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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRÔNICAS I de Luís Fernando Veríssimo
CRÔNICAS I de Luís Fernando Veríssimo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRÔNICAS I

Luís Fernando Veríssimo

 

                           Índice

 

           A ALIANÇA

           A AUDÁCIA

           A IMPONTUALIDADE DO AMOR

           A NORMALIDADE E O CAOS

           A PESSOA ERRADA

           A TEORIA DA TOUPEIRA

           A VELOCIDADE DO AMOR

           A VERDADE

           A VOZ DA FELICIDADE

           ALÍVIO

           ANTES E DEPOIS

           ARMÁRIO

           ATÉ QUE PONTO É PRECISO AMAR ALGUÉM

           BEM CAPAZ

           CALMA

           CLIC

           COISAS DE UM CORAÇÃO APAIXONADO

           CONTO ERÓTICO nº2

           CONTO POLICIAL PSICOLÓGICO

           CUIDADO COM O QUE VOCÊ PEDE

 

 

                   A ALIANÇA

 

Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.

Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

— Você não sabe o que me aconteceu!

 

— O quê?

 

— Uma coisa incrível.

 

— O quê?

 

— Contando ninguém acredita.

 

— Conta!

 

— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

 

— Não.

— Olhe.

E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

— O que aconteceu?

E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

— Que coisa - diria a mulher, calmamente.

— Não é difícil de acreditar?

— Não. É perfeitamente possível.

— Pois é. Eu...

— SEU CRETINO!

— Meu bem...

— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

— Mas, meu bem...

— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha! E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:

— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

— O mais importante é que você não mentiu pra mim. E foi tratar do jantar.

 

 

                   A AUDÁCIA

 

Quem o Lula pensa que é, tomando Romanée-Conti? Gente! O que é isso? Onde é que estamos? Romanée- iiiiiiiiiiiiiii Conti não é pro teu bico não, ó retirante. Vê se te enxerga, ó pau-de-arara. O teu negócio é cachaça. O teu negócio é prato-feito, cerveja e olhe lá. A audácia do Lula!

 

Hoje tomam Romanée-Conti, amanhã vão querer o quê? No mínimo se achar iguais a nós. Pedir os mesmos direitos. Viver como a gente, que tem berço, que tem classe, que tem bom gosto e portanto merece o melhor. E nós sabemos como isso acaba. Logo, logo vão estar querendo subir pelo elevador social.

 

O Lula tomando Romanée-Conti... Ora faça-me o favor. Que coisa grotesca. Que coisa ridícula. Que acinte. Que escândalo. E que desperdício. Vai ver ele não sabe nem pronunciar o nome, quanto mais apreciar o sabor. Vai ver derramou um pouco pro santo, na toalha. Romanée-Conti não é pra gentinha, não, Lula. As coisas boas da vida são para as pessoas finas do mundo, não pra pé-rapado que bota gravata e acha que é doutor. Muito menos pra pé-rapado brasileiro.

 

Está bom, foi só um gole. Mas é assim que começa. Hoje tomam um gole de Romanée-Conti, amanhã estão com delírio de grandeza, pedindo saneamento básico, habitação decente, oportunidade de trabalho e até — gentinha metida a grande coisa não sabe quando parar — mais saúde pública, mais igualdade e caviar. Enfim, essas coisas que intelectual comunista põe na cabeça deles. Sim, porque a índole natural da nossa gentinha, em geral, é boa. Se pudessem escolher, escolheriam angu aguado e vinho Boca Negra, coisas autênticas, às vezes mortais, mas pitorescas. Como eles, que até hoje nunca tinham incomodado ninguém, que até hoje conheciam o seu lugar. Agora, depois da gentinha provar Romanée-Conti, ninguém sabe o que pode acontecer neste país. Deram álcool para os índios! Nenhum branco está mais seguro.

 

O Lula tomando Romanée-Conti... É o cúmulo. É uma inversão completa dos valores sob os quais nos criamos, segundo os quais se Deus quisesse que os pobres tomassem vinho de rico daria uma ajuda de custo. É o fim de qualquer hierarquia social, portanto o caos. Ainda bem que ainda existem patriotas alertas para denunciar o ridículo, o acinte, o escândalo, e chamar o Lula de volta à humildade. Para mandar o Lula se enxergar.

 

Sim, porque hoje é Romanée-Conti e amanhã pode ser até a Presidência da República. Gentinha que não conhece o seu lugar é capaz de tudo.

 

Surpreendente não foi, apenas, a quantidade de pessoas que levaram a sério as palavras de Veríssimo. Mais surpreendente foi o apoio que Veríssimo recebeu de alguns, concordando com o que foi escrito.

 

"Quando o leitor não entende o que o jornalista escreveu, a culpa é sempre do jornalista. Peço desculpa a quem não entendeu a intenção da coluna. O alvo era o preconceito social implícito na reação desmedida ao fato do Lula ter tomado um bom vinho. Talvez tenha faltado o aviso "Atenção: ironia". De qualquer jeito, culpa minha."

 

 

                     A IMPONTUALIDADE DO AMOR

 

Você está sozinho. Você e a torcida do Flamengo. Em frente à tevê, devora dois pacotes de Doritos enquanto espera o telefone tocar.

Bem que podia ser hoje, bem que podia ser agora, um amor novinho em folha.

- Trimmm! Trimmm! - É a sua mãe... ou engano (quem mais poderia ser?).

Amor nenhum faz chamadas por telepatia. Amor não atende com hora marcada. Ele pode chegar antes do esperado e encontrar você numa fase "galinha", sem disposição para relacionamentos sérios. Ele passa batido e você nem aí.

Ou pode chegar tarde demais e encontrar você desiludido da vida, desconfiado, cheio de olheiras. O amor dá meia-volta, volver. Por que o amor nunca chega na hora certa? Agora, por exemplo, que você está de banho tomado e camisa jeans? Agora que você está se achando bonito? Agora que você está empregado? Agora que você pintou o apartamento, ganhou um porta-retrato e começou a gostar de jazz? Agora que você está com o coração às moscas e morrendo de frio?

O amor aparece quando menos se espera e de onde menos se imagina.

Você passa um ano inteiro hipnotizado por alguém que nem lhe enxerga e mal repara em outro alguém que só tem olhos para você.

Sentindo-se um ET perdido na cidade grande, você busca refúgio numa locadora de vídeo, sem prever que ali mesmo, na locadora, poderá encontrar a pessoa que dará sentido à sua vida. O amor é como tesourinha de unha: nunca está onde a gente pensa. O jeito é direcionar o radar para norte, sul, leste e oeste. Seu amor pode estar no corredor de um supermercado, pode estar impaciente na fila de um banco, pode estar pechinchando numa livraria, pode estar cantarolando sozinho dentro de um carro. Pode estar aqui mesmo, no computador, dando o maior mole. O amor está em todos os lugares, talvez você não o procure direito. A primeira lição está dada: o amor é onipresente. Agora a segunda: o amor é imprevisível. Jamais espere ouvir "eu te amo" num jantar à luz de velas, no dia dos namorados. Ou receber flores logo após a primeira transa. O amor odeia clichês. Você vai ouvir "eu te amo" numa terça-feira, às quatro da tarde, depois de uma discussão, ou quando você menos esperar. E as flores vão chegar num dia qualquer apenas para informar-lhe como você é especial para alguém. Assim... sem um motivo ou data especial. Passe essa mensagem para outras pessoas. Pode ser que alguém esteja precisando ouvir algo reconfortante... Ou mesmo para aqueles que já encontraram o Amor, apenas para lembrá-los de valorizá-lo ainda mais. Espalhe que o amor não é banal. E que, embora estejam distorcendo o sentido verdadeiro dele nos tempos de hoje, ele existe e é o ingrediente mais importante da vida, a própria porção mágica da Felicidade.

 

 

                  A NORMALIDADE E O CAOS

 

Se entendi bem a lógica do momento, a situação do país é tão grave que seria temerário entregá-lo a qualquer outra facção que não a responsável pela situação ter ficado tão grave. Algo na linha do imperativo doméstico que a gente ouvia da mãe: quem sujou que limpe. Mas como os que sujaram não reconhecem que sujaram - pelo contrário, identificam-se como guardiões de uma normalidade ameaçada pela vitória da oposição - a analogia não vale.

 

Qual é exatamente o "caos" que viria com a eleição do Lula? Crise financeira, estagnação econômica, desemprego, um clima social explosivo? Isso tudo já tem. Essa é a normalidade ameaçada. Até o pior efeito previsto de uma mudança de modelo, a fuga do capital especulativo, já começou, e o que o espantou não foi a cara feia do Lula, mas o reconhecimento de que esse modelo não se sustenta. O pânico com a possibilidade de um calote não vem do medo da "esquerda", que no poder não seria nem burra nem suicida, mas do tamanho da dívida, e o que tornou a dívida terrível foi a política de dependência total adotada pelo atual governo . Muito mais assustador - a longo prazo, até para os especuladores - do que a perspectiva de uma mudança deveria ser a perspectiva da continuação deste caminho sem alternativa para o desastre.

 

Mas tal é o domínio do pensamento econômico hegemônico sobre a nossa mente colonizada, que ele consegue até definir conceitos que a realidade em volta desmente, como os de "normalidade" e "caos". Essa guerra civil permanente no meio da qual a gente vive não é o caos. Ou é um caos perfeitamente normal. A seriedade e a sensatez que uma aventura esquerdista supostamente destruiria são representadas pelos índices de desenvolvimento social que elas alcançaram.

 

Escolha qualquer um: saneamento básico, habitação, energia... Depois de oito anos de dependência total, ficamos dependentes até do vocabulário e dos valores do capital financeiro, como caddies miseráveis que adotam os hábitos dos ricos para os quais carregam o saco de golfe. A conveniência do mercado especulativo se tornou o nosso parâmetro de normalidade, e qualquer alternativa ao seu domínio, o nosso parâmetro de terror.

 

 

                   A PESSOA ERRADA

 

Pensando bem, em tudo o que a gente vê, vivência, ouve e pensa, não existe uma pessoa certa pra gente. Existe uma pessoa que, se você for parar pra pensar é, na verdade, a pessoa errada. Porque a pessoa certa faz tudo certinho. Chega na hora certa, fala as coisas certas, faz as coisas certas, mas nem sempre a gente tá precisando das coisas certas. Aí é a hora de procurar a pessoa errada. A pessoa errada te faz perder a cabeça, fazer loucuras, perder a hora, morrer de amor. A pessoa errada vai ficar um dia sem te procurar. Que é pra na hora que vocês se encontrarem a entrega ser muito mais verdadeira. A pessoa errada, é na verdade, aquilo que a gente chama de pessoa certa. Essa pessoa vai te fazer chorar, mas uma hora depois vai estar enxugando suas lágrimas. Essa pessoa vai tirar seu sono, mas vai te dar em troca uma noite de amor inesquecível. Essa pessoa talvez te magoe. E depois te encha de mimos pedindo seu perdão. Essa pessoa pode não estar 100% do tempo ao seu lado, mas vai estar 100% da vida dela esperando você. Vai estar o tempo todo pensando em você. A pessoa errada tem que aparecer pra todo mundo porque a vida não é certa. Nada aqui é certo. O que é certo mesmo, é que temos que viver cada momento, cada segundo. Amando, sorrindo, chorando, emocionando, pensando, agindo, querendo, conseguindo. E só assim é possível chegar àquele momento do dia em que a gente diz: "Graças à Deus deu tudo certo". Quando na verdade tudo o que Ele quer é que a gente encontre a pessoa errada. Pra que as coisas comecem a realmente funcionar direito pra gente.

 

 

                   A TEORIA DA TOUPEIRA

 

No vocabulário da espionagem, ou pelo menos dos livros de espionagem, "mole", ou toupeira, é o agente infiltrado na hierarquia inimiga com a tarefa de subir discretamente até atingir um posto em que pode causar o máximo dano, e só então agir. A teoria da toupeira aplicada à atual situação nacional começa com uma hipotética reunião em Santiago, durante o governo Allende. Dois exilados marxistas brasileiros, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, recebem a visita de um tal, digamos, Molokov, recrutador da KGB disfarçado de cozinheiro na embaixada soviética no Chile. O três acertam o plano a ser seguido no Brasil, onde a conversão para o comunismo não será como no Chile, e exigirá um trabalho longo e meticuloso. Corta para março de 2002. Cardoso e Serra atingiram postos dentro da hierarquia brasileira jamais sonhados pelos seus controladores comunistas. Um é presidente da República, o outro é o candidato oficial à sua sucessão. Chegou a hora de agirem. Durante o governo Cardoso, uma fingida predileção pelo modelo econômico neoliberal e pela submissão aos Estados Unidos só serviu para desmoralizar o neoliberalismo e a receita americana, pois os índices sociais só pioram. Na pasta da Saúde, Serra, solertemente, cria condições para a volta de doenças epidêmicas, havendo até a suspeita de aliciamento de mosquitos, o que aumenta a revolta da população. Dando a impressão de que era usado pela direita autêntica, do PFL, numa aliança simbolizada pela presença de Marco Maciel - cujo formato, num toque talvez inconsciente de ironia, lembra o mapa do Chile - na sua Vice-Presidência, Cardoso na verdade trabalhou para a sua eliminação como opção política, numa manobra que culminou com o aniquilamento da sua candidata anunciada, Roseana Sarney, num complô urdido pelo ministro da Justiça, Aloysio Nunes, outro agente comunista infiltrado. O cenário está pronto para o triunfo final do Plano Molokov: a eleição de Lula e a comunização do Brasil. (O triunfo só não seria festejado pelo próprio Molokov, hoje um hipotético concessionário do McDonald's em Moscou).

Outra versão da teoria da toupeira é igual a esta, a não ser por um detalhe.

Por trás de tudo não estão os comunistas, mas sim um consórcio de empreiteiras (OAS, Odebrecht, etc., os suspeitos de sempre) interessadas no trabalho de reconstrução do Brasil depois do inevitável ataque nuclear americano, com a vitória do Lula.

 

 

                   A VELOCIDADE DO AMOR

 

Quem não gosta de ser amado? Ser paparicado?

Receber atenção especial, presentinhos e beijinhos doces?

Quem não gosta de surpresinhas gostosas, beijo na boca e abraços apertados?

Quem de livre e espontânea vontade prefere a solidão a uma boa companhia?

Ora, todo mundo quer uma boa companhia e de preferência para todo o sempre.

Mas conviver com essa "boa companhia" diariamente por 3, 5, 10, 15, 25 anos é que é o difícil.

No começo dos relacionamentos e até 1 ano de vida amorosa, tudo são mais ou menos flores, (se o seu relacionamento tem menos de um ano e já é mais de brigas e discussões, caia fora dessa fria).

Não adianta você dizer que depois de três meses apenas que "encontrou o amor de sua vida", porque o amor precisa de convivência para ser devidamente testado.

Nesse mundo maluco e agitado, as pessoas estão se encontrando hoje, se amando amanhã e entrando em crise depois de amanhã.

Uma coisa frenética e louca que tem feito muita gente, que se julgava equilibrada, perder os parafusos e fazer muita besteira.

Paixão, loucura e obsessão, três dos mais perigosos ingredientes que estão crescendo nos relacionamentos de hoje em dia por causa da velocidade das informações e o medo de ficar sozinho.

As pessoas não estão conseguindo conviver sozinhas com seus defeitos, vícios e qualidades, e partem desesperadamente para encontrar alguém, a tal da

alma gêmea, e se entregam muitas vezes aos primeiros pares de olhos que

piscam para o seu lado.

Vale tudo nessa guerra, chat, carta, agência, festas e até roubar o parceiro de alguém. É uma guerra para não ficar sozinho.

Medo? Com medo de se encarar no espelho e perceber as próprias deficiências?

Com medo de encarar a vida e suas lutas?

Então a pessoa consegue alguém (ou acha que está nascendo um grande amor), fecha os olhos para a realidade e começa a viver um sonho, trancado em si mesmo, nos quartos do seu egoísmo, a pessoa transfere toda a sua carência para o(a) parceiro(a), transfere a responsabilidade de ser feliz para uma pessoa que na verdade ela mal conhece.

Então, um belo dia, vem o espanto, a realidade, o caso melado, o "falso amor" acaba, e você que apostou todas as suas fichas nesse romance fica sem amor e sem eira nem beira, e o pior: muitas vezes fica sem vontade de viver.

Pobre povo desse século da pressa!

Precisamos urgentemente voltar o costume "antigo" de "ter tempo", de dar um tempo para o tempo nos mostrar quem são as pessoas.

Namorar é conhecer, é reconhecer, é a época das pesquisas, do reconhecimento...

Se as pessoas não se derem um tempo, não buscarem se conhecer mais, logo em breve teremos milhares de consultórios lotados de "depressivos" e cemitérios cada vez mais cheios de suicidas", seres cansados de si mesmos...

Faça um bem para si mesmo e para os outros, quando iniciar um relacionamento procure dar tempo para tudo: passeie muito de mãos dadas, converse mais sobre gostos e preferências, conheça a família e mostre a sua, descubra os hábitos e costumes. Parece careta demais?

Que nada, isso é a realidade que pode salvar o relacionamento e muitas vidas.

Pense nisso e se gostar, passe essa mensagem para frente quem sabe se juntos, não ajudamos alguém carente de amor a encontrar um motivo para ser feliz?

Muita pretensão? Não, só vontade de te ver feliz.

Eu acredito em você! E acredito no amor que faz bem.

 

 

                   A VERDADE

 

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:

- Agora me lembro, não era um homem, eram dois.

E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem, e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:

- Então está com o terceiro!

Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram, e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.

- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou desfalecida - gritaram os aldeões. - Matem-no!

- Esperem! - gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. - Eu não roubei o anel. Foi ela quem me deu!

E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.

O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo "Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor". E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.

Todos se viraram contra a donzela e gritaram: "Rameira! Impura! Diaba!" e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.

Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:

- A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?

O pescador deu de ombros e disse:

- A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.

 

 

                   A VOZ DA FELICIDADE

 

- Alô?

- Aqui fala a Voz da Felicidade. Quem ffala aí?

- Como?

- Aqui fala a Voz da Felicidade. A voz que leva a alegria ao seu dia-a-dia. Amaro Amaral, o rei do dial. O que está nas ondas e não é surfista, está no fio e não é equilibrista. O que leva a sorte ao seu lar pelo ar.

- Eu não estou entendendo...

- Como é o seu nome?

- É... é...

- Você não sabe o seu nome? Já vi gentee mal-informada, mas a senhora leva o prêmio, hein?

- Não, é que...

- Não leve a mal. É Amaro Amaral, o hommem do coisa e tal. Alegria não paga imposto. Diga lá. Já lembrou o seu nome?

- É Maria.

- A da sapataria? Estou brincando. Coissa e tal. Bom-dia, dona Maria!

- Bom-dia. Eu...

- Quando é que a mulher tira a roupa maais depressa?

- O quê?

- É uma charada, dona Maria. Responda nnum minuto e ganhe um colchão Celeste, nuvem anatômica. O relógio está correndo. O relógio está fazendo Cooper. A senhora tem 40 segundos.

- É que... Estou meio...

- Trinta segundos, dona Maria. O relógiio foi correndo até a esquina e já está voltando. A senhora estava dormindo, dona Maria? A essa hora? Que voz de sono! O sol está brilhando e Amaro Amaral está cantando. "O sole mio, e coisa e tal..." Está bem, dona Maria, eu paro. Como é, e a charada?

- Eu...

- Vou lhe dar outra chance de ganhar umm colchão Celeste, nuvem anatômica, onda dá para dormir até de olhos fechados. Já que a senhora gosta tanto de dormir, não é, dona Maria? Estou brincando. Posso repetir, dona Maria?

- Sim, é que...

- Quando é que a mulher tira a roupa maais depressa? Cuidado com o que a senhora vai responder, dona Maria. Este é um programa de família.

- Programa?

- Nós estamos no ar, dona Maria. A Voz da Felicidade, com Amaro Amaral, o baixinho alto astral. Diga lá. A senhora tem mais um minuto. Acorda, dona Maria!

- É que eu estou meio zonza. Tomei uns comprimidos...

- O que é isso, dona Maria? Alegria nãoo se compra em farmácia. Coisa e tal. E a charada?

- Tomei o vidro inteiro. Queria me mataar.

- Não me diga isso, dona Maria! Que coiisa feia. O mundo é tão bom.

- Não é não.

- Dona Maria, me dê o seu endereço que eu vou mandar um médico aí.

- Não, eu...

- Olha aí, produção. Vamos checar o númmero de telefone da dona Maria e descobrir o endereço dela. Dona Maria, por que a senhora fez isso? A senhora tem família, dona Maria? Como é o seu nome todo?

- Solidão...

- Maria Solidão. Olha aí, família Soliddão, vamos dar uma mão.

- Há um ano que eu espero esse telefonee tocar. Um ano. Hoje ele toca e...

- É a Voz da Felicidade, dona Maria, Ammaro Amaral, seu amigo matinal. Dona Maria, a senhora está me ouvindo?

- Mais ou menos.

- Não desligue, dona Maria! Nós vamos aajudá-la. Atenção, dona Maria. Sensacional. Acabam de me passar um bilhete do patrocinador dizendo que a senhora não precisa responder a charada. Já ganhou o supercolchão Celeste, nuvem anatômica. Veja só o que a senhora ia perdendo, dona Maria. O mundo é bom.

- Um ano sem tocar...

- Alô, dona Maria. Para onde a gente maanda o colchão? Eu mesmo vou aí entregar o colchão, dona Maria. Amaro Amaral, seu amigo matinal. Coisa e tal. Nos dê seu endereço que...

- Solidão...

- Atenção. Acabo de ser autorizado peloo meus patrocinadores a revelar a resposta da charada. A senhora vai saber a resposta da charada e ainda ganha um super Celeste, nuvem anatômica, no mole. Tome nota dona Maria. Não desligue.

- Um ano... Nada... Ninguém...

- Não desligue, dona Maria. Mas ainda nnão descobriram essa porcaria de endereço? Atenção, dona Maria. A charada era, quando é que a mulher tira a roupa mais ligeiro. A resposta é, quando começa a chover. A mulher vai correndo tirar a roupa do varal. Entendeu, dona Maria?

- Ahn...

- A mulher vai correndo... Alô, dona Maaria? Dona Maria?

- (Clic)

 

 

                   ALÍVIO

 

Um homem sente que acordou, mas não consegue abrir os olhos. Tenta se mexer, mas descobre que está paralisado. Começa a ouvir vozes.

 

- Coitado....

 

- Olha a cara. Parece que está dormindo...

 

Sente cheiro de velas. Será que...?

Outras vozes:

 

- É. Descansou.

 

- Ninguém esperava. Tão saudável.

 

- Coitado...

 

As vozes parecem conhecidas. Ele começa a entrar em pânico. Concentra toda a sua força em abrir os olhos. Não consegue. Tenta mexer uma das mãos. Um dedo! Nada. Meu Deus. Preciso mostrar que é um engano, que não morri. Vão enterrar um vivo. Ou será que não houve um engano? Morri mesmo. Estou ouvindo tudo, sentindo tudo, mas estou morto. Isto é horrível, isto é...

 

- Um homem tão bom...

 

- Grande caráter...

 

- Que marido.

 

- Vida exemplar...

 

O homem fica mais aliviado. Pode estar num velório. Mas, definitivamente, não é o seu.

 

 

                   ANTES E DEPOIS

 

Há os que passam todo o ano nas férias de todo o ano seguinte se recuperando delas - ou pensando em como pagá-las. Muitas vezes, mais importante do que as férias são o antes e o depois. Alguns se divertem tanto planejando suas férias que quase dispensam as férias. Outros vêem férias apenas como um pretexto para fotografar tudo o que puderem com a maior rapidez possível e só depois, mostrando os slides para os amigos, enxergarem onde andaram.

 

- Aquele sou eu com a Magali.

 

- E aquilo no fundo?

 

- No fundo? É o Oceano Atlântico. Não, o Pacífico. Ou será o Atlântico?

 

O antes e o depois. Muitas vezes é grande o contraste entre o que se diz antes das férias e depois das férias.

Por exemplo:

Antes: "Vou chegar em casa, botar meu pijama e passar trinta dias de papo para o ar. Só me mexendo para coçar o pé. Uma bebidinha, um churrasquinho, e deixar o tempo passar..."

Depois: "Como o tempo custou a passar! O dia inteiro sem fazer nada. Saco. Briguei com a família, briguei com todo mundo. Depois de uma semana nem eu me agüentava dentro de casa. Ainda bem que acabou. E não me falem em churrasco durante um ano!"

Antes: "Está tudo minuciosamente planejado. Reservas de hotel, conexões de vôos, fusos horários, tudo. Vai funcionar como um relógio".

Depois: "Como se não bastasse o extravio das duas malas que foram parar no Sri Lanka, o hotel que a agência nos reservou em Londres não existe mais. Agora é um parque de estacionamento. E por que ninguém me disse que na Europa é 4 horas mais tarde, não mais cedo? Passei uma semana jantando ao meio-dia e tomando café da manhã às 10 da noite. No mais foi tudo bem. Fora a perda dos passaportes e o assalto em Palermo".

Antes: "Vai ser sensacional rever a tia Idalina e os primos de Vitória depois de dez anos!"

Depois: "A tia Idalina ainda vá, mas o marido... Depois de dois dias nem podíamos nos olhar. E o desgraçado ainda recortava os artigos do Delfim. E os primos? Estão uns monstros! A mais velha, inclusive, é sadomasoquista".

Antes: "Ah! A praia, o mar, o sol..."

Depois: "Bicho-de-pé, queimaduras generalizadas, intoxicação alimentar, o Júnior quase se afogou duas vezes... E os preços!"

Antes: "Vamos pegar o carro e sair por aí, sem rumo".

Depois: "Quebrar o carro não foi nada. Pior foi ter que dormir três dias na casa de um caboclo maluco que dormia com uma mula chamada Doroti e dizia que era primo distante do diabo".

Antes: "Vamos acampar no mato. Um mês ao ar livre. Contato com a natureza. Isso é que é vida saudável!"

Depois: "Só para dar uma idéia: uma noite os mosquitos levantaram a Jandira do chão, com saco de dormir e tudo, e teriam levado ela para o mato se nós não tivéssemos segurado com força. Mas levaram a Kombi".

Antes: "Vou aproveitar para por em dia minha leitura.".

Depois: "Olha, comecei a ver Roda de Fogo, me interessei, acabei não lendo nada".

Antes: "Chego em Punta Del Este e vou direto para o cassino. Ganho uma bolada e pago todo o veraneio. Meu sistema não falha".

Depois: "Mande um dinheiro pt Sem tostão para pagar hotel et ameaçado prisão pt Urgente".

 

 

                   ARMÁRIO

 

Eu queria, senhora, ser o seu armário e guardar os seus tesouros como um corsário.

Que coisa louca: ser seu guarda-roupa!

Alguma coisa sólida circunspecta e pesada nessa sua vida tão estabanada.

Um amigo de lei (de que madeira eu não sei).

Um sentinela do seu leito com todo o respeito.

Ah, ter gavetinhas para suas argolinhas.

Ter um vão para seu camisolão e sentir o seu cheiro, senhora, o dia inteiro.

Meus nichos como bichos engoliriam suas meias-calças, seus soutiens sem alças, e tirariam nacos dos seus casacos, E no meu chão,como trufas, as suas pantufas...

Seus echarpes, seus jeans, seus longos e afins.

Seus trastes e contrastes.

Aquele vestido com asa e aquele de andar em casa. Um turbante antigo. Um pulôver amigo. Bonecas de pano. Um brinco cigano.Um chapéu de aba larga.

Um isqueiro sem carga.Suéteres de lã e um estranho astracã. Ah, vê-la se vendo no meu espelho, correndo.

Puxando, sem dores, os meus puxadores. Mexendo com o meu interior à procura de um pregador. Desarrumando meu ser por um prêt-à-porter...

Ser o seu segredo,senhora, e o seu medo.

E sufocar com agravantes todos os seus amantes.

 

 

                     ATÉ QUE PONTO É PRECISO AMAR ALGUÉM

 

Ela: Você me ama mais do que tudo?

Ele: Amo.

Ela: Paixão, paixão?

Ele: Paixão, paixão mesmo.

Ela: Mais do que tudo no mundo todo?

Ele: No mundo todo e fora dele.

Ele: Faz um teste.

Ela: Eu ou fios de ovos.

Ele: Você, fácil.

Ela: Daqueles com calda grossa, que a gente chupa o fio e a calda escorre pelo queixo.

Ele: Prefiro você.

Ela: Futebol.

Ele: Não tem comparação.

Ela: Você está caminhando, vem uma bola quicando, a garotada grita "Devolve tio" e você domina, faz dezessete embaixadas e chuta com perfeição.

Ele: Prefiro você.

Ela: Internacional e Milan em Tóquio pelo campeonato do mundo, passagem e entrada de graça.

Ele: Você vai junto?

Ela: Não.

Ele: Pela televisão se vê melhor.

Ela: Faz muito calor. Aí chove, aí abre o sol, aí vem uma brisa fresca com aquele cheiro de terra molhada, aí toca uma música no rádio e é uma nova do Paulinho. É Sexta-feira e a televisão anunciou um Hitchcock sem dublagem para aquela noite, e o Itamar está dando certo.

Ele: Você.

Ela: Voltar à infância só pra poder pisar na lama com o pé descalço e sentir a lama fazer squish entre os dedos. Ele: Você, longe.

Ela: A Sharon Stone telefona e diz que é ela ou eu. Ele: Que dúvida. Você.

Ela: Cheiro de livro novo. Solo de sax alto. Criança distraída. Canetinha japonesa. Bateria de escola de samba. Lençol recém-lavado. Hora no dentista cancelada. Filme com escadaria curva. Letra do Aldir Blanc. Pastel de rodoviária. Ele: Você, você, você, você, você, você, você, você, você e você, respectivamente.

Ela: A Sharon Stone telefona novamente e diz que se você se livrar de mim ela já vem sem calcinha.

Ele: Desligo o telefone.

Ela: Fama e fortuna. A explicação do universo e do mercado de commodities, com exclusividade. A vida eterna e um cartão de crédito que nunca expira.

Ele: Prefiro você.

Ela: Uma cerveja geladinha. A garrafa chega estalando. No copo, fica com um quarto de espuma firme. O resto é ela, só ela, dizendo Vem.

Ele: Hummm...

Ela: Como, hummm? Ela ou eu? ... Silêncio de 5 segundos...

Ele: Qual é a marca?

Ela: Seu cretino!

 

 

                   BEM CAPAZ

 

     - Amélia - disse ela.

     - Como a mulher de verdade? - perguntou ele. Ela não entendeu.

     - Que mulher?

     - A da música. A que podia passar fome, mas não reclamava.

     - Bem capaz!

     - Ele a perdoou por não conhecer a música. Afinal, a música era mais antiga do que ele. A perdoaria por qualquer coisa. Ela era linda.

Ela tinha o queixinho pontudo.

     - És de Porto Alegre mesmo?

     - Passo Fundo.

     - Epa. De faca na bota.

     - Bem capaz!

     Conversaram a noite toda. Ou ele conversou. Ela ouvia. De vez em quando fazia "hm-hm". Quando se despediram, ele perguntou se poderia vê-la no dia seguinte.

     - Bem capaz!

     - Por que não?

     - Eu trabalho, né?

     - Depois do trabalho.

     - Tá.

     Viram-se no dia seguinte e nos dias depois. Encontraram-se todos os dias durante a semana. Ele apaixonado. Ela só ouvindo e de vez em quando fazendo "hm-hm". Até que um dia ele disse:

     - Quero dar um beijinho bem aqui.

E apontou para o queixinho pontudo.

     - Bem capaz!

     - Deixa.

     - Bem capaz!

     - Por que não?

     - Bem...

     - Não diz "bem capaz".

     - Digo o que eu quiser. Eu, hein?

     - Amélia, eu...

     Mas ela já tinha levantado da mesa. Ele estava pensando o quê? Que mandava nela? Só porque tinham saído juntos algumas vezes? Bem capaz!

     Ele só agüentou dois dias. No terceiro, telefonou. Pediu perdão.

Não sabia o que dera nele, para falar daquele jeito. Adorava o jeito dela falar. Poderia vê-la outra vez?

     Silêncio. Ela vai dizer "Bem capaz", pensou ele, e eu vou me suicidar. Ah, vou. Vou me atirar de cima do Viaduto. Afinal, sou um cara antigo.

     Mas ela disse: "Tá".

     Reencontraram-se, casaram-se e ainda ontem ela deu entrada no Pronto-Socorro com o queixo fraturado. Foi ele. Até que agüentou muito

 

 

                   CALMA

 

Realmente Não é a morte de ninguém que tenha um texto diferente, minha intenção ao criar este tópico foi para que as pessoas possam entrar pra ler como bibliotecas. Se acharem um texto que lhes agradasse que o salvaram em seu HD. Existe muita dúvida e ninguém aqui é perito na linguagem. O que existe é vontade de ler um texto engraçado, irônico, romântico, etc... Acredito que esta comunidade seja feita para admiradores do LFV, mas não para monopolizar a admiração. Os usuários podem gostar de outras coisas e inclusive se confundir, por ex. admirar muito o LFV e quando encontra um texto que lhes agrada tanto gostaria que fosse dele, muitas vezes não é. Sou admirador do trabalho de Luis Fernando Veríssimo e confesso que li pouca coisa dele, 2 ou 3 livros e por isso mantenho a humildade de ser educado com as pessoas. Já sou perito em outros assuntos, mas não tento me expor com ares de rei da cocada!

Este tópico é pra colar textos de LFV e não pra ser mal educado. Se houve o engano ninguém morre, e dem preferência para textos do nosso querido autor pis haverá mais chances de todos gostarmos dele. Agradecido pela atenção.

 

 

                     CLIC

 

Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e não sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo, depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma mulher.

— Aloa.

— Quem fala?

— Com quem quer falar?

— O dono desse telefone.

— Ele não pode atender.

— Quer chamá-lo, por favor?

— Ele esta no banheiro. Eu posso anotar o recado?

— Bate na porta e chama esse vagabundo agora. Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.

— Aloa.

— Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes. Eu preciso falar com ele, viu? É urgente.

— Ele já vai sair do banheiro.

— Você é a...

— Uma amiga.

— Como é seu nome?

— Quem quer saber?

O cidadão inventou um nome.

— Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.

— Primo do Amleto?

Amleto. O safado já tinha um nome.

— É. De Quaraí.

— Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.

— Pois é.

— Carol.

— Hein?

— Meu nome. É Carol.

— Ah. Vocês são...

— Não, não. Nos conhecemos há pouco.

— Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto.

De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço. — Eu também não sei o endereço dele.

— Mas vocês...

— Nós estamos num motel. Este telefone é celular.

— Ah.

— Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-comprou.

— Ele disse que comprou?

— Por que?

O cidadão não se conteve.

— Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou. De mim!

— Não acredito.

— Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e pergunta.

— O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo.

E Carol desligou de novo.

O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava.

 

Depois ligou.

— Aloa.

— Carol, é o Tobias.

— Quem?

— O Taborda. Por favor, chame o Amleto.

— Ele continua no banheiro.

— Em que motel vocês estão?

— Por que?

— Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do Amleto...

— Recém nos conhecemos.

— Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade. O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês saem juntos?

— Esta é a primeira vez.

— Vocês nunca tinham se visto antes?

— Já, já. Mas, assim, só conversa.

— E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe nada sobre ele. Não sabia que ele é de Quaraí. — Pensei que fosse goiano.

— Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...

— Não, não. Eu é que pensei.

— Carol, ele ainda está no banheiro?

— Está.

— Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia. Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí enquanto é tempo, Carol!

— Mas...

— Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a amizade. Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol. Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.

— Ele esta saindo do banheiro.

— Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu ligo para saber onde você está.

Clic.

Dez minutos depois, o cidadão liga de novo.

— Aloa.

— Carol, onde você está?

— O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.

— Carol, eu...

— Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você. Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira. Jurou que não vai fazer mais isso.

O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:

— Como ele vai devolver o telefone?

— Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá. — Carol, não...

Mas Carol já tinha desligado.

O cidadão precisou de mais cinco minutos para se recompor. Depois ligou outra vez.

—Aloa. Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em movimento.

— Carol, é o Torquatro.

— Quem?

— Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime. Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo? Esse telefone que agora tem suas impressões digitais. É meu! Esse salafrário roubou meu celular! — Mas ele disse que vai devolver na... — Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele. Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol. — Então você também mentiu!

— Carol...

Clic.

Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão, onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de homem.

— Amleto?

— Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do carro.

— Olha aqui, seu...

— Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel, o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo. Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o carro e desceu. Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela era?

— Só quero meu telefone.

— Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular.

 

Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa. E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel. Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?

— Quero meu celular de volta!

— Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios, impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...

— Ladrão.

— Executivo.

— Devolve meu...

Clic.

Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo. Telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente.

— Ahn?

— Quem fala?

— É o Trola.

— Como você conseguiu esse telefone?

— Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.

— Onde você está?

— Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é. Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.

— Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este telefone. Me diga onde você está que eu vou buscar.

— Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher. Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo...

— Onde você está? Eu quero saber onde!

— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha. Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...

 

 

                   COISAS DE UM CORAÇÃO APAIXONADO

 

Quem é que nunca teve um Marcelo, um Felipe, um Ricardo, um Júlio ou um Alexandre na vida? Tudo bem, pode ser uma Juliana, uma Ana Paula, uma Carina, uma Patrícia ou uma Aline...

Paquerar é bom, mas chega uma hora que cansa! Cansa na hora que você percebe que ter 10 pessoas ao mesmo tempo é o mesmo que não ter nenhuma, e ter apenas uma, é o mesmo que possuir 10 ao mesmo tempo! A "fila" anda, a coleção de "figurinhas" cresce, a conta de telefone é sempre altíssima. Mas e ai? O que isso te acrescenta?

Nessas horas sempre surge aquela tradicional perguntinha: Por que aquela pessoa pela qual você trocaria qualquer programa por um simples filme com pipoca abraçadinho no sofá da sala não despenca logo na sua vida???

Se o tal "amor" é impontual e imprevisível que se dane! Não adianta: as pessoas são impacientes! São e sempre vão ser! Tem gente que diz que não é... "Eu não sou ansioso, as coisas acontecem quando tem que acontecer."

Mentira! Por dentro todo ser humano é igual: impaciente, sonhador, iludido... Jura de pé junto que não, mas vive sempre em busca da famosa cara metade! Pode dar o nome que quiser: amor, alma gêmea, par perfeito, a outra metade da laranja... No fim dá tudo no mesmo. Pode soar brega, cafona... Mas é a realidade. Inclusive o assunto "amor" é sempre cafonérrimo. Acredito que o status de cafona surgiu porque a grande maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de viver um grande amor. Poucas pessoas experimentaram nesta vida a sensação de sonhar acordada, de dormir do lado do telefone, de ter os olhos brilhando, de desfilar com aquele sorriso de borboleta azul estampado no rosto... Não lembro se foi o "Wando" ou se foi o "Reginaldo Rossi" que disse em uma entrevista que se a Marisa Monte não tivesse optado pelo "Amor I love you" e que se o Caetano não tivesse dito "Tô me sentindo muito sozinho.." eles não venderiam mais nenhum disco.

Não adianta, o publico gosta e vibra com o "brega". Não adianta tapar o sol com a peneira. Por mais que você não admita: - Você ficou triste porque o Leonardo di Caprio morreu em Titanic" e ficou feliz porque a Julia Roberts e o Richard Gere acabaram juntos em "Uma Linda Mulher";

- Existe pelo menos uma música sertaneja ou um pagodinho que te deixe com dor de cotovelo;

- Quando você está solteiro e vê um casal aos beijos e abraços no meio da rua você sente a maior inveja;

- Você já se pegou escrevendo o seu nome e o da pessoa pelo qual você esta apaixonada no espelho embaçado do banheiro, ou num pedacinho de papel;

- Você já se viu cantando o mantra "Toca telefone toca" em alguma das sextas-feiras de sua vida, ou qualquer outro dia que seja;

- Você já enfiou os pés pelas mãos alguma vez na vida e se atirou de cabeça numa "relação" sem nem perceber que você mal conhecia a outra pessoa e que com este seu jeito de agir ela te acharia um tremendo louco;

- Você, assim como nos contos de fada, sonha em escutar um dia o tal "E foram felizes para sempre"

Bem, preciso continuar? Ok, acho que não... Negue o quanto quiser, mas sei que já passou por isso, e se não passou, não sabe o quanto esta perdendo...

"O problema de resistir a uma tentação é que você pode não ter uma segunda chance"

"Falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida coerência dos lúcidos."

 

 

                     CONTO ERÓTICO nº2

 

Sabe que você tem olhos lindos?

Estou sabendo agora.

Tem exatamente a cor de um abscesso peritoneal.

Você só está sendo gentil.

Gostaria de ver o resto do seu rosto.

É contra o regulamento.

Baixa a máscara só um pouquinho.

Não. Depois você pode me ver toda.

Toda?

Todo o rosto, quero dizer. O campo operacional está pronto. Bisturi. Você é nova aqui?

Comecei ontem.

Como é seu nome?

Não digo.

Só a primeira letra. Quero lhe fazer uma surpresa.

É "esse".

Olha só.

Mas você é doido!

Por quê? Posso fazer a incisão no formato que quiser.

E se o meu nome começasse com "agá"?

Aí, pobre do paciente. Perco o paciente mas não perco o galanteio. Pinça número 4.

Pinça número 4.

Sônia. So... Como?

O seu nome é Sônia.

Errou.

Errei mesmo. Acho que atingi uma artéria. Vamos ter que suturar. Você sabe costurar?

Isso é uma proposta? Upa, deixei cair a gaze.

Nervosa? Eu sei que sou irresistível, mas isso não é razão pra rechear o paciente. Sandra? Soraia?

Não. Sua mão...

Eu sei, eu sei. Há algo nas mãos de um cirurgião que excita as mulheres. Elas são sensíveis e ao mesmo tempo firmes e ágeis, como as de um concertista de violino e...

Não. Eu quis dizer, que fim levou a sua luva?

Ai, meu Deus. E agora, como é que eu vou descobrir a luva aí dentro?

Oh...

Que foi?

Quando você mergulhou a mão nua aí dentro. Me deu um arrepio. Tire a máscara. Tire toda a máscara.

 

 

                      CONTO POLICIAL PSICOLÓGICO

 

Idéia para um conto policial psicológico. Os contos policiais psicológicos são mais fáceis de escrever porque não precisam ter muita ação. Um homem chega em casa do trabalho e encontra a sua família toda morta. Mulher, filhos, sogra, empregada, cachorro. Todos assassinados. Não há sinais de arrombamento, nada na casa foi tocado. Salvo os mortos. À polícia, o homem diz que não tem idéia de quem possa ter cometido os crimes. Sua família era normal, não tinha inimigos. Levava uma vida normal. Ninguém tinha razão para matá-la. Ninguém.

- E o senhor? - pergunta o inspetor.

- Eu?

- O senhor não tinha uma razão para matar a sua mulher? E matar os outros para disfarçar?

- Que razão?

- Digamos que ela descobriu que o senhor tem uma amante chamada Jaqueline, com quem pretende viver, e estava criando obstáculos para a separação.

- Mas eu não tenho uma amante chamada Jaqueline.

- Vanusa?

- Não.

- Linda Maura?

- Também não!

- Você preparou o crime, colocando fortes doses de sonífero no café da manhã de todo o mundo, inclusive do cachorro. Assim, quando chegou em casa, às 5h20 da tarde e não às 6 como declarou, encontrou todos inconscientes e pôde matá-los tranqüilamente, usando o pesado troféu que ganhou num torneio de golfe em Maracaibo, em 1974.

- Minha secretária testemunhará que eu saí do escritório às 5 e meia. E eu nunca estive em Maracaibo. Nunca estive fora do Brasil. Aliás, eu nem jogo golfe!

- Como é o nome da secretária?

- Jorgete.

- Arrá. Então é ela a amante. Além de garantir o álibi, ela esteve na casa com o senhor. Não participou do crime, mas ajudou o senhor a se livrar do pesado castiçal usado na matança, que está neste momento ornamentando a mesa do seu pequeno apartamento decorado em estilo oriental, na zona norte.

- Não! A dona Jorgete mora na zona sul.

- No apartamento que você montou para ela, com um bar na sala, uma mesa de centro na forma de um rim e quadros de odaliscas seminuas nas paredes. Foi lá que vocês planejaram o assassinato, bebendo gim-tônica e ouvindo um disco do Mantovani, aquele com a capa branca.

- Não!

- Ray Conniff?

- Não!

- Os Golden Boys.

- Também não! A dona Jorgete não é minha amante e eu não montei um apartamento para ela. A dona Jorgete mora com a mãe.

- Dona Valdemira. Chamada "Vavá". Viúva de um coronel, Octacílio ou Amoroso. Ela também é contra o casamento de vocês e corre sério risco de vida.

- A dona Jorgete tem quase 60 anos!

- Qual era o plano? Depois do assassinato, de se livrarem do ferro elétrico usado na chacina, de chamarem a polícia e darem depoimentos falsos e de enterrarem os mortos, você e Margarida, a ex-Miss Brotinho de Jaguarão que conheceu na sala de espera de um tarólogo no centro, iriam viver nas terras dela em...

Nisso entrou um policial para dizer que o crime estava solucionado. Tinham prendido um maluco que confessara tudo. Se irritara com o cachorro e o perseguira até dentro de casa, onde matara a família toda com um pau. O homem foi solto, com pedido de desculpas. E semanas depois telefonou para a delegacia. Queria fala com o inspetor. Disse:

- Só por curiosidade. Na sua hipótese.

- Sim?

- Qual era o meu plano?

 

 

                       CUIDADO COM O QUE VOCÊ PEDE

 

- Pô, Luana.

- Não chega nem perto.

- Mas estamos só você e eu nesta ilha. E estaremos aqui pelo resto das nossas vidas.

- Vai ler o teu livro, vai. Você não disse que era o seu favorito?

- Mas eu já li o livro várias vezes.

- Então vai ouvir o teu disco e me deixa em paz.

- Com que aparelho? Nesta ilha não tem eletricidade. Nesta ilha não tem nada. Só coqueiros. E nós dois.

- A escolha foi sua. Ninguém me perguntou nada.

- Como é que eu ia saber que a pergunta não era hipotética? Que quando o cara me perguntou que livro, que disco e que mulher eu levaria para uma ilha deserta, não era pesquisa? Que ele ia interpretar não como sonho, mas como pedido?

- Você deveria ter desconfiado do turbante.

- Se eu soubesse, teria pedido mantimentos. Enlatados, champanhe. Um gerador. Algum tipo de moradia, com som e mordomia. Talvez um bar. E 30 anos menos.

- Azar.

- Pô, Luana. Só um beijinho.

- Não-ô.

Passa o tempo. Eu e Luana Piovani conseguimos sobreviver na ilha deserta, mas a duras penas. Dada a nossa diferença de idade e de preparo físico, é ela que trepa nos coqueiros pra pegar o coco e constrói a cabana rudimentar que nos abriga, com camas de capim separadas. Ela reluta, depois acaba cedendo aos meus insistentes pedidos e tira o sutiã, mas só para fazermos um anzol do fecho de metal. Conseguimos pegar alguns peixes, usando mariscos como isca. Como não temos fósforos, fazemos fogo usando o CD do Miles Davis com o Sonny Rollins e o Horace Silver para refletir a luz do sol num monte de gravetos e alimentando o fogo com as páginas de "O Grande Gatsby". Quando termina o papel, usamos capim seco, ou comemos o peixe cru mesmo. Improviso uma armadilha para roedores com o estojo de plástico do CD. Não pegamos nada. A ilha é tão deserta que não tem nem roedor. De noite, tento me aconchegar a Luana, para pelo menos nos protegermos do frio. Ela me repele.

- Não-ô.

Passam-se anos. Um dia, sinto Luana mordiscando a minha orelha. Me afasto. Mesmo se quisesse alguma coisa com ela, não poderia. Estou anêmico e enfraquecido. A dieta de coco, peixe cru e água de chuva não me fez bem. E a Luana também está péssima. A roupa esfarrapada deixa entrever quase todo o seu corpo curtido pelo sol e o vento, mas eu nem olho mais. Ela insiste na orelha. Diz que já que estaremos lá para sempre e não tem remédio... Eu me recuso. Se estivéssemos em qualquer outro lugar, e não lutando para sobreviver daquele jeito, talvez rolasse alguma coisa entre nós. Mas naquelas condições estressantes, numa ilha deserta... Pego o que sobrou de "O Grande Gatsby", as duas capas apodrecidas, e finjo que leio, para desencorajá-la.

- Pô, Luis Fernando.

- Azar - suspiro.

 

                                                                                L. F. Veríssimo  

 

 

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