixam Prentiss, os homens baixos e os taheens aterrorizados é quando perdem seu sol artificial. As falhas vêm acontecendo com freqüência cada vez maior e nem sempre porque estejamos interferindo na mecânica da coisa. A maquinaria simplesmente está... — ele abanou os ombros — ...se esgotando.

— Como tudo — disse Eddie.

Ted se virou sério para ele.

— Mas não com a rapidez necessária, sr. Dean. Teremos de parar de mexer com os dois últimos Feixes e parar logo, ou não vai fazer mais diferença. Eu, Dinky e Stanley vamos tentar ajudar vocês, mesmo que isto signifique ajudar a matar os outros como nós.

— Claro — disse Dinky com um sorriso amarelo. — Se o reverendo Jim Jones pôde fazer a coisa, nós também podemos.

Depois de lhe dispensar um olhar de desaprovação, Ted voltou a se concentrar no ka-tet de Roland.

— Talvez não seja preciso chegar a este ponto. Mas se for... — Ele se levantou de repente e agarrou o braço de Roland. — Somos mesmo canibais? — perguntou num tom agudo, quase estridente. — Temos comido as crianças que os Capas Verdes trazem das Fronteiras?

Roland ficou calado.

Ted se virou para Eddie.

— Quero saber.

Eddie não deu resposta.

— Madame-sai? — Ted perguntou, olhando para a mulher montada no quadril de Eddie. — Estamos dispostos a ajudá-los. A senhora não me ajudaria respondendo à minha pergunta?

— Saber da resposta ia mudar alguma coisa? — disse Susannah.

Ted fitou-a por mais um instante e se virou para Jake.

— Você podia ser o duplo do meu amigo jovem — disse ele. — Já tinha pensado nisso, filho?

— Não, mas não ficaria espantado — disse Jake. — E desse jeito que as coisas funcionam por aqui. É assim que tudo... hum... se encaixa.

— E não vai me dizer o que quero saber? O Bobby diria.

Para que você possa comer vivo a si próprio?, Jake pensou. Comer a si próprio em vez de comer os outros?

Jake sacudiu a cabeça.

— Não sou o Bobby — disse. — Por mais que seja parecido com ele.

— Estão agindo como frente única — disse Ted suspirando —, o que não é de admirar. Afinal, formam um ka-tet.

— Temos de ir — disse Dink a Ted. — Já paramos muito tempo aqui. Não se trata apenas de estar de volta para a checagem dos quartos; eu e o Stanley temos de confundir a porra da sua telemetria, para que quando Prentiss e o Fuinha checarem, dizer: “Teddy B não saiu de lá. Dinky Earnshaw e Stanley Ruiz também não. Com esses caras nenhum problema.”

— É — disse Ted. — Acho que você tem razão. Mais cinco minutos?

Dinky concordou com relutância. O barulho de uma sirene, enfraquecido pela distância, veio junto com o vento e os dentes do jovem despontaram num sorriso de genuína satisfação.

— Ficam muito transtornados quando o sol desaparece — disse. — Quando têm de encarar o que realmente está em volta deles, uma versão de uma porra de inverno nuclear.

Depois de um momento de mãos nos bolsos e olhar no chão, Ted levantou a cabeça para Roland.

— Já está na hora desta... desta comédia grotesca chegar ao fim. Voltaremos os três amanhã, se tudo correr bem. Se descerem 40 metros de encosta, chegarão a uma boa gruta fora das vistas da estação Trovoada e de Algul Siento. Vão encontrar comida, sacos de dormir e um fogão que funciona a botijão de gás. Vão encontrar também um mapa, bem rudimentar, do Algul. Também deixei para vocês um gravador e algumas fitas. Provavelmente não explicam tudo que gostariam de saber, mas preenchem um bom número de espaços em branco. Por ora, basta que tenham em mente que o Céu Azul é menos perfeito do que parece. As torres de hera são torres de vigia e há três cercas ao redor do complexo. A primeira provoca em quem tenta escapar uma sensação de ser espetado...

— Como se fosse uma cerca de arame farpado — diz Dink.

— Na segunda o sujeito sente um murro capaz de nocauteá-lo — Ted continuou. — E na terceira...

— Acho que já entendemos — disse Susannah.

— Sabem alguma coisa dos Filhos de Roderick? — perguntou Roland.

— Eles têm algo a ver com o Devar, não é? No caminho para cá encontramos um que nos disse que sim.

Susannah olhou para Eddie com as sobrancelhas se erguendo numa interrogação. Eddie dispensou-lhe um olhar de conto-mais-tarde. Um simples e impecável trecho de comunicação sem palavras, do tipo que pessoas que se amam praticam de forma natural.

— Esses putos — disse Dinky, mas não sem simpatia. — São... como é mesmo que são chamados nos filmes antigos? Pelegos, eu acho. Eles têm um pequeno povoado a cerca de 3 quilômetros da estação, nesta direção...

— Ele apontou. — Fazem trabalho de faxina no Algul e talvez uns três ou quatro sejam capazes de substituir telhas... pregar ripas, esse tipo de coisa. Se houver alguma coisa contaminando o ar, os pobres idiotas serão particularmente vulneráveis a ela. Só que neles qualquer elemento provoca efeitos de radiação, em vez de apenas espinhas e eczemas.

— Pode crer — disse Eddie se lembrando do pobre Chevin de Chayven, o rosto comido de feridas, a túnica ensopada de urina.

— São folken errante — Ted acrescentou. — Como beduínos. Acho que quase sempre seguem os trilhos dos trens. Há catacumbas sob a estação e sob Algul Siento. Esses Rods as conhecem. Têm toneladas de comida lá embaixo, e, duas vezes por semana, a levam de trenó para o Devar. É principalmente isso que comemos agora. A comida ainda está boa, mas...

Ele deu de ombros.

— As coisas estão caindo rapidamente — disse Dinky num tom de desânimo pouco habitual. — Mas, como diz o homem, o vinho é ótimo.

— Se eu pedisse que, amanhã, trouxessem com vocês um dos Filhos de Roderick — disse Roland —, poderiam fazer isso?

Ted e Dinky trocaram um olhar sobressaltado. Depois ambos olharam para Stanley. Stanley sacudiu a cabeça, abanou os ombros e estendeu as mãos diante do corpo, palmas para baixo: Para que, pistoleiro?

Roland ficou um instante absorto em seus pensamentos. Depois se virou para Ted.

— Tragam um que tenha pelo menos metade dos miolos — Roland instruiu. — Digam a ele: “Dan sur, dan tur, dan Roland, dan Gilead.” Diga de volta?

Sem hesitação, Ted repetiu as palavras e Roland balançou afirmativamente a cabeça.

— Se ele ainda se mostrar inseguro, digam que Chevin de Chayven diz que deve vir. Falam de uma maneira muito simples, não é?

— Sem dúvida — disse Dinky. — Mas, senhor... não pode deixar um Rod vir até aqui, vê-lo aqui e depois simplesmente ir embora. Suas bocas se movimentam bastante e as palavras correm.

— Tragam um deles — disse Roland — e veremos. Tenho o que Eddie, meu ka-mai, chama de uma intuição. Você entende de pensamento intuitivo?

Ted e Dinky assentiram afirmativamente.

— Se a coisa funcionar, ótimo. Se não funcionar... não se preocupem, que o sujeito jamais vai falar do que viu.

— Você o mataria se sua intuição estivesse errada? — Ted perguntou.

Roland assentiu e Ted deixou escapar uma risada amarga.

— Claro que vai. Estou me lembrando do trecho do Huckleberry Finn em que Huck vê um barco a vapor explodir. Ele corre para dar a notícia à srta. Watson e à viúva Douglas. Quando uma delas pergunta se houve mortos, Huck responde com perfeita segurança: “Não, senhora, só um negro.” Neste caso, vamos poder dizer: “Só um Rod. O pistoleiro tinha uma intuição, mas não deu certo.”

Roland mostrou-lhe um sorriso frio, desagradavelmente cheio de dentes. Eddie já o vira antes e achou ótimo que não estivesse sendo voltado contra ele.

— Achei que entendesse o jogo, sai Ted — disse Eddie. — Será que me equivoquei?

Ted o encarou, mas acabou baixando os olhos para o chão. A boca remoía alguma coisa.

Durante esse tempo, Dinky pareceu estar envolvido numa palestra silenciosa com Stanley. Agora ele dizia:

— Se quer um Rod, vamos lhe conseguir um. Não chega a ser um problema. O problema real pode ser simplesmente conseguirmos chegar aqui. Se não conseguirmos...

Roland esperou pacientemente que o rapaz concluísse. Quando ele não o fez, o pistoleiro perguntou:

— Se não conseguirem, o que devemos fazer?

Ted encolheu os ombros. O gesto, imitação perfeita do jeitão de Dinky, foi engraçado.

— Façam o melhor que puderem — disse ele. — Também existem armas naquela gruta lá embaixo. Uma dúzia das bolas de fogo que chamam de pomos de ouro. Várias metralhadoras que ouvi alguns homens baixos chamarem de “armas de tiro rápido”. São AR-15s, do exército americano. Há também outras coisas que não conhecemos muito bem.

— Uma delas é uma espécie de revólver de raios tipo ficção-científica, como aqueles dos filmes — disse Dinky. — Acho que deve desintegrar as coisas, mas ou sou burro demais para acendê-lo ou a bateria está descarregada. — Virou-se ansioso para o homem de cabelos brancos. — Já perdemos pelo menos mais cinco minutos. Temos que dar duro, Grande Ted. Vamos.

— Sim. Bem, amanhã estaremos de volta. Quem sabe vocês já não tenham feito um plano...

— Vocês não fizeram um? — Eddie perguntou espantado.

— Meu plano era correr, meu jovem, coisa que naquela hora parecia uma idéia genial. Corri lá até a primavera de 1960. Eles me pegaram e me trouxeram de volta com a pequena ajuda da mãe de meu jovem amigo Bobby. E agora, temos realmente de...

— Mais um minuto, se me faz favor — disse Roland dando um passo na direção de Stanley. Stanley olhava para o chão, mas o rosto de novo se inundou de cor por entre a barba cerrada. E...

Ele está tremendo, Susannah pensou. Como um animal que vê, na floresta, seu primeiro ser humano.

Stanley aparentava uns 35 anos, mas devia ser mais velho; a cara tinha a lisura despreocupada que Susannah associava a certas disfunções mentais. Tanto Ted quanto Dinky tinham espinhas, mas Stanley não tinha nenhuma. Roland pôs as mãos nos braços do sujeito e observou-o atentamente. A princípio os olhos do pistoleiro encontraram apenas os cachos de cabelo escuro e crespo na cabeça curvada de Stanley.

Dinky começou a falar. Ted o silenciou com um gesto.

— Não vai me olhar de frente? — Roland perguntou. Falava com uma suavidade que raramente Susannah ouvira em sua voz. — Não vai me olhar antes de ir, Stanley, filho de Stanley? Que se chamava Sheemie, não é?

Susannah sentiu o queixo cair. A seu lado, Eddie gemeu como alguém que tivesse levado um soco. Ela pensou: Mas Roland está velho... tão velho! O que significa que se este homem for o empregado da taberna que ele conheceu em Mejis... aquele do asno e do sombrero, o chapéu rosado... então ele também deve ser...

O homem ergueu lentamente a cabeça. Lágrimas escorriam dos olhos.

— Meu velho Will Dearborn — disse. A voz era rouca e o timbre subia e descia como fazem as vozes que ficam muito tempo sem ser usadas. — Sinto muito, sai. E vou compreender se quiser puxar o revólver para atirar em mim. Vou mesmo.

— Por que está dizendo isso, Sheemie? — Roland perguntou naquele mesmo tom gentil.

As lágrimas de Stanley caíram mais rápido.

— Você salvou minha vida — disse ele. — Arthur e Richard também, mas principalmente você, meu velho Will Dearborn, que era de fato Roland de Gilead. E eu a deixei morrer! Ela, que você tanto amou! E que eu também amei!

O rosto do homem se contorcia agoniado e ele tentava se livrar das mãos de Roland. Mas Roland não o soltou.

— Nada do que aconteceu foi culpa sua, Sheemie.

— Eu devia ter morrido por ela! — Sheemie chorava. — Devia ter morrido no lugar dela! Sou um estúpido! Tolo como disseram! — Esbofeteou-se no rosto, primeiro para um lado, depois para outro, deixando marcas vermelhas. Antes, no entanto, que pudesse fazer aquilo de novo, Roland pegou sua mão e forçou-a a voltar para o lado do corpo.

— Foi Rhea quem provocou tudo — disse Roland.

Stanley — que se chamara Sheemie tantos anos atrás — olhou para a face de Roland, procurando seus olhos.

— É — disse Roland, abanando a cabeça. — Foi Rhea de Cöos... E eu também. Não devia ter saído do lado ela. Se alguém não teve culpa nenhuma, Sheemie... Stanley..., esse alguém foi você.

— Acha mesmo, pistoleiro? Verdade verdadeira?

Roland assentiu.

— Vamos palestrar ainda muito mais sobre isso e sobre aqueles dias, mas se tivermos tempo, não agora. Agora não dá. Precisa ir com seus amigos e eu tenho de ficar com os meus.

Sheemie contemplou-o mais um pouco e sim, agora Susannah podia enxergar o garoto que trabalhara duro em uma taberna de tempos atrás, chamada Repouso dos Viajantes. Ele pegava canecas vazias de cerveja para colocá-las na barrica de louça suja que ficava sob um alce de duas cabeças conhecido como Brincalhão. Sheemie se esquivara de um empurrão de Coral Thorin e dos coices ainda mais mal-humorados de uma puta idosa chamada Pettie, a Trotadora. Susannah via o garoto que quase fora morto por derramar bebida nas botas de um matador chamado Roy Depape. Fora Cuthbert quem salvara Sheemie da morte naquela noite... Mas fora Roland, conhecido pela gente da cidade como Will Dearborn, quem salvara todos eles.

Sheemie pôs os braços em volta do pescoço de Roland e abraçou-o com força. Roland sorriu e alisou o cabelo crespo com sua desfigurada mão direita. Um soluço alto, muito engasgado, escapou da garganta de Sheemie. Susannah viu as lágrimas nos cantos dos olhos do pistoleiro.

— É — disse Roland, falando numa voz quase baixa demais para ser ouvida. — Eu sempre soube que você era especial; Bert e Alain também sabiam. E aqui nos vemos de novo, que bom tornarmos a nos encontrar ao longo da trilha. Que bom tornarmos a nos encontrar, Sheemie, filho de Stanley. É verdade. É verdade.

 

O SENHOR DO CÉU AZUL

Pimli Prentiss, senhor de Algul Siento, estava no banheiro quando Finli (conhecido em alguns locais como O Fuinha) bateu na porta. Prentiss estava examinando seu físico sob a luz implacável da lâmpada fluorescente da pia. No reflexo ampliado do espelho, a pele parecia uma planície acinzentada, marcada por crateras, não muito diferente da superfície das terras devastadas que se estendiam em todas as direções ao redor de Algul. A ferida em que ele se concentrava naquele momento lembrava um vulcão em erupção.

— Quem me chama? — Prentiss berrou, embora tivesse uma ótima noção de quem era.

— Finli de Tego!

— Pode entrar, Finli! — Sem tirar os olhos do espelho. Os dedos, fechando-se dos lados da espinha infectada, pareciam enormes. Fizeram pressão.

Finli atravessou o escritório de Prentiss e parou na porta do banheiro. Teve de se curvar um pouco ao olhar para dentro. Tinha mais de dois metros e dez, alto demais, mesmo para um taheen.

— De volta da estação em tempo recorde — disse Finli. Como a maioria dos taheens, a voz oscilava de modo selvagem entre um ganido e um rosnado. Para Pimli, todos soavam como os híbridos de H. G. Wells em A Ilha do Dr. Moreau. Tinha sempre a impressão de que, a qualquer momento, iam iniciar aquele coro do “nós não somos homens?”. Certa vez Finli tirara a coisa da mente do chefe e fizera perguntas. Prentiss respondera com absoluta franqueza, sabendo que, numa sociedade onde telepatia de baixo nível era a norma, a franqueza era sempre a melhor política. A única política, quando se lidava com os taheens. Além disso, gostava de Finli de Tego.

— De volta da estação, bom — disse Pimli. — E o que encontrou?

— Um operário de manutenção. Parece que fugiu do controle ao lado do Arco 16 e...

— Espere — disse Prentiss. — Só um momento, só um momento, obrigado.

Finli esperou. Prentiss se inclinou ainda mais para o espelho, o rosto franzido de concentração. O Mestre do Céu Azul também era alto, cerca de um metro e noventa, e possuía uma enorme barriga em declive apoiada por pernas compridas com sólidas coxas. Estava ficando calvo e tinha o nariz esbranquiçado de um experiente beberrão. Aparentava talvez uns 50 anos. Sentia-se com uns 50 anos (até mais jovem, quando não passava a noite bebericando com Finli e uma turma de can-toi). Quando chegou lá tinha de fato 50, um bom número de anos atrás, 25 pelo menos, o que talvez fosse um cálculo realmente muito por baixo. O tempo era meio maluco daquele lado, exatamente como a orientação espacial, e a pessoa logo perdia a noção de ambos. Alguns folken perdiam também o juízo. E se algum dia perdessem para sempre a máquina do sol...

A ponta da espinha se avolumou... tremeu... estourou. Ah!

Um borrifo de pus sangrento pulou do local da infecção, atingiu o espelho e começou a escorrer pela superfície ligeiramente côncava. Pimli Prentiss passou a ponta do dedo no pus e virou-se para jogá-lo no vaso, mas acabou oferecendo-o a Finli.

O taheen sacudiu a cabeça, fez o tipo de ruído exaltado que qualquer veterano de regime teria reconhecido e levou o dedo do Mestre para a boca. Sugou o sangue com pus e liberou o dedo com um nítido estalo.

— Não devia fazer isto, mas não pude resistir — disse Finli. — Você não me disse que o folken lá do outro lado concluiu que comer bife malpassado não era bom?

— É — disse Pimli, enxugando a espinha (que continuava vazando) com um Kleenex. Já estava há um bom tempo ali e, por diversos motivos, não havia mais qualquer possibilidade de volta, mas até muito recentemente se mantivera informado sobre o noticiário. Até o ano... podia se dizer ano, não é?... até o ano anterior recebera The New York Times com uma razoável regularidade. Tinha grande simpatia pelo Times, adorava fazer o jogo diário de palavras cruzadas. Havia uma certa sensação de estar em casa.

— Mas mesmo assim continuam comendo os bifes.

— É, acho que muitos continuam. — Prentiss abriu o armário do banheiro e pegou um frasco de mertiolato da farmácia Rexall.

— A culpa é sua, de botar isso na minha frente — disse Finli. — Não que a coisa nos faça mal, normalmente; é um petisco natural, como mel ou frutinhas doces. O problema é Trovoada. — E, como se o chefe não tivesse entendido aonde ele queria chegar, Finli acrescentou: — Grande parte do que vem dela não corre pela linha verdadeira, por mais doce que possa ser o sabor. É puro veneno, você sabe.

Prentiss molhou um pedaço de algodão com o mertiolato e limpou a lesão no rosto. Sabia exatamente do que Finli estava falando, como poderia não saber? Antes de chegar lá e vestir o manto do Mestre, estava há bem mais de trinta anos sem ver uma única mancha na pele. Agora tinha espinhas nas bochechas e na testa, acne nas concavidades das têmporas, desagradáveis ninhos de cravos em volta do nariz e um cisto no pescoço que dali a pouco teria de ser removido por Gangli, o médico do complexo (Prentiss achava que Gangli era um nome terrível para um médico; lembrava gânglios e gangrena). Os taheens e os can-toi eram menos suscetíveis a problemas dermatológicos, mas com freqüência sua carne se abria espontaneamente, tinham sangramentos no nariz e mesmo pequenos ferimentos — um arranhão numa pedra ou um espinho — podiam levar a infecções e morte se não fossem imediatamente tratados. No início, os antibióticos tinham cuidado bem dessas infecções; agora já não eram tão eficazes. Nem mesmo quando continham maravilhas farmacêuticas, como o Roacutan. Era o ambiente, é claro; a morte brotando das próprias rochas e do solo que os cercava. Se alguém queria ver as coisas pelo pior lado bastava olhar para os Rods, que já não eram em nada superiores aos vagos mutantes. A perambulação deles chegava até o... aquilo ainda era o sudeste? Perambulavam muito naquela direção, onde um fraco clarão vermelho podia ser visto à noite e onde todos diziam que as coisas eram muito piores. Pimli não sabia se isto era mesmo verdade, mas desconfiava que fosse. Certamente as terras além de Fedic não eram chamadas de Discórdia por serem locais de férias.

— Quer mais? — Prentiss perguntou a Finli. — Tenho mais duas maduras na testa.

— Não, quero fazer meu relatório, completar a checagem dupla das fitas de vídeo e da telemetria, passar no estúdio para dar uma olhada rápida e encerrar o turno. Depois vou tomar um banho quente e passar três horas com um bom livro. Estou lendo O Colecionador.

— E está gostando — disse Prentiss, fascinado.

— Gostando muito, pode apostar. Lembra a nossa situação aqui. Só que eu gosto de pensar que nossos objetivos são um pouco mais nobres e nossas motivações um pouco mais elevadas que a mera atração sexual.

— Nobres? É assim que chama?

Finli abanou os ombros e não deu resposta. Qualquer discussão mais séria do que estava acontecendo ali, no Céu Azul, costumava ser evitada por um consenso tácito.

Prentiss conduziu Finli para seu próprio estúdio-biblioteca, com vista para a parte do Céu Azul que chamavam de Passeio. Finli abaixou para passar debaixo do lustre com a inconsciente graça proporcionada por uma longa prática. Prentiss havia um dia lhe dito (após alguns goles de graf) que ele teria dado um tremendo marcador num time de basquete.

— Imagine o primeiro time todo composto de taheens. Seriam chamados de freaks, mas e daí?

— Esses jogadores de basquete conseguem ter tudo do bom e do melhor, não é? — Finli perguntara. Tinha uma cabeça comprida de fuinha e grandes olhos negros. Não mais expressivos que os olhos de um boneco, na opinião de Pimli. Usava um monte de correntes de ouro... Tinham entrado em moda entre os funcionários do Céu Azul e, nos últimos anos, se desenvolvera um animado mercado em torno delas. Também Finli tivera mandado cortar a cauda. Provavelmente um equívoco, Finli dissera certa noite a Prentiss, quando estavam os dois embriagados. Coisa dolorosa além da conta e capaz de mandá-lo para o Inferno da Escuridão quando sua vida acabasse, a não ser...

A não ser que não existisse nada disso. Uma idéia que Pimli negava com toda a força de seu coração e mente, embora fosse um mentiroso se não admitisse (nem que apenas para si mesmo) que a idéia às vezes o assombrava no meio da noite. Para evitar esses pensamentos existiam comprimidos contra insônia. E havia Deus, é claro. Sua fé era que todas as coisas serviam à vontade de Deus, inclusive a própria Torre.

Seja como for, Pimli tinha confirmado que sim, os jogadores de basquete — pelo menos os jogadores americanos de basquete — tinham tudo do bom e do melhor, incluindo mais xoxotas que a porra de um vaso sanitário. O comentário fizera Finli rir até correrem lágrimas avermelhadas pelos cantos daqueles olhos estranhamente inexpressivos.

— E o melhor — Pimli tinha continuado — é o seguinte: você seria capaz de jogar quase para sempre, pelos padrões da NBA. Por exemplo, está me ouvindo, o jogador mais admirado no meu antigo país (embora eu jamais o tenha visto jogar; ele apareceu depois do meu tempo) era um sujeito chamado Michael Jordan e...

— Se fosse taheen, o que ele seria? — Finli tinha interrompido. Era um jogo que faziam com freqüência, especialmente depois de alguns drinques além da conta.

— Uma fuinha, na realidade, e uma fuinha extremamente vistosa — Pimli dissera num tom de surpresa que Finli achara engraçado. Mais uma vez ele ia rir até saírem lágrimas dos olhos.

— Mas — Pimli tinha continuado — a carreira dele acabou em pouco mais de 15 anos, o que incluiu uma aposentadoria com uma ou duas voltas às quadras. Por quantos anos, Fin, você suportaria um jogo onde a única coisa que precisa fazer é correr cerca de uma hora de uma ponta a outra, na extensão de uma quadra de campo?

Finli de Tego, que tinha então uns 300 anos de idade, abanara os ombros e fez um gesto em direção ao horizonte. Delah. Anos além da conta.

E por quanto tempo afinal, existirá o presídio Céu Azul (Devar-Toi para os novos internos, Algul Siento para os taheens e os Rods)? Também delah. Mas se Finli estivesse correto (e o coração de Pimli dizia que Finli quase certamente estava), o delah era um tempo quase acabado. E o que ele, outrora Paul Prentiss de Rahway, Nova Jérsei, hoje Pimli Prentiss do Algul Siento, poderia fazer a esse respeito?

Fazer seu trabalho, era só isso.

A porra de seu trabalho.

 

— Então — disse Pimli sentando-se numa das duas poltronas de encosto alto junto à janela — encontrou um operário de manutenção. Onde?

— Perto de onde a linha 97 deixa o pátio de manobras — disse Finli. — Aquele trilho continua quente... têm o que chamamos de “terceiro trilho”... o que explica a coisa. Então, depois que saímos de lá, você telefonou dizendo que havia um segundo alarme.

— Sim. E você encontrou...?

— Nada — disse Finli. — Desta vez, nada. Provavelmente só uma avaria, talvez causada pelo primeiro alarme. — Ele abanou os ombros, um gesto que transmitia o que os dois sabiam: tudo estava correndo para o inferno. E quanto mais se aproximavam do fim, mais depressa corria.

— Mas você e seu pessoal deram uma boa olhada?

—É claro. Nenhum intruso.

Mas os dois estavam pensando em termos de intrusos que fossem humanos, taheens, can-toi ou mecânicos. Ninguém no grupo de busca de Finli tinha pensado em olhar para cima, e provavelmente não teriam enxergado Mordred mesmo se tivessem dado uma olhada. Mesmo que já do tamanho de um cachorro de porte médio, uma aranha poderia se agachar na sombra espessa sob o beiral da estação principal e ali ficar, sustentada por uma pequena teia.

— Vai checar de novo a telemetria por causa do segundo alarme?

— Em parte sim — disse Finli. — Principalmente porque as coisas estão me parecendo Mandraque. — Era uma palavra que tirara de um dos muitos romances policiais que estava lendo (eles o fascinavam) e usava sempre que tinha oportunidade.

— Mandraque como?

Finli se limitou a balançar a cabeça. Não sabia dizer.

— Se bem que a telemetria não mente — acabou respondendo.— Ou pelo menos foi o que me ensinaram.

— Você duvida dela?

Consciente de que estava de novo pisando em ovos (que ambosestavam), Finli hesitou e daí decidiu, diabos, vou falar:

— Estamos vivendo os dias finais, chefe. Questiono praticamente tudo.

— Isso inclui suas obrigações, Finli de Tego?

Sem vacilar, Finli sacudiu a cabeça numa negativa. Não, não incluía suas obrigações. Era igual para os demais, incluindo o antigo Paul Prentiss de Rahway. Pimli se lembrava de um velho soldado — talvez “Dugout”, Doug MacArthur — dizendo: “Quando meus olhos se fecharem na morte, cavalheiros, meu último pensamento será com a tropa. E a tropa. E a tropa.” O último pensamento do próprio Pimli seria provavelmente com Algul Siento. Por que o que mais havia agora? Nas palavras de outro grande habitante da América — Martha Reeves, de Martha and the Vandellas* — não tinham para onde correr, meu bem, nem onde se esconder. As coisas estavam fora de controle, correndo ladeira abaixo sem freio e nada restava a fazer a não ser aproveitar o passeio.

— Se importaria de levar mais um nos seus giros? — Pimli perguntou.

— Por que não? — respondeu o Fuinha. Ele sorriu, revelando uma boca de dentes afiados como agulhas. E cantou com sua voz estranha e trêmula: — Sonhe comigo... Estou a caminho da lua de meus pa-aaais...

— Me dê um minuto — disse Pimli se levantando.

— Preces? — Finli perguntou. Pimli parou no umbral da porta.

— Sim — disse —, já que perguntou. Algum comentário, Finli de Tego?

— Só um, talvez. — A coisa de corpo humano e cabeça lisa de fuinha marrom continuou a sorrir. — Se a prece é tão solene, por que se ajoelha no mesmo recinto onde se senta para cagar?

— Porque a bíblia sugere que, quando não se está sozinho, deve fazer isso no armário. Mais algum comentário?

— Naum, naum. — Finli sacudiu a mão num gesto de quem não se aportava. — Faça teu melhor e teu pior, como dizem os manni.

 

No banheiro, Paul de Rahway baixou a tampa do vaso, se ajoelhou nos ladrilhos e entrelaçou as mãos.

Se aprece é tão solene, por que se ajoelha no mesmo recinto onde se senta para cagar?

Talvez eu devesse ter dito que é porque isso me conserva humilde, ele pensou. Porque isso me conserva do tamanho justo. É do pó que nos levantamos, é para o pó que vamos voltar e, se há um lugar onde é difícil esquecer isso, é este aqui.

— Deus — disse ele —, me conceda força quando estou fraco, respostas quando estou confuso, coragem quando tenho medo. Me ajude a não ferir ninguém que não mereça e, mesmo quando mereça, que eu só o faça se não me restar outra saída. Senhor...

E enquanto este homem está de joelhos diante da tampa fechada do vaso sanitário, este homem que logo estará pedindo a Deus que o perdoe por estar trabalhando pelo fim da criação (um pedido que será feito sem absolutamente qualquer senso de ironia), podemos olhá-lo um pouco mais de perto. Não vamos demorar muito, pois Pimli Prentiss não é peça central em nossa história de Roland e seu ka-tet. É, contudo, um homem fascinante, cheio de arestas, contradições e impasses. Um alcoólatra que acredita piamente num Deus pessoal, um homem de compaixão que está à beira de derrubar a Torre e fazer com que os trilhões de mundos que giram em seu eixo voem para a escuridão e num trilhão de direções diferentes. Ele que, num piscar de olhos, matava Dinky Earnshaw e Stanley Ruiz se soubesse o que os dois estavam aprontando, e passa a maior parte de cada Dia das Mães em lágrimas, pois amava muito sua querida mamãe e sente uma tremenda falta dela. Quando chegar a hora do Apocalipse, aí está o cara perfeito para trabalho, alguém que sabe se jogar de joelhos e falar ao Senhor Deus dos exércitos como um velho amigo.

E aqui está uma ironia: Paul Prentiss podia ter saído do anúncio que proclama: “Consegui meu emprego através do The New York Times!” Em 1970, despachado da prisão então conhecida como Attica (ele e Nelson Rockefeller pelo menos escaparam do megamotim), deu uma espiada num classificado do Times com o seguinte cabeçalho:

 

PRECISA-SE: AGENTE PENITENCIÁRIO COM EXPERIÊNCIA

PARA POSIÇÃO DE ALTA RESPONSABILIDADE

EM INSTITUIÇÃO PARTICULAR

Salário Elevado! Todos os Benefícios!

Deve Estar Disponível para Viajar!

 

O salário elevado provara ser o que sua amada mamãe teria denominado “uma pura e simples mentira deslavada”, pois não havia absolutamente salário, não no sentido que os agentes penitenciários da América costumam dar à palavra, mas os benefícios... sim, as vantagens eram excepcionais. No início se fartava do sexo como agora se fartava de comida e bebida, mas isso não era o mais importante. O mais importante, segundo o ponto de vista de sai Prentiss, era isto: o que você queria da vida? Se fosse apenas ver os zeros aumentarem na conta bancária, sem dúvida Algul Siento não era lugar para você... o que seria uma coisa terrível, porque uma vez contratado, não havia retorno; a tropa era tudo. Só a tropa. E de vez em quando, quando era preciso dar um exemplo, havia um ou dois cadáveres.

O que estava cem por cento OK para Mestre Prentiss, que passara pela solene cerimônia taheen de mudança de nome cerca de 12 anos atrás e nunca se arrependera. Paul Prentiss se tornara Pimli Prentiss. Foi nesse ponto que ele afastara o coração e a mente do que agora chamava apenas de “lado americano”. E não porque tivesse ali o melhor petit gateau e o melhor champanhe de toda a sua vida. Também não porque tivesse sexo simulado com centenas de belas mulheres. Era porque aquele era seu trabalho e pretendia concluí-lo. Porque passara a acreditar que o trabalho deles no Devar-Toi pertencia tanto a Deus quanto ao Rei Rubro. E atrás da idéia de Deus havia alguma coisa ainda mais poderosa: a imagem de um bilhão de universos enfiados num ovo que ele, o ex-Paul Prentiss de Rahway, antigamente um homem de 40 mil dólares por ano, com uma úlcera no estômago, um plano de saúde ruim aprovado por um sindicato corrupto, conservava agora na palma da mão. Compreendia que estava também naquele ovo e que deixaria de existir como carne quando o quebrasse, mais certamente, se havia um céu e um Deus dentro dele, então ambos seriam certamente superiores ao poder da Torre. Era para esse céu que ele iria e, diante do trono que havia lá, ele se ajoelharia pedindo perdão pelos seus pecados. E seria bem acolhido com um cordial bom trabalho, tu que és bom e fiel servo. Sua mamãe estaria lá para abraçá-lo e os dois entrariam juntos no círculo de Jesus. Esse dia viria, Pimli tinha certeza absoluta, e provavelmente antes que a Lua da Colheita tornasse a aparecer.

Não que se considerasse um fanático religioso. Em absoluto. Mantinha essas idéias sobre Deus e o céu estritamente para si mesmo. Pelo que dizia respeito ao resto do mundo, via-se apenas como um joão-ninguém fazendo seu trabalho, um trabalho que pretendia fazer bem até o final. Certamente não se via como vilão, mas nenhum homem verdadeiramente perigoso jamais se vê dessa forma. Pense em Ulysses S. Grant, aquele general da Guerra Civil, dizendo que pretendia lutar até o fim nesta linha mesmo que durasse um verão inteiro.

No Algul Siento, o verão estava quase terminado.

 

A casa do Mestre era um simpático chalé numa ponta do Passeio. Era chamada Shapleigh House (Pimli não sabia por quê), embora os Sapadores, é claro, preferissem chamá-la Casa da Merda. Na outra ponta do Passeio havia uma habitação muito maior — uma construção estilo Queen Anne, graciosamente irregular, chamada (por razões igualmente obscuras) Casa Damli. Um lugar bem adequado para abrigar alguma fraternidade universitária masculina na Universidade de Clemson ou na Universidade do Mississippi. Os Sapadores chamavam-na Casa Inconsolável ou Hotel Inconsolável. Ótimo. Era onde os taheens e um considerável contingente de can-toi viviam e trabalhavam. Quanto aos Sapadores, que eles fizessem suas piadinhas, e nenhum problema se acreditassem que os funcionários não sabiam.

Pimli Prentiss e Finli de Tego caminharam pelo Passeio num silêncio amistoso... só quebrado, é claro, quando passavam por Sapadores de folga, isolados ou em grupos. Pimli cumprimentava cada um com impecável cortesia. Os cumprimentos eram retribuídos numa variedade de formas que iam da completa alegria ao resmungo mal-humorado. Cada um, no entanto, dava alguma resposta e Pimli contava isto como vitória. Preocupava-se com eles. Gostassem disto ou não — muitos não gostavam —, preocupava-se com eles. Certamente era mais fácil lidar com eles que com os homicidas, estupradores e assaltantes de Attica.

Alguns estavam lendo jornais ou revistas velhas. Um grupo de quatro atirava argolas. Outro grupo de quatro estava junto no putting green. Tanya Leeds e Joey Rastosovich jogavam xadrez sob um velho e gracioso elmo, o sol salpicando seus rostos. Eles o cumprimentaram com verdadeiro prazer e por que não? Na realidade Tanya Leeds era agora Tanya Rastosovich, pois Pimli casara os dois há um mês, exatamente como faria o comandante de um navio. E ele achava que, em certo sentido, era isso que aquilo era: o bom navio Algul Siento, um navio cruzeiro que navegava pelos mares escuros de Trovoada, dentro de seu próprio facho de luz do sol. O sol de vez em quando desaparecia, era verdade, mas a interrupção daquele dia fora mínima, só 43 segundos.

— Como vão as coisas, Tanya? Joseph? — Chamando-o sempre Joseph, nunca Joey, pelo menos não na sua frente; ele não gostava do nome.

Disseram que tudo ia bem e lhe concederam aqueles sorrisos deslumbrados, impressionados, de que só recém-casados são capazes. Finli não disse nada para os Rastosovich, mas perto da ponta do Passeio, onde ficava a Casa Damli, parou diante de um rapaz sentado sob uma árvore, num banco de mármore falso, lendo um livro.

— Sai Earnshaw? — o taheen perguntou.

Dinky levantou a cabeça, sobrancelhas erguidas num educado ar de indagação. Sua face, exibindo um feio caso de acne, mostrava a mesma expressão polida.

— Vejo que está lendo O Mago — disse Finli, quase timidamente. — Eu mesmo estou lendo O Colecionador. Que coincidência!

— Se você diz — Dinky respondeu. Sua expressão não se alterou.

— Queria saber o que acha de Fowles. Estou bastante ocupado agora, mas talvez mais tarde a gente possa falar sobre ele.

Sem perder a expressão educadamente inexpressiva, Dinky Earnshaw respondeu:

— Talvez mais tarde você possa pegar seu exemplar do Colecionador — espero que de capa dura... e enfiá-lo no seu cu peludo. De lado.

O sorriso esperançoso de Finli desapareceu. Mesmo assim ele executou uma pequena mas perfeitamente correta curvatura de cabeça.

— Lamento que esteja se sentindo assim, sai — disse.

— Saia daqui, porra! — disse Dinky, tornando a abrir o livro e erguendo-o severamente diante do rosto.

Pimli e Finli de Tego continuaram a andar. Houve um período de silêncio durante o qual o Mestre de Algul Siento tentou abordar Finli de diferentes maneiras, querendo saber até que ponto ele ficara magoado pelo comentário do jovem. O taheen tinha orgulho de sua aptidão para a leitura e apreciava a literatura dos humos, isso Pimli sabia. Então Finli o poupou, colocando suas duas mãos de dedos compridos entre as pernas — seu traseiro não era peludo na verdade, mas os dedos eram.

— Só checando para ter certeza de que minhas bolas ainda estão aqui — disse ele e Pimli achou que o bom humor que ouvia na voz do chefe de segurança era real, não forçado.

— Lamento o que você ouviu — disse Pimli. — Se existe alguém em Céu Azul com uma autêntica síndrome de ansiedade pós-adolescente, esse alguém é sai Earnshaw.

— Está me aniquilando! — Finli gemeu, mas quando o Mestre lhe atirou um olhar sobressaltado, Finli deu um sorriso largo, mostrando aquelas fileiras de dentes pequenos e afiados. — É um dito famoso de um filme chamado Juventude Transviada — disse ele. — Dinky Earnshaw me faz pensar em James Dean. — Fez uma pausa para refletir. — Sem a assombrosa beleza do outro, é claro.

— Um caso interessante — disse Prentiss. — Ele foi recrutado para um programa de assassinato promovido por uma subsidiária da Positronics. Matou seu controlador e fugiu. Nós o pegamos, é claro. Nunca nos causou qualquer problema real... não a nós... mas mantém essa atitude de pé no saco.

— Mas você acha que ele não é um problema.

Pimli atirou-lhe um olhar de soslaio.

— Há alguma coisa que você esteja achando que eu devia sabersobre ele?

— Não, não. Não sei por que tem andado tão nervoso nestas últimas semanas! Diabo, vou falar na lata... tão paranóico!

— Meu avô tinha um provérbio — disse Pimli. — “Você só começa a ficar com medo de deixar cair os ovos quando já está quase em casa.” Estamos quase em casa agora.

E era verdade. Dezessete dias atrás, não muito antes de o último grupo de Lobos ter atravessado a galope a porta da Área de Concentração do Arco 16, o equipamento no porão da Casa Damli captara a primeira curvatura apreciável no Feixe Urso-Tartaruga. De lá para cá, o Feixe da Águia e do Leão tinha se rompido. Logo os Sapadores não seriam mais necessários; logo a desintegração do penúltimo Feixe ocorreria com ou sem a ajuda deles. Era como se um objeto precariamente equilibrado tivesse agora mostrado uma nova oscilação. Logo ela ultrapassaria consideravelmente o ponto do equilíbrio perfeito e o objeto cairia. Ou, no caso do Feixe, quebraria. Deixando num piscar de olhos de existir. Era a Torre que ia cair. O último Feixe, o do Lobo e do Elefante, poderia agüentar mais uma semana ou mais um mês, dificilmente mais que isso.

Esses pensamentos deviam ter agradado a Pimli, mas não agradaram. Principalmente porque ele acabara se concentrando nos Capas Verdes. Da última vez, cerca de sessenta tinham passado em direção a Calla, o que era o efetivo habitual, e deviam ter voltado nas habituais 72 horas com a safra habitual de crianças de Calla.

Em vez disso... nada.

Ele perguntou a Finli o que ele achava.

Finli se virou. Tinha o ar sério.

— Acho que pode ter sido um vírus — disse.

— Como disse?

— Um vírus de computador. Vimos acontecer com boa parte de nosso equipamento de informática em Damli, porque, não esqueça, por mais assustadores que os Capas Verdes possam parecer a um punhado de plantadores de arroz, não passam de computadores sobre pernas. — Fez uma pausa. — Ou quem sabe o folken de Calla tenha descoberto um meio de acabar com eles. Seria surpresa se tivessem aprontado alguma para se defenderem? Até certo ponto sim, mas não de todo. Especialmente se alguém de pulso tomasse a frente para liderá-los.

— Alguém como um pistoleiro, talvez?

Finli tornou a se virar para ele e foi quase como se olhasse para uma criança.

Ted Brautigan e Stanley Ruiz passaram na calçada em bicicletas de dez marchas e, quando o Mestre e o chefe da segurança levantaram as mãos para eles, os dois retribuíram a saudação. Brautigan não sorriu, mas Ruiz sim, o frouxo sorriso de felicidade de um verdadeiro deficiente mental. Era todo remela, barba por fazer e boca brilhante de cuspe, mas não deixava de ser um poderoso do mesmo jeito, perante Deus ele era, e um homem deste ficava bem sendo amigo de Brautigan, que mudara completamente desde que fora trazido de volta de suas pequenas “férias” em Connecticut. Pimli achou divertido que estivessem usando idênticos bonés de tweed (as bicicletas também eram idênticas), mas a expressão de Finli lhe desagradou.

— Pare com isso — disse Pimli.

— Parar com o quê, sai? — Finli perguntou.

— Pára de me olhar como se eu fosse um garotinho que tivesse acabado de perder o sorvete de cima da casquinha e ainda não tivesse a capacidade de perceber isso.

Mas Finli não desviou o olhar. Raramente baixava a cabeça e isso era uma das coisas que Pimli gostava nele.

— Se não quer que as pessoas o olhem como se estivessem olhando para uma criança, procure não agir como uma. Há mais de mil anos se ouvem histórias de pistoleiros do Mundo Médio chegando aqui para salvar a pátria e nunca tivemos um só relato convincente de que tenham sido vistos por alguém. Pessoalmente, estou mais disposto a acreditar na visita de seu Homem Jesus.

— Dizem os Rods...

Finli estremeceu como se isto realmente o ferisse na cabeça.

— Não comece com o que os Rods dizem. Certamente respeite um pouco mais minha inteligência e também a sua. Os cérebros dos Rods têm apodrecido ainda mais depressa que suas peles. E quanto aos Lobos, deixe-me expor um conceito radical: não importa onde estão nem o que aconteceu a eles. Temos dínamos suficientes para terminar o trabalho, e é só isto que interessa.

O chefe da segurança parou um momento nos degraus que levavam ao pórtico da Casa Damli. Estava prestando atenção nos dois homens com bicicletas iguais e franzia a testa com ar pensativo.

— Brautigan já deu muito problema.

— Pois é! — Pimli riu num tom amargo. — De qualquer modo os dias de Brautigan como criador de casos estão encerrados. Já foi informado que seus amigos especiais de Connecticut... um rapaz chamado Robert Garfield e uma moça chamada Carol Gerber... morrerão se fizer mais alguma confusão. E ele já começou a perceber que embora vários Sapadores colegas seus o vejam como guia e alguns, como o rapaz semi-idiota com quem ele anda, o reverenciem, ninguém está seriamente interessado em conhecer suas... idéias filosóficas, se podemos dizer assim. Se algum dia estiveram, não estão mais. E tive uma conversa com ele após sua volta. Uma conversa totalmente franca.

Isso era novidade para Finli.

— Sobre o quê?

— Sobre certos fatos da vida. Sai Brautigan começou a compreender que seus poderes singulares não têm a importância que tinham antigamente. A coisa já chegou a um ponto muito grave. Os dois Feixes restantes vão se romper com ele ou sem ele. E Brautigan sabe que, no final, é capaz de haver... confusão. Medo e confusão. — Pimli abanava devagar a cabeça. — Brautigan quer estar aqui no fim, quando o céu começar a se rasgar, nem que apenas para consolar gente como Stanley Ruiz.

— Venha, vamos dar outra olhada nas fitas e na telemetria. Só para ficarmos mais seguros.

Subiram, lado a lado, a ampla escada de madeira da Casa Damli.

 

Dois can-toi estavam esperando para escoltar o Mestre e seu chefe de segurança até o andar de baixo. Pimli refletiu sobre como era estranho que todos (tanto os Sapadores quanto os funcionários de Algul Siento) tivessem passado a chamar os can-toi de “homens baixos”. Porque fora Brautigan quem cunhara a expressão. “Fale dos anjos, ouça o bater de suas asas, dizia a querida mamãe de Prentiss, mas Pimli supunha que se existissem verdadeiros homens-animais naqueles últimos dias do verdadeiro mundo, sem dúvida os can-toi preencheriam o quesito muito melhor que os taheens. Quem os visse sem aquelas máscaras esquisitas que eles usavam ia achar que eram taheens com cabeças de ratos. Mas ao contrário dos verdadeiros taheens, que consideravam os humos (tirando algumas exceções notáveis, como o próprio Pimli) como uma raça inferior, os can-toi cultuavam a forma humo como divina. Usavam as máscaras no culto? Eles não se manifestavam sobre o assunto, mas Pimli achava que não. A seu ver eles acreditavam que estavam se tornando humanos — por isso, da primeira vez que punham as máscaras (de carne viva, cultivada antes que fabricada), adotavam um nome humo para combinar com seu aspecto humo. Pimli sabia que eles acreditavam que iam substituir os seres humanos após a Queda... embora como conseguiam crer numa coisa dessas estava inteiramente além de sua imaginação. Haveria um céu após a Queda, isso era óbvio para qualquer um que já tivesse lido o Apocalipse... mas Terra?

Alguma nova Terra, talvez, mas Pimli não tinha muita certeza disso.

Dois guardas de segurança can-toi, Beeman e Trelawney, estavam postados no final do corredor, vigiando o início da escada que levava ao subsolo. Para Pimli, todos os homens can-toi, mesmo os de cabelo louro e porte magro, ficavam estranhamente parecidos com Clark Gable, aquele ator dos anos 40 e 50. Todos pareciam ter os mesmos lábios grossos, sensuais, e orelhas tipo morcego. Então, quando a pessoa chegava bem perto, via as rugas artificiais no pescoço e atrás das orelhas, onde as máscaras de humos se espiralavam até entrarem na carne peluda e cheia de caroços que era a realidade deles (quer a aceitassem ou não). E havia os olhos. O pêlo os cercava e, se a pessoa olhasse de perto, ia ver que aquilo que a princípio pareciam órbitas eram, de fato, apenas buracos naquelas singulares máscaras feitas de carne viva. Às vezes se podia ouvir as próprias máscaras respirando, o que Pimli achava ao mesmo tempo estranho e um tanto revoltante.

— Salve — disse Beeman.

— Salve — disse Trelawney.

Pimli e Finli retribuíram o cumprimento, colocando os punhos nas testas e então Pimli tomou a frente e seguiu para baixo. No corredor inferior, ao passarem por uma placa dizendo DEVEMOS TRABALHAR JUNTOS PARA CRIAR UM AMBIENTE LIVRE DO FOGO e outra dizendo TODOS SAÚDAM OS CAN-TOI, Finli comentou muito baixo:

— Eles são tão estranhos.

Pimli sorriu e deu um tapinha nas costas do outro. Era por isso que gostava realmente de Finli de Tego: pensavam do mesmo modo, como fulano e beltrano.

 

A maior parte do subsolo da Casa Damli era um grande espaço entulhado de equipamentos. Nem tudo aquilo funcionava e uma parte das coisas que funcionavam não tinha utilidade para eles (havia muitas que eles não sabiam sequer para que poderiam servir). Estavam, no entanto, bastante familiarizados com os aparelhos de vigilância e os de telemetria, que mediam os escuros: unidades de energia psíquica despendida. Os Sapadores eram expressamente proibidos de empregar suas aptidões psíquicas fora do estúdio, e nem todos conseguiam fazer isto, de qualquer jeito. Muitos eram como homens e mulheres tão severamente treinados em termos de banheiro que seriam incapazes de urinar sem os estímulos visuais assegurando que sim, estavam no banheiro, e sim, nenhum problema em soltar a urina. Outros eram como crianças que ainda não saíram da fralda e não conseguiam evitar o ocasional surto psíquico. O único resultado disto poderia ser provocar em alguém de que não gostavam uma breve dor de cabeça ou fazer cair um banco do Passeio, mas os homens de Pimli estavam sempre de olho e os surtos que ocorriam “de propósito” eram punidos, das primeiras vezes levemente. Desobediências repetidas eram punidas com severidade rapidamente ascendente. E, como Pimli gostava de dizer em sermões para os recém-chegados (antigamente, nos tempos em que ainda havia recém-chegados): “Tenham certeza de que seus pecados o revelarão.” O texto da bíblia de Finli era ainda mais simples: A telemetria não mente.

Naquele dia nada encontraram além de efêmeros bips nos leitores de telemetria. Tão sem importância quanto teriam sido quatro horas de gravação dos peidos e arrotos de qualquer grupo. Também as câmeras de vídeo e os relatórios dos guardas de serviço não apresentavam nada de interesse.

-— Satisfeito, sai? — Finli perguntou, e algona voz dele fez comque Pimli se virasse e o olhasse atentamente.

— Você está?

Finli de Tego suspirou. Em horas como aquela, Pimli gostaria que Finli fosse humo ou que ele próprio fosse um verdadeiro taheen. O problema eram os inexpressivos olhos negros de Finli. Eram quase os olhos de botão de uma boneca da Raggedy Andy, e simplesmente não havia modo de lê-los. A menos, talvez, que o sujeito fosse de fato taheen.

— Há semanas não venho me sentindo muito bem — disse Finli por fim. — Tenho bebido graf demais para dormir, depois passo o dia inteiro me arrastando, implicando com as pessoas. Parte disso se deve à falha de comunicações desde que o último Feixe foi...

— Você sabe que era inevitável...

— Sim, é claro que sei. O que estou dizendo é que estou tentando encontrar motivos racionais para explicar sensações irracionais e isso não é um bom sinal.

Na parede oposta havia uma gravura das cataratas de Niágara. Algum guarda can-toi a virará de cabeça para baixo. Os homens baixos consideravam que virar quadros de cabeça para baixo era o absoluto apogeu do humor. Pimli não conseguia imaginar por quê. Mas, no fim das contas, quem se importava com esta porra? Também sei fazer trabalho inútil, ele pensou virando as cataratas para cima. Sei fazer e, no fundo, nada importa, Deus e o Homem Jesus sejam louvados.

— Sempre soubemos que as coisas iam ficar meio doidas quando o fim se aproximasse — disse Finli —, então me digo que é só isso. Esta... você sabe...

— Esta sensação que você tem — ajudou o ex-Paul Prentiss. Depois sorriu e estendeu o dedo indicador direito para um círculo feito pelo pole-gar e o indicador da mão esquerda. Era um gesto taheen que significava: estou lhe dizendo a verdade. — Esta sensação irracional.

— Pois é. Certamente eu sei que o Leão que Sangra não reapareceu no norte nem acredito que o sol esteja esfriando a partir de dentro. Ouvi historias sobre a loucura do Rei Vermelho e sobre o Dan-Tete que teria chegado para tomar seu lugar, mas tudo que posso dizer é “vou acreditar quando meus olhos virem.” O mesmo se dá com esta notícia maravilhosa de como um pistoleiro veio do Ocidente para salvar a Torre, como estáprevisto por velhos contos e canções. Tudo isso é besteira.

Pimli deu uma palmadinha no ombro dele.

— Faz bem ao meu coração ouvi-lo falar assim!

Sem dúvida fazia. Finli de Tego trabalhara bem para caramba durante seu período como chefe. Durante anos, a equipe de segurança tivera de matar meia dúzia de Sapadores — desatinados com saudades de casa que tentavam fugir —, e dois haviam sido lobotomizados. Ted Brautigan fora o único que conseguira passar “sob a cerca” (Pimli tomara a expressão de um filme chamado Stalag 17), e eles o tinham trazido de volta, por Deus! Os can-toi ficaram com o crédito e o chefe de segurança deixou que ficassem, mas Pimli conhecia a verdade: fora Finli quem coreografara cada movimento, do início ao fim.

— Mas esta minha sensação pode ser mais que apenas nervoso — Finli continuou. — Eu realmente acredito que as pessoas às vezes têm intuições confiáveis. — Ele riu. — Como seria possível não acreditar nisso, num lugar tão roído de precognições e poscognições?

— Mas não telecinese — disse Pimli. — Certo?

A telecinese era o único dos chamados dons selvagens de que todos os funcionários do Devar tinham medo, e não sem motivo. Não havia limite para o tipo de transtorno que uma telecinese podia desencadear. Sugar cerca de 1,6 hectare de espaço sideral, por exemplo, e criar um furacão induzido pelo vácuo. Felizmente havia um teste simples para isolar este talento particular (fácil de administrar, embora o equipamento necessário fosse outro remanescente do Povo Antigo e ninguém soubesse por quanto tempo continuaria a funcionar) e um procedimento igualmente simples (também deixado para trás pelos antigos) para interromper circuitos orgânicos tão perigosos. O dr. Gangli era capaz de tratar de telecinéticos potenciais em menos de dois minutos. “Tão simples que faz uma vasectomia ficar parecendo cirurgia de cérebro”, dissera ele um dia.

— Tolerância zero na telecinese — era o que Finli dizia, agora conduzindo Prentiss para um console cheio de instrumentos. Algo estranhamente parecido com a visualização que Susannah Dean fazia de seu Dogan. Ele apontou para as marcas nos mostradores do Povo Antigo (marcas similares às da Porta Não-Encontrada). O ponteiro de cada mostrador começava parado num O à esquerda. Quando Finli batia nos mostradores com seus polegares peludos, eles saltavam um pouco e depois retrocediam.

— Não sabemos exatamente o que esses mostradores estavam destinados a medir — disse ele —, mas uma coisa que realmente medem é o potencial telecinético. Lidamos com Sapadores que tentaram ocultar o dom e não conseguiram. Se houvesse um telecinético aqui perto, Pimli de Nova Jérsei, esses ponteiros estariam chegando à marca dos cinqüenta ou até mesmo oitenta.

— Pois é. — Meio sorridente, meio a sério, Pimli começou a contar nos dedos. — Nenhuma telecinese, nenhum Leão que Sangra chegando do norte, nenhum pistoleiro. Ah, e os Capas Verdes sucumbiram a um vírus de computador! Se esse é o caso, o que está incomodando você? O que é que dá esse Mandraque em você?

— O fim próximo é o que está por trás, eu acho. — Finli suspirou ruidosamente. — Esta noite vou dobrar o número de guardas nas torres de vigia. Vão detectar qualquer Ro’ ou qualquer humo ao longo da cerca.

— Porque algo anda meio Mandraque. — Era Pimli, sorrindo ligeiramente.

— É, Mandraque, pois é. — Finli não sorriu; os dentinhos marotos continuaram ocultos dentro do brilhante focinho marrom.

Pimli deu uma palmadinha no ombro dele.

— Ande, vamos subir até o estúdio. Talvez a visão de todos esses Sapadores trabalhando consiga acalmá-lo.

— Talvez sim — disse Finli, mas continuou sem sorrir.

— Está tudo bem, Fin — disse Pimli num tom amável.

— Também acho — respondeu o taheen, olhando com ar de dúvida para o equipamento e depois para Beeman e Trelawney, os dois homens baixos que, parados na porta, esperavam respeitosamente que os dois grandes chefes acabassem de palestrar. — Também acho que sim. — Só que, no fundo, seu coração não acreditava naquilo. No fundo, a única coisa em que certamente seu coração acreditava era que não havia sobrado telecinéticos em Algul Siento.

A telemetria não mentia.

 

Beeman e Trelawney acompanharam os dois pelo corredor do subsolo, forrado com lambris de carvalho, até o elevador dos funcionários, também forrado de carvalho. Na parede do elevador havia um extintor de incêndio e outra placa lembrando ao folken do Devar que eles tinham de trabalhar em conjunto para criar um ambiente livre de fogo.

A placa também fora virada de cabeça para baixo.

Os olhos de Pimli encontraram os de Finli. O Mestre acreditou ter visto um ar de divertimento nos olhos de seu chefe de segurança, mas claro que o que via podia não ser mais que seu próprio senso de humor refletido no outro, como um rosto refletido num espelho. Finli soltou a placa sem uma palavra e virou-a para cima. Nenhum dos dois comentou sobre o mecanismo do elevador, barulhento, como se estivesse direito. Nem sobre o modo como o carro estremecia no poço. Se o elevador parasse, escapar pelo alçapão de cima não seria problema, nem mesmo para um sujeito como Prentiss. A Casa Damli não era exatamente um arranha-céu e sempre havia muita ajuda por perto.

Alcançaram o terceiro andar, onde a placa na porta fechada estava na posição certa. Dizia EXCLUSIVO PARA FUNCIONÁRIOS e POR FAVOR USE O CARTÃO e DESÇA IMEDIATAMENTE SE TIVER CHEGADO A ESTE ANDAR POR ENGANO. VOCÊ NÃO SERÁ PUNIDO SE COMUNICAR IMEDIATAMENTE O FATO.

Ao puxar o cartão de código, Finli disse num tom casual, possivelmente falso (a porra daqueles olhos negros indevassáveis).

— Alguma notícia de sai Sayre?

— Não — disse Pimli (um tanto mal-humorado) —, nem espero saber. Estamos isolados aqui por um determinado motivo. Fomos propo-sitalmente esquecidos no deserto, exatamente como os cientistas do Projeto Manhattan na década de 1940. Da última vez que o vi, ele me disse que talvez aquela fosse... bem, a última vez que ia vê-lo.

— Relaxe — disse Finli. — Foi só uma pergunta. — Enfiou o cartão de código na ranhura e a porta do elevador começou a se abrir, deslizando com um ggguincho metálico um tanto infernal.

 

O estúdio era um salão alto e comprido, no centro de Damli, também forrado de carvalho e ocupando uma altura de três andares inteiros até um teto de vidro que deixava o sol de Algul, arduamente conquistado, nele penetrar. Na sacada interna diante da porta por onde Prentiss e Tego entraram havia um curioso trio constituído por um taheen com cabeça de corvo, chamado Jakli, um técnico can-toi, chamado Conroy, e dois guardas humos cujos nomes Pimli não conseguiu lembrar de imediato. Os taheen, os can-toi e os humos se davam durante as horas de trabalho graças a uma cuidadosa — e às vezes frágil — cortesia, mas ninguém esperava vê-los convivendo uns com os outros nas horas de folga. E sem dúvida a sacada era zona estritamente proibida quando se tratava de “folga”. Os Sapadores lá embaixo não eram nem animais num zôo nem peixes exóticos num aquário; Pimli (assim como Finli de Tego) levantara repetidas vezes este assunto com os funcionários. O Mestre de Algul Siento só tivera de lobotomizar um único membro do quadro de funcionários durante todo o seu período de serviço ali, um guarda humo completamente idiota chamado David Burke, que por incrível que pareça atirava coisas — cascas de amendoim? — nos Sapadores lá embaixo. Quando Burke percebeu que o Mestre não estava brincando quando falava em lobotomizá-lo, implorou por uma segunda chance, prometendo que nunca mais faria uma coisa tão tola e desmoralizante. Pimli fizera ouvidos moucos. Vira ali uma oportunidade de dar um exemplo que seria lembrado durante anos, talvez décadas, e levou a coisa à frente. Agora era possível ver o verdadeiro idiota do sr. Burke rondando por ali, caminhando no Passeio ou pela zona fronteiriça entre eles e os Rods, o queixo caído, os olhos vagamente confusos — eu quase sei quem sou, eu quase me lembro do que fiz para terminar desse jeito, aqueles olhos diziam. Era um exemplo vivo do que certamente não se devia fazer quando se estava na presença de Sapadores em ação. Mas não havia regra proibindo expressamente os funcionários de subirem ali e todos eles faziam isso de vez em quando.

Porque refrescava.

Em primeiro lugar, estar perto de Sapadores em ação tornava a conversa desnecessária. A chamada “boa mente” batia pelos dois lados quando a pessoa descia o corredor do terceiro andar, vindo de qualquer elevador, e quando abria as portas que davam para o balcão. A boa mente florescia na cabeça, abrindo todo tipo de portas da percepção. Aldous Huxley, Pimli pensara em mais de uma oportunidade, teria ficado absolutamente pirado ali. Às vezes se via os calcanhares deixando o piso numa levitação maluca. O conteúdo dos bolsos tendia a subir e ficar pendurado no ar. Situações difíceis pareciam se resolver sozinhas no momento em que a pessoa dirigia os pensamentos para elas. Se você tivesse esquecido alguma coisa, o encontro das cinco ou o primeiro sobrenome do cunhado, por exemplo, aquele era o lugar onde tudo seria lembrado. E mesmo se você se desse conta de que o que tinha esquecido era algo importante, você nunca ficava angustiado. O folken deixava a sacada com sorrisos nos rostos, mesmo quem tivesse chegado ali no pior dos humores (um péssimo humor, aliás, era uma excelente razão para visitar a sacada). Era como se algum gás da felicidade, invisível ao olho e não detectável mesmo pela telemetria mais sofisticada, acabasse sempre brotando dos Sapadores lá embaixo.

Os dois saudaram o trio na frente deles, depois se aproximaram do amplo parapeito de carvalho raiado e olhavam para baixo. O salão lá embaixo lembrava a vasta biblioteca de algum abastado clube masculino de Londres. Em mesinhas ou nas paredes (forradas de carvalho, é claro), luminárias brilhavam suavemente, muitas com genuínas cúpulas Tiffany. Os tapetes eram os mais requintados tapetes turcos. Numa das paredes, havia um Matisse, noutra um Rembrandt... numa terceira estava a Mona Lisa. A verdadeira, ao contrário da falsificação pendurada no Louvre da Terra-Base. Havia um homem diante do quadro com os braços entrelaçados nas costas. Visto de cima, parecia estar estudando a pintura — talvez tentando decifrar o famoso sorriso enigmático —, mas Pimli achava que não. Os homens e mulheres segurando revistas também pareciam estar lendo, mas quem ficasse perto ia reparar que olhavam para o vazio por cima de seus McCall’s e Harper’s, às vezes para o lado. Uma menina de 11 ou 12 anos (num esplêndido vestido listrado de verão que talvez tivesse custado mil e seiscentos dólares numa butique infantil da Rodeo Drive) estava parada diante de uma casinha em miniatura perto da lareira, mas Pimli sabia que não estava prestando a menor atenção àquela réplica primorosa da Casa Damli.

Trinta e três lá embaixo. Trinta e três ao todo. Às oito horas, uma hora depois de o sol artificial se apagar, 33 novos Sapadores iriam chegar. Mas havia um sujeito — um e só um — que ia e vinha como quisesse. Um sujeito que tentara passar sob a cerca e não sofrerá absolutamente qualquer castigo... Apenas, claro, fora trazido de volta, o que para aquele homem era castigo suficiente.

Como se o pensamento o tivesse convocado em carne e osso, a porta no final do salão se abriu e Ted Brautigan entrou discretamente. Ainda estava usando o boné de tweed de andar de bicicleta. Daneeka Rostov desviou os olhos da miniatura da casa e sorriu para ele. Brautigan retribuiu com um piscar de olhos. Pimli deu a Finli uma leve cotovelada.

Finli: (Estou vendo)

Mas era mais que ver. Eles o sentiam. No momento em que Brautigan entrou no salão, quem estava na sacada — e, muito mais importante, quem estava no térreo — sentia aumentar o nível da força. Ainda não estavam completamente certos do que havia com Brautigan e o equipamento de teste não estava ajudando (a velha raposa estourara diversos componentes sozinho, e de propósito, disso o mestre tinha certeza). Talvez existissem outros como Brautigan, mas os homens baixos ainda não haviam encontrado ninguém com tal manancial de dons (agora desnecessários; eles já possuíam todos os talentos de que precisavam para o trabalho ser concluído). Uma coisa que parecia realmente clara era o dom de Brautigan como indutor, um agente psíquico que era não apenas poderoso por si mesmo, mas capaz de promover as aptidões de outros simplesmente por estar perto deles. Os pensamentos de Finli, habitualmente não detectáveis sequer pelos Sapadores, agora ardiam na mente de Pimli como néon.

Finli: (Ele é extraordinário)

Pimli: (E, pelo que sabemos, único Você já viu a coisa quê)

Imagem: Olhos crescendo e se contraindo, crescendo e se contraindo.

Finli: (Sim E sabe o que provoca isso)

Pimli: (Absolutamente não Nem me importo caro Finli nem me importo Esse velho)

Imagem: Um velho vira-lata com parasitas no pêlo malhado, mancando em três pernas.

(quase acabou seu trabalho quase na hora de)

Imagem: Um revólver, uma das Berettas dos guardas humos, encostada do lado da cabeça do velho vira-lata.

Três andares abaixo, o tema da conversa dos dois pegou um jornal (os jornais eram todos velhos agora, de muitos anos atrás, velhos como o próprio Brautigan) e sentou-se numa poltrona de encosto alto, forro de couro e grandes braços, tão volumosa que pareceu engoli-lo e deu uma impressão de estar lendo.

Pimli sentiu a força psíquica passando por eles, através deles, erguen-do-se para a clarabóia, passando também por ela e chegando ao Feixe que corria diretamente sobre Algul, trabalhando para sapá-lo, tirando lascas, provocando erosão, raspando sem cessar contra as veias dele. Abrindo feridas em sua magia. Trabalhando pacientemente para apagar os olhos do Urso. Para rachar o casco da Tartaruga. Para quebrar o Feixe que corria de Shardik a Maturin. Para derrubar a Torre Negra que ficava entre um e outro.

Pimli se virou para seu companheiro e não ficou espantado ao perceber os dentinhos marotos na boca de fuinha de Tego. Finalmente sorrindo! Nem ficou espantado ao perceber que podia ler os olhos negros. Em circunstâncias normais, os taheens podiam enviar e receber algumas comunicações mentais muito simples, sem estabelecer um verdadeiro diálogo. Agora, contudo, tudo isso mudara. Agora...

...agora Finli de Tego estava em paz. Suas preocupações (Mandraque) não existiam mais. Pelo menos naquele momento.

Pimli enviou a Finli uma série de imagens nítidas: uma garrafa de champanhe sendo quebrada na popa de um barco; centenas de chapéus negros, chapéus de festa de formatura, se erguendo no ar; uma bandeira sendo fincada no monte Everest; um casal sorridente saindo de uma igreja, cabeças baixas para se protegerem de uma tremenda tempestade de arroz; um planeta (a Terra) surgindo de repente com brilho febril.

Imagens que diziam todas a mesma coisa.

— Sim — disse Finli, e Pimli se perguntava como podia ter achado difícil decifrar o que diziam aqueles olhos. — Sim, de fato. O triunfo no fim do dia.

Nenhum dos dois olhou para baixo naquele momento. Se o tivessem feito, teriam visto Ted Brautigan — um velho cão, sim, e cansado, mas talvez não tão cansado quanto alguns imaginavam — olhando para eles.

Com uma sombra de seu próprio sorriso.

 

Nunca chovia ali, pelo menos não chovera durante os anos de Pimli, mas às vezes, na dantesca escuridão das noites, havia grandes seqüências de trovões secos. A maioria dos funcionários do Devar-Toi tinham se condicionado a dormir no meio dessa fuzilaria, mas Pimli acordava freqüentemente, o coração palpitando na garganta, o Pai-Nosso, como um círculo de rodopiante fita vermelha, correndo por sua mente quase toda inconsciente.

No início daquele dia, conversando com Finli, o Senhor de Algul Siento usara a expressão Mandraque com um sorriso acanhado, e por que não? Era uma expressão infantil, quase como gatô-tô-tô ou uni-duni-tê.

Agora, deitado em sua cama na Casa Shapleigh (conhecida como Casa da Merda pelos Sapadores), a um Passeio inteiro de distância da Casa Damli, Pimli lembrou a sensação — a certeza absoluta — de que tudo ia ficar bem; sucesso garantido, só uma questão de tempo. Finli compartilhara este sentimento na sacada, mas Pimli achava que seu chefe de segurança também poderia estar rolando na cama, ponderando como era fácil ser enganado quando se estava trabalhando com os Sapadores. Porque, era bom não esquecer, eles mandavam aquele gás da felicidade. Aquela vibração mental positiva.

E vamos supor... apenas supor... que alguém estivesse muito proposi-talmente canalizando aquela sensação. Enviando-a às pessoas como canção de ninar. Vá dormir, Pimli, vá dormir, Finli, vão dormir como crianças boazinhas...

Idéia ridícula, totalmente paranóica. Contudo, quando outro estrondo duplo de trovão veio rolando do que talvez fosse ainda o sudeste (pelo menos o trovão veio da direção de Fedic e da Discórdia), Pimli Prentiss sentou-se na cama e acendeu o abajur da mesinha-de-cabeceira.

Finli tinha falado em dobrar o número de guardas naquela noite, tanto nas torres de vigia quanto ao longo das cercas. Talvez amanhã pudessem triplicá-lo. Só por via das dúvidas. E porque ser complacente assim tão perto do fim seria, sem dúvida, uma péssima idéia.

Pimli se levantou da cama, um homem alto com um peludo paredão de pança. Usava uma calça de pijama azul e nada mais. Depois de mijar, ajoelhou-se na frente do vaso sanitário com a tampa abaixada, cruzou as mãos e rezou até vir o sono. Rezou para ser capaz de cumprir seu dever. Rezou para conseguir enxergar problemas antes que eles o enxergassem. Rezou pela sua mamãe, assim como Jim Jones rezara pela dele enquanto contemplava a fila se deslocar para o caldeirão de Kool-Aid envenenado. Rezou até o trovão ter se reduzido a pouco mais que um murmúrio senil. Depois voltou para a cama, de novo calmo. Seu último pensamento antes de apagar foi de querer triplicar o número de guardas, seria a primeira coisa a fazer de manhã e foi de fato a primeira coisa em que pensou quando acordou num banho de sol artificial no quarto dele. Porque tem que se tomar cuidado com os ovos quando se está chegando em casa.

 

KA-SHUME

Uma sensação de estranha melancolia se insinuou entre os pistoleiros após a partida de Brautigan e seus amigos, mas a princípio ninguém tocou no assunto. Todos achavam que melancolia era um problema íntimo de cada um. Roland, que deveria ser capaz de escapar da sensação ao reconhecê-la pelo que realmente era (ka-shume, teria dito Cort), explicou-a pelas preocupações sobre o dia seguinte e principalmente pela debilitante atmosfera de Trovoada, onde o dia era sombrio e a noite escura como a cegueira.

Certamente havia o bastante para ocupá-los após a partida de Brautigan, Earnshaw e Sheemie Ruiz, aquele amigo de infância de Roland. (Tanto Susannah quanto Eddie haviam tentado conversar com o pistoleiro sobre Sheemie e Roland cortara o assunto. Forte no toque, Jake nem chegara a tentar. Roland não estava preparado para falar de novo naqueles velhos tempos, pelo menos ainda não.) Havia uma trilha descendo e contornando o flanco da Steek-Tete e eles encontraram a gruta de que o velho havia falado. Ficava atrás de uma curiosa camuflagem de pedras e arbustos cobertos pela poeira do deserto. Aquela gruta era bem maior que a outra, com lampiões a gás pendurados em ganchos colocados nas paredes de rocha. Jake e Eddie acenderam dois, um de cada lado, e os quatro passaram a examinar em silêncio o que havia na gruta.

A primeira coisa em que Roland reparou foram os sacos de dormir: quatro deles alinhados contra a parede da esquerda, cada um cuidadosamente colocado em cima de um colchão inflável. As etiquetas nos sacos diziam: PROPRIEDADE DO EXÉRCITO AMERICANO. Ao lado do último saco da série, um quinto colchão inflável estava coberto por uma camada de toalhas de banho. Esperavam quatro pessoas e um animal, o pistoleiro pensou. Precognição ou teriam estado, de alguma forma, a nos observar? E isso importa?

Sobre um barril com a inscrição PERIGO! MUNIÇÕES!, havia um objeto enrolado em plástico. Eddie puxou o plástico, revelando uma máquina com duas bobinas. Uma das bobinas estava carregada de fita. Roland não conseguiu entender nada da palavra estampada na frente da máquina falante e perguntou a Susannah o que era.

— Wollensak — disse ela. — Uma empresa alemã. São os melhores para fazer coisas como esta.

— Não mais, abelha rainha — disse Eddie. — No meu quando não tem conversa fiada, tudo vem da Sony. Eles fazem um toca-fitas que você pode levar preso no cinto. Chama-se walkman. Aposto que esse dinossauro aí pesa dez quilos. Até mais com as pilhas.

Susannah estava examinando as caixas de fitas empilhadas ao lado do Wollensak. Eram três e não tinham marca.

— Estou morrendo de curiosidade para ouvir o que há nessas fitas — disse ela.

— Depois que escurecer, talvez — disse Roland. — Por enquanto, vamos ver o que mais temos aqui.

— Roland? — Jake perguntou.

O pistoleiro se virou para ele. Algo na expressão do garoto conseguia quase sempre abrandar a expressão de Roland. Olhar para Jake não tornava o pistoleiro bonito, mas parecia dar a suas feições uma qualidade que normalmente elas não possuíam. Susannah achava que era um ar amoroso. E, talvez, alguma rala esperança com relação ao futuro.

— O que é, Jake?

— Sei que vamos ter de lutar...

— Junte-se a nós na próxima semana em Sem Lei e sem Alma, com Van Heflin e Lee Van Cleef — Eddie murmurou, caminhando para os fundos da gruta. Ali havia um objeto muito maior coberto com o queparecia ser um cobertor de feltro de empresa de mudança.

—... mas quando? — Jake continuou. — Vai ser amanhã?

— Talvez — Roland respondeu. — Mas acho mais provável depois de amanhã.

— Estou com uma sensação terrível — disse Jake. — Não exatamente assustadora, mas...

— Acha que vão nos derrotar, querido? — perguntou Susannah. Ela pôs a mão no pescoço de Jake e encarou-o de frente. Passara a respeitar suas sensações. Às vezes Susannah se perguntava até que ponto o que ele era agora tinha relação com a criatura que enfrentara para chegar ali: a coisa na casa de Dutch Hill. Ali não se tratava de robô nem de um velho e enferrujado brinquedo de corda. O porteiro fora um autêntico remanescente do Primal. — Está sentindo uma chicoteada no vento? É isso?

— Acho que não — disse Jake. — Não sei o que é. Só uma vez na vida tive uma sensação dessas, e foi pouco antes...

— Pouco antes de quê? — Susannah perguntou, mas antes que Jake tivesse a chance de responder, Eddie cortou. Roland ficou satisfeito. Pouco antes de eu cair. Era assim que Jake pretendera concluir. Pouco antes de Roland me deixar cair.

— Porra, incrível! Venham aqui, caras! Precisam ver isto!

Eddie puxara o cobertor e revelara um veículo motorizado que lembrava o cruzamento de um off-road com um triciclo gigante. Os pneus eram grandes pneus-balão com profundos sulcos em ziguezague. Os controles estavam todos no guidom. E havia uma carta de baralho jogada no rudimentar painel de instrumentos. Roland soube que carta era antes mesmo de Eddie colocá-la entre dois dedos e virar. A carta mostrava uma mulher com um xale na cabeça numa roda de fiar. Era a Dama das Sombras.

— Parece que nosso camarada Ted deixou uma motoca pra você, abelha rainha — disse Eddie.

Susannah se aproximara se arrastando o mais rápido possível. Estendeu os braços.

— Me coloque aí! Me coloque aí, Eddie!

Foi o que ele fez e quando Susannah se instalou no selim, segurando um guidom em vez de rédeas, o veículo pareceu feito sob medida. O polegar de Susannah apertou um botão vermelho e o motor começou a roncar, mas tão baixo que mal se podia ouvir. Eletricidade, não gasolina, Eddie tinha toda a certeza. Como um carro de golfe, mas provavelmente bem mais veloz.

Susannah se virou para eles. Sorria com ar radiante, acariciava a barquinha do triciclo, marrom-escura.

— Podem me chamar de Mulher Centauro! Passei a vida toda procurando isto, e nem sabia.

Nenhum deles notou a expressão arrasada no rosto de Roland. Roland se abaixou para pegar a carta que Eddie deixara cair, para que ninguém reparasse.

Sim, a carta era ela, não havia dúvida... A Dama das Sombras. Parecia estar sorrindo maliciosa e soluçando, fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, envolta no xale. Da última vez que vira aquela carta, ela estava na mão do homem que às vezes atendia pelo nome de Walter, às vezes pelo de Flagg.

Você nem imagina como está perto da Torre agora, ele dissera. Mundos giram em volta de sua cabeça.

E agora Roland reconhecia a sensação que havia se introduzido entre eles pelo que quase certamente ela era: não preocupação ou cansaço, mas ka-shume. Na realidade não havia tradução para esse termo carregado de pesar, mas ele significava sentir a aproximação de um rompimento no ka-tet de alguém.

Walter das Sombras, seu antigo oponente, estava morto. Roland soubera assim que vira a face da Dama das Sombras. Logo um dos seus também morreria, provavelmente na futura batalha para quebrar o poder do Devar-Toi. E mais uma vez a balança que temporariamente havia se inclinado a favor deles se equilibraria.

Nunca passou pela mente de Roland que aquele a morrer podia ser ele.

 

Havia três nomes de fábrica no que Eddie imediatamente apelidou de “Trike, Cruzador de Suzie”. Um era Honda, outro Takuro (como no Takuro Spirit, aquele extremamente popular importado pré-supergripe), o terceiro era North Central Positronics. E havia um quarto também: EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, como em PROPRIEDADE DO...

Susannah relutava em abandonar o veículo, mas finalmente ela o fez. Deus sabia que havia muito mais para ver; a gruta era um verdadeiro baú de tesouros. Sua garganta estreita estava repleta de suprimentos de comida (em geral coisas liofilizadas, provavelmente não tão boas quanto os rangos de Nigel mas que pelo menos os deixaria alimentados), água mineral, bebidas em lata (muita Coca e Nozz-A-La, mas nada alcoólico) e o prometido fogão a gás propano. Havia também caixotes de armamento. Alguns caixotes tinham a inscrição EXÉRCITO AMERICANO, mas não todas.

Agora as aptidões básicas surgiriam: o fio verdadeiro, diria Cort. Talentos e intuições que poderiam ter passado a maior parte de suas vidas adormecidos, só vindo à tona pelo tempo suficiente para envolvê-los num problema ou noutro, se Roland não os tivesse propositalmente despertado... mimado... e daí afiado seus dentes em armas mortais.

Praticamente nada foi falado quando Roland tirou um pé-de-cabra da bolsa e levantou as tampas dos caixotes. Susannah esqueceu o Cruzador Trike que tinha esperado a vida inteira; Eddie se esqueceu de dizer coisas engraçadas; Roland esqueceu os maus presságios. Deixaram-se absorver pelo armamento que tinha sido deixado para eles e não houve peça que não conseguissem compreender, fosse de imediato ou após um pequeno exame.

Havia um caixote de rifles AR-15, os canos cobertos de graxa, os mecanismos de disparo cheirando a óleo de mamona. Eddie observou os comandos adicionais e passou ao caixote ao lado. Lá dentro, cobertos de plástico e também cobertos de graxa, havia tambores de metal. Pareciam os que se via nas grandes metralhadoras de filmes épicos de gângster, como Fúria Sanguinária, só que eram ainda maiores. Eddie levantou um dos AR-15s, virou-o e encontrou exatamente o que esperava: um clip de conversão permitindo que aqueles tambores fossem presos às armas, transformando os rifles em armas de tiro rápido, minimetralhadoras. Quantos disparos por tambor? Cem? Cento e vinte e cinco? O bastante para dizimar toda uma companhia de homens, isso era certo.

Havia uma caixa do que pareciam cápsulas de mísseis com as letras STS gravadas em cada uma. Num suporte ao lado, escorado na parede da gruta, havia meia dúzia de lançadores manuais. Roland apontou para o símbolo atômico neles e balançou a cabeça numa negativa. Não queria que disparassem armas capazes de liberar radiação potencialmente letal, por mais poderosas que pudessem ser. Estava disposto a liquidar os Sapadores se fosse o único meio de fazer com que parassem de mexer com os Feixes, mas só como último recurso.

Ao lado de uma bandeja de metal carregada de máscaras de gás (Jake achou-as horripilantes, lembrando cabeças decepadas de estranhos insetos), havia dois caixotes de revólveres: pistolas automáticas de cano curto com a palavra COYOTE estampada nas coronhas, e revólveres pesados, chamados Cobra Stars. Jake foi atraído para ambas as armas (na verdade seu coração foi atraído para todas as armas), mas ele pegou um dos Stars porque lembrava um pouco o revólver que havia perdido. O pente de balas entrava pelo cabo, carregando 15 ou 16 balas. Não era uma questão de conferir contando, mas simplesmente de olhar e saber.

— Ei — disse Susannah, que voltara para a frente da gruta. — Dêem uma olhada nisso. Pomos de ouro.

— Olha só a tampa do caixote — disse Jake, quando todos se juntaram a ela. Susannah pusera a tampa para o lado; Jake pegou-a na mão e agora a examinava com ar de admiração. Mostrava a cara de um garoto sorridente com uma cicatriz em forma de relâmpago na testa. Usava óculos redondos e brandia o que parecia ser uma varinha mágica sobre um pomo de ouro flutuante. As palavras gravadas sob o desenho diziam:

 

PROPRIEDADE DO ESQUADRÃO 449

24 “POMOS DE OURO”

 

MODELO HARRY POTTER

 

SERIAL #465-17-CC NDJKR

 

“Não Brinque com o 449!”

Ou Vamos acabar com o “Slytherin” em você!

 

Havia duas dúzias de pomos de ouro no caixote, acondicionados como ovos em pequenos invólucros de plástico poroso. Ninguém do grupo de Roland tivera a oportunidade de estudar um pomo de perto durante a batalha com os Lobos, mas agora tinham um bom período de tempo durante o qual podiam satisfazer seus interesses e curiosidades naturais. Cada um pegou um pomo. Eram aproximadamente do tamanho de bolas de tênis, mas muito mais pesados. As superfícies tinham sulcos, fazendo os pomos lembrarem globos com linhas de latitude e longitude. Embora os pomos parecessem feitos de aço, as superfícies eram de um material que cedia um pouco, como uma borracha muito dura.

Em cada pomo de ouro havia uma plaqueta de identificação com um botão do lado.

— Isto acorda — Eddie murmurou, e Jake abanou a cabeça. Havia também uma pequena depressão na superfície curva, do tamanho exato para um dedo. Jake apertou-a sem a menor preocupação de que a coisa pudesse explodir ou fazer surgir uma serrinha circular que cortasse seus dedos. O botão no fundo da depressão era para acessar o programa. Ele não sabia como sabia disso, mas não tinha dúvidas.

Uma seção curva da superfície do pomo deslizou com um débil auooommm! Apareceram quatro diminutas luzes, três escuras e uma cintilando devagar com pulsos cor de âmbar. Havia sete janelas, agora mostrando 0 00 00 00. Sob cada uma havia um botão tão pequeno que seria preciso algo como a ponta de um clipe de papel aberto para apertá-lo.

— Do tamanho do cu de um inseto — como Eddie resmungou mais tarde, enquanto tentava programar um deles. A direita das janelas havia outros dois botões, esses marcados com A e P.

Jake mostrou a Roland.

— A de Ajustar e P de Pausa — disse ele. — O que acha? Eu acho que é isso.

Roland assentiu. Nunca vira tal arma antes (pelo menos não de perto), mas achava que o uso dos botões, vistos em conjunto com as janelas, era óbvio. E ele achou que os pomos de ouro podiam ser úteis de um modo que as armas de longo alcance, com seus projéteis atômicos, não poderiam. AJUSTAR e PAUSA.

AJUSTAR... e PAUSA.

— Será que foi Ted e seus dois parceiros quem deixou tudo isso para nós? — Susannah perguntou.

Roland achava que não importava muito quem tinha deixado (estava lá e isso bastava), mas abanou afirmativamente a cabeça.

— Como? E onde conseguiram?

Roland não sabia. O que sabia era que a gruta era um ma’sum — um arsenal. Lá embaixo, havia homens atacando a Torre que os descendentes do Eld tinham jurado defender. Roland e seu tet iriam atacá-los de surpresa, e com aquelas ferramentas poderiam aplicar um golpe atrás do outro até os inimigos caírem com as botas apontadas para o céu.

Ou até as botas deles apontarem para o céu.

— Talvez Ted explique numa das fitas que nos deixou — disse Jake. Ele encaixara o pino de segurança de sua nova Cobra automática, que guardara na bolsa que trazia no ombro, onde estavam os Orizas restantes. Susannah tinha também se servido de uma das Cobras, após girá-la no dedo uma vez ou duas, como Annie Oakley.*

— Talvez explique — disse ela, dando um sorriso para Jake. Havia muito tempo que Susannah não se sentia tão bem fisicamente. Tão não-grávida. Sua mente, no entanto, estava inquieta. Ou talvez fosse seu espírito.

Eddie levantava um pano que tivera rolado em forma de tubo, amarrado com três voltas de corda.

— Esse tal de Ted disse que estava nos deixando um mapa da área do presídio. Aposto que é isto. Alguém além de mim quer dar uma olhada?

Todos quiseram. Jake ajudou Eddie a desenrolar o mapa. Brautigan os advertira que era tosco, e certamente era: realmente não mais que uma série de círculos e quadros. Susannah viu o nome da pequena cidade — Vila Aprazível — e tornou a pensar em Ray Bradbury. Jake ficou fascinado pelo rude desenho dos pontos cardeais, onde o autor do mapa pusera um ponto de interrogação ao lado da letra N.

Enquanto estavam estudando aquele exemplo apressadamente traçado de cartografia, um grito demorado e trêmulo se ouviu vindo da escuridão lá fora. Eddie, Susannah e Jake olharam nervosos ao redor. Oi tirou a cabeça do meio das patas, deu um rosnado breve e baixo, depois tornou a pousar a cabeça, aparentemente caindo de sono: Pro inferno pra você, cara mau, estou com os meus e não preciso ter medo.

— O que foi? — Eddie perguntou. — Um coiote? Um chacal?

— Alguma espécie de cachorro do deserto — Roland explicou num tom ausente. Estava de cócoras (o que sugeria que os quadris estavam melhores, pelo menos naquele momento) com as mãos apoiadas nas canelas. Não tirava os olhos dos círculos e quadrados grosseiros desenhados no pano.

— Can-toi-tete.

— É como Dan-Tete? — Jake perguntou.

Roland o ignorou. Pegou o mapa com ambas as mãos e deixou a gruta sem olhar para trás. Os outros compartilharam um olhar e o seguiram, de novo enrolando os cobertores nos corpos como xales.

 

Roland voltou para onde Sheemie (com uma pequena ajuda de seus amigos) os levara. Desta vez foi o pistoleiro quem usou o binóculo, olhando demoradamente para o Céu Azul. Em algum lugar atrás deles, o cão do deserto tornou a uivar, um ruído solitário na escuridão.

E agora a escuridão estava mais sombria, pensou Jake. Os olhos começavam a se adaptar ao passo que o dia acabara, mas, por contraste, o facho de sol cintilante parecia ainda mais brilhante. Tinha bastante certeza de que o negócio com a máquina-sol era ela ficar totalmente acesa ou totalmente apagada, com nada no meio. Talvez o deixassem brilhar a noite inteira, mas Jake achava improvável. Os sistemas nervosos das pessoas são construídos para uma progressão ordeira de noite e dia, fora o que aprendera na aula de ciências. Era possível viver com longos períodos de pouca luz (todo ano havia gente vivendo assim na região ártica), mas isso podia realmente mexer com a cabeça. Jake achava que os encarregados do sistema fariam tudo para impedir que os Sapadores ficassem ainda mais pirados. Além de tudo, iam querer economizar o seu “sol” pelo maior tempo possível; tudo ali estava velho, sujeito a colapsos.

Por fim Roland deu o binóculo a Susannah.

— Dê uma olhada especial nas construções dos dois lados do retan-gulo gramado. — Tornou a desenrolar o mapa como uma personagem pronta a ler uma proclamação num palco e examinou-o rapidamente.

— No mapa elas têm os números 2 e 3 — disse.

Susannah estudou-as com cuidado. A que estava marcada com o número 2, a casa do Administrador, era um casebre pintado de azul berrante com arremate branco. Era o que sua mãe talvez tivesse chamado de casa de conto de fadas, por causa das cores brilhantes e de uns apliques que adornavam os beirais.

A Casa Damli era muito maior e ela viu pessoas entrando e saindo. Algumas tinham o ar despreocupado de civis. Outras pareciam muito mais... oh, digamos, vigilantes. E ela viu uma ou duas curvadas, carregando fardos grandes. Passando o binóculo a Eddie, Susannah perguntou se eram Filhos de Roderick.

— Acho que sim — disse ele —, mas não posso estar completamente...

— Esqueçam os Rods — disse Roland —, ao menos por enquanto. O que acha daquelas duas construções, Susannah?

— Bem — disse ela, respondendo cautelosamente (não tinha a menor idéia do que Roland esperava dela) —, pelo menos são muito bem conservadas, principalmente se as compararmos com as ruínas que temos encontrado em nossas viagens. A casa que chamam de Casa Damli é especialmente bonita. É um estilo que chamamos de Queen Anne e...

— Acha que são mesmo de madeira ou apenas feitas para aparentar isto? Estou particularmente interessado na casa chamada Damli...

Susannah tornou a dirigir o binóculo para lá e depois passou-o a Eddie. Ele olhou e passou o binóculo a Jake. Enquanto Jake estava observando, ouviram nitidamente um CLIQUE!, que veio rolando através de quilômetros... e o raio de sol de Cecil B. DeMille, que brilhara sobre o Devar-Toi como um holofote, se apagou, deixando-os no meio de uma espessa sombra arroxeada, que logo se transformaria na mais extrema escuridão.

Nisso, o cachorro do deserto começou de novo a uivar, fazendo a pele se arrepiar nos braços de Jake. O uivo aumentou... aumentou... e de repente foi cortado por um último som abafado. Parecia um derradeiro grito de surpresa e Jake não teve dúvida de que o cão do deserto estava morto. Algo avançava furtivo atrás dele e quando a grande luz no alto se apagou...

Lá embaixo ainda havia luzes: uma dupla fileira que poderiam ser postes de luz em Vila Aprazível e círculos amarelos que provavelmente eram lâmpadas de mercúrio ao longo das várias trilhas do que Susannah chamava agora Sapador U... Havia também holofotes, desenhando padrões casuais no escuro.

Não, Jake pensou, São holofotes de busca. Como num filme sobre um presídio.

— Vamos voltar — disse ele. — Não há mais nada para ver e não gosto de ficar aqui fora no escuro.

Roland concordou. Seguiram-no em fila indiana, com Eddie carregando Susannah e Jake andando atrás deles com Oi nos calcanhares. Ele continuava esperando um segundo cão do deserto para comparar com o grito do primeiro, mas não ouviu mais nenhum.

 

— São de madeira — disse Jake. Estava sentado de pernas cruzadas sob um dos lampiões a gás, deixando seu bem-vindo clarão esbranquiçado brilhar no rosto.

— Madeira — Eddie concordou.

Susannah hesitou um momento, sentindo que era uma questão de real importância lembrar-se com exatidão do que tinha visto. Também acabou abanando a cabeça.

— Madeira, tenho quase certeza. Principalmente na que chamam de Casa Damli. Uma construção estilo Queen Anne de pedra ou tijolo, camuflada para ficar parecendo madeira? Não faz sentido.

— Se servir para enganar desgarrados com vontade de queimá-la — disse Roland —, faz sentido. Faz realmente sentido.

Susannah pensou no assunto. Ele tinha razão, é claro, mas...

— Ainda digo que é de madeira.

Roland assentiu.

— Eu também. — Ele havia encontrado uma grande garrafa verde com a inscrição PERRIER. Ao abri-la, verificou que Perrier era água. Pegou cinco copos e derramou um pouco em cada um. Pôs os copos nafrente de Jake, Susannah, Eddie, Oi e ele próprio.

— Você me chama de dinh? — perguntou a Eddie.

— Sim, Roland, você sabe que sim.

— Vai compartilhar o khef comigo e beber desta água?

— Sim, se você quiser. — Eddie já não estava sorrindo. A sensação voltara e era forte. Ka-shume, uma palavra pesarosa que ainda não conhecia.

— Beba, vassalo.

Eddie não chegou exatamente a gostar de ser chamado de vassalo, mas bebeu a água. Roland se ajoelhou diante dele e depositou um beijo breve e seco nos lábios de Eddie.

— Eu te amo, Eddie — disse ele e lá fora, na ruína que era Trovoada, soprou um vento do deserto carregando uma poeira envenenada e áspera.

— Ora... eu também te amo — disse Eddie. Foi uma surpresa ele dizer isso. — O que há de errado? E não me diga que não é nada, porque estou sentindo.

— Não há nada de errado — disse Roland sorrindo, mas Jake nunca tinha ouvido tanta tristeza na voz do pistoleiro. Isso o apavorou. — É só ka-shume e aconteceu a todos os ka-tets que já existiram... mas agora, enquanto ainda somos um todo, compartilhamos nossa água. Compartilhamos nosso khef. É uma coisa alegre a fazer.

Olhou para Susannah.

— Você me chama de dinh?

— Sim, Roland, eu o chamo de dinh. — Ela parecia muito pálida, mas talvez fosse apenas a luz esbranquiçada dos lampiões a gás.

— Vai compartilhar o khef comigo e beber desta água?

— Com prazer — disse ela, pegando o copo de plástico.

— Beba, vassala.

Susannah bebeu, olhos negros e graves não se afastando dos olhos dele. Pensou nas vozes que ouvira no sonho da cela de xadrez em Oxford: este morto, aquele outro morto, aquele terceiro morto; oh, Discórdia, e as sombras ficaram mais carregadas.

Roland beijou sua boca.

— Eu te amo, Susannah.

— Eu também te amo.

O pistoleiro se virou para Jake.

— Você me chama de dinh?

— Sim — disse Jake. Não havia dúvida nenhuma sobre sua palidez; até os lábios estavam cinzentos. — Ka-shume significa morte, não é? Qual de nós vai ser atingido?

— Não sei — disse Roland. — A sombra ainda pode se afastar de nós, pois a roda continua em movimento. Não sentiu o ka-shume quando entrou com Callahan no antro dos vampiros?

— Sim.

— Ka-shume para os dois?

— Sim.

— Contudo aqui está você. Nosso ka-tet é forte e tem sobrevivido a muitos perigos. Pode também sobreviver a este.

— Mas estou sentindo...

— Sim — disse Roland. A voz era amável, mas aquele olhar terrível não saía de seus olhos. Um olhar além da mera tristeza dizendo que, apesar do que pudesse acontecer, a Torre era maior, a Torre Negra era maior e era lá que ele habitava, de coração e alma, de ka e khef. — Sim, eu também sinto. Todos nós sentimos. Por isso é que tomamos a água, o que significa companheirismo, estar um com o outro. Vai compartilhar o khef comigo e compartilhar a água?

— Sim.

— Beba, vassalo.

Jake bebeu. Depois, antes que Roland pudesse beijá-lo, largou o copo, pôs os braços em volta do pescoço do pistoleiro e murmurou febrilmente no ouvido dele:

— Roland, eu te amo.

— Eu também te amo — disse Roland, soltando-o. Lá fora, o vento tornava a soprar. Jake esperou que alguma coisa uivasse (talvez em triunfo), mas nada o fez.

Sorrindo, Roland se virou para o zé-trapalhão.

— Oi do Mundo Médio, você me chama de dinh?

— Dinh! — disse Oi.

— Vai compartilhar o khef e esta água comigo?

— Khef! Auá!

— Beba, vassalo.

Oi pôs o focinho no copo de plástico (um ato que exigiu alguma destreza) e lambeu até a água desaparecer. Depois ergueu os olhos na expectativa. Havia gotas de Perrier em seus bigodes.

— Oi, eu te amo — disse Roland, pondo a face ao alcance dos dentes agudos do trapalhão. Oi lambeu o rosto dele uma única vez, depois voltou a enfiar o focinho no copo, querendo aproveitar alguma gota perdida.

Roland estendeu as mãos. Jake pegou uma e Susannah a outra. Logo estavam todos ligados. Como bêbados no fim de um encontro dos A.A., Eddie pensou.

— Somos ka-tet — disse Roland. — Somos um de muitos. Compartilhamos nossa água como compartilhamos nossas vidas e nossa missão. Se um tiver de cair, não ficará perdido, pois somos um e não esqueceremos isso, mesmo na morte.

Ficaram mais um momento de mãos dadas. Roland foi o primeiro a se soltar.

— Qual é o seu plano? — Susannah perguntou. Ela não o chamava de docinho; pelo que Jake sabia, nunca mais usou este ou qualquer outro termo de agrado com Roland. — Vai nos dizer?

Roland inclinou a cabeça para o gravador Wollensak, ainda pousado na tampa do barril.

— Talvez devêssemos ouvir isso primeiro — disse. — Realmente tenho uma espécie de plano, mas o que Brautigan tem a dizer pode ajudar em alguns detalhes.

 

A noite em Trovoada é a própria definição de escuridão: nem lua, nem estrelas. Se ficássemos, porém, na frente da gruta onde Roland e seu tet acabaram de compartilhar o khef e vão agora ouvir as fitas que Ted Brautigan deixou para eles, veríamos duas brasas vermelhas flutuando naquela escuridão impelida pelo vento. Se seguíssemos a trilha que sobe pelo lado da Steek-Tete em direção a essas brasas flutuantes (uma aventura perigosa no escuro), acabaríamos nos deparando com uma aranha de sete patas curvada sobre o corpo estranhamente murcho de um coiote mutante. Aquele can-toi-tete era uma coisa literalmente mal concebida, com o coto de uma quinta perna se projetando do peito e uma geléia de carne balançando, como teta deformada, entre as pernas traseiras, mas sua carne alimenta Mordred e o sangue — tomado numa série de tragos demorados, fumegantes — é doce como um vinho de sobremesa. Há, na verdade, todo tipo de coisa para comer ali. Mordred não tem amigos para carregá-lo de um lugar para o outro pelas botas de sete léguas da telecinese, mas não chegou a achar a jornada da estação Trovoada para a Steek-Tete exatamente árdua.

Já ouviu o bastante para ter certeza do que seu pai planeja: um ataque de surpresa contra o complexo ali embaixo. Enfrentarão efetivos muito maiores, mas o grupo de atiradores de Roland é ferozmente dedicado a ele e a surpresa é sempre uma arma poderosa.

E pistoleiros são o que Jake chamaria de fou, loucos quando ficam de sangue quente, sem medo de nada. Esta insanidade é uma arma ainda mais poderosa.

Mordred, ao que parece, nasceu com boa soma de conhecimento inato. Sabe, por exemplo, que Seu Pai Vermelho, possuindo a informação que ele agora tem, teria comunicado de imediato a presença do pistoleiro ao Mestre ou ao chefe de segurança do Devar-Toi. E então, um pouco mais no meio da noite, o ka-tet que veio do Mundo Médio teria sido emboscado, eles mesmos. Mortos durante o sono, talvez, permitindo assim que os Sapadores continuem a obra do Rei. Mordred não nascera conhecendo de antemão esta obra, mas é capaz de pensamento lógico e seus ouvidos são afiados. Ele agora compreende o que os pistoleiros querem: chegaram até lá para sapar os Sapadores.

Ele pode impedir, é claro, mas Mordred não tem interesse pelos planos ou ambições de seu Pai Vermelho. Do que gosta mesmo, como agora esta descobrindo, é da amarga solidão de ver de fora. De observar com o frio interesse de uma criança. Observar a vida, a morte, a guerra e a paz através da parede de vidro num dos lados da colônia de formigas em cima de seu gaveteiro.

Deixaria mesmo aquele ki’-dam matar seu Pai Branco? Oh, provavelmente não. Mordred está guardando esse prazer para si mesmo e tem suas razões; ele já tem suas razões. Mas quanto aos outros — o rapaz, a mulher de pernas curtas, o garoto — sim, se o ki’-dam Prentiss levar vantagem, que mate como quiser um dos três ou todos os três. Mordre Deschain deixará o jogo ser levado até o fim. Estará de olho. Estará ouvindo. Vai ouvir os gritos, sentir o cheiro de queimado e observar o sangue ensopando o chão. E então, se julgar que Roland não vai ganhar a jogada, ele, Mordred, vai sair do banco. Em nome do Rei Rubro, se isso parecer uma boa idéia, mas na verdade em seu próprio nome, e por sua própria razão, que de fato é bastante simples: Mordred está hiperfaminto.

E se Roland e seu ka-tet ganharem a jogada? Ganharem e continuarem o avanço para a Torre? No fundo Mordred não acha que isso vai acontecer, pois de alguma forma meio estranha ele é um membro do ka-tet deles, compartilha o khef com eles e sente o que eles sentem. Sente a iminente fratura da irmandade.

Ka-shume!, pensa Mordred, sorrindo. Sobra apenas um olho na face do coiote-cachorro do deserto. Uma de suas patas de aranha, escura e peluda, acaricia e arranca o olho. Depois de comer o olho como se fosse uma uva, Mordred volta para onde a luz esbranquiçada dos lampiões a gás escapa pelos cantos do cobertor que Roland pendurou na boca da gruta.

Poderia descer e chegar mais perto? Perto o suficiente para ouvir?

Mordred acha que sim, especialmente com aquele vento ficando mais forte, que abafa o som de seus movimentos. Uma idéia empolgante.

Dispara pela encosta rochosa em direção aos errantes traços de luz, em direção ao murmúrio da voz que vem do gravador e aos pensamentos daqueles que a ouvem: seus irmãos, sua mãe-irmã, o trapalhão domestica-do e, é claro, velando por todos, o Grande Ka-Papai Branco.

Mordred avança, furtivo, chegando o mais perto que pode e se encolhe na escuridão fria e cheia de vento, desgraçado e gostando de sua desgraça, sonhando seus sonhos de quem está de fora. Lá dentro, do outro lado do cobertor, está a luz. Que eles a tenham, se gostam dela; por ora que haja luz. No final ele, Mordred, vai apagá-la. E no escuro, terá seu prazer.

 

NOTAS DA CASA DO PÃO DE GENGIBRE*

Eddie olhou para os outros. Jake e Roland estavam sentados nos sacos de dormir que tinham sido deixados para eles. Oi se achava enroscado aos pés de Jake. Susannah estava confortavelmente assentada no seu Cruzador Trike. Eddie abanou a cabeça com ar satisfeito e empurrou o botão PLAY do gravador. As bobinas rodaram... houve silêncio... rodaram... e silêncio... então, depois de limpar a garganta, Ted Brautigan começou a falar. Ouviram-no por mais de quatro horas, Eddie substituindo cada bobina que ficava vazia pela próxima sem nem se preocupar em rebobinar.

Ninguém sugeriu que parassem, muito menos Roland, que continuou a ouvir em fascínio silencioso, mesmo quando o quadril começou a latejar de novo. Roland achou que agora compreendia a coisa melhor; certamente sabia que tinha uma chance real de parar o que estava acontecendo no complexo abaixo deles. O conhecimento o assustava porque as chances de êxito eram pequenas. A sensação de ka-shume deixava isso claro. E só era possível entender o que estava em jogo quando se via de relance a deusa em seu manto branco, a deusa-puta cuja manga caía para trás e revelava o braço branco, gracioso, com que ela acenava: Venha para mim, corra para mim. Sim, é possível, você pode alcançar seu objetivo, pode vencer, então corra para mim, dê-me seu coração por inteiro. E se eu partir seu coração? Se um de vocês falhar, cair no abismo do coffah (o lugar que seus novos amigos chamam de inferno)? Pior pra você.

Sim, se um deles caísse no coffah e queimasse em vista das fontes, isso seria de fato muito ruim. E a puta no manto branco? Ora, ela apenas ia colocar as mãos nos quadris, atirar a cabeça para trás e rir enquanto o mundo acabava. Tanto dependia do homem cuja voz cansada, racional, enchia agora a gruta. A própria Torre Negra dependia dele, pois Brautigan era um homem de tremendos poderes.

A coisa surpreendente era que o mesmo podia ser dito de Sheemie.

 

“Testando, um dois... testando, um dois... testando, testando, testando. Aqui é Ted Stevens Brautigan e isto é um teste...”

Uma breve pausa. A bobina girou, cheia, a outra começando a encher.

“Certo, tudo bem. De fato ótimo. Eu não tinha certeza se esta coisa ia funcionar, especialmente aqui, mas parece bem. Me preparei para isto tentando imaginar vocês quatro... cinco, contando o amiguinho do garoto... me ouvindo, porque sempre achei a visualização uma excelente técnica quando se está preparando algum tipo de apresentação. Infelizmente, neste caso ela não funciona. Sheemie consegue me mandar imagens mentais muito boas... de fato brilhantes... mas Roland é o único de vocês que ele realmente conheceu e que aliás não vê desde a queda de Gilead, quando ambos eram muito jovens. Não quero faltar ao respeito, companheiros, mas desconfio que o Roland que está indo para Trovoada não se parece em nada com o jovem que meu amigo Sheemie tanto cultuou.

“Onde está você agora, Roland? No Maine, procurando o escritor? Aquele que, de certa maneira, também me criou? Em Nova York, procurando a esposa de Eddie? Será que algum de vocês ainda está pelo menos vivo? Sei que as chances de chegarem em Trovoada não são boas; o ka os esta puxando para o Devar-Toi, mas um antika muito poderoso, posto em movimento por aquele que vocês chamam de Rei Rubro, está trabalhando de mil e uma maneiras contra você e seu tet. Mesmo assim...

“Foi Emily Dickinson quem chamou a esperança de a coisa com penas? Não consigo lembrar. Há muitíssimas coisas de que não consigo mais me lembrar, mas parece que ainda me lembro de como lutar. Talvez isso seja uma boa coisa. Espero que seja uma boa coisa.

“Passou pela cabeça de vocês perguntar onde estou fazendo essa gravação, senhora e senhores?”

Não tinha passado. Estavam simplesmente ali sentados, hipnotizados pelo som um tanto metálico da voz de Brautigan, servindo-se de uma garrafa de Perrier e passando de um lado para o outro uma lata de bolachas de graham.

“Vou dizer a vocês”, Brautigan continuou, “parcialmente porque os três que são da América certamente acharão a coisa divertida, mas principalmente porque poderão achar a informação útil na formulação de um plano para dar fim ao que está se passando em Algul Siento.

“Estou falando sentado numa cadeira feita de barras de chocolate. O assento é um grande marshmallow azulado e duvido que os colchões de ar que estamos planejando deixar para vocês sejam um dedo mais confortáveis. Vão pensar que tal assento seja pegajoso, mas não é. As paredes deste cômodo — e a cozinha que posso ver se olhar pelo arco de jujuba à minha esquerda — são feitas de doces verdes, amarelos e vermelhos. Dê uma lambida no verde e vai sentir sabor de limão. Lamba o vermelho e será um sabor de framboesa. Embora o gosto (em todo sentido desta palavra escorregadia) tenha muito pouco a ver com as escolhas de Sheemie, ou pelo menos é o que eu acho; penso que ele simplesmente tem um amor infantil pelo brilho das cores primárias.”

Roland estava abanando a cabeça e sorrindo um pouco.

“Embora eu deva confessar”, a voz do gravador disse secamente, “que gostaria de ter pelo menos um cômodo com uma decoração ligeiramente mais discreta. Talvez algo azul. Tons de terra seriam ainda melhor.

“Falando de tons de terra, a escada também é de chocolate. O balaústre é um bastão doce. Não se pode, porém, dizer ‘a escada que vai para o andar de cima’, pois não há andar de cima. Através da janela se pode ver carros estranhamente parecidos com bombons passando e a própria rua lembra alcaçuz. Mas se você abre a porta e dá mais que um passo na avenida Twizzler,* descobre que voltou ao ponto exato onde começou. No que p0demos chamar de ‘mundo real’, por falta de um termo melhor.

“A Casa do Pão de Gengibre — que é como nós a chamamos porque é o cheiro que você está sempre sentindo aqui, pão de gengibre quente, saindo do forno — é tanto criação de Dinky quanto de Sheemie. Dinky, assim como Sheemie, estava alojado no dormitório da Casa Corbett e, certa noite, ouviu Sheemie chorando no travesseiro. Muita gente teria passado ao largo numa situação dessas, e acho que ninguém no mundo se parece menos com o Bom Samaritano que Dinky Earnshaw. Mas o fato é que em vez de seguir adiante, ele bateu na porta da suíte de Sheemie, perguntando se podia entrar.

“Perguntem a ele sobre isso e Dinky dirá que não fez grande coisa. ‘Eu era novo no lugar, estava sozinho, queria fazer amigos’, ele vai dizer. ‘Ao ouvir o cara chorando daquele jeito me ocorreu que também ele podia estar querendo um amigo.’ Como se fosse a coisa mais natural do mundo. Em um monte de lugares isso poderia ser verdade, mas não em Algul Siento. E acho que é isso que vocês precisam entender antes de mais nada se quiserem nos entender. Por isso me perdoem se pareço insistir neste ponto.

“Alguns guardas humos nos chamam de morks, que é o nome de um alienígena de um seriado humorístico de tevê. E ninguém podia ser mais egoísta que os morks. Anti-sociais? Não exatamente. Alguns são extremamente sociais, mas só até o ponto em que isso lhes proporcionar o que estiverem querendo ou precisando. Pouquíssimos morks são sociopatas, rnas a maioria dos sociopatas são morks, se vocês entendem o que estou dizendo. O mais famoso, e graças a Deus os homens baixos jamais o trouxeram para cá, foi um assassino chamado Ted Bundy*

Se você tem um ou dois cigarros a mais, ninguém vai ser mais simpático — ou reverente — que um mork precisando de um cigarro. Assim que o conseguir, no entanto, ele desaparece.

“A maioria dos morks — estou falando de 98% ou 99% — teriam ouvido o choro atrás daquela porta fechada e não chegariam sequer a diminuir o passo no caminho que estivessem seguindo. Dinky bateu e perguntou se podia entrar, embora fosse novo no lugar e estivesse justificadamente confuso (ele também pensava que ia ser punido por ter assassinado seu chefe anterior, mas isso é uma história para outro dia).

“E devíamos olhar para o lado de Sheemie nisso. Mais uma vez eu diria que 98 ou mesmo 99 morks em cada cem teriam respondido ‘cai fora!’ ou ‘vá se foder!’ a um estranho que batesse. Por quê? Porque somos extremamente conscientes de que somos diferentes da maioria das pessoas, o que aliás é um detalhe de que a maioria das pessoas não gostam. Imagino que da mesma maneira como os neanderthals não gostavam dos primeiros cro-magnons nas vizinhanças. Os morks não gostam de serem apanhados desprevenidos.”

Uma pausa. As bobinas rodam. Todos os quatro podiam sentir a intensidade do pensamento de Brautigan.

“Não sei se estou me explicando bem”, ele disse por fim. “O que os morks não gostam é de serem apanhados num estado emocionalmente vulnerável. Sentindo raiva, felicidade, em lágrimas ou com acessos de riso histérico, qualquer coisa desse tipo. Seria como vocês, rapazes, entrando numa situação perigosa sem as armas.

“Por um longo tempo, eu estava sozinho aqui. Era um mork que se importava com os outros, gostasse disso ou não. Então houve Sheemie, valente o bastante para aceitar consolo se o consolo, foi oferecido. E Dink, que estava disposto a estender a mão. A maioria dos morks são introvertidos egoístas que se mascaram como individualistas heróicos — querem que o mundo os veja como pioneiros, tipo Daniel Boone* —, e os funcionários do Algul adoram isso, podem crer. Nenhuma comunidade é mais fácil de governar que aquelas que rejeitam o próprio conceito de comunidade. Entendem por que me vi atraído por Sheemie e Dinky, e como me senti feliz ao encontrá-los?”

A mão de Susannah se introduziu na de Eddie. Ele a pegou e apertou suavemente.

“Sheemie estava com medo do escuro”, Ted continuou. “Os homens baixos — chamo todos eles de homens baixos, embora haja humos e taheens em atividade aqui, assim como can-toi — têm uma dúzia de testes sofisticados para potencial psíquico, mas não se deram conta de que tinham pego um imbecil que estava simplesmente com medo do escuro. Má sorte deles.

“Dinky compreendeu o problema de imediato e resolveu-o contando histórias a Sheemie. As primeiras foram contos de fadas e um deles era ‘João e Maria’. Sheemie ficou fascinado com a idéia de uma casa de doces e continuou pedindo mais detalhes a Dinky. Então, você vê, foi Dinky quem realmente pensou nas cadeiras de chocolate com assentos de marshmallow, no arco com jujuba e no balaústre feito de um bastão doce. Por algum tempo houve um segundo andar; nele havia as camas dos Três Ursinhos. Mas Sheemie nunca se interessou muito por essa história e quando ela escapuliu de sua mente, o andar de cima da Casa do Pão de Gengibre...” Ted Brautigan deu uma risada. “Bem, acho que podem dizer que ele se biodegradou.

“Seja como for, acredito que o lugar onde estou é na realidade uma fístula no tempo ou...” Outra pausa. Um suspiro. Então: “Olhem, há um bilhão de universos compreendendo um bilhão de realidades. Foi uma coisa que passei a perceber desde que fui trazido de volta do que o ki’-dam insiste em chamar ‘minhas pequenas férias em Connecticut’. Filho-da-puta seboso!”

Ódio real na voz de Brautigan, Roland pensou, e aquilo era bom. O ódio era bom. Era útil.

“Aquelas realidades são como uma parede de espelhos, só que não há dois reflexos exatamente iguais. Posso acabar voltando para essa imagem, mas não de imediato. O que eu quero que compreendam por agora — ou simplesmente aceitem — é que a realidade é orgânica, a realidade é viva. É algo como um músculo. O que Sheemie faz é abrir um buraco nesse músculo com uma seringa mental. Ele só dispõe de um utensílio como este porque é especial...”

— Porque é um mork — Eddie murmurou.

— Calado! — disse Susannah.

“...usando-o”, Brautigan continuava.

(Roland pensou em rebobinar para pegar as palavras perdidas, decidiu que não tinham importância.)

“É um lugar fora do tempo, fora da realidade. Sei que vocês compreendem pelo menos um pouco a função da Torre Negra; compreendem seu propósito unificador. Bem, pensem na Casa do Pão de Gengibre como uma varanda na Torre: quando chegamos aqui, estamos fora da Torre mas ainda ligados à Torre. É um lugar real — real o bastante para que eu volte dele com manchas de doce em minhas roupas e mãos —, mas é um lugar a que só Sheemie Ruiz pode ter acesso. E quando aqui estamos, o lugar é o que ele quer que seja. Eu me pergunto, Roland, se você ou seus amigos, quando o conheceram em Mejis, tiveram alguma noção de quem Sheemie realmente era e do que era capaz de fazer.”

Neste ponto Roland estendeu a mão e empurrou o botão STOP do gravador.

— Sabíamos que era... estranho — ele disse aos outros. — Sabíamos que era especial. Às vezes Cuthbert dizia: “O que há com aquele garoto? Ele dá um comichão na minha pele!” E então ele apareceu em Gilead, ele e seu jumento, Cappi. Alegou que tinha nos seguido. E sabíamos que aquilo era impossível, mas naquela época estava acontecendo tanta coisa que o empregado de um saloon em Mejis... e nada brilhante, ainda que alegre e prestativo... era a última de nossas preocupações.

— Ele fez telecinese, não foi? — Jake perguntou.

Roland, apesar de estar ouvindo a palavra pela primeira vez, abanou de imediato a cabeça.

— Pelo menos parte da distância; teve de ser assim. Como poderia, por exemplo, ter atravessado o rio Xay? Havia uma única ponte, uma ponte feita de cordas, e assim que a atravessamos, Alain a cortou. Nós a vimos cair na água 300 metros abaixo.

— Ele podia ter contornado — disse Jake.

Roland balançou a cabeça.

— Podia... mas isso o faria se desviar pelo menos seiscentas rodas de seu caminho.

Susannah assobiou.

Eddie esperou para ver se Roland tinha mais alguma coisa a dizer. Quando ficou claro que não, ele se inclinou para a frente e tornou a apertar tar o botão PLAY. A voz de Ted encheu de novo a gruta.

“Sheemie é um telecinético. O próprio Dinky é um precognitivo... entre outras coisas. Infelizmente, um bom número de avenidas para o futuro lhe foram bloqueadas. Se vocês estão se perguntando se o jovem sai Earnshaw sabe no que tudo isto vai dar, a resposta é não.

“Seja como for, há este buraco hipodérmico na carne viva da realidade... esta varanda no flanco da Torre Negra... esta Casa do Pão de Gengi-bre. Um lugar real, difícil que seja para acreditar. É aqui que guardaremos as armas e o equipamento de campanha que pretendemos deixar para vocês numa das grutas do outro lado de Steek-Tete e é aqui que estou gravando a fita. Quando deixei meu quarto com esta máquina antiquada, mas incrivelmente eficiente, debaixo do braço, eram 10hl4 da manhã, TPCA — Tempo Padrão do Céu Azul. Quando eu voltar serão ainda 10hl4 da manhã. Não importa quanto tempo eu demore. Essa é apenas uma daquelas coisas terrivelmente convenientes acerca da Casa do Pão de Gengibre.

“Precisam entender — talvez Roland, o velho amigo de Sheemie, já tenha compreendido — que somos três rebeldes numa sociedade dedicada à idéia de continuar avançando sempre num determinado sentido, mesmo que isso signifique o fim da existência... e não exatamente a longo prazo. Temos alguns dons extremamente úteis e, ao reuni-los, conseguimos ficar um passo à frente. Mas se Prentiss ou Finli de Tego... ele é chefe de segurança de Prentiss... descobrirem o que estamos tentando fazer, Dinky seria comida de minhoca até o anoitecer. Sheemie também, ao que tudo indica. Provavelmente eu continuaria seguro por mais algum tempo, por razões que ainda vou explicar, mas se Pimli Prentiss descobrir que estamos tentando trazer um verdadeiro pistoleiro para se meter em seus negócios — alguém que talvez já tenha orquestrado as mortes de mais de cinco dúzias de Capas Verdes não longe daqui — até minha vida estaria em risco.” — Uma pausa. — “Por menos valiosa que ela seja.”

Houve uma pausa mais longa. A bobina que começara vazia estava agora cheia pela metade.

“Escutem, então”, disse Brautigan, “e lhes contarei a história de um homem sem sorte e infeliz. Pode ser uma história mais longa do que tenham tempo para ouvir; se for esse o caso, tenho a certeza de que pelo menos três de vocês saberão para que serve o botão FF. Quanto a mim, estou num lugar onde relógios são obsoletos e o brócolis é sem dúvida proibido por lei.* Tenho todo o tempo do mundo.”

Eddie ficou novamente impressionado com o cansaço na voz do homem.

“Gostaria de sugerir que não acelerassem a fita a menos que realmente precisem fazê-lo. Como eu disse, pode haver algo aqui capaz de ajudá-los, embora eu não saiba o quê. Estou simplesmente envolvido demais para saber. E estou cansado de ficar em alerta, não só quando estou acordado, mas até mesmo quando estou dormindo. Se não fosse capaz de escapulir de vez em quando para a Casa do Pão de Gengibre e dormir sem as defesas ligadas, os rapazes can-toi de Finli certamente teriam há muito tempo pegado a nós três. Há um sofá no canto, também feito desses maravilhosos marshmallows não-pegajosos. Posso me deitar lá e ter os pesadelos que preciso ter para conservar minha sanidade. Depois posso voltar ao Devar-Toi, onde meu trabalho não é apenas proteger a mim mesmo, mas também proteger Sheemie e Dink. Garantir que, quando nos ocuparmos de nosso assunto secreto, os guardas e a porra de sua telemetria achem que estamos exatamente onde devíamos o tempo todo estar: em nossas suítes, no estúdio, pegando um filme no Gem ou tomando ice cream sodas na Henry Graham’s Drug Store & Fountain. Isso também significa continuar a Sapar e, cada dia que passa, posso sentir o Feixe em que estamos agora trabalhando — Urso e Tartaruga — vergar cada vez mais.

“Venham logo, rapazes. É o meu desejo por vocês. Venham o mais depressa que puderem. Porque não se trata apenas de eu fazer um errinho, vocês sabem. Dinky tem um temperamento terrível e um hábito de detonar cobras e lagartos se alguém apertar seus botões de ignição. Ele é capaz de falar algo que não devia num estado desses. E Sheemie faz o que pode, mas se alguém lhe fizer a pergunta errada ou pegá-lo fazendo a coisa errada quando eu não estiver por perto para consertar a história...”

Brautigan não concluiu este último pensamento. E pelo que diziarespeito a seus ouvintes, não precisava fazê-lo.

 

Quando ele começa de novo, é para dizer que tinha nascido em Milford, Connecticut, no ano de 1898. Todos nós já ouvimos esse tipo de introdução um número suficiente de vezes para saber que elas sinalizam — para o melhor ou para o pior — um início de autobiografia. Contudo, enquanto prestam atenção àquela voz, os pistoleiros são visitados por outro tipo de coisa familiar; isto é verdade até para Oi. A princípio não são capazes de pôr os dedos na coisa, mas logo ela se revela a eles. A história de Ted Brautigan, um Contador Ambulante em vez de um Padre Errante, é, sob muitos aspectos, similar àquela de Père Donald Callahan. Podiam quase ter sido gêmeos. E o sexto ouvinte — aquele no escuro cheio de vento, além da entrada da gruta tapada pelo cobertor — ouve com crescente simpatia e compreensão. Por que não? A bebida não é uma grande personagem na história de Brautigan, como foi na do Père, mas ainda se trata de uma história de vício e isolamento, a história de alguém que está na margem.

 

Com 18 anos de idade, Theodore Brautigan é aceito em Harvard, onde mora seu tio Tim, e tio Tim — sem filhos — está mais que disposto a pagar uma educação superior para Ted. E até onde Timothy Atwood tem conhecimento, o que acontece é muitíssimo fácil de compreender: oferta feita, oferta aceita, sobrinho brilha em todas as áreas certas, sobrinho se forma e se prepara para entrar no negócio de fabricação de móveis do tio após seis meses fazendo turismo na Europa do pós-Primeira Guerra Mundial.

O que tio Tim não sabe é que antes de ir para Harvard, Ted tenta se alistar no que logo será conhecido como Força Expedicionária Americana, “Filho”, o médico diz a ele, “você tem um sopro no coração extremamente forte e sua audição está abaixo dos padrões. Vai me dizer que chegou aqui sem saber que essas coisas iam dar num carimbo vermelho? Porque, me perdoe se estou sendo inconveniente, você me parece esperto demais para isso.”

E então Ted Brautigan faz uma coisa que nunca tinha feito antes e jurara que jamais faria. Pede que o médico do exército escolha um número, não apenas entre um e dez mas entre um e mil. Para brincar com ele (é um dia chuvoso em Hartford, o que significa que as coisas estão indo devagar no centro de alistamento), o médico pensa no número 748. Ted o devolve. Depois 419... 89... e 997. Quando Ted o convida a pensar numa pessoa famosa, viva ou morta, e quando Ted responde Andrew Johnson, não Jackson mas Johnson, o médico fica realmente impressionado. Chama outro médico, um amigo, que passa pela mesma sabatina com Ted... com uma exceção. Ted pede que o segundo médico escolha um número entre um e um milhão e responde ao doutor que ele estava pensando em 87.416. O segundo médico parece momentaneamente surpreso — na realidade, atônito — depois disfarça com um grande sorriso safado. “Pena, filho”, diz ele, “você só errou por mais ou menos 130 mil.” Ted o encara sem sorrir, sem reagir de nenhuma forma ao sorriso safado, pelo menos não conscientemente, mas tem 18 anos e ainda é suficientemente jovem para ficar chocado com uma mentira tão completa e aparentemente tão sem sentido. Enquanto isso, o sorriso de safado do Médico Número Dois começa a desbotar no rosto. O Médico Número Dois se vira para o Médico Número Um e diz: “Olhe nos olhos dele, Sam... Veja o que esta acontecendo com os olhos dele.”

O primeiro médico tenta apontar um oftalmoscópio para os olhos de Ted, e Ted empurra o aparelho com impaciência para o lado. Conhece espelhos e sabe do modo como às vezes suas pupilas se expandem e contraem, está consciente quando está acontecendo, mesmo quando não há espelho à mão, por uma espécie de sensação de embaçamento, de tremor na vista, e isso não interessa a ele, principalmente naquele momento. O que interessa naquele momento e que o Médico Número Dois está fodendo com ele e ele não sabe por quê. “Desta vez escreva o número”, Ted convida. “Anote o número para que não possa trapacear.”

O Médico Número Dois vocifera. Ted repete o desafio. O doutor Sam pega um pedaço de papel e entrega uma caneta ao segundo doutor. O homem está realmente prestes a escrever um número, mas reconsidera, joga a caneta namesa de Sam e diz: “É um truque barato de esquina de rua, Sam. Está cego se não consegue ver isso.” E se retira da sala.

Ted convida o dr. Sam a pensar num parente, qualquer parente, e pouco depois diz que o médico está pensando em seu irmão Guy, que morrera de apendicite aos 14 anos; desde então, a mãe dos dois tem chamado Guy de anjo da guarda de Sam. Desta vez o dr. Sam fica com a sensação de ter levado um tapa. Finalmente está com medo. Seja por causa daquele estranho movimento para-dentro-para-fora das pupilas de Ted ou da franca demonstração de telepatia sem sequer uma esfrega de cabeça para impressionar ou um “estou captando uma imagem... espere...” O dr. Sam está finalmente com medo. Coloca REJEITADO na ficha de alistamento de Ted com o grande carimbo vermelho, tenta se livrar dele — próximo!, quem quer ir para a França e cheirar o gás mostarda? —, e Ted pega seu braço com gentileza, mas de modo algum hesitante.

“Preste atenção”, diz Ted Stevens Brautigan. “Sou um genuíno telepata. Suspeitei que era desde os seis ou sete anos de idade... com idade suficiente para saber a palavra... e tive certeza disso desde os 16. Eu podia ser de grande ajuda na Inteligência do Exército e minha audição abaixo dos padrões ou meu sopro no coração não teriam qualquer importância numa atividade dessas. Quanto à coisa com meus olhos?” Pôs a mão no bolso do paletó, puxou um par de óculos escuros e colocou-os. “Ta-Dá!”

Dá ao dr. Sam um meio sorriso. É inútil. No centro de recrutamento temporário do departamento de educação fisica do Colégio East Hartford, há um segurança na porta e o médico chama por ele.

“Este sujeito é 4-F e estou cansado de discutir com ele. Talvez fosse melhor escoltá-lo até a rua.”

Agora o braço de Ted é que é agarrado, e não de forma exatamente gentil.

“Espere um minuto!”, diz Ted. “Há mais alguma coisa! Algo ainda mais valioso! Não sei se há uma palavra para isso, mas...”

Antes que ele possa continuar, o segurança o tira da sala e o empurra vigorosamente pelo corredor. Passam por rapazes e moças de ar espantado, quase exatamente da mesma idade que ele. Há uma palavra e ele vai aprendê-la anos mais tarde, no Céu Azul. A palavra é indutor e, do ponto de vista de Paul “Pimli” Prentiss, ela simplesmente transforma Ted Stevens Brautigan no mais valioso humo do universo.

Não, porém, naquele dia de 1916. Nesse dia de 1916, ele é vigorosamente arrastado pelo corredor e depositado no degrau de granito defronte à entrada principal e ouve de um homem com um sotaque muito sulista que “a gente só quer que tu fique aí fora, ‘bói”. Após algumas considerações, Ted concluiu que o segurança não o está chamando de boi; ‘bói naquele contexto é com toda a probabilidade a variante com sotaque sulista para caubói.

Por alguns momentos, Ted fica simplesmente parado onde o deixaram. Está pensando o que é preciso para convencer esses sujeitos? e como podem ser assim tão cegos? Não pode acreditar no que acabou de lhe acontecer.

Mas tem de acreditar, porque ali está ele, na rua. E ao término de uma caminhada de 10 quilômetros em volta de Hartford, acha que também está entendendo outra coisa. Nunca vão acreditar. Nenhum deles. Jamais. Se recusarão a admitir que um sujeito que poderia ler a mente coletiva do Alto Comando Alemão fosse realmente útil. Um sujeito que poderia dizer ao Alto Comando Aliado onde ia acontecer a próxima grande investida alemã. Um sujeito que pudesse fazer algumas vezes uma coisa dessas — talvez apenas uma ou duas vezes! — seria capaz de dar fim à guerra pelo Natal. Mas ele não terá essa chance porque não lhe darão ouvidos. E por quê? Isso tem alguma relação com a atitude do segundo médico trocando o número quando Ted o pronunciou e depois se recusando a anotar o próximo número num pedaço de papel. Porque bem lá no fundo querem lutar e um cara como Ted estragaria tudo.

Era alguma coisa desse tipo.

Fodam-se, então. Iria para Harvard às custas do tio.

E vai. Harvard é tudo que Dinky contou a eles e ainda mais: Teatro, Debate, o Rubro Harvard, Odd Fellows da Matemática e, é claro, o melhor de tudo, Phi Beta Privada. Chega a poupar alguns dólares ao tio por se formar mais cedo.

Está no sul da França, a guerra acabou faz tempo, e um telegrama chega às suas mãos: TIO MORTO PONTO VOLTE LOGO CASA PONTO.

A palavra-chave ali parecia ser PONTO.

Deus sabe que foi um daqueles momentos divisores de águas. Ele foi para casa, sim, e deu consolo onde era preciso dar consolo, sim. Mas em vez de entrar no negócio de móveis, Ted decidiu dar um PONTO final em sua marcha para o sucesso financeiro e começar uma marcha para a obscuridade financeira. Na curso da longa história que o homem conta, o ka-tet de Roland nem uma só vez ouve Ted Brautigan culpar seu talento excêntrico ou seu momento de epifania pela sua anonimidade deliberada: este é um talento valioso queninguém quer.

E Deus, como ele chega a compreender! Para começar, seu “talento selvagcm” (como as revistas baratas de ficção científica às vezes chamam a coisa) é, na realidade, fisicamente perigoso quando ocorre nas circunstâncias certas. Ou mesmo nas circunstâncias erradas.

Em 1935, em Ohio, o talento transforma Ted Brautigan num assassino.

Ele não tem dúvida de que, para alguns, a palavra é dura demais, mas nesse caso em particular ele prefere ser o juiz, obrigado pelo interesse oh muito obrigado, e ele acha que a palavra é adequada. Está na cidade de Akron, é um azulado crepúsculo de verão, há garotos chutando uma lata numa calçada da avenida Stossy, outros improvisando, na outra calçada, um beisebol com cabos de vassoura e Brautigan está na esquina, de terno leve, perto do poste com a listra branca pintada nele, a listra branca que ali indica a parada de ônibus. Atrás dele há uma loja de doces deserta com uma águia azul da NRA* numa vitrine e uma pichação com cal na outra que diz TÃO MATANDO O HOMENZINHO. Ted está apenas parado ali com sua arranhada maleta de couro de cabra e um saco marrom — uma costeleta de porco para o jantar, que ele pegou no açougue do sr. Dale. De repente alguém o atropela por trás e ele é impelido para o poste com a listra branca pintada. Ele se conecta primeiro com o nariz. O nariz quebra. Borrifa sangue. Depois a boca se conecta, ele sente os dentes entrarem cortando na carne macia dos lábios e de repente a boca está cheia de um sabor salgado que lembra suco de tomate quente. Sente uma batida nos rins e um barulho de rasgar. Suas calças são puxadas para baixo até a metade do traseiro pela força da batida, pendendo amassadas e tortas, como as calças de um palhaço. De repente um cara de camiseta e calça de gabardine com um traseiro brilhante desce em disparada a avenida Stossy em direção ao jogo de beisebol. A coisa se agitando em sua mão direita, se agitando com uma língua de couro marrom, ora, aquela coisa é a carteira de Ted Brautigan. Ele acabou de ser despojado de sua carteira, por Deus!

O crepúsculo arroxeado daquela noite de verão se aprofunda para encher tudo de escuro, depois brilha de novo, depois se aprofunda mais uma vez. Na realidade são os olhos de Ted fazendo o truque que, vinte anos antes, impressionara aquele segundo médico. Ted, no entanto, mal repara. Sua atenção está fixada no homem que foge, no filho-da-puta que acabou de despojá-lo da carteira e de arrebentar sua cara. Nunca, em toda a sua vida, ficara tão furioso nunca, e embora o pensamento que ele manda ao homem que foge seja inócuo quase amável

(ei parceiro eu teria lhe dado um dólar se você tivesse pedido, talvez até dois,)

tem o peso letal de uma lança atirada. E era uma lança. Ele demora algum tempo para aceitar isso plenamente, mas a certa altura percebe que é um assassino e, se há um Deus, um dia Ted Brautigan terá de se postar diante de Seu trono e responder pelo que acabou de fazer. O homem que foge parece tropeçar em alguma coisa, mas não há nada ali, só HARRY AMA BELINDA, um rabisco desbotado, feito a giz na calçada rachada. A expressão de sentimento está cercada por desenhos infantis (estrelas, um cometa, uma meia-lua), desenhos que mais tarde ele passará a temer. Ted tem a sensação de ele mesmo ter acabado de ser atingido por uma lança no meio das próprias costas, mas ele ao menos ainda está em pé. Ele não pretendia fazer aquilo. É verdade. No coração, sabe que não pretendia fazer aquilo. Ele foi apenas... apanhado de surpresa e surgiu a raiva.

Pega a carteira e vê os garotos do beisebol olhando para ele, as bocas abertas. Aponta a carteira para eles como uma espécie de arma de cano mole e o garoto segurando o pedaço de cabo de vassoura recua. E antes esse recuo que o corpo caindo que vai assombrar os sonhos de Ted mais ou menos durante um ano e depois, de vez em quando, pelo resto de sua vida. Porque ele gosta de crianças, jamais assustaria uma delas de propósito. E sabe o que elas estão vendo: um homem com boa parte da calça puxada para baixo, deixando à mostra a cueca samba-canção (e ele desconfia que sua rola possa estar saindo pela abertura da frente, e não seria isso uma espécie de último toque mágico). Tinha uma carteira na mão e um olhar enlouquecido no rosto cheio de sangue.

“Vocês não viram nada!”, grita para eles. “Escutem o que estou dizendo! Escutem bem! Vocês não viram nada!”

Então dá um puxão na calça. Depois volta para a maleta e a pega do chão, mas não a costeleta de porco no saco de papel marrom, foda-se a costeleta de porco, perdeu o apetite junto com um dos dentes incisivos. Então dá outra olhada no corpo estirado na calçada e nos garotos assustados. Aí ele corre.

Que se torna uma carreira.

 

O final da segunda fita soltou-se do eixo e continuou a rodar com um leve ruído de fuip-fuip-fuip.

— Jesus — disse Susannah. — Jesus, esse pobre homem.

— Tanto tempo atrás — disse Jake, balançando a cabeça como se precisasse clareá-la. Para ele os anos entre seu quando e os do sr. Brautigan pareciam um abismo intransponível.

Eddie pegou a terceira caixa e exibiu a fita que havia lá dentro, erguendo suas sobrancelhas para Roland. O pistoleiro fez um dedo rodopiar em seu antigo gesto, aquele que dizia vamos, vamos.

Eddie fez a fita passar pelas cabeças de reprodução. Nunca fizera aquilo antes, mas não era preciso ser um cientista espacial para descobrir como funcionava. A voz abatida começou de novo, falando da Casa do Pão de Gengibre que Dinky Earnshaw fizera para Sheemie, um lugar real criado apenas pela imaginação. Uma varanda ao lado da Torre Negra, como o chamara Brautigan.

Matara o homem (sem querer, todos teriam concordado; tinham passado a viver pela arma e sabiam a diferença entre querer e não querer sem precisar debater o assunto) por volta das sete da noite. Pelas nove, Brautigan estava seguindo para oeste num trem. Três dias mais tarde esquadrinhava os anúncios “precisa-se contador” no jornal de Des Moines. Já então sabia alguma coisa sobre si próprio, sabia como teria de ser cuidadoso. Não podia mais se dar ao luxo da raiva, mesmo quando a raiva fosse justificada. Normalmente, era apenas uma versão light de telepata (podia dizer o que você tinha comido no almoço, podia dizer qual carta era a rainha de copas, porque o malandro da esquina que fazia o truque das três cartas sabia), mas quando furioso podia recorrer à lança, à sua terrível lança...

“E a propósito, isso não é verdade”, disse a voz do gravador. “Quero dizer, a parte sobre ser apenas uma variedade light de telepata. Mesmo quando eu era pouco mais que um garoto de calça curta tentando entrar no exército. Eu só não conhecia a palavra que me qualificava.”

A palavra, como se viu, era indutor. E mais tarde ele teve certeza de quecertas pessoas — certos recrutadores de talento — o estavam vigiando, avaliando suas aptidões, percebendo que ele era diferente mesmo no subgrupo dos telepatas, mas não fazendo idéia até que ponto era diferente. Para começar, os telepatas que não vinham da Terra Chave (segundo sua expressão) eram raros. Por outro lado, Ted chegara a perceber, em meados de 1930, que o que ele tinha era na realidade transmissível. Se encostasse a mão numa pessoa quando estivesse num estado de grande emoção, essa pessoa se tornaria, por um período curto, também telepata. O que ele não sabia, na época, era que podia deixar pessoas que já eram telepatas com poderes mais fortes.

Exponencialmente mais fortes.

“Mas isso está mais à frente de minha história”, disse ele.

Mudava-se de cidade em cidade, um vagabundo pretensioso que andava no vagão de passageiros usando um terno, em vez de entrar num vagão de carga usando macacão de mecânico, alguém que nunca parava num lugar pelo tempo suficiente para criar raízes. De fato ele achava que sempre soube que era vigiado. Era uma coisa intuitiva, como as coisas estranhas que às vezes as pessoas vêem de relance pelo canto do olho. E Ted tomou consciência da existência de uma certa espécie de gente. Alguns eram mulheres, a maioria eram homens e todos tinham um gosto por roupas berrantes, bifes malpassados e carros velozes pintados de cores tão espalhafatosas quanto as roupas. Suas faces eram curiosamente carregadas e estranhamente inexpressivas. Um ar que muito mais tarde ele passou a associar com idiotas que faziam cirurgia plástica com médicos charlatães. Durante esse mesmo período de vinte anos — mas de novo de forma não consciente, percebido apenas pelo canto do olho de sua mente — ele passou a entender que, independentemente da cidade onde estava, certos símbolos muito simples, infantis, costumavam aparecer em cercas, entradas e calçadas. Estrelas e cometas, planetas com anéis e meias-luas. Às vezes um olho vermelho. Freqüentemente havia um desenho de jogo da amarelinha na mesma área, mas nem sempre. Mais tarde, disse ele, tudo se encaixou de uma maneira meio louca, mas não lá atrás nos anos 30, 40 e início dos 50, quando ele estava vagando. Não, naquela época fora um pouco como os Médicos Um e Dois, não querendo ver o que estava bem na sua frente, porque era... perturbador.

E então, mais ou menos quando a Guerra da Coréia se aproximava do fim, ele viu “o” Anúncio. Que prometia O TRABALHO QUE VOCÊ SEMPRE QUIS e dizia que se você fosse O HOMEM COM AS QUALIFICAÇÕES CERTAS não haveria ABSOLUTAMENTE QUALQUER PERGUNTA. Enumerava-se um certo número de habilidades requeridas, sendo uma delas a prática da contabilidade. Brautigan tinha certeza de que o anúncio saíra nos jornais de todo o país; por acaso ele o viu no jornal de Sacramento Bee.

— Santa merda! — Jake gritou. — É o mesmo jornal que Père Callahan estava lendo quando encontrou seu amigo George Magruder...

— Quieto — disse Roland. — Escutem.

Eles escutaram.

 

Os testes são administrados por humos (um termo que Ted Brautigan ainda demorará algumas semanas para conhecer — pelo menos até sair do ano de 1955 e penetrar no não-tempo do Algul). O entrevistador que ele finalmente encontra em San Francisco é também humo. Ted vai aprender (entre um grande número de outras coisas) que o disfarce que os homens baixos usam, mais particularmente as máscaras que usam, não é bom, não quando você está próximo e olha muito de perto. Muito de perto você pode ver a verdade: eles são híbridos humos/taheens que encaram o tema de seu tornar-se, de seu vir a ser, com fervor religioso. O modo mais fácil de se ver envolvido no abraço de urso de um homem baixo, com um punhado de dentes assassinos buscando sua artéria carótida, ê afirmar que as únicas duas coisas que eles estão vindo a ser é mais velhos e mais feios. As marcas vermelhas em suas testas — o Olho do Rei — geralmente desaparecem quando estão do lado americano (ou secam, como espinhas temporariamente dormentes), e as máscaras assumem uma estranha qualidade orgânica, exceto atrás das orelhas (onde a pele de baixo, peluda e incrustada de caroços, aparece) e dentro das narinas (onde é possível ver dúzias de pequenos cílios se mexendo). Mas quem seria tão grosseiro de querer ficar olhando por dentro das canaletas de meleca de um sujeito?

A despeito do que possam pensar, uma olhada íntima e próxima revelaria algo radicalmente errado com eles, mesmo quando estão do lado americano, o que pode prejudicá-los, pois ninguém deve assustar o peixe antes que a rede esteja devidamente no lugar. Então são humos (um termo abreviado que os can-toi não gostam de usar; acham-no aviltante, como “crioulo” ou “vamp”) nos testes para empregos, humos nas salas de entrevista, só humos até mais tarde, quando atravessarem uma das portas que ainda funcionam do lado americano e entrarem em Trovoada.

Ted é testado, juntamente com cerca de uma centena de outros, num ginásio que lhe traz à lembrança outro em East Hartford. Este agora está cheio de fileiras e fileiras de carteiras de estudantes (colchões têm sido cuidadosamente colocados para impedir que as antiquadas pernas redondas de ferro das carteiras arranhem a madeira envernizada do piso), mas após a primeira rodada de testes — um diagnóstico de noventa minutos cheio de matemática, inglês e avaliações semânticas — metade delas estão vazias. Após a segunda rodada, há três quartos. A Segunda Rodada consiste em algumas perguntas muitíssimo estranhas, questões altamente subjetivas e em várias oportunidades Ted dá uma resposta em que não acredita porque pensa — talvez saiba — que as pessoas que aplicam o teste querem uma resposta diferente daquele que ele (e a maioria das pessoas) geralmente dariam. Por exemplo, há esta pequena pérola:

 

23. Você pára perto de um carro capotado numa estrada de pouco movimento. Preso no carro há um Rapaz gritando por socorro. Você pergunta: “Está ferido, Rapaz?” Ao que ele responde: “Acho que não!” Caída no mato, há uma Bolsa a tiracolo cheia de Dinheiro. Você:

 

a . Socorre o Jovem e lhe devolve o Dinheiro;

b . Socorre o Jovem, mas insiste em que o Dinheiro seja levado para a Polícia local;

c . Pega o Dinheiro e continua no seu caminho, sabendo que, embora a estrada possa ser pouco freqüentada, alguém vai aparecer para libertar o Jovem;

d . Nenhuma das respostas acima.

 

Se isto fosse um teste para a polícia de Sacramento, Ted teria feito de imediato um círculo em volta do “b”. Podia ser pouco mais do que um vagabundo na estrada, mas sua mamãe não tinha criado tolos, obrigado oh muito obrigado. Essa opção também seria a correta na maioria das circunstâncias — a opção jogo-seguro, a opção não-pode-dar-errado. Havia outra opção segura, mas puramente defensiva: “eu não tenho a mínima porra de pista sobre o que está sendo tratado aqui, mas pelo menos sou honesto o bastante para dizer isso”; essa era a “d”.

Ted circunda o “c”, mas não porque fosse necessariamente o que ia fazer numa situação daquelas. No geral tenderia a agir conforme o “a”, presumindo que faria pelo menos algumas perguntas ao “Rapaz” para saber de onde vinha a grana. E se a tortura de verdade não fosse utilizada (e ele ia saber, certo, não importavam as respostas do “Rapaz” sobre o assunto), Ted ia dizer claro, aqui está seu dinheiro, vaya con Dios. E por quê? Porque por acaso Ted Brautigan acredita que o dono da loja de doces fechada estava certo: TÃO MATANDO O HOMENZINHO.

Mas marca o “c” e, daí a cinco dias, se vê na ante-sala de um estúdio de danças falido em San Francisco (passagem no trem de Sacramento pré-paga), junto com três outros homens e uma adolescente taciturna (a moça é a ex-Tanya Leeds, de Bryce, no Colorado, no fim das contas). Mais de quatrocentas pessoas, atraídas pelas palavras doces do anúncio, apareceram para o teste no ginásio, perdedores em sua maior parte. Ali porém, estavam quatro cordeiros. Um por cento de quatrocentos. Mas mesmo aquilo, Brautigan descobrirá a seu tempo, é uma excelente pesca.

Finalmente é introduzido num escritório com a inscrição PARTICULAR. O lugar está quase todo cheio de empoeirados apetrechos de balé. Um homem de terno marrom, ombros largos e expressão dura está sentado numa cadeira dobrável, absurdamente cercado por finos saiotes rosados de dança. Ted pensa: Um verdadeiro sapo num jardim imaginário.

O homem se inclina para a frente, os braços nas coxas de elefante.

— Sr. Brautigan — diz ele —, talvez eu seja um sapo, mas posso lhe oferecer o emprego por que sonhou a vida inteira. Posso também despachá-lo daqui com um aperto de mão e um muito obrigado. Depende da resposta que  me der a uma pergunta. Na realidade, uma pergunta sobre outra pergunta.

O homem, cujo nome seria Frank Armitage, entrega a Ted uma folha de papel. Nela, aumentado, está escrito: Questão 23, aquela sobre o Jovem e a Bolsa de Dinheiro.

— Marcou o “c” — diz Frank Armitage. — Agora, sem absolutamente qualquer hesitação, por favor me diga por quê.

— Porque o “c” era a resposta que você queria — Ted responde sem absolutamente qualquer hesitação.

— E como sabe disso?

— Porque sou um telepata — diz Ted. — E isso é o que você está realmente procurando. — Ele tenta manter seu olhar de jogador de pôquer e acha que é bastante bem-sucedido, mas por dentro está cheio de um grande e cantarolante alívio. Porque encontrou um emprego? Não. Porque logo farão a ele uma proposta que tornaria ridículos os prêmios dos novos programas de auditório da TV? Não.

Porque alguém finalmente quer o que ele sabe fazer.

Porque alguém finalmente o quer.

 

A oferta de trabalho mostrou ser outra enganação doce, mas Brautigan foi suficientemente honesto em suas memórias gravadas para dizer que talvez tivesse ido em frente mesmo se soubesse da verdade.

“Porque um dom não sabe ficar quieto, não sabe como ficar quieto”, disse. “Seja um talento para abrir cofres, ler pensamento ou dividir números de dez algarismos de cabeça, ele clama para ser usado. Nunca se cala. Vai acordá-lo no meio da noite em que você estiver mais cansado, gritando: ‘Me use, me use, me use! Estou farto de ficar aqui parado! Me use, seu porra, me use!’”

Jake deixou escapar uma onda de riso pré-adolescente. Cobriu a boca, mas continuou rindo através das mãos. Oi levantou a cabeça para ele, sorridente, amistoso, os círculos dourados flutuando em volta dos olhos negros.

Naquele quarto cheio de saiotes de bailarina, com o chapéu de feltro repuxado na cabeça com corte à escovinha, Armitage perguntou se Ted já tinha ouvido falar dos “seabees sul-americanos”.* Quando Ted respondeu que não, Armitage contou que um consórcio de bem-sucedidos empresários sul-americanos, brasileiros em sua maior parte, havia contratado um grupo de engenheiros americanos, pedreiros e peões de obra em 1946. No todo, mais de uma centena de homens. Eram os Pedreiros Sul-America-nos. O consórcio contratou-os por um período de quatro anos, sob diferentes patamares salariais, mas os valores eram extremamente — quase embaraçosamente — generosos em todos os níveis. Um operador de escavadeiras podia assinar, por exemplo, um contrato de 20 mil dólares por ano, o que naquele tempo era grana pra caramba. Mas havia mais: um bônus igual a um ano de salário. Um total de 100 mil dólares. Se, é claro, o sujeito concordasse em se submeter a uma curiosa condição: você vai, trabalha e não volta até os quatro anos estarem concluídos ou o trabalho feito. Você tinha dois dias de folga a cada semana, exatamente como na América, e férias a cada ano, exatamente como na América, mas nos Pampas. Não podia ir à América do Norte (ou mesmo ao Rio) até seu período de quatro anos de trabalho estar cumprido. Se morresse na América do Sul, ficaria enterrado lá — ninguém pagaria para que seu corpo fosse enviado ao cemitério de Wilkes-Barre.* Mas você recebia 50 mil dólares já de cara e um prazo de carência de sessenta dias durante o qual podia gastar o dinheiro, poupá-lo, investi-lo ou cavalgá-lo como se ele fosse um pônei. Se preferisse investimento, estes 50 mil poderiam se transformar em 75 quando você saísse rodopiando da selva com um bronzeado que chegava aos ossos, um monte de novos músculos e um repertório infinito de histórias. É claro que, depois de sair você tinha aquilo que os marinheiros ingleses chamavam de “outra metade”, para juntar a isto.

A coisa era assim, Armitage disse seriamente a Ted. Só que a metade da frente seria um razoável quarto de milhão e a metade de trás seria meio milhão.

“O que parecia incrível”, disse Ted, falando no Wollensak. “É claro que parecia, diabo! Só mais tarde descobri como estavam nos comprando absurdamente barato, mesmo com aqueles valores. Dinky é particularmente eloqüente sobre o tema do pão-durismo deles... ‘eles’, neste caso, sendo todos os burocratas do Rei. Dinky diz que o Rei Rubro está tentando produzir o fim de toda a criação com desconto e naturalmente tem razão, mas acho que mesmo Dinky percebe — embora não seja capaz, é claro, de admitir — que, quando se oferece demasiado a um homem, ele simplesmente se recusa a acreditar que a coisa é séria. Ou, dependendo de sua imaginação (e muitos telepatas e precognitivos não têm praticamente imaginação nenhuma), ele pode ser incapaz de acreditar nisso. Em nosso caso, o período contratual devia ser de seis anos, com opção de renovação, e Armitage precisava que eu tomasse minha decisão de imediato. Poucas técnicas são tão bem-sucedidas, senhoras e senhores, quanto aquela onde você confunde a mente de seu alvo, congela-a com avidez e submete-a a um ataque relâmpago.

“Eu estava devidamente submetido a ataque e concordei de imediato. Armitage me disse que meu quarto de milhão estaria àquela tarde no Seaman’s San Francisco Bank, e eu poderia sacar o dinheiro assim que chegasse lá. Perguntei se eu não tinha de assinar um contrato. Ele estendeu uma das mãos — grande como um pernil, acreditem — e me disse que aquele era nosso contrato. Perguntei-lhe para onde eu ia e o que teria de fazer — todas essas perguntas deviam ter sido feitas logo no início, tenho certeza que concordarão, mas eu estava tão aturdido que a coisa nem me passou pela cabeça.

“Além disso, eu estava certo de que já sabia de tudo. Achei que ia trabalhar para o governo. Algum assunto relacionado com a Guerra Fria. O ramo telepático da CIA ou do FBI instalado em alguma ilha do Pacífico. Me lembro de ter imaginado que excelente radionovela aquilo podia dar.

“Armitage me disse: ‘Vai viajar para longe, Ted, mas também será aqui do lado. E por enquanto é tudo que posso dizer. Mantenha a boca fechada sobre nosso acordo durante as oito semanas antes de você realmente... hummm... embarcar. Não esqueça que em boca fechada não entra mosquito. Sei que posso estar lhe incutindo alguma paranóia, mas presumo que esteja sendo vigiado.’

“É evidente que estava sendo vigiado. Mais tarde — demasiado tarde, vamos dizer assim — fui capaz de reviver meus últimos dois meses em Frisco e perceber que os can-toi estavam o tempo todo me vigiando.

“Os homens baixos.”

 

“Armitage e dois outros humos nos encontraram na frente do hotel Mark Hopkins”, disse a voz do gravador. “Me lembro da data com absoluta clareza; era o Halloween de 1955. Cinco da tarde. Eu, Jace McGovern, Dave Ittaway, Dick... Não consigo lembrar o sobrenome dele, ele morreu uns seis meses depois, Humma disse que era pneumonia e o resto dos ki’cans lhe deu apoio — ki’can significa mais ou menos pessoas de merda ou folken de merda, se quer saber —, mas foi suicídio e pelo menos eu tive certeza disso. O resto... bem, se lembra do Médico Número Dois? O resto era e é como ele. ‘Não me diga o que não quero saber, sai, não confunda minha visão do mundo.’ De qualquer modo, a última foi Tanya Leeds. Coisinha valente...”

Uma pausa e um clique. Então a voz de Ted voltou, parecendo temporariamente revigorada. A terceira fita tinha quase acabado. Ele deve ter realmente matado o resto da história, Eddie pensou e sentiu que a idéia o desapontava. Não importa o que mais pudesse ser, Ted era um contador de histórias do cacete.

Armitage e seus colegas apareceram numa camionete Ford, que chamávamos de furgão naqueles dias elegantes. Eles nos levaram para o interior, para uma cidade chamada Santa Mira. Havia uma rua principal pavimentada. As outras ruas eram de terra. Lembro que havia um monte de torres de petróleo, cada uma lembrando um grande louva-a-deus... embora já estivesse escuro e fossem apenas formas contra o céu.

Eu estava esperando uma estação de trens ou talvez um ônibus com FRETADO no lugar do letreiro. Em vez disso, avançamos para um depósito de carga com uma placa meio caída de lado dizendo SANTA MIRA EXPEDIÇÃO e recebi uma mensagem, clara como o dia, de Dick não-im-Porta-o-sobrenome. Vão nos matar, ele estava pensando. Trouxeram-nos até aqui para nos matar e roubarem nossas coisas.

“Se você não é um telepata, não sabe como uma coisa dessas pode ser assustadora. Com que firmeza ela consegue... invadir sua cabeça. Vi Dave Ittaway ficar pálido e embora Tanya não tivesse feito o menor ruído — era uma coisinha valente, como eu disse — havia luz suficiente no carro para ver as lágrimas parando no canto de seus olhos.

“Eu me inclinei sobre ela, pus as mãos de Dick nas minhas e apertei-as quando ele tentou puxá-las. Dirigi a ele o pensamento: Não nos deram um quarto de milhão em dinheiro vivo, cada um, a maior parte ainda guardadinha no Seaman’s Bank, para nos trazerem aqui neste fim de mundo e roubarem nossos relógios. E Jace pensou para mim: Eu nem mesmo tenho um relógio. Empenhei o meu Gruen dois anos atrás em Albuquerque e quando pensei em comprar outro — isto foi ontem à noite, por volta da meia-noite — todas as lojas estavam fechadas. Seja como for, eu estava embriagado demais para descer do banquinho do bar.

“Isso nos relaxou e todos rimos. Armitage perguntou do que estávamos rindo, o que nos relaxou ainda mais, porque tínhamos algo que eles não tinham, podíamos nos comunicar de um modo que eles não podiam. Disse a ele que não era nada, depois dei outro pequeno apertão nas mãos de Dick. Isso fez o trabalho. Acho que... servi de indutor para ele. Foi a primeira vez que fiz isto. A primeira de muitas. Essa é parte da razão pela qual estou tão cansado; toda esta indução deixa o sujeito esgotado.

“Armitage e os outros nos levaram para dentro. O lugar estava deserto, mas na extremidade havia uma porta com duas palavras escritas a giz ao lado daquelas luas e estrelas. ESTAÇÃO TROVOADA, dizia. Bem, não havia estação: nem trilhos, nem ônibus, nenhuma outra estrada além da que passamos para chegar lá. Havia janelas de cada lado da porta e, do outro lado do prédio, somente duas construções menores — galpões desertos, um deles apenas um casco queimado — e uma área de mato misturado com lixo.

David Ittaway disse:

— Por que estamos indo para lá? — e um dos outros disse:

— Você vai ver — e certamente vimos.

— As senhoras primeiro — disse Armitage abrindo a porta.

“Estava escuro do outro lado, mas não o mesmo tipo de escuro. Era um escuro mais escuro. Se já viram Trovoada à noite, vão compreender. E tudo parecia diferente. O velho camarada Dick teve umas dúvidas e se virou. Um dos homens puxou um revólver. E nunca vou esquecer o que Armitage disse. Porque ele parecia... benevolente.

— Tarde demais para voltar — disse ele. — Agora só dá para ir em frente.

“E acho que naquele momento compreendi o tal negócio sobre o esquema de seis anos, e se reescrever, se quiséssemos, era o que meu amigo Bobby Garfield e John Ferrugem, um amigo dele, teriam chamado apenas embromação. Não que pudéssemos ler isso nos pensamentos deles. Todos estavam usando chapéus, vocês sabem. Nunca se vê um homem baixo — ou muito menos uma senhora baixa — sem um chapéu. Os dos homens parecem os clássicos chapéus de feltro, do tipo que a maioria dos caras usavam naquela época, mas aqueles não eram bonés ordinários. Eram chapéus pensantes. Embora chapéus antipensantes fosse mais preciso; abafavam os pensamentos das pessoas que os estivessem usando. Se você tentasse progar alguém que estivesse usando um — progar é a palavra que Dinkv usa para leitura da mente —, você simplesmente obtinha um zumbido com um monte de cochichos no fundo. Muito desagradável. Como os sinos todash. Se já os ouviu, você sabe como é. Desencorajam esforço excessivo, e esforço é a última coisa em que a maioria dos telepatas do Algul estão interessados. No que os Sapadores estão interessados, senhora e senhores, é em ir indo para ir indo. O que só parece o que é — monstruoso —, se você recuar para ter uma visão de conjunto. Mais uma coisa que não interessa à maioria dos Sapadores. Com bastante freqüência se ouve um ditado — um pequeno poema — pelo campus ou o vemos escrito a giz nas paredes. ‘Desfrute a viagem, ligue o ar-refrigerado, não há nada a perder, trabalhe em seu bronzeado.’ Isto significa muito mais que ‘fique tranqüilo’. As implicações desta pequena peça de versos ruins são extremamente desagradáveis. Eu me pergunto se conseguem entender isso.”

Eddie achou que pelo menos ele conseguia e ocorreu-lhe que o irmão Henry teria dado um Sapador absolutamente excepcional. Presumindo, é claro, que lhe fosse dada permissão para levar consigo a heroína e os álbuns de Creedence Clearwater Revival.

Uma pausa mais longa de Ted, depois uma risada algo triste.

“Acho que está na hora de encurtar um pouco uma história comprida. Atravessamos a porta, e isso. Se já fizeram isso, sabem como a coisa pode ser desagradável se a porta não estiver em perfeito estado de funcionamento. Mas a porta entre Santa Mira, na Califórnia, e Trovoada estava em melhor estado do que muitas que atravessei depois.

“Por um momento havia apenas escuridão do outro lado e o uivo do que os taheens chamam cães do deserto. Então um feixe de luzes se acendeu e vimos aquelas... aquelas coisas com cabeças de pássaros e fuinhas e um com a cabeça de um touro, chifres e tudo. Jace gritou e eu fiz o mesmo. Dave Ittaway se virou e tentou correr, mas Armitage o agarrou. Mesmo se não o tivesse agarrado, que lugar havia para ir? Voltar pela porta? Estava fechada e, pelo que sei, essa é de sentido único. O único de nós que não fez nenhum barulho foi Tanya e, quando ela me olhou, o que vi em seus olhos e li em seus pensamentos foi um alívio. Porque finalmente começávamos a compreender. Nem todas as perguntas tinham sido respondidas, mas as duas importantes foram. Onde estávamos? Em outro mundo. Quando íamos voltar? Nunca mais em vida. Nosso dinheiro ficaria no Seaman’s de San Francisco até se transformar em milhões e ninguém jamais iria gastá-lo. Tínhamos entrado para o longo prazo.

“Havia um ônibus com um motorista-robô chamado Phil. ‘Meu nome é Phil, tenho o fio, mas o melhor é que nunca tô frio’, dizia ele. Cheirava como faísca e, do fundo de suas entranhas, vinha todo tipo de clique dissonante. O velho Phil agora está morto, despejado no cemitério de trens e robôs com só Deus sabe quantos outros, mas o pessoal de Armitage tem suficiente ajuda mecanizada para acabar o que começaram, tenho certeza.

“Dick desmaiou quando saímos no lado de Trovoada mas, quando começamos a ver as luzes do complexo, já tinha voltado a si. Tanya deitara a cabeça dele no colo e lembro com que ar agradecido ele a olhava. É engraçado o que você lembra, não é? Fizeram os nossos registros no portão. Designaram nossos dormitórios, nossas suítes, cuidaram para que fôssemos alimentados... e foi uma refeição realmente excelente. A primeira de muitas.

“No dia seguinte, fomos trabalhar. E, excluindo minhas pequenas ‘férias em Connecticut’, estamos trabalhando até agora.”

Outra pausa. Então:

“Que Deus nos ajude. Estamos trabalhando até agora. E, Deus nos perdoe, a maioria de nós tem sido feliz. Porque a única coisa que o talento quer é ser usado.”

 

Conta-lhes sobre suas primeiras jornadas no estúdio e sua percepção — não gradual, mas quase imediata — de que não estão ali para buscar espiões ou ler os pensamentos de cientistas russos, “ou qualquer idiotice de programa espacial”, como diria Dinky (que aliás ainda nem estava lá, embora Sheemie já estivesse). Não, o que eles fazem é sapar alguma coisa. Ele pode sentir isso, não apenas no céu sobre Algul Siento, mas em todo lugar ao redor, e mesmo sob seus pés.

Contudo, está bastante contente. A comida é boa e, embora seu apetite sexual tenha sofrido respeitável diminuição nos últimos anos, ele não é nada indiferente a uma transa ou outra, apenas se lembrando, a cada vez, que o sexo simulado não passa de masturbação com implementos. Mas, pensando bem, tem transado bastante por aí com uma puta ou outra pelos anos, como muitos homens que vivem na estrada, e sem dúvida ele pode testemunhar de que este tipo de sexo não é muito diferente da masturbação — você põe a coisa nela o mais dura que possa, o suor escorrendo, ela dizendo “meu bem-meu bem-meu bem”, e ela o tempo todo pensando se não devia abastecer o carro e tentando se lembrar de qual é o dia em que dão o dobro do valor nos cupons do mercado Red & White. Como acontece com a maioria das coisas na vida, é preciso usar a imaginação, e Ted pode fazer isso, ele é bom na velha coisa da visualização, obrigado oh muito obrigado. Ele gosta do teto sobre a cabeça, gosta da companhia — os guardas são guardas, sim, mas acredita neles quando dizem que além de impedir que os Sapadores saiam também têm o dever de impedir a entrada de coisas ruins. Ele gosta da maioria dos residentes e percebe, após um ou dois anos, que os residentes precisam dele de uma estranha maneira. Ele é capaz de consolá-los quando são atacados pelos nefastos vermelhos; é capaz de aliviar suas incapacitantes ondas de saudade com mais ou menos uma hora conversa murmurada, o que sem dúvida é uma boa coisa. Talvez tudo seja uma boa coisa — certamente a sensação é de uma boa coisa. Sentir saudades é humano, mas sapar é divino. Tenta explicar como é sapar a Roland e seu tet, mas o melhor que consegue fazer, o mais perto a que consegue chegar, é dizer que sapar é como conseguir coçar aquele lugar fora de alcance nas costas, o mesmo que sempre deixa você maluco com aquela coceira leve, mas insistente. Ele gosta de ir até o estúdio, assim como todos os outros. Gosta da sensação de estar lá sentado, cheirando madeira boa, couro bom, buscando... buscando... e então, de repente, aahhh. Ali está você! Você está fisgado, balançando como macaco num galho de árvore. Você está sapando, meu bem, e sapar é divino.

Dinky disse uma vez que o estúdio era o único lugar do mundo onde ele realmente se sentia em contato consigo mesmo e era por isso que o queria ver fechado. Se possível, queimado. “Porque conheço o tipo de merda que arrumo quando estou em contato comigo mesmo”, ele disse a Ted. “Quando eu, você sabe, chego realmente ao barato.” E Ted sabia exatamente do que estava falando. Porque o estúdio era sempre bom demais para ser verdade. Você se sentava, talvez pegasse uma revista, via as fotos de modelos, margarina, estrelas de cinema, automóveis e sentia sua mente subir. O Feixe estava por toda parte, era como estar em algum imenso corredor cheio de força, mas sua mente sempre subia ao teto e, quando ela chegava lá, encontrava aquele grande, velho barato.

Talvez um dia, logo após o recuo do Primal e com a voz de Gan ainda ecoando nos salões do macroverso, os Feixes fossem lisos e polidos, mas esse tempo já passou. Agora o Caminho do Urso e da Tartaruga está cheio de calombos e corroído pela erosão, cheio de recortes, baías, fendas, fraturas, muitos lugares onde o sujeito pode pôr os dedos e se agarrar, e às vezes você traga neles, e às vezes se sente abrindo sorrateiramente caminho para dentro dele, como uma gota de ácido capaz de pensar. Todas essas sensações são intensamente agradáveis. Sexy.

E para Ted há também outra coisa, embora ele só ficasse sabendo que era o único a tê-la depois que Trampas lhe contara. Trampas não pretende lhe contar nada, mas ele tem um terrível caso de eczema, vocês sabem como é, e isso mudou tudo. Difícil acreditar que um couro cabeludo escamoso possa ser responsável por salvar a Torre Negra, mas a idéia não é de todo fantasiosa.

Não era de todo fantasiosa, absolutamente.

 

“Há cerca de 180 pessoas trabalhando em tempo integral no Algul”, disse Ted. “Não quero ensinar o padre a rezar missa, mas isto é algo que talvez vocês quisessem anotar ou pelo menos lembrar. Falando grosseiramente, são sessenta por turno de oito horas e divididos vinte-vinte-vinte. Os taheen têm os olhos mais aguçados e em geral ocupam as torres de vigia. Os humos patrulham o lado externo da cerca. Com armas, não esqueçam... de grosso calibre. E mandando, há Prentiss, o Mestre, e Finli de Tego, o chefe da segurança — respectivamente humo e taheen —, mas a maioria dos que não tem posto fixo são can-toi... vocês sabem, os homens baixos.

“A maioria dos homens baixos não se dão bem com os Sapadores; uma camaradagem discreta e formal é o máximo que conseguem manter. Dinky me disse uma vez que eles têm ciúmes de nós porque somos o que ele chama “humos acabados”. Como os guardas humos, os can-toi usam chapéus bloqueadores de pensamento quando estão de serviço, de modo que não conseguimos progá-los. O fato é que a maioria dos Sapadores passaram anos sem tentar progar ninguém nem coisa alguma além dos Feixes, e talvez não consigam mais fazê-lo; a mente é também um músculo que, como qualquer outro, fica atrofiado quando não é usado.

Uma pausa. Um clique na fita. Então:

“Não vou conseguir terminar. Estou desapontado mas não inteiramente surpreso. Esta terá de ser minha última história, pessoal. Sinto muito.”

Um barulho baixo. Um som de sorver, Susannah estava bem certa; Ted bebendo outro gole d’água.

“Já contei a vocês que os taheens não precisam dos chapéus bloqueadores de pensamento? Falam um inglês perfeito e às vezes sinto que alguns têm limitadas aptidões de progagem, podem enviar e receber — pelo menos um pouco —, mas se você mergulha num taheen, escuta uns estrondos entorpecedores da mente, uma espécie de estática mental (um ruído aparentemente inofensivo). Presumi que fosse algum tipo de dispositivo protetor; Dinky acredita que é o modo como eles realmente pensam. De uma maneira ou de outra, isso torna a coisa mais fácil para eles. Quando saem de manhã, não precisam se lembrar de pôr chapéus!

“Trampas era um dos can-toi errantes. Um dia você o encontrava Perambulando pela rua principal da Vila Aprazível ou sentado num banco no meio do Passeio, geralmente com algum livro de auto-ajuda tipo Sete Passos para o Pensamento Positivo. No dia seguinte, lá estava ele encostado na parede da Casa Inconsolável, tomando sol. O mesmo se dá com os outros can-toi errantes. Se existe um padrão, nunca fui capaz de prevê-lo, nem eu nem Dinky. Não achamos que haja um.

“O que sempre fez Trampas diferente é uma completa falta daquele senso de ciúmes. É realmente simpático — ou era; sob certos aspectos nem parecia ser um homem baixo. Não são muitos os colegas can-toi que gostam mesmo dele. O que é irônico, vocês sabem, porque se realmente existe essa coisa do vir a ser, o Trampas é um dos poucos que realmente parecem estar chegando a algum lugar. A simples risada, por exemplo. Quando a maioria dos homens baixos riem, a coisa soa como um cesto de rochas rolando por um escoamento de lata; faz você se arrepiar, e com razão, como Tanya diz. Quando Trampas ri, o som é um pouco estridente, mas fora isso é normal. Porque ele está rindo, eu acho. Genuinamente rindo. Os outros apenas forçam o riso.

“De qualquer modo, um dia eu comecei uma conversa com ele. Foi na rua Central, na frente do cinema Gem. Guerra nas Estrelas estava de volta para sua enésima-nona reprise. Se há um filme que os Sapadores nunca se cansam de ver, é Guerra nas Estrelas.

“Perguntei se ele sabia de onde vinha seu nome. Ele disse que sim, é claro, do clã familiar clã-fam. Em algum momento de seu desenvolvimento, todo can-toi recebe um nome humo do clã-fam; é uma espécie de marco iniciador da maturidade. Dinky diz que conseguem esse nome da primeira vez que batem punheta, mas isso é apenas a opinião de Dinky. O fato é que não sabemos nem importa, mas alguns dos nomes são bastante hilariantes. Há um sujeito meio parecido com Rondo Hatton, um ator de cinema dos anos 30 que sofria de acromegalia* e passou a trabalhar encarnando monstros e psicopatas, mas seu nome é Thomas Carlyle. Há outro chamado Beowulf e um sujeito chamado Van Gogh Baez.”

Susannah, uma freqüentadora do cinema de Bleecker Street** muito tempo atrás, pôs o rosto nas mãos para sufocar uma golfada de risinhos.

“De qualquer modo, eu lhe disse que Trampas era personagem de um famoso romance de faroeste chamado The Virginian (O virginiano). Secundário com relação ao verdadeiro herói, claro, mas Trampas tem a única frase do livro que todo mundo lembra: ‘Sorria quando disser isso!’ A coisa deliciava nosso Trampas e acabei lhe contando toda a trama do livro, tomando xícaras de café na lanchonete da drogaria.

“Ficamos amigos. Eu lhe contaria o que estava acontecendo em nossa pequena comunidade de Sapadores e ele me contaria as coisas inocentes, mas interessantes, que estavam acontecendo do seu lado da cerca. Ele também se queixava do eczema, que dava uma terrível coceira na cabeça. Não parava de levantar o chapéu — uma coisinha tipo boné, quase um solidéu judeu, só que feito de brim — para cocar embaixo. Reclamava que coceira na cabeça era a pior de todas, pior até que coceira lá embaixo, na rola. E pouco a pouco, percebi que cada vez que ele erguia o chapéu para coçar, eu podia ler seus pensamentos. Não apenas os que estavam na superfície, mas todos. Se fosse rápido — e o aprendi a ser — poderia selecioná-los, exatamente como selecionamos verbetes virando as páginas numa enciclopédia. Só que não era exatamente assim; era mais como ficar ligando e desligando um rádio durante a transmissão de um noticiário.”

— Nossa — disse Eddie, pegando outra bolacha de graham. Queria demais um pouco de leite para molhá-las; bolachas de graham sem leite eram quase como Negrescos sem o recheio.

“Imaginem ligar um rádio ou uma TV em volume máximo”, disse Ted naquela foz rouca e trêmula, “e desligar... bem rápido.” Falou as últimas palavras todas juntas e todos sorriram — até mesmo Roland. “Isso lhes dará a idéia. Agora vou lhes dizer o que aprendi. Desconfio que já saibam, mas simplesmente não posso correr o risco. É importante demais. Há uma Torre, senhora e cavalheiros, como os senhores devem saber. Em certa época, seis feixes ali se cruzavam, todos adquirindo energia dela — que é uma espécie de inimaginável fonte de energia — e ao mesmo tempo servindo-lhe de suporte, do modo como cabos de ferro sustentam uma torre de rádio. Quatro desses Feixes já se foram, o quarto muito recentemente. Os dois que restam são o Feixe do Urso, Caminho da Tartaruga — Feixe de Shardik — e o Feixe do Elefante, Caminho do Lobo — alguns o chamam de Feixe do Gan.

“Não sei se vocês conseguem imaginar meu horror quando descobri o que eu estivera de fato fazendo no estúdio — quando estava coçando aquele inocente comichão... Claro que eu já sabia que estava fazendo alguma coisa importante, sabia disso!

“E havia algo pior, algo de que eu não havia suspeitado, algo que só tinha a ver comigo. Eu percebera que era diferente sob certos aspectos; para começar, parecia ser o único Sapador com um grama de compaixão em minha personalidade. Quando eles têm as marcas vermelhas, sou eu, como já disse a vocês, o único a quem eles recorrem. Pimli Prentiss, o Mestre, casou Tanya e Joey Rastosovich — ele insistia nisso e não se ouvia uma só palavra contra a idéia, dizia que era seu privilégio e sua responsabilidade realizar o casamento; ele seria exatamente como o comandante de um velho navio de cruzeiro. Sem dúvida Joey e Tanya o deixaram casá-los, mas depois vieram para os meus aposentos e Tanya dizia: ‘Você nos casa, Ted. Assim ficaremos de fato casados.’

“Às vezes eu me pergunto: ‘Você achava que era só isso? Antes de começar a conviver com Trampas, prestando atenção sempre que ele levantava o chapéu para coçar, você realmente pensava que ter um pouco de piedade e um pouco de amor na alma bastava para distingui-lo dos outros? Ou também nisso você estava se iludindo?’

“Não tenho certeza, mas talvez eu possa me considerar inocente desta acusação. Eu realmente não compreendia que meu dom ultrapassa em muito a progagem e o trabalho de Sapar. Na realidade sou como um microfone para um cantor ou um esteróide para um músculo. Eu... lhes dou upgrade. Digamos que exista uma unidade de força psíquica — chamem-na sombra, está bem? No estúdio, vinte ou trinta pessoas podem ser capazes de projetar, numa hora, cinqüenta sombras sem mim. Comigo? Bem, talvez a coisa salte para quinhentas sombras por hora. E de imediato.

“Ouvindo a cabeça de Trampas, passei a ver que eles me consideravam o partidão do século, talvez da totalidade do tempo, o único Sapador verdadeiramente indispensável. Eu já os ajudara a quebrar um Feixe e estava abreviando em séculos o trabalho com o Feixe de Shardik. E quando o Feixe de Shardik quebrar, senhora e senhores, o de Gan só poderá durar um período muito curto. E quando o Feixe de Gan também quebrar, a Torre Negra vai cair, a criação chegará ao fim e o próprio Olho da Existência se tornará cego.

“Como consegui sempre impedir que Trampas percebesse minha angústia é coisa que não sei. E tenho razão para achar que eu não escondia minhas emoções tão bem como na época acreditava.

“Eu sabia que tinha de sair de lá. E foi aí que Sheemie me abordou pela primeira vez. Acho que há muito andava lendo meu pensamento, mas mesmo agora não tenho certeza e Dinky também não. O fato é que uma noite ele foi ao meu quarto e me dirigiu o pensamento: ‘Se quiser, sai, faço um buraco e você pode dar tchau-tchau pra tudo isso.’ Perguntei o que estava querendo dizer, mas Sheemie apenas ficou me olhando. Incrível quanta coisa pode ser dita por um olhar, não é? Não insulte minha inteligência. Não me faça perder tempo. Não perca o seu tempo. Realmente não li esses pensamentos em sua mente. Vi-os em seu rosto.”

Roland resmungou uma concordância. Tinha os olhos brilhantes, fixos nas bobinas que giravam no gravador.

“Acabei perguntando a ele onde o buraco ia dar. Ele disse que não sabia — era uma carta desconhecida. Sem dúvida não perdi muito tempo pensando. Tive medo de pensar demais e encontrar razões para ficar. Eu disse: ‘Vá nessa, Sheemie... Me faça dar tchau-tchau pra tudo isso.’

“Ele fechou os olhos, se concentrou e de imediato o canto de meu quarto sumiu. Pude ver carros passando do outro lado. Estavam distorcidos, mas eram verdadeiros carros americanos. Não discuti nem fiz mais perguntas, simplesmente topei a coisa. Não tinha certeza absoluta de conseguir completar a travessia para aquele outro mundo, mas chegara a um ponto onde praticamente nem me importava mais. Achei que morrer talvez fosse a melhor coisa a fazer. Pelo menos atrasaria o trabalho deles.

“E pouco antes que eu iniciasse o mergulho, Sheemie pensou em minha direção: ‘Procure meu amigo Will Dearborn. Seu nome verdadeiro é Roland. Os amigos dele estão mortos, mas sei que ele não, porque consigo ouvi-lo. É pistoleiro e agora tem um novo grupo de amigos. Traga-os para cá e eles farão com que os maus elementos parem de danificar o Feixe, do mesmo modo como fizeram que Jonas e seus amigos parassem na hora em que iam me matar.’ Para Sheemie, aquilo era um sermão.

“Fechei os olhos e atravessei. Houve uma breve sensação de ser virado de cabeça para baixo, mas foi só. Nada de sinos, nada de náusea. Uma coisa de fato bem agradável, pelo menos em comparação com o portal de Santa Mira. Saí com as mãos e joelhos no chão na margem de uma estrada movimentada. Uma folha de jornal voava entre o mato. Peguei a folha e vi que aterrissara em abril de 1960, quase cinco anos após Armitage e seus amigos nos arrebanharem através da porta em Santa Mira, do outro lado do país. Estava vendo um pedaço do diário Courant, de Hartford. Depois vi uma placa indicando a estrada como Merritt Parkway.”

— Sheemie pode criar portas mágicas! — Roland gritou. Estivera limpando o revólver, mas já o pusera de lado. — É isso a telecinese! É isso o que ela significa!

— Psiiiu, Roland! — disse Susannah. — Com certeza ele vai falar de sua aventura em Connecticut. Quero ouvir esta parte.

 

Mas nenhum deles vai ouvir a aventura de Ted em Connecticut. Ele se limita a dizer que “essa história fica para outro dia” e conta aos ouvintes que foi capturado em Bridgeport, quando tentava reunir dinheiro suficiente para desaparecer de forma definitiva. Os homens baixos o enfiaram num carro, levaram-no para Nova York e depois para um pé-sujo especializado em costeletas chamado Dixie Pig. De lá passaram a Fedic e de Fedic à estação Trovoada. Da estação foram direto para o Devar- Toi, oh Ted, que bom ver você, bem-vindo ao lar.

Três quartos da quarta fita já haviam rodado e a voz de Ted era pouco mais que um grasnido. Não obstante, ele toca corajosamente em frente.

“Não tinha ficado muito tempo fora, mas por aqui o tempo executara uma de suas erráticas escapulidas para a frente. Humma de Tego fora posto para fora, possivelmente por minha causa, e Prentiss de Nova Jérsei, o ki’-dam, estava lá. Ele e Finli me interrogaram um bom número de vezes na suíte do Mestre. Não houve tortura física — deve ser porque ainda me achavam importante demais para correr o risco de me causar algum dano —, mas houve muito desconforto e muitos jogos mentais. Também deixaram claro que se e tentasse fugir de novo, meus amigos de Connecticut iriam morrer. Eu disse: ‘Será que não percebem, rapazes? Se eu continuar fazendo meu trabalho, eles serão de qualquer modo liquidados. Todos vão ser liquidados, com a possível exceção daquele a quem vocês chamam Rei Rubro.’

“Prentiss juntou as mãos pelas pontas dos dedos daquele jeito irritante dele e disse: ‘Isso pode ou não ser verdade, sai, mas se for, nós não sofreremos quando formos ‘liquidados’, como você disse. Por outro lado, o Pequeno Bobby e a Pequena Carol... para não falar na mãe de Carol e no amigo de Bobby, John ferrugem...’ Não precisou acabar. Eu ainda me pergunto se eles sabem que de fato me deixaram terrivelmente assustado com essa ameaça contra meus jovens amigos. E terrivelmente irado.

“Todas as suas perguntas se resumiram nas duas coisas que realmente queriam saber: por que eu tinha fugido e quem me ajudara a fazê-lo. Eu podia ter utilizado aquela velha rotina de declarar meu nome, categoria e número de série, mas decidi me arriscar e ser um pouco mais expansivo. Tinha fugido, disse, porque conseguira de alguns guardas can-toi um lampejo do que estávamos realmente fazendo, e não gostei da coisa. Quanto ao modo como escapara, disse a eles que não sabia. Disse que tinha ido dormir uma noite e simplesmente acordara ao lado da Merritt Parkway. Ficaram entre escarnecer da história e semi-acreditar nela, principalmente porque eu não alterava uma só vírgula no modo de contá-la, por mais que me fizessem repeti-la. E sem dúvida sabiam que eu de fato tinha poderes, numa escala bem maior que os outros.

— Acha que é telecinético de um modo subsconsciente, sai? — Finli me perguntou.

— Como vou saber? — também perguntei... Responder sempre uma pergunta com outra é uma boa tática a ser seguida em interrogatórios, eu acho, pelo menos se for um interrogatório relativamente brando, como foi o caso daquele. — Nunca percebi qualquer aptidão desse tipo, mas naturalmente nem sempre sabemos o que está se escondendo em nosso subconsciente, não é?

— Torça para que não tenha sido você — disse Prentiss. — Aqui podemos conviver praticamente com qualquer dom selvagem, exceto esse. Esse, sr. Brautigan, significaria o fim, mesmo para um funcionário valioso como o senhor.

“Não sei se estava acreditando mesmo naquilo, mas depois Trampas me deu razões para achar que Prentis podia estar falando a verdade. De qualquer modo, essa foi a história que contei e nunca fui além dela.

“O caseiro de Prentiss, um sujeito chamado Tassa (humo, se isso interessa), trazia biscoitos e latas de Nozz-A-La (de que eu gosto porque tem um certo gosto de root beer*). Prentiss disse que me deixaria comer e beber... depois, é claro, de eu dizer onde obtive minha informação e como havia escapado de Algul Siento. A rodada de perguntas começava de novo e desta vez com Prentiss e o Fuinha mascando biscoitos e tomando Nozzie. Mas, a certa altura, eles acabaram cedendo e me deixaram tomar um gole e comer um biscoito. Como interrogadores, acho que o nazismo que havia neles não era suficiente para me fazer entregar meus segredos. Tentaram me progar, é claro, mas... já ouviram aquele velho ditado sobre nunca enrolar um enrolador?”

Eddie e Susannah abanam a cabeça. Jake faz o mesmo. Ele ouviu o pai dizer exatamente isso no meio de várias conversas sobre a programação da Rede.

“Aposto que sim”, Ted retomou. “Bem, é também justo dizer que não se pode progar um progador, pelo menos não um progador que já tenha atingido um certo nível de compreensão do processo. E, eu preferia chegar ao ponto antes que minha voz falhe por completo.

“Um dia, mais ou menos três semanas após os homens baixos me rebocarem de volta, Trampas se aproximou de mim na rua Central, em Vila Aprazível. A essa altura, eu já conhecera Dinky, já o identificara como um espírito afim e estava, com sua ajuda, começando a conhecer melhor o Sheemie. Muita coisa estava acontecendo além de meus interrogatórios diários na Casa da Administração. Desde meu retorno, Trampas mal me passara pela cabeça, mas ele praticamente não havia parado de pensar em mim. Foi o que rapidamente descobri.

— Sei as respostas das perguntas que continuam lhe fazendo — disse ele. — O que não sei é por que você não me entregou.

“Eu disse que a idéia jamais me passara pela cabeça — que agir como dedo-duro não era o modo como tinham me ensinado a fazer as coisas. E além disso, ninguém estava pondo uma picana elétrica no meu reto ou me puxando unhas... embora pudessem ter recorrido a essas técnicas se o interrogado fosse outra pessoa. O pior que tinham feito era me obrigar a ficar uma hora e meia olhando para o prato dos biscoitos de Prentiss antes de abrirem a guarda e me deixarem pegar um.

— No início fiquei furioso com você — disse Trampas —, mas então percebi... relutantemente... que talvez em seu lugar eu fizesse a mesma coisa. Na primeira semana da sua volta, não dormi muito, tenha certeza. Ficava deitado em minha cama na Casa Damli achando que, a qualquer momento, vinham me pegar. Sabe o que fariam se descobrissem o meu papel nisso, não é?

“Respondi a ele que não sabia. Ele disse que seria chicoteado por Gaskie, o segundo homem de Finli, e depois mandado com as costas em carne viva para os refugos, para morrer na Discórdia ou para buscar serviço no castelo do Rei Rubro. Mas tal viagem não seria fácil. A sudeste de Fedic a pessoa pode contrair coisas como a Doença que Come (provavelmente câncer, mas de um tipo muito rápido, muito doloroso e muito nojento) ou o que eles apenas chamam “a Loucura”. Os Filhos de Roderick costumam sofrer de ambos desses problemas, assim como de outros. As pequenas doenças de pele de Trovoada — o eczema, as espinhas e brotoejas — aparentemente são apenas o começo dos problemas de alguém no Fim do Mundo. Mas para um exilado, a única esperança seria servir na corte do Rei Rubro. Certamente um can-toi como Trampas não poderia ir para as Callas. As Callas ficam mais perto, sem dúvida, e estão sob verdadeira luz do sol, mas tente imaginar o que aconteceria aos homens baixos ou aos taheens no Arco das Callas.”

O tet de Roland podia imaginar muito bem aquilo.

— Não dê tanta importância a isso — Ted continuou. — Como esse novo camarada, Dinky, diria, eu nunca mostro todas as minhas cartas. É realmente simples assim. Não há cavalheirismo nisso.

“Ele disse que mesmo assim ficava agradecido, depois olhou para o lado e acrescentou num tom muito baixo:

— Eu o recompensaria pela sua generosidade, Ted, lhe dizendo para cooperar com eles o máximo possível. Não estou dizendo que devesse me colocar numa encrenca, mas também não quero que você arranje problemas para si mesmo. A necessidade que eles têm de você pode não ser assim tão grande.

“E queria que me ouvissem muito bem agora, senhora e cavalheiros”, Ted continuou, “pois isto pode ser muito importante; eu simplesmente não sei. Só o que tenho como certo é que o que Trampas me disse a seguir me fez sentir um terrível e profundo arrepio. Ele disse que, entre todos os mundos do outro lado existe um que é único. Chamam-no de Mundo Real. Tudo que Trampas parece saber sobre ele é que é real do mesmo modo como o Mundo Médio era real, antes que os Feixes começassem a se enfraquecer e o Mundo Médio seguisse adiante. No lado-América daquele especial Mundo ‘Real’, diz ele, o tempo às vezes oscila mas sempre corre num sentido: à frente. E nesse mundo vive um homem que também serve como uma espécie de indutor; ele pode ser inclusive um guardião mortal do Feixe de Gan.”

 

Roland olhou para Eddie e, quando os olhos se encontraram, ambos murmuraram a mesma palavra: King

 

“Trampas me disse que o Rei Rubro já tentou matar este homem, mas o ka sempre protegeu sua vida. ‘Dizem que sua canção lançou o círculo’, Trampas me disse, ‘embora ninguém pareça saber exatamente o que isto significa.’ Agora, no entanto, o ka — não o Rei Rubro, mas o simples ka — decretou que este homem, este guardião ou quem quer que ele seja, devia morrer. Ele parou, vocês sabem. Fosse qual fosse a canção que era para ele cantar, ele parou, o que finalmente o tornou vulnerável. Mas não ao Rei Rubro. Trampas não parava de me dizer isso. É ao ka que ele está vulnerável. ‘Ele não canta mais’, disse Trampas. ‘Sua canção, a única que importa, acabou. Ele esquece a rosa.’”

 

No silêncio lá fora, Mordred ouviu isto e se retirou para pensar.

 

“Trampas me disse tudo isso para eu compreender que não era mais assim tão indispensável. Mas é claro que ainda querem me conservar; presumivelmente seria honroso pôr abaixo o Feixe de Shardik antes que a morte do tal homem pudesse provocar a quebra do Feixe de Gan.”

Uma pausa.

“Será que eles vêem a insanidade letal de uma corrida para a borda do aquecimento e, depois, para o findo do precipício? Aparentemente não. Para começar, se vissem, certamente não estariam correndo. Ou é um simples fracasso da imaginação? Não se gosta de pensar que uma falha tão rudimentar pudesse provocar o fim, contudo...”

 

Roland, exasperado, fazia o sinal de pressa com os dedos como se o velho cuja voz estavam ouvindo pudesse vê-los. Ele queria ouvir, ouvir muito bem cada palavra do que o guarda can-toi sabia sobre Stephen King e, em vez disso, Brautigan tinha entrado numa digressão discursiva e um tanto dispersa. Era compreensível — o homem estava obviamente exausto —, mas aqui havia algo mais importante que tudo. Eddie também sabia disso. Roland podia ler a coisa no rosto tenso do rapaz. Viram juntos o resto da fita marrom — agora não mais que uns três milímetros — começar a desaparecer.

 

“...contudo somos apenas pobres humos incultos e achoque não podemos saberdessas coisas, não com qualquer grau de certeza...”

Ele deixa escapar um longo suspiro de cansaço. Quase esvaziada a última bobina, a fita roda silenciosa e inutilmente entre as cabeças. Então, por fim:

“Perguntei o nome deste homem mágico e Trampas respondeu: ‘Não sei, Ted, mas sei que não há mais qualquer mágica nele, pois ele parou de fazer o que quer que o ka pretendesse que fizesse. Se o deixarmos assim, o Ka dos 19, que é aquele de seu mundo, e o Ka dos 99, que é aquele de nosso mundo,see juntam para...”

Não há mais. É onde a fita sai da bobina.

 

A bobina que ficou cheia continuou a rodar com a ponta marrom brilhante da fita chicoteando, fazendo aquele ruído baixo de fuip-fuip-fuip até Eddie se inclinar a apertar o botão STOP.

— É foda! — ele murmurou a meia-voz.

—Justo quando estava ficando interessante — disse Jake. — E aqueles números de novo. Dezenove... e 99. — Fez uma pausa, depois disse todos juntos. — Dezenove-noventa e nove. — Então uma terceira vez. — 1999. O Ano-chave no Mundo-chave. Onde Mia foi ter seu bebê. Onde está agora o Treze Preto.

— Mundo-chave, Ano-chave — disse Susannah. Ela tirou a última fita, observou-a por um momento diante de um dos lampiões e tornou a colocá-la na caixa. — Onde o tempo vai sempre numa direção. Como deveria mesmo ir.

— O Gan criou o tempo — disse Roland. — É o que dizem as velhas lendas. O Gan surgiu do vazio... algumas versões dizem que do mar, mas as duas coisas significam sem dúvida o Primal... e fez o mundo. Então ele o empurrou com a ponta do dedo e o mundo começou a rodar, e isto era o tempo.

Algo estava se concentrando na gruta. Alguma revelação. Todos sentiram a coisa, algo tão perto de rebentar quanto a barriga de Mia no final da gestação. Dezenove. Noventa e nove. Tinham sido assombrados por esses números. Eles haviam aparecido por toda parte. Viram-nos no céu, viram-nos escritos nas cercas de madeira, ouviram-nos em sonhos.

Oi ergueu os olhos, orelhas de pé, olhos brilhantes. Susannah falou:

— Quando Mia deixou o quarto que ocupávamos no Plaza-Park para ir ao Dixie Pig... isto é, o quarto 1919... entrei numa espécie detranse. Tive sonhos... sonhos de estar numa cadeia... com locutores de noticiários anunciando que fulano, beltrano e sicrano haviam morrido...

— Já nos contou — disse Eddie.

Ela sacudiu vigorosamente a cabeça.

— Não tudo, não. Porque uma parte da coisa parecia não fazer nenhum sentido. Ouvir Dave Garroway dizer que o filhinho do presidente Kennedy tinha morrido, por exemplo... o pequeno John-John, o que fez continência para o ataúde do papai quando o carro fúnebre passou. Não contei porque essa era a parte maluca. Jake, Eddie, o pequeno John-John Kennedy morreu nos quandos de vocês? Em algum dos seus quandos?

Eles balançaram as cabeças. Jake nem sabia muito bem de quem Susannah estava falando.

— Mas ele morreu. No Mundo-chave e num quando além de qualquer um dos nossos. Aposto que foi no quando de 99. Assim morre o filho do último pistoleiro, ó Discórdia! O que eu acho agora é que estava tipo ouvindo a página do obituário do Semanário do Viajante do Tempo. Foram tempos muito diferentes misturados. John-John Kennedy, depois Stephen King. Nunca ouvira falar dele, mas David Brinkley disse que escreveu A Hora do Vampiro. É o livro onde estava o padre Callahan, certo?

Roland e Eddie assentiram.

— O padre Callahan nos contou sua história.

— É — disse Jake. — Mas o que...

Ela o ignorou. Tinha os olhos enevoados, distantes. Olhos a uma piscadela de compreensão.

— E então chega Brautigan ao Ka-Tet dos 19 e conta sua história! E olhem! Olhem o contador do gravador!

Eles se debruçaram sobre o gravador. No mostrador estava

 

1999

 

— Acho que King pode ter escrito também a história de Ted — disse ela. — Alguém quer tentar adivinhar em que ano essa história apareceu, ou vai aparecer, no Mundo-chave?

— Mil novecentos e noventa e nove — disse Jake em voz baixa. — Mas não a parte que ouvimos. A parte que não ouvimos. A aventura de Ted em Connecticut.

— E vocês estiveram com ele — disse Susannah, olhando para seu dinh e para o marido. — Estiveram com Stephen King.

Eles balançaram de novo a cabeça.

— Ele fez o Père, fez Brautigan, fez a nós — disse ela, como se falasse consigo mesma. Depois sacudiu a cabeça. — Não. — Todas as coisas servem ao Feixe. Ele... ele apenas nos serviu de indutor.

— É. — Eddie sacudia a cabeça. — É, tudo bem. Acho que é mesmo por aí.

— No meu sonho eu estava numa cela — disse ela. — Continuava com as roupas que estava usando quando fui detida. E David Brinkley disse que Stephen King estava morto, ei, Discórdia!... algo do gênero. Brinkley disse que ele foi... — Susannah fez uma pausa, franzindo a testa. Pediria que Roland a hipnotizasse se fosse o único meio de ela se lembrar de tudo, mas não foi preciso. — Brinkley disse que King foi atropelado por uma minivan quando caminhava perto de sua casa em Lovell, no Maine.

Eddie deu um solavanco. Roland se inclinou para a frente, olhos em brasa.

— Acha que é mesmo verdade?

Susannah balançou a cabeça com firmeza.

— Ele comprou a casa na Via do Casco da Tartaruga! — berrou o pistoleiro estendendo o braço, pegando Eddie pela camisa. Eddie não pareceu sequer se dar conta. — É claro que comprou! Ka fala e o vento sopra! Ele se deslocou um pouco mais à frente no Caminho do Feixe e comprou a casa onde o caminho é ralo! Onde vimos os aparecidos! Onde conversamos com John Cullum e para onde mais tarde voltamos! Duvidam disso. Têm alguma dúvida, a menor que seja, a este respeito?

Eddie balançou a cabeça. É claro que não duvidava. A coisa batia em cheio como quando você estava no parque de diversões e usava toda a sua força na marreta. O chumbo voava direto para o alto do poste e tocava o sino lá em cima. Você ganhava uma boneca Kewpie* quando o sino tocava, e isto era porque Stephen King pensava que era uma boneca Kewpie? Porque King veio do mundo onde Gan pôs o tempo para rolar com Seu dedo sagrado? Porque se King diz Kewpie, todos nós dizemos Kewpie e todos nós dizemos obrigado? Se ele de alguma forma achasse que o prêmio por tocar o sino no Teste sua Força do parque de diversões seria uma boneca Cloopie, eles não diriam Cloopie? Eddie achou que a resposta era sim. Achou que a resposta era sim tão seguramente quanto a Co-Op City ficava no Brooklyn.

— David Brinkley disse que King tinha 52 anos. Vocês, caras, o encontraram, então façam a aritmética. Ele poderia ter 52 anos em 1999?

— Apostem com toda a sinceridade que sim — disse Eddie, atirando a Roland um olhar sombrio, consternado. — E já que a gente fica se esbarrando no número 19... Ted Stevens Brautigan, vamos lá, contem as letras!... Aposto que isto tem a ver com mais do que apenas o ano. Dezenove...

— É uma data — disse Jake concisamente. — Certamente é. A Data-chave no Ano-chave no Mundo-chave. O 19ºde alguma coisa, no ano de 1999. Quase certamente num mês de verão, porque ele estava fora, caminhando ao ar livre.

— Lá é verão agora — disse Susannah. — É junho. O mês 6. Vire 6 para cima e você tem 9.

— Sim e soletre dog para trás e você tem god — disse Eddie, mas não parecia à vontade.

— Acho que ela tem razão — disse Jake. — Acho que é 19 de junho. É quando King é morto na estrada e até mesmo a possibilidade de que volte a trabalhar na história da Torre Negra... nossa história... é kaput. O feixe de Gan se perde devido à sobrecarga. O Feixe de Shardik sobra, mas já está corroído. — Olhou para Roland, o rosto pálido, os lábios quase azuis. — Vai ser um estalo de palito quebrando.

— Talvez já tenha acontecido — disse Susannah.

— Não — disse Roland.

— Como pode ter certeza? — ela perguntou.[

Roland concedeu-lhe um sorriso gélido, sem humor.

— Se tivesse acontecido — disse ele —, não estaríamos mais aqui.

 

— Como podemos impedir que aconteça? — Eddie perguntou. — Aquele tal de Trampas disse a Ted que era o ka.

— Talvez tenha se enganado — disse Jake, mas a voz era incerta. E arrastada. — Era apenas um rumor, talvez ele tenha se enganado. E, ei, talvez King tenha tempo até julho. Ou agosto. Ou que tal setembro? Podia ser setembro, não parece provável? Afinal setembro é o mês 9...

Olharam para Roland, que agora estava sentado com a perna esticada na frente.

—É aqui que dói — disse ele, como se falasse sozinho. Encostou a mão no quadril direito... depois nas costelas... por fim do lado da cabeça. — Tenho sentido dores de cabeça. Cada vez piores. Não vi razão para lhes contar. — Passou a mão abreviada pelo lado direito. — É como ele será atingido. Quadril esmagado. Costelas quebradas. Cabeça esmagada. Caído morto na vala. Ka... e o fim de ka. — Seus olhos se clarearam e ele se virou ansioso para Susannah. — Em que data você esteve em Nova York? Refresque a minha memória.

— Primeiro de junho de 1999.

Roland abanou a cabeça e olhou para Jake.

— E você? O mesmo, não é?

— É.

— Depois para Fedic... uma parada... e em seguida, Trovoada. — Fez uma pausa, pensativo, e disse três palavras com ênfase calculada: — Ainda há tempo.

— Mas o tempo anda mais depressa por lá...

— E se der um salto desses...

— Ka...

Tinham falado ao mesmo tempo. Todos, então, caíram de novo em silêncio, olhando para Roland.

— Podemos alterar o ka — disse ele. — Isso já foi feito antes. Há sempre um preço a pagar... ka-shume, talvez... mas pode ser feito.

— Como chegaremos lá? — Eddie perguntou.

— Só há um meio — disse Roland. — Sheemie tem de nos mandar.

Silêncio na gruta, exceto pelo rolar distante do trovão que dava àquela terra escura seu nome.

— Temos duas tarefas — disse Eddie. — O escritor e os Sapadores. O que vem primeiro?

— O escritor — disse Jake. — Enquanto ainda há tempo de salvá-lo.

Mas Roland estava balançando a cabeça.

— Por que não? — Eddie gritou. — Ah, homem, por que não? Você sabe como o tempo é escorregadio ali! E é de sentido único! Se perdermos a janela, jamais teremos outra chance!

— Mas temos de cuidar também da segurança do Feixe de Shardik — disse Roland.

— Está dizendo que Ted e esse tal de Dinky não deixariam Sheemie nos ajudar a não ser que os ajudássemos primeiro?

— Não. Sheemie faria isso por mim, tenho certeza. Mas vamos supor que algo lhe acontecesse enquanto estivéssemos no Mundo-chave? Ficaríamos encalhados em 1999.

— Existe a porta na Via do Casco da Tartaruga.. — Eddie começou.

— Mesmo que ela ainda exista em 1999, Eddie, Ted nos disse que o Feixe de Shardik já começou a vergar. — Roland balançou a cabeça. — Meu coração diz que aquela prisão é o lugar para começarmos. Se algum de vocês tiver uma opinião diferente, vou ouvir de bom grado.

Ficaram em silêncio. Na frente da gruta, o vento soprava.

— Precisamos falar com Ted antes de tomarmos qualquer decisão definitiva — disse Susannah por fim.

— Não — disse Jake.

— Não! — Oi concordou. Surpresa zero aqui; para Oi se tratava de repetir como um eco o que Ake falasse.

— Vamos falar com o Sheemie — Jake continuou. — Vamos perguntar ao Sheemie o que ele acha que devíamos fazer.

Devagar, Roland foi abanando afirmativamente a cabeça.

 

MARCAS NA TRILHA

Quando Jake acordou de uma noite de sonhos perturbadores, a maioria deles passados no Dixie Pig, uma luminosidade fina e mortiça se filtrava pela gruta. Em Nova York, esse tipo de luz sempre o fizera querer matar aula e passar o dia inteiro no sofá, lendo livros, vendo programas de auditório na TV e dormindo a tarde inteira. Eddie e Susannah estavam enroscados num único saco de dormir. Oi havia se esquivado da cama que fora deixada para ele; para dormir ao lado de Jake. Estava enroscado num U, o focinho apoiado na pata esquerda. A maioria das pessoas teria achado que dormia, mas Jake viu o astucioso brilho dourado embaixo das pálpebras e soube que Oi espreitava. O saco de dormir do pistoleiro estava aberto e vazio.

Jake pensou sobre isso um momento ou dois, depois se levantou e saiu. Oi foi atrás, caminhando silencioso sobre o barro duro enquanto Jake subia a trilha.

 

Roland parecia pálido, indisposto, mas estava de cócoras e Jake achou que se tinha flexibilidade suficiente para fazer aquilo, provavelmente estava OK. Ele se abaixou ao lado do pistoleiro, as mãos penduradas entre as coxas. Roland olhou de relance, não disse nada, depois olhou para a prisão que os funcionários chamavam Algul Siento e os internos Devar-Toi. Era um borrão brilhando além e abaixo deles. O sol — elétrico, atômico, fosse lá o que fosse — ainda não brilhava.

Oi se deitou junto de Jake com um pequeno som de uufimmm e de novo pareceu adormecer. Jake não se deixou enganar.

— Salve saudações festivas ao dia — disse Jake quando o silêncio começou a parecer opressivo.

Roland abanou a cabeça.

— Alegre de ser e ver. — Ele parecia festivo como uma marcha fúnebre. O pistoleiro que dançara uma tremenda commala à luz das tochas em Calla Bryn Sturgis podia estar mil anos na sepultura.

— Como você está, Roland?

— Bom o bastante para me agachar.

— É, mas como você está?

Roland olhou-o de relance, colocou a mão no bolso e tirou de láseusaquinho de tabaco.

— Velho e cheio de dores, como você já sabe. Quer fumar?

Jake pensou um pouco e balançou afirmativamente a cabeça.

— Vão ser curtos — Roland avisou. — Havia muita coisa naquela bolsa que gostei de receber de volta, mas pouco tabaco.

— Se quiser, não precisa me dar.

Roland sorriu.

— Um homem que não é capaz de compartilhar seus vícios deve abandoná-los. — Rasgou em duas partes algum tipo de folha de papel e enrolou dois cigarros. Passou um a Jake e acendeu os dois com fósforo riscado na unha do polegar. No ar frio, quieto de Can Steek-Tete, a fumaça pairou um pouco na frente deles antes de se erguer devagar, num rolo comprido. Jake achou o tabaco quente, amargo, rançoso, mas em momento algum se queixou. Gostou da coisa. Pensou em todas as vezes que prometera a si mesmo que não ia fumar como o pai — jamais! Agora lá estava ele, adquirindo o vício. E com o acordo, se não aprovação, de seu novo pai.

Roland estendeu um dedo e tocou na testa de Jake... na face esquerda... no nariz... no queixo. O último toque doeu um pouco.

— Espinhas — disse Roland. — É o ar deste lugar. — Ele desconfiava que fosse também transtorno emocional... sentimento de pesar por causa do Père... mas dizer a Jake o que pensava provavelmente só ia servir para aumentar a dor do garoto pela morte de Callahan.

— Você não tem nenhuma — disse Jake. — A pele está perfeita como bumbum de bebê. Sortu-do?

— Nada de espinhas — Roland concordou e soltou a fumaça. Abaixo deles, na luz entrante, ficava o povoado. O pacífico povoado, Jake pensou, mas parecia mais do que pacífico; parecia completamente morto. Então ele viu dois vultos, pouco mais que pequenos pontos vistos dali. Um andando na direção do outro. Guardas humos patrulhando o lado de fora da cerca, ele presumiu. Os dois se juntaram num único ponto pelo tempo suficiente para Jake imaginar um pouco de sua palestra e, então, o ponto tornou a se dividir. — Nada de espinhas, mas meu quadril dói como um filho-da-puta. É como se alguém o tivesse aberto no meio da noite e derramado lá dentro um punhado de cacos de vidro. Cacos de vidro quente! Mas aqui é muito pior — disse encostando a mão no lado direito da cabeça. — Aqui a coisa parece estar rachando.

— Acha mesmo que está sentindo os ferimentos de Stephen King?

Em vez de dar uma resposta verbal, Roland estendeu o indicador da mão esquerda através de um círculo feito pelo polegar e o dedo mínimo da mão direita, o gesto que significava: Estou lhe dizendo a verdade.

— Putz, que merda — disse Jake. — Para ele assim como para você.

— Talvez sim, talvez não. Porque, pense, Jake, pense bem. Só as coisas vivas sentem dor. O que estou sentindo sugere que King não morrerá instantaneamente. E isso significa que talvez seja mais fácil salvá-lo.

Jake achou que aquilo só podia indicar que King ficaria caído ao lado da estrada antes de dar o suspiro final, numa agonia semiconsciente, mas preferiu não dizer nada. Que Roland acreditasse no que muito bem entendesse. Havia, no entanto, mais alguma coisa. Algo que interessava muito mais de perto a Jake e que o deixava inquieto.

— Roland, posso lhe fazer uma pergunta, dan-dinh?

O pistoleiro abanou a cabeça.

— Se quiser. — Uma ligeira pausa. Um movimento no canto esquerdo da boca que não chegava a ser um sorriso. — Se tu quiseres.

Jake reuniu coragem.

— Por que está tão aborrecido? Está aborrecido com o quê? Ou com quem? — Agora foi a vez dele de fazer uma pausa. — É comigo?

As sobrancelhas de Roland se ergueram e ele deu uma risada.

— Não é com você, Jake. Nem um pouco. Jamais poderia ser!

Jake corou de prazer por ouvir aquilo.

— Continuo esquecendo como o toque se tornou forte em você — Roland acrescentou. — Teria dado um ótimo Sapador, sem dúvida.

Aquilo não era resposta, mas Jake não se preocupou em dizê-lo. E a idéia de ser um Sapador o fez reprimir um arrepio.

— Você não sabe? — Roland perguntou. — Se tu sabes que estou o que Eddie chama de regiamente puto, não sabes por quê?

— Eu poderia olhar em sua cabeça, mas seria falta de educação. — Só que era muito mais que isso. Jake se lembrava vagamente de uma história da bíblia sobre Noé ficando bêbado na arca enquanto esperava com os filhos o fim do dilúvio. Um dos filhos encontrara o velho deitado bêbado no beliche e tinha rido dele. Deus o amaldiçoara por causa disso. Espreitar os pensamentos de Roland não seria o mesmo que contemplá-lo, e rir, enquanto ele estivesse bêbado, mas era quase.

— Tu és um rapaz esperto — disse Roland. — Bom e esperto, ié. — E embora o pistoleiro falasse num tom quase distraído, Jake morreria bastante feliz se morresse naquele momento. De algum lugar além e acima deles veio aquele ressonante CLIQUE! e, de repente, os efeitos especiais de raios de sol acertaram o Devar-Toi. Pouco depois, ao longe, ouviram o som de música: “Hey Jude”, com arranjo para elevador e supermercado. Hora de acordar, lá embaixo. Mais um dia de Sapa tinha acabado de começar. Embora, Jake supôs, a Sapa nunca chegasse realmente a parar.

— Vamos fazer um jogo, eu e você — Roland propôs. — Você tenta entrar em minha cabeça e ver com quem estou aborrecido. Eu vou tentar mantê-lo fora.

Jake mudou ligeiramente de posição.

— Não me parece um jogo engraçado, Roland.

— Mesmo assim, eu gostaria de jogar.

— Tudo bem, se você quiser eu jogo.

Jake fechou os olhos e evocou uma imagem da face cansada, barbada de Roland. Dos brilhantes olhos azuis. Fez uma porta entre aqueles olhos, ligeiramente acima deles — uma porta pequena, com maçaneta de metal — e tentou abri-la. Por um momento a maçaneta girou. De repente parou. Jake aplicou mais pressão. A maçaneta começou de novo a girar depois tornou a parar. Jake abriu os olhos e viu nítidas gotas de suor na testa de Roland.

— Isto é uma burrice! Só estou piorando sua dor de cabeça — disse ele.

— Não importa. Faça o melhor que puder.

O pior, Jake pensou. Mas se tinham de jogar aquele jogo, ele não ia se recusar. Fechou os olhos de novo e viu mais uma vez a pequena porta entre as espessas sobrancelhas de Roland. Desta vez aplicou mais força, aumentando-a rapidamente. Foi como fazer queda de braço. Após um momento a maçaneta girou e a porta se abriu. Roland resmungou e deixou escapar um riso doloroso.

— Para mim isso basta — disse ele. — Pelos deuses, tu és forte!

Jake não deu atenção. Abriu os olhos.

— O escritor? King? Por que está furioso com ele?

Roland suspirou e jogou fora a ponta ardente do cigarro; Jake já tinha acabado o seu.

— Porque temos duas tarefas a cumprir quando devíamos ter apenas uma. Ter de fazer a segunda é culpa de sai King. Ele sabia o que devia fazer e acho que, em certo nível, sabia que fazer isto o iria manter a salvo. Mas tinha medo. Estava cansado. — O lábio superior de Roland estava franzido. — Agora temos de pegar a batata quente. O que provavelmente vai nos sair caro.

— Está irritado porque ele está com medo? Mas... —Jake franziu a testa. — Mas como não estaria com medo? É apenas um escritor. Um contador de histórias, não um pistoleiro.

— Sei disso — disse Roland —, mas não acho que seja medo o que o deteve, Jake, ou pelo menos não apenas medo. Ele é também preguiçoso. Senti isso ao encontrá-lo e tenho certeza que Eddie também sentiu. Olhava para o trabalho que tinha pela frente, ficava assustado e dizia para si mesmo: “Tudo bem, vou encontrar um trabalho mais fácil, um mais de acordo com meus gostos e com minhas aptidões. E se houver problema, eles tomarão conta de mim. Eles têm de tomar conta de mim.” E é o que faremos.

— Você não gostou dele.

— Não — Roland admitiu —, não gostei. Nem um pouco. Nem confiei nele. Não é a primeira vez que encontro contadores de lorotas, Jake, e todos são mais ou menos cortados do mesmo pano. Contam lorotas porque têm medo da vida.

— Acha mesmo isso? — Jake achou a idéia funesta. Mas também achou que ela possuía um tom de verdade.

— Acho. Mas... — Roland abanou os ombros. É o que é, dizia aquele abanar de ombros.

Ka-shume, Jake pensou. Se o ka-tet deles quebrasse, e isso era culpa de King...

E se era culpa de King, o que fazer? Vingar-se dele? Era uma idéia de pistoleiro; era também uma idéia idiota, como a idéia de vingar-se de Deus.

— Mas é o jeito — Jake concluiu.

— Ié. E se tiver oportunidade, não vou me sentir impedido de chutar aquela bunda amarelada e lerda.

Jake deu uma gargalhada e o pistoleiro sorriu. Então Roland ficou de pé fazendo uma careta, as duas mãos plantadas na curvatura do quadril direito.

— Saco — ele resmungou.

— Dói muito, hein?

— Não se preocupe com minhas dores e caretas. Venha comigo. Vou lhe mostrar algo mais interessante.

Roland, mancando ligeiramente, conduziu Jake para onde a trilha contornava o flanco da pequena montanha cheia de calombos, presumivelmente um caminho para o topo. Ali o pistoleiro tentou ficar de cócoras, fez uma careta e acabou se apoiando num joelho. Apontou para o solo com a mão direita.

— O que está vendo?

Jake também se apoiou num dos joelhos. O solo estava coberto de pedrinhas e pedaços de rocha caída. Algumas pedrinhas tinham sido deslocadas e havia marcas no solo pedregoso. Na frente do ponto onde os dois estavam ajoelhados lado a lado, dois ramos do que Jake achou ser uma algarobeira tinham sido quebrados. Ele se curvou para sentir o leve e ácido aroma da seiva. Depois tornou a examinar as marcas na trilha. Eram várias, estreitas e não profundas demais. Se eram rastros, certamente não eram humanos. Como também não eram rastros de um cão do deserto.

— Sabe quem pode ter feito isso? — Jake perguntou. — Se sabe diga... Não me obrigue a fazer uma queda de braço para conseguira resposta.

Roland lhe concedeu um sorriso curto.

— Siga um pouco esses rastros. Veja o que descobre.

Jake se levantou, caminhou devagar seguindo os rastros e, de repente, se dobrou pela cintura como um garoto com dor no estômago. Os rastros e a trilha contornavam um pedregulho. Havia poeira na pedra e arranhões na poeira — como se alguma coisa com espinhos tivesse roçado no pedregulho em seu avanço.

Havia também dois pêlos duros e negros.

Jake pegou um deles, mas o soprou imediatamente, estremecendo de repugnância. Roland o contemplava com muita atenção.

— Parece que você viu um fantasma nos pés da cama.

— É terrível! — Jake ouviu o leve gaguejar da própria voz. — Oh, Deus, o que era isso? O que estava nos ob-observando?

— Aquilo que Mia chamou de Mordred. — A voz de Roland não se alterara, mas Jake mal conseguia encarar o pistoleiro; os olhos dele estavam vidrados. — O chapinha que ela diz que eu gerei.

— Ele estava aqui? Na noite?

Roland assentiu.

— Ouvindo...? — Jake não foi capaz de concluir.

Roland foi.

— Ouvindo nossa palestra e nossos planos, ié, acho que sim. E também a história de Ted.

— Mas você não tem certeza. Essas marcas podem ser de qualquer coisa. — Contudo, a única coisa que agora, depois de ouvir a história de Susannah, Jake podia relacionar àquelas marcas eram as patas de uma monstruosa aranha.

— Siga um pouco mais esses rastros — disse Roland.

Jake olhou-o com ar indagador e Roland abanou a cabeça. O vento soprava, trazendo a música do complexo da prisão (Jake achou que agora era “Bridge Over Troubled Water”), trazendo também o som do trovão distante, como ossos rolando.

— Que...

— Siga — disse Roland, apontando a cabeça para a rampa pedregosa na encosta da trilha.

Jake obedeceu, percebendo que aquela era outra lição... Com Roland a pessoa estava sempre na escola. Mesmo sob a sombra da morte, havia sempre lições a serem aprendidas.

Do outro lado do pedregulho, a trilha prosseguia reta por cerca de 30 metros antes de fazer uma curva e de novo sair de vista. Neste trecho reto, as marcas tipo arranhão eram muito nítidas. Grupos de três num lado, grupos de quatro do outro.

— Ela disse que arrancou uma das patas com um tiro — disse Jake.

— Sim, ela fez isso.

Jake tentou visualizar uma aranha de sete patas do tamanho de um bebê humano e não conseguiu. Desconfiou que não queria conseguir.

Depois da próxima curva havia um cadáver dessecado na trilha. Jake tinha certeza que fora esfolado, mas era difícil dizer. Não havia nada por dentro, nem entranhas, nem sangue, nem moscas voando. Só uma massa suja, poeirenta, que vagamente — muito vagamente — lembrava alguma coisa canina.

Oi se aproximou, farejou, ergueu a perna e urinou nos restos. Depois voltou para o lado de Jake com o ar de quem havia fechado algum importante acordo de negócios.

— Esse foi o jantar de quem nos visitou ontem à noite — disse Roland.

Jake estava olhando para o lado.

— Ele está nos vigiando agora? O que você acha?

— Acho que garotos em crescimento precisam descansar — disse Roland.

Jake sentiu a pontada de uma emoção desagradável, mas descartou-a sem muito exame. Ciúmes? Certamente não. Como poderia ter ciúmes de uma coisa que começara a viver comendo a própria mãe? Mordred tinha um laço de sangue com Roland, sim — era seu filho de verdade, se fosse preciso ir a fundo —, mas isso fora apenas fruto de um acaso.

Não era?

Jake percebeu que Roland o olhava atentamente, de um modoque o deixavanervoso.

— Pago um pensamento — disse o pistoleiro.

— Nada — disse Jake. — Mas eu só queria saber onde está escondido.

— Difícil saber — disse Roland. — Deve haver mais de cem buracos só neste morrote. Vamos.

Roland tomou a frente contornando o pedregulho onde Jake encontrara os pêlos pretos e duros e, chegando lá, começou a raspar metodicamente com o pé os rastros que Mordred havia deixado.

— Por que está fazendo isso? — Jake perguntou, num tom mais agudo do que pretendera.

— Não há necessidade de Eddie e Susannah saberem disso — disse Roland. — Ele só pretende vigiar, não interferir no que estamos fazendo. Ao menos não por enquanto.

Como sabe disso?, Jake teve vontade de perguntar, mas aquela pontada veio de novo — a pontada que absolutamente não poderia ser de ciúmes — e decidiu não perguntar nada. Que Roland pensasse o que muito bem entendesse. Enquanto isso Jake manteria os olhos abertos. E se Mordred fosse louco o bastante para mostrar a cara...

— É com Susannah que estou mais preocupado — disse Roland. — Provavelmente seria ela quem ia ficar mais perturbada pela presença do chapinha. E os pensamentos mais fáceis para Mordred ler seriam os dela.

— Porque é mãe da coisa — disse Jake. Ele não reparou na palavra “coisa”, mas Roland sim.

— Os dois estão conectados, ié. Posso confiar que vai manter a boca fechada?

— Claro.

— E tentar preservar sua mente... isso também é importante.

— Posso tentar, mas... — Jake deu de ombros, para dizer que nofundonão sabia fazer aquilo.

— Bom — disse Roland. — E vou fazer o mesmo.

O vento tornou a soprar. “Bridge Over Troubled Water” se alterara para (Jake tinha quase certeza) uma música dos Beatles, aquela com o refrão que terminava em bip-bip-hmmm-bip-bip, ié! Será que conheciam a música nas cidades poeirentas que morriam entre Gilead e Mejis?, Jake se perguntou. Em algumas daquelas cidades havia Shebs tocando o jagtime “Drive My Car” em pianos desafinados, enquanto os Feixes se enfraqueciam e a cola quesegurava os mundos ia se esticando, se transformando em fios enquanto os próprios mundos iam cedendo?

Jake sacudiu a cabeça com força, com vigor, tentando clareá-la. Roland não parava de observá-lo, e Jake sentiu um surto de irritação que não lhe era comum.

— Vou manter a boca fechada, Roland, e pelo menos vou tentar guardar meus pensamentos para mim mesmo. Não precisa se preocupar por minha causa.

— Não estou preocupado —- disse Roland, e Jake se viu resistindo à tentação de olhar no interior da cabeça de seu dinh e descobrir se era realmente verdade. Ainda achava que olhar não era boa idéia e não apenas porque fosse uma certa falta de educação. A desconfiança era muito provavelmente uma espécie de ácido. O ka-tet já estava suficientemente frágil e ainda havia muito trabalho a fazer.

— Bom — disse Jake. — Isso é bom.

— Bom! — Oi concordou, num sincero tom isso está definido que fez ambos darem um largo sorriso.

— Sabemos que ele está aí — disse Roland — e provavelmente ele não sabe que sabemos. Nas atuais circunstâncias, não podia ser melhor.

Jake abanou a cabeça. A idéia o fazia se sentir um pouco mais calmo.

Quando os dois voltavam, Susannah apareceu na entrada da gruta com seu rastejar sempre veloz. Ela sentiu o cheiro do ar e fez uma careta. Quando olhou de relance para os dois, a careta se transformou num sorriso.

— Vejo bonitos homens! Há quanto tempo estão acordados, rapazes?

— Não há muito — disse Roland.

— E como estão se sentindo?

— Muito bem — disse Roland. — Acordei com dor de cabeça, mas ela já está no fim.

— Verdade? — disse Jake.

Roland abanou a cabeça e apertou o ombro do garoto.

Susannah queria saber se estavam com fome. Roland abanou afirmativamente a cabeça. Jake fez o mesmo.

— Bem, vamos entrar — disse ela —, e vamos ver o que podemos fazer para remediar isso.

 

Susannah encontrou ovos em pó e latas de picadinho de carne de vaca, da marca Prudence. Eddie encontrou um abridor de latas e uma pequena grelha abastecida a gás. Após resmungar um pouco, ele acendeu a grelha e não deixou de ficar um tanto assustado quando ela começou a falar.

— Alô! Estou três quartos cheia do gás engarrafado Gamry, disponível no Wal-Mart, Burnaby’s e outros bons mercados! Quando você pede Gamry, pede qualidade! Escuro aqui, não é? Posso ajudá-los com receitas ou tempos de cozimento?

— Podia me ajudar calando a boca — disse Eddie e a grelha não falou mais. De repente ele estava se perguntando se não a ofendera, depois se perguntou se não seria melhor se matar, livrando o mundo de alguém tão desastrado.

Roland abriu quatro latas de pêssego, cheirou-as e abanou a cabeça.

— Acho que estão OK — disse. — Doces.

Estavam acabando a refeição quando o ar na frente da gruta se agitou. Logo apareceram Ted Brautigan, Dinky Earnshaw e Sheemie Ruiz. Com eles, encolhido e muito assustado, vestindo um velho e amassado macacão, vinha o Rod que Roland pedira que trouxessem.

— Entrem e comam alguma coisa — disse amavelmente Roland, como se um quarteto de telecinéticos aparecendo de repente fosse uma ocorrência banal. — Há bastante comida.

— Talvez pulemos o desjejum — disse Dinky. — Não temos muito t...

 Antes que pudesse concluir, os joelhos de Sheemie vergaram e ele desabou na entrada da gruta, os olhos rolando para uma área branca e um pequeno filete de cuspe se derramando por entre os lábios rachados. Ele começou a tremer, a se debater, as pernas dando chutes aleatórios no ar, os mocassins de borracha arranhando a encosta escarpada.

 

A ÚLTIMA PALESTRA

(SONHO DE SHEEMIE)

Susannah achava que não se poderia classificar o que aconteceu a seguir como um pandemônio; certamente seria preciso pelo menos uma dúzia de pessoas para induzir tal estado e eles eram apenas sete. Oito, contando o Rod e certamente era preciso contá-lo, pois ele estava criando grande parte do tumulto. Quando viu Roland, a criatura caiu de joelhos, ergueu as mãos sobre a cabeça como um juiz de futebol americano sinalizando um bem-sucedido chute de ponto extra e começou rapidamente a fazer salamaleques. Cada movimento para baixo era suficientemente radical para fazê-lo bater com a testa no chão. Ao mesmo tempo tagarelava com toda a força dos pulmões naquela estranha linguagem cheia de vogais. Executava sua ginástica sem jamais tirar os olhos de Roland. Susannah não tinha grande dúvida de que o pistoleiro estava sendo saudado como uma espécie de rei.

Ted também caiu de joelhos, mas era Sheemie que o preocupava. O velho pôs as mãos na cabeça de Sheemie para fazê-la parar de se sacudir de um lado para o outro; o amigão de Roland dos tempos de Mejis já havia cortado um lado do rosto numa ponta saliente de pedra, um corte perigosamente próximo do olho esquerdo. Agora o sangue começava a escorrer pelos cantos da boca e a colorir as faces cobertas por uma barba muito rala.

— Me dêem alguma coisa para pôr em sua boca! — Ted gritou. — Venha alguém aqui! Acordem! Ele está se mordendo pra caramba!

A tampa de madeira continuava encostada no caixote aberto de pomos. Roland colocou-a habilmente sob um joelho erguido (naquele momento nenhum sinal de torção no quadril, ela notou) e a reduziu a pedaços. Susannah pegou um pedaço ainda no ar e se virou para Sheemie. Não foi preciso ficar de joelhos; afinal, estava sempre apoiada neles. Uma ponta do pedaço de madeira estava cheia de farpas. Ela envolveu aquilo com uma mão protetora e pôs a outra ponta da madeira na boca de Sheemie. Ele mordeu com tanta força que Susannah pôde ouvir o som da mordida.

Enquanto isso, o Rod continuava seu cântico alto, quase em falsete. As únicas palavras que ela conseguia captar de toda a algaravia eram salve, Roland, Gilead e Eld.

— Alguém faça com que se cale! — Dinky gritou, e Oi começou a latir.

— Esqueçam o Rod. Peguem os pés de Sheemie! — Ted berrou. — Segurem-no!

Dinky caiu de joelhos e agarrou os pés de Sheemie, um deles já descalço, o outro ainda usando o absurdo mocassim de borracha.

— Oi, cala! — disse Jake, e Oi obedeceu. Mas estava parado com as perninhas curtas muito abertas e a barriga quase encostando no chão, o pêlo tão arrepiado que o deixava com quase o dobro do tamanho normal.

Roland se agachou ao lado da cabeça de Sheemie, os antebraços se apoiando no chão de terra da gruta, a boca junto a um dos ouvidos do velho amigo. Começou a murmurar. Susannah pôde distinguir muito pouco daquilo devido ao balbucio em falsete do Rod, mas ouviu: “Will Dearborn que era” e “está tudo bem” e... ela não tinha certeza... “descanse”.

Fosse o que fosse, a coisa pareceu dar resultado. Aos poucos, Sheemie foi relaxando. Ela viu Dinky afrouxar o aperto nos tornozelos do ex-empregado de taberna, pronto a agarrá-los novamente com força se Sheemie voltasse a chutar. Os músculos ao redor da boca de Sheemie também se relaxaram, os dentes se destrancaram. O pedaço de madeira, ainda pregado levemente pelos caninos superiores, parecia estar levitando. Susannah puxou com cuidado, observando com espanto os buracos com marcas de sangue, alguns quase com um centímetro de profundidade na madeira macia. A língua de Sheemie pendia de um lado da boca, fazendo lembrar o jeitão de Oi na hora da sesta, quando ele dormia de costas, as pernas abertas para os quatro pontos cardeais.

Agora havia apenas o rápido pregão de leiloeiro do Rod e o resmungo baixo, rouco, no peito de Oi, que se conservava com ar protetor ao lado de Jake, os olhos apertados fitando o Rod recém-chegado.

— Feche a boca, fique quieto! — disse Roland ao Rod, logo acrescentando alguma outra coisa em outra linguagem.

O Rod ficou congelado no meio de outro salamaleque, as mãos ainda sobre a cabeça, os olhos arregalados para Roland. Eddie viu que o lado do nariz fora comido por uma ferida purulenta, vermelha como um morango. O Rod pôs as palmas das mãos sujas, cheias de crostas, nos olhos, como se o pistoleiro fosse uma coisa brilhante demais para se olhar, e caiu de lado no chão. Puxou os joelhos para o peito, deixando escapar um peido alto ao fazê-lo.

— Falou o Harpo* — disse Eddie, um gracejo que conseguiu fazer Susannah rir. Depois o silêncio só foi quebrado pelo lamento do vento na frente da gruta, o fraco ruído de música gravada vindo do Devar-Toi e o ronco distante do trovão, aquele som de ossos rolando.

Cinco minutos mais tarde, Sheemie abriu os olhos, sentou-se e olhou ao redor com o ar desnorteado de alguém que não sabe onde está, como chegou lá ou por quê. Então seus olhos se fixaram em Roland e o pobre rosto cansado se iluminou num sorriso.

Roland também sorriu e estendeu os braços, dizendo:

— Pode vir me abraçar, Sheemie? Se não, claro, eu vou até aí.

Sheemie se aproximou de gatinhas de Roland de Gilead, o cabelo preto e sujo caindo nos olhos, e pôs a cabeça no ombro de Roland. Susannah sentiu as lágrimas ardendo nos olhos e virou para o lado.

 

Pouco tempo depois, Sheemie sentou-se encostado na parede da gruta com o acolchoado que cobrira o Cruzador Trike de Suzie servindo de apoio para a cabeça e as costas. Eddie tinha lhe oferecido um refrigerante, mas Ted sugeriu que talvez água fosse melhor. Sheemie bebeu a primeira garrafa de Perrier de uma só tacada e sorvia a outra, sentado. Os demais beberam café solúvel, com exceção de Ted; ele estava tomando uma lata de Nozz-A-La.

— Não sei como consegue suportar essa coisa — disse Eddie.

— Gosto não se discute, como diz a solteirona dando um beijo na vaca — Ted respondeu.

Só o Filho de Roderick não bebeu nada. Continuava deitado na entrada da gruta, as mãos tapando firmemente os olhos. Tremia um pouco.

Ted se aproximara de Sheemie entre a primeira e a segunda garrafa de água tomada pelo rapaz. Tomou-lhe o pulso, olhou dentro da boca e apalpou o crânio em busca de algum lugar mole. Cada vez que perguntava se doía, Sheemie balançava solenemente a cabeça numa negativa, jamais tirando os olhos de Roland. Após verificar as costelas de Sheemie (“cócegas, sai, aí dá mesmo”, disse Sheemie com um sorriso), Ted garantiu estar tudo justo como as cordas de um violino.

Eddie, que podia ver os olhos de Sheemie perfeitamente bem (um dos lampiões a gás lançava um forte clarão sobre o rosto do rapaz), achou que aquilo era uma mentira de nível quase presidencial.

Susannah cozinhava uma nova rodada de ovos mexidos e picadinho de carne (a grelha voltara a falar: “o mesmo de sempre, hum?”, perguntou num tom de alegre aprovação). Eddie captou o olhar de Dinky Earnshaw e falou:

— Quer sair um minuto comigo enquanto Suze mexe com o rango?

Dinky olhou para Ted, que abanou a cabeça, e voltou a Eddie:

— Se quiser. Temos um pouco mais de tempo esta manhã, mas isso não quer dizer que possamos desperdiçá-lo.

— Entendo — disse Eddie.

 

 

O vento tinha ficado mais forte, mas, em vez de renovado, o ar estava ainda mais pesado. Quando estava na escola secundária, Eddie participara de uma excursão a uma refinaria de Nova Jérsei. Até aquele momento, achou que havia experimentado naquele dia o pior cheiro de toda a sua vida; duas moças e três rapazes tinham vomitado. Ele se lembrava do guia da excursão rindo com vontade e dizendo:

— Não esqueçam que é o cheiro do dinheiro... isso vai ajudar.

Talvez a Perth Oil & Gas fosse ainda a verdadeira campeã da coisa, porque o que estava cheirando agora não parecia tão penetrante. E aliás, o que a Perth Oil & Gas tinha de tão familiar? Não sabia e provavelmente isso não tinha importância, mas era estranho o modo como as coisas estavam sempre voltando por ali. E “voltando” não era bem o termo, certo?

— Fazendo eco por ali — Eddie murmurou. — É isso.

— O que você disse, parceiro? — Dinky perguntou. Estavam mais uma vez parados na trilha, contemplando os prédios de telhados azuis na distância, o emaranhado de vagões de trem e o povoado perfeito. Perfeito, é claro, até você se lembrar que ficava atrás de uma cerca tripla de arame farpado, uma daquelas cercas cuja carga elétrica era forte o bastante para matar quem encostasse nelas.

— Nada — Eddie respondeu. — Que cheiro é esse? Faz alguma idéia?

Dinky balançou a cabeça numa negativa, mas apontou para trás do complexo da prisão. Para o que podia ser tanto sul quanto leste.

— Existe algo venenoso lá embaixo. É só o que sei — disse. — Um dia perguntei a Finli e ele respondeu que antigamente havia fábricas lá para aqueles lados. Coisa da Positronics. Conhece este nome?

— Sim. Mas quem é Finli?

— Finli de Tego. O cara do esquema de segurança, o número um de Prentiss, também conhecido como Fuinha. Um taheen. Sejam quais forem os seus planos, terão de passar por ele para fazê-los funcionar. Finli não vai tornar as coisas fáceis e, sem dúvida, se eu o visse morto caído no chão ia ficar com uma tremenda sensação de feriado nacional. Aliás, meu nome verdadeiro é Richard Earnshaw. É um tremendo prazer te conhecer. — Estendeu a mão. Eddie apertou.

— Eu me chamo Eddie Dean. Conhecido por aqui, a oeste do rio Pecos, como Eddie de Nova York. A moça se chama Susannah. É minha esposa.

— Hã-hã. — Dinky abanava a cabeça. — E o garoto é o Jake. Também de Nova York.

— Jake Chambers, é isso. Escute, Rich...

— Obrigado pela consideração — disse ele sorrindo —, mas acho que sou chamado de Dinky há tempo demais para mudar agora. E a coisa podia ser pior. Trabalhei algum tempo num supermercado chamado Supr Savr com um cara de vinte e poucos anos conhecido como Fudêncio. As pessoas ainda vão chamá-lo assim quando ele estiver com oitenta anos e usando fraldas.

— Se não tivermos coragem, habilidade e sorte — disse Eddie —, ninguém vai chegar aos oitenta. Não neste mundo nem em qualquer outro.

Dinky pareceu sobressaltado e depois sombrio.

— Foi na mosca — disse.

— Esse cara que Roland conhece há tempo está mal — disse Eddie. — Você viu os olhos de Sheemie?

Dinky abanou a cabeça, mais sombrio ainda.

— Acho que aqueles pontinhos de sangue nos brancos são chamados petequias. É um nome assim. — Então, num tom de desculpas que Eddie achou um tanto bizarro em tais circunstâncias, Dinky concluiu: — Não sei se estou pronunciando direito.

— Seja lá como eles se chamem, não são boa coisa. E o chilique que ele deu...

— Não é um modo muito simpático de pôr a coisa — disse Dinky.

Eddie estava cagando se era simpático ou não.

— Isto já aconteceu com ele? — perguntou.

Os olhos de Dinky se afastaram dos de Eddie e se concentraram nos pés que não paravam de se mexer. Eddie achou que a resposta era suficiente.

— Quantas vezes? — Eddie torceu para não deixar transparecer a consternação que estava sentindo. Os pontinhos de sangue nos olhos de Sheemie, do tamanho de cabeças de alfinete mas bem numerosos, davam a impressão de que alguém jogara páprica nas vistas do rapaz. Isto para não mencionar os pontos maiores que havia nos cantos.

Ainda sem levantar a cabeça, Dinky ergueu quatro dedos.

— Quatro vezes?

— Hã-hã — disse Dinky, ainda examinando seus precários mocassins. Começou em 1960, na época em que ele mandou Ted para Connecticut. Foi como se fazendo isto alguma coisa rompesse dentro dele. — Dinky ergueu os olhos, tentando sorrir. — Mas ontem ele não tornou a desmaiar quando nós três voltamos ao Devar.

— Vamos ver se entendi direito. Vocês, caras, têm todo tipo de pecados veniais naquela prisão, mas apenas um mortal: a telecinese.

Dinky pensou. Certamente as regras não eram assim tão liberais para os taheens e os can-toi; eles podiam ser exilados ou lobotomizados pelos mais variados motivos, incluindo faltas como negligência, implicar com os Sapadores ou cometer algum ato de franca crueldade. Certa vez — assim tinham lhe contado — um Sapador fora violentado por um homem baixo. O homem teria tentado sofregamente se justificar perante o então Mestre do campo dizendo que aquilo era parte de seu vir a ser — o próprio Rei Rubro teria lhe aparecido em sonhos mandando que ele fizesse a coisa. Este can-toi tinha sido condenado à morte. Os Sapadores foram convidados a assistir à execução (cumprida com um único tiro de pistola na cabeça), que teve lugar no meio da rua Central de Vila Aprazível.

Dinky contou a história a Eddie, mas admitiu que sim, ao menos para os residentes, a telecinese era o único pecado mortal. Pelo que ele sabia, ao menos.

— E Sheemie é o telecinético de vocês — disse Eddie. — Vocês, caras o ajudam... servem de indutor dele, para usar o termo do Ted... e vocês dão cobertura às derrapadas dele falsificando os relatórios...

— Não fazem idéia de como é fácil mexer com a telemetria — disse Dinky, quase rindo. — Parceiro, eles ficariam chocados! Difícil são os cuidados que temos de tomar para não fazer cair a coisa toda.

Eddie não se preocupava nem com isso. Funcionava. Era a única coisa que importava. Sheemie também funcionava... mas por quanto tempo?

— ...mas ele é quem faz isso — Eddie concluía. — Sheemie.

— Hã-hã.

— O único que consegue fazer.

— Hã-hã.

Eddie pensou em suas duas tarefas: libertar os Sapadores (ou matá-los, se não houvesse outro meio de fazê-los parar) e impedir que o escritor fosse atropelado e morto por uma minivan durante uma caminhada. Roland achava que talvez conseguissem fazer as duas coisas, mas iam precisar pelo menos duas vezes da aptidão de Sheemie para a telecinese. Pior, seus visitantes teriam de estar de volta ao interior da tripla cerca de arame farpado após a palestra daquele dia estar acabada, e presumivelmente isto significaria que Sheemie teria de fazer a coisa uma terceira vez.

— Ele diz que não dói — disse Dinky. — Se é isso que o preocupa.

No interior da gruta os outros riam, Sheemie de volta à consciência e agora comendo, todos amigos de infância.

— Não é — disse Eddie. — O que Ted acha que acontece com Sheemie quando ele faz telecinese?

— Acha que ele tem hemorragias cerebrais — Dinky respondeu prontamente. Pequenos acidentes vasculares na superfície do cérebro. — Para ilustrar, ele bateu com um dedo em diferentes pontos de seu próprio crânio. — Boink, boink, boink.

— Está ficando pior? Está, não é?

— Olhe, se você acha que ele nos transportar por aí é idéia minha, é melhor tirar isso da cabeça.

Eddie ergueu uma das mãos como um guarda de trânsito.

— Não, não. Estou apenas tentando entender o que está acontecendo. — E quais são as nossas chances.

— Detesto usá-lo desse jeito! — Dinky clamou. Manteve baixo o tom de voz para que quem estava na gruta não pudesse ouvir, e Eddie nem por um momento achou que aquilo fosse um jogo. Dinky estava muito transtornado. — Mas ele não se importa... Ele quer sempre fazer a coisa... o que é pior, não melhor. O modo como ele olha para Ted... — Encolheu os ombros. — É o modo como um cachorro olharia para o melhor dono do universo. Ele olha para o seu dinh do mesmo jeito, como tenho certeza que você já reparou.

— Ele está fazendo o que faz para o meu dinh — disse Eddie —, o que torna a coisa OK. Você pode não estar acreditando nisso, Dink, mas...

— Mas você acredita.

— Totalmente. Agora aqui está a pergunta realmente importante: Ted tem alguma idéia de quanto tempo Sheemie pode suportar isto? Tendo sempre em mente que agora tem um pouco de ajuda nesta ponta?

Quem está tentando animar, bróder?, Henry falou de repente dentro de sua cabeça. Cínico como sempre. Ele ou a si mesmo?

Dinky estava olhando para Eddie como se ele tivesse enlouquecido ou, pelo menos, não estivesse pensando coisa com coisa.

— Ted era um contador. Às vezes um professor particular. Ou um trabalhador braçal diarista quando não conseguia nada melhor. Ele não é médico.

Mas Eddie continuou pressionando.

— Qual é a opinião dele?

Dinky fez uma pausa. O vento soprava. A música pairava no ar. Mais ao longe, o trovão murmurava no escuro. Por fim ele disse:

— Pode fazer mais três ou quatro vezes, talvez... se bem que os efeitos estão ficando piores. Talvez só duas vezes. Mesmo assim não há garantias, certo? Pode ter um AVC fulminante e morrer da próxima vez que tentar criar um buraco para atravessarmos.

Eddie tentou pensar em outra pergunta e não pôde. A última resposta fora bastante resumida, precisa, e ele achou ótimo quando Susannah chamou os dois para a gruta.

 

Sheemie Ruiz tinha redescoberto seu apetite, o que todos encaravam como um bom sinal, e estava comendo com satisfação. Os pontos vermelhos nos olhos estavam um pouco menos nítidos, embora continuassem bem visíveis. Eddie se perguntou o que os guardas do Céu Azul fariam se notassem alguma coisa estranha em Sheemie e também se perguntou se ele poderia voltar de óculos escuros sem despertar comentários.

Roland tinha feito o Rod ficar de pé e agora conversava com ele nos fundos da gruta. Bem... mais ou menos conversava. Na realidade o pistoleiro ralava e o Rod ouvia, vez por outra atirando olhares de lado para a cara de Roland. Para Eddie era um palavreado sem sentido, mas ele foi capaz de captar duas palavras: Chevin e Chayven. Roland estava falando com ele do aparecido que encontraram perambulando na margem da estrada em Lovell.

— Ele tem um nome? — Eddie perguntou a Dink e a Ted, enchendo novamente o prato de comida.

— Nós o chamamos de Chucky — disse Dinky. — Porque uma vez vi um filme de terror que tinha um boneco com esse nome, e os dois se parecem um pouco.

Eddie sorriu com vontade.

— Brinquedo Assassino, né? Também vi. Foi depois do seu quando, Jake. E bem depois do seu, Suziella. — O cabelo do Rod não era igual, mas as bochechas gorduchas, cheias de sardas, e os olhos azuis eram. — Acha que ele pode guardar um segredo?

— Se ninguém lhe pedir, ele guarda — disse Ted. O que não era, na opinião de Eddie, uma resposta muito satisfatória.

Após uns cinco minutos de papo, Roland pareceu se dar por satisfeito e voltou para a companhia dos outros. Pôs-se de cócoras — nenhum problema em fazer isso agora, com suas juntas já mais flexíveis — e olhou para Ted.

— O nome deste sujeito é Haylis de Chayven. Acham que alguém vai dar pela falta dele?

— É improvável — disse Ted. — Os Rods chegam ao portão atrás dos dormitórios em pequenos grupos, procurando trabalho. Em geral de mensageiro. Ganham uma refeição ou algo para beber como pagamento. Se não aparecem, ninguém dá pela falta deles.

— Bom. Agora... qual é a duração dos dias aqui? Serão 24 horas de agora até amanhã de manhã neste mesmo instante?

Ted pareceu interessado na pergunta e pensou alguns momentos antes de responder.

— Digamos 25 — ele disse. — Talvez um pouco mais. Porque o tempo está ficando vagaroso, pelo menos aqui. À medida que os Feixes se enfraquecem, parece que vai havendo uma disparidade crescente no fluxo do tempo entre os mundos. Provavelmente é um dos maiores pontos de estresse.

Roland abanou a cabeça. Susannah ofereceu-lhe comida e ele recusou com uma palavra de agradecimento. Atrás deles, o Rod estava sentado num caixote, olhando para os pés descalços, cobertos de feridas. Eddie se surpreendeu ao ver Oi se aproximar do sujeito e mais espantado ainda quando o trapalhão permitiu que Chucky (ou Haylis) alisasse sua cabeça com uma garra deformada que passava por mão.

— E há um período de manhã quando as coisas lá embaixo parecem um pouco menos... eu não sei...

— Um pouco desorganizadas? — Roland sugeriu.

Ted assentiu.

— Não ouviram ainda há pouco uma corneta? — ele perguntou. — Pouco antes de aparecermos?

Todos abanaram as cabeças numa negativa. Ted não pareceu surpreso.

— Mas ouviram a música começar, correto?

— Sim — disse Susannah oferecendo a Ted outra lata de Nozz-A-La. Ele a pegou e tomou-a com gosto. Eddie tentou não estremecer.

— Obrigado, senhora. De qualquer modo a corneta anuncia a mudança de turno. Aí começa a música.

— Odeio essa música — disse Dinky mal-humorado.

— Mas se existe algum momento em que o controle afrouxe — Ted continuou —, o momento é esse.

— E a que horas isso acontece? — Roland perguntou.

Ted e Dinky trocaram um olhar de dúvida. Dinky mostrou oito dedos e ergueu as sobrancelhas com ar indagador. Pareceu aliviado porque Ted abanou de imediato a cabeça.

— Sim, às oito horas — disse Ted rindo e sacudindo cinicamente a cabeça. — Pelo menos seriam oito num mundo em que aquela prisão permanecesse sempre firmemente a leste e não a “leste para sudeste” em certos dias e “exatamente a leste” em outros.

Mas Roland convivia com um mundo em dissolução muito antes que Ted Brautigan sequer sonhasse com um lugar como Algul Siento e já não ficava particularmente transtornado pelo modo como antigos fatos da vida, antes corriqueiros, tinham começado a se alterar.

— A umas 25 horas a partir de agora — disse Roland. — Ou um pouco menos.

Dinky assentiu.

— Mas se está contando com uma grande confusão, esqueça! Conhecem seus lugares e vão para eles. São veteranos.

— Mesmo assim — disse Roland — é o melhor que podemos fazer. — Agora olhava para seu velho conhecido de Mejis. E acenou para ele.

 

Sheemie pousou de imediato o prato, aproximou-se de Roland e fez um sinal com o punho.

— Salve, Roland, que era Will Dearborn.

Roland retornou o cumprimento e se virou para Jake. O garoto lhe dispensou um olhar incerto. Roland fez sinal e Jake se aproximou. Agora Jake e Sheemie estavam um de frente para o outro com Roland acocorado entre os dois. Com os dois tão próximos, Roland não olhava para nenhum deles.

Jake levou uma das mãos à testa.

Sheemie devolveu o gesto.

— O que você quer? — disse Jake baixando os olhos para Roland.

Roland não respondeu. Continuou a olhar serenamente para a entrada da gruta, como se lá fora, naquela névoa aparentemente sem fim, houvesse alguma coisa que o interessasse. E Jake sabia o que ele queria, tão certamente como se tivesse tocado a mente de Roland para descobrir (o que com toda a certeza não tinha feito). Tinham chegado a uma bifurcação na estrada que estavam seguindo. Fora Jake quem sugerira que Sheemie era a pessoa mais adequada para dizer que caminho tomar. No momento, só Deus sabia por que, parecera uma idéia realmente muito boa. Agora, contemplando os olhos injetados e a expressão séria, não muito esperta de Sheemie, Jake se perguntava duas coisas: o que o levara a sugerir tal curso de ação e por que alguém (por exemplo Eddie, que mantinha uma cabeça relativamente atenta apesar de tudo por que tinham passado) não tinha lhe dito, de forma gentil mas firme, que pôr o futuro deles nas mãos de Sheemie Ruiz era uma idéia cretina. Uma idéia totalmente desmiolada, como diriam seus antigos colegas na escola Piper. Roland, acreditando que mesmo na sombra da morte haveria lições a serem aprendidas, queria que o próprio Jake fizesse a pergunta que propusera. A resposta, é claro, iria confirmá-lo como aquilo que havia se tornado — um desmiolado supersticioso. Contudo, por que não perguntar? Mesmo que fosse igual a tirar caraou coroa, por que não? Jake chegara, talvez no final de uma curta, mas sem a menor dúvida interessante vida, a um lugar onde existiam portas mágicas, mordomos-robôs, telepatia (que ele próprio, pelo menos até certo ponto, era capaz de praticar), vampiros e homens-aranhas. Por que Sheemie não poderia decidir? Afinal, tinham de seguir por um lado ou por outro e Jake já havia passado por coisas muito brabas para se preocupar com algo tão fútil quanto parecer idiota aos olhos dos companheiros. Além disso, ele pensou, se não posso dizer que agora estou rodeado de amigos, jamais poderei dizer.

— Sheemie — disse ele. Olhar para aqueles olhos vermelhos era um pouco desagradável, mas ele se obrigou a fazê-lo. — Estamos numa missão. Quero dizer que temos um trabalho a cumprir. Nós...

— Vocês têm de salvar a Torre — disse Sheemie. — E é para meu velho amigo entrar nela, subir até o topo e ver o que houver para ver. Pode encontrar renovação, pode encontrar morte ou pode encontrar as duas coisas. Antigamente ele era Will Dearborn, era sim. Para mim era Will Dearborn.

Jake olhou para Roland, que continuava agachado, olhando para fora da gruta. Jake achou que o rosto dele tinha ficado pálido, estranho. Um dos dedos de Roland fez aquele gesto circular de vá em frente.

— Sim, é para salvar a Torre Negra — Jake concordou. Até certo ponto entendia o desejo de Roland para ver e entrar na Torre, mesmo que ela o matasse. Afinal, o que se encontrava no centro do universo? Qualquer homem (ou garoto) iria ficar maravilhado, depois de pensar a perguntar, e querer ver?

Mesmo se a visão o enlouquecesse?

— Mas para fazer isso — Jake continuou — é preciso cumprir duas tarefas. Uma delas é voltar ao nosso mundo e salvar um homem... um escritor que está contando a nossa história. A outra tarefa é aquela sobre a qual temos conversado. Libertar os Sapadores. — A honestidade o fez acrescentar: — Ou pelo menos detê-los. Está compreendendo?

Mas desta vez Sheemie não respondeu. Olhava para a mesma névoa que Roland estava olhando. Tinha o rosto de alguém hipnotizado. Vê-lo daquele jeito deixava Jake pouco à vontade, mas ele pressionou. Chegara a hora da pergunta, afinal, e para onde era possível seguir a não ser adiante?

— A dúvida é: que tarefa cumprimos primeiro? Parece que salvar o escritor pode ser mais fácil porque não há oposição... pelo menos de que tenhamos conhecimento... mas existe a possibilidade de que... bem... — Jake não quis dizer mas havia a possibilidade de que usar a telecinese para transportá-los pudesse acabar com Sheemie e assim interrompeu a frase de forma incômoda, pouco convincente.

Por um momento achou que Sheemie não daria nenhuma resposta, e assim o forçar a tentar de novo, mais aí o antigo empregado da taberna falou. Falou sem olhar para nenhum deles, para fora da gruta e na penumbra de Trovoada.

— Ontem à noite tive um sonho, assim foi — disse Sheemie de Mejis, cuja vida um dia fora salva por três jovens pistoleiros vindos de Gilead. — Sonhei que tinha voltado ao Repouso dos Viajantes, só que Coral não estava lá, nem Stanley, nem Pettie, nem Sheb... ele que costumava tocar piano. Não havia ninguém além de mim, e eu estava passando pano no chão e cantando “Careless Love”. Então as portas de vaivém rangeram, assim foi, faziam mesmo um som engraçado...

Jake reparou que Roland, com um traço de sorriso nos lábios, abanava a cabeça.

— Ergui os olhos — Sheemie recomeçou — e vi o garoto entrar. — Seu olhar se deslocou brevemente para Jake, depois voltou à boca da gruta. — De fato era muito parecido com você, jovem sai, assim foi, era como se fosse um duplo. Mas o rosto estava coberto de sangue e um dos olhos se perdera, o que estragava a boniteza. Além disso coxeava muito. Parecia a morte, assim foi. Fiquei ao mesmo tempo apavorado e triste por ver alguém daquele jeito. Continuei passando pano, torcendo para ele nem reparar em mim, quem sabe para nem me ver, ir embora.

Jake sentiu que conhecia a história. Tinha visto aquilo? Tinha realmente sido o rapaz sangrando?

— Mas ele olhou bem na sua cara... — Roland murmurou, ainda de cócoras, ainda contemplando a escuridão.

— Ié, velho Will Dearborn, bem na minha cara, assim foi, e perguntou: “Por que tem de me ferir, se gosto tanto de você? Se não posso fazer nem querer nada mais, pois o amor tomou conta de mim, me alimentou e...”

— Foi o que me sustentou em dias melhores — Eddie murmurou. Uma lágrima caiu de um de seus olhos, deixando uma mancha escura no piso da gruta.

— ...foi o que me sustentou em dias melhores? Por que vai me cortar, desfigurar meu rosto e me encher de pesar? Eu apenas o amei por sua beleza como você me amou pela minha nos dias em que o mundo ainda não seguira adiante. Agora você me marca com as unhas e derrama gotas ferventes de mercúrio no meu nariz; tem mandado os animais para me atacar, assim é, e eles têm comido minhas partes mais tenras. Ao meu redor os can-toi se agrupam e do riso deles surge a paz. Contudo, eu ainda o amo e o serviria e traria de novo a mágica se você me deixasse, pois foi assim que meu coração foi forjado quando saí do Primal. E antigamente eu era forte, assim como era bonito, mas agora minha energia está quase acabada.

— Você chorou — disse Susannah, e Jake pensou: É claro que chorou. Ele próprio estava chorando. Assim como Ted; assim como Dinky Earnshaw. Só Roland continuava de olhos secos, mas estava pálido, muito pálido.

— Ele chorou — disse Sheemie (as lágrimas rolavam pelo rosto ao passo que ele contava o sonho) — e eu também, pois tinha certeza que ele fora lindo como a luz do dia. O garoto disse: “Se a tortura parasse agora, eu poderia me recuperar... se não a aparência, pelo menos minha energia...”

— Minha kes — disse Jake e, embora nunca ouvira a palavra antes, pronunciou-a corretamente, quase como se fosse kiss.

— “...e minha kes. Outra semana... ou talvez cinco dias... ou mesmo três... e será tarde demais. Mesmo que a tortura pare, vou morrer. E você vai morrer também, pois quando o amor abandona o mundo, todos os corações se calam. Fale a eles do meu amor, fale a eles da minha dor e fale da minha esperança, que ainda vive. Pois isto é tudo que tenho, tudo que sou e tudo que peço.” Então o garoto se virou e saiu. As portas de vaivém fizeram o mesmo barulho. Skrii-iik.

Ele estava olhando para Jake e sorria como alguém que tivesse acabado de acordar.

— Não sei responder à sua pergunta, sai. — Bateu com um punho na testa. — Não tenho muita coisa parecida com miolos aqui... são mais teia de aranha. Era o que dizia Cordélia Delgado e reconheço que tinha razão

Jake não deu resposta. Estava atordoado. Havia sonhado com o mesmo garoto desfigurado, mas não em algum saloon; a coisa se passara no parque Gage, onde tinham visto Charlie Chuu-Chuu. Sonhara na noite anterior. Tinha de ter sido na noite anterior. Só agora se lembrava disso provavelmente jamais teria se lembrado se Sheemie não tivesse contado seu próprio sonho. E será que Roland, Eddie e também Susannah não teriam tido suas próprias versões desse mesmo sonho? Sim. Podia ver isso em seus rostos, exatamente como podia ver que Ted e Dinky pareciam comovidos, mas estavam, antes de mais nada, confusos.

Roland se levantou com um estremecimento, pôs brevemente uma das mãos no quadril e disse:

— Obrigado-sai. Você nos deu uma grande ajuda, Sheemie.

Sheemie sorriu com ar inseguro.

— Como fiz isso?

— Não importa, meu caro. — Roland voltou sua atenção para Ted. — Vou sair um pouco com meus amigos. Precisamos falar an-tet.

— É claro — disse Ted, que balançava a cabeça como se quisesse clarear as idéias.

— Façam um favor à minha paz mental e não se demorem — disse Dinky. — Provavelmente ainda estamos bem, mas não quero arriscar.

— Vão precisar dele para colocá-los de novo lá dentro? — Eddie perguntou apontando para Sheemie. Sem dúvida uma pergunta de natureza retórica: de que outra forma os três poderiam voltar?

— Bem, sim, mas... — Dinky começou.

— Então terão de se arriscar bastante. — Dito isto, Eddie, Susannah e Jake seguiram Roland para fora da gruta. Oi ficou para trás, sentado perto de seu novo amigo, Haylis de Chayven. Algo neste laço perturbava Jake. Não era uma sensação de ciúme, era uma sensação de muito medo. Como se estivesse diante de um enigma que só alguém mais sábio que ele (talvez alguém do povo manni) pudesse interpretar. Mas será que ia querer ouvir a interpretação?

Talvez não.

 

— Só me lembrei do meu sonho quando Sheemie contou o dele — disse Susannah —, e se ele não tivesse contado provavelmente eu jamais ia me lembrar.

— É — disse Jake.

— Mas agora me lembro com bastante nitidez — ela continuou. — Eu estava numa estação de metrô e o garoto vinha descendo a escada...

— Eu estava no parque Gage... — disse Jake.

— E eu no playground da avenida Markey, onde costumava brincar um contra o outro — disse Eddie. — No meu sonho, o garoto com o rosto ensangüentado usava uma camiseta que dizia: NENHUM MOMENTO CHATO...

— ...NO MUNDO MÉDIO — Jake concluiu e Eddie o olhou com ar sobressaltado.

Jake mal reparou; seus pensamentos tinham seguido em outra direção.

— Eu me pergunto se Stephen King alguma vez usa sonhos no que escreve. Vocês sabem, como fermento para fazer a trama crescer.

Era uma pergunta a que nenhum deles sabia responder.

— Roland? — Eddie perguntou. — Onde você estava no seu sonho?

— No Repouso dos Viajantes, onde mais haveria de estar? Não estava ali com Sheemie, era uma vez? — E com meus amigos, há muito sumidos, ele podia ter acrescentado, mas não o fez. — Estava sentado na mesa que Eldred Jonas costumava ocupar, jogando uma partida de Me Olhe, sozinho.

— O garoto do sonho era o Feixe, não era? — disse Susannah em voz baixa.

Quando Roland abanou a cabeça, Jake percebeu que Sheemie, afinal, tinha lhes dito que tarefa vinha primeiro. Tinha posto a coisa claramente, além de qualquer dúvida.

— Alguém tem alguma pergunta? — Roland perguntou.

Um por um, seus companheiros foram balançando negativamente as cabeças.

— Somos ka-tet — disse Roland e os demais responderam a uma só voz: — Somos um feito de muitos.

Roland se demorou mais um instante, olhando para eles — mais que olhando, parecendo saborear suas expressões — e depois tornou a levá-los para dentro.

— Sheemie — ele chamou.

— Sim, sai! Sim, Roland, que era Will Dearborn!

— Vamos salvar o garoto de quem nos falou. Vamos fazer com que os maus elementos parem de machucá-lo.

Sheemie sorriu, mas foi um sorriso confuso. Não se lembrava do garoto de seu sonho, não se lembrava mais.

— Bom, sai, isso é bom!

Roland voltou sua atenção para Ted.

— Desta vez, quando Sheemie levá-los de volta, ponham-no para dormir. Ou, se isso atrair o tipo errado de atenção, procurem fazer com que ele relaxe.

— Podemos dizer que está gripado e conservá-lo fora do estúdio — Ted concordou. — Há muita gripe, ao lado de Trovoada. Mas vocês precisam compreender, pessoal, que não há garantias. Ele pode nos fazer voltar mais uma vez e então... — Estalou os dedos no ar.

Rindo, Sheemie o imitou, estalando os dedos nas duas mãos. Susannah desviou o olhar, sentindo um mal-estar.

— Sei disso — disse Roland e embora o timbre não tivesse se alterado muito, cada membro do ka-tet achou bom que aquela palestra estivesse quase acabada. Roland tinha chegado ao limite de sua paciência. — Mantenham-no quieto mesmo que ele esteja bem, se sentindo ótimo! Graças às armas que vocês nos deixaram, não vamos precisar dele para o que tenho em mente.

— São boas armas — Ted concordou —, mas serão boas o bastante para liquidar sessenta homens, can-toi e taheen?

— Vocês dois estarão do nosso lado quando a luta começar? — Roland perguntou.

— Com o maior prazer — disse Dinky, revelando os dentes num sorriso notavelmente feroz.

— Sim — disse Ted. — E pode ser, inclusive, que eu tenha mais uma arma. Ouviram as fitas que deixei?

— Sim — Jake respondeu.

— Então sabem da história do cara que roubou minha carteira.

Desta vez todos abanaram a cabeça.

— E aquela moça? — Susannah perguntou. — Uma mulher durona, como você disse. Tanya e o namorado dela? Ou marido, se é o que ele é?

Ted e Dinky trocaram um breve olhar de dúvida e balançaram simultaneamente as cabeças.

— Antes talvez — disse Ted. — Não agora. Agora ela está casada. Tudo que quer fazer é curtir seu companheiro.

— E Sapar — Dinky acrescentou.

— Mas eles não compreendem que... — Susannah sentiu que não podia concluir. Via-se perseguida nem tanto pelas imagens de seu sonho, mas mais pelo sonho de Sheemie. Agora você me arranha com unhas, o garoto do sonho tinha dito a Sheemie. O garoto do sonho, que um dia fora belo.

— Eles não querem compreender — Ted lhe disse num tom amável, olhando de relance para a face sombria de Eddie, balançando a cabeça. — Mas não os deixo odiá-los por isso. Você... nós... podemos ter de matar alguns deles, mas não vou deixar que os odeie. Não se recusaram a compreender por ambição ou medo, mas por desespero.

— E porque Sapar é divino — disse Dinky, que também olhou para Eddie. — Do mesmo modo como a meia hora após se injetar pode ser divina. Se é que entendem o que estou falando.

Eddie suspirou, enfiou as mãos nos bolsos, mas não disse nada.

Sheemie surpreendeu a todos quando pegou uma das pistolas automáticas Coyote e sacudiu-a num arco. Se estivesse carregada, a grande busca pela Torre Negra teria terminado ali mesmo.

— Também vou lutar! — ele gritou. — Pou, pou, pou! Bam-bam-bam-badam!

Eddie e Susannah se abaixaram rapidamente; Jake atirou-se instintivamente na frente de Oi; Ted e Dinky puseram as mãos na frente dos rostos, como se aquilo pudesse salvá-los de uma rajada com balas de aço de calibre cem. Roland puxou calmamente a pistola automática das mãos de Sheemie.

— Seu tempo de ajudar chegará — disse —, mas após a primeira batalha ser travada e ganha. Está vendo o trapalhão de Jake, Sheemie?

— Sim, ele está com o Rod.

— Ele fala. Veja se consegue que fale com você.

Obediente, Sheemie foi para onde Chucky-Haylis continuava alisando a cabeça de Oi, pôs um dos joelhos no chão e começou a tentar fazer com que Oi dissesse seu nome. O trapalhão disse quase de imediato, e com notável nitidez. Sheemie riu e Haylis juntou-se a ele. Pareciam uma dupla de crianças de Calla. Do tipo roont talvez.

Roland, enquanto isso, se virava para Dinky e Ted, os lábios pouco mais que uma linha branca no rosto severo.

 

— Assim que o tiroteio começar, ele deve ser mantido de fora. — O pistoleiro fez o gesto de quem vira uma chave numa fechadura. — Se perdermos, o que pode lhe acontecer mais tarde não terá importância. Se vencermos, vamos precisar dele pelo menos mais uma vez. Provavelmente duas.

— Para ir para onde? — Dinky perguntou.

— Para o Mundo-chave da América — disse Eddie. — Uma pequena cidade no oeste do Maine chamada Lovell. Tão no início de junho de 1999 quanto um tempo de sentido único permita.

— Ao que parece os ataques de Sheemie começaram depois que ele me despachou para Connecticut — disse Ted em voz baixa. — Vocês sabem que despachá-los para o lado americano pode fazê-lo piorar, certo? Ou matá-lo? — Falava num tom absolutamente neutro. Só constatando, cavalheiros.

— Sabemos disso — Roland disse —, e quando o momento chegar, vou expor claramente o risco para ele e perguntar se...

— Ah, amigo, pode enfiar essa — disse Dinky, e Eddie foi tomado pela sensação de estar vivendo um momento de déjà vu e por uma forte ansiedade (a que sentira durante as primeiras horas às margens do mar Ocidental, quando estava confuso, irritado, carente de heroína). — Se disser a Sheemie que precisa que ele se incendeie, a única coisa que ele iria querer saber é se você tem um fósforo. Ele acha que você é o Cristo encarnado.

Susannah esperou, com um misto de medo e quase lascivo interesse, pela resposta de Roland. Não houve nenhuma. Roland se limitou a encarar Dinky com os polegares presos no cinturão.

— Certamente percebe que um homem morto não poderá trazê-los de volta do lado americano — disse Ted num tom mais razoável.

— Pularemos esta cerca quando e se chegarmos a ela — disse Roland. — Por enquanto temos algumas outras cercas a transpor.

— Acho ótimo tomarmos primeiro o Devar-Toi, seja qual for o risco — disse Susannah. — O que está acontecendo lá dentro é uma abominação.

— Sim, senhora. — Dinky falou solenemente e agora levantava um chapéu imaginário. — Essa seria a palavra.

A tensão na gruta diminuía. Atrás deles, Sheemie pedia que Oi rolasse de costas e Oi obedecia com extrema satisfação. O Rod tinha um grande e comovido sorriso no rosto. Susannah se perguntou quando Haylis de Chayven tivera oportunidade de usar pela última vez aquele sorriso, que tinha um encanto infantil.

Teve vontade de perguntar a Ted se havia algum meio de saber que dia era na América naquele momento, mas preferiu não incomodá-lo. Se Stephen King tivesse morrido, eles saberiam; Roland dissera isso e ela tinha certeza de que ele estava certo. Por enquanto o escritor estava bem e contente, desperdiçando seu tempo, sua valiosa imaginação em algum projeto tolo, enquanto o mundo que ele estava predestinado a imaginar continuava a acumular poeira em sua mente. Não era realmente de admirar que Roland estivesse irritado com ele. Susannah também estava meio furiosa.

— Qual é o plano, Roland? — Ted perguntou.

— Ele se baseia em duas suposições: que podemos surpreendê-los e colocá-los para correr. Acho que não esperam ser interrompidos nestes últimos dias; de Pimli Prentiss ao guarda humo mais subalterno, de serviço junto à cerca, ninguém tem motivos para crer que possam sofrer contratempos no trabalho, muito menos que possam ser alvo de um ataque. Se minhas suposições estão corretas, seremos bem-sucedidos. Se fracassarmos, pelo menos não estaremos vivos quando os Feixes se romperem e a Torre cair.

Roland encontrou o mapa tosco do Algul e estendeu-o no chão da gruta. Todos se reuniram em volta.

— Esses desvios da linha férrea — disse ele, mostrando os traços grosseiros indicados como 10. — Algumas das locomotivas paradas estão a uns 20 metros da cerca sul, com vagões engatados nelas. Pelo menos é o que parecemos ver pelos binóculos. Estou certo?

— Sim — disse Dinky, apontando para o centro da linha férrea mais próxima da cerca. — É, pode chamar isto de sul... É um nome tão útil quanto qualquer outro. Nesta linha há um vagão de carga fechado que está realmente perto da cerca. A uns 10 metros mais ou menos. Tem escrito LINHA SOO do lado.

Ted abanava a cabeça.

— Boa cobertura — disse Roland. — Excelente cobertura. — Agora ele apontava para a área atrás da extremidade norte do complexo. — E aqui temos todo tipo de galpões.

— Antigamente guardavam suprimentos — disse Ted —, mas agora acho que a maioria deles estão vazios. Durante algum tempo um bando de Rods dormia ali, mas há seis ou oito meses Pimli e o Fuinha os chutaram de lá.

— De qualquer modo, vazios ou não, dão mais cobertura — disse Roland. — Como é o terreno em volta e atrás? Livre de obstáculos e bastante plano? Plano o bastante para aquela coisa rodar para frente e para trás? — Apontava um polegar para o Cruzador Trike de Suzie.

Ted e Dinky trocaram um olhar. m

— Sem a menor dúvida — disse Ted.

Susannah esperou para ver se Eddie, antes mesmo de saber exatamente o que Roland tinha na cabeça, ia protestar. Ele não o fez. Ótimo. Ela já estava pensando que armas ia querer. Que revólveres.

Roland ficou alguns momentos imóvel, olhos fixos no mapa, parecendo quase comungar com ele. Quando Ted lhe ofereceu um cigarro, o pistoleiro aceitou. Depois começou a falar. Rabiscou duas vezes, com um pedaço de giz, do lado de um caixote de armas. Duas vezes mais desenhou setas no mapa, uma apontando para o que estava chamando de norte, outra apontando para o sul. Ted fez uma pergunta; Dinky fez outra. Atrás deles, Sheemie e Haylis brincavam com Oi como uma dupla de crianças. O trapalhão imitava o riso dos dois com fantástica exatidão. Quando Roland acabou, Ted Brautigan disse:

— Você pretende derramar uma incrível quantidade de sangue.

— De fato sim. Tanto quanto possa.

— Vai ser arriscado para esta senhora — Dink comentou, olhando primeiro para ela, depois para o marido.

Susannah não disse nada. Nem Eddie. Ele sabia do risco. Também compreendia por que Roland queria ver Suze ao norte do complexo. O Cruzador Trike lhe daria mobilidade e iam precisar disso. Quanto ao risco, eram seis planejando tomar o controle de sessenta. Ou mais. É claro que haveria risco, e é claro que haveria sangue.

Sangue e fogo.

— Talvez eu consiga arranjar algumas armas mais especiais — disse Susannah. Seus olhos tinham ganho aquele brilho próprio de Detta Walker. — Com controle remoto, como certos aeromodelos. Num sei. Mas vou me mexe, cês podem crer. Ficá correndo dum lado pro outro como manteiga na chapa quente.

— Será que funciona? — Dinky perguntou bruscamente.

Os lábios de Roland se separaram num sorriso sem humor.

— Vai funcionar.

— Como pode garantir? — Ted perguntou.

Eddie se lembrou do raciocínio de Roland antes do telefonema para John Cullum e podia ter respondido àquela pergunta, mas quem devia dar as respostas era o dinh do ka-tet — a não ser que não quisesse — e Eddie deixou que Roland falasse.

— Tem de funcionar — disse o pistoleiro. — Não vejo outra saída.

 

O ATAQUE CONTRA ALGUL SIENTO

Era um dia mais tarde, não muito antes de a corneta sinalizar a troca matinal de turno. Logo a música ia começar, o sol acenderia e a equipe noturna de Sapadores deixaria o estúdio, enquanto a equipe diurna de Sapadores entraria. Tudo corria como devia correr, mas Pimli Prentiss dormira menos de uma hora na noite anterior e mesmo esse breve tempo fora povoado de sonhos amargos e caóticos. Finalmente, por volta das quatro (por volta daquilo que o relógio de sua mesinha-de-cabeceira marcava como quatro, mas quem podia garantir, e o que, aliás, isso importava, assim tão perto do fim), ele se levantara e sentou-se na cadeira do escritório, contemplando o Passeio escuro, deserto àquela hora, salvo por um solitário e inútil robô que tinha decidido patrulhar a área e agora sacudia seus seis braços (com tenazes nas pontas) aleatoriamente para o céu. Os robôs que ainda funcionavam ficavam cada dia mais idiotas, mas tirar as baterias era perigoso, pois alguns tinham armadilhas e poderiam explodir. Não havia nada a fazer além de suportar suas palhaçadas, mantendo sempre em mente que logo tudo estaria acabado, louvado seja Jesus e o Pai Todo-Poderoso! A certa altura o ex-Paul Prentiss abriu a gaveta da escrivaninha que ficava em cima da abertura para as pernas, tirou de lá o Colt .40 Peacemaker e colocou-o no colo. Era a arma com a qual Humma, o Mestre anterior, havia executado Cameron, o estuprador. Pimli não tivera de executar ninguém em sua época e se congratulava com isso, mas pôr a pistola no colo, ver como era pesada, oferecia sempre um certo conforto. Mesmo que não soubesse muito bem por que devia ansiar por conforto em plena madrugada, especialmente quando tudo estava correndo tão bem. O que sabia com certeza era que tinham ocorrido algumas interrupções fora do comum no que Finli e Jenkins, o principal responsável técnico, gostavam de chamar Telemetria Profunda, como se fossem instrumentos instalados no fundo do oceano e não num simples armário do subsolo adjacente à sala comprida, de teto baixo, onde era mantido o resto do equipamento mais útil. Pimli admitiu que o que estava sentindo — vamos falar na lata — era uma sensação de desgraça iminente. Mas no fundo ainda queria se convencer de que se tratava apenas do provérbio do avô, na prática — como já estava quase em casa, era hora de se preocupar com os ovos. Por fim entrara no banheiro, fechara a tampa do vaso e se ajoelhara para rezar. E ali, quieto, percebeu que algo tinha se alterado na atmosfera. Não ouvira passos, mas sabia que alguém havia entrado em seu escritório. A lógica sugeria quem havia de ser. Ainda sem abrir os olhos, ainda com as mãos agarradas à tampa abaixada do vaso, ele chamou:

— Finli? Finli de Tego? É você?

— Sim, chefe, sou eu.

O que ele estava fazendo ali antes do toque de corneta? Todos, inclusive os Sapadores, sabiam como Finli, o Fuinha, gostava de dormir. Mas paciência. Por ora Pimli estava ocupado com o Senhor (para falar a verdade, tinha quase cochilado, ali, de joelhos, antes que algum profundo subinstinto o advertisse de que não estava mais sozinho naquele primeiro andar do prédio da administração). Não se tratava com falta de consideração alguém tão importante quanto o Senhor Deus dos Exércitos e ele acabou sua prece — “seja feita a Vossa vontade, amém!” — antes de se levantar com um estremecimento. As malditas costas não gostavam nem um pouco da barriga que tinham de ajudar a erguer.

Finli estava parado junto à janela, erguendo o Peacemaker sob a débil luminosidade, virando a arma de um lado para o outro e admirando as delicadas volutas nas placas de encaixe da coronha.

— Foi esta que colocou Cameron para dormir, não foi? — Finli perguntou. — Cameron, o estuprador.

Pimli assentiu e advertiu:

— Tome cuidado, filho, está carregada.

— Seis tiros?

— Oito! Está cego? Veja o tamanho do cilindro, pelo amor de Deus!

Finli não se preocupou em examinar e entregou a arma a Pimli.

— Sei puxar o gatilho, tenha certeza, e quando se trata de armas acho que basta.

— Bem, se estiver carregada. O que está fazendo de pé a uma hora dessas, afastando um homem de suas preces matinais?

Finli o encarou.

— E se eu perguntasse por que encontrei você nas suas preces, vestido e penteado em vez de estar de roupão e chinelos, só com um olho aberto? Que resposta ia me dar?

— Eu estou pilhado. A resposta é simples assim. Acho que você também está.

Finli sorriu, encantado.

— Pilhado! E coisa do tipo tremedeira, chilique, Mandraque?

— Mais ou menos... é.

O sorriso de Finli se ampliou, mas Pimli achou que não parecia de todosincero.

— Gosto disso! Gosto muito mesmo! Pilhado! Pilhadaço!

— Não — disse Pimli. — Estou pilhado, é como se fala.

O sorriso de Finli se extinguiu.

— Também estou pilhado — disse ele. — Tenho tremor e suor. Mesintomeio Mandraque! Ando pilhado e você anda ilhado.

— Novas interrupções na Telemetria Profunda?

Finli deu de ombros, mas abanou a cabeça numa afirmativa. O problema com a Telemetria Profunda era que nenhum deles sabia exatamente o que ela media. Podia ser telepatia ou (Deus os livrasse) telecinese, ou até mesmo tremores mais fortes na teia da realidade — precursores da iminente quebra do Feixe do Urso. Impossível dizer. Mas segmentos cada vez mais numerosos de equipamentos antes inertes, quietos, estavam ganhando vida nos últimos quatro meses.

— O que diz o Jenkins? — Pimli perguntou. Quase num gesto involuntário, ele deixou a arma calibre 40 escorregar para dentro do coldre preso ao ombro, deixando-nos um passo mais perto do que você não vai querer ouvir e eu não vou querer contar.

— Jenkins deixa escapar pela boca qualquer coisa que esteja viajando no tapete voador da língua — disse o Tego dando de ombros mal educadamente. — Se ele nem sabe o que significam os símbolos dos mostra-dores e monitores da Telemetria Profunda, o que interessa a opinião dele?

— Calma — disse Pimli, pondo a mão no ombro do chefe de sua segurança. Ficou espantado (e um tanto alarmado) ao sentir a carne debaixo da fina camisa Turnbull & Asser se contrair ligeiramente. Talvez estremecer. — Calma, parceiro! Só estava perguntando.

— Não consigo dormir, não consigo ler, não consigo sequer foder — disse Finli. — Tentei todas essas coisas, por Gan! Por favor desça comigo até a Casa Damli. Vamos dar uma olhada nos malditos mostradores. Quem sabe você não tem algumas idéias.

— Sou um administrador, não um técnico — disse Pimli em voz baixa, embora já estivesse avançando para a porta. — De qualquer modo, como não tenho nada melhor a fazer...

— Talvez seja apenas o fim se aproximando — disse Finli, parando um instante na soleira da porta. — Como se pudesse falar apenas num caso assim.

— Talvez seja — Pimli disse num tom de serenidade —, e uma caminhada no ar da manhã não vai nos fazer mal alg... Ei! Ei, você! Você, aí! Você, Rod! Vire-se quando eu falar com você! Está ouvindo?

O Rod, um sujeito muito magro, usando um macacão velho de brim (muito usado, o traseiro já estava completamente branco), obedeceu. As bochechas eram gorduchas e sardentas, os olhos tinham um atraente tom de azul, mesmo alarmados. Na realidade, ele só não tinha boa aparência por causa do nariz, que faltava quase inteiramente de um lado, dando-lhe a bizarra aparência de alguém com uma narina só. Estava levando uma cesta. Pimli tinha quase certeza de que nunca tinha visto aquele arrastador de pés rondando por aí, mas não tinha certeza absoluta; achava todos os Rods muito parecidos.

Não importava. Identificação era trabalho de Finli e ele agora tomava a dianteira. Puxou uma luva de borracha do cinto e calçou-a enquanto dava uns passos para a frente. O Rod se encolheu contra uma parede, agarrando com mais força a cesta de vime e deixando escapar um peido alto, que só podia ser resultado do nervoso. Pimli teve de morder o interior das bochechas, com bastante força, para impedir que um sorriso aparecesse na boca.

— Naum, naum, naum! — gritou o chefe de segurança, batendo com força na cara do Rod com a mão enluvada (não valia a pena tocar diretamente na pele dos Filhos de Roderick; eles eram portadores de muitas enfermidades). Um filete de cuspe saiu da boca do Rod e correu sangue do buraco no nariz. — Não fale comigo com seu ki’box, sai Haylis! Talvez o buraco que você tem na cabeça não seja melhor, mas pelo menos pode me dirigir uma palavra de respeito. Aliás, é melhor que possa!

— Salve, Finli de Tego! — o Haylis murmurou, esmurrando a própria testa com tanta força que a parte de trás da cabeça bateu na parede... pank! Aí não deu para segurar: Pimli explodiu numa gargalhada, mesmo sem querer. Finli não poderia censurá-lo na caminhada até a Casa Damli, pois ele também já estava sorrindo. Embora Pimli duvidasse que o Rod chamado Haylis pudesse encontrar grande consolo num sorriso que deixava à mostra um número tão grande de dentes afiados. — Salve, Finli da Vigília, longos dias e belas noites para ti, sai.

— Melhor assim — Finli concedeu. — Não muito, mas um pouco. Que diabo está fazendo aqui antes do toque da Corneta e do Sol? E me diga o que há neste teu balaio... bobão?

Haylis abraçou a cesta ainda com mais força, os olhos cintilando de alarma. O sorriso de Finli desapareceu de imediato.

— Ou você puxa essa tampa e me mostra o que tem aí dentro neste segundo, amiguinho, ou logo vai se abaixar para catar os dentes no tapete! — As palavras saíram num resmungo baixo, uniforme.

Por um momento Pimli achou que o Rod não ia obedecer e sentiu uma pontada de verdadeiro sobressalto. Então, devagar, o sujeito ergueu a tampa da cesta de vime. Era um cesto com alças, conhecido na terra natal de Finli como balaio. O Rod inclinou-o com relutância. Ao mesmo tempo fechou os olhos ulcerados, cheios de remela, e virou a cabeça para o lado, como se antecipando um golpe.

Finli olhou. Por um bom tempo não disse nada, depois deu sua própria gargalhada e convidou Pimli a dar uma olhada. O Mestre soube de imediato o que estava vendo, mas demorou um instante para compreender para que servia. Então sua mente se lembrou do dia em que espremera a espinha e oferecera a Finli o pus com sangue — como se poderia oferecer a um amigo um salgadinho que sobrou ao término de um grande jantar. No fundo da cesta do Rod havia uma pequena pilha de papéis amassados. Na realidade, Kleenex usados.

— Tammy Kelly mandou que pegasse a ralé esta manhã? — Pimli perguntou.

O Rod abanou temerosamente a cabeça.

— Ela disse que podia ficar com o que achasse e quisesse dos latões?

Achou que o Rod ia mentir. Se e quando isso acontecesse, o Mestre mandaria que Finli desse uma surra no sujeito, como uma lição pela falta de sinceridade.

Mas o Rod — Haylis — balançou negativamente a cabeça com ar triste.

— Tudo bem — disse Pimli aliviado. Era realmente cedo demais para espancamentos, gritos e lágrimas. Estragaria o café-da-manhã de qualquer um. — Pode ir e levar o troféu. Mas da próxima vez, amiguinho, peça permissão ou vai sair machucado daqui! Está entendendo?

O Rod sacudiu energicamente a cabeça.

— Vá então, vá! Saia de minha casa e saia de minha vista! Viram-no se afastar com a cesta de lenços de papel melequentos que, sem a menor dúvida, ia comer como bombons de chocolate. Um olhou para o outro, ambos procurando manter uma expressão grave e severa até o pobre e desfigurado filho de ninguém desaparecer. Então explodiram num vendaval de riso. Finli de Tego cambaleou contra a parede com força suficiente para fazer um quadro cair do prego, depois deslizou para o chão, uivando histericamente. Pimli pôs a cabeça nas mãos e riu até sua considerável barriga começar a doer. O riso varreu a tensão com que cada um começara o dia, dando vazão a tudo que se acumulara.

— Um sujeito perigoso, sem dúvida! — disse Finli quando conseguiu de novo falar. Esfregava os olhos lacrimejantes com uma peluda mão-pata.

— O Sabotador Meleca! — Pimli concordou, o rosto muito vermelho.

Trocaram um olhar e perderam de novo o controle, urrando ondas de riso até despertarem a governanta lá em cima, no terceiro andar. Tammy Kelly permanecera deitada na cama estreita, atenta ao berreiro dos ka-mais lá embaixo, contemplando com ar reprovador a escuridão. Em sua opinião, os homens eram todos iguais, a despeito do tipo de pele que usassem.

Lá fora, o Mestre humo e o chefe de segurança taheen subiram o Passeio, de braços dados. O Filho de Roderick, enquanto isso, passava em disparada pelo portão norte, cabeça baixa, coração saltando furiosamente no peito. Fora por um triz! Ié! Se o cabeça-de-fuinha tivesse perguntado: “Haylis, plantaste alguma coisa?”, ele teria mentido como pôde, mas gente como ele não conseguia mentir convincentemente ao Finli de Tego; jamais! Teria sido descoberto, sem dúvida. Mas não fora descoberto, que Deus fosse louvado! A coisa-bola que o pistoleiro lhe dera estava agora bem guardada no quarto dos fundos, zumbindo suavemente. Ele a pusera na cesta de lixo, como o tinham mandado fazer. E cobrira com lenços de papel limpos, tirados de uma caixa que havia em cima da pia, também como tinham lhe mandado fazer. Ninguém tinha dito que ele podia aproveitar os lenços sujos da cesta, mas Haylis não fora capaz de resistir ao cheiro denso e delicioso. E tudo acabara dando certo, não era? Claro! Pois em vez de o encherem de um monte de perguntas a que não saberia responder, riram dele e o deixaram ir. Gostaria de poder subir de novo a montanha e brincar com o trapalhão, gostaria muito, mas o velho humo de cabelos brancos chamado Ted tinha mandado que fosse embora, para bem longe, assim que sua missão estivesse cumprida. E se ouvisse algum tiroteio, Haylis devia se esconder até que tudo acabasse. E isso ele faria, sem dúúúvida. E já não tinha feito o que Roland de Gilead pedira? A primeira das bolas que zumbiam estava agora em Feveral, um dos dormitórios, outras duas estavam na Casa Damli, onde os Sapadores trabalhavam e os guardas de folga dormiam. A última estava na Casa do Mestre... onde ele quase fora apanhado! Haylis não sabia para que serviam as bolas com zumbido. Nem queria saber. Iria embora, possivelmente com sua amiga, Garma, se conseguisse encontrá-la. Se começasse algum tiroteio, os dois se esconderiam num buraco profundo e ele ia compartilhar os lenços com ela. Alguns tinham apenas traços de creme de barbear, mas outros tinham muco e grandes melecas. Naquele momento mesmo podia sentir o aroma atraente. Guardaria o melhor dos lenços, aquele com o sangue gelatinoso, para Garma, e talvez ela o deixasse fuque-fuque. Haylis andou mais depressa, sorrindo ante a perspectiva de fazer fuque-fuque com Garma.

 

Sentada no Cruzador Trike, no esconderijo proporcionado por um dos galpões vazios no norte do complexo, Susannah viu Haylis sair. Reparou que o pobre, desfigurado sai estava sorrindo, portanto as coisas provavelmente tinham corrido bem. Sem dúvida uma boa notícia. Assim que Haylis saiu de vista, Susannah voltou a prestar atenção em sua ponta do Algul Siento.

Podia ver as duas torres de pedra (embora só a metade de cima da que ficava à esquerda; o resto estava oculto pelo contorno de uma encosta). Pareciam rodeadas por algum tipo de hera. Cultivada, não selvagem, apostou Susannah, por causa da aridez das terras na região. Havia um sujeito na torre oeste, sentado no que parecia ser uma poltrona, talvez uma cadeira de papai. De pé junto ao parapeito da torre leste, havia um taheen com cabeça de castor e um homem baixo (se fosse humo, Susannah pensou, seria uma porra tremendamente feia). Os dois conversavam, sem dúvida à espera do toque de corneta que os dispensaria do turno e os colocaria a caminho do café-da-manhã no comissariado. Entre as duas torres de vigia havia a tripla linha de cercas, cada uma correndo razoavelmente longe da outra; assim, mais sentinelas poderiam caminhar nos espaços entre os arames sem medo de levar uma carga letal de eletricidade. Susannah, contudo, não viu ali nenhuma sentinela naquela manhã. O pouco folken que andava dentro da primeira cerca caminhava distraído, ninguém exatamente com pressa de chegar a parte alguma. A menos que a cena lânguida que via na sua frente fosse a maior trapaça do século, Roland tinha razão: eram vulneráveis como um bando de leitões rechonchudos ganhando a última refeição antes do abate (venha-venha-comala, costelas a seguir). E embora os pistoleiros não tivessem conseguido nenhum tipo de armamento guiado por controle remoto, tinham descoberto que três dos rifles tipo ficção-científica estavam equipados com certos comandos chamados INTERVAL. Eddie achava que tais rifles eram armas a laser, embora nada neles sugeria lazer a Susannah. Jake sugerira que pegassem um deles e, longe do Devar-Toi, fizessem uma experiência, mas Roland vetou de imediato a idéia. Isso acontecera na tarde anterior, quando repassavam o plano mais ou menos pela centésima vez.

— Ele tem razão, garoto — dissera Eddie. — Os paspalhos lá de baixo podem saber que estamos disparando essas coisas mesmo sem ver nem ouvir nada. Não sabemos que tipo de vibrações podem ser captadas pela telemetria deles.

Com a cobertura do escuro, Susannah havia colocado os três “lasers” em posição. Quando chegasse a hora, acionaria os comandos interval. Talvez as armas funcionassem, fortalecendo assim uma impressão que tentariam criar; talvez não funcionassem. Susannah faria uma tentativa inicial quando a hora chegasse e era o máximo que poderia fazer.

Com o coração batendo forte, Susannah esperou pela música. Pela corneta. E pelos fogos, se os pomos de ouro que o Rod havia instalado funcionassem como Roland acreditava que iam funcionar.

— O ideal seria que todos esquentassem durante os cinco ou dez minutos de troca de guarda — Roland dissera. — Sendo surpreendidos quando estivessem passeando de um lado para o outro, acenando para os amigos e jogando conversa fora. Bem, não podemos contar com tudo isso, não a sério... Mas temos esperanças de que aconteça!

Sim, podia acontecer tudo aquilo... mas desejo é uma coisa e a merda que dá é outra, teriam de ver qual o pote que enchesse primeiro. Seja como for, caberia a Susannah decidir quando disparar o primeiro tiro. Depois então, tudo aconteceria muito depressa.

Por favor, Deus, me ajude a escolher o momento certo.

Ela esperava, segurando uma das pistolas automáticas Coyote com o cano na cavidade do ombro. Quando a música começou (uma gravação do que ela identificara como “At’s Amore”), Susannah deu um solavanco no assento do Cruzador Trike e sem querer apertou o gatilho. Se a trava de segurança não tivesse sido puxada, ela teria disparado uma rajada de balas contra o teto do depósito, liquidando de imediato o plano que haviam traçado. Mas Roland fora bom instrutor e o gatilho não se mexeu sob a pressão do dedo. Seu coração, no entanto, deu um salto triplo — quase mortal, talvez — e ela sentiu o suor escorrendo pelo corpo, embora a temperatura estivesse fresca de novo.

A música havia começado, o que era bom. Mas a música não bastava. Sentada no selim do triciclo, ela esperava pela corneta.

 

— Dino Martino — disse Eddie, quase baixo demais para ser ouvido.

— Hummm? — Jake perguntou.

Os três estavam atrás do vagão fechado com os dizeres LINHA SOO depois de terem aberto caminho pelo cemitério de velhas máquinas e trens. As duas portas de correr do vagão de carga estavam abertas e, por ali, os três podiam dar uma espiada na cerca, nas torres de vigia ao sul e no povoado de Vila Aprazível, que consistia em uma única rua. O robô armado de seis braços que mais cedo estivera no Passeio achava-se agora lá, subindo e descendo a rua Central, passando por lojas típicas (e fechadas), berrando o que lembrava fórmulas de equações matemáticas com toda a força de seus... pulmões?

— Dino Martino — Eddie repetiu. Oi estava sentado aos pés de Jake, erguendo a cabeça com seus brilhantes olhos rodeados de dourado; Eddie se curvou e deu um breve tapinha na cabeça dele. — Foi Dean Martin quem primeiro gravou esta música?

— Foi? — Jake perguntou num tom de dúvida.

— Claro. Só que costumávamos cantá-la assim: “When-a da moon hits-a yo’ lip like a big piece-a shit, at’s amore...”*

— Calados, se me fazem o favor — Roland murmurou.

— Por acaso não sente ainda alguma fumacinha no ar... — perguntou Eddie.

Jake e Roland balançaram as cabeças. Roland tinha seu grande ferro com os cabos de sândalo. Jake estava armado com um AR-15, mas trazia mais uma vez a sacola de Orizas pendurada no ombro e não apenas para dar sorte. Se tudo corresse bem, ele e Roland logo estariam usando os pratos.

 

Como a maioria dos homens providos do que se conhece como “domésticos”, Pimli Prentiss não tinha noção clara de que seus empregados eram criaturas com objetivos na vida, ambições e sentimentos — em outras palavras, de que eram humos. Desde que houvesse alguém para lhe trazer o copo de uísque da tarde e pôr a costeleta (malpassada) na sua frente às seis e trinta, Pimli nem pensava neles. Certamente teria ficado muito espantado se soubesse que Tammy (a governanta) e Tassa (o caseiro) se detestavam. Afinal um tratava o outro com perfeito — mesmo que frio — respeito quando estavam na sua frente.

Só que naquela manhã Pimli não estava por ali quando “At’s Amore” (interpretado pela Bilhão de Cordas sem Graça) brotou dos alto-falantes ocultos de Algul Siento. O Mestre subia o Passeio, agora na companhia de Jakli, um taheen técnico com cabeça de corvo, assim como do chefe da segurança. Falavam da Telemetria Profunda e Pimli nem pensava na casa que, pela última vez, tinha deixado para trás. Certamente não lhe passou pela cabeça que Tammy Kelly (ainda de penhoar) e Tassa de Sonesh (ainda com a calça curta do pijama de seda) estivessem à beira de uma batalha sobre o estoque da despensa.

— Veja isto! — ela gritou. Estavam na cozinha, profundamente sombria, um cômodo amplo, onde só três lâmpadas elétricas ainda não haviam queimado. Havia poucas lâmpadas no almoxarifado, e estavam reservadas para o estúdio.

— Ver o quê? — Irritado. Amuado. E será que não havia um resto de batom no dissimulado beiço daquela boquinha de Cupido? Ela achou que sim.

— Não está vendo os espaços vazios nas prateleiras? — ela perguntou num tom indignado. — Olhe! Não temos mais latas de feijão com açúcar mascavo...

— Ele não dá a menor importância ao feijão, como você sabe muito bem...

— Também não temos atum e não me digas que ele não gosta disso! Comeria até sair pelas orelhas, como tu sabes!

— Você não pode...

— Nem mais sopa...

— Bolas que não há! — ele gritou. — Veja essa, essa e ess...

— Não a sopa Campbell’s de tomate, a que ele mais gosta — Tammy berrou mais alto, se aproximando mais de Tassa em sua agitação. As brigas nunca tinham chegado à troca de socos, mas Tassa achava que hoje pudesse ser a primeira vez. E se isso acontecesse, se aquele fosse o dia... oh! Ia adorar socar no olho aquela puta gorda, velha, de língua solta. — Consegue ver alguma sopa Campbell’s de tomate, Tassa de onde-quer-que-tenha-sido-criado?

— Por que você mesma não vai buscar uma caixa? — ele perguntou, dando seu próprio passo à frente; agora estavam quase nariz a nariz e, embora a mulher fosse grande e o jovem franzino, o criado pessoal do Mestre não mostrava sinais de medo. Tammy piscou e, pela primeira vez desde que Tassa entrara na cozinha arrastando os pés (não querendo mais que uma xícara de café, obrigado), um ar que não era de irritação cobriu seu rosto. Podia ter sido nervosismo; podia ter sido até medo. — Será que está tão fraca dos braços, Tammy de onde-quer-que- você-tenha-sido-criada, que não pode carregar uma caixa de latas de sopa do almoxarifado até aqui?

Ela se aproximou o máximo que pôde, muito ofendida. O queixo (oleoso, brilhando com algum tipo de creme noturno) tremia de indignação.

— Ir buscar suprimentos de comida sempre foi tarefa do caseiro! O que tu sabes muito bem!

— Mas não existe nenhuma lei dizendo que você não possa ajudar. Ontem estive aparando a grama, como certamente você sabe; quando dei conta, você estava sentada na cozinha com um copo de chá gelado, não é? Confortável como a velha Ellie em sua poltrona preferida.

A cólera tomou conta dela, fazendo-a perder qualquer medo que pudesse estar sentindo.

— Tenho direito a descansar como qualquer outra pessoa! Eu havia acabado de lavar o chão...

— Pelo que eu vi, foi Dobbie quem fez isso — disse ele. Dobbie era o tipo de robô doméstico conhecido como “duende do lar”, velho mas ainda bastante eficiente.

Tammy se esquentou ainda mais.

— O que você sabe de tarefas domésticas, sua bichinha afetada?

A cor coloriu as bochechas normalmente pálidas de Tassa. Ele teve consciência de que suas mãos tinham se fechado em punhos, mas só por ter sentido as unhas cuidadosamente tratadas se enfiando nas palmas. Ocorreu-lhe que aquele tipo pequeno de intriga era absolutamente ridículo, conjugava-se com o fim de tudo, com a escuridão que se abria diante deles; eram dois tolos brigando e soltando penas na própria beira do abismo, mas Tassa não se importava. A gorda e velha porca vinha há anos enchendo saco e agora viera o verdadeiro motivo. Ali estava na cara.

— É isso que a incomoda a meu respeito, sai? — ele indagou num tom suave. — O que eu faço do taco e do buraco, é só isso?

Agora havia tochas em vez de rosas flamejando nas bochechas de Tammy Kelly. Ela não pretendera chegar tão longe, mas já que tinha chegado — que os dois tinham chegado, pois se entravam nas vias de fato a culpa era tanto dele quanto dela —, Tammy não ia recuar. O diabo que ia.

— A bíblia do Mestre diz que se fazer de mulher é um pecado — disse virtuosamente a ele. — Eu mesma li isso, foi verdade. Livro dos Leviticraques, Capítulo Três, Versículo...

— E o que o Leviticraques fala do pecado da gula? — ele indagou. — O que diz sobre uma mulher com tetas do tamanho de almofadas e uma bunda do tamanho de um forno...

— E o que interessa o tamanho da minha bunda, seu boqueteiro?

— Pelo menos eu posso conseguir um homem — ele disse suavemente — e não tenho de ir para a cama com um pano de pó...

— Não se atreva! — ela berrou num tom estridente. — Feche essa boca suja antes que eu mesma a faça se fechar!

— ...que limpe as teias de aranha da minha chela para que eu possa...

— Vou tirar os dentes da tua boca se tu não...

— ...tocar minha velha e cansada língua de porco. — Então algo que poderia ofendê-la ainda mais profundamente lhe ocorreu. — Minha velha, suja e cansada língua de porco!

Ela fechou os próprios punhos, que eram consideravelmente maiores que os dele.

— Pelo menos eu nunca...

— Não faça isso, sai, estou lhe pedindo.

— ...nunca deixei um homem aproximar um nojento e sujo... nojento... sujo...

Ela deixou a frase morrer, parecendo confusa, e cheirou o ar. Ele cheirou-o também, e percebeu que o aroma que estava captando não era novo. Ele o estivera sentindo mais ou menos desde o início da briga, mas agora estava mais forte.

Tammy começou:

— Não está sentindo um cheiro de...

— ...fumaça! — ele concluiu e um olhou para o outro com alarme, a briga esquecida uns cinco segundos antes de chegarem aos socos. Os olhos de Tammy se fixaram no pano bordado pendurado ao lado do fogão. Havia panos como aquele por todo o Algul Siento, porque a maioria dos prédios que constituíam o complexo eram de madeira. De madeira velha. TEMOS TODOS DE TRABALHAR JUNTOS PARA CRIAR UM AMBIENTE LIVRE DO FOGO, estava escrito lá.

Em algum lugar por perto — no corredor de trás — um dos detectores e fumaça que ainda funcionavam disparou com um uivo alto e assustador. Tammy correu à despensa para pegar o extintor.

— Pegue o da biblioteca! — ela gritou, e Tassa correu sem uma palavra de protesto. O fogo era a única coisa que todos temiam.

Gaskie de Tego, o subchefe de segurança, estava parado no vestíbulo da Casa Feveral, o dormitório imediatamente atrás da Casa Damli, conversando com James Cagney. Cagney era um can-toi de cabelo ruivo que gostava de camisas estilo caubói e botas que adicionavam sete centímetros ao 1,63 metro que ele possuía. Ambos seguravam pranchetas e discutiam certas alterações que seria preciso fazer durante a próxima semana na segurança de Damli. Seis dos guardas escalados para o segundo turno tinham sido atacados pelo que Gangli, médico do complexo, dizia ser uma enfermidade humo chamada momps. Era uma doença bastante comum em Trovoada — causada pelo ar, como todo mundo sabia, e o refugo venenoso do Povo Antigo —, mas sempre inconveniente. Gangli achava que tinham sorte por jamais terem enfrentado uma verdadeira praga, como a da Morte Negra ou a Tremedeira Quente.

Atrás deles, naquele início de manhã, na quadra cimentada dos fundos da Casa Damli, estava acontecendo um jogo de basquete com vários guardas taheens e can-toi (que estariam oficialmente de serviço assim que a corneta tocasse) contra uma equipe improvisada de Sapadores. Gaskie viu quando Joey Rastosovich tentou fazer uma cesta bem de longe — zuuupa! Trampas pegou a bola e a levou para fora da quadra, erguendo brevemente o boné para dar uma coçada por baixo. Gaskie não morria de simpatia por Trampas, que cultivava uma afeição totalmente inadequada pelos animais talentosos que eram de sua responsabilidade. Perto deles, sentado na escada do dormitório e também vendo o jogo, encontrava-se Ted Brautigan. Como sempre, estava sorvendo uma lata de Nozz-A-La.

— Porra — disse James Cagney, falando no tom de alguém que quer pôr um ponto final numa discussão chata. — Se não se importam de afastar um dia ou dois alguns humos da cerca...

— O que Brautigan está fazendo de pé a uma hora dessas? — Gaskie interrompeu. — É difícil ele aparecer antes do meio-dia. Aquele garoto com quem ele anda também é assim. Como se chama?

— Earnshaw? — Brautigan também andava com o meio-idiota Ruiz, mas Ruiz não era um garoto.

Gaskie assentiu.

— É, Earnshaw, sem dúvida. Ele está de serviço hoje de manhã. Encontrei-o ainda há pouco no estúdio.

Cag (como os amigos o chamavam) estava cagando com o fato de Brautigan ter acordado com os pássaros (mesmo que não restassem muitos pássaros, pelo menos em Trovoada); ele só queria acertar aquele negócio da lista de serviço para poder dar uma chegada na Casa Damli e arranjar um prato de ovos mexidos. Um dos Rods tinha encontrado cebolinha fresca em algum lugar, pelo menos fora o que ele ouvira, e...

— Não está sentindo um cheiro estranho, Cag? — Gaskie de Tego perguntou de repente.

O can-toi que se imaginava James Cagney quase perguntou se Gaskie havia peidado, mas repensou a réplica cômica. Pois de fato estava sentindo um cheiro estranho. Não era fumaça?

Cag achou que era.

 

Sentado nos frios degraus da Unidade Feveral, Ted respirava o ar malcheiroso e ouvia o abuso verbal dos humos e os taheens na quadra de basquete (não com os can-toi; em geral eles se recusavam a baixar o nível). O coração de Ted estava batendo com força, mas não acelerado. Se existira algum Rubicão a ser cruzado, ele já o atravessara há algum tempo. Talvez na noite em que os homens baixos o trouxeram de volta de Connecticut ou, mais provavelmente, no dia em que abordara Dinky com a idéia de procurar os pistoleiros que Sheemie Ruiz insistia estarem por perto. Agora estava com a corda toda (ao máximo, Dinky teria dito), mas ansioso? Não. Ansiedade, pensou ele, era para pessoas que ainda não estavam decididas.

Quando ouviu, atrás dele, um idiota (Gaskie) perguntando a outro idiota (Cagney) se não havia algum cheiro estranho, Ted teve certeza de que Haylis dera conta do recado; o jogo estava em marcha. Pôs a mão no bolso e tirou de lá um pedaço de papel. A frase que estava escrita nele podia ter sido tirada de um poema, embora dificilmente shakespeariano: VÃO PARA O SUL COM AS MÃOS LEVANTADAS E NÃO SERÃO FERIDOS.

Olhou fixo para aquilo, preparando-se para transmitir.

Atrás dele, na sala Feveral de recreação, um detector de fumaça disparou com um barulhento zurro.

Aqui vamos nós, aqui vamos nós, ele pensou olhando para o norte, onde esperava que o primeiro atirador — a mulher — estivesse escondido.

 

Cumpridos três quartos da caminhada pelo Passeio em direção à Casa Damli, Mestre Prentiss parou, com Finli de um lado e Jakli do outro. A corneta ainda não tinha tocado, mas havia um zurro chegando por trás. Mal tinham começado a se virar na direção do som quando outro zurro começou a sair da outra ponta do complexo — a ponta onde ficavam os dormitórios.

— Que diabo... — Pimli começou.

...é isso era como ele pretendia terminar mas, antes que conseguisse concluir, Tammy Kelly saiu correndo pela porta da frente do prédio da administração. Logo atrás dela vinha Tassa, o criado doméstico. Ambos sacudiam os braços sobre as cabeças.

— Fogo! — Tammy gritava. — Fogo!

Fogo? Mas é impossível, Pimli pensou. Se o que estou ouvindo em minha casa é um detector de fumaça e se o que estou ouvindo num dos dormitórios é também um detector de fumaça, então certamente...

— Tem de ser um alarme falso — ele disse a Finli. — Esses detectores fazem isso quando as baterias estão...

Antes que pudesse concluir esta avaliação otimista, uma janela lateral do prédio da administração foi arrancada por uma explosão. Os cacos de vidro foram seguidos por uma emanação de chamas alaranjadas.

— Deuses! — Jakli gritou na sua voz-zumbido. — É fogo sim!

Pimli olhava de boca aberta. E de repente outro alarme de fumaça-e-fogo disparou, este agora com uma série de berros altos, soluçantes. Bom Deus, doce Jesus, aquele era um dos alarmes da Casa Damli! Certamente nada poderia haver de errado na...

Finli de Tego agarrou o braço dele.

— Chefe — disse num tom bastante calmo —, temos um verdadeiro problema.

Antes que Pimli pudesse responder, a corneta começou a tocar, sinalizando a troca de turnos. E de repente Pimli percebeu quanto ficariam vulneráveis nos próximos sete minutos. Vulneráveis a todo tipo de coisa.

Ele se recusava a deixar a palavra ataque entrar em sua consciência. Pelo menos ainda não.

 

Dinky Earnshaw estivera sentado na poltrona macia pelo que parecia uma eternidade, esperando impaciente que a festa começasse. Geralmente estar no estúdio o deixava animado — diabo, deixava todo mundo animado, era o efeito da “boa mente” —, mas naquele dia sentiu apenas os fios de tensão se enroscarem ainda mais dentro dele, transformando suas tripas numa bola. Percebia, de vez em quando, os taheens e os can-toi olhando das sacadas, aproveitando a onda de boa mente, mas não teve de se preocupar com a possibilidade de ser progado por eles; pelo menos disso estava salvo.

Era um alarme de fumaça? Poderia vir de Feveral?

Talvez. Mas também talvez não. Ninguém mais estava olhando em volta.

Espere, ele disse a si mesmo. Ted disse a você que isto seria a parte difícil, não disse? E pelo menos Sheemie está fora do caminho. Sheemie está seguro em seu quarto e a Unidade Corbett salva do fogo. Portanto calma. Relaxe.

Agora era o uivo de um alarme de fumaça. Dinky tinha certeza. Bem... quase certeza.

Um livrinho de palavras cruzadas estava aberto em seu colo. Durante os últimos cinqüenta minutos estivera enchendo uma das fileiras com letras sem sentido, ignorando completamente as definições. Agora, no topo da folha, escrevia em grandes e negras letras de forma: VÃO PARA O SUL COM AS MÃOS LEVANTADAS E NÃO SERÃO FE...

Foi quando um dos alarmes de incêndio nos andares de cima, provavelmente o que ficava na ala oeste, disparou com um zurro alto, ondulante. Vários Sapadores, tirados brutalmente de um profundo estado de concentração, gritaram com grande sobressalto. Dinky também gritou, mas de alívio. Alívio e mais alguma coisa. Júbilo? Sim, muito provavelmente era júbilo. Porque quando o alarme de incêndio começou a zurrar, sentira estalar o poderoso rumor de boa mente. A fantástica força combinada dos Sapadores tinha apagado como um sobrecarregado circuito elétrico. Por um momento, pelo menos, havia cessado o assalto contra o Feixe.

Enquanto isso, ele tinha um trabalho a fazer. Sem mais delongas. Levantou-se, deixando o livrinho de palavras cruzadas cair no tapete turco e concentrou a mente nos Sapadores que estavam no salão. Não era difícil; com a ajuda de Ted, andara praticando quase diariamente para aquele momento. E se desse certo? Se os Sapadores captassem, retransmitindo e levando a um nível de comando o que Dinky podia apenas sugerir? Pois então a coisa iria crescer. Iria tornar-se a corda principal de um novo gestalt de boa mente.

Pelo menos era essa a esperança.

(É UM INCÊNDIO PESSOAL HÁ FOGO NO PRÉDIO)

Como que sublinhando isto, houve um leve estouro e um retinir, como se alguma coisa tivesse implodido. O primeiro sopro de fumaça vazou pelos painéis de ventilação. Os Sapadores olharam em volta com olhos arregalados, atordoados, alguns ficando de pé.

E Dinky enviou:

(NÃO SE PREOCUPEM NÃO ENTREM EM PÂNICO TUDO ESTÁ SOB CONTROLE OU)

Enviou uma perfeita, bem praticada imagem da escada norte, depois acrescentou a ela os Sapadores. Sapadores subindo pela escada do norte. Sapadores atravessando a cozinha. Crepitar de fogo, cheiro de fumaça, ambos vindo da área onde os guardas dormiam na ala oeste. E quem iria questionar a veracidade daquela irradiação mental? Alguém ia perguntar quem estava projetando aquilo ou por quê? Não naquele momento. Naquele momento eles estavam apenas assustados. Naquele momento estavam querendo que alguém lhes dissesse o que fazer e Dinky Earnshaw era esta pessoa.

(ESCADA NORTE SUBAM PELA ESCADA NORTE SIGAM PELO GRAMADO DOS FUNDOS)

E deu certo. Começaram a tomar aquele caminho. Como ovelhas seguindo um carneiro ou cavalos seguindo um garanhão. Alguns estavam agarrando duas idéias básicas

(NADA DE PÂNICO NADA DE PÂNICO)

(ESCADA NORTE ESCADA NORTE)

e as retransmitindo. E, para melhorar a coisa, Dinky ouviu a reação vindo também de cima. Partindo dos can-toi e dos taheens que estavam observando pelas sacadas.

Ninguém correu e ninguém entrou em pânico, mas o êxodo pela escada norte tinha começado.

 

Susannah estava sentada no selim do SCT, o Supercruzador Trike, que estava à janela do galpão onde ela se achava escondida. Já não se preocupava em ser avistada. Os detectores de fumaça — pelo menos três deles — uivavam. Um alarme de incêndio urrava ainda mais alto; esse vinha da Casa Damli, tinha absoluta certeza. Como se em resposta, uma série de altas grasnadas de ganso começaram a chegar da ponta do complexo que dava para a Vila Aprazível. A isto se juntava uma multidão de toques de sinos.

Com tanta coisa acontecendo no sul, não era de admirar que a mulher no lado norte do Devar-Toi visse apenas as costas dos três guardas nas torres de vigia cobertas de hera. Três parecia pouco, mas correspondia a cinco por cento do total. Era um começo.

Susannah olhou pelo cano do revólver para o guarda que estava na sua mira e rezou. Deus me conceda uma boa pontaria... uma boa pontaria...

Logo.

Seria logo.

 

Finli agarrou o braço do Mestre. Pimli afastou-o e começou a se dirigir de novo para sua casa, contemplando com ar incrédulo a fumaça que se derramava por todas as janelas do lado esquerdo.

— Chefe! — Finli gritou, voltando a lhe apertar o braço. — Chefe, não se esqueça, é com os Sapadores que temos de nos preocupar! Com os Sapadores!

O grito não foi ouvido por ele, mas o chocante trinado do alarme de incêndio da Casa Damli foi. Virando nessa direção, Pimli esbarrou um instante nos pequenos e vidrados olhos de pássaro de Jakli. Neles só havia pânico, o que acabou exercendo sobre Pimli um perverso mas salutar efeito tranqüilizante. Sirenes e alarmes por todo lado. Um dos ruídos era um grasnar pulsante que jamais ouvira. Não vinha da direção de Vila Aprazível?

— Vamos, chefe! — Finli de Tego quase implorou. — Temos de garantir que fique tudo bem com os Sapadores...

— Fumaça! — Jakli gritou, agitando as asas escuras (e radicalmente inúteis). — Fumaça saindo da Casa Damli, saindo também do Feveral!

Pimli o ignorou. Puxou o Peacemaker do coldre sob o braço, se perguntando brevemente que premonição fizera com que saísse com ele. Não tinha idéia, mas estava feliz por sentir o peso do revólver, agora na mão. Atrás dele, Tassa estava gritando (Tammy também), mas Pimli ignorava a dupla. Seu coração batia furioso, mas ele estava calmo de novo. Finli tinha razão. Os Sapadores eram a coisa importante naquele momento. Precisavam tomar cuidado para não perder um terço de seus parapsíquicos treinados por causa de um curto-circuito ou algum ato meio idiota de sabotagem. Fez sinal para o chefe da segurança e os dois começaram a correr para a Casa Damli, Jakli grasnando e batendo as asas atrás deles como um refugiado de um desenho animado da Warner Bros. Em algum lugar lá em cima, Gaskie estava berrando. E então Pimli de Nova Jérsei ouviu um som que o congelou até os ossos, um rápido e sucessivo tá-tá-tá. Tiros! Se algum palhaço estava atirando em seus Sapadores, a cabeça do palhaço encerraria o dia na ponta de um mastro, pelos deuses que sim! Que os guardas e não os Sapadores pudessem estar sob ataque ainda não tinha, a essa altura, passado pela sua mente, nem pela mente de Finli, um tanto mais astuto. Havia muita coisa acontecendo depressa demais.

 

Na ponta sul do complexo do Devar, o buzinaço sincopado era quase altoo bastante para arrebentar os tímpanos.

— Cristo! — disse Eddie, e não pôde ouvir sua própria voz.

Nas torres de vigia ao sul, os guardas estavam de costas, olhando para o norte. Eddie ainda não conseguia ver a fumaça. Provavelmente os guardas a estariam vendo de seus pontos privilegiados de observação.

Roland agarrou o ombro de Jake e apontou para o vagão com os dizeres LINHA SOO. Jake abanou a cabeça e rastejou por baixo dele com Oi nos calcanhares. Roland ergueu as duas mãos para Eddie — fique onde está! — e depois seguiu em frente. Do outro lado do vagão o pistoleiro e o garoto ficaram de pé lado a lado. Teriam sido claramente visíveis para as sentinelas se a atenção daqueles valorosos soldados não tivesse sido distraída pelos detectores de fumaça e pelos alarmes de incêndio no interior do complexo.

De repente toda a fachada do Centro de Hardware de Vila Aprazível desceu por uma fenda que havia no chão. Um carro de bombeiro-robô, coberto de um vermelho bem forte e cromados brilhantes, saiu da garagem até então oculta. Uma fileira de luzes vermelhas pulsava no centro da carroceria comprida e uma voz amplificada gritava: SAIAM DA FRENTE! ESTA É A EQUIPE BRAVO DE COMBATE AO INCÊNDIO! ABRAM CAMINHO PARA A EQUIPE BRAVO DE COMBATE AO INCÊNDIO!

Não deve haver tiroteio naquela parte do Devar, ainda não. A ponta sul do complexo deve parecer segura aos internos cada vez mais assustados de Algul Siento: não se preocupem, caras, aqui está seu porto seguro na porra da imprevista tempestade de hoje!

O pistoleiro puxou um ’Riza do suprimento cada vez menor de Jake e fez sinal para o garoto pegar outro. Roland apontou para o guarda na torre da direita, depois de novo para Jake. O garoto abanou a cabeça, pôs o braço cruzado no peito e esperou que Roland desse a ordem.

 

Assim que ouvira corneta indicando a mudança de turno, Roland tinha dito a Susannah, comece a pegá-los. Cause o maior estrago possível, mas não os deixe verem que estão enfrentando uma pessoa sozinha, pelo amor de seu pai!

Como se ele precisasse lhe dizer isso.

Ela podia ter acertado os guardas das três torres de vigia enquanto a corneta ainda estava tocando, mas algo a fez esperar. Alguns segundos mais tarde, achou ótimo ter agido assim. A porta dos fundos do prédio estilo Queen Anne foi escancarada com tanta violência que as dobradiças de cima se soltaram. Os Sapadores jorraram numa multidão, empurrando em pânico os que iam na frente (são esses os pretensos destruidores do universo, ela pensou, essas ovelhas). Entre eles, havia uma meia dúzia daqueles rapazes esquisitos com cabeças de animais e pelo menos quatro daqueles arrepiantes humanóides que usavam máscaras.

Susannah pegou primeiro o guarda na torre oeste e voltou a pontaria para a dupla na torre leste antes que a primeira vítima da Batalha de Algul Siento caísse pelo parapeito e tombasse ao chão, os miolos pingando pelos cabelos e pelas faces. A pistola automática Coyote, ajustada em seqüência média, atirava em graves rajadas de três: Tchau! Tchau! Tchau!

O taheen e o homem baixo na torre leste rodaram batendo com as mãos um no outro, como figuras numa dança. O taheen se amarrotou na passarela que contornava o topo da torre de vigia; o homem baixo foi jogado contra o parapeito, voou sobre ele com os saltos das botas apontando para o céu e mergulhou de cabeça no chão. Ela ouviu o estalo que o pescoço deu quando quebrou.

No amontoado de Sapadores, alguns viram a descida do infeliz vigia e gritaram.

— Mãos para cima! — Era Dinky, ela reconheceu a voz. — Mãos para cima se você é Sapador!

Ninguém questionou a idéia; naquelas circunstâncias, qualquer um que parecesse saber o que estava acontecendo ganhava uma posição de inquestionável autoridade. Alguns Sapadores — mas não todos, ainda não — levantaram as mãos. O que para Susannah não fazia diferença. Ela não precisava de mãos levantadas para reconhecer a diferença entre as ovelhas e os bodes. Uma espécie de claridade assombrada tomara conta de sua visão.

Deslocou a chave de controle de fogo de RAJADA para TIRO ÚNICO e começou a apanhar os guardas que tinham subido do estúdio com os Sapadores. Taheen... can-toi, pegue esse... uma mulher humo, mas não atire nela; é Sapadora embora não esteja com as mãos para cima... não me pergunte como eu sei, mas sei...

Susannah apertou o gatilho da Coyote e a cabeça do humo que acompanhava a mulher de calça esporte vermelho-tomate explodiu numa névoa de sangue e osso. Os Sapadores gritaram como crianças, vendo aquilo com os olhos esbugalhados e as mãos erguidas. E agora Susannah ouvia de novo Dinky, só que desta vez não sua voz física. O que ouvia era sua voz mental, que estava muito mais alta:

(VÃO PARA O SUL COM AS MÃOS LEVANTADAS E NÃO SERÃO FERIDOS)

O que era a deixa para ela sair do esconderijo e começar a se mover. Pegara oito daqueles maus elementos do Rei Rubro, contando os três nas torres — o que sem dúvida não era uma grande façanha, dado o pânico deles —, e não via mais nenhum, ao menos por enquanto.

Susannah mexeu o acelerador de mão e disparou com o SCT para um dos outros galpões abandonados. A arrancada da máquina foi tão vigorosa que ela quase caiu do assento tipo selim de bicicleta. Tentando não rir (e mesmo assim rindo), gritou com toda a força de seus pulmões, no melhor estilo grito-de-abutre de Detta Walker:

— Saiam daqui, seus fodidos de merda! Vão para o sul! Mãos no alto pra gente saber quem não é dos maus! Quem naum tiver a mão no alto vai levar uma bala no coco! Cês sabem que num tô mentindo!

A passagem pela porta do galpão vizinho arranhou a banda de um dos pneus-balão do SCT, mas não o bastante para derrubá-lo. Graças a Deus, pois ela jamais teria tido força para endireitá-lo sozinha. Lá dentro, um dos “lasers” estava montado sobre um tripé de encaixe. Ela empurrou o pino do comando marcado ON e estava se perguntando se seria preciso mexer com a chave INTERVAL quando o cano da arma emitiu um raio ofuscante de luz vermelho-púrpura. O raio voou por cima da tripla fileira de cercas e atingiu o complexo, fazendo um buraco no último andar da Casa Damli. Susannah achou o buraco muito grande, como aqueles abertos por cargas de artilharia à queima-roupa.

Isto é bom, ela pensou. Preciso botar os outros para andar.

Mas se perguntou se teria tempo. Já outros Sapadores iam aceitando a sugestão de Dinky, retransmitindo-a, e tornando-a mais vigorosa no processo:

(VÃO PARA O SUL! MÃOS LEVANTADAS! NÃO SERÃO FERIDOS!)

Ela deslocou a chave de controle de fogo da Coyote para FULL AUTO e, para enfatizar o ponto, deu uma varrida no andar superior do dormitório mais próximo. Balas zumbiram e ricochetearam. Vidraças foram quebradas. Os Sapadores gritavam e foram debandando pelo lado da Casa Damli com as mãos erguidas. Susannah viu Ted vindo pelo mesmo lado. Era difícil não vê-lo, porque ele estava indo contra a corrente. Ele e Dinky se abraçaram brevemente, depois levantaram as mãos e se juntaram ao fluxo de Sapadores que seguia para o sul. Perdido o status de VIPs, os Sapadores se transformavam em mais um bando de fugitivos lutando para sobreviver numa terra escura envenenada.

Susannah acertara oito, mas não era o bastante. Ficara com fome, essa fome seca. Seus olhos viam tudo. Pulsavam, doíam em sua cabeça e viam tudo. Ela esperava que outros taheen, homem baixos ou guardas humos chegassem pelo lado da Casa Damli.

Queria mais.

 

Sheemie Ruiz vivia na Unidade Corbett, que por acaso fora o dormitório que Susannah, sem imaginar quem poderia estar lá, tinha varrido com pelo menos uma centena de balas. Se Sheemie estivesse deitado, quase certamente teria sido morto. Por sorte estava de joelhos, aos pés da cama, rezando pela segurança de seus amigos. Não chegou sequer a levantar a cabeça quando a janela explodiu; só duplicou a força de suas súplicas. Podia ouvir os pensamentos de Dinky

(VÃO PARA O SUL)

martelando na cabeça, depois ouviu outros fluxos de pensamento se adicionando,

(COM AS MÃOS LEVANTADAS)

formando um rio. E de repente a voz de Ted estava lá, não apenas juntando-se às outras, mas tornando-as mais fortes, transformando o que fora um rio

(NÃO SERÃO FERIDOS)

num oceano. Sem perceber, Sheemie alterou sua prece. Nosso Pai Proteja meus Companheiros tornou-se Vão para o sul com as mãos levantadas, vocês não serão feridos. Não parou com isto sequer quando os tanques de gás propano atrás da cafeteria da Casa Damli explodiram num rugido repleto de estilhaços.

 

Gangli Tristum (é doutor Gangli ao seu dispor, obrigado) era, sob muitos aspectos, o homem mais temido da Casa Damli. Um can-toi que — perversamente — assumira um nome taheen em vez de um nome humano e que, com pulso de ferro, comandava a enfermaria no terceiro andar da ala oeste. E ele se deslocava sobre patins.

As coisas ficavam razoavelmente tranqüilas quando Gangli estava em sua sala mexendo em papéis ou numa das rondas (o que geralmente significava visitar os Sapadores resfriados nos dormitórios), mas quando ele voltava à enfermaria, todo mundo — serventes e enfermeiras, assim como pacientes — ficava respeitosamente (e nervosamente) em silêncio. Um recém-chegado poderia rir da primeira vez que visse aquele homem-coisa atarracado, de pele escura e de grande papada, que rodava devagar pelo corredor central entre as camas, braços cruzados sobre o estetoscópio que trazia ao peito, as pontas do guarda-pó branco flutuando em seu rastro (um Sapador comentara um dia: “Parece John Irving depois de uma plástica que não deu certo”). Contudo, quem fosse apanhado rindo jamais iria rir de novo. O dr. Gangli tinha uma língua realmente afiada e ninguém debocharia impunemente de seus patins.

Agora, em vez de deslizar sobre eles, Gangli voava de um lado para o outro entre as camas, as rodas de ferro (que eram de um modelo bastante antigo) roncando nas tábuas corridas.

— Todos os papéis! — ele gritava. — Estão me ouvindo?... Se eu perder uma ficha na porra desta confusão, uma maldita ficha que seja, vou querer os olhos de alguém para o chá da tarde!

Os pacientes já tinham ido, é claro; Gangli os havia tirado das camas e os obrigado a descer as escadas logo ao primeiro zurro do detector de fumaça ao primeiro bafo de fumaça. Um certo número de serventes — prodígios de covardia; Gangli conhecia cada um deles, oh, sim, e faria um relatório completo no momento oportuno — tinha fugido com os enfermos, mas cinco haviam permanecido ali, incluindo seu assistente pessoal, Jack London. Gangli estava orgulhoso deles, embora talvez não fosse possível deduzir isto do tom ameaçador de sua voz enquanto ele patinava pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo, na fumaça cada vez mais densa.

— Peguem os papéis, estão ouvindo? É melhor obedecerem, por todos os deuses que já andaram ou flutuaram por aqui! É melhor!

Um clarão vermelho estourou nas janelas. Algum tipo de arma fez explodir a parede de vidro que separava sua sala da área dos leitos e incendiou sua poltrona preferida.

Gangli se abaixou e patinou sob o raio laser, sem diminuir sequer a velocidade.

— Porra maldita! — gritou um dos serventes. Era um humo, extraordinariamente feio, os olhos se projetando da face pálida. — Que diabo foi is...

— Não importa! — Gangli berrou. — Não importa o que foi, seu paspalho bundão! Pegue os papéis! Caralho, pegue as porras dos papéis!

De algum lugar à frente (do Passeio?) veio o hediondo barulho (roncos e sons metálicos) da aproximação de algum veículo de socorro.

— SAIAM DA FRENTE! — Gangli ouviu. — ESTA É A EQUIPE BRAVO DE COMBATE AO FOGO!

Gangli nunca tinha ouvido falar em algo como a Equipe Bravo de Combate ao Fogo, mas havia muita coisa desconhecida naquele lugar. Bem, ele mal sabia usar um terço do equipamento do próprio gabinete cirúrgico! Não importa, o que agora tinha importância era...

Antes que ele pudesse concluir seu pensamento, os botijões de gás atrás da cozinha explodiram. Houve um tremendo ronco — que parecia ter brotado diretamente debaixo dele — e Gangli Tristum foi atirado no ar, as rodas de metal dos patins ainda girando. Os outros também foram atirados e, de repente, o ar enfumaçado estava cheio de papéis voando. Olhando para eles, sabendo que os papéis iam se queimar e que teria sorte se não fosse queimado também, um nítido pensamento ocorreu ao dr. Gangli: o fim tinha chegado cedo.

 

Roland ouviu o comando telepático

(VÃO PARA O SUL COM AS MÃOS LEVANTADAS, VOCÊS NÃO SERÃO FERIDOS)

começando a bater em sua mente. Estava na hora. Fez sinal para Jake e os Orizas voaram. O estranho assobio não deve ter se destacado na cacofonia geral, mas um dos guardas sem dúvida percebeu que vinha alguma coisa, pois estava começando a girar quando a ponta afiada do prato atingiu sua cabeça e jogou-a no chão do complexo, as pestanas se agitando num grande e repentino espanto. O corpo sem cabeça deu dois passos e desmoronou de bruços sobre o parapeito, o sangue brotando do pescoço num jorro brilhante. O outro guarda já fora abatido.

Eddie rolou sem esforço sob o vagão com a inscrição LINHA SOO e saltou para o lado do complexo. Da estação até pouco tempo escondida atrás da fachada da loja de ferramentas, mais dois carros de bombeiros automatizados saíram em disparada. Não tinham rodas, correndo aparentemente sobre uma camada de ar comprimido. Para os lados da ponta norte do campus (pois assim a mente de Eddie insistia em identificar o Devar-Toi), alguma coisa explodiu. Ótimo. Lindo.

Roland e Jake tiraram novos pratos do suprimento cada vez menor e usaram-nos para cortar as três fileiras de cerca. As cercas de alta voltagem se partiram com um estalo doloroso, com muitos chiados e um breve lampejo de fogo azul. Eles entraram. Movendo-se depressa e sem falar, ultrapassaram as torres agora desguarnecidas, Oi sempre seguindo rente aos calcanhares de Jake. Saíram diante de um beco que corria entre a Henry Graham’s Drogaria & Lanchonete e a Livraria de Vila Aprazível.

No final do beco, olharam para os lados e viram que a rua Central estava vazia naquele momento, embora o penetrante odor elétrico (cheiro de subestação de metrô, Eddie pensou) dos últimos dois carros de bombeiro permanecesse no ar, tornando ainda pior o fedor geral. A distância, sirenes contra incêndio uivavam e detectores de fumaça urravam. Ali, em Vila Aprazível, Eddie não podia deixar de pensar na rua Central da Disneylândia: nenhum lixo nas sarjetas, nenhuma pichação nos muros, sequer uma poeirinha nas vidraças das janelas. Era para lá que iam os Sapadores saudosos em busca de um pequeno sopro da América, ele supunha, mas será que ninguém desejou algo melhor, algo mais realista do que aquela fantasia plástica de natureza-morta? Talvez ela parecesse mais convidativa com pessoas nas calçadas e nas lojas, mas era difícil acreditar nisso. Pelo menos ele, Eddie, achava difícil acreditar. Bom, talvez fosse apenas um chauvinismo de garoto de cidade grande.

Na frente deles havia a Vila Aprazível Sapataria, a Gay Paree Modas, o Cabelo Hoje e o Teatro Jóia (ENTRE AR-REFRIGERADO dizia a placa pendurada pela marquise). Roland ergueu a mão, indicando que Eddie e Jake deviam atravessar para aquele lado da rua. Era ali, se tudo corresse como ele esperava (o que quase nunca acontecia) que montariam sua emboscada. Atravessaram a rua agachados, Oi sempre correndo atrás dos calcanhares de Jake. Até aquele momento tudo parecia estar funcionando como por encanto, o que sem dúvida deixava o pistoleiro nervoso.

 

Qualquer general experiente em batalhas dirá que, mesmo em operações de pequena escala (como era aquela), chega-se sempre a um ponto onde se rompe a coerência, e o fluxo da narrativa, e qualquer noção verdadeira de como as coisas estão acontecendo. Os acontecimentos serão recriados mais tarde pelos historiadores. A necessidade de recriar um mito de coerência pode ser uma das razões que justificam a existência da própria história.

Não importa. Atingimos aquele ponto, aquele onde a Batalha de Algul Siento adquiriu uma vida própria. Tudo que posso fazer agora é apontar uma coisa aqui e ali e esperar que você consiga extrair sua própria ordem do caos geral.

 

Trampas, o homem baixo atacado pela praga dos eczemas, o sujeito que inadvertidamente fizera Ted saber tanta coisa, correu para o rio de Sapadores que fugia da Casa Damli e agarrou um deles, um ex-carpinteiro magricela, com boas entradas no cabelo, chamado Birdie McCann.

— Birdie, o que é isso? — Trampas gritou. Estava, como era seu hábito, usando o boné bloqueador de pensamento, o que significava que não podia compartilhar a pulsão telepática ao seu redor. — O que está acontecendo, você sa...

— Tiros! — Birdie gritou, se libertando. — Tiros! Estão ali! — Apontava vagamente para trás.

— Quem? Qua...

— Cuidado, seus idiotas, a coisa não está diminuindo! — gritou Gaskie de Tego de algum lugar atrás de Trampas e McCann.

Trampas levantou a cabeça e ficou horrorizado ao ver o principal carro de bombeiro chegar roncando, sacolejando muito pelo centro do Passeio, as luzes vermelhas piscando, dois robôs-bombeiros de aço inox pendurados na traseira. Pimli, Finli e Jakli saltaram para o lado. O mesmo fez Tassa, o criado doméstico. Mas Tammy Kelly estava estirada de bruços no gramado, numa poça cada vez maior de sangue. Fora esmagada pela Equipe Bravo de Combate ao Fogo, que na realidade há mais de oitocentos anos não enfrentava um incêndio. Os dias de lamentação de Tammy haviam chegado ao fim.

E...

— SAIAM DA FRENTE! — clamava o carro de bombeiros. Atrás dele, outros dois carros dobravam espalhafatosamente à esquerda e à direita do prédio da administração. De novo Tassa, o caseiro, mal conseguiu pular a tempo de salvar a pele. — ESTA É A EQUIPE BRAVO DE COMBATE AO INCÊNDIO! — Uma espécie de alçapão metálico subiu no centro do veículo, se abriu e deixou sair um carrossel de aço que começou a jogar jatos de água de alta pressão em oito direções diferentes. — ABRAM CAMINHO PARA A EQUIPE BRAVO DE COMBATE AO INCÊNDIO!

E...

James Cagney (o taheen que estava parado ao lado de Gaskie no vestíbulo do dormitório da Unidade Feveral quando a confusão começou, lembram-se dele?) viu o que estava acontecendo e começou a gritar com os guardas que saíam da ala oeste da Casa Damli, cambaleando, olhos vermelhos, tossindo, alguns com as calças em fogo, uns poucos (oh, louvado fosse Gan, Bessa e todos os deuses) com armas.

Cag gritava para que saíssem do caminho e mal conseguia se fazer ouvir no meio da cacofonia. Viu Joey Rastosovich afastando dois guardas com um empurrão e contemplou o garoto Earnshaw colidindo com outro. Alguns dos que fugiam, tossindo e chorando, viram o carro de bombeiros se aproximando e se espalharam, saindo da frente. Logo a Equipe Bravo de Combate ao Incêndio abria caminho por entre os guardas da ala oeste. Sem diminuir a marcha, roncava direto para a Casa Damli, borrifando água em cada ponto cardeal.

E...

— Santo Deus, não — Pimli Prentiss gemeu, tapando os olhos com as mãos. Finli, por outro lado, foi incapaz de desviar o olhar. Viu um homem baixo (Ben Alexander, tinha certeza) mastigado sob as rodas enormes do caminhão de bombeiros. Viu outro sujeito atingido pela grade do pára-choque e esmagado contra a parede da Casa Damli, onde o veículo bateu. Espalhando tábuas e vidro para todo lado, o caminhão rompeu as portas da entrada externa ao porão da casa, escondida debaixo de um canteiro de flores de aspecto enfermiço. Uma roda se enfiou na escada do porão e uma voz de robô começou a retumbar:

— ACIDENTE! NOTIFIQUEM A ESTAÇÃO! ACIDENTE!

Pois é, Sherlock, Finli pensou, contemplando o sangue na grama com uma espécie de mórbido fascínio. Quantos de seus homens e seus valiosos internos, o mau funcionamento daquele maldito carro de incêndio não tinha ceifado? Seis? Oito? Uns fodidos 12?

De trás da Casa Damli veio de novo o aterrorizante som tcbau-tchau-tchau, o barulho do disparo de armas automáticas.

Um Sapador gordo chamado Waverly esbarrou em Finli, que conseguiu agarrá-lo antes de ele ter tempo de se esquivar.

— O que houve? Quem mandou que fossem para o sul?

Finli, ao contrário de Trampas, não estava usando nenhum tipo de boné bloqueador de pensamento e a mensagem

(VÃO PARA O SUL COM AS MÃOS LEVANTADAS, VOCÊS NÃO SERÃO FERIDOS)

estava batendo em sua cabeça com tanta força e tão alto que era quase impossível pensar em alguma outra coisa.

Ao lado dele, Pimli — lutando para manter a cabeça no lugar — captou o pensamento que martelava, mas conseguiu formular um seu: É quase certo que é obra do Brautigan. Ele agarrou uma idéia e começou a amplificá-la. Quem mais poderia ser?

E...

Gaskie agarrou primeiro Cag, depois Jakli e mandou que reunissem os guardas que estavam armados e os pusessem para trabalhar. Deviam cercar os Sapadores que se precipitavam para o sul pelo Passeio e pelas ruas que acessavam o Passeio. Eles o fitaram com olhos confusos, arregalados (olhos em pânico), e Gaskie quase gritou de fúria. E lá vinham os próximos dois carros de bombeiros com as sirenes ligadas. O carro maior atropelou dois Sapadores, derrubando-os no chão e passando por cima deles. Uma dessas novas vítimas foi Joey Rastosovich. Quando o veículo passou, chicoteando a grama com seus orifícios de ar comprimido, Tanya caiu de joelhos ao lado do marido agonizante e ergueu as mãos para o céu. Estava gritando com toda a força dos pulmões, mas Gaskie mal conseguia ouvi-la. Lágrimas de frustração e medo formigaram nos cantos de seus olhos. Cachorros nojentos, ele pensou.Cachorrosnojentos e emboscadores!

E...

Ao norte do complexo de Algul, Susannah saía do esconderijo e se movia em direção à tríplice fileira da cerca. Aquilo não estava no plano, mas a necessidade de continuar atirando, de continuar a abatê-los foi mais forte que nunca. Ela simplesmente não pôde se conter, o que Roland teria compreendido. De qualquer modo, os rolos de fumaça que vinham da Casa Damli tinham momentaneamente obscurecido tudo que havia na extremidade do complexo. Os raios vermelhos dos “lasers” apunhalavam o complexo — acendendo e apagando, acendendo e apagando, como um anúncio de néon. Susannah se lembrou de tomar cuidado para não ficar na frente deles, pois não queria ser cortada da frente até as costas por um buraco de cinco centímetros.

Usou balas da Coyote para cortar sua ponta de cerca — fileira externa, fileira do meio, fileira interna — e desapareceu na fumaça cada vez mais densa. Recarregava a arma enquanto avançava.

E...

O Sapador chamado Waverly tentava se livrar de Finli. Não, não, nada disso, faça favor, Finli transmitia. Puxou o homem para mais perto (ele fora contador ou coisa parecida em sua vida anterior ao Algul), depois lhe deu dois tapas na cara, fortes o bastante para fazer sua mão doer. Waverly gritava de dor e espanto.

— Quem é o fodido por trás disso? — Finli roncava. — QUEM DIABOS ESTÁ FAZENDO ISTO? — Os carros de incêndio que seguiam o carro principal tinham parado na frente da Casa Dimli e estavam mandando rios de água para dentro da fumaça. Finli não sabia se aquilo poderia ajudar, mas provavelmente não faria mal. E pelo menos as malditas coisas não tinham, como a primeira, batido no prédio que deviam salvar.

— Senhor, eu não sei! — Waverly soluçava. O sangue corria de uma das narinas e do canto da boca. — Não sei, mas têm de ser uns cinqüenta, talvez uma centena de demônios! Dinky nos tirou de lá! Deus abençoe Dinky Earnshaw!

Enquanto isso, Gaskie de Tego envolveu com uma boa mãozada o pescoço de James Cagney e o de Jakli com a outra mão. Gaskie teve a impressão que o filho-da-puta com cabeça de corvo Jakli estava prestes a sair correndo, mas agora não havia tempo de se preocupar com aquilo. Precisava dos dois.

E...

— Chefe! — Finli gritou. — Chefe, pegue Earnshaw, o garotão! Tem algo nisso que cheira mal!

E...

Com o rosto de Cag apertado contra uma de suas faces e o de Jakli contra a outra, o Fuinha (que pensava tão claramente quanto qualquer outro naquela terrível manhã) foi finalmente capaz de se fazer ouvir. Gaskie, enquanto isso, repetia seu comando: dividir os guardas armados e colocá-los com os Sapadores em retirada.

— Que não tentem detê-los, mas que fiquem com eles! E pelo amor de Cristo, que não deixem que sejam eletrocutados! Devem ser mantidos longe da cerca se ultrapassarem a rua Centr...

Antes que pudesse concluir a admoestação, uma figura foi lançada da fumaça cada vez mais grossa. Era Gangli, o médico do complexo, o guarda-pó branco em chamas, os patins ainda nos pés.

E...

Susannah Dean tomou posição no canto traseiro esquerdo da Casa Damli, tossindo. Viu três dos filhos-da-puta — Gaskie, Jakli e Cagney, o que ela não sabia. Antes, no entanto, que pudesse apontar, tudo foi borrado por um redemoinho de fumaça. Quando a coisa clareou, Jakli e Cag tinham sumido, para reunir os guardas armados. Agindo como cães pastores, os guardas deviam ao menos tentar proteger o rebanho em pânico, mesmo se não conseguissem detê-lo de imediato. Gaskie ainda estava lá, e Susannah acertou-o com um único tiro na cabeça.

Pimli não viu aquilo. Ia ficando claro para ele que toda a confusão era superficial. E que muito provavelmente fora proposital. A decisão dos Sapadores de se afastarem dos atacantes ao norte do Algul fora tomada um pouco rápido demais e era um tanto organizada demais.

Earnshaw não importa, ele pensou, quero falar com Brautigan.

Mas antes que Pimli pudesse se emparelhar com Ted, Tassa agarrou o Mestre num abraço frenético, aterrorizado, balbuciando que o prédio da administração estava em chamas e ele tinha medo, tinha muito medo que todas as roupas do Mestre, seus livros...

Pimli Prentiss colocou-o de lado com um forte golpe na cabeça. O pulsar do pensamento unificado dos Sapadores (agora mente-ruim em vez de boa mente) martelava

(COM AS MÃOS LEVANTADAS VOCÊS NÃO SERÃO)

loucamente em sua cabeça, ameaçando afogar qualquer outra idéia. Aquilo era obra do fodido do Brautigan, ele sabia, e o homem já estava muito à frente... a não ser que...

Pimli olhou para o Peacemaker em sua mão, pensou, mas tornou a colocá-lo no coldre sob o braço esquerdo. Queria o fodido do Brautigan vivo. O fodido do Brautigan tinha algumas explicações a dar. Para não mencionar um trabalho de sapa a ser concluído.

Tchau-tchau-tchau. Balas zumbiam por toda parte à sua volta. Corriam guardas humos, taheens e can-toi por toda parte à sua volta. E, Cristo, só alguns estavam armados, em geral humos escalados para o patrulhamento das cercas. Os que tomavam conta dos Sapadores na realidade não precisavam de armas, pois de um modo geral os Sapadores eram mansos como periquitos e a idéia de um ataque vindo de fora parecera ridícula até...

Até aquilo ter acontecido, ele pensou avistando Trampas.

— Trampas! — berrou. — Trampas! Ei, caubói! Pegue Earnshaw e traga-o aqui! Pegue Earnshaw!

Ali no meio do Passeio o barulho era um pouco menor e Trampas ouviu sai Prentiss com bastante clareza. Ele correu atrás de Dinky e agarrou o rapaz pelo braço.

E...

Daneeka Rostov, de 11 anos, saiu dos rolos de fumaça que já obscureciam inteiramente a parte de baixo da Casa Damli puxando dois carrinhos vermelhos. O rosto de Daneeka estava vermelho e inchado; lágrimas corriam de seus olhos; estava quase inteiramente vergada com o esforço de continuar puxando Baj, que ia sentado no carrinho de marca Radio Flyer, e Sej, que ia no outro. Ambos tinham cabeças enormes e os olhinhos espertos dos sábios hidrocéfalos, mas Sej era equipado com agitados tocos de braços enquanto Baj não. Ambos estavam agora espumando pela boca e fazendo ásperos sons de engasgo.

— Me ajudem! — Dani conseguiu dizer, tossindo mais do que nunca. — Alguém me ajude antes que eles sufoquem!

Dinky a viu e começou a andar em sua direção. Trampas o segurou, embora sem dúvida com certa hesitação.

— Não, Dink — disse ele. O tom era de desculpas, mas firme. — Deixe outra pessoa cuidar disso. O patrão quer falar com...

De repente Brautigan estava novamente lá, rosto pálido, a boca uma fina linha repuxada embaixo da cara.

— Solte-o, Trampas. Gosto de você, filho, mas hoje você não vai querer entrar em nosso negócio.

— Ted? O que...     

Dink começou de novo a avançar para Dani. Trampas puxou-o de novo. Na frente deles, Baj desmaiou e caiu de cabeça do carrinho. Embora tivesse aterrissado no gramado macio, a cabeça fez um terrível e nauseante som de rachar e Dani Rostov gritou.

Dinky se atirou para ela. Trampas puxou-o de volta mais uma vez, agora com força. E pegou o Colt .38 Woodsman que usava no coldre embaixo do ombro.

Não havia mais tempo de argumentar. Ted Brautigan não atirava a lança mental desde que a usara contra o batedor de carteiras em Akron, nos idos de 1935; não a usara sequer quando os homens baixos de novo o aprisionaram em Bridgeport, Connecticut, 1960, embora a tentação tivesse sido muito forte. Prometera a si mesmo que jamais tornaria a usá-la e certamente não queria atirá-la contra

(sorria quando disser isso)

Trampas, que sempre o tratara de modo correto. Mas tinha de chegar à extremidade sul do complexo antes que a ordem fosse restaurada e pretendia ter Dinky consigo quando chegasse lá.

Além disso, estava furioso. Pobrezinho do Baj, que tinha sempre um sorriso para cada um!

Ele se concentrou e sentiu uma dor nauseante passar pelo interior de sua cabeça. A lança mental voou. Trampas largou Dinky e dispensou a Ted um olhar de atordoada reprovação, um olhar de que Ted ia se lembrar para o resto da vida. Então Trampas agarrou os lados da cabeça como um homem com a pior enxaqueca do universo e caiu na grama com a garganta inchada, a língua saindo da boca.

— Vamos! — Ted gritou, agarrando o braço de Dinky. Naquele momento Prentiss estava olhando para o lado, graças a Deus, distraído por outra explosão.

— Mas Dani... e Sej!

— Ela pode cuidar de Sej! — Mandando o resto mentalmente:

(agora que não precisa mais puxar também o Baj)

Ted e Dinky fugiram enquanto atrás deles Pimli Prentiss se virava, olhava incrédulo para Trampas e berrava para eles pararem — pararem em nome do Rei Rubro.

Finli de Tego sacou o revólver do coldre, mas antes que pudesse atirar Daneeka Rostov estava sobre ele, mordendo e arranhando. Daneeka não pesava quase nada, mas, por um momento, Finli ficou tão espantado de ser atacado por aquele flanco totalmente improvável que ela quase conseguiu derrubá-lo. Finli enroscou um forte braço peludo em volta do pescoço dela e atirou-a para o lado, mas então Ted e Dinky já estavam quase fora de seu alcance. Avançando pelo lado esquerdo do prédio da administração, começavam a desaparecer na fumaça.

Finli, então, firmou a pistola com ambas as mãos, inspirou, prendeu o ar e disparou um único tiro. O sangue jorrou do braço de Ted; Finli ouviu-o gritar e viu-o dar uma guinada. Então Dinky, o cachorrinho, agarrou o velho vira-lata e os dois dispararam pelo canto da casa.

— Vou pegar vocês! — Finli berrava atrás deles. — Isso é que vou, e quando pegar, vocês vão lamentar o dia em que nasceram! — Mas a ameaça não deixou de parecer tremendamente vã.

Agora toda a população do Algul Siento (Sapadores, taheens, guardas humos, can-toi com pontos muito vermelhos brilhando nas testas, como um terceiro olho) estava em movimento de maré, fluindo para o sul. E Finli viu uma coisa de que realmente não gostou nada: os Sapadores e apenas os Sapadores estavam se deslocando com os braços erguidos. Se houvesse mais atiradores por ali, eles não teriam a menor dificuldade em saber quem deviam alvejar, não era?

E...

Em seu quarto do terceiro andar da Unidade Corbett, ainda de joelhos aos pés da cama coberta de cacos de vidro, tossindo por causa da fumaça que entrava pela janela quebrada, Sheemie Ruiz teve a revelação... ou sua imaginação falou para ele (a escolha é sua). Seja como for, ele ficou bruscamente de pé. Seus olhos, normalmente amistosos, mas sempre confundidos por um mundo que ele não conseguia entender inteiramente, estavam límpidos e cheios de alegria.

— O FEIXE DIZ OBRIGADO! — ele gritou para o aposento vazio.

Olhou em volta, agitado como Ebenezer Scrooge descobrindo que os fantasmas fizeram tudo numa única noite, e correu para a porta com os chinelos pisando no vidro quebrado. Um pontudo caco de vidro espetou seu pé (carregando a morte naquela ponta, se ele ao menos soubesse disso, uma pena, digam Discórdia!), mas a alegria era tanta que ele nem mesmo sentiu. Arremessou-se para o corredor e depois escadas abaixo.

Chegando ao segundo andar, Sheemie se deparou com uma Sapadora idosa chamada Belle O’Rourke. Agarrou-a, sacudiu-a.

— O FEIXE DIZ OBRIGADO! — ele gritou ante seu rosto atordoado, perplexo. — O FEIXE DIZ QUE TUDO AINDA PODE FICAR BEM! NÃO É TARDE DEMAIS! BEM NA HORA!

Corria para espalhar a alegre notícia (alegre para ele, pelo menos) e...

Na rua Central, Roland olhou primeiro para Eddie Dean, depois para Jake Chambers.

— Estão chegando e é aqui que temos de pegá-los. Esperem pelo meu comando, depois fiquem firmes, sejam fiéis.

 

Quem apareceu primeiro foram três Sapadores. Corriam muito, os braços levantados. Cruzaram assim a rua Central, sem ver Eddie, que estava na bilheteria do Jóia (ele havia quebrado o vidro em três lados com o cabo de sândalo do revólver que um dia fora de Roland), nem Jake (sentado dentro de um sedã Ford sem motor, estacionado na frente da confeitaria, a Aprazível Bake Shoppe), nem o próprio Roland (atrás de um manequim na vitrine da Gay Paree Modas).

Atingiram a outra calçada e olharam ao redor, desnorteados.

Vão, Roland pensou na direção deles. Vão, saiam daqui, peguem o beco, fujam enquanto podem.

— Vamos! — um dos Sapadores gritou e todos desceram correndo a aléia entre a drogaria e a livraria. Apareceu um guarda, depois mais dois, e daí o primeiro dos guardas, um humo com uma pistola erguida ao lado da cara assustada, olhos arregalados. Roland colocou-o na mira... mas conteve o tiro.

Mais do pessoal do Devar começou a aparecer entre os prédios, correndo para a rua Central. Agora espalhavam-se muito. Como Roland tinha esperado e desejado que acontecesse, tentavam organizar o pessoal que fugia. Tentavam impedir que a retirada se transformasse numa debandada caótica.

— Formem duas fileiras! — um taheen com cabeça de corvo gritava. Uma voz esbaforida, cheia de zumbidos. — Formem duas fileiras e façam os Sapadores seguir pelo meio, pelo amor de seus pais!

Outro taheen, de cabeça ruiva e com a ponta da camisa social para fora da calça, gritou:

— O que me diz da cerca, Jakli? E se eles encostarem na cerca?

— Não podemos fazer nada, Cag, apenas...

Berrando, um Sapador tentou ultrapassar o corvo antes que ele acabasse de falar, e o corvo — Jakli — deu-lhe um empurrão tão forte que o infeliz acabou estatelado no meio da rua.

— Fiquem juntos, seus vermes! — ele gritou. — Corram se quiserem, mas procurem correr dentro de alguma porra de ordem! — Como se pudesse haver alguma ordem numa debandada, Roland pensou (e não sem satisfação). Então o que se chamava Jakli gritou para o cabeça ruiva:

— Deixe um ou dois se fritarem... Os outros vão ver e parar!

Só complicaria as coisas se Eddie ou Jake começassem a atirar naquele momento, e nenhum deles o fez. De seus esconderijos, os três pistoleiros assistiram enquanto uma espécie de ordem brotava do caos. Novos guardas apareceram. Jakli e o cabeça ruiva conseguiram que os guardas formassem duas fileiras. No meio, um corredor levando de um lado a outro da rua. Alguns Sapadores avançaram antes que o corredor estivesse de todo formado, mas poucos.

Um novo taheen apareceu, este com uma cabeça de fuinha, e substituiu Jakli no comando. Golpeou nas costas alguns Sapadores que corriam, na realidade para apressá-los.

Do sul da rua Central veio um grito atordoado:

— A cerca está cortada!

E então outro:

— Acho que os guardas estão mortos!

Este último grito foi seguido por um uivo de horror e Roland soube, tão certamente quanto se tivesse visto, que um infortunado Sapador acabara de se deparar com a cabeça decepada de algum vigia caída na grama.

O murmúrio aterrado que veio no rastro disto ainda não tinha cessado quando Dinky Earnshaw e Ted Brautigan apareceram entre a confeitaria e a sapataria, tão perto do esconderijo de Jake que ele podia ter se inclinado pela janela do seu carro e encostado a mão neles. Ted havia sido ferido. A manga direita da camisa estava vermelha do cotovelo para baixo, mas Ted continuava andando — com uma pequena ajuda de Dinky, que mantinha um braço em volta dele. Ted se virou quando atravessaram o corredor polonês formado pelos guardas e, por um momento, olhou diretamente para o esconderijo de Roland. Depois ele e Earnshaw entraram no beco e desapareceram.

Isso os deixava a salvo, ao menos por ora, o que era ótimo. Mas onde estava o chefão? Onde estava Prentiss, o encarregado daquele lugar detestável? Roland queria ele e o sai taheen com cabeça de fuinha — cortem a cabeça da cobra e ela morre! Mas não podiam se dar ao luxo de esperar muito tempo. O rio de Sapadores em fuga estava secando. O pistoleiro achava que sai Fuinha não ia esperar pelo último Sapador extraviado; bem antes disso ia querer impedir que os preciosos internos fugissem pela cerca cortada. Sabia, sem dúvida, que não podiam ir longe, dado o terreno estéril e escuro que se estendia por todo lado, mas também sabia que, se houvesse atacantes na extremidade norte do complexo, talvez houvesse turmas de resgate a postos no...

E lá estava ele, graças aos deuses e a Gan — sai Pimli Prentiss, esbaforido, cambaleante e nitidamente em estado de choque. Um coldre com uma arma balançava de um lado para o outro sob o braço carnudo. O sangue escorria de uma narina e do canto de um dos olhos, como se toda aquela excitação tivesse feito alguma coisa se romper dentro de sua cabeça. Ondulando ligeiramente de um lado para o outro, ele se aproximou do Fuinha (foi este andar de bêbado que Roland, mais tarde, acabaria amargamente responsabilizando pelo resultado final do trabalho daquela manhã), provavelmente pretendendo assumir o comando da operação. O curto mas fervoroso abraço que um deu no outro, ambos simultaneamente dando e recebendo consolo, disse a Roland tudo que ele precisava saber sobre o caráter íntimo de seu relacionamento.

Ele apontou o revólver para a nuca de Prentiss, puxou o gatilho e viu o sangue e o cabelo voarem. As mãos do Mestre Prentiss se ergueram, dedos abertos para o céu escuro, e ele desabou quase aos pés do atônito Fuinha.

Como se em resposta a isto, o sol atômico apareceu, inundando o mundo de luz.

— Salve, pistoleiros, matem todos eles! — Roland gritou, abanando o gatilho do revólver, aquela velha máquina assassina, com a palma da mão direita. Quatro tinham sucumbido a seu fogo antes que os guardas, alinhados como pombos de barro numa galeria de tiro, tivessem tempo de registrar o barulho dos disparos, muito menos de reagir. — Por Gilead, por Nova York, pelo Feixe, por seus pais! Ouçam-me, ouçam-me! Não deixem um único deles de pé! MATEM TODOS!

E assim eles fizeram: o pistoleiro de Gilead, o antigo viciado em drogas do Brooklyn, a criança solitária que antigamente a sra. Greta Shaw chamava de ‘Bama. Vindo de trás deles, do sul, avançando no SCT por entre rolos cada vez mais densos de fumaça (afastando-se uma única vez de um curso retilíneo para contornar o corpo estendido de outra governanta, esta chamada Tammv), havia uma quarta pessoa: ela que fora um dia instruída nas práticas do protesto não-violento por jovens zelosos do N-duplo-A-C-P e que tinha agora abraçado, de forma plena e sem remorso, o caminho da arma. Susannah apanhou três guardas humos retardatários e um taheen que fugia. O taheen levava um rifle num ombro mas nem tentou usá-lo. Apenas erguia os braços lisos, cobertos de pêlos (a cabeça lembrava vagamente um urso), e gritava por clemência e perdão. Considerando tudo que acontecera ali, inclusive como o purê dos cérebros de crianças tinha sido usado para alimentar os quebradores dos feixes e permitir que continuassem operando a plena eficiência, Susannah não concedeu nenhum dos dois, embora nada do que ela de fato concedeu tenha lhe causado sofrimento ou lhe dado tempo para temer seu destino.

Quando ela atingiu o trecho do beco que ficava entre o cinema e o salão de cabeleireiro, o tiroteio havia parado. Finli e Jakli agonizavam; James Cagney estava morto com sua máscara de humo meio repuxada na repulsiva cabeça de rato; ao lado desses havia mais umas três dúzias de mortos. Nas sarjetas de Vila Aprazível, antes imaculadas, corria o sangue deles.

Sem a menor dúvida havia outros guardas no complexo, mas a essa altura já estariam escondidos, acreditando firmemente que tinham sido atacados por no mínimo uns cem lutadores veteranos piratas terrestres, vindos só Deus sabia de onde. A maior parte dos Sapadores de Algul Siento estavam na área gramada entre os fundos da rua Central e as torres de vigia sul, acotovelando-se como os cordeirinhos que eram. Ted, desatento ao braço que sangrava, já tinha começado a fazer a chamada.

Então todo o contingente norte do exército atacante surgiu no início do beco, ao lado do cinema: uma senhora negra com as pernas cortadas montada num triciclo a motor. Guiava o veículo com uma das mãos e, com a outra, segurava a pistola automática Coyote apoiada no guidom. Viu os corpos empilhados na rua e abanou a cabeça com uma satisfação sem alegria.

Eddie saiu da bilheteria para abraçá-la.

— Ei, docinho, ei — ela murmurou, enchendo de beijos seu pescoço de um modo que o fez estremecer. De repente Jake também estava lá, pálido por causa da matança, mas controlado. Ela pôs o braço em volta dos ombros do garoto e puxou-o para si. Os olhos de Susannah encontraram Roland, parado na calçada atrás do três que ele havia trazido ao Mundo Médio. Com o revólver pendendo ao lado da coxa esquerda, será que sentia a expressão saudosa no rosto? Será que percebia a existência dela? Ela achava que não, e sentia pena dele.

— Venha aqui, Gilead — disse ela. — Isto é um abraço grupal e você faz parte do grupo.

Por um momento achou que Roland não estava entendendo o convite ou fingia não entender. Então ele se aproximou, fazendo uma pausa para colocar o revólver no coldre e pegar Oi no colo. Passou entre Jake e Eddie. Oi pulou para o colo de Susannah como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Então o pistoleiro pôs um braço em volta da cintura de Eddie e o outro em volta da cintura de Jake. Susannah se esticou (o trapalhão lutando comicamente para se manter naquele colo que de repente se inclinava), pôs os braços em volta do pescoço de Roland e depositou um beijo sincero na testa queimada de sol. Jake e Eddie riram. Roland juntou-se a eles, sorrindo como sorrimos quando somos surpreendidos pela felicidade.

Gostaria que os visse assim agora; gostaria que os visse muito bem. Está vendo? Estão agrupados em volta do Cruzador Trike de Suzie, abraçando-se logo depois da vitória. Queria que os visse agora não porque tenham vencido uma grande batalha — sabem que não foi bem assim, cada um deles sabe —, mas porque são ka-tet pela última vez. A história de sua irmandade termina aqui, naquela rua de faz-de-conta, debaixo daquele sol artificial; o resto da história será curta e brutal comparada com o que se passou antes. Porque quando o ka-tet quebra, o fim sempre vem depressa.

É pena.

 

Pimli Prentiss viu através de olhos agonizantes, encrostados de sangue, quando o mais jovem dos dois homens se apartou do abraço do grupo e se aproximou de Finli de Tego. O rapaz percebeu que Finli ainda estava se mexendo e se ajoelhou ao lado dele. A mulher, agora desmontada do triciclo motorizado, e o garoto começaram a verificar as demais vítimas, despachando de vez as poucas que ainda viviam. Mesmo deitado ali, com uma bala na cabeça, Pimli encarou aquilo antes como misericórdia que crueldade. E quando o trabalho estivesse concluído, Pimli achou que iriam procurar o resto de seus amigos covardes, sorrateiros. Dariam uma busca nos prédios do Algul que ainda não estivessem pegando fogo à procura dos guardas que tivessem sobrado, sem dúvida alvejando os que descobrissem. Não encontrarão muitos, meus heróis de folhetim, ele pensou. Vocês já liquidaram dois terços de meus homens. E de quantos atacantes Mestre Pimli, o chefe da segurança Finli e seus homens tiraram a vida? Pelo que Pimli sabia, de absolutamente nenhum.

Mas talvez pudesse fazer algo a esse respeito. Sua mão direita começou uma lenta, dolorosa jornada em direção ao coldre debaixo do ombro e à Peacemaker ali guardada.

Eddie, enquanto isso, encostara o cano do revólver de Gilead, com o cabo de sândalo, no lado da cabeça do garotão Fuinha. O dedo estava pressionando o gatilho quando Eddie viu que o garotão Fuinha, embora baleado no peito e sangrando muito, obviamente morrendo depressa, o olhava com absoluta consciência. E com alguma outra coisa, algo de que Eddie não gostou muito. Achou que fosse desprezo. Erguendo a cabeça, viu Susannah e Jake verificando os corpos na ponta leste da área da matança, viu Roland na calçada oposta falando com Dinky e Ted fazendo um curativo improvisado no braço. Os dois ex-Sapadores ouviam com atenção e, embora com ar de dúvida, ambos abanavam as cabeças.

Eddie voltou a prestar atenção no taheen que agonizava.

— Está no final do caminho, meu amigo — disse ele. — Preso à bomba que explodiu, é como a coisa me parece. Quer dizer alguma coisa antes de entrar na clareira?

Finli abanou afirmativamente a cabeça.

— Diga, então, meu velho. Mas tente resumir, pra conseguir dizer tudo.

— Você e os teus são um bando de cachorros covardes — Finli conseguiu dizer. Provavelmente fora mesmo atingido no coração (pelo menos parecia que sim), mas queria dizer aquilo; era algo que precisava ser dito e Finli atiçava o coração lesado a bater até que a coisa saísse. Depois morreria e daria boas-vindas à escuridão. — Cachorros covardes cheirando a mijo, matando homens por meio de emboscadas. É o que eu diria.

Eddie sorriu sem humor.

— E o que me diz dos cachorros covardes que usavam crianças para liquidar o mundo inteiro por emboscada, meu amigo? O universo inteiro?

O Fuinha piscou, como se não esperasse uma resposta daquelas. Talvez não estivesse esperando resposta alguma.

— Eu tinha... minhas ordens.

— Não duvido — disse Eddie. — E cumpriu-as fielmente. Divirta-se no inferno, em Na’ar ou seja lá como chamem aquilo. — Pôs o cano do revólver contra a têmpora de Finli e puxou o gatilho. O Fuinha se sacudiu uma única vez e ficou imóvel. Fazendo uma careta, Eddie ficou de pé.

Ao fazê-lo, captou um movimento pelo canto do olho e viu que outra figura — o diretor geral do show — conseguira se apoiar num cotovelo. Seu revólver, o Peacemaker .40 que um dia executara um estuprador, estava apontado. Os reflexos de Eddie eram rápidos, mas não houve tempo de usá-los. O Peacemaker roncou uma única vez, soltando uma língua de fogo pela ponta do cano, e o sangue voou da testa de Eddie Dean. Um cacho de cabelo foi atirado para o ar quando a bala saiu pela nuca. Eddie espalmou a mão contra o buraco que aparecera sobre seu olho direito, como um homem que tivesse se lembrado, um pouco tarde, de algo de importância vital.

Roland girou nos calços lascados das botas, puxando seu próprio revólver num gesto rápido demais para ser visto. Jake e Susannah também se viraram. Susannah viu o marido de pé na rua, a palma da mão apertada contra a testa.

— Eddie? Docinho?

Pimli lutava para engatilhar de novo o Peacemaker, o esforço fazendo o lábio superior recuar dos dentes como num rosnado de cachorro. Roland acertou-o na garganta e o Mestre de Algul Siento guinou e rolou para a esquerda, a pistola ainda não-engatilhada voando de sua mão e chegando ruidosamente no chão ao lado do corpo de seu amigo Fuinha. Acabou quase aos pés de Eddie.

— Eddie! — Susannah gritou e, jogando todo o seu peso nas mãos, começou a rastejar velozmente para ele. Não está muito machucado, disse a si mesma, não machucado demais, bom Deus não deixe meu homem estar muito machucado...

Então viu o sangue correndo debaixo da mão que apertava a testa, o sangue escorrendo para a rua, e soube que era muito.

— Suze? — ele perguntou. A voz era perfeitamente clara. — Suzie, onde está você? Não consigo enxergar.

Ele deu um passo, um segundo, um terceiro... e caiu de bruços na rua, exatamente como o Gran-père Jaffords soubera que ia acontecer, ié, desde o primeiro momento em que pôs os olhos nele. Pois, digamos a verdade, o rapaz era um pistoleiro e aquele era o único fim que alguém como ele poderia esperar.

 

O TET QUEBRA

O início da noite encontrou Jake Chambers sentado desconsolado na frente da Taberna Trevo, na ponta leste da rua Central em Vila Aprazível. Os corpos dos guardas tinham sido levados numa carreta por uma equipe robótica de manutenção e pelo menos isso não deixava de ser um alívio. Oi ficara uma hora ou mais no colo do garoto. Em geral, não teria ficado tanto tempo grudado em Jake, mas parecia estar compreendendo que Jake precisava dele. Em várias ocasiões, Jake tinha chorado no pêlo do trapalhão.

Durante a maior parte daquele interminável dia Jake se surpreendeu pensando em duas diferentes vozes. Isto já tinha lhe acontecido antes, mas fora há muitos anos atrás, no tempo em que era criança pequena — ele achava que devia ter sofrido algum tipo misterioso de colapso não percebido pelos pais.

Eddie está morrendo, dizia a primeira voz (a que costumava lhe assegurar que havia monstros no armário, monstros que logo sairiam de lá para comê-lo vivo). Está num quarto da Unidade Corbett, Susannah está com ele e ele não se cala, mas está morrendo.

Não, negava a segunda voz (a que costumava lhe assegurar — num tom indeciso — que não existia aquela coisa de monstros). Não, não pode ser. Eddie é... Eddie! E além disso, ele é ka-tet. Pode ser que morra quando alcançarmos a Torre Negra, todos nós podemos morrer quando chegarmos lá, mas não agora, não aqui, isso é loucura!

Eddie está morrendo, respondeu a primeira voz. A coisa era implacável. Está com um buraco na cabeça que dá quase para você enfiar o punho lá dentro e está morrendo.

A isto a segunda voz só soube oferecer novas negativas, cada uma mais débil que a outra.

Nem mesmo o conhecimento de que provavelmente tinham salvo o Feixe (Sheemie certamente parecia pensar que tinham; havia cruzado em ziguezague o campus estranhamente silencioso do Devar-Toi gritando a novidade — O FEIXE DIZ QUE TODOS PODEM ESTAR BEM! O FEIXE DIZ OBRIGADO! — com toda a força de seus pulmões) pôde fazer com que Jake se sentisse melhor. A perda de Eddie era um preço grande demais a ser pago, mesmo levando em conta um resultado desses. E a quebra do tet representava um custo ainda maior. Cada vez que pensava nisso, Jake passava mal e enviava preces inarticuladas a Deus, a Gan, ao Homem Jesus, pedindo a cada um, ou a todos juntos, que fizessem o milagre de salvar a vida de Eddie.

Chegou a rezar para o escritor.

Salve a vida do meu amigo e salvaremos a sua, pediu a Stephen King, um homem que jamais vira. Salve Eddie e não deixaremos que seja atropelado por aquela van. Eu juro.

Então pensaria de novo em Susannah gritando o nome de Eddie, tentando virá-lo de frente e Roland pondo os braços em volta dela, dizendo não deve fazer isso, Susannah, não deve perturbá-lo, e Susannah tentando repeli-lo, o rosto enlouquecido, o rosto se alterando por um momento ou dois com as diferentes personalidades que pareciam nele habitar, imagens que logo fugiam. Tenho de ajudá-lo!, ela soluçaria na voz que Jake conhecia como de Susannah e logo, numa voz mais áspera, começava a gritar: Me deixa em paz, seu puto! Me deixa tenta meu vodu com ele, fazê meu trabalhinho. Ele vai se levanta e anda, tu vai vê! Com certeza! Roland sem parar de segurá-la e embalá-la enquanto Eddie continuava caído na rua, mas não morto. Bem, talvez tivesse sido melhor que já estivesse morto (mesmo que a morte, tornando inútil aquela conversa sobre milagres, significasse o fim de toda esperança). Jake, no entanto, podia ver os dedos encardidos de Eddie se retorcerem e podia ouvi-lo murmurar coisas incoerentes, como um homem que falasse dormindo.

Então aparecera Ted, com Dinky a seu lado e dois ou três Sapadores um pouco mais atrás, num passo hesitante. Pondo-se de joelhos ao lado da mulher que gritava e se debatia, Ted fez sinal para que Dinky se ajoelhasse do outro lado dela. Ted havia pegado uma das mãos de Susannah e fez sinal para Dink pegar a outra. Alguma coisa fluíra através deles — algo profundo e tranqüilizante. A coisa não estava destinada a Jake, claro, mas sem dúvida algo dela o atingiu, e Jake sentiu o coração, que galopava selvagem, ficar um pouco mais sereno. Olhou para a cara de Ted Brautigan e viu os olhos de Ted fazendo seu truque, as pupilas inchando e se contraindo, inchando e se contraindo.

Os gritos de Susannah fraquejaram, logo se reduzindo a pequenos gemidos de dor. Ela baixou a cabeça para Eddie e, nesse movimento, seus olhos derramaram lágrimas nas costas da camisa dele, formando pontos escuros, como gotas de chuva. Foi aí que Sheemie saiu de um dos becos gritando alegres hosanas para todos que quisessem ouvi-lo:

— O FEIXE DE LUZ DIZ QUE NÃO É TARDE DEMAIS! O FEIXE DE LUZ DIZ QUE FOI BEM NA HORA. O FEIXE DE LUZ DIZ OBRIGADO E TEMOS DE DEIXÁ-LO SARAR!

Mancava bastante de um dos lados (nenhum deles avaliou a coisa na ocasião, nem mesmo notou). Dinky murmurou algo para a crescente multidão de Sapadores que observava o pistoleiro letalmente ferido e vários se aproximaram de Sheemie, conseguindo que se calasse. Alarmes continuavam tocando nas áreas principais do Devar-Toi, mas a segunda leva de carros de bombeiro estava conseguindo deixar os três piores focos de incêndio (os da Casa Damli, do prédio da administração e da Unidade Feveral) sob controle.

Do que Jake se lembrou em seguida foi dos dedos de Ted — dedos inacreditavelmente suaves — tirando o cabelo da nuca de Eddie e expondo um grande buraco cheio de uma geléia escura de sangue. Nela havia pontinhos brancos. Jake quis acreditar que eram pedaços de osso. Melhor que pensar que pudessem ser pedaços do cérebro de Eddie.

Vendo aquele terrível ferimento na cabeça, Susannah se aprumou e começou novamente a gritar. Começou a se debater. Ted e Dinky (mais pálidos que cal) trocaram um olhar, seguraram as mãos dela com mais força e mais uma vez emitiram a

(tranqüila relaxe quieta espere calma devagar tranqüila)

mensagem tranqüilizadora que tanto irradiava cores — um azul-claro que ia se transformando em calmantes areias cinzentas — quanto palavras. Roland segurava os ombros dela.

— Podemos fazer alguma coisa por ele? — Roland perguntou a Ted. — Seja lá o que for?

— Podemos deixá-lo confortável — disse Ted. — Pelo menos isso podemos fazer. — Então apontou para o Devar. — Não tem de terminar algum trabalho ali, Roland?

Por um momento Roland pareceu não compreender inteiramente. Então olhou para os corpos caídos dos guardas e percebeu.

— Sim — disse ele. —Acho que tenho. Jake, não quer me ajudar? Se os que sobraram encontrassem um novo líder e se reagrupassem... isso não seria nada bom.

— E Susannah? — Jake perguntou.

— Susannah vai nos ajudar a encontrar para seu homem um lugar onde ele possa ficar mais à vontade e morrer com o máximo de serenidade possível — disse Ted Brautigan. — Não vai, minha querida?

Ela o olhou com uma expressão que não era de completa ausência; a compreensão (e a aflição) daquele olhar atingiu o coração de Jake como a ponta de um pingente de gelo.

— Tem mesmo que morrer? — ela perguntou.

Ted levou a mão dela aos lábios e a beijou.

— Sim — disse. — Deve mesmo morrer e você tem de suportar isso.

— Então precisam me fazer um favor — disse ela, tocando o rosto de Ted com os dedos. Para Jake aqueles dedos pareciam gelados. Gelados.

— O que, minha querida? Farei tudo que puder. — Ele se apoderou dos dedos dela e os cobriu

(tranqüila relaxe quieta espere calma devagar tranqüila)

com os seus.

— Parem com o que estão fazendo, a não ser que eu diga algo diferente — disse Susannah.

Ted a olhou, espantado. Depois olhou de relance para Dinky, que apenas deu de ombros. Aí voltou a Susannah.

— Não devem usar a boa mente de vocês para escoar minha dor — disse Susannah —, pois eu abriria a boca e a beberia, até a borra. Cada gota.

Por um momento Ted se limitou a ficar parado de cabeça baixa, uma ruga vincando a testa. Então ergueu a cabeça e concedeu a Susannah o sorriso mais gentil que Jake já vira.

— Sim, senhora — Ted respondeu. — Vamos fazer o que está pedindo. Mas se precisar de nós... quando precisar de nós...

— Eu chamo — disse Susannah, novamente se pondo de joelhos ao lado do homem caído na rua, que murmurava.

 

Quando Roland e Jake se aproximaram do beco que os levaria de volta ao centro do Devar-Toi, onde iriam adiar o luto pelo amigo caído para cuidar daqueles que pudessem ainda se levantar contra eles, Sheemie estendeu a mão e puxou a manga da camisa de Roland.

— Ei, você que foi Will Dearborn, o Feixe diz obrigado. — Perdera a voz de tanto gritar e falou num grasnido rouco. — O Feixe diz que tudo ainda pode ficar bem. Bom como novo. Melhor.

— Isso é ótimo — disse Roland e Jake também achou que era. Não houve, porém, verdadeira alegria quando Sheemie falou, como nem agora havia. Jake continuava pensando no buraco que os dedos macios de Ted Brautigan tinham revelado. O buraco cheio de geléia vermelha.

Roland pusera um braço em volta dos ombros de Sheemie, apertou-o, deu-lhe um beijo. Sheemie sorriu, deliciado.

— Vou com você, Roland. Vai me deixar ir, meu caro?

— Não desta vez — disse Roland.

— Por que está chorando? — Sheemie perguntara. Jake viu a felicidade desaparecer do rosto de Sheemie, sendo substituída por preocupação. Enquanto isso, novos Sapadores voltavam à rua Central se reunindo em pequenos grupos. Jake vira consternação nas expressões que dirigiam para o pistoleiro... uma certa curiosidade atônita e... em certos casos, uma nítida antipatia. Quase ódio. Não vira gratidão, nem um fiapo de gratidão, e por isso Jake os odiou.

— Meu amigo está ferido — dissera Roland. — Estou chorando por causa dele, Sheemie. E pela sua esposa, que também é minha amiga. Não quer ir com Ted e Dinky e tentar consolá-la, desde, é claro, que ela peça para ser consolada?

— Se você quer, eu vou! Faço qualquer coisa por você!

— Obrigado-sai, filho de Stanley. E ajude quando moverem meu amigo.

— Seu amigo Eddie! O que se acha ferido!

— Ié, o nome dele é Eddie, você diz a verdade. Vai ajudar Eddie?

— Ié!

— E há mais uma coisa...

— Ié? — Sheemie perguntara, logo parecendo se lembrar de algo. — Ié! Ajudar vocês a partirem, a viajar para longe, você e seus amigos! Ted me disse: “Faça um buraco, como fez para mim.” Só que eles o trouxeram de volta. Os maus elementos. Agora não vão trazê-lo de volta, pois os maus elementos se foram! O Feixe de luz está em paz! — E Sheemie riu, um som dissonante nos ouvidos angustiados de Jake.

Nos de Roland também, talvez, pois o sorriso dele foi forçado.

— Tudo a seu tempo, Sheemie... embora acho que Susannah talvez fique aqui, esperando pela nossa volta.

Se nós realmente voltarmos, Jake pensara.

— Mas tenho outra tarefa que talvez você possa fazer. Não ajudar alguém a viajar para aquele outro mundo, mas algo do gênero. Contei a coisa a Ted e Dinky e eles vão contá-la a você assim que Eddie estiver mais à vontade. Vai ouvi-los com atenção?

— Ié! E ajudar se puder!

— Bom! — dissera Roland batendo no ombro dele.

Então Jake e o pistoleiro tinham tomado uma direção que podia ser o norte, para voltar e terminar o que tinham começado.

 

Descobriram outros 14 guardas nas próximas três horas, a maioria deles humos. Roland surpreendeu (um pouco) Jake por só matar os dois que atiraram neles detrás do carro de bombeiro que batera com uma roda enfiada no vão da escada do porão. Os demais ele desarmou e daí os libertou, dizendo que qualquer guarda de Devar-Toi que ainda estivesse no complexo quando a corneta tocasse à tarde indicando nova mudança de turno seria alvejado imediatamente.

— Mas para onde iremos? — perguntou um taheen com uma cabeça de galo, branca como a neve, sob uma grande crina vermelha de ponta caída (Jake achou-o um pouco parecido com Foghorn Leghorn, um personagem de desenho animado).

Roland balançou a cabeça.

— Pouco me importa para onde vão — disse ele. — O que não quero é que estejam aqui no próximo toque de corneta, estão entendendo? O trabalho que vocês estavam fazendo era diabólico, mas o inferno fechou e pretendo garantir que ele jamais volte a abrir suas portas.

— O que está querendo dizer? — perguntou o taheen-galo, quase timidamente, mas Roland não respondeu. Mandou apenas que a criatura passasse o recado a todos que encontrasse.

A maioria dos taheen e can-toi remanescentes deixaram Algul Siento em duplas e trios. Saíram sem discutir e a toda hora se virando para olhar nervosamente para trás. Jake achou que tinham razão de estar com medo, pois naquele dia a face de seu dinh anda imersa em pensamentos e devastada pela dor. Eddie estava em seu leito de morte e não caía bem se meter com Roland de Gilead.

— O que vai fazer com o lugar? — Jake perguntou depois que a corneta deu o toque da tarde. Eles estavam passando pelo esqueleto enfumaçado da Casa Damli (onde os robôs-bombeiros tinham colocado placas de 6 em 6 metros dizendo ACESSO PROIBIDO PELO DEPT. DE INVESTIGAÇÃO DE INCÊNDIOS), no caminho para ver Eddie.

Roland só balançou a cabeça, sem responder à pergunta.

No Passeio, Jake observou seis Sapadores parados num círculo, dando-se as mãos. Pareciam estar numa sessão espírita. Sheemie estava lá, assim como Ted e Dani Rostov; havia também uma mulher jovem, uma mais velha e um homem corpulento, com cara de banqueiro. Atrás deles, com os pés saindo de baixo de cobertores, havia uma fileira de quase cinqüenta guardas que tinham morrido durante a breve ação.

— Sabe o que eles estão fazendo? — Jake perguntou se referindo ao folken em sessão (os que estavam atrás deles estavam simplesmente mortos, uma tarefa que os ocuparia daí por diante).

Roland olhou brevemente para o círculo de Sapadores.

— Sim.

— O que é?

— Não agora — disse o pistoleiro. — Agora vamos fazer uma última visita a Eddie. Você vai precisar de toda a serenidade possível e isso significa esvaziar sua mente.

 

Agora, sentado com Oi na frente da vazia Taberna Trevo, com seus anúncios de cerveja em néon e um jukebox, Jake pensava em como Roland agira certo. Ele se sentia muito grato. Depois de uns 45 minutos de vigília, o pistoleiro vira sua terrível tristeza e o tirara do quarto onde Eddie estava estendido. Eddie ia perdendo centímetro por centímetro da vitalidade, deixando a marca de uma notável força de vontade em cada um daqueles últimos centímetros da tapeçaria de sua vida.

A equipe de atendimento que Ted Brautigan tinha organizado levara de maça o jovem pistoleiro para a Unidade Corbett, onde o deitaram no espaçoso quarto da suíte do supervisor no primeiro andar. Os que carregaram a maça permaneceram no pátio do dormitório e, à medida que a tarde ia caindo, o resto dos Sapadores juntava-se a eles. Quando Roland e Jake chegaram, uma mulher gorducha, de cabelo ruivo, se pôs no caminho de Roland.

Senhora, eu não faria isso, Jake havia pensado. Não esta tarde.

A despeito dos alarmes e agitações do dia, a mulher — que lembrava a Jake a presidente vitalícia do clube de jardinagem de sua mãe — encontrara tempo para aplicar uma camada razoavelmente pesada de maquiagem: pó-de-arroz, ruge e um batom vermelho como um carro de bombeiro do Devar. Ela se apresentou como Grace Rumbelow (que vivera anteriormente em Aldershot, Hampshire, Inglaterra) e disse que queria saber o que ia acontecer agora — para onde eles iam, o que iam fazer, quem ia tomar conta deles. As mesmas perguntas que o taheen com cabeça de galo tinha feito, ainda que em outras palavras.

— Pois sempre tivemos quem cuidasse de nós — disse Grace Rumbelow em tons metálicos (Jake ficou fascinado com o sotaque britânico) — e não temos condições, ao menos por enquanto, de cuidar de nós mesmos.

Neste ponto, houve exclamações de concordância. Roland olhou-a de cima a baixo e algo no olhar dele despojara a senhora de sua calculada indignação.

— Saia da minha frente — disse o pistoleiro — ou a derrubo no chão.

Ela empalideceu sob a maquiagem e fez o que ele estava mandando sem dizer mais nada. Um murmúrio com pios de desaprovação seguiu Jake e Roland para a Unidade Corbett, mas só começou quando o pistoleiro estava fora de vista e ninguém tinha mais medo de cair sob o brilho perturbador de seus olhos azuis. Os Sapadores faziam Jake se lembrar de uns garotos que freqüentaram com ele a escola Piper, bobalhões da classe dispostos a gritar coisas como essa prova é uma porra! ou morda meu saco!... mas só quando o professor estava fora da sala.

O hall no primeiro andar do Corbett brilhava com luzes fluorescentes e tinha um cheiro muito forte da fumaça que vinha da Casa Damli e da Unidade Feveral. Dinky Earnshaw estava sentado numa cadeira dobrável à direita da porta com a inscrição SUÍTE DO SUPERVISOR, fumando um cigarro. Ergueu a cabeça quando Roland e Jake se aproximaram, Oi trotando com eles em sua posição habitual, logo atrás do calcanhar de Jake.

— Como ele está? — Roland perguntou.

— Morrendo, cara — disse Dinky, e deu de ombros.

— E Susannah?

— É forte. Assim que ele se for... — Dinky abanou de novo os ombros, como para dizer que a coisa podia seguir um caminho ou outro, não importa.

Roland bateu devagar na porta.

— Quem é? — A voz de Susannah, abafada.

— Roland e Jake — disse o pistoleiro. — Vamos incomodar?

A pergunta encontrou o que, para Jake, foi uma pausa excessivamente longa. Roland, contudo, não pareceu surpreso. Aliás, nem Dinky. Por fim, Susannah respondeu:

— Entrem.

Eles entraram.

 

Sentado com Oi na calma da penumbra, esperando o chamado de Roland, Jake refletiu sobre o quadro com que seus olhos tinham se deparado na escuridão do quarto. Refletiu também sobre os intermináveis 45 minutos antes de Roland perceber seu mal-estar e deixá-lo ir, dizendo que o chamaria de volta quando fosse “a hora”.

Jake já vira muitos mortos desde que fora levado para o Mundo Médio; tinha mandado outros à morte, tinha inclusive experimentado sua própria morte, embora se lembrasse muito pouco disso. Mas aquela era a morte de um companheiro de ka e o que estava acontecendo na suíte do supervisor parecia pura e simplesmente sem sentido. E interminável. Jake queria, com todo o coração, ter ficado lá fora com Dinky; não queria se lembrar do amigo (piadista, às vezes de pavio curto) daquela maneira.

Em primeiro lugar Eddie parecia extremamente frágil deitado ali, na cama do supervisor, sua mão na mão de Susannah; parecia velho e (Jake odiava o pensamento) burro. Ou talvez a palavra certa fosse senil. A boca tinha se retorcido nos cantos, formando covinhas profundas. Susannah lavara o rosto de Eddie, mas a barba crescida continuava dando uma impressão de sujeira. Havia grandes olheiras roxas nas faces, como se a porra do Prentiss tivesse batido nele antes de dar o tiro. Ainda que fechados, os olhos rolavam quase sem parar debaixo do fino véu das pálpebras, como se Eddie estivesse sonhando.

E ele falava. Um fluxo contínuo de palavras em tom baixo, murmurante. Jake conseguia entender certas coisas que ele dizia, outras não. Algumas tinham pelo menos um mínimo de sentido, mas boa parte era o que Benny, amigo de Jake, teria chamado “Ki’come”: completo absurdo. De vez em quando Susannah molhava um pano na bacia que estava em cima da mesinha-de-cabeceira, espremia e passava na testa e nos lábios ressecados do marido. A certa altura Roland se levantou, pegou a bacia, esvaziou-a no banheiro, tornou a enchê-la e levou-a de volta para Susannah. Ela agradeceu num tom de voz baixo e perfeitamente agradável. Um pouco mais tarde fora Jake quem trocara a água, e ela agradeceu do mesmo modo. Como se nem mesmo soubesse que eles estavam lá.

É bom ajudá-la, Roland tinha dito a Jake. Porque mais tarde ela vai se lembrar de quem esteve aqui e ficará realmente grata.

Mas ficaria mesmo? Jake agora se perguntava na escuridão defronte à Taberna Trevo. Ficaria mesmo grata? Era por culpa de Roland que Eddie Dean estava em seu leito de morte aos 25 ou 26 anos, não era? Se bem que, se não fosse por Roland, ela certamente jamais teria conhecido Eddie. Tudo era muito confuso. Como a idéia de múltiplos mundos com Nova Yorks em cada um deles, uma idéia que fazia a cabeça de Jake doer.

Jazendo ali, em seu leito de morte, Eddie perguntara por que o irmão Henry nunca se lembrava de fazer o bloqueio.

Também perguntara a Jack Andolini quem o havia acertado com o bastão feio. Também tinha gritado:

— Cuidado, Roland, é o George Narigão, ele está atrás de você!

E:

— Suze, se você contar a ele aquela da Dorothy e do Homem de Lata, eu conto todo o resto.

E congelando o coração de Jake:

— Não atiro com minha mão; aquele que atira com sua mão esqueceu a face de seu pai.

Com esta última, Roland pegara a mão de Eddie na penumbra (pois as persianas tinham sido fechadas) e apertara.

— Sim, Eddie, você diz a verdade. Quer abrir seus olhos e olhar para o meu rosto, meu caro?

Mas Eddie não abrira os olhos. Em vez disso, congelando o coração de Jake ainda mais profundamente, o rapaz que agora usava um curativo inútil na cabeça tinha murmurado:

— Tudo é esquecido nas galerias de pedra dos mortos. São os salões de ruína onde as aranhas tecem e os grandes circuitos caem em silêncio, um por um.

Após isso não houve nada de inteligível durante algum tempo, só aquele incessante murmurar. Jake tornara a substituir a água da bacia e, quando voltou, Roland viu seu rosto absolutamente branco e disse que ele podia ir.

— Mas...

— Vá agora, doce de coco — disse Susannah. — Só tenha cuidado. Talvez ainda haja alguns deles por aí, procurando se vingar.

— Mas aí como eu posso...

— Eu o chamo quando for a hora — disse Roland batendo na têmpora de Jake com um dos dedos restantes da mão direita. — Você vai me ouvir.

Jake teve vontade de dar um beijo em Eddie antes de sair, mas ficou com medo. Não que pudesse pegar a morte como se pega um resfriado — sabia que não era bem assim —, mas com medo de que mesmo o toque de sua boca bastasse para empurrar Eddie para a clareira no fim do caminho.

E então Susannah poderia culpá-lo.

 

Lá fora, no vestíbulo, Dinky perguntou-lhe como estava indo a coisa.

— Vai realmente mal — disse Jake. — Tem um cigarro?

Dinky ergueu as sobrancelhas, mas deu a Jake um cigarro. O garoto bateu no cigarro com a unha do polegar, como vira o pistoleiro fazer com cigarros feito a mão, depois aceitou um fósforo aceso e tragou profundamente. A fumaça ainda queimava, mas não tão amargamente quanto da primeira vez. A cabeça só rodou um pouco e ele não tossiu. Logo vou me tornar um veterano, ele pensou. Se conseguir voltar a Nova York, talvez possa ir trabalhar na Rede, no departamento de meu pai. Já estou ficando craque em A Matança.

Pôs o cigarro na frente dos olhos, pequeno míssil branco com a fumaça saindo por cima e não pelo fundo. A palavra CAMEL estava escrita logo abaixo do filtro.

— Tinha dito a mim mesmo que jamais faria isto — Jake contou a Dinky. — Nunca na vida. E aqui estou com um na mão. — Riu. Foi um riso amargo, um riso adulto e aquele som saindo de sua boca o fez tremer.

— Eu trabalhava para um cara antes de vir para cá — disse Dinky. — Sr. Sharpton, era o nome dele. Ele costumava dizer que nunca é a palavra que Deus gosta de ouvir quando quer dar uma risada.

Jake não deu resposta. Estava pensando em como Eddie havia falado sobre os salões de ruína. Jake tinha seguido Mia até um salão como aquele, antigamente e em sonho. Agora Mia estava morta. Callahan estava morto. E Eddie estava morrendo. Pensou em todos os corpos estendidos lá embaixo sob cobertores enquanto na distância o trovão rolava como ossos. Pensou no homem que atirara em Eddie rolando para a esquerda, quando a bala de Roland acabou com ele. Tentou se lembrar da recepção que tiveram em Calla Bryn Sturgis, a música, a dança e as tochas coloridas, mas tudo que aparecia com nitidez era a morte de Benny Slightman, outro amigo. Naquela noite o mundo parecia feito de morte.

Ele próprio tinha morrido e voltado: voltado ao Mundo Médio e a Roland. Passara toda a tarde tentando acreditar que a mesma coisa podia acontecer a Eddie e sabia, de alguma forma, que não seria possível. A parte de Jake na história ainda não estivera terminada. A de Eddie estava. Jake teria dado vinte anos de sua vida — trinta! — para não acreditar nisso, mas acreditava. Supunha que progara isto, de alguma forma.

Os salões de ruína onde as aranhas tecem e os grandes circuitos caem em silêncio, um por um.

Jake conhecia uma aranha. Estaria o filho de Mia observando tudo? Achando graça? Talvez torcendo por um lado ou o outro, como a porra de um torcedor dos Yankees na arquibancada?

Está. Sei que está. Sinto isso.

— Tudo bem com você, garotão? — Dinky perguntou.

— Não — disse Jake. — Nem tudo bem. — E Dinky abanou a cabeça como se fosse uma resposta perfeitamente razoável. Bem, Jake pensou, provavelmente ele já esperava por essa resposta. Afinal, é um telepata.

Como se para demonstrar seus poderes, Dinky perguntou quem era Mordred.

— Você não vai querer saber — disse Jake. — Acredite em mim. — Ele apagou o cigarro fumado pela metade (“Todo o câncer de pulmão está bem aqui, no quarto de centímetro final”, o pai costumava dizer em tons de absoluta certeza, apontando para um de seus cigarros sem filtro como um anunciante de TV) e saiu da Unidade Corbett. Usou a porta dos fundos, esperando se esquivar do grupo de ansiosos Sapadores à espera, no que foi bem-sucedido. Agora estava em Vila Aprazível, sentado no meio-fio como um dos sem-teto que se viam em Nova York. Esperando que o chamassem. Esperando pelo fim.

Pensou em entrar na taberna, talvez para se servir de um chope (se já tinha idade suficiente para fumar e matar pessoas de emboscada sem dúvida também tinha idade para tomar uma cerveja), talvez para ver se o jukebox tocava sem moedas. Apostava que Algul Siento fosse o que seu pai proclamava que a América se tornaria mais cedo ou mais tarde, uma sociedade sem dinheiro vivo. Que aquele velho Seeberg estivesse adaptado para a pessoa só precisar apertar os botões para a música começar. E apostava que se procurasse na relação de músicas ia encontrar, lá pelo número 19, “Someone Saved my Life Tonight”, “alguém salvou minha vida hoje à noite”, de Elton John.

Ficou de pé e foi nesse momento que a chamada veio. Não foi o único a ouvi-la; Oi deixou escapar um ganido breve, de cortar o coração. Era como se Roland estivesse bem ali, ao lado deles.

Venha, Jake, e rápido. Ele está indo.

 

Jake desceu correndo um dos becos, contornou o prédio da administração, que ainda ardia a fogo lento (Tassa, o criado doméstico, que ou tinha ignorado a ordem de Roland para partir ou não fora informado dela, estava sentado em silêncio no degrau em frente da casa com um saiote escocês e uma suéter, a cabeça nas mãos), e começou a subir acelerado o Passeio, dando uma olhada perturbada e rápida na longa fila de corpos estendidos. O pequeno círculo de sessão espírita que vira há pouco não estava mais lá.

Não vou chorar, ele prometeu severamente a si mesmo. Se tenho idade suficiente para fumar e pensar em tirar um chope, também tenho idade para controlar meus olhos estúpidos. Não vou chorar.

Sabendo que quase certamente ia.

 

Sheemie e Ted tinham se juntado a Dinky na frente da suíte do supervisor. Dinky havia cedido sua cadeira a Sheemie. Ted parecia cansado, mas Jake achou que Sheemie estava péssimo: olhos de novo injetados, crostas de sangue coagulado em volta do nariz e numa orelha, faces escuras. Havia tirado um dos chinelos e massageava o pé como se ele estivesse doendo. Contudo, estava nitidamente feliz. Talvez até exultante.

— O Feixe diz que tudo ainda pode ficar bem, jovem Jake — disse Sheemie. — O Feixe diz que não é tarde demais. O Feixe diz obrigado.

— Isso é bom — disse Jake, estendendo a mão para a maçaneta da porta. Mal ouvia o que Sheemie estava dizendo. Estava concentrado

(não vou chorar e deixar as coisas ainda mais difíceis para ela)

em controlar suas emoções quando entrasse. Então Sheemie disse uma coisa que rapidamente o fez voltar.

— Também não é tarde demais no Mundo Real — disse Sheemie. — Nós sabemos. Demos uma espiada. Vimos a placa se mexer. Não foi, Ted?

— É, foi. — Ted estava com uma lata de Nozz-A-La no colo. Agora ele a erguia e tomava um gole. — Quando entrar aí, Jake, diga a Roland que se é em 19 de junho de 1999 que vocês estão interessados, ainda há tempo. Mas a margem está começando a ficar um pouco estreita.

— Vou dizer a ele — disse Jake.

— E lembre a ele que o tempo às vezes desengrena por lá. Desengrena como uma velha caixa de marcha. A coisa é capaz de continuar assim por um bom tempo, a despeito da recuperação do Feixe. E depois de passar aquele dia 19...

— Nunca mais volta — disse Jake. — Não ali. Sabemos disso. — Ele abriu a porta e se introduziu na escuridão da suíte do supervisor.

 

Um círculo isolado de uma severa luz amarela, suprida pelo abajur na mesa-de-cabeceira, caía sobre o rosto de Eddie Dean. Jogava a sombra do nariz na face esquerda e transformava os olhos fechados em órbitas escuras. Susannah estava ajoelhada no chão, segurando com as duas mãos as duas mãos de Eddie e olhando para ele. Sua sombra se estendia pela parede. Roland estava sentado na outra ponta da cama, bem no escuro. O longo monólogo murmurado pelo moribundo havia cessado e a respiração de Eddie perdera qualquer traço de regularidade. Ele inspirava profundamente, segurava o ar e soltava-o em jorros longos, assobiantes. O peito ficava tanto tempo imóvel que Susannah erguia a cabeça para ver o rosto dele, os olhos brilhando de ansiedade até começar a próxima respiração, demorada, dilacerante.

Jake sentou-se na cama ao lado de Roland, olhou para Eddie, olhou para Susannah, depois olhou hesitantemente para o rosto do pistoleiro. Na penumbra, não viu nada ali além de cansaço.

— Ted mandou dizer a você que é quase 19 de junho no lado americano, por favor e obrigado. Diga isso, ele mandou, e diga também que o tempo pode desengrenar um pouco.

Roland abanou a cabeça.

— Mas acho que vamos esperar que isto aqui esteja resolvido. Não vai demorar muito e é uma dívida que temos para com Eddie.

— Quanto tempo? — Jake murmurou.

— Não sei. Achei que talvez ele fosse embora antes de você conseguir chegar, mesmo se corresse...

— Corri, assim que cheguei ao trecho gramado...

—... mas, como está vendo...

— Ele luta muito — disse Susannah, e que aquilo fosse a única coisa que lhe sobrasse como motivo de orgulho fez Jake sentir um calafrio. — Meu homem luta muito. Talvez ainda tenha alguma coisa a dizer.

 

E realmente tinha. Cinco minutos intermináveis após Jake ter se introduzido no quarto, os olhos de Eddie se abriram.

— Sue... — ele disse —, Su... sie...

Ela se inclinou, sempre segurando as mãos dele, sorrindo para o rosto dele, toda a sua concentração ferozmente intensificada. E com um esforço que Jake teria achado impossível, Eddie libertou uma das mãos, sacudiu-a um pouco para a direita e agarrou alguns anéis do cabelo de Susannah. Se o peso do braço dele repuxou as raízes e a machucou, ela não deixou transparecer. O sorriso que floresceu em sua boca foi de alegria e acolhimento, talvez até mesmo de sensualidade.

— Eddie! Que bom que está de volta!

— Não se engana... um enganador — ele sussurrou. — Estou indo, meu coração, não voltando.

— Isso é apenas tol...

— Shhhh — ele sussurrou, e ela obedeceu. A mão que pegara seu cabelo puxou. Ela se aproximou com naturalidade do rosto dele e beijou pela última vez aqueles lábios vivos. — Eu... vou... esperar por você — disse ele, expelindo cada palavra com imenso esforço.

Jake viu gotas de suor brotarem na pele, a última mensagem do corpo moribundo para o mundo vivo, e foi nesse momento que o coração do garoto finalmente compreendeu o que sua cabeça há horas já sabia. Ele começou a chorar. Eram lágrimas que ardiam e lavavam o rosto. Quando a mão de Roland se aproximou da dele, Jake apertou-a ferozmente. Estava tão assustado quanto triste. Se aquilo podia acontecer com Eddie, podia acontecer com qualquer um. Podia acontecer com ele.

— Sim, Eddie. Sei que vai esperar — ela disse.

— Na... — Ele puxou outra daquelas grandes, angustiadas, ásperas respirações. Seus olhos estavam brilhantes como pedras preciosas. — Na clareira. — Outra respiração. A mão segurando o cabelo dela. A luz do abajur envolvendo os dois em seu místico círculo amarelo. — Aquela no fim do caminho.

— Sim, querido. — A voz dela agora estava calma, mas uma lágrima caiu na face de Eddie e correu devagar pela linha do queixo. — Ouvi muito bem. Espere por mim. Eu vou encontrá-lo e seguiremos juntos. Estarei andando então. Com minhas próprias pernas.

Eddie sorriu para ela e voltou os olhos para Jake.

— Jake... venha cá.

Não, Jake pensou em pânico. Não, não posso, não posso.

Mas já estava se aproximando, entrando naquele cheiro de fim. Podia ver a fina linha de sujeira logo abaixo do contorno do cabelo de Eddie. Ela ia ficando brilhante à medida que novas gotinhas de suor pontilhavam.

— Espere por mim também — disse Jake por entre lábios entorpecidos. — Está bem, Eddie? Aí seguimos todos juntos. Seremos de novo ka-tet, exatamente como éramos. — Tentou sorrir e não conseguiu. O coração apertava demais para sorrir. Ele se perguntou se o coração não poderia explodir no peito, do modo como as pedras às vezes explodem no calor do fogo. Tinha aprendido este pequeno fato com seu amigo Benny Slightman. A morte de Benny fora ruim, mas aquela era mil vezes pior. Um milhão de vezes.

Eddie estava balançando a cabeça.

— Não... tão depressa, parceiro. — Ele inspirou profundamente e fez uma careta, como se o ar tivesse adquirido espinhos que só ele podia sentir. Então sussurrou... não por fraqueza, Jake pensou mais tarde, mas porque era uma coisa que devia ficar entre os dois. — Cuidado... com Mordred. Cuidado... Dandelo.

— Dente-de-leão? Eddie, eu não...

— Dandelo. — Olhos se arregalando. Esforço enorme. — Proteja... seu... dinh... de Mordred. De Dandelo. Você... Oi. Seu trabalho. — Os olhos resvalaram para Roland, depois voltaram a Jake. — Shhh. —Então: — Proteja...

— Eu... vou. Nós vamos proteger.

Eddie abanou um pouco a cabeça e olhou para Roland. Jake chegou para o lado e o pistoleiro se inclinou para o que Eddie queria lhe dizer.

 

Nunca, jamais Roland tinha visto um olho tão brilhante, nem mesmo na colina de Jericó, quando Cuthbert lhe mandara um risonho adeus.

— Tivemos... alguns tempos. — Eddie sorria.

Roland assentiu com a cabeça.

— Você... você... — Mas Eddie não conseguiu concluir. Ergueu uma das mãos e fez um fraco movimento circular.

— Eu dancei — disse Roland, abanando de novo a cabeça. — Dancei a commala.

Sim, disseram em silêncio os lábios de Eddie. Depois ele puxou outra daquelas respirações barulhentas, dolorosas. Foi a última.

— Obrigado pela minha segunda chance — disse ele. — Obrigado... Pai.

Não houve mais nada. Os olhos de Eddie ainda olhavam para Roland e ainda estavam conscientes, mas não havia mais respiração para substituir o ar que gastara naquela palavra final, naquele pai. A luz do abajur brilhava nos pêlos dos braços nus, transformando-os em dourado. O trovão murmurava. Então os olhos de Eddie se fecharam e a cabeça caiu para o lado. Seu trabalho estava acabado. Ele deixara o caminho, penetrara na clareira. Continuaram sentados em círculo em volta dele, mas não eram mais um ka-tet.

 

E então, trinta minutos depois.

Roland, Jake, Ted e Sheemie estavam sentados num banco no meio do Passeio. Dani Rostov e o sujeito de ar de banqueiro estavam próximos. Susannah continuava na suíte do supervisor, lavando o corpo do marido para o enterro. Podiam ouvi-la de onde estavam sentados. Ela estava cantando. Pareciam as canções que ouvira Eddie cantar ao longo do caminho. Uma era “Born to Run”. Outra era “A Canção do Arroz”, de Calla Bryn Sturgis.

— Temos de ir e temos de ir já — disse Roland. Sua mão se deslocara para o quadril e estava esfregando, esfregando. Jake o vira tirar um frasco de aspirina (obtido só Deus sabia onde) da bolsa e engolir a seco três. — Sheemie, pode nos mandar?

Sheemie abanou afirmativamente a cabeça. Fora mancando até o banco, apoiando-se em Dinky, e ainda ninguém tivera a chance de dar uma olhada no ferimento em seu pé. O coxear parecia tão insignificante em comparação com as outras preocupações do grupo; certamente se Sheemie Ruiz tivesse de morrer naquela noite seria como resultado de abrir uma porta temporária entre o lado de Trovoada e o lado da América. Um novo e estressante ato de telecinese poderia ser letal para ele — o que era um pé dolorido comparado com isso?

— Vou tentar — disse ele. — Vou tentar com toda a minha energia, é o que vou fazer.

— Aqueles que nos ajudaram a olhar para dentro de Nova York vão nos ajudar a fazer isto — disse Ted.

Fora Ted quem descobrira como identificar o quando do momento, ao lado-América do Mundo-chave. Ele, Dinky, Fred Worthington (o homem com ar de banqueiro) e Dani Rostov, todos tinham estado em Nova York, todos eram capazes de produzir claras imagens mentais de Times Square: as luzes, as multidões, as fachadas dos cinemas... e, mais importante que tudo, o gigantesco letreiro que transmitia os eventos do dia para as multidões lá embaixo, fazendo, mais ou menos a cada trinta segundos, um circuito completo da Broadway e da rua 48. O buraco ficara aberto por tempo suficiente para informá-los de que os peritos forenses da ONU estavam examinando fossas comuns em Kosovo, que o vice-presidente Gore passara o dia na cidade de Nova York fazendo campanha para a presidência, que embora Roger Clemens fizera strike out em 13 Texas Rangers, os Yankees haviam perdido na noite anterior.

Com a ajuda dos outros, Sheemie podia ter mantido o buraco aberto por um tempo consideravelmente maior (os outros tinham olhado fixamente para o brilho daquela agitada noite de Nova York com uma espécie de assombro faminto, já agora não Sapando, mas Abrindo, Vendo), só que não houve necessidade disso. Após o resultado do beisebol, a data e a hora passaram velozes, da altura de um andar, em brilhantes caracteres verde-amarelados: JUNHO 18, 1999. 9:19PM

Jake abriu a boca para perguntar como podiam ter certeza de estarem olhando para dentro do Mundo-chave, aquele onde Stephen King tinha menos de um dia para viver, e então tornou a fechá-la. A resposta estava no horário, bobão, como sempre: o 19 estava presente inclusive na hora, 9:19.

 

— E há quanto tempo você viu isso? — Roland perguntou.

Dinky calculou.

— Acho que foi há umas cinco horas pelo menos. Estou me baseando no toque de corneta para a mudança de turno, e na hora em que o sol se apagou pela noite.

Naquele momento devia ser umas duas e trinta da manha lá do outro lado, Jake calculou, contando as horas nos dedos. Pensar era difícil agora, mesmo uma simples adição era interrompida por constantes imagens de Eddie, mas ele achou que conseguiria se realmente tentasse. Só que não se pode confiar que se trate apenas de cinco horas porque o tempo anda mais rápido no lado-América. Isso pode mudar agora que os Sapadores pararam de sabotar o Feixe — talvez a coisa fique equalizada —, mas provavelmente ainda não mudou. Por enquanto é provável que o tempo continue correndo rápido.

E que possa desengrenar.

Num minuto Stephen King podia estar sentado na frente da máquina de escrever de seu escritório na manhã de 19 de junho, lépido e fagueiro, e no minuto seguinte... bum! Naquela mesma tarde poderia estar deitado numa funerária das proximidades, oito ou 12 horas teriam passado como um raio, a família chorosa estaria sentada sob o círculo de uma luminária tentando decidir que tipo de serviço King teria preferido — sempre presumindo que tal informação não constasse de seu testamento; talvez inclusive tentando decidir onde enterrá-lo. E a Torre Negra? A versão de Stephen King da Torre Negra? Ou a versão de Gan, ou a versão do Primal? Perdidas para sempre, todas elas. E aquele som que você ouve? Ora, deve ser o Rei Rubro rindo, rindo e rindo de algum lugar profundamente oculto na Discórdia. E talvez também Mordred, o Menino-Ara-nha, rindo com ele.

Pela primeira vez desde a morte de Eddie, algo além da dor tomou a dianteira na mente de Jake. Era um débil barulho palpitante, como aquele que os pomos de ouro fizeram ao serem programados por Roland e Eddie. Pouco antes de serem dados a Haylis, que os distribuíra. Era o som do tempo e o tempo não era amigo deles.

— Ele tem razão — disse Jake. — Temos de ir enquanto ainda podemos fazer alguma coisa.

Ted:

— Será que Susannah...

— Não — disse Roland. — Susannah vai ficar aqui e você vai ajudá-la a enterrar Eddie. Está de acordo?

— Sim — disse Ted. — É claro, se é o que você quer.

— Se não estivermos de volta em... — Roland calculou, um olho muito apertado, o outro olhando para a escuridão. — Se não estivermos de volta a esta mesma hora na noite após a próxima, presuma que voltamos a Fedic, no Fim do Mundo. Sim, aposte em Fedic, Jake pensou. É claro. Pois de que serviria fazer a outra suposição, ainda mais lógica, a de que estivéssemos mortos ou perdidos entre os mundos, em todash para sempre?

— Conhece Fedic? — Roland estava perguntando.

— Ao sul daqui, não é? — perguntou Worthington. Ele havia se aproximado com Dani, uma menina ainda nem adolescente. — Ou o que era conhecido como sul. Trampas e alguns outros can-toi costumavam falar do sul como se fosse um lugar assombrado.

— É assombrado, mesmo — Roland disse sério. — Pode pôr Susannah num trem para Fedic na eventualidade de não conseguirmos voltar? Sei que pelo menos alguns trens ainda devem estar correndo, por causa dos...

— Capotes Verdes? — disse Dinky abanando a cabeça. — Ou os Lobos, como vocês pensam neles. Todos os trens da linha D continuam correndo. Eles são automáticos.

— São monos? Falam? — Jake perguntou. Estava se lembrando de Blaine.

Dinky e Ted trocaram um olhar de dúvida, depois Dinky voltou a prestar atenção em Jake e abanou os ombros.

— Como poderíamos saber? Provavelmente sabemos mais sobre decotes que sobre os trens da linha D, o que acho que se aplica a todo mundo aqui. Pelo menos aos Sapadores. Talvez alguns guardas saibam de mais alguma coisa. Ou aquele cara. — Sacudiu um dedo para Tassa, que continuava sentado no degrau do prédio da administração, a cabeça nas mãos.

— Seja como for, vamos dizer a Susannah para ter cuidado — Roland murmurou para Jake. Jake abanou a cabeça. Também achava que era o melhor que podiam fazer, mas tinha outra pergunta. Fez uma nota mental para perguntar a Ted ou Dinky se tivesse a oportunidade de fazê-lo sem ser ouvido por Roland. Não gostava da idéia de deixar Susannah para trás — cada instinto de seu coração clamava contra isso —, mas sabia que ela se recusaria a ir sem Eddie estar enterrado e Roland também sabia disso. Só conseguiriam fazê-la partir com uma venda nos olhos e uma mordaça na boca, o que só pioraria a situação.

— Pode ser — disse Ted — que alguns Sapadores estejam interessados em fazer uma viagem de trem para o sul com Susannah.

Dani abanou a cabeça.

— Não somos exatamente amados por aqui por estarmos ajudando vocês — disse ela. — Ted e Dinky estão enfrentando a pressão maior, mas alguém cuspiu em mim há meia hora, quando eu estava no meu quarto pegando isto... — Ela levantou um ursinho de pelúcia meio surrado, sem dúvida muito estimado. — Acho que não vão fazer nada enquanto vocês, rapazes, estiverem aqui, mas depois que forem embora... — Ela deu de ombros.

— Cara, eu não entendo isso — disse Jake. — Eles ficaram livres!

— Livres para fazer o quê? — Dinky perguntou. — Pense nisso. A maioria deles eram desajustados no lado América. Sobravam. Aqui éramos VIPs e tínhamos o melhor de tudo. Agora tudo isso acabou. Quando se pensa desse jeito na coisa, fica difícil entender?

— Sim — disse Jake asperamente. Provavelmente não queria compreender.

— Eles perderam outra coisa — Ted disse a eles em voz baixa. — Há um romance de Ray Bradbury chamado Fahrenheit 451. “Era um prazer queimar”, diz a primeira linha do livro. Bem, também era um prazer Sapar.

Dinky abanava a cabeça. Assim como Worthington e Dani Rostov. Até Sheemie estava abanando a cabeça.

 

Eddie continuava no mesmo círculo de luz, mas agora o rosto estava limpo e o lençol de cima da cama do supervisor o cobria cuidadosamente até o meio do corpo. Susannah o vestira com uma camisa branca e limpa que encontrara em algum lugar (Jake achava que fora no armário do supervisor) e também devia ter encontrado um aparelho de barbear porque o rosto estava liso. Jake tentou imaginá-la ali sentada, fazendo a barba do marido morto — cantando “Commala-venha-venha, o arroz apenas começou” — e a princípio não conseguiu. Então, bruscamente, a imagem lhe ocorreu e foi tão poderosa que ele teve de lutar mais uma vez para não explodir em soluços.

Ela ouviu em silêncio o que Roland falou, sentada no lado da cama, as mãos dobradas no colo, os olhos baixos. Para o pistoleiro, Susannah parecia uma virgem tímida recebendo alguma proposta de casamento.

Quando ele acabou, Susannah não disse nada.

— Entendeu o que eu falei, Susannah?

— Sim — disse ela, ainda sem levantar os olhos. — Vou enterrar meu homem. Ted e Dinky vão me ajudar, nem que seja apenas para impedir que os amigos... — ela deu a esta palavra um tom amargamente sarcástico que não deixou de encorajar um pouco Roland; não parecia estar desligada da realidade —... tirem o corpo de mim e o pendurem no tronco de uma macieira para ser linchado.

— E depois?

— Ou vocês encontrarão um meio de voltar para cá, e seguiremos juntos para Fedic, ou Ted e Dinky me colocarão no trem e irei sozinha para lá.

Jake não se limitou a odiar a fria desconexão que agora aparecia em sua voz; ela também o deixou aterrorizado.

— Você sabe por que temos de voltar para o outro lado, não sabe? — perguntou ansioso. — Você realmente sabe, não é?

— Para salvar o escritor enquanto ainda dá tempo. — Ela levantara uma das mãos de Eddie e Jake observou com fascínio que as unhas estavam perfeitamente limpas. Não sabia o que Susannah tinha usado para tirar a sujeira das unhas... Será que o supervisor teria um daqueles cortadores de unha, como o que o pai sempre tinha no chaveiro que ficava no bolso? — Sheemie diz que salvamos o Feixe do Urso e da Tartaruga. Nós achamos que salvamos a rosa. Mas temos pelo menos mais uma tarefa a fazer. O escritor. O preguiçoso escritor. — Agora ela ergueu a cabeça e os olhos faiscavam. De repente Jake achou que talvez fosse bom que Susannah não estivesse com eles quando... se... conseguissem encontrar sai Stephen King.

—É milhó salvarem ele — disse Susannah, embora Roland e Jake pudessem agora ouvir a velha e furtiva ladra Detta pairando naquela voz. — Dispois do que aconteceu hoje, é realmente milhó. E desta vez, Roland, mande ele num para de iscrevê. Num importa que venha o inferno, onda de marémoto, câncer ou gangrena do pau. Também num importa se preocupá cum o Prêmio Pulitzer. Mande que ele continue e que acabe a porra dessa história!

— Vou dar o recado — disse Roland.

Ela abanou a cabeça.

—- Você se juntará a nós quando este seu trabalho estiver terminado — disse Roland e a voz se elevou ligeiramente na última palavra, quase transformando a frase numa pergunta. — Você se juntará a nós e terminará o último trabalho, não é?

— Sim — disse ela. — Não porque eu queira... toda a minha fibra virou farrapo... mas porque ele o queria. — Suavemente, muito suavemente, Susannah levou a mão de Eddie de volta ao peito dele, deixando de novo as duas mãos juntas. Então apontou um dedo para Roland. A ponta tremia nitidamente. — Só num comecem com essa merda do “somos ka-tet, somos um feito de muitos”. Pruque esse tempo passou. Num é?

— Sim — disse Roland. — Mas a Torre continua de pé. E espera.

— Também já perdi a vontade para isso também, garotão. — Não chegou a falar num to cum vontade pá isso também, mas foi quase. — Estou dizendo a verdade.

Jake, no entanto, percebeu que ela não estava dizendo a verdade. Como Roland ela não havia perdido a vontade de ver a Torre Negra. Como ele, Jake, também não. O tet podia estar quebrado, mas o ka permanecia. E Susannah sentia isso exatamente como eles.

 

Eles a beijaram (e Oi lambeu seu rosto) antes de partir.

— Tenha cuidado, Jake — disse Susannah. — Volte a salvo, está ouvindo? Eddie teria lhe dito a mesma coisa.

— Eu sei — disse Jake, tornando a beijá-la. Depois ele sorriu imaginando Eddie lhe mandando ver onde deitava a bunda, que já havia apanhado demais, e, pela mesma razão, começou a chorar de novo. Susannah lhe deu mais um abraço, soltou-o e virou-se para o marido, tão quieto e frio na cama do supervisor. Jake entendeu que Susannah tinha pouco tempo para Jake Chambers ou para se mostrar solidária à dor que Jake Chambers também sentia. Sua própria dor era grande demais.

 

Na frente da suíte, Dinky esperava junto da porta. Roland seguia com Ted, os dois já no final do corredor e profundamente envolvidos na conversa. Jake imaginava que estivessem voltando ao Passeio, onde Sheemie (com uma pequena ajuda dos outros) tentaria enviá-los mais uma vez para o lado-América. Isso fez com que se lembrasse de uma coisa.

— Os trens da linha D vão para o sul — disse Jake. — Ou o que deveria ser o sul... está certo?

— Mais ou menos, parceiro — disse Dinky. — Algumas locomotivas têm nomes como Chuva Deliciosa ou Espírito do País da Neve, mas todas têm letras e números.

— Será que o D se refere a Dandelo? — Jake perguntou.

Dinky olhou-o com uma ruga de confusão.

— Dandelo? Que diabo é isso?

Jake sacudiu a cabeça. Não queria sequer dizer a Dinky onde tinha ouvido a palavra.

— Bem, eu não sei, não tenho certeza — disse Dinky quando retomaram a caminhada —, mas sempre presumi que o D se referia a Discórdia. Porque é onde todas as linhas acabam, supostamente, você sabe... em algum lugar nos confins das piores Terras Áridas do universo.

Jake abanou a cabeça. D de Discórdia. Fazia sentido. Pelo menos parecia fazer.

— Não respondeu à minha pergunta — disse Dinky. — O que é um Dandelo?

— É só uma palavra que vi escrita num muro da estação Trovoada. Provavelmente nada significa.

 

Na frente da Unidade Corbett, uma delegação de Sapadores esperava. Pareciam deprimidos e assustados. D de Dandelo, Jake pensou. D de Discórdia. Também D de desesperado.

Roland encarou-os com os braços cruzados no peito.

— Quem fala por vocês? — ele perguntou. — Se existe um porta-voz, que tome a frente agora, porque nosso tempo está esgotado.

Um cavalheiro de cabelo grisalho — na verdade, outro sujeito com ar de banqueiro — deu um passo à frente. Usava calça social cinza, camisa branca aberta no colarinho e um paletó cinza, também aberto. O paletó parecia torto. Assim como o homem.

— Tiraram nossas vidas — disse ele, falando com uma espécie de rabugenta satisfação (como se há muito soubesse que as coisas chegariam àquele resultado; ou a algo próximo). — As vidas que nós conhecíamos. O que vai nos dar em troca, sr. Gilead?

Houve um rumor de aprovação a estas palavras. Jake Chambers percebeu e se sentiu mais irritado que nunca. Aparentemente num ato reflexo, sua mão escapuliu para o cabo da pistola automática Coyote, acariciou-o e encontrou um frio conforto em sua forma. Até mesmo um breve alívio da dor. E Roland percebeu. Sem virar o rosto, ele estendeu o braço por trás e pôs sua mão sobre a mão de Jake. Apertou-a até Jake soltar a arma.

— Já que perguntaram, vou dizer o que vou dar em troca — disse Roland. — Pretendia fazer com que este lugar, onde vocês se alimentaram dos cérebros de crianças indefesas para destruir o universo, queimasse até o fim; sim, cada galho. Pretendia colocar para explodir certas bolas voadoras que temos conosco e destroçar qualquer coisa que não queimasse. Pretendia apontar para vocês o caminho para o rio Whye e as Callas verdes que se encontram além, e amaldiçoar vocês do jeito que meu pai me ensinou: que tenham uma vida longa, mas não com saúde.

Um murmúrio de ressentimento reagiu a isto, mas nenhum olho enfrentou o de Roland. As pernas do homem que tinha concordado em falar por eles (apesar da raiva, Jake lhe concedeu pontos pela coragem) estavam oscilando, como se a qualquer momento ele fosse desmaiar.

— As Callas ainda se encontram nessa direção — disse Roland, apontando. — Se tomarem este caminho, alguns... talvez muitos... acabem morrendo, pois terão de cruzar com animais famintos e qualquer água que haja pode ser veneno. Não tenho dúvida que o folken das Callas saberão quem são vocês e o que andaram fazendo, mesmo que tentem mentir, pois os manni estão entre eles e os manni vêem muita, coisa. Contudo vocês poderão encontrar perdão em vez da morte, pois a capacidade de perdão nos corações daquelas pessoas está além da possibilidade de compreensão por parte de corações como o de vocês. Aliás, até do meu.

“Não tenho dúvida, no entanto, que os habitantes de Calla serão capazes de colocá-los para trabalhar. Vocês terão de passar o resto de suas vidas sem o conforto que conheceram e ganhando o pão com o suor do rosto. Ainda assim eu sugiro fortemente que vão para lá, nem que apenas para encontrar alguma redenção pelo que fizeram.”

— Não sabíamos o que estávamos fazendo, meu homem cruel! — gritou furiosamente uma mulher nos fundos.

— VOCÊS SABIAM! — Jake gritou em retorno, tão alto que viu pontinhas pretas na frente de seus olhos e, mais uma vez, a mão de Roland pousou sobre a dele para impedi-la de sacar. Seria Jake realmente capaz de alvejar a multidão com a Coyote, trazendo novas mortes àquele terrível lugar? Ele não sabia. O que sabia era que as mãos de um pistoleiro nem sempre ficavam sob controle quando estavam segurando uma arma. — Não se atrevam a dizer que não sabiam! Vocês sabiam!

— Mas vou lhes conceder alguma coisa, isso vou — disse Roland. — Eu e meus amigos... aqueles que sobreviveram, embora eu tenha certeza que aquele que jaz morto para lá também concordaria... Deixaremos este lugar intacto. Aqui há comida suficiente para alimentá-los pelo resto da vida, não tenho dúvida, e robôs que podem cozinhar, lavar suas roupas e até limpar suas bundas, se acharem que é preciso. Se preferem o purgatório à redenção, então fiquem aqui. Mas no lugar de vocês, eu colocaria o pé na estrada. Sigam os trilhos da estrada de ferro para fora das sombras. Digam às pessoas o que fizeram antes que eles consigam contar para vocês, e caiam de joelhos com as cabeças descobertas e implorem perdão.

— Nunca! — alguém gritou num tom inflexível, mas Jake achou que alguns já estavam inseguros.

— Como quiserem — disse Roland. — Não tenho mais nada a dizer e o próximo que falar comigo talvez acabe para sempre em silêncio; pois um de meus parceiros, uma amiga, está preparando outro parceiro nosso, seu marido, para deitar na terra, e estou cheio de pesar e raiva. Alguém quer falar mais alguma coisa? Alguém quer desafiar minha raiva? Se assim for, que fale agora. — Puxou o revólver e encostou-o na cavidade do ombro. Jake se colocou ao lado dele e acabou sacando sua própria arma.

Houve um momento de silêncio e o homem que havia falado se afastou.

— Não atire em nós, senhor, já fez bastante — disse alguém num tom amargo.

Roland não deu resposta, e a multidão começou a se dispersar. Alguns começaram a correr, uma atitude que foi contagiando os outros como um resfriado. Fugiram em silêncio, exceto uns poucos que choravam. Logo a escuridão tinha engolido a todos.

— Puxa — disse Dinky. A voz era suave, respeitosa.

— Roland — disse Ted —, o que eles fizeram não foi inteiramente culpa deles. Achei que tivesse explicado isso, mas acho que não me saí muito bem.

Roland pôs o revólver no coldre.

— Saiu-se admiravelmente bem — disse ele. — É por isso que ainda estão vivos.

Agora estavam de novo sozinhos na extremidade do Passeio onde ficava a Casa Damli e Sheemie mancou na direção de Roland. Seus olhos estavam bem abertos, solenes.

— Não vai me mostrar para onde quer ir, meu caro? — ele perguntou. — Pode me mostrar o lugar?

O lugar. Roland estivera tão concentrado no quando que praticamente não pensara no onde. E sua memória da estrada que tinham seguido em Lovell era bastante fraca. Eddie dirigia o carro de John Cullum com Roland imerso em pensamentos, concentrado no que teria de dizer para convencer o caseiro a ajudá-los.

— Ted lhe mostrou algum lugar antes de você despachá-lo? — ele perguntou a Sheemie.

— Ié, mostrou. Só que sem saber que estava me mostrando. Foi um desenho de neném... não sei como explicar, exatamente... cabeça burra! Cheia de teias de aranha! — Sheemie fechou um punho e se esmurrou entre os olhos.

Roland pegou a mão antes que Sheemie pudesse socar-se de novo e desenrolou os dedos. Fez isso com surpreendente gentileza.

— Não, Sheemie. Acho que compreendo. Você encontrou um pensamento... uma memória de quando ele era um garotinho.

Ted se aproximou.

— Claro que deve ter sido — disse ele. — Não sei como não percebi isto antes. Simples demais, talvez. Fui criado em Milford e o lugar de onde saí em 1960 ficava muito perto de lá em termos geográficos. Sheemie deve ter se deparado com a lembrança de passeio de carrinho ou talvez uma viagem no trólei de Hartford para visitar tio Jim e tia Molly em Bridgeport. Alguma coisa em meu subconsciente. — Ele balançou a cabeça. — Eu sabia que o lugar onde saí era familiar, mas isso, é claro, já era anos mais tarde. A estrada Merritt não estava lá quando eu era criança.

— Pode me dar uma imagem assim? — Sheemie perguntou a Roland num tom esperançoso.

Roland pensou mais uma vez no lugar de Lovell onde tinham parado na rota 7, o lugar onde mandara Chevin de Chayven sair do bosque, mas simplesmente não foi uma imagem de todo consistente; não havia nenhum ponto de referência óbvio para distinguir o lugar de uma infinidade de outros. Pelo menos nada de que se lembrasse.

Então veio outra idéia. Uma idéia que tinha relação com Eddie.

— Sheemie!

— Sim, Roland de Gilead, que era Will Dearborn!

Roland estendeu os braços e encostou as mãos nos lados da cabeça de Sheemie.

— Feche os olhos, Sheemie, filho de Stanley.

Sheemie fez o que lhe era pedido, também estendeu os braços e pousou as mãos dos lados da cabeça de Roland. Roland fechou os olhos.

— Veja o que estou vendo, Sheemie — disse ele. — Veja para onde queremos ir. Olhe com atenção.

E Sheemie olhou.

 

Enquanto estavam ali, Roland projetando e Sheemie observando, Dani Rostov chamou Jake em voz baixa.

Depois que ele se aproximou ela hesitou, como se não soubesse muito bem o que dizer ou fazer. Ele pensou em perguntar, mas ela tampou sua boca com um beijo. Os lábios eram incrivelmente macios.

— Este é para dar sorte — disse ela e, ao ver o olhar de espanto no rosto de Jake e compreender o poder do que fizera, sua timidez abrandou. Pôs os braços em volta do pescoço de Jake (ainda segurando o velho ursinho de pelúcia numa das mãos; ele sentiu a maciez do urso nas costas) e beijou-o de novo. Ele sentiu a pressão dos seios pequenos, duros, e se lembraria pelo resto da vida da sensação. Ia se lembrar dela pelo resto da vida. — E este é por mim.

Dani recuou para o lado de Ted Brautigan, olhos baixos, faces muito vermelhas, antes que Jake pudesse falar. De início ele parecia incapaz de dizer qualquer coisa, mesmo que sua vida dependesse disso. A garganta estava absolutamente trancada.

Ted olhou-o e sorriu.

— O primeiro beijo é a base para todos os outros que levará — disse ele. — Confie em mim. Eu sei.

Jake ainda não conseguia dizer nada. Se ela tivesse lhe dado um soco na cabeça em vez de um beijo na boca a sensação seria a mesma. Estava atordoado.

 

Quinze minutos mais tarde, quatro homens, uma moça, um zé-trapalhão e um garoto espantado, atordoado (e muito exausto), estavam no Passeio. Pareciam estar sozinhos no pátio gramado; os Sapadores tinham sumido por completo. De onde estava, Jake podia ver a janela iluminada no primeiro andar da Unidade Corbett onde Susannah estava cuidando de seu homem. O trovão ribombava. Ted falava agora como havia falado no guarda-roupa do escritório da estação Trovoada, onde a plaqueta de metal no paletó vermelho dizia Chefe de Expedição, num tempo em que a morte de Eddie era algo inimaginável.

— Dêem as mãos. E se concentrem.

Jake começou a estender o braço para a mão de Dani Rostov, mas Dinky sacudiu a cabeça, sorrindo ligeiramente.

— Talvez outro dia possa dar as mãos a ela, campeão, mas agora você é o curinga no meio da roda. E seu dinh é outro.

— Segurem na mão um do outro — disse Sheemie. Havia em sua voz uma tranqüila autoridade que Jake ainda não ouvira antes. — Isso vai ajudar.

Jake enfiou Oi na camisa.

— Roland, você conseguiu mostrar a Sheemie...

— Olhe — disse Roland, pegando as mãos de Sheemie. Os outros agora faziam um círculo apertado em volta deles. — Olhe, acho que você vai ver.

Uma brilhante cicatriz se abriu na escuridão, retirando Sheemie e Ted da visão de Jake. Por um momento o rasgo tremeu, ficou escuro e Jake achou que ia desaparecer. De repente voltou a brilhar, a se alargar. Ele ouviu, muito debilmente (do modo como você ouve as coisas quando está debaixo d’água), o barulho de um carro ou caminhão passando naquele outro mundo. E viu um edifício com um pequeno estacionamento asfaltado na frente. Havia três carros e uma picape parados ali.

É dia!, Jake pensou desanimado. Porque se o tempo nunca anda para trás no Mundo-chave, aquilo indicava que o tempo havia desengrenado. Se aquele era o Mundo-chave, então era sábado, dia 19 de junho do ano de...

— Rápido! — Ted gritou do outro lado daquele buraco brilhante na realidade. — Se estão indo, vão agora! Ele vai desmaiar! Se estão indo...

Roland puxou Jake para a frente e a bolsa bateu com força em suas costas quando ele fez isso.

Espere!, Jake teve vontade de gritar. Espere, esqueci minhas coisas!

Mas era tarde demais. Havia a sensação de mãos grandes apertando seu peito e ele teve a impressão de que todo o ar saía num jato dos pulmões. Mudança de pressão, pensou. Houve uma sensação de cair para cima e logo ele estava cambaleando na calçada do estacionamento com sua sombra grudada nos calcanhares. Contraía os olhos, fazia careta, se perguntava, em alguma região distante da mente, há quanto tempo seus olhos não ficavam expostos à simples e velha luz natural do dia. Não acontecia, talvez, desde que entrara na Gruta do Portal atrás de Susannah.

Muito debilmente ele ouviu alguém — achou que fosse a moça que o beijara — dizer boa sorte e então houve silêncio. Trovoada se fora, assim como o Devar-Toi e a escuridão. Estavam no lado-América, no estacionamento do lugar para o qual a memória de Roland e o poder de Sheemie — reforçado pelos outros quatro Sapadores — os tinham levado. Era o mercado de East Stoneham, onde Roland e Eddie haviam sido emboscados por Jack Andolini. Só que, a não ser que tivesse ocorrido algum terrível erro, isto se passara 22 anos antes. Agora era 19 de junho de 1999 e o relógio na vitrine (É SEMPRE HORA DE CARNE BOAR’S HEAD! estava escrito num círculo em volta do mostrador) anunciava que faltavam 19 minutos para as quatro da tarde. O tempo estava quase esgotado.



 

* Chet Huntley e seu parceiro David Brinkley, âncoras de tevê nos anos 60, fechavam assim o noticiário. (N. E.)

*Dink também significa pênis. (N. do T.)

* Conjunto musical estilo Motown, dos anos 60. (N. da E.)

* Estrela do famoso show do Buffalo Bill, grande atiradora do oeste norte-americano no século XIX. (N. da E.)

* A casa da bruxa no conto dos irmãos Grimm “João e Maria” era feita de pão de gengibre. Na Inglaterra vitoriana, construíam-se casas cujas fachadas eram decoradas de estilo semelhante. (N. da E.)

* Marca popular de balas de alcaçuz. (N. da E.)

* Serial killer norte-americano dos anos 70. (N. da E.)

* Caçador e pioneiro norte-americano, famoso pela exploração e colonização da área que viria a ser o Kentucky. (N. da E.)

* National Recovery Administration, um dos órgãos do governo que promovia a recuperação econômica durante a Grande Depressão. (N. do T.)

*Seabees são uma unidade da marinha norte-americana, formada durante a Segunda Guerra Mundial, que cuida de projetos de construção. (N. da E.)

*Cidade de minas de carvão no estado da Pensilvânia, de onde saíram muitos seabees, pois o carvão se esgotou na época da guerra. (N. da E.)

* Refrigerante norte-americano, hoje pouco consumido. (N. da E.)

* O irmão Marx que era mudo. (N. da E.)

* Letra trocada, cantada com sotaque italiano: Quando a lua bate no seu beiço como um grande pedaço de bosta, é o amor. (N. da E.)

 

 

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