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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DAVID COPPERFIELD / Charles Dickens
DAVID COPPERFIELD / Charles Dickens

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DAVID COPPERFIELD

 

VENHO AO MUNDO

Se hei‑de ser o herói da minha própria existência, ou se outrem deverá ocupar essa posição, é coisa que adiante se verá. Para começar a minha vida no seu verdadeiro início, direi que nasci (como mais tarde me explicaram, e eu acredito) numa sexta‑feira à meia‑noite. É curioso que o relógio principiou a badalar e eu simultaneamente desatei a chorar.

Considerando o dia e hora do meu nascimento, declarou a parteira (e outras mulheres da vizinhança, que tomaram interesse por mim antes que eu chegasse à idade do entendimento) que estava, em primeiro lugar, destinado a uma vida infeliz; segundo, que seria daqueles que vêem almas do outro mundo ‑ ambos os dons inevitavelmente atribuídos, segundo criam, a todas as crianças do sexo masculino ou feminino que tiveram a pouca sorte de nascer a tais horas de uma sexta‑feira.

Não preciso, neste primeiro capítulo, de comentar aquele augúrio, pois a minha história documentará melhor se semelhante predição é confirmada ou rebatida. Quanto à segunda parte do vaticínio, apenas observarei que não aconteceu até agora, a menos que isso ocorresse quando eu andava ainda ao colo. Mas não me queixo da demora, e, se mais alguém for titular da mesma prerrogativa, sinceramente lhe desejo que Deus o preserve dela.

Nasci com uma coifa [1], que foi anunciada para venda, nos jornais, pela módica quantia de quinze guinéus. Se as pessoas que tencionavam embarcar estavam falhadas de capitais naquela altura, ou se lhes escasseava a fé, preferindo coletes de cortiça, eis o que ignoro; tudo quanto sei é que só houve uma proposta, e esta de um advogado que se dedicava à corretagem, o qual ofereceu duas libras, metade em espécie metade em xerez, recusando‑se porém a pagar mais qualquer coisa pela isenção de naufrágio. De maneira que o anúncio foi retirado com prejuízo, porque quanto ao xerez a minha mãe de bom gosto também venderia o seu. E assim, da coifa, dez anos mais tarde fizemos uma rifa. Eram cinquenta bilhetes a meia coroa cada um; quem ganhasse esportularia ainda cinco xelins. Eu estive presente ao sorteio e lembro‑me de que me senti um tanto constrangido ao ver disporem desse modo de uma parte de mim mesmo. A coifa saiu a uma velha, que trazia um cabaz e que, cheia de relutância, apresentou os cinco xelins em moedinhas de cobre: como faltassem dois dinheiros e meio, levámos imenso tempo a querer demonstrar‑lho e consumimos nisso grandes esforços de aritmética. O caso é que a mulher nunca se afogou; morreu de morte natural, aos noventa e dois anos. Conta‑se, aliás, que se gabava de nunca ter estado sobre água, excepto numa ponte. Ao terminar o seu chá diário (jamais prescindia dele), costumava exprimir a sua indignação contra os marinheiros, que não faziam senão vagabundear. Em vão lhe objectavam que isso trazia muitas vantagens, entre as quais a importação do chá, ao que ela replicava, com mais ênfase, e muito convencida das suas razões: «Não deixam de vagabundear.» Para que não me acusem também do mesmo pendor, voltarei à vaca fria, isto é, às circunstâncias do meu nascimento.

Nasci em Blunderstone, no Suffolk. Sou filho póstumo. Meu pai fechara os olhos à luz do mundo seis meses antes de eu abrir os meus. Era uma coisa estranha (e ainda hoje me parece) pensar que ele nunca me tinha visto, e mais estranha ainda lembrar‑me de que o meu progenitor jazia sozinho sob uma laje branca do cemitério, na escuridão da noite, enquanto a nossa sala estava tépida, de fogão aceso, iluminada de velas e com as portas trancadas ‑ ideia que se me afigurava o cúmulo da crueldade.

Uma tia de meu pai, por consequência minha tia‑avó, de quem me ocuparei mais adiante, era o elemento principal da nossa família. A senhora Trotwood, ou senhora Betsey, como sempre lhe chamava a minha pobre mãe (quando conseguia dominar o terror que lhe causava essa tremenda personagem, o que raras vezes sucedia), fora casada com um homem muito novo, belo, mas não dessa beleza verdadeira que se diz vir do coração, pois era voz corrente que lhe infligia maus tratos; e até certa vez, durante uma disputa de natureza económica, deliberara resolutamente lançá‑la pela janela do segundo andar. Estas manifestações de incompatibilidade de génios levaram a senhora Betsey a querer descartar‑se do marido e, de facto, seguiu‑se a separação por mútuo consentimento. O homem embarcou para a índia, com os bens de que dispunha, e ali, dando‑se crédito a uma lenda divulgada na família, apareceu uma vez montado num elefante e acompanhado de um babuino, mas eu penso que devia ser um «babu» [2], ou uma begum [3]. Fosse como fosse, passados dez anos chegou a notícia da sua morte. Não se sabe como a viúva reagiu, pois logo após a separação retomou o apelido de solteira, comprou uma vivenda à beira‑mar e aí se instalou e se manteve em isolamento rigoroso, na companhia de uma criada.

Outrora meu pai fora o seu predilecto, segundo se dizia, mas o casamento do sobrinho ofendera‑a deveras, tanto mais que considerava minha mãe uma boneca de cera. Aliás nunca a tinha visto: sabia apenas que era uma rapariga de menos de vinte anos. Meu pai e minha tia não tornaram a encontrar‑se. Ele orçava pelo dobro da idade da mulher quando se casaram; era de constituição delicada e morreu no ano seguinte, seis meses antes, como já disse, da minha vinda ao mundo.

Tal era a nossa situação nessa tarde de sexta‑feira, que eu peço desculpa de julgar tão importante. Não pretendo ter sabido, nessa época, em que pé estavam as coisas, nem conservar a recordação, fundada no testemunho dos meus sentidos, do que vai agora seguir‑se.

A minha mãe achava‑se sentada junto do lume, enfraquecida e desalentada, olhando através das lágrimas e pensando na sua vida e na do pequenino ser que se anunciava para breve ‑ quando, erguendo os olhos, enquanto os enxugava, viu pela janela uma desconhecida adiantar‑se no jardim.

Ao segundo relance, a mãe pressentiu, sem sombra de dúvida, que era a tia Betsey. O sol crepuscular, incidindo por cima da vedação do jardim, punha em evidência a dama, que se aproximava da porta da casa com um passo tão firme e uma expressão tão rígida que não podia realmente pertencer a mais ninguém. Ao chegar, deu outra prova da sua identidade. Meu pai insinuara muitas vezes que ela quase nunca se comportava como um ente normal. Nesse momento, em lugar de sacudir a campainha, veio espreitar pela janela, premindo o nariz contra a vidraça, com tanta força que logo ficou achatado e lívido, consoante mais tarde contou a minha mãe. Nesta, o caso produziu tão grande abalo que eu sempre me convenci de que devo à tia Betsey a circunstância de haver nascido numa sexta‑feira.

Na sua agitação, a mãe levantou‑se e contornou a cadeira, refugiando‑se atrás dela, e a senhora Betsey, circunvagando o olhar lento e perscrutante, começou pelo lado oposto da saleta até se fixar na dona da casa: dir‑se‑ia uma cabeça de mouro num relógio de mesa. Então carregou o cenho e, como pessoa habituada a ser obedecida, fez um gesto para que se lhe abrisse a porta. A mãe cumpriu a ordem.

‑ É a viúva Copperfield, creio eu ‑ disse a visita. A ênfase dada à frase aludia naturalmente ao vestido de luto e ao aspecto geral da minha mãe, que retorquiu:

‑ Sou, sim.

‑ E eu a tia Trotwood ‑ continuou a dama. ‑ Com certeza que já ouviu falar de mim.

A mãe respondeu que já tivera esse prazer; sentiu, porém, que o não exteriorizara suficientemente.

‑ Pois aqui me tem em carne e osso.

Minha mãe curvou a cabeça e convidou a senhora Trotwood a entrar.

Depois penetrou com ela na saleta, porque na sala de visitas o fogão estava apagado; na realidade, o lume nunca mais ali se acendera desde o enterro de meu pai. Uma vez ambas sentadas, a tia conservou‑se calada, e a mãe, não podendo dominar‑se mais, principiou a chorar.

‑ Hum ‑ murmurou a outra. ‑ Deixe‑se disso. Então, então!

A mãe abandonou‑se largamente à sua dor e a tia acabou por ordenar:

‑ Tire a touca, minha filha. Quero vê‑la bem.

Muito assustada para recusar, a mãe obedeceu à estranha injunção, embora se não achasse muito disposta, e fê‑lo com tal nervosismo que o cabelo, bonito e abundante, lhe cobriu a cara.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou a senhora Trotwood ‑, é ainda uma criança.

Na verdade, tinha um ar extremamente juvenil, mesmo para a idade. Baixou a cabeça, como se fosse culpada, e disse, soluçando, que de facto lastimava ser uma viúva tão nova, e em breve, se sobrevivesse, uma mãe inexperiente. Na curta pausa que se seguiu, teve a sensação de que a tia lhe tocara no cabelo, sem muita ternura; mas quando se endireitou, viu a dama, de aspecto carrancudo, sentada com a orla da saia erguida, as mãos cruzadas sobre os joelhos e os pés poisados no guarda‑fogo.

‑ Por amor de Deus! ‑ bradou a tia de repente. ‑ Gralhas... porquê?

‑ Refere‑se ao nome da casa? ‑ perguntou a mãe.

‑ Gralhas, porquê? ‑ insistiu a primeira. ‑ Melhor seria «Casa das Gralhas», se a menina tivesse algum sentido prático da vida.

‑ Foi escolhido pelo meu defunto ‑ volveu a mãe. ‑ Quando comprámos a propriedade, ele pensou que devia haver gralhas por estes sítios.

Nesse instante o vento da tarde soprou com certa força entre os ulmeiros antigos do jardim, e as duas senhoras olharam para lá. As árvores dobravam‑se umas para as outras, quais gigantes que confiassem os seus segredos e, após uns momentos de repouso, foram de novo sacudidas por uma rajada violenta: agitaram as ramadas enormes, como se as últimas confidências fossem de facto demasiado atrozes para que pudessem estar em paz. Alguns velhos ninhos de gralhas, dos ramos mais altos, despedaçados já, pareciam destroços de naufrágio num mar tempestuoso.

‑ Onde estão as aves? ‑ inquiriu a senhora Trotwood.

‑ As quê?

Minha mãe pensava em coisas diferentes.

‑ As gralhas. Que é feito delas?

‑ Não tem havido desde que aqui estamos. Cremos... cria o meu marido... que deviam ser muitas, mas os ninhos estavam velhos e as aves abandonaram‑nos há bastante tempo.

‑ David Copperfield dos pés à cabeça! ‑ exclamou a tia. ‑ Baptizar uma vivenda de «Casa das Gralhas» quando não havia uma só! Apenas porque tinha visto os ninhos!

- David já morreu, e se a senhora veio para dizer mal dele...

Imagino que a minha pobre mãe teve a momentânea intenção de agredir a tia, que aliás a reduziria à impotência só com um braço, ainda que a sobrinha não estivesse nessa tarde em tamanha inferioridade física. Todavia esse desejo depressa lhe passou: chegara a levantar‑se da cadeira, mas tornou logo a sentar‑se e perdeu os sentidos.

Quando os recobrou, ou quando a senhora Trotwood a reanimou, descobriu esta última, de pé, à janela. As sombras do crepúsculo adensavam‑se cada vez mais, e elas mal se poderiam ver uma à outra sem a claridade débil do lume.

‑ E então? ‑ perguntou a tia, voltando para o seu lugar, como se tivesse ido apenas dar uma vista de olhos à paisagem. ‑ Para quando é que espera...?

‑ Sinto‑me tão trémula! ‑ murmurou, ofegante, a minha mãe. ‑ Não estou em mim... Tenho a certeza de que vou morrer.

‑ Qual! ‑ replicou a tia.‑Tome uma gota de chá.

‑ Meu Deus, acha que isso me faria bem?

A mãe mostrava uma expressão bastante desanimada.

‑ Sem dúvida que sim. Isso tudo é simplesmente imaginação. Como se chama a rapariga?

‑ Sei lá se será rapariga! ‑ redarguiu a interpelada, com o ar mais inocente do mundo.

‑ Não me refiro à criança ‑ declarou a senhora Trotwood ‑ mas à sua criada.

‑ Peggotty.

‑ Peggotty!‑repetiu ela, indignada. ‑ Quer dizer, menina, que alguém levou um dia um inocente à pia baptismal para lhe dar o nome de Peggotty?

‑ É o apelido de família. O meu marido tratava‑a assim porque ela tem o mesmo nome próprio que eu.

‑ Anda cá, Peggotty! ‑gritou a senhora Trotwood, que abrira a porta da saleta.‑Chá! A tua ama não se encontra muito bem. E depressa!

Proferiu esta ordem tão imperiosamente como se fosse de há muito uma autoridade naquela casa. Depois de ter enfrentado a estupefacta Peggotty, que avançava pelo corredor com uma vela na mão, a tia tornou a fechar a porta e sentou‑se outra vez, como antes, isto é, com os pés no guarda‑fogo, a saia arregaçada e as mãos cruzadas nos joelhos.

‑ Estava na dúvida de que a criança seja do sexo feminino? ‑ disse ela. ‑ Eu tenho o pressentimento de que sim. E agora, minha filha, logo que nasça essa pequena...

‑ Pode ser rapaz ‑ observou minha mãe, que tomou a liberdade de discordar.

‑ Repito‑lhe que tenho o pressentimento de que será rapariga ‑ insistiu a senhora Trotwood. ‑ Não me contradiga. E, logo que nasça a pequena, serei muito sua amiga, serei a sua madrinha. Quero que lhe dê o nome de Betsey Trotwood Copperfield. Não se confundirá com esta Betsey Trotwood, ninguém fará pouco dos seus sentimentos, coitadinha. Há‑de ser educada decentemente e estará de atalaia contra o perigo de depositar confiança em quem a não merecer. Incumbe‑me este cuidado.

No final de cada uma destas frases, ela fazia um movimento nervoso com a cabeça, como se se recordasse dos seus desgostos passados e quisesse evitar ser mais explícita a esse respeito. Pelo menos foi o que a minha mãe calculou, observando‑a à claridade trémula do lume. Aliás, estava bastante assustada com a presença de Betsey, deveras indisposta consigo mesma e demasiado inquieta para ver as coisas com exactidão ou para saber que linguagem empregar.

‑ E David era seu amigo, minha filha? ‑ perguntou Betsey, depois de breve silêncio e de haver cessado a pouco e pouco os gestos de cabeça. ‑ Entendiam‑se bem?

‑ Éramos felizes. Ele tratava‑me bem de mais. ‑‑Estragava‑a com mimos, hem?

‑ Excessos de mimos para quem se haveria de ver só neste triste mundo, onde não conta com mais ninguém ‑ respondeu a mãe, soluçando.

‑ Vamos, não chore! ‑ redarguiu Betsey. ‑ Não quadravam um com o outro, minha filha (se é que já houve esposos que se ajustassem). Por isso fiz a pergunta. Era órfã, julgo eu.

‑ Era.

‑ E governanta?

‑ Fui governanta de meninos numa casa que ele frequentava. Copperfield mostrou‑se amável, distinguia‑me muito e acabou por pedir a minha mão. Aceitei. De maneira que nos casámos ‑ concluiu naturalmente a mãe.

‑ Pobre pequena! ‑ volveu a outra, pensativa, olhando sempre carrancuda para o fogo. ‑ Sabe fazer alguma coisa?

‑ Não percebo... ‑ gaguejou a mãe.

‑ Por exemplo, tomar conta de uma casa.

‑ Creio que não tenho muito jeito... não tanto como desejava. Mas Copperfield ia‑me ensinando...

«Havia de saber muito!», murmurou Betsey com os seus botões.

‑ Se não fosse a desgraça daquela morte, penso que acabaria por aprender, pois ele tinha tanta paciência para me ensinar...

A mãe, comovida, não pôde prosseguir.

‑ Está bem, está bem! ‑ acudiu Betsey.

- Eu escrevia as contas numa agenda e o meu marido verificava‑as todas as noites! ‑ exclamou a mãe, outra vez desanimada e lacrimosa.

- Está bem, está bem ‑ repetiu a tia. ‑ Não chore mais.

- E nunca houve disputas a esse respeito ‑ recomeçou a mãe

de novo entregue à sua dor. ‑ A não ser que ele me censurava por fazer os três e os cincos muito parecidos e pôr hastes compridas e recurvas nos setes e nos noves...

- Veja lá não adoeça ‑ observou Betsey. ‑ Bem sabe que seria

mau tanto para si como para a sua filha. Deixe‑se de lamúrias!

Este argumento produziu certo efeito, se é que não foi o acréscimo de mal‑estar que fez cessar o choro. Seguiu‑se um intervalo de silêncio, cortado apenas, de tempos a tempos, pelas exclamações da senhora Trotwood, sempre sentada com os pés no guarda‑fogo. Até que disse:

‑ Sei que o David arranjara para si próprio uma renda vitalícia. E, para si, que conseguiu ele, minha filha?

‑ Teve a prudência e a bondade de garantir para mim a reversão de parte desse rendimento.

‑ Quanto?

‑ Cinco libras por ano.

‑ Podia ter sido pior ‑ comentou a tia.

O comentário era oportuno. Minha mãe estava tão mal que Peggotty, ao chegar com o tabuleiro do chá e as velas, e vendo num relance o estado da patroa (o qual Betsey não notara mais cedo, devido à escuridão que reinava na saleta), a transportou ao primeiro andar, ao quarto dela, a toda a velocidade; e mandou imediatamente o sobrinho, Ham Peggotty (há uns dias ali na casa, a ocultas da minha mãe, para o que desse e viesse), em busca do médico e da parteira.

Estes poderosos aliados ficaram enormemente perplexos quando, a poucos minutos de intervalo, se viram perante uma desconhecida de aspecto rebarbativo, sentada defronte do lume, com a touca enfiada no braço esquerdo e ocupada a tapar os ouvidos com bocadinhos de algodão. Peggotty ignorava tudo a respeito da senhora Trotwood (a mãe não fizera confidências), de forma que a sua presença na saleta constituía verdadeiro mistério. O facto de ter um pacote de algodão de que extraía os pedacinhos que Punha nas orelhas não diminuía a austeridade da sua pessoa.

O médico subiu ao andar superior e tornou a descer e, admitindo a possibilidade de ser obrigado a fazer demorada companhia à desconhecida, resolveu mostrar‑se cortês e sociável. Portou‑se como o mais dócil do seu sexo, o mais moderado dos homens. Deslizava de banda quando entrava num quarto ou dele saía, para ocupar sempre o menor espaço. Andava mais leve do que o Fantasma do Hamlet, e ainda mais lentamente. Punha a cabeça ao lado, em parte para se dissimular, por modéstia, em parte para aplacar toda a gente. Não basta dizer que seria incapaz de dirigir más palavras a um cão; nunca o faria, nem a um cão danado. Quando muito, empregaria uma palavra afável, ou metade dela, ou ainda menos, porque falava com a mesma lentidão que punha no mover‑se. Rude é que jamais seria, pela absoluta incapacidade de exteriorizar rudeza.

O doutor Chillip contemplou suavemente a senhora Trotwood, de cabeça inclinada, fez uma vénia curta, e disse, como se aludindo ao algodão e tocando de leve na orelha:

‑ Irritaçãozinha local, não é verdade?

‑ O quê?! ‑ exclamou ela, arrancando o algodão como quem tira uma rolha.

O médico ficou tão perturbado com aquela brusquidão (conforme contou mais tarde à minha mãe) que foi sorte não perder a serenidade. Limitou‑se a repetir, com brandura: ‑ Irritação local, minha senhora?

‑ Que disparate! ‑ repetiu a dama, que voltou a tapar os ouvidos.

E o doutor Chillip não teve outro remédio senão sentar‑se e olhar timidamente para o fogão, até que o chamaram do andar de cima. Passado um quarto de hora, regressou.

‑ Então? ‑ indagou Betsey, retirando o algodão do ouvido. ‑ Pois, minha senhora, a coisa vai, mas devagar.

A tia soltou uma interjeição desdenhosa e calafetou mais uma vez o ouvido.

Na verdade, na verdade, o doutor Chillip estava quase escandalizado; sim, do ponto de vista profissional, estava quase escandalizado. Todavia, sentou‑se e observou a minha tia perto de duas horas, enquanto ela contemplava o lume. Mas vieram outra vez chamá‑lo; daí a pouco regressava, e a senhora Trotwood, retirando o algodão do ouvido mais próximo do médico, perguntou:

‑ E agora?

‑ Fazem‑se progressos, minha senhora, se bem que lentos...

Betsey resmungou de uma maneira que Chillip considerou intolerável. Esteve prestes a perder as estribeiras, como depois confessou. Preferiu então ir sentar‑se na escada, ao escuro e numa corrente de ar, até que o viessem chamar de novo.

Ham Peggotty, que frequentava a escola oficial e era muito forte no catecismo, pelo que pode ser tomado como testemunha digna de fé, declarou no dia seguinte que, ao deitar a vista à saleta, uma hora depois daquele incidente, viu Betsey andar cá e lá no compartimento, muito agitada. Ao descobri‑lo, correu para ele, antes que o rapaz fugisse. Nessa ocasião ouviram‑se sons de vozes e de passos, que o algodão dos ouvidos não impedira de serem sentidos, visto que a dama o agarrou pelo pescoço, arrastando‑o no seu contínuo vaivém, sacudindo‑o, puxando‑lhe pelo cabelo, tapando‑lhe as orelhas como se se tratasse das suas; enfim, esfrangalhando‑o e maltratando‑o a valer. Isto foi confirmado pela própria tia, cerca da meia‑noite e meia hora, quando ele recuperou a liberdade. O rapaz estava vermelho como um tomate.

O brando doutor Chillip, em semelhante momento, seria incapaz de conservar rancor. Enfiou pela saleta, logo que lhe foi possível, e disse a Betsey em tom suavíssimo:

- Pois, minha senhora, tenho o prazer de a felicitar.

- De quê? ‑ volveu, bruscamente, a minha tia.

O doutor melindrou‑se outra vez com o ar intempestivo de Betsey; de forma que fez um leve cumprimento e esboçou o sorriso mais doce do mundo, a fim de amansar a dama.

‑ Fale, homem de Deus! ‑ ordenou ela.

‑ Sossegue, minha senhora. Já não há motivo para sustos. Tem‑se considerado quase milagroso o facto de a tia não o ter

abalado, para que ele dissesse o que tinha a dizer. Limitou‑se a mover a cabeça, porém num jeito que o descoroçoou.

‑ Pois, minha senhora ‑ prosseguiu Chillip, quando se achou capaz de falar ‑, tenho o prazer de lhe dar os meus parabéns. Está tudo acabado, e acabou bem.

Durante cerca de cinco minutos Chillip continuou o seu discurso e Betsey nunca deixou de o perscrutar.

‑ Como está ela? ‑ perguntou por fim, de braços cruzados e sempre com a touca enfiada num deles.

‑ Ficará restabelecida em pouco tempo; assim o espero ‑ replicou o médico. ‑ Tanto quanto se pode esperar de uma mãe jovem na triste situação em que esta se encontra. Não há inconveniente em a senhora ir agora visitá‑la. Até lhe fará bem.

‑ E ela? Como está? ‑ insistiu vivamente Betsey.

O doutor Chillip inclinou a cabeça um pouco mais e mirou a minha tia com um ar de pássaro atento.

‑ A criança ‑ acrescentou ela. ‑ Como vai a menina?

‑ Minha senhora ‑ respondeu o médico ‑ julguei que já soubesse. É um rapaz.

Betsey não disse nada. Pegou na touca pelas fitas, como uma funda, atingiu com ela a cara de Chillip, pô‑la na cabeça, saiu, e não tornou a aparecer. Dissipara‑se como uma fada descontente, ou como um desses seres sobrenaturais que a crendice popular considerava possíveis de serem vistos por mim. Nunca mais voltou!

Eu estava deitado na minha alcofa, e a minha mãe na sua cama. Contudo, a Betsey Trotwood Copperfield errava para sempre no país dos sonhos e das sombras, na região misteriosa donde eu viera. E a luz que incidia na janela do nosso quarto iluminava no exterior o que é o domínio terrestre de tantos peregrinos como eu e o montículo de cinzas daquele que fora outrora o meu progenitor.

 

COMEÇO A OBSERVAR

As primeiras imagens que se me impõem, quando olho para o passado, para o vazio da minha infância, são minha mãe com o seu belo cabelo e formas juvenis, e Peggotty, informe, mas de olhos tão sombrios que pareciam escurecer‑lhe o resto da cara, e de faces e braços tão rijos e corados que me admira não viessem as aves debicá‑los de preferência às maças.

Julgo ser capaz de me recordar dessas duas, tão próximas e encurtavam aos meus olhos, porque se curvavam, ajoelhadas, para o chão, no espaço em que eu corria, vacilante, de uma para a outra. Tenho presente na memória, sem poder distingui‑la da verdadeira lembrança, a impressão produzida pelo contacto do indicador de Peggotty quando ela mo apontava, conforme o seu costume ‑ um dedo que a costura calejara e que parecia um ralador de noz‑moscada.

Isto pode ser imaginação, mas eu penso que a nossa memória é capaz de recuar mais do que se supõe; creio também que há crianças dotadas de uma faculdade de observação tão exacta quanto extraordinária. Quem sabe se certos adultos, notáveis a esse respeito, mais não fizeram do que conservar aquela faculdade, em vez de a ter perdido? A frescura, docilidade, simpatia que neles se observam talvez sejam qualidades que lhes ficaram da infância.

Poderia recear que semelhante parêntese fosse um simples devaneio, mas a verdade é que aquelas conclusões são filhas da minha experiência. Ver‑se‑á desta narrativa que eu era uma criança observadora, ou que, já adulto, conservei íntegra memória da infância. É indubitável que reivindico estas duas qualidades.

Olhando para o passado, como dizia, as primeiras imagens que destrinço da confusão das coisas são a de minha mãe e a de Peggotty. De que mais me recordo? Vamos a ver.

Eis que dessa névoa surge a nossa casa: não é nova para mim, antes pelo contrário inteiramente familiar nas minhas mais remotas lembranças. No rés‑do‑chão está a cozinha de Peggotty: deita para um pátio, e no meio desse pátio, sobre uma estaca, um pombal sem pombas. A um canto fica uma casota de cão, mas também sem ocupante. E uma porção de galinhas que se me afiguram gigantescas, andando cá e lá ameaçadoras e cruéis. Há um galo que sobe a um poleiro para cantar e que parece dar pela minha presença quando eu o observo da janela‑ o que me faz tremer, porque o seu aspecto é feroz. Quanto aos gansos, que do outro lado do portão se aproximam de mim bamboleando‑se e de pescoço estendido, esses aparecem‑me em sonhos, como poderia suceder a um homem que estivesse rodeado de feras e sonhasse com leões.

Eis um corredor comprido ‑ enorme perspectiva para os meus olhos! ‑ que leva à cozinha de Peggotty e à porta da rua. Para este corredor deita um quarto de arrecadação, escuro, diante do qual, à noite, se tem de passar a correr, pois não sei o que pode haver no meio desse amontoado de tinas, jarros e caixas velhas de chá, se não estiver lá ninguém que segure uma vela acesa. Dali se evola um cheiro bafiento de sabão, conservas, pimenta, cera, café. Depois, há as duas salas: aquela em que nos instalamos à noite, minha mãe, eu e a criada (que nos faz companhia quando acaba o seu serviço e nós estamos sós), e a de cerimónia, que utilizamos aos domingos; é grande, mas não confortável. Reina aí uma atmosfera de luto, porque Peggotty me contou (não sei quando, mas há imenso tempo!) que nesta sala esteve o caixão de meu pai e as pessoas que o acompanharam, todas vestidas de preto. Foi nesse mesmo lugar que a mãe nos leu, um domingo, a Peggotty e a mim, como Lázaro ressuscitou dentre os mortos. E eu tive tanto medo que foi preciso virem tirar‑me da cama para me mostrar o cemitério tranquilo onde repousam os mortos nas suas campas, sob a solenidade do luar.

Não conheço em parte alguma erva mais verde do que a desse cemitério; nada que faça tanta sombra como essas árvores, nem maior calma do que a desses túmulos. Os rebanhos pastam por ali quando eu ajoelho, manhã cedo, na cama, num quartinho contíguo ao da minha mãe, para os poder contemplar. Ainda vejo a luz rubra incidindo no relógio de sol, e digo comigo mesmo: terá ele gosto em marcar outra vez as horas?

Agora o nosso banco na igreja, com o seu grande espaldar. Perto existe uma janela, donde se vê a nossa casa, Peggotty entretém‑se a contemplá‑la vezes sem conta, durante os ofícios matinais, pois gosta de se certificar de que não entra lá nenhum ladrão ou não rebentou nenhum incêndio. Mas, se ela se permite errar a vista, ofende‑se se eu me ergo no banco para deitar uma olhadela ao padre. Aliás, não o observo com insistência: estou habituado a vê‑lo sem aquela capa branca de que se reveste e assusta‑me a ideia de que censure a minha curiosidade. Quem sabe se vai interromper a cerimónia para me interrogar... e o que será de mim, neste caso? Bocejar, também não é recomendável; todavia tenho de fazer alguma coisa. Olho para minha mãe, que finge não dar por isso; encaminho o olhar para um rapazinho que está junto da nave, e que me faz caretas. Admiro o sol que entra pela porta aberta e descubro uma ovelha tresmalhada (não me refiro a um pecador, mas a um animal), que parece desejosa de penetrar no templo; convenço‑me de que, se a olhar mais demoradamente, serei tentado a falar, e que aconteceria então! Levanto a vista para as estelas funerárias da parede: diligencio pensar no defunto senhor Bodgers, desta paróquia, e no desgosto por que passou a senhora Bodgers, e nos médicos que o trataram inutilmente. Teriam chamado o doutor Chillip e seria este quem se confessou impotente? Em tal caso, que sentirá ao deparar‑se‑lhe aquele monumento, uma vez por semana? Desvio a vista do doutor Chillip (com a sua gravata branca dos domingos) para o púlpito. Que belo sítio para brincar, que fortaleza se faria daquilo. Se outro garoto subisse os degraus, para o ataque, atirar‑se‑lhe‑ia à cabeça o coxim de veludo com borlas. A pouco e pouco fecho os olhos e imagino ainda o sacerdote a entoar um cântico soporífico; depois deixo de o ouvir e por fim caio do assento com estrondo, e Peggotty leva‑me para fora, mais morto do que vivo.

Vejo agora o exterior da nossa casa, com as janelas de persianas nos quartos de dormir, abertas ao ar embalsamado, e os velhos ninhos de gralhas, esgarçados, ainda pendentes dos ulmeiros, no extremo do jardim da frente. Eis‑me entretanto no quintal das traseiras, além do pátio, onde fica o pombal sem pombas e a casota sem cão, autêntica tapada de borboletas, com a sua alta sebe e o portão de cadeado. Os frutos acumulam‑se nas árvores, maduros e mais perfeitos do que em nenhuma parte, e a mãe colhe‑os aqui e ali e mete‑os num cabaz, enquanto eu, a seu lado, como groselhas às escondidas procurando manter a impassibilidade. Levanta‑se um vento forte e, num momento, o Verão findou. Brinco à luz crepuscular, no Inverno, e dançamos na sala. Quando a minha mãe fica ofegante, senta‑se numa poltrona, a descansar; vejo‑a enrolar nos dedos os anéis lustrosos do cabelo e apertar a cintura. Ninguém, como eu, sabe quanto ela gosta de parecer bem e se orgulha de ser tão bonita.

O que acabo de dizer figura entre as minhas primeiras impressões. Creio também que tínhamos certo receio de Peggotty e que nos submetíamos à sua vontade na maior parte das coisas: isto agora já pertence às minhas primeiras opiniões, se é que lhes posso dar esse nome, e procede do que eu testemunhei.

Uma noite eu e Peggotty estávamos à lareira, sozinhos. Havia‑lhe lido um trecho acerca de crocodilos, e devia tê‑lo feito tão conspicuamente (ou a pobre criatura interessara‑se a valer) que, ao fim da leitura, recordo‑me de que ela conservava a impressão de que os crocodilos eram uma espécie de legumes. Estava cansado de ler e morto de sono; mas, tendo recebido como alta distinção a autorização para ficar acordado até que a mãe voltasse de uma visita a uma senhora da vizinhança, antes queria morrer no meu posto que ter de ir para a cama! Contudo o sono era tão grande que Peggotty me parecia crescer e inchar desmedidamente. Conservava os olhos abertos porque segurava as pálpebras com a ponta dos dedos, e observava fascinado a minha companheira no seu trabalho de costura. Via também o coto de vela de que se servia para encerar a linha, e a caixa em que guardava a fita métrica, e o dedal com que se protegia da agulha, e o estojo da costura que ostentava na tampa uma reprodução colorida da catedral de São Paulo, por sinal com a cúpula cor‑de‑rosa. Bem sabia que, se deixasse de olhar para qualquer destes objectos, o sono me dominaria por completo. ‑ Peggotty ‑ disse de súbito ‑ já foste casada?

‑ Meu Deus, menino Davy! ‑ replicou ela. ‑ Como se lhe meteu semelhante ideia na cabeça?

Mostrou, ao mesmo tempo, tal sobressalto que eu despertei de vez. Depois deixou de trabalhar e fitou‑me, puxando a linha em todo o seu comprimento.

‑ Mas afinal não casaste? ‑ insisti. ‑ Tu és bonita.

Era, decerto, uma beleza diferente da de minha mãe; mas, dentro do seu tipo, afigurava‑se‑me perfeita. Havia na sala um tamborete de veludo encarnado, no qual minha mãe pintara um ramalhete. O fundo desse tamborete e a tez de Peggotty apareciam‑me muito semelhantes, a não ser que a superfície do assento era macia e a pele da criada rugosa. Mas isto não importava.

‑ Bonita, eu menino? ‑ exclamou Peggotty. ‑ Isso é que não. Mas, quanto ao casamento, quem lhe meteu tal coisa na cabeça?

‑ Sei lá! Não se casa com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, não é verdade, Peggotty?

‑ Decerto que não ‑ respondeu ela em tom peremptório.

‑ Mas, se se casar com alguém que depois morre, pode‑se casar outra vez?

‑ Se houver vontade disso, menino. Há opiniões.

‑ E qual é a tua opinião, Peggotty?

Interrogava‑a olhando cheio de curiosidade, porque também ela me olhava curiosa.

‑ A minha opinião ‑ declarou por fim, desviando de mim a vista e recomeçando a costura ‑ é que eu, por mim, não me casei, menino Davy, e não espero fazê‑lo. É tudo quanto sei a este respeito.

‑ Não estás zangada, não? ‑ inquiri, após um intervalo de silêncio.

Supunha realmente que estava zangada, porque me respondera com secura. Mas enganava‑me, porque Peggotty descansou a agulha e abriu‑me os braços, apertando bem ao peito a minha cabeça encaracolada. Foi, de facto, um abraço forte, pois sendo roliça sempre que fazia qualquer esforço rebentavam‑lhe os botões do vestido. Precisamente dois deles saltaram para o outro canto da sala no momento em que ela me cingia.

‑ Agora leia‑me mais qualquer coisa a respeito dos «cracodi‑los», porque ainda não ouvi bastante.

Não percebi por que motivo Peggotty se mostrava tão ansiosa de voltar ao assunto dos crocodilos. Fosse como fosse, tornamos aos monstros; eu estava mais desperto do que nunca. Metemos, pois, os seus ovos na areia adusta, para os chocar; fugimos deles e retrocedemos, desconcertando‑os sem cessar, o que esses animais não podiam fazer devido à sua corpulência; perseguimo‑los na água, como indígenas, para lhes enfiar paus aguçados nas goelas; enfim, esgotámos o assunto, pelo menos eu; Peggotty, cismadora, espetou várias vezes a agulha na cara e nos braços.

íamos passar aos aligatores quando retiniu a campainha do jardim. Fomos abrir o portão: era a minha mãe, mais bonita do que nunca (ao que me pareceu) e acompanhada de um senhor de soberbo cabelo preto e suíças da mesma cor, pessoa que voltara connosco da igreja no domingo passado.

A mãe deteve‑se no limiar para me tomar nos braços e beijar, e o cavalheiro que a acompanhava declarou que eu era mais feliz do que um rei, ou algo neste género, porque neste momento sinto que a compreensão do adulto pretende vir em meu auxílio.

‑ Que significa isto? ‑ perguntei sobre o ombro de minha mãe. Ele afagou‑me a cabeça, mas, não sei porquê, não gostei da sua pessoa nem da sua voz, e diligenciei evitar, ciosamente, que a sua mão, ao tocar‑me, não tocasse na da minha mãe ‑ o que afinal aconteceu. Afastei‑a conforme pude.

‑ Oh, Davy!‑‑observou ela, em tom de censura.

‑ Lindo menino ‑ disse o cavalheiro. ‑ Não me admira a sua devoção filial.

Nunca eu vira antes tão belas cores nas faces da minha mãe. Ralhou‑me pela descortesia de que dera provas, e, abafando‑me com o seu xaile, agradeceu àquele senhor a atenção que tivera de a acompanhar a casa. Enquanto falava, estendeu‑lhe a mão, e, quando tocou na dele, parece‑me que me olhara de relance.

‑ Diga‑me boa‑noite, menino ‑ sugeriu, depois de haver tocado com os lábios na mão enluvada da minha mãe, facto que não me passara despercebido.

‑ Boa noite ‑ respondi.

‑ Sejamos bons amigos ‑ continuou ele, rindo. ‑ Venha uma mãozada.

A minha mão direita estava retida na da minha mãe, de forma que lhe apresentei a esquerda.

‑ Essa não, Davy! ‑ observou o cavalheiro, continuando a rir.

A mãe desembaraçou‑me, mas eu estava decidido a não obedecer, sempre pelo mesmo motivo; de maneira que conservei estendida a mão esquerda, que ele afinal apertou cordialmente, dizendo que eu era um bom camarada. E foi‑se embora.

Ainda o vejo virar‑se para trás, no jardim, e despedir dos seus olhos negros de mau agoiro um derradeiro olhar antes que a nossa porta se fechasse.

Peggotty, que não dissera uma palavra nem se movera, cerrou‑a imediatamente e nós fomos para a sala. A mãe, contra o seu hábito, permaneceu na outra extremidade em vez de vir sentar‑se na sua poltrona ao lado do fogão. E começou a cantar.

‑ Penso que foi uma noite agradável, minha senhora ‑ disse a criada, hirta de pé a meio da casa, com uma vela na mão.

‑ Obrigada, Peggotty, foi na verdade uma noite muito agradável ‑ respondeu a mãe em tom jovial.

‑ Gente diferente traz modificações divertidas ‑ insinuou Peggotty.

‑ Modificações bastante divertidas ‑ corroborou a patroa.

Peggotty continuava imóvel no meio da sala e a mãe recomeçara a cantar. Eu adormeci, se bem que o sono não fosse demasiado profundo para que deixasse de ouvir vozes, sem todavia, perceber o que diziam. Quando despertei desse torpor incómodo, vi a mãe e a criada lavadas em lágrimas, e falando.

‑ Um como este... não seria do agrado do senhor Copperfield ‑ participou a criada.‑por isso respondo eu!

‑ Meu Deus! ‑ volveu a minha mãe ‑ tu dás‑me volta ao juízo! Nunca vi uma rapariga ser tão mal tratada pelos seus servidores. Mas também não sei por que me considero rapariga. Não fui casada, Peggotty?

‑ Deus bem sabe que foi.

‑ Então, como te atreves... não, não me refiro a atrevimento... como é que tens coragem de me tornar tão infeliz e de me dizer coisas amargas? Sabes perfeitamente que eu, fora daqui, não tenho um único amigo a quem me apegue?

‑ Mais uma razão para que eu diga o que não deve fazer. Não, aquilo não lhe serve. De maneira nenhuma.

Até me pareceu que Peggotty ia atirar o castiçal tanto o brandia para sublinhar as palavras.

‑ Como é possível que me trates tão injustamente? ‑ exclamou a mãe, vertendo lágrimas copiosas. ‑ Julgas que está tudo combinado e decidido, mas repito‑te, minha tirana, que não houve nada, mesmo nada, além dos banais cumprimentos do estilo. Falas da admiração que desperto. Que hei‑de fazer? Se as pessoas fazem a tolice de se mostrar interessadas por mim, será isso culpa minha? Em que concorri para tal coisa? Gostava que me dissesses como devo proceder. Queres que rape a cabeça e use a cara mascarrada? Ou que me desfigure, queimando‑me ou recorrendo a qualquer outro meio? Se calhar era isso que desejavas, Peggotty. Até ficarias satisfeita!

A criada, ao que me pareceu, tomou este desabafo muito a peito.

‑ E o meu querido filho ‑ prosseguiu a mãe, aproximando‑se da poltrona em que eu estava‑o meu querido Davy! Alguém dirá que perdi o afecto a este adorado tesouro, o mais belo rapazinho que jamais vi?!

‑ Ninguém pensa semelhante coisa ‑ retorquiu Peggotty.

‑ Tu, Peggotty, por exemplo ‑ aduziu a mãe. ‑ Sabe‑lo muito bem. Que mais se poderia concluir das tuas palavras, minha malvada, quando afinal, só por sua causa, deixei de comprar uma sombrinha nova, quando recebi a minha última renda, apesar de ter esta já toda esgarçada? Repara no estado em que ela está. Serás capaz de me desdizer? ‑ Depois, virando‑se enternecida para mim e unindo o seu rosto ao meu: ‑ Tenho sido uma mãezinha má, egoísta, cruel? Diz que sim, meu amor, para que Peggotty rejubile. A estima de Peggotty vale mais do que a minha, não é assim? Achas que não te quero bastante?

Nesta altura, desatámos todos a chorar. Creio que fui o mais barulhento dos três, mas suponho havia sinceridade em todos. Eu sentia‑me contristado ao máximo e parece‑me que, nas minhas primeiras expansões de ternura magoada, chamei «fera» à Peggotty. Esta pobre criatura mostrava‑se profundamente aflita e, em tais circunstâncias, devia ter rebentado todos os botões do vestido, porque se ouviu uma espécie de detonação quando, uma vez feitas as pazes com a patroa, ela ajoelhou junto da poltrona para se reconciliar comigo.

Fomo‑nos deitar deveras desanimados. Por muito tempo os meus soluços conservaram‑me acordado; e quando um, mais forte, me obrigou a erguer‑me da cama, descobri a minha mãe sentada na manta e inclinada para mim. Depois disso dormi nos braços dela e de um sono profundo.

Não me lembro se foi no dia seguinte que tornei a ver o tal senhor ou se passou muito tempo antes que ele reaparecesse. Não pretendo ser rigoroso em matéria de datas. O certo é que ele estava na igreja e que nos acompanhou a casa. Chegou mesmo a entrar para ver um gerânio famoso que tínhamos na janela da sala. Desconfio que não lhe deu uma atenção por aí além, mas antes de se retirar pediu à minha mãe que o mimoseasse com uma dessas flores. Ela convidou‑o a escolher a que lhe aprouvesse e o homem recusou‑se a tomar aquela liberdade ‑ ignoro porquê ‑ de forma que a mãe cortou uma com a sua mão e apresentou‑lha. Então o cavalheiro declarou que nunca, nunca se separaria da flor, o que achei disparate, porque ela dentro de poucos dias se reduziria a pó.

Peggotty começou a fazer‑nos menos companhia, à noite, do que era seu costume. A mãe condescendia muito com a criada, mais do que fora seu hábito, ao que julgo, e nós três tratávamo‑nos como bons amigos; havia, contudo, algo de mudado entre nós. Às vezes imaginava que talvez fosse pela razão de Peggotty censurar minha mãe por fazer uso de todos os bonitos vestidos que guardava nas gavetas ou por ir com tanta frequência a casa da vizinha. A verdade, porém, é que não consegui tirar o caso a limpo.

Gradualmente me acostumei a ver o senhor das suíças pretas. Não o tolerava mais do que a princípio: inspirava‑me sempre o mesmo ciúme inquietante; mas se me assistia outro motivo além da antipatia instintiva própria duma criança e da convicção de que eu e Peggotty bastávamos a minha mãe, sem necessidade de auxílio estranho, esse não seria decerto o mesmo que me impeliria se eu fosse idoso. Nada deste género me acudira nem por sombras à ideia. Sabia, naturalmente, observar, mas de modo fragmentário, por assim dizer; todavia não tinha idade para ligar todos esses fragmentos de molde a tirar uma conclusão.

Certa manhã de Outono estava eu com a mãe no jardim da frente quando o senhor Murdstone (sei agora o seu nome) passou na rua a cavalo. Deteve‑se para cumprimentar a minha mãe e disse que ia a Lowestoft visitar uns amigos, que ali se achavam, com um iate; muito jovialmente, propôs‑se levar‑me também, se o passeio me tentasse.

A atmosfera tinha tal pureza e amenidade (até o próprio cavalo parecia contente com a ideia do passeio, resfolegando e escarvando a terra) que eu me impacientei no desejo de aceitar o convite. De maneira que me mandaram ao andar superior a fim de que Peggotty me pusesse janota. Entretanto o senhor Murdstone apeara‑se, e, com o animal pela rédea (que enfiara no braço), começou a andar acima e abaixo ao comprido da sebe, devagarinho, e a minha mãe acompanhava‑o do lado de dentro. Lembro‑me de que eu e Peggotty os espreitámos da janela e que os achei muito próximos um do outro, só com as roseiras bravas a separá‑los; e que Peggotty, até aí bem disposta, se tornou enervada e me escovou o cabelo com gestos bruscos.

Depressa partimos, eu e o senhor Murdstone, num largo trote pela berma arrelvada do caminho. Ele segurava‑me facilmente com um só braço e, embora eu não estivesse, suponho, muito agitado, não conseguia no entanto coibir‑me de voltar de vez em quando a cabeça e observar‑lhe o rosto de perto. O homem tinha aquela espécie de olhos pretos superficiais (faltam‑me os verdadeiros termos para descrever um olhar sem profundeza, onde se possa mergulhar o nosso) e que, quando distraídos, parecem, por qualquer peculiaridade da luz, estar deformados como se fossem vesgos. Em certas ocasiões, ao virar‑me, contemplava aquela expressão com terror e cogitava no que seriam nesse instante os seus pensamentos. Vistos àquela proximidade, o cabelo e as suíças eram ainda mais negros e espessos do que eu imaginara. A forma quadrada do queixo e a raiz de uma barba muito preta e forte, diária e cuidadosamente rapada, lembravam‑me as figuras de cera que, seis meses antes, haviam passado pelos nossos arredores. Estas minúcias, e ainda as sobrancelhas regulares e os tons branco, preto e castanho, tão opulentos, da tez (raios partam essa tez e estas lembranças!), obrigaram‑me a considerá‑lo um belo homem, apesar da minha hostilidade. Compreendo que a minha pobre mãe pensava da mesma forma que eu.

Fomos ter a um hotel da beira‑mar, onde dois cavalheiros fumavam charuto numa sala em que não se encontrava mais ninguém. Cada um deles descansava pelo menos em quatro cadeiras e usava uma ampla jaqueta. A um canto jazia um montão de casacos, capas de marinheiro e uma bandeira, tudo entrouxado.

Quando entrámos, rolaram sobre si mesmos, para se porem de pé, e disseram:

‑ Viva, Murdstone! Pensámos que tinhas morrido.

‑ Ainda não ‑ replicou Murdstone.

‑ E quem é esse fedelho? ‑ perguntou um dos senhores, tomando‑me à sua conta.

‑ É Davy ‑ explicou Murdstone. ‑Davy quê? Jones?

‑ Copperfield.

‑ Qual! Será pois o pingente da linda viuvinha Copperfield?

‑ Se fazes favor, Quinion, modera a linguagem. É perspicaz.

‑ Quem? ‑ perguntou Quinion.

‑ Nada, nada... O Brooks de Sheffield.

Fiquei aliviado, porque julgara que se tratava de mim.

A reputação do senhor Brooks de Sheffield devia ser bastante cómica, porque os dois senhores desataram a rir à simples menção deste nome. A hilaridade contagiou também Murdstone. Passado o incidente, o cavalheiro a quem chamavam Quinion disse:

‑ E qual é a opinião de Brooks de Sheffield acerca do projecto em causa?

‑ Não sei se esse Brooks percebe muito disso, por agora ‑ replicou Murdstone. ‑ Mas, de um modo geral, é‑lhe desfavorável.

Houve novas risadas e o senhor Quinion participou que ia tocar a campainha para que trouxessem xerez, a fim de beberem à saúde do Brooks. E fê‑lo, realmente. Quando chegou o vinho, ele quis que eu tomasse um pouco e comesse uma bolacha. Levei o copo à boca, mas, antes de ingerir o conteúdo, Quinion pediu que me levantasse e dissesse: «Para vergonha de Brooks de Sheffield!», o que provocou grandes aplausos e francas gargalhadas, a que me associei ‑ e isto aumentou‑lhes ainda mais a jovialidade. Em suma, divertíamo‑nos a valer.

Em seguida passeámos no penhasco e sentámo‑nos no chão. Havia um óculo, de que se serviram, e eu aproximei‑o da vista (fingindo distinguir qualquer coisa, mas na realidade não vi nada). Até que regressámos ao hotel a fim de jantar mais cedo. Enquanto andámos por fora, aqueles dois senhores nunca deixaram de fumar; como se poderia deduzir do cheiro das suas vestias grossas, deviam tê‑lo feito desde que elas vieram a primeira vez do alfaiate. Não me esquecerei de dizer que fomos a bordo do iate, onde todos três desceram ao camarote e estiveram ocupados a examinar papéis. Assim os vi quando espreitei de cima, através da vigia. Haviam‑me deixado entregue, durante esse tempo, a um homem simpaticíssimo, de cabeça grande e cabelo ruivo, com um chapelinho de oleado. A camisola de riscas transversais ostentava a meio, em letras grandes a palavra COTOVIA. Pensei que fosse o seu nome, e que, vivendo no barco, não tivesse porta da rua para o exibir, e por isso o escrevesse no peito. Mas, quando o tratei por senhor Cotovia, ele informou‑me que isso era a designação do iate.

Reparei, em todo esse dia, que Murdstone era mais sério e ponderado do que os outros, que se mostravam sempre descuidados e alegres. Gracejavam frequentemente entre si, mas quase nunca com o primeiro. Achei‑o também mais inteligente e mais insensível; creio que os seus amigos tinham a respeito dele a mesma impressão que eu. Por uma ou duas vezes percebi que o senhor Quinion observava Murdstone de soslaio, como para verificar se o que dizia lhe não desagradava. E uma ocasião em que o senhor Passnidge (o outro cavalheiro) estava muito animado, Quinion pisou‑lhe o pé e indicou‑lhe, com um olhar, Murdstone, que se sentara grave e silencioso. Nem me lembro de que Murdstone risse uma só vez naquele dia, excepto quando da brincadeira de Sheffield, de que aliás fora o autor.

Voltámos para casa à noite, mas não muito tarde. O tempo estava óptimo e a minha mãe e Murdstone tornaram a passear ao longo da sebe de roseiras, enquanto eu, recolhido no interior, tomava chá. Depois de ele partir, a mãe perguntou‑me tudo: como é que eu passara o dia, que tinham feito os senhores, que conversas houvera. Comuniquei‑lhe o que ouvira a respeito dela, e a mãe riu e explicou que eram uns patuscos que se divertiam com disparates. No entanto, vi que se lisonjeara com o caso. Aproveitei o ensejo para indagar o que sabia do senhor Brooks de Sheffield; respondeu que o não conhecia e que devia ser um fabricante de facas e garfos.

Poderei dizer do seu rosto ‑ alterado, como tenho razões para recordar, fenecido como sei que é ‑ que já se extinguiu de vez, quando ele agora mesmo surge à minha frente, tão distintamente como qualquer que eu visse em plena rua? Poderei dizer que a sua beleza de rapariga se finou para sempre, quando o seu hálito me humedece a face, como eu senti naquela noite? Poderei dizer que ela nunca mudou, quando a minha memória, e só esta, a ressuscita perante mim e, mais fiel do que eu fui (ou outro mortal qualquer), retém na perfeição a imagem querida?

Descrevo‑a exactamente como era quando veio dar‑me boa‑noite à minha cama. Ajoelhou contente à beira do leito e, com o queixo apoiado nas mãos, e rindo, pediu‑me:

‑ Que é que eles disseram, Davy? Repete‑o. Não posso acreditar...

‑ Linda viuvinha... ‑ comecei.

A mãe deteve‑me, pondo um dedo na minha boca. ‑Não, não, nunca o fui! ‑ exclamou, continuando a tapar‑me a boca.

‑ Sim, sim, linda viuvinha...

‑ Que loucos, que descarados! ‑ murmurou ela, cobrindo a cara e rindo sempre. ‑ Que patetas! Não achas, Davy? Não contes nada à Peggotty. Seria capaz de se indignar com eles. Mais vale que não saiba.

É claro que prometi. Tornámo‑nos a beijar e eu depressa adormeci.

A esta distância, afigura‑se‑me ter sido no dia seguinte que a criada me fez a extraordinária proposta de que vou falar. Mas é provável que já tivessem decorrido uns dois meses.

Uma noite, estávamos sentados, como antes, eu e Peggotty, com a agulha, meias, e a caixa em cuja tampa havia a reprodução da catedral de São Paulo, e tudo mais, quando a criada, depois de me ter observado várias vezes e outras tantas aberto a boca (como se fosse dizer qualquer coisa, mas o mais possivelmente para bocejar), me disse em tom de adulação:

‑ Menino Davy, que achava se fôssemos ambos passar duas semanas a casa do meu irmão, em Yarmouth? Seria um bom divertimento.

‑ O teu irmão é pessoa simpática? ‑ perguntei, à cautela.

‑ Ora se é! ‑ replicou Peggotty, erguendo os braços. ‑ E depois, há o mar, e navios, e barcaças, e pescadores, e a praia... E Ham, com quem o menino pode brincar.

Corei na antevisão dessas delícias e respondi que seria na verdade um bom divertimento. Mas a minha mãe estaria de acordo?

‑ Aposto um guinéu em como dá licença ‑ declarou a criada, perscrutando‑me o rosto. ‑ Pedir‑lhe‑ei, se quiser, logo que ela chegue a casa.

‑ E que fará a mamã aqui sozinha? ‑ objectei, colocando os cotovelos em cima da mesa, preparado para discutir aquele ponto.

O buraquinho que Peggotty começou a procurar, de repente, no calcanhar da meia que empunhava devia ser na verdade muito pequeno e nem havia de valer a pena perder tempo com ele.

‑ Escuta, Peggotty, a mamã não pode ficar só...

‑ Meu Deus, então não sabe? ‑ exclamou a criada, fitando‑me de novo. ‑ A sua mamã vai estar uns quinze dias em casa da senhora Grayper. A senhora Grayper espera muitos hóspedes.

Ah, se assim era, eu estava decidido a partir. Aguardei na maior impaciência, o regresso da minha mãe, que fora visitar a senhora Grayper (a nossa vizinha), para me certificar de que seríamos autorizados a levar por diante o nosso grande projecto. Ora a mãe. em vez de mostrar a surpresa que eu calculava, anuiu até com entusiasmo. Nessa mesma noite deliberámos tudo, inclusivamente a pensão que eu deveria pagar durante a estada em Yarmouth.

Depressa chegou o dia da partida. Estava tão próximo que de facto veio depressa, mesmo para mim, que o esperava febrilmente ou um tanto receoso de que fosse impedido por algum tremor de terra, ou erupção vulcânica, ou outra qualquer catástrofe da natureza. Devíamos viajar numa carroça de transporte, a qual saía depois do primeiro almoço. Teria dado tudo para que me permitissem dormir vestido, calçado e de chapéu na cabeça.

Ainda me sinto comovido ‑ embora o refira neste tom despreocupado ‑ ao recordar quanto estava ansioso de deixar o meu lar feliz e ao lembrar‑me de que nem por sombras admitira a ideia de que essa felicidade a deixava para sempre.

Tenho também na memória o pormenor da carroça estacionada à porta da rua e a minha mãe a beijar‑me ‑ e a saudade que experimentei nesse momento por ela e pela velha residência de que nunca me havia separado. Chorei, a mãe chorou igualmente, e eu ouvi o seu coração bater de encontro ao meu.

Quando o carroceiro pôs o veículo em andamento, a minha mãe correu e gritou‑lhe que parasse para me beijar ainda uma vez. É com alegria que evoco a ternura ardente com que ela ergueu a cara para me dar mais um beijo.

Seguíamos já pela estrada além e aquele ente adorado continuava no meio da rua quando apareceu Murdstone e a censurou, suponho, por estar tão impressionada. Olhando para trás, sob o toldo, pensei que teria que fazer ali aquele senhor, e Peggotty, que também olhava, não parecia mais satisfeita do que eu: assim depreendi do seu semblante quando ela se virou para dentro.

Fiquei a olhar para a criada, reflectindo neste problema imaginário: se ela houvesse sido encarregada de me abandonar como o rapazinho do conto de fadas, seria eu capaz de reconhecer o caminho por meio dos botões que ela semeava?

 

MUDO DE SITUAÇÃO

O cavalo do carroceiro era o mais indolente do mundo, em minha opinião. Arrastava‑se pela estrada adiante, de cabeça baixa, como se quisesse fazer esperar as pessoas a quem as encomendas eram dirigidas. Imaginei até que ele se ria à socapa com esta ideia, mas o dono esclareceu‑me que era apenas por causa da tosse que o importunava.

O homem conservava também a cabeça pendida, como o animal, e todo o corpo se inclinava sonolento, com os braços poisados nos joelhos, enquanto conduzia a carroça; mas, se digo que conduzia, não deixo de pensar que o veículo seria capaz de ir sem ele até Yarmouth, pois o cavalo se encarregaria de tudo. Quanto a conversar, não era coisa que soubesse fazer: limitava‑se a assobiar. Peggotty levava sobre os joelhos um cabaz de mantimentos que duraria lindamente até Londres se lá fôssemos pelo mesmo transporte. Comemos muito e dormimos muito. Em geral a criada adormecia com o queixo apoiado à asa do cesto, que nunca largava. Custar‑me‑ia a acreditar, se não tivesse ouvido eu mesmo, que uma mulher tão fraca dessonasse daquela maneira.

Demos tantas voltas, subindo e descendo atalhos, e demorámos tanto tempo a descarregar num albergue uma armação de cama, e parámos em tantos outros lugares, que eu já estava fatigadíssimo quando, com enorme júbilo, avistámos Yarmouth. Achei aquilo bastante húmido e ensopado no instante em que vagueei o olhar pela imensa extensão desgraciosa que campeava para lá do rio; e não me coibi de pensar que, se o mundo era na verdade redondo (como ensinava a minha Geografia), como é que podia haver uma parte dele tão plana. Mas considerei que Yarmouth talvez se situasse num dos pólos, e assim a coisa teria explicação.

Aproximando‑nos mais, vi todo o panorama como uma linha baixa sob o céu e sugeri a Peggotty que um ou dois outeiros bem poderiam melhorar a paisagem. E que seria também mais bonito se a terra estivesse menos ligada ao mar, e as marés não invadissem tanto a cidade. Mas Peggotty declarou, com maior energia que a usual, que se deviam aceitar os factos tais como eram e que ela se honrava de ser um Arenque de Yarmouth.

Entrámos numa rua (deveras inesperada para mim), e respirámos o cheiro do peixe, do breu, da estopa e do alcatrão, e vimos [ marinheiros que deambulavam, e ouvimos o tinido das carroças que oscilavam sobre o empedrado. Sentia então quanto fora injusto para com um lugar tão animado, e disse‑o à minha companheira, que se mostrou satisfeita com a retratação.

Afirmou‑me ser bem sabido (creio que daqueles que tiveram a sorte de nascer Arenques) que Yarmouth era o ponto mais belo do universo inteiro.

‑ Ali está o Ham! ‑ gritou Peggotty. ‑ Como ele cresceu! Com efeito, o rapaz esperava‑nos no albergue. Perguntou como é que eu passava, exactamente como fazem os velhos conhecidos. De começo, achei que o não conhecia tão bem como ele a mim, porque não fora lá a casa desde o meu nascimento, e isto era uma vantagem da sua parte. Mas a nossa intimidade progrediu quando me levou às cavalitas para a sua residência. Ham estava um mocetão de seis pés de altura, espadaúdo, de cabelos loiros encaracolados, que lhe davam o ar de carneirinho. Vestia casaco de lona e calças tão rígidas que se manteriam sozinhas mesmo que não houvesse duas pernas lá dentro. Quanto a chapéu não se poderia dizer que o tinha, pois o que se lhe via na cabeça era qualquer coisa alcatroada, como um tecto de velha construção.

Seguimos, pois, Ham comigo às costas e uma das nossas malas debaixo do braço, e Peggotty com a outra, através de carreiros sinuosos juncados de aparas e de montículos de areia. Passámos por um gasómetro, cordoarias, estaleiros, oficinas de reparação e de calafetagem, forjas e muitos outros estabelecimentos do género, até chegarmos à extensão deserta que eu já vira à distância. Então o rapaz explicou:

‑ É aqui a nossa casa, menino Davy.

Olhei em todas as direcções, tão longe quanto pude, para aquele ermo que confinava com o mar e o rio, mas a respeito de casa, foi coisa que não lobriguei. Não muito para além havia uma barcaça escura ou embarcação fora de uso, alta e encalhada, donde saía, à laia de chaminé, um cano de ferro fumegante, de aspecto caseiro; todavia, em matéria de habitação nada se me deparou.

‑ Não há‑de ser aquilo ‑ observei. ‑ Essa coisa parece um barco!

‑ Pois é isso mesmo, menino Davy ‑ replicou Ham.

Se fosse o palácio de Aladino ou o ovo do roque eu creio que me não teria encantado tanto a perspectiva romanesca de aí morar. Abria‑se no costado uma porta encantadora. Possuía telhado e janelas pequeninas. O que, porém, me seduziu a valer foi verificar que se tratava de um barco autêntico, um barco que sem dúvida navegara centenas de vezes e jamais fora destinado a servir de habitação em terra firme. Era isto o que me cativava. Se o construíssem de propósito para alojamento, eu achá‑lo‑ia pequeno, ou incómodo, ou isolado; mas, nunca tendo sido projectado para tal uso, tornava‑se para mim a residência ideal.

Que asseio no interior! O mais limpo que se poderia desejar. Existia mesa, relógio, cómoda, e, em cima desta, um tabuleiro de chá, onde se via pintada uma senhora de guarda‑sol, a qual passeava uma criança de aspecto marcial, que rolava um arco.

Esse tabuleiro estava escorado com uma Bíblia, pois, se caísse, reduziria a fanicos uma porção de xícaras e pires, assim como um bule, objectos agrupados de roda do livro. Nas paredes avultavam estampas vulgares coloridas, com vidro e moldura, relacionadas com temas tirados das Escrituras. Sempre que as vejo nas mãos dos bufarinheiros, revejo logo o interior da casa do irmão de Peggotty. As mais evidentes dessas imagens eram um Abraão de encarnado, disposto a sacrificar um Isaac de azul, e um Daniel de amarelo dentro da fossa de leões verdes. Por cima da pequenina prateleira do fogão exibia‑se um quadro que figurava o lugre Sarah Jane, construído em Sunderland, e ao qual tinham colado uma popa de madeira, obra de arte que combinava a pintura com a marcenaria. Considerei esse quadro como um dos maiores valores que se poderiam possuir neste mundo. Nas vigas do tecto sobressaíam ganchos, cuja utilidade não consegui perceber. Para obviar à ausência de cadeiras, serviam‑se de caixas, baús e outras coisas semelhantes.

Tudo isto eu vi ao primeiro relance, depois de transpor o limiar ‑ o que é próprio de uma criança, de acordo com a minha teoria. Em seguida Peggotty abriu uma portinha e mostrou‑me o meu quarto de dormir. Era o mais apetitoso e completo que eu até aí contemplara e ficava à popa do barco; no lugar do leme tinha uma janela minúscula; um espelho pendurado na parede, precisamente para a minha altura, enquadrado de conchas; uma cama, tão pequena que eu mal me poderia estender; e, na mesa, um ramo de algas marinhas num vaso azul. As paredes, caiadas, eram de um branco de leite e a colcha de retalhos ofuscava‑me a vista com o brilho das suas cores. Uma circunstância que eu notei particularmente nessa deleitosa casa foi o cheiro a peixe: era tão penetrante que, ao tirar o lenço da algibeira para me assoar, poderia julgar‑se, pelo odor, que ele tinha servido para embrulhar uma lagosta. Quando fiz a Peggotty uma observação a este respeito, disse‑me ela que o irmão negociava com lagostas, caranguejos e camarões. Mais tarde descobri que havia montes desses animais envolvidos uns nos outros e agarrando‑se a tudo quanto podiam; estavam num reservatório de madeira, onde se guardavam caldeirões e panelas.

Fomos recebidos por uma mulher atenciosa, de avental branco, que eu já vira à porta quando vinha às costas de Ham, a cerca de um quarto de milha de distância. Também se encontrava presente uma linda menina (pelo menos assim a considerei) que ostentava um colar de contas azuis: não consentiu que a beijasse, quando pretendi fazê‑lo, e correu para se esconder algures. Depois de um jantar excelente, composto de azevias cozidas, com batatas e manteiga derretida (e ainda uma costeleta para mim), fez a sua aparição um homem cabeludo, de cara simpática. Tratou Peggotty por «rapariga», e deu‑lhe um beijo repenicado na face: vi logo, pela atitude circunspecta da minha criada, que se tratava do seu irmão. E era‑o na verdade, porque mo apresentaram como o senhor Peggotty, dono da casa.

- Muito prazer em conhecê‑lo ‑ disse ele. ‑ Vai‑nos achar

rudes, mas estamos aqui para o servir.

Agradeci‑lhes e disse que tinha a certeza de me dar bem num lugar tão agradável.

‑ E como está a sua mamã? ‑ perguntou o senhor Peggotty. ‑ Deixou‑a de boa saúde?

Informei‑o de que ela estava o melhor possível e que lhe mandava cumprimentos, o que era uma delicada invenção da minha parte.

‑ Fico muito reconhecido ‑ volveu ele. ‑ Se o menino se acomodar aqui, por duas semanas, com aquela ‑ fez um gesto de cabeça para designar a irmã ‑, com Ham e a Emily, todos teremos muito gosto na sua companhia.

Tendo feito assim as honras da casa, com tanta hospitalidade, o senhor Peggotty para se lavar utilizou uma cafeteira de água quente, porque, explicou, «a água fria não bastava para se desemporcalhar». Voltou daí a pouco, muito melhorado na aparência, mas tão rubicundo que eu não pude coibir‑me de pensar que aquela cara se assemelhava muito às lagostas, lagostins e caranguejos, os quais entravam pretos na água quente e dela saíam vermelhos.

Terminado o chá e uma vez fechada a porta, quando nos instalámos voluptuosamente à lareira (porque as noites estavam frias e brumosas), considerei‑me no mais delicioso retiro que a imaginação humana pode conceber. Que coisa encantadora, de facto, ouvir o vento levantar‑se sobre o mar, saber que lá fora o nevoeiro se arrastava pela planura desolada, olhar para o lume e pensar que não havia outra casa nas imediações e que essa casa era um barco! A pequena Emily dominara a timidez: sentara‑se a meu lado, no baú mais baixo e mais estreito, onde só nós dois caberíamos e que ocupava o cantinho do fogão. A senhora Peggotty, com o seu avental branco, fazia meia no extremo oposto. A minha criada achava‑se tão à vontade como se nunca houvesse conhecido outro lar, e trabalhava com os apetrechos do costume. Ham, que se entretivera a ensinar‑me um jogo de cartas, deixara em todo o baralho já sebento, com os dedos sujos da faina piscatória, novas manchas ainda mais evidentes. O senhor Peggotty saboreava o seu cachimbo. Calculei, pois, que fosse o momento azado para dois dedos de conversa.

‑ Senhor Peggotty ‑ comecei.

‑ Faça favor de dizer.

‑ Deu ao seu filho o nome de Ham por viver numa espécie de arca? [4]

O senhor Peggotty parecia achar que era uma ideia profunda, mas respondeu:

‑ Não, senhor, não lhe dei nome nenhum.

‑ Então quem foi?

‑ O pai dele.

‑ Julgava que o senhor fosse o pai.

‑ O pai era o meu irmão Joe.

‑ Já morreu? ‑ sugeri, após uma pausa respeitosa. ‑ Afogado ‑ disse o senhor Peggotty.

Fiquei muito admirado com o facto de o senhor Peggotty não ser o pai de Ham e reflecti se não estaria enganado quanto ao parentesco das restantes pessoas de família. A curiosidade de saber era tanta que resolvi tirar o caso a limpo.

‑ E a pequena Emily? ‑ inquiri, relanceando‑a. ‑ Não é sua filha, senhor Peggotty?

‑ Não, senhor, essa é filha do meu cunhado Tom.

Não pude resistir e observei, após outro silêncio respeitoso:

‑ Morreu, senhor Peggotty?

‑ Afogado ‑ replicou ele.

Compreendi a dificuldade de recomeçar a conversa; mas ainda não atingira o âmago da questão e queria fazê‑lo a todo o custo. De maneira que disse:

‑ Não tem filhos, senhor Peggotty?

‑ Não, menino Davy ‑ retorquiu, dando uma risada. ‑ Sou solteiro.

‑ Solteiro! ‑ exclamei, assombrado. ‑ Então quem é...? E indiquei a mulher do avental.

‑ É a senhora Gummidge.

‑ Gummidge, senhor Peggotty?

Neste comenos, Peggotty (quer dizer, a minha Peggotty) fez‑me tais accionados para que me calasse que me limitei a ficar sentado, olhando os circunstantes em silêncio, até ao momento de ir para a cama. E aí, na intimidade do meu camarote, a minha criada informou‑me de que Ham e Emily eram um sobrinho e uma sobrinha órfãos, adoptados em diferentes ocasiões, quando estavam ao desamparo; e que a senhora Gummidge era a viúva de um Sócio dele num barco, homem que morrera muito pobre. O irmão de Peggotty, declarou ela, possuía duas grandes virtudes, a bondade e a rectidão, mas insurgia‑se quando lhe falavam nos seus actos de generosidade, chegando a dar murros na mesa (com que uma vez a rachou). Se tornassem a aludir a isso, dizia, estava disposto a desaparecer para sempre.

Fiquei muito impressionado com a bondade do meu hospedeiro e senti‑me num estado de beatitude perfeita, enquanto ouvia as mulheres deitarem‑se num camarote do mesmo lado do meu e o senhor Peggotty e o sobrinho pendurarem as redes nos ganchos que eu já havia notado. O sono principiou a invadir‑me e eu ouvi o vento soprar fortemente do mar através da extensão deserta, o que me fez temer que, durante a noite, não se abrissem os abismos marítimos. Lembrei‑me então de que estava num barco e que, se acontecesse qualquer percalço, tinha a bordo uma pessoa tão prestável como o senhor Peggotty.

Nada sucedeu, porém, além do amanhecer. Logo que a claridade do dia se projectou na moldura de conchas do meu espelho, saltei da cama e saí com Emily para a praia, onde começámos a apanhar pedrinhas.

- Tu és boa marinheira? ‑ observei‑lhe. Creio que não pensava a sério em semelhante coisa, mas fi‑lo por simples galanteio, para dizer qualquer coisa. A ideia ocorrera‑me por causa dum barco que passava nesse instante e cuja vela se reflectiu nos olhos da pequena.

‑ Não ‑ respondeu esta, abanando a cabeça. ‑ Tenho medo do mar.

‑ Medo! ‑ repeti, num rompante de ousadia, olhando para o oceano poderoso do alto da minha importância. ‑ Eu, não!

‑ Ele é tão mau! ‑ volveu Emily. ‑ Tenho‑o visto muito mau para os nossos homens. Vi‑o despedaçar um barco do tamanho da nossa casa.

‑ Espero que não tenha sido aquele em que...

‑ Se afogou o meu pai? Não, não foi. Esse não o vi.

‑ E ele?

A pequena abanou a cabeça.

‑ Dele não me lembro.

Eis uma coincidência. Comecei logo a explicar que também não conhecera o meu pai; que eu e minha mãe sempre vivêramos juntos na melhor das harmonias, que assim continuávamos e que do mesmo modo seria para o futuro; que o túmulo do meu pai ficava no cemitério próximo da nossa casa, à sombra de uma árvore, sob cujos ramos eu passava manhãs agradáveis ouvindo cantar os pássaros. Havia, porém, algumas diferenças entre a minha orfandade e a de Emily. Ela perdera a mãe antes do pai; ninguém sabia onde este estava sepultado, salvo que devia ser nas profundezas do mar.

‑ Além disso ‑ disse Emily, enquanto procurava conchas e pedrinhas ‑ o seu pai era um senhor e a sua mãe uma senhora, ao passo que o meu pai era pescador e a minha mãe filha de pescador. Pescador também é o meu tio Dan.

‑ Dan é o senhor Peggotty? ‑ inquiri.

‑ Fala do meu tio Dan... além?‑perguntou ela, designando com a cabeça o barco‑habitação.

‑ Sim, é desse que falo. Deve ser muito bom homem, não te parece?

‑ Se é bom? Fosse eu uma senhora e dava‑lhe um casaco azul‑celeste com botões de diamantes, calças de nanquim, colete de veludo encarnado, chapéu tricórnio, um relógio grande, de ouro, um cachimbo de prata e um cofre cheio de dinheiro.

Afirmei‑lhe que o senhor Peggotty merecia tudo isso. Devo confessar que me sentia duvidoso quanto à figura que o homem faria vestido do modo proposto pela sobrinha, em especial no que se referia ao tricórnio. Mas guardei para mim estas apreensões.

A pequena Emily havia parado e enumerara todos aqueles artigos de vestuário e adorno olhando para o céu, como se estivesse a contas com uma visão celestial. Depois recomeçámos na colheita das conchas e pedrinhas.

‑ Gostavas de ser uma senhora? ‑ indaguei.

A pequena mirou‑me, riu‑se e, assentindo, murmurou: ‑ Gostava muito. Passávamos então a ser pessoas de categoria, eu, o tio, o Ham e a senhora Gummidge. Já não nos importávamos que viesse mau tempo. Nós não, mas os pobres pescadores, esses sim. Com o nosso dinheiro havíamos de os socorrer.

Isto pareceu‑me justo e, por isso, nada inverosímil. Disse‑lhe quanto essa ideia me regozijava e a pequena animou‑se e redarguiu timidamente:

‑ Agora já tem medo do mar?

Nessa ocasião o mar estava suficientemente calmo para me tranquilizar. Todavia, se visse levantar‑se uma vaga, daria às de vila‑diogo, lembrando‑me dos parentes de Emily, todos afogados. Ainda assim não dei resposta afirmativa, observando:

‑ Tu também parece que não tens medo, apesar de dizeres o contrário. ‑ Falei assim porque a vi andar muito à beira da velha prancha por onde seguíamos e receei que ela caísse à água.

‑ Não é disso que tenho medo ‑ declarou Emily. ‑ O que acontece é acordar quando o vento sopra rijo e tremo ao pensar no tio Dan e no Ham. Até julgo ouvir gritos de socorro! Por isso é que queria ser uma senhora. Agora, quanto a andar por aqui, é coisa que não me assusta. Mesmo nada. Ora veja!

Afastou‑se do meu lado e correu ao longo de uma viga oscilante que não apresentava qualquer resguardo e que ficava a certa altura sobre a água. O incidente fixou‑se‑me de tal maneira na memória que, se eu fosse desenhador, ainda hoje poderia representar a pequena Emily precipitando‑se para a destruição (segundo ali se me afigurou), com um olhar que nunca mais esqueci, dirigido para o mar ingente.

A figurinha leve, audaciosa, aérea, virou‑se e voltou para junto de mim sã e salva, e eu não tardei a rir dos meus temores e do grito de angústia que tinha soltado (inútil, no fim de contas, porque não havia ninguém nas proximidades). Contudo, muitas vezes mais tarde, tenho pensado se seria possível que, nessa brusca temeridade infantil, nesse olhar alucinado, não houvesse, pelo efeito da graça divina, a atracção do perigo ou o chamamento do pai afogado, para que a vida de Emily terminasse naquele dia?

Ainda agora reflicto neste ponto: se o futuro dessa criatura me fosse revelado naquele mesmo instante, com a clareza necessária para ser compreendido por uma criança, e admitindo que a existência da pequena dependia de um gesto meu, deveria eu correr ao seu encontro e salvá‑la do abismo? Em certas ocasiões (muito breves, mas no entanto inegáveis) pensei se não teria sido preferível para ela que as águas se fechassem sobre a sua cabeça, naquela manhã, diante dos meus olhos. E cheguei à conclusão de que realmente teria sido melhor.

Isto pode ser prematuro. Talvez tenha ido longe de mais. Paciência, já fica dito.

Caminhámos por muito tempo, enchendo‑nos de coisas que achámos curiosas e pondo cuidadosamente na água estrelas‑do‑mar dadas à costa ‑ mal sei, nem mesmo hoje, quais são ao certo os hábitos desta espécie para acreditar que nos ficariam reconhecidas ‑ e depois regressámos à residência do senhor Peggotty. Detivemo‑nos sob o alpendre das lagostas para trocar um beijo inocente e entrámos por fim, resplandecentes de alegria e saúde, para tomarmos o almoço.

‑ Parecem dois tordozinhos ‑ comentou o senhor Peggotty. Eu sabia o que isto significava, no nosso dialecto local, e aceitei como um cumprimento.

É claro que eu estava enamorado da pequena Emily. Tinha a certeza de que amava aquela criança com a franqueza, ternura e pureza que não se encontram na idade adulta, por mais alto e nobre que seja o amor. Sem dúvida que a minha imaginação punha naquela migalha de gente, de lindos olhos azuis, algo de etéreo que a fazia angelical. Se ela, por uma tarde soalheira, estendesse um par de asas e voasse perante mim, creio que presenciaria esse espectáculo com a maior naturalidade.

Passeávamos, como namorados, horas e horas, na planura sombria de Yarmouth. Os dias passavam por nós, risonhos, como se o próprio tempo não envelhecesse e se conservasse uma criança jovial. Declarei à Emily que a adorava e que, se ela me não correspondesse explicitamente, eu me veria forçado a matar‑me com uma espada. Respondeu que me adorava, sim, e eu acredito que fosse sincera.

Não possuíamos o mínimo sentido da desigualdade social, ou da pouquidade dos anos, ou de outro obstáculo qualquer, pois o porvir não existia para nós. Não nos preocupava mais a ideia da maturidade do que a do rejuvenescimento. Provocávamos a admiração da senhora Gummidge e da Peggotty, que murmurava à noite, ao ver‑nos sentados lado a lado, em cima do baú: «Deus do Céu, como enternece!» O senhor Peggotty sorria‑nos por trás do seu cachimbo e Ham não fazia outra coisa senão sorrir‑nos também. A eles proporcionávamos nós dois o mesmo prazer que um brinquedo delicado ou uma reprodução miniatural do Coliseu.

Cedo descobri que a senhora Gummidge se não mostrava sempre tão amável como se poderia esperar, atendendo às condições da sua permanência em casa do senhor Peggotty. Era pessoa mal disposta e lastimava‑se com frequência, ao ponto de incomodar os outros habitantes de tão exígua residência. Eu aborrecia‑me com isso e pensava que seria melhor para nós que ela dispusesse de aposentos à parte, onde curasse o seu mau humor.

O senhor Peggotty ia uma vez por outra a um botequim chamado «Boa Vontade». Dei pelo facto quando se ausentou na segunda ou terceira noite da minha estada ali, e a senhora Gummidge, entre as oito e as nove horas, começou a olhar para o relógio, dizendo que ele devia estar na taberna e que sabia, desde a manhã, que assim devia suceder. Todo o dia ela estivera irritada. Chegara mesmo a chorar, de manhã, quando acendeu o fogão e o fumo se espalhou pela casa.

‑ Sou uma infeliz ‑ resmungou, na ocasião desse incidente desagradável. ‑ Estou só no mundo e só me acontecem contrariedades.

‑Vai passar depressa ‑ atalhou Peggotty (falo da minha criada). ‑ E, além disso, o mal é tanto para si como para nós.

‑ Eu sofro mais do que os outros ‑ ripostou a senhora Gummidge.

Estava um dia frio, com fortes rajadas de vento. O canto reservado à senhora Gummidge afigurava‑se‑me o mais quente e abrigado, tal como a sua cadeira o assento mais cómodo da habitação. Todavia, desta vez, ela não achava nada a seu gosto. Queixava‑se constantemente do frio, o qual lhe provocava uma sensação nas costas, a que dava o nome de formigueiro. Por fim, tornou a verter lágrimas e repetiu que estava só no mundo e só tinha contrariedades.

‑ Não há dúvida de que está frio ‑ disse Peggotty. ‑ Todos o sentem.

‑ Eu sinto mais do que ninguém ‑ replicou a senhora Gummidge.

Ao jantar foi a mesma coisa. A senhora Gummidge era servida logo depois de mim (a quem concediam as honras de hóspede de distinção). O peixe, muito pequeno, tinha inúmeras espinhas, e as batatas estavam levemente queimadas. Todos nos mostrámos desanimados, mas a senhora Gummidge recomeçou a chorar e repetiu as declarações do costume, com reforçada amargura.

Nestas condições, achava‑se ela bastante contristada e chorosa, a um canto, fazendo meia, quando o senhor Peggotty regressou, aí pelas nove horas. A minha criada, muito jovial, reiniciou o seu trabalho, e Ham sentou‑se a consertar um par de botas de água. Eu, com a pequena Emily a meu lado, lia para todos. A senhora Gummidge só se manifestava com suspiros e nunca mais levantara os olhos do chão.

‑ Então, como se passa? ‑perguntou o senhor Peggotty, sentando‑se no seu lugar habitual.

Cada qual proferiu uma palavra de saudação, excepto a senhora Gummidge, que se limitou a menear a cabeça, sem largar as agulhas.

‑ Que lhe aconteceu, santinha? ‑ inquiriu ele. ‑ Anime‑se. A viúva não parecia disposta a animar‑se. Tirou da algibeira um velho lenço de seda preta e enxugou os olhos; e, em vez de o tornar a guardar, conservou‑o na mão e tornou a secar as lágrimas. O lenço ficava assim preparado para servir na primeira oportunidade.

‑ Que lhe aconteceu? ‑ repetiu o senhor Peggotty.

‑ Nada. Vem da «Boa Vontade», Dan?

‑ Venho. Passei lá um bocadinho esta noite.

‑ Tenho pena que o faça por minha causa ‑ disse a senhora Gummidge.

‑ Essa agora! Ninguém me obriga a isso! ‑ redarguiu ele, dando uma risada. ‑ Vou por gosto.

‑ De bom gosto ‑ comentou a viúva. ‑ Sim, sim, de bom gosto ‑ repetiu, enxugando outra vez os olhos. ‑ O que lastimo é que seja por minha causa e que o faça de tão bom gosto.

‑ Por sua causa! Não tem nada que ver consigo! ‑ asseverou o senhor Peggotty. ‑ Não suponha semelhante coisa.

‑ Ora, ora, eu sei quem sou. Uma pobre criatura sem mais ninguém, que não só tem contrariedades como origina as contrariedades dos outros, é verdade, sofro mais do que todos e dou‑o a entender em excesso. Aí está a minha desgraça.

Não pude impedir‑me de pensar, ao ouvir o que ela dizia, que a mesma desgraça atingia outros ocupantes da casa, além da senhora Gummidge. Mas o senhor Peggotty não deu resposta, limitando‑se a aconselhá‑la de novo a que se animasse.

‑ Quem me dera não ser assim! ‑ disse a viúva. ‑ Mas quê! Conheço‑me bem. Isto provém dos meus aborrecimentos e eles trazem‑me contrariada. Pudesse eu deixar de sofrer! Infelizmente, não posso. Preferia estar calejada e não estou. Apoquento os outros. Todo o dia apoquento a sua irmã e o menino Davy.

Aqui enterneci‑me subitamente e interrompi.

‑ Não, senhora Gummidge, de maneira nenhuma!

‑ Não tenho o direito de proceder assim ‑ continuou ela. ‑ Recompenso‑os muito mal! O que eu devia era ir para um hospício e lá morrer. Sou uma pobre mulher e aqui não passo de um estorvo. Se é necessário que só tenha contrariedades, melhor será que as sofra na minha freguesia. Dan, deixe‑me ir morrer longe, para não incomodar mais ninguém.

Dito isto, a senhora Gummidge retirou‑se e foi meter‑se na cama. Então o senhor Peggotty, que não manifestara outro sentimento senão profunda compaixão pela infeliz, olhou de roda para nós e, ainda com uma expressão penalizada, murmurou:

‑ Ela pensava no velhote!

Não compreendi qual era o velho que ocupava desse modo os pensamentos da senhora Gummidge. Mas a minha criada, quando foi deitar‑me, explicou que se tratava do defunto marido, e que essa verdade inegável comovia sempre o irmão. Passado algum tempo, quando ele já estava na sua rede, ouviu‑o repetir a Ham: «Coitada! Pensava no velhote». E sempre que a senhora Gummidge se sentia dominada por aquela angústia (o que sucedeu algumas vezes durante a minha permanência no barco), o senhor Peggotty dizia a mesma frase como se alegasse uma circunstância atenuante e nunca deixava de exteriorizar a maior comiseração.

Neste teor decorreram as duas semanas, sem outra variedade senão a das marés, o que modificava o horário das idas e vindas do senhor Peggotty e também das ocupações do Ham. Quando este último estava inactivo, passeava às vezes connosco para nos mostrar as barcaças e os navios. Em duas ou três ocasiões levou‑nos num barco de remos. Não sei por que motivo um conjunto de impressões gerais se associa mais particularmente a um lugar do que a outro; realmente deve acontecer isto à maior parte das pessoas, sobretudo no que toca às suas recordações da infância. Quanto a mim, nunca ouço ou leio a palavra Yarmouth sem me lembrar de certa manhã de domingo na praia, com os sinos a convocar os fiéis para a igreja, a pequena Emily apoiada ao meu ombro. Ham atirando distraído pedras ao mar, e o Sol, atravessando a bruma densa a nos revelar os navios, que pareciam as suas próprias sombras.

Chegou por fim o dia do regresso. Não me importava muito deixar o senhor Peggotty e a senhora Gummidge, mas separar‑me da Emily, isso, só de pensar, é que me cortava o coração. Fomos de braço dado até ao albergue, onde a carroça parava, e eu prometi à pequena, pelo caminho, escrever‑lhe de vez em quando. (Cumpri esta promessa em caracteres maiores do que os dos anúncios manuscritos dos quartos para alugar.) Comovemo‑nos enormemente na altura dos adeuses. E se jamais, na minha vida, eu experimentei um grande vácuo, esse foi com certeza no dia da partida.

Durante todo o tempo da ausência eu fora ingrato para com o meu lar, porque nunca mais pensara nele, ou muito pouco. Mal, porém, iniciara a viagem, a consciência infantil logo me apontou o remorso. E eu senti, naquele abatimento, que era lá o meu ninho e que a minha mãe era o meu consolo e a minha amiga.

Conforme avançávamos no caminho, mais isto se me avolumava no espírito. Quanto mais as coisas se tornavam familiares, mais crescia a excitação e o desejo de estar em casa e de cair nos braços maternos. Mas Peggotty, em vez de compartilhar destas comoções, tentava refreá‑las (suavemente, embora) e parecia embaraçada e abatida. Todavia, e a despeito deste modo de pensar da minha criada, Blunderstone surgiu à vista. Como conservo esse instante na memória! A tarde estava fria e cinzenta, o céu era triste e havia ameaças de chuva.

Abriu‑se a porta, e, meio a rir, meio a chorar, alegre e simultaneamente preocupado, busquei com os olhos a minha mãe. Não era ela que lá estava, mas uma criada desconhecida.

‑ Que aconteceu, Peggotty? ‑ exclamei, lastimoso. ‑ A mamã ainda não voltou?

‑ Voltou, sim, menino... Espere um instante... Eu vou... eu vou dizer‑lhe uma coisa.

Peggotty saía com dificuldade da carroça, tanto pelo embaraço da roupa como pela atrapalhação moral em que se achava. Todavia, calei‑me. Uma vez apeada, ela pegou‑me na mão, e levou‑me, sempre confusa, até à cozinha. Aí, fechou a porta.

‑ Que aconteceu? ‑ repeti então, já assustado.

‑ Não foi nada. Sossegue, querido menino ‑ replicou, afectando um ar satisfeito.

‑ Tenho a certeza de que há qualquer coisa ‑ insisti. – Onde está a mamã?

‑Onde está a mamã? ‑ disse ela, arremedando as minhas palavras.

‑ Sim, sim. Por que é que não foi esperar‑me ao portão e por que motivo viemos para aqui?

Marejaram‑se‑me os olhos. Senti que ia desfalecer.

‑ Deus lhe valha, meu filho! Que é que tem? Fale!

‑ Morreu... também?

A criada gritou um «não» com extraordinária força, e depois sentou‑se, anelante. Eu pregara‑lhe um susto, declarou.

Dei‑lhe um abraço apertado, para atenuar esse efeito, e então, de pé diante dela, olhei‑a interrogativamente.

‑ Eu já lho devia ter dito, menino Davy, mas não houve ensejo. Devia tê‑lo provocado, esse ensejo... No entanto, não consegui decidir‑me...

‑ Continua, Peggotty ‑ supliquei, mais alarmado do que nunca. Ela desatou as fitas da touca, com dedos trémulos, e começou, sempre ofegante:

‑Pois quer saber? Tem agora um papá!

Tremi, fiquei pálido. Não sei o quê nem como, mas algo que se relacionava com o cemitério e a ressurreição dos mortos atingiu‑me como uma baforada insalubre.

‑ Outro ‑ acrescentou.

‑ Outro pai?

Peggotty abriu a boca, como se fosse engolir qualquer coisa muito dura, estendeu a mão e disse:

‑ Venha vê‑lo.

‑ Não quero.

‑ E a mamã, também‑ acrescentou Peggotty.

Cessei a resistência e fomos direitos à sala, onde a criada me deixou. A um lado do fogão estava a minha mãe; do outro o senhor Murdstone. A mãe interrompeu o trabalho de costura que tinha entre mãos, e ergueu‑se precipitadamente, mas com ar receoso, segundo me pareceu.

‑Então, Clara, minha querida! ‑ disse Murdstone. ‑ Domina‑te. Davy, estás bom?

Dei‑lhe a mão. Após um momento em que ficámos indecisos aproximei‑me da mãe, que me afagou brandamente o ombro e recomeçou o seu trabalho. Eu não podia olhar nem para ela nem para ele, mas pressentia que Murdstone nos observava a ambos. Então fui até à janela e olhei para fora, para os arbustos que curvavam os ramos na aragem fria.

Logo que me foi possível, escapei‑me e subi a escada O. meu antigo quarto havia sido transformado, e eu devia dormir muito longe dali. Desci ao rés‑do‑chão, e também lá encontrei tudo com aspecto diferente. Em seguida vagueei no pátio ‑ mas recuei vivamente, porque a casota sem cão tinha agora um ocupante enorme, de bocarra ameaçadora e um pêlo negro que me fez recordar o senhor Murdstone. O animal enfurecera‑se ao ver‑me e tentou saltar sobre mim.

 

ENTRO EM DESFAVOR

Se o quarto para onde transportaram a minha cama fosse dotado de sentimentos e pudesse testemunhar, ainda hoje eu podia (quem lá dorme agora? Quem me dera saber!) chamá‑lo a depor a fim de dizer quanto o coração se me confrangeu naquela noite. Segui para lá ouvindo o cão ladrar no pátio todo o tempo que subi os degraus; e, lançando ao aposento um olhar tão desanimado como o que ele devia por seu turno endereçar‑me, sentei‑me, cruzei os braços e comecei a reflectir.

Pensei nas coisas mais díspares: no aspecto do meu quarto, nas fendas do tecto, no papel das paredes, nos defeitos da vidraça, que tornavam a paisagem distorcida, e no lavatório de pés coxos, cuja expressão descontente me fazia lembrar a senhora Gummidge quando estava sob a influência do velhote. Chorei durante todo esse tempo, mas, excepto quanto ao facto de me sentir cheio de frio e abatido, eu não sabia ao certo por que chorava. Por fim, no meu desespero, considerei que amava apaixonadamente a Emily, que me haviam separado dela para me levar para ali, onde ninguém se preocupava comigo nem me dedicava metade da afeição que ela me tinha. Isto tornou‑me tão infeliz que me encolhi a um canto do colchão e adormeci à força de chorar.

Acordou‑me alguém que dizia «Ei‑lo!», pondo‑me a sua mão na testa ardente. A mãe e Peggotty vinham buscar‑me e uma delas proferira aquela frase e fizera o gesto.

‑ Davy ‑ perguntou a minha mãe ‑ que tens tu?

Achei estranho que ela me fizesse essa pergunta e respondi: «Nada.» Recordo‑me de que desviei a cara, para ocultar o tremor dos lábios, o que esclarecia sem dúvida a situação.

‑‑Davy, meu querido filho!‑exclamou a mãe.

Na verdade, aquele apelo de «querido filho» comoveu‑me mais do que tudo o que eu pudesse ouvir. Escondi as lágrimas nos lençóis e repeli a sua mão quando ela ma estendeu para me ajudar a erguer‑me.

‑ Isto é obra tua, Peggotty ‑ disse a mãe. ‑ Não há dúvida de que é! Como é possível que indisponhas o meu filho contra mim ou contra quem me é afeiçoado? Que pretendes tu, Peggotty?

A pobre da criada, levantando os braços e os olhos, replicou apenas com uma espécie de paráfrase das graças que eu habitualmente repetia depois do jantar:

‑ Que Deus lhe perdoe, senhora Copperfield, pelo que acaba de dizer e de que terá de arrepender‑se!

‑ E estas coisas acontecem‑me em plena lua‑de‑mel, quando se podia supor que nem o meu maior inimigo seria capaz de o fazer! Oh, filho, como és maldoso! E tu, Peggotty, como és cruel!Meu Deus! ‑ exclamou a mãe, voltando‑se ora para um ora para outro de nós. ‑ Que mundo este de arrelias, quando eu tinha o direito de esperar que a vida me fosse agradável!

Senti o contacto de uns dedos que não eram os da mãe nem os de Peggotty. Deslizei para o chão e pus‑me de pé ao lado da cama. Era a mão do senhor Murdstone, que me agarrava no braço e dizia:

‑ Que vem a ser isto? Clara, meu amor, esqueceste‑te? Firmeza, minha querida!

‑ Desculpa, Edward ‑ volveu a mãe. ‑ Desejaria ser razoável, mas estou muito contristada!

‑ Realmente, Clara, não esperava ouvir isso tão cedo.

‑ O que digo é que é triste tornarem‑me infeliz neste momento ‑ replicou a mãe, amuando. ‑ E na verdade é bastante triste, não achas?

Murdstone puxou‑a para si, murmurou‑lhe qualquer coisa ao ouvido e beijou‑a. Percebi logo que ele moldaria sempre à sua vontade uma natureza tão dócil como a da mãe.

‑ Vai andando, meu amor ‑ disse Murdstone. ‑ Eu e o Davy iremos juntos. ‑ Voltando‑se para a criada, ajuntou: ‑ Sabe o nome da sua senhora, não sabe? ‑ Olhava‑a furibundo, depois de ter sorrido à minha mãe quando ela se afastava.

‑ Há muito tempo que é minha patroa, senhor Murdstone. Tenho obrigação de saber.

‑ Pois sim, mas quando me aproximava deste quarto ouvi‑a dar‑lhe um nome que não é o seu. Não ignora, com certeza, que a sua senhora tomou o meu apelido. Fixe bem isto.

Peggotty saiu do quarto sem replicar, mas deitou‑me um olhar inquieto, depois de fazer uma vénia ao patrão. Bem percebia que ele esperava a sua retirada e que não havia motivo para se demorar mais tempo. Quando ficámos sós, Murdstone fechou a porta, sentou‑se numa cadeira, e, conservando‑me de pé à sua frente, fitou‑me de tal forma que eu também o olhei fixamente. Ao lembrar‑me daquela cena ainda hoje sinto pulsar‑me com força o coração.

‑ Davy ‑ principiou, comprimindo os lábios ‑, se eu tiver um cavalo ou um cão teimoso, como devo proceder? Que te parece?

‑ Não sei.

‑ Sei eu: bato‑lhe.

Respondera‑lhe quase num murmúrio, sustendo a respiração; sentia, porém, ao calar‑me, que ainda respirava com maior dificuldade.

‑ Aperto‑o e faço‑o sofrer. E digo: Hei‑de o domar custe o que custar, ainda que o faça derramar sangue. Que tens na cara?

‑ Está suja.

Murdstone bem sabia que eram vestígios de lágrimas, e eu sabia‑o igualmente. Mas, se me fizesse a pergunta vinte vezes, de cada vez com vinte pancadas, creio que o meu coração de criança rebentaria antes de eu lhe confessar a verdade.

‑ És muito esperto para a idade ‑ observou com o seu sorriso grave ‑ e já me compreendeste muito bem. Lava a cara e acompanha‑me.

Indicou‑me aquele móvel que me lembrava a senhora Gummidge, e, com a cabeça, fez sinal de que lhe obedecesse. Convenci‑me então, e ainda o estou, de que me batia sem dó se eu hesitasse no cumprimento da ordem.

‑ Minha querida Clara ‑ disse ele logo que chegámos à sala, sempre com a mão apoiada no meu braço ‑ espero que não voltes a ter aborrecimentos. Depressa havemos de lhe aperfeiçoar o génio.

Que Deus me perdoe, mas uma palavra bondosa, dita naquele momento, aperfeiçoar‑me‑ia de vez o génio. Uma palavra de incitamento, esclarecedora, uma frase compassiva pela minha ignorância infantil; qualquer coisa que fosse um acolhimento no lar ‑ e o senhor Murdstone teria conquistado a minha submissão em lugar de me compelir a uma atitude hipócrita. Em vez do ódio teria obtido o meu respeito. Afigurou‑se‑me que a minha mãe estava contrariada por me ver ali no meio da sala, perplexo e apavorado, e que, na ocasião em que eu ia sentar‑me furtivamente numa cadeira, os seus olhos me seguiram ainda mais tristes, como se ela sofresse com o constrangimento dos meus passos. Mas essa palavra não chegou a ser proferida, e a oportunidade passou.

Jantámos sozinhos, todos os três. Murdstone parecia apaixonado pela minha mãe ‑ o que, sem dúvida, mais me irritou ‑ e ela retribuía‑lhe com igual amor. Do que diziam, depreendi que uma irmã dele era esperada nessa noite e que ficaria connosco. Não estou certo de que fosse nesta altura, ou mais tarde, que eu soube possuir o meu padrasto interesses num estabelecimento de vinhos de Londres, embora não exercesse nenhuma actividade comercial, e que nessa mesma casa (a que a família estava ligada desde o tempo do bisavô) a tal irmã tinha interesses similares. Seja como for, menciono agora o facto.

Terminado o jantar, estávamos instalados junto do fogão e eu cogitava na maneira de ir ter com Peggotty, sem me atrever a tomar tão arrojada decisão, para não ofender o dono da casa, quando parou uma carruagem à porta do jardim e ele se levantou para ir receber a visita. A minha mãe seguiu‑o. Eu acompanhei‑a timidamente, mas, à porta da sala, ela deteve‑se no escuro e tomou‑me nos braços, como antigamente, murmurando‑me ao ouvido que eu devia estimar o meu novo pai e obedecer‑lhe. Falou‑me apressada, em segredo, como se cometesse uma acção má; fê‑lo, porém, com ternura, e, pondo a mão atrás das costas, segurou a minha até atingirmos o ponto do jardim em que se encontrava Murdstone. Então largou‑me e tomou‑lhe o braço.

Era a senhora Murdstone quem chegava. Tinha aspecto severo, morena como o irmão, com quem se parecia muito na cara e na voz. As sobrancelhas espessas uniam‑se quase por cima do nariz grande, como se assim compensassem a impossibilidade (devida ao sexo) de usar suíças. Trazia duas malas pretas, sólidas, rebarbativas, as quais ostentavam na tampa, em pregos dourados, as iniciais da sua dona. Para pagar ao cocheiro, exibiu uma bolsa de aço de dentro de um saco (ao qual estava presa por uma corrente grossa) que lhe pendia do braço. Nunca eu vira uma senhora tão metálica!

Convidaram‑na a ingressar na sala com muitos rapapés e ali ela saudou a minha mãe como novo membro da família. Em seguida, olhando para mim, perguntou:

‑ É este o seu menino, querida mana? A mãe reconheceu‑me como tal.

‑ Genericamente falando ‑ disse a senhora ‑ eu não gosto de rapazes. Como vais, meu pequeno?

Sob estes auspícios animadores, respondi que ia bem e que esperava lhe acontecesse outro tanto. Ela, porém, com ar superior, definiu‑me nestes termos:

‑ Não tem maneiras.

Após ter pronunciado estas palavras com grande nitidez, pediu se dignassem conduzi‑la ao seu quarto, que passou a ser para mim um antro de terror e mistério. As duas malas pretas estavam sempre fechadas à chave. Ao espreitar para dentro do quarto por uma ou duas vezes, na sua ausência, vi uma porção de grilhões e alfinetes de aço, com que a senhora Murdstone se ataviava em dias assinalados e que pendiam em geral da moldura do espelho, numa exibição espaventosa.

Segundo concluí, ela viera habitar para sempre em nossa casa. No dia seguinte começou a «ajudar» a minha mãe, entrando na despensa a cada instante, pondo tudo em ordem e alterando o que até aí ficara estabelecido. A primeira preocupação que observei naquela dama foi a suspeita de que as criadas tivessem homens escondidos em qualquer parte da casa. Sob a influência desta desconfiança, mergulhava na loja do carvão a horas inesperadas e abria sempre as portas dos armários com um puxão brusco, certa de que lá encontraria o delinquente.

Se bem que nada tivesse de alegre na sua pessoa, a senhora Murdstone era matutina como uma cotovia. Levantava‑se (supunha eu, e ainda o creio, para descobrir o homem oculto) antes que mais ninguém o fizesse. Peggotty era de opinião que ela dormia só com um olho fechado; mas, neste ponto, eu estava em desacordo, pois quis fazer em mim mesmo a experiência e achei que o processo não dava resultado.

Na manhã seguinte ao dia da sua chegada, levantou‑se ao primeiro canto do galo, e tocou a campainha. Quando a minha mãe desceu para o almoço (ela própria fazia o seu chá), a senhora Murdstone deu‑lhe uma espécie de bicada na face (era a sua forma de beijar), e disse:

‑ Querida Clara, eu vim para cá a fim de a aliviar de trabalhos, tanto quanto possível. A mana é bastante bonita e despreocupada ‑ a mãe corou e riu, e parece que não desgostou ‑‑ para se impor obrigações de que eu posso encarregar‑me. Se quiser ceder‑me as chaves, tratarei de tudo daqui em diante.

Desde esse momento, a senhora Murdstone guardou as chaves, de dia, sob ferrolho, e à noite debaixo do travesseiro, e a minha mãe nunca mais teve de lidar com elas. Abandonou, pois, a sua autoridade, sem uma sombra de protesto. Uma vez, quando a cunhada expunha ao dono da casa certos planos de natureza doméstica, a mãe começou repentinamente a chorar e declarou que tinha o direito de ser consultada.

‑ Clara! ‑ bradou o marido, severo. ‑ Clara, estou espantado contigo.

‑ É fácil dizer que estás espantado, Edward ‑ retorquiu a minha mãe ‑ e é fácil falar também de firmeza; mas, se se tratasse de ti, com certeza que não gostarias...

Firmeza (foi‑me dado observá‑lo bem) era a grande virtude sobre que os manos Murdstone se apoiavam. Não sei como me expressaria, se me houvessem pedido que a definisse conforme o meu entendimento de então; mas sentia claramente que era um género de tirania, um humor diabólico, arrogante, sombrio, comum aos dois. O seu credo já posso agora explicá‑lo deste modo: Murdstone era firme, e ninguém, no seu meio, o seria mais. Os outros não deviam, porém, mostrar firmeza, pois tinham obrigação de se dobrar à firmeza dele, com excepção da senhora Murdstone. Esta podia ser firme, mas só por afinidade, e num grau inferior e tributário. Minha mãe também constituía excepção: tinha o direito de ser firme e devia sê‑lo, contudo na subordinação da firmeza do marido e da cunhada e crendo firmemente ser aquela a única que existia no mundo.

‑ Custa‑me muito ‑ contraveio a mãe ‑ que na minha própria casa...

‑ Minha própria casa? ‑ repetiu o senhor Murdstone. ‑ Oh, Clara!

‑ Isto é, a nossa casa ‑ balbuciou a minha mãe, evidentemente assustada. ‑ Compreendes o que quero dizer, Edward. Custa‑me que na tua própria casa eu não possa pronunciar‑me acerca dos assuntos domésticos. Desembaraçava‑me bem, suponho, antes do nosso casamento. Queres provas? ‑ acrescentou, soluçando.

- Pergunta à Peggotty se eu não me desembaraçava na perfeição quando não interferiam na minha vida.

‑ Edward ‑ atalhou a irmã ‑ acabemos com isto. Amanhã vou‑me embora.

‑ Cala‑te, Jane Murdstone ‑trovejou Edward. ‑ Como te atreves a insinuar que não conheces o meu feitio?

‑ Não desejo que ninguém se vá embora ‑ continuou a minha mãe, que estava em desvantagem notória e vertia lágrimas abundantes. ‑ Desgostar‑me‑ia a valer se alguém partisse por minha causa. Não peço muito, e creio que não são coisas desrazoáveis: desejo unicamente que me consultem de vez em quando. Estou muito reconhecida a todos os que me auxiliam, mas gostaria de ser ouvida, nem que seja por simples formalidade. Cheguei a julgar que te agradava, Edward, a minha inexperiência de rapariga (suponho que te referiste a isso), mas penso agora que me detestas por esse motivo. Mostras‑te tão severo!

‑ Edward ‑ interveio de novo a senhora Jane Murdstone ‑ vamos acabar com isto. Eu parto amanhã.

‑ Jane ‑ replicou o irmão com voz trovejante ‑, faze o favor de te calares. Como é que te atreves?

A interpelada libertou da sua bolsa um lenço de assoar e pô‑lo diante dos olhos.

‑ Clara ‑ prosseguiu ele, olhando para minha mãe ‑ palavra que estou admirado. Sim, eu fiquei contente com a ideia de casar com uma pessoa simples e sem experiência, pensando formar‑lhe o carácter e dar‑lhe alguma dessa firmeza e decisão que considerei necessárias. Mas quando a Jane condescendeu em vir ajudar‑nos neste empenho, e assumir, por amizade para comigo, um papel que é quase o de uma governanta, a recompensa que teve foi ser tratada desta maneira...

‑ Oh, Edward, por favor! Não me acuses de ser ingrata ‑ exclamou a minha mãe. ‑ Nunca ninguém me havia chamado semelhante coisa. Tenho a certeza de que não sou ingrata. Possuo muitos defeitos, mas esse não. Por favor, Edward!

Quando ela se calou, o marido redarguiu:

‑ Ressinto‑me sempre que vejo tratar injustamente a minha irmã.

‑ Não digas isso, querido Edward ‑ implorou‑lhe a mulher, deveras penalizada. ‑ NãO, não suporto isso. Por mais defeitos que tenha, não deixo de ser afectuosa. Se não estivesse convencida, não o diria. Pergunta à minha criada e ela te confirmará quanto sou afectuosa.

‑ Não há fraqueza que possa servir de justificação, Clara. Estás a perder alento.

‑ Rogo‑te, Edward, que voltemos a ser amigos ‑ respondeu a minha mãe. ‑ Aflige‑me tanto a dureza ou a indiferença! Apresento as minhas desculpas. Não me escasseiam os defeitos, bem no sei, e compete à tua bondade procurar corrigi‑los, Edward. Quanto à Jane, declaro que não oponho mais nenhuma objecção. Desgostar‑me‑ia profundamente que se fosse embora.

Estava muito comovida para poder continuar.

‑ Jane ‑ disse o senhor Murdstone à irmã ‑ creio que não são vulgares palavras amargas entre nós. Não foi por minha culpa que esta noite se deu um incidente. Outrem o provocou. Façamos ambos por esquecer. E como ‑ acrescentou, depois destas palavras generosas ‑ a cena não é edificante para uma criança... David, vai para a cama!

A custo encontrei a porta, tão enevoados de lágrimas tinha os olhos. Sentia profundamente o desgosto de minha mãe. Saí, pois, às apalpadelas e fui até ao meu quarto, sem ter coragem sequer de dar boas‑noites a Peggotty nem de lhe pedir uma vela para me ajudar no caminho. Quando a criada subiu cerca de uma hora mais tarde, a fim de verificar o que eu fazia, acordou‑me para informar que a mãe recolhera à cama muito combalida e que os irmãos Murdstones haviam ficado sozinhos.

No dia seguinte, de manhã, desci mais cedo do que o habitual e detive‑me à porta da saleta ao ouvir lá dentro a voz de minha mãe. Pedia ela, humilde e insistentemente, perdão à cunhada, o que esta liberalmente lhe concedeu. Estava feita a reconciliação. Depois disso, nunca mais a mãe deu o seu parecer fosse no que fosse sem primeiramente consultar a senhora Murdstone ou garantir‑se, por meios insofismáveis, de qual era a esse respeito a opinião da solteirona. Igualmente a minha mãe jamais deixou de revelar no rosto uma expressão de puro terror quando Jane, num repente de cólera (era atreita a esta enfermidade), levava a mão à bolsa, como para entregar, resignada, as chaves de que era portadora.

O humor tenebroso que tingia o sangue dos Murdstones ensombrava‑lhes também a religião, que era baseada na austeridade e na ira. Tenho pensado que essa religião assumia tal aspecto em consequência da firmeza do senhor Murdstone, pessoa incapaz de perdoar o castigo a quem o merecesse. Seja como for, lembro‑me bem do ar tremendo que nos impúnhamos ao ir à igreja e da mudança que se notava na atmosfera do lugar. Sempre que chega esse temido domingo, eu insinuo‑me à frente dos outros no nosso velho banco, como um preso sob escolta que vai assistir ao ofício dos condenados. A senhora Murdstone, com um vestido de veludo preto que se diria talhado num pano mortuário, segue‑me muito de perto. Em seguida a minha mãe e após ela o marido. Na cena já não figura Peggotty, como nos tempos antigos. Uma vez mais, eu oiço a senhora Murdstone salmodiar, dando às palavras um tom enfático, que ela saboreia cruelmente. Os seus olhos escuros ainda os vejo circunvagar o templo ao pronunciar «míseros pecadores», como se nomeasse deste modo todos os componentes da assembleia.

Por intervalos vejo a minha mãe mover os lábios com timidez, ali colocada no meio dessas duas personagens que, aos seus ouvidos, uma de cada lado, fazem ressoar preces que são como trovões. E eu penso, todas as semanas, tomado de súbito receio, se o nosso venerando pastor labora acaso no erro e se são os Murdstones quem tem razão, e se todos os anjos do Céu são anjos destruidores. Se me acontece mexer um dedo ou alterar um músculo da face, o senhor Murdstone dá‑me com o livro das orações e não é pequena a dor que eu sinto.

Ao voltarmos para casa, observo os nossos vizinhos, que nos observam por seu turno e falam baixinho entre si. Quando os dois esposos caminham à frente, ao lado da mana Murdstone, todos de braço dado, eu deixo‑me ficar para trás e sigo a direcção de certos olhares. E penso se o andar da mãe não será menos leve e se os cuidados não lhe hão embaciado o esplendor da beleza. Recordar‑se‑ão esses vizinhos, como eu, do tempo em que voltávamos da igreja, a mãe e o filho? Só a cogitar neste ponto eu passo estupidamente o resto dos domingos.

A minha ida como interno para um colégio fora assunto repisado lá em casa. Os irmãos Murdstones deram o alvitre e a mãe, já se sabe, submetera‑se‑lhes logo. Todavia nada havia sido deliberado. E eu, entretanto, recebia as minhas lições em casa.

Lições que nunca esquecerei! Eram superintendidas nominalmente pela minha mãe, mas na realidade pelo senhor Murdstone e a irmã, os quais estavam sempre presentes e aproveitavam a oportunidade para dar à minha mãe algumas noções dessa firmeza mal entendida, que era o flagelo da nossa existência. Suponho que me conservava em casa só para esse propósito. Quando vivíamos sós, eu dera provas de aptidão ao estudo e de boa vontade em aprender. Lembro‑me vagamente do tempo em que soletrava o alfabeto nos seus joelhos. Hoje em dia, ao ver as letras grossas da cartilha, a embaraçosa novidade da sua forma e o ar simpático dos oo, dos qq e dos ss, o passado acode‑me logo à memória, sem nenhum travo, sem nada que provoque aversão. Pelo contrário, parece‑me haver caminhado à beira de um alegrete até ao livro que falava dos crocodilos, sempre incitado pela sua voz suave e as maneiras doces da minha mãe. Mas as lições solenes que sucederam a estas, delas me recordo como de um golpe mortal vibrado na minha paz e uma grande provação quotidiana. Eram numerosas, árduas ‑ algumas perfeitamente ininteligíveis para mim e tornavam‑me perplexo como perplexa ficava a minha mãe.

Evoquemos uma dessas manhãs para ver como as coisas se passavam.

Depois do primeiro almoço desço à saleta, com os livros, cadernos e uma ardósia. A mãe, sentada à secretária, está pronta para me escutar, mas não menos pronto está o senhor Murdstone, na sua poltrona perto da janela (embora finja ler um livro), ou a senhora Jane, sentada próximo da minha mãe, a enfiar contas de aço. Só o espectáculo destas duas personagens exerce em mim tamanha influência que principio a sentir fugirem‑me as palavras que tive tanta dificuldade em decorar. A propósito, se elas fugiam, para onde é que iriam?

Apresento o primeiro livro à minha mãe. Talvez seja a Gramática, ou a História, ou a Geografia. Lanço um derradeiro olhar à página, um olhar desesperado, e começo a papaguear, enquanto a memória está fresca. Tropeço em qualquer termo. O senhor Murdstone alça a vista. Coro, precipito‑me sobre meia dúzia de palavras, e paro. Calculo que a mãe mostraria o livro, se se atrevesse a tanto; mas não ousa e diz‑me meigamente:

‑ Oh, Davy, Davy!

‑ Então, Clara? ‑ acode o marido. ‑ Sê firme com o rapaz. Não digas «Davy, Davy», é puerilidade. Ou ele sabe a lição, ou não a sabe.

‑ Não a sabe ‑ intervém Jane com voz tremenda.

‑ Bem me parece que não ‑ obtempera a mãe. A cunhada replica‑lhe:

‑ Já vê, Clara. O que tem de fazer é restituir‑lhe o livro, para que ele estude.

‑ Com certeza, Jane ‑ disse a minha mãe ‑ é o que tenciono fazer. Vamos, Davy, experimenta outra vez, e não sejas pateta.

Obedeço à primeira parte da ordem, tentando mais uma vez, mas não tenho êxito quanto à segunda, porque sou realmente pateta. Vou‑me abaixo antes de chegar ao trecho de ainda há pouco, num ponto em que antes estava seguro, e detenho‑me a pensar. Mas não concentro o pensamento na lição: magico na quantidade de tecido que seria necessária para fazer a touca da senhora Murdstone ou no preço do roupão do meu padrasto, ou noutro problema que não me diz respeito e que, afinal, me é indiferente. O senhor Murdstone esboça o movimento de impaciência que eu já esperava. A irmã imita‑o. A mãe olha submissa para eles, fecha o livro e põe‑no de lado, para recomeçar quando estiverem dadas as outras lições.

Depressa se acumulam esses processos «de segunda leitura». Quanto mais a coisa cresce, mais pateta me considero. O caso é de tal modo desesperado e eu debato‑me em tão grande lodaçal que renuncio à ideia de me tirar dali e me entrego ao meu destino. São deveras desanimadores os olhares que trocamos, minha mãe e eu. Mas o pior de tudo é quando a mãe, supondo que a não observam, pretende dar‑me a deixa pelo mover dos lábios. Nesse instante a senhora Jane, que já estava de sobreaviso, chama‑a à ordem, em voz ameaçadora:

‑ Clara!

A mãe estremece, ruboriza‑se e sorri dèbilmente. O senhor Murdstone levanta‑se, pega no livro, bate‑me com ele na cabeça e empurra‑me para fora da saleta.

Embora terminada a lição, o pior ainda está para vir: trata‑se de um problema assustador, inventado pelo meu padrasto. Principia assim: Se fores a uma mercearia encomendar cinco mil queijos a quatro dinheiros e meio cada um, pagos de pronto... Nesta altura Jane Murdstone mal disfarça o seu contentamento. Medito no assunto dos queijos sem chegar a qualquer resultado, até que chega a hora do jantar. Com o esforço despendido sobre a ardósia, absorvendo por todos os poros a sujidade que ela contém, fico uma espécie de mulato. Dão‑me um bocado de pão, decerto para acabar os queijos, e continuo banido para o resto da noite.

Visto agora a distância, afigura‑se‑me que era sempre assim o final das minhas lições. Talvez as consequências fossem diversas sem a presença dos Murdstones, porque o seu efeito assemelhava‑se ao de duas serpentes que fascinam um desgraçado passarinho. Ainda que a manhã decorresse sem incidentes, o único proveito que eu obtinha era a refeição da tarde. Se Jane me topava inactivo, chamava logo a atenção da minha mãe: «Clara, não há nada como o trabalho. Mande esse pequeno fazer qualquer exercício.» Deste modo me forçavam a novas tarefas, pelo que raramente conseguia brincar com outras crianças da minha idade; a tenebrosa teologia dos Murdstones representava‑as a todas como uma raça de víboras (embora houvesse uma, outrora, que tomou lugar entre os Discípulos e) pretendia que o seu papel era de se corromperem mutuamente.

O resultado natural deste trato, que durou, penso eu, uns seis meses, foi tornar‑me sorumbático, desanimado, teimoso, e para isto não contribuiu menos a segregação em que me tinham, cada vez mais, da minha mãe. Creio que ficaria completamente estúpido se não fosse a circunstância de meu pai haver deixado uma colecção de livros num quartinho do último andar, ao qual eu tinha acesso, por ser contíguo ao meu e por mais ninguém se importar com isso. Desse compartimento precioso surgiram, magnífica hoste, para consolo do meu isolamento, Roderick Rondam, Peregrine Pickle, Humphrey Clinker, Tom Jones, O Vigário de Wakefield, D. Quixote, Gil Blas e Robinson Crusoe. Estes volumes mantiveram‑me desperta a imaginação e a esperança numa vida diferente daquela existência que eu levava, e num lugar diferente ‑ estes, e as Mil e Uma Noites e os Contos dos Génios ‑ e não me fizeram qualquer mal, porque o mal que havia nalguns não poderia atingir‑me. Admiro‑me hoje como tinha vagar para ler todos esses livros no meio de tantas canseiras e estouvamentos, e como conseguia consolar‑me das minhas pequenas perturbações (todavia grandes para mim) incarnando essas personagens favoritas e atribuindo os papéis antipáticos aos dois irmãos Murdstones. Fui Tom Jones (um Tom Jones infantil, puramente inofensivo) durante uma semana. Fui Roderick Random (idealizado por mim) durante um mês inteiro. Li com voracidade descrições de viagens marítimas e terrestres, de livros que estavam nas estantes e dos quais me não lembro agora. Mas recordo‑me de que, dias seguidos, percorri a parte da casa que era o meu domínio, armado de umas velhas encóspias, e arremedando certo comandante da Marinha Real Britânica, com risco de ser atacado por selvagens e resolvido a vender cara a minha vida. Podia o comandante receber nas orelhas pancadas da Gramática Latina: era um herói, e os heróis, a despeito de todas as gramáticas de todas as línguas do mundo, vivas ou mortas, não abdicam nunca da sua coragem.

Consolação singular, mas duradoira. Quando penso nisto, revejo a cena, uma bela tarde de Verão, os rapazes da aldeia brincando no adro da igreja, e eu sentado na minha cama, a ler, como se a minha existência aí se concentrasse. Cada celeiro da vizinhança, cada pedra do templo, cada nesga do cemitério, associam‑se no meu espírito, de uma forma ou de outra, a esses volumes e representam alguns dos lugares célebres das minhas leituras. Lobrigo Tom Pipes a trepar o campanário da igreja; distingo Strap, de mochila aos ombros, parando à portinhola para descansar; e sei que o comodoro Trunnion e o senhor Pickle organizam o seu clube no salão da cervejaria local.

Compreende agora o leitor, tão bem como eu, o que fui nesse período da minha infância. A ele, regresso, pois.

Certa manhã, quando descia à sala dos livros encontrei lá a minha mãe, com aspecto preocupado, a senhora Jane, numa atitude de firmeza, o senhor Murdstone a atar qualquer coisa na ponteira de uma bengala ‑ objecto flexível, manejável. Vendo‑me, cessou o trabalho, sopesou a bengala e vibrou‑a no ar.

‑ Fica sabendo, Clara ‑ disse ele ‑ que também fui muitas vezes açoitado.

‑ Sem dúvida ‑ observou a irmã.

‑ Acredito ‑ volveu, condescendente, a minha mãe. ‑ Mas... parece‑lhe que isso tenha tornado melhor o Edward?

‑Julgas acaso que me fez mal? ‑ acudiu gravemente o marido.

‑ Eis a questão ‑ retorquiu Jane. Ao que a mãe aduziu:

‑ Com certeza, Jane. E calou‑se.

Pressenti, apreensivamente, que o diálogo me dizia respeito e perscrutei o olhar do senhor Murdstone quando este me fixou.

‑ Pois, David ‑ começou ele ‑ hoje terás de ir mais longe. ‑ Assim falando, tornou a sopesar a bengala e brandiu‑a de novo no ar. Feitos estes preparativos, guardou‑a a seu lado, com uma expressão significativa, e pegou no livro.

Que belo início para me estimular a memória! Senti escaparem‑me as palavras da lição, não uma a uma, nem linha a linha, mas a página inteira. Tentei detê‑las; dir‑se‑ia, porém, que tinham patins e que deslizavam para longe com velocidade incrível.

Comecei mal e fui de mal a pior. Viera com a ideia de fazer excelente figura, pois supunha‑me bem preparado; mas fora um tremendo equívoco. Compêndio após compêndio, foram‑se acumulando os desastres. E a senhora Jane não me desfitava um só momento! Enfim, quando chegámos aos cinco mil queijos (nesse dia foram bengalas que ele me obrigou a multiplicar) a mãe rompeu num pranto desabalado.

‑ Clara! ‑ bradou a cunhada, com a sua voz imperiosa.

‑ Creio que não me sinto muito bem, querida Jane...

O senhor Murdstone olhou solenemente para a irmã, levantou‑se, e, lançando mão da bengala, disse:

‑ Não, Jane, não podemos esperar que a Clara suporte com firmeza o aborrecimento e as torturas que David lhe infligiu hoje. Seria estoicismo. Clara tem aperfeiçoado o seu carácter, mas não é justo contar com mais nada. David, acompanha‑me lá acima.

Encaminhou‑me para a porta e a minha mãe correu atrás de nós. Jane interpôs‑se, perguntando: «Enlouqueceu, Clara?» Vi então a mãe tapar os ouvidos com as mãos e ouvi‑a chorar.

Murdstone levou‑me para o meu quarto, devagar e solenemente. Tenho a certeza de que ele se deliciava com essas formalidades de verdugo. Uma vez lá dentro, passou‑me o braço de roda da cabeça. Gritei:

‑ Não, senhor Murdstone! Não me bata, peço‑lhe! Fiz o possível de aprender, mas não consigo quando o senhor e a sua irmã estão presentes. Palavra que não consigo!

‑ Ah, realmente, não podes? Vamos já ver isso.

Conservava‑me a cabeça como num torninho de serralheiro, mas eu torcia‑a e retorcia‑a, suplicando sempre que não me batesse. Por um momento ‑ um só ‑ consegui detê‑lo, pois logo a seguir apertou‑me com mais força e desfechou‑me uma pancada na boca. Então prendi‑lhe a mão com os dentes e mordi‑a até fazer sangue. Depois continuou a espancar‑me, sem dó nem piedade. No meio deste barulho, sobressaiu o som de passos pela escada acima, e choros ‑ minha mãe chorava alto, assim como Peggotty. Murdstone abandonou o quarto, deixando‑me fechado à chave, deitado no chão, esfolado vivo, num desespero impotente.

Quando me acalmei, senti um silêncio anormal, silêncio que me pareceu reinar em toda a casa. E que perverso me considerei quando a paixão me passou e me tornei arrogante!

Fiquei muito tempo a escutar, porém não ouvia nenhum ruído. Ergui‑me a custo e contemplei o rosto no espelho: estava tão inchado, e rubro, e horrendo que me enchi quase de pavor. Eram grandes os vergões na pele e faziam‑me soltar gritos quando tentava mexer‑me. Nada, todavia, que se comparasse com a sensação de culpa: creio que tinha na consciência um peso maior do que o criminoso mais atroz.

Escurecera. Fechei a janela. Aí permaneci muito tempo, com a cabeça apoiada ao peitoril, ora chorando, ora dormitando, e olhando sem ver. Até que senti darem a volta à chave. Era a senhora Murdstone, que me trazia leite, pão e carne. Sem dizer palavra, colocou estas coisas na mesa e foi‑se embora e fechou outra vez a porta à chave.

Era noite fechada e eu mantinha‑me no mesmo sítio, pensando se não viria mais ninguém. Quando me convenci de que me deixavam ao abandono, despi‑me e meti‑me na cama. Ali comecei a reflectir, horrorizado, no que me poderia suceder. Seria delituoso o acto que eu cometera? Levar‑me‑ia preso para a cadeia? Correria o risco de ser enforcado?

Jamais esquecerei o despertar, no dia seguinte. De começo senti‑me alegre e repousado, e em seguida oprimido pela recordação amarga da véspera. Jane reapareceu antes de eu estar levantado. Disse‑me, em resumo, que me permitiam dar uma volta no jardim, por meia hora o máximo; depois retirou‑se, deixando a porta aberta para que eu aproveitasse aquela autorização.

Foi isso mesmo que fiz, e igualmente nos outros dias do meu encarceramento, que foram cinco ao todo. Se pudesse encontrar‑me a sós com a minha mãe, ajoelhar‑me‑ia à sua frente e pedir‑lhe‑ia perdão. Mas não topava ninguém durante o dia inteiro, excepto a solteirona. À hora da oração vesperal, para a qual ia escoltado pela mesma dama, os outros já estavam nos seus lugares, e eu ficava, como um banido, à porta da sala; depois a minha carcereira reconduzia‑me, antes que os demais saíssem. Notei que a mãe ficava muito afastada de mim e que virava a cara para outro lado de modo que nunca a via, e que a mão do senhor Murdstone se envolvia numa enorme ligadura.

Não me é fácil dar uma ideia de como decorreram esses cinco dias, que para mim pareceram longos anos. A maneira como eu escutava todos os incidentes da casa, tocar de campainhas, barulho de portas, passos na escada, o mais pequeno riso, ou canto, ou assobio, sons que me pareciam mais lúgubres que tudo na minha solidão e opróbrio; o transcorrer desigual das horas, em especial à noite, quando acordava supondo que já era manhã e depois compreendia que os outros ainda estavam dormindo e ainda faltava muito para o alvorecer; os sonhos e pesadelos terríveis que eu tinha; o regresso do meio‑dia, da tarde, do crepúsculo, quando os rapazes brincavam no adro da igreja, e eu os espiava de longe, do meu quarto, receoso de me mostrar à janela e de que me soubessem prisioneiro; a estranha sensação de nunca ouvir a minha própria voz; os ecos de certa alegria derivada dos prazeres da mesa, que me chegavam de súbito e se extinguiam; o rumor da chuva, uma noite, acompanhado de um cheiro de frescura, chuva que tombava cada vez mais forte, e que acabou por me dar a impressão de que afogava o medo e o remorso ‑ tudo isto me parece que durou anos e não apenas dias, tão vivo e intenso se me conservou na memória.

Na última noite do encarceramento acordei ao ouvir o meu nome proferido num sussurro. Estremeci na cama e, estendendo os braços no escuro, perguntei:

‑ És tu, Peggotty?

A resposta não veio logo, mas acabei por escutar outra vez o meu nome, num tom tão misterioso como assustador que, se não percebesse que falavam pelo buraco da fechadura, teria com certeza desmaiado.

Encaminhei‑me às apalpadelas para a porta e, apoiando a boca ao orifício, murmurei:

‑ És tu, querida Peggotty?

‑ Sou, menino Davy ‑ respondeu ela. ‑ Mas esteja calado como um rato para que o gato o não oiça.

Percebi que se tratava de Jane Murdstone e que a situação era de perigo: o quarto da criada ficava pegado ao meu.

‑ A mamã como está, Peggotty? Ficou muito zangada comigo? Ouvi‑a chorar baixinho do outro lado do fecho (como eu fazia da banda de dentro), antes de replicar:

‑ Não, não muito.

‑ Sabes o que vão fazer de mim?

‑ Vai para um colégio perto de Londres ‑ declarou Peggotty. Vi‑me obrigado a fazê‑la repetir, porque me esquecera de retirar a boca do buraco para aí colocar de novo o ouvido.

‑ Quando, Peggotty?

‑ Amanhã.

‑ Então foi para isso que a senhora Jane tirou a minha roupa das gavetas? ‑ Procedera realmente a esse trabalho, mas eu esqueci‑me de mencionar aqui.

‑ Sim, menino. Encheu a mala.

‑ Deixam‑me falar com a mamã?

‑ Na parte da manhã.

Então Peggotty colou os lábios ao orifício da fechadura e pronunciou as palavras seguintes com um sentimento e energia a que jamais semelhante buraquinho servira de transmissor. Cada fragmento do período escapava‑se‑lhe convulsamente, como se trouxesse um pouco dela mesma:

‑ Querido menino Davy, tenho andado arredada nestes últimos dias, contra o costume, mas não quer dizer que o estime menos. Tanto como antes, ou talvez mais. Mas pensei que seria melhor para si, e também para outra pessoa. Está a ouvir, menino?

‑ Es... tou... ‑ solucei.

‑ Querido menino! ‑ disse ela, cheia de compaixão. ‑ O que eu quero dizer é isto: que nunca me deve esquecer, porque eu também o não esqueço. Tratarei com muito cuidado da sua mamã, como tomei de si. Não a deixarei nunca. Hei‑de escrever‑lhe, menino, apesar de não ter grande instrução. Eu... eu...

E Peggotty, não podendo beijar‑me directamente, fê‑lo através do buraco da fechadura.

‑ Obrigado, querida Peggotty. Agradeço‑te muito. Queres fazer‑me um favor? Quando escreveres aos teus, diz ao senhor Peggotty, e à Emily, e à senhora Gummidge, e ao Ham, que eu não sou tão mau como podem julgar e que lhes mando muitas saudades, em especial à Emily. Não te esqueças, Peggotty. Prometes?

Aquela boa alma prometeu, e nós, de cada lado da porta, beijámos a fechadura com o maior afecto (a qual afaguei com a mão, bem me lembro, como se fosse a cara simplória da criatura). E separámo‑nos. Desde essa noite nasceu‑me no peito um sentimento por Peggotty que ainda não fui capaz de definir. Ela não substituía a minha mãe, porque esta era insubstituível, mas preencheu‑me um vazio que eu tinha no coração. Nunca outro ser humano me inspirou coisa igual. Talvez fosse uma afeição um tanto cómica, e contudo, se Peggotty morresse, eu nem queria pensar o que faria numa circunstância que considerava autêntica tragédia.

De manhã, Jane Murdstone apareceu, como de costume, e disse‑me que ia para um colégio, o que não constituiu para mim grande novidade, como ela supunha. Acrescentou que, uma vez vestido, desceria à saleta, para o primeiro almoço. Aí encontrei a minha mãe, muito pálida e de olhos vermelhos. Corri aos seus braços e pedi‑lhe, com o coração alanceado, que tivesse a bondade de me perdoar.

‑ Davy ‑ ripostou ‑ pensar que foste cruel para uma pessoa que eu amo! Vê se te emendas. Por favor, emenda‑te. Perdoo‑te, Davy, mas custa‑me saber que abrigas tanta maldade na tua alma.

Haviam‑na persuadido de que eu era um malvado, e isso pungia‑a mais do que a minha partida. Ressenti‑me bastante. Tentei ingerir o almoço, que seria o último, mas as lágrimas desciam‑me pela cara, molhando a fatia de pão e amargando o chá. A mãe olhou‑me por momentos e desviou a vista para Jane Murdstone, que estava sempre de atalaia.

‑ Tragam a mala ‑ ordenou esta, quando se ouviu o barulho das rodas da carroça.

Procurei Peggotty, mas não a vi, nem vi o senhor Murdstone. À porta achava‑se o meu velho conhecido, o carroceiro, que levou a mala para o veículo.

‑ Clara! ‑ disse Jane no seu tom autoritário.

‑ Pronto ‑ respondeu a mãe. ‑ Adeus, Davy. É para teu bem que nos deixas. Virás a casa nas férias e serás mais assisado.

‑ Clara! ‑ repetiu a cunhada.

‑ Está bem, Jane ‑ condescendeu minha mãe, que me apertava nos seus braços. ‑ Perdoo‑te, querido filho. Que Deus te proteja!

‑ Clara! ‑ insistiu Jane.

E Jane Murdstone teve a bondade de me acompanhar até à carroça, dizendo‑me pelo caminho esperar que eu me arrependesse, para não acabar mal. Em seguida subi para a viatura, que o cavalo indolente começou tirando com todo o vagar.

 

SOU EXPULSO DE CASA

Devíamos ter andado cerca de meia milha, e o meu lenço estava já ensopado, quando o carroceiro estacou bruscamente.

Alcei a vista para ver de que se tratava, e descobri, com grande espanto, Peggotty surgir de uma sebe e tomar assento na carroça. Apertou‑me nos braços e cingiu‑me contra o espartilho, pelo que fiquei com o nariz a doer, mas não disse uma única palavra. Desembaraçando uma das mãos, mergulhou‑a no bolso e extraiu de lá vários sacos de doces, com que me encheu as algibeiras, assim como uma bolsa, que me entregou, continuando sempre sem abrir a boca. Depois de me ter abraçado mais uma vez, apeou‑se da carroça e fugiu a correr. Pensei, e ainda hoje o creio, que não lhe ficara nenhum botão no vestido; apanhei um dos que caíram e guardei‑o por muito tempo como recordação.

O carroceiro contemplou‑me como para inquirir se ela voltaria. Meneei negativamente a cabeça e respondi que não achava provável. «Então, a caminho!», disse ele ao cavalo mandrião, que obedeceu à ordem dada.

Tendo já chorado o mais que me fora possível, comecei a considerar a inutilidade do pranto, tanto mais que nem Roderick Random nem o capitão da Marinha Real Britânica choraram em situações críticas como esta, se é que bem me recordava. O carroceiro, ao notar esta minha resolução, propôs‑me estender o lenço na garupa do cavalo, para o secar. Agradeci‑lhe e concordei; e como ele parecia pequenino, ali desdobrado!

Havia agora tempo para examinar a bolsa. Era de cabedal grosso, com um fecho, e continha três xelins luzidios, e, para meu maior encanto, muito bem polidos com greda, Mas o que mais me agradou foi encontrar duas meias coroas embrulhadas num bocado de papel em que estava escrito, na caligrafia da minha mãe, «Para o Davy, com muitas saudades». Isto comoveu‑me tanto que pedi ao carroceiro me devolvesse o lenço. Ele, porém, aconselhou‑me a dispensá‑lo, e achei que o homem tinha razão, de modo que enxuguei os olhos na manga do casaco e deixei de chorar. Fi‑lo de vez, embora, devido às comoções sofridas, ainda soltasse, a espaços, um grande soluço. Depois de havermos seguido a meio trote por mais uns momentos, perguntei ao carroceiro se ele ia levar‑me todo o caminho.

‑ Até onde? ‑ inquiriu o homem.

‑ Até lá.

‑ Lá o quê?

‑ Arredores de Londres.

‑ Este cavalo ‑ replicou ele, sacudindo as rédeas para indicar o animal ‑ ficaria mais morto que vivo antes de metade do trajecto.

‑ Então vai só até Yarmouth?

‑ Mais ou menos. Aí entrego o menino na diligência, e esta é que o leva... para onde vai.

Como isso constituía conversa para o carroceiro (que se chamava Barkis), pois era, como já expliquei num capítulo anterior, de temperamento fleumático, e nada tagarela, ofereci‑lhe um dos bolos em testemunho de consideração, e o homem engoliu‑o duma vez, exactamente como faria um elefante ‑ e ficou tão impassível como ficaria um mastodonte.

‑ É ela que os faz? ‑ perguntou Barkis, sempre inclinado para a frente, com o seu ar pesadão e os braços apoiados aos joelhos.

‑ Refere‑se a Peggotty?

‑ Hem? Ah, sim, a ela mesma.

‑ Pois é Peggotty quem faz os doces e cozinhados lá em nossa casa.

‑ Palavra? ‑ volveu Barkis.

Afeiçoou a boca como se fosse assobiar, mas não assobiou. Continuou a olhar para as orelhas do animal, tal se aí descobrisse algo de novo. Permaneceu assim largo tempo. Por fim disse:

‑ Espera marido? Acha que sim?

‑ Espera‑maridos e todos os doces ‑ repliquei, supondo que ele aludia a essa excelente guloseima.

‑ Não é Isso. Se alguém tenciona casar...

‑ Com Peggotty?

‑ Sim, senhor.

‑ Não, nunca teve namorado.

‑ Ah, não?! ‑ exclamou Barkis.

Afeiçoou outra vez os lábios para assobiar, e de novo desistiu, continuando, porém, a observar as orelhas do cavalo.

‑ Com que então ‑ disse por fim, após demorada reflexão ‑ ela faz todos os doces e todos os cozinhados, hem?

Informei‑o de que assim era realmente.

‑ Muito bem ‑ retorquiu. ‑ Vou‑lhe pedir uma coisa. Naturalmente pensa em escrever‑lhe...

‑ Com certeza que lhe escreverei.

‑‑Ah! ‑ tornou ele, virando lentamente os olhos para mim.‑ Se lhe escrever, talvez pudesse dizer‑lhe que o Barkis suspira...

‑ Que o senhor Barkis suspira? ‑ repeti com a maior inocência. ‑ É só esse o recado?

‑ E ‑ confirmou, parecendo meditar. ‑ É. O Barkis suspira.

‑ Mas o senhor amanhã estará de volta a Blunderstone ‑ tartamudeei, na ideia de que eu já me encontraria então muito longe. ‑ Pode perfeitamente entregar‑lhe o recado...

Todavia, como abanasse a cabeça, repudiando a alternativa e insistindo em que eu devia escrever, prontifiquei‑me a servir de intermediário. Enquanto esperava pela diligência no albergue de Yarmouth, nessa mesma tarde, arranjei uma folha de papel e um tinteiro e escrevi uma cartinha à Peggotty, concebida nestes termos:

 

«Querida Peggotty. Cheguei aqui são e salvo. Barkis suspira. Saudades à mamã. Teu muito amigo David.

«P. S. Diz ele que deseja particularmente recomendar‑te isto: Barkis suspira.»

 

Depois de me prontificar a esta incumbência, Barkis recaiu em absoluto silêncio; e eu, sentindo‑me esgotado pelos acontecimentos, estirei‑me em cima de um saco, na carroça, e adormeci. Dormi profundamente até chegarmos a Yarmouth; pareceu‑me tão diferente, em especial o pátio da estalagem onde penetrámos, que abandonei a secreta esperança de reencontrar alguém da família do senhor Peggotty, talvez a própria Emily!

A diligência estava lá, mas ainda sem os cavalos, o que me deu a impressão de que tão cedo não partiria para Londres. Cogitava nisto, e no que fora feito da minha mala, que Barkis deixara no pátio, junto da cavalariça, quando uma mulher enfiou a cabeça pela janela em que havia galinhas e peças de carne penduradas e me perguntou:

‑ É o passageiro de Blunderstone?

‑ Sou, sim, senhora.

‑ Como se chama?

‑ Copperfield.

‑ Não é esse nome. Pagaram o jantar mas não foi para si.

‑ Será Murdstone?

‑ Se é Murdstone, então está bem. Por que começou por me dar outro nome?

Expliquei o caso. A senhora tocou a campainha e gritou: «William, leva este menino à casa de jantar!», após o que saiu, a correr, um criado da cozinha, no extremo oposto do pátio, e indicou‑me o refeitório. Pareceu muito admirado de que fosse eu a pessoa a quem devia servir.

A casa de jantar era larga e comprida, adornada de mapas enormes. Creio que me sentiria menos estranho se esses mapas fossem verdadeiros países estrangeiros e eu me encontrasse de repente nalgum deles. Tive a impressão de que praticava um sacrilégio sentando‑me, de barrete na mão, à beirinha da cadeira mais aproximada da porta. E, quando o criado estendeu uma toalha expressamente para mim, e sobre ela colocou o galheteiro, todo eu me ruborizei na minha modéstia.

O homem trouxe costeletas e legumes, destapando as travessas com tanta veemência que eu supus havê‑lo de qualquer maneira ofendido. Tranquilizei‑me, porém, ao vê‑lo arrastar uma cadeira para junto da mesa e convidar‑me a tomar aí assento.

Agradeci e instalei‑me. Todavia achei bastante difícil manejar a faca e o garfo com a necessária destreza, e evitar que o molho se entornasse, tanto mais que o criado se mantinha de pé à minha frente, observando‑me com fixidez. Como eu corei de cada vez que os nossos olhares se encontravam! Ao ver‑me iniciar a segunda costeleta, participou:

‑ Há uma cerveja para si. Quere‑a agora?

‑ Pois sim, obrigado.

Despejou‑ma do jarro numa caneca avantajada, admirou‑lhe a transparência, de encontro à luz, e disse:

‑ Que beleza, hem?

‑ Não há dúvida ‑ concordei, sorrindo. Encantava‑me verificar que ele era tão amável.

Tratava‑se de um homem de olhos piscos, cara com borbulhas, cabelo eriçado. Enquanto segurava o copo, apoiava a outra mão à ilharga e tomara uma atitude condescendente.

‑ Esteve cá ontem um senhor ‑ disse ele ‑ um senhor gordo, chamado Topsawyer [5]... talvez o conhecesse...

‑ Não, creio que não.

‑ Usava calções e polainas, um chapéu largo, casaco cinzento, gravata de pintinhas...

‑Não ‑ repeti envergonhado ‑ não tenho o gosto de...

‑ Pois veio aqui ‑ continuou o criado, mirando sempre a minha cerveja ‑ pediu um copo disto... Aconselhei‑o a não tomar... Mas insistiu em beber e caiu morto. Era forte de mais para ele. Não o deviam ter servido. Ora aí tem.

Fiquei muito impressionado com o triste acontecimento e declarei que talvez fosse preferível eu tomar água em vez de cerveja.

‑ Já vê... ‑ replicou o homem, ainda com o copo erguido à luz e fechando um dos olhos. ‑ A patroa não gosta que se encomendem coisas e se deixem ficar... Sente‑se vexada. Não importa, eu tomo, se me dá licença. Estou habituado. Não me fará mal se inclinar a cabeça para trás e ingerir tudo rapidamente. Permite?

Respondi‑lhe que era um favor que me fazia, se tinha a certeza de que não lhe traria dano; mas só com esta condição. Quando deitou a cabeça para trás, a fim de absorver a cerveja de um trago, senti um medo terrível, devo confessá‑lo: podia o homem ter o destino do senhor Topsawyer e cair redondo no chão. Ora, pelo contrário, a coisa pareceu fazer‑lhe bem.

‑ Que temos aqui? ‑ perguntou, metendo um garfo no meu prato. ‑ Não são costeletas?

‑ São ‑ repliquei.

‑ Deus seja louvado! Não sabia que eram costeletas. Exactamente o que é preciso para contrariar os maus efeitos desta cerveja. Que sorte, hem?

Com a mão bifou‑me uma costeleta, agarrando‑a pelo osso; com outra agarrou numa batata, e tudo devorou com apetite extraordinário, o que me causou admiração. Serviu‑se de segunda costeleta e de segunda batata, e, depois de as haver comido, foi‑me buscar um pudim. Colocou‑o à minha frente, mas conservou‑se com ar absorto, como se perdido em meditações. De repente indagou:

‑ Que tal o pastelão?

‑ É um pudim ‑ informei‑o.

‑ Pudim!‑repetiu. ‑ Oh, meu Deus, é verdade!‑acrescentou, olhando‑o mais de perto. ‑ Não tem crosta de pastelão?

‑ Tem, sim.

‑ Pudim com uma crosta! O meu pudim predilecto! Continua a sorte, hem? Vamos ver então qual é o que come mais depressa.

Evidentemente que ele levou a melhor na competição. Por mais de uma vez incitou‑me a ganhar, mas havia grande diferença entre a minha colher de café e a sua colher de sopa, entre o meu desembaraço e o seu, entre o meu apetite e o dele. Estive sempre, pois, em desvantagem. Creio que nunca vi ninguém comer um pudim com tanto gosto. Quando tudo desapareceu do prato, ainda o homem ria, como se o prazer continuasse.

Achando‑o tão amigo e camarada, pedi‑lhe pena, tinteiro e papel a fim de escrever à Peggotty. Não só me obsequiou imediatamente como seguiu com os olhos, por cima do meu ombro, o que eu ia redigindo. Terminada a carta, quis saber onde ficava o meu colégio.

‑ Perto de Londres. Era tudo o que eu sabia.

‑ Oh! ‑murmurou, contristado.‑ Lamento muito.

‑ Porquê? ‑ indaguei.

‑ Oh, Deus meu! ‑ retorquiu, oscilando a cabeça. ‑ Foi mesmo nesse colégio que partiram as costelas de um rapaz... duas costelas... e era um rapazinho. Devia ter... vejamos... que idade é a sua?

Informei‑o de que ia nos nove.

‑ Precisamente o mesmo. Ele tinha oito anos e seis meses quando lhe quebraram a primeira costela; oito anos e oito meses quando da segunda.

Não pude dissimular o desagrado que essa notícia me provocava e perguntei‑lhe como acontecera tal coisa. A resposta não foi animadora, pois esclareceu‑me com uma palavra sinistra: açoites.

Um som de trompa no pátio desviou‑nos oportunamente a atenção. Levantei‑me e inquiri, hesitante, com um misto de vaidade e temor (que me inspiravam a ideia de possuir uma bolsa com dinheiro) se havia alguma coisa em dívida.

‑ Uma folha de papel de carta. Já comprou algum dia papel de carta?

Bem me parecia que não.

‑ É caro ‑ prosseguiu ele ‑ por causa dos impostos. Três dinheiros‑. Assim são as alcavalas neste país! A tinta é de graça. Resta só o criado.

‑ Quanto é.que... quanto devo... O que é que se costuma pagar ao criado? ‑ tartamudeei, corando.

‑ Se eu não tivesse família, e a família não estivesse com bexigas... ‑ observou o homem ‑ não aceitaria meio xelim... Se não tivesse mãe, por sinal velha, e uma irmã adorável... não aceitaria nada... ‑ acrescentou, em tom comovido. ‑ Se possuísse um bom lugar, e fosse bem tratado... seria capaz de pedir que aceitasse uma lembrança, em vez de ser eu a recebê‑la. Mas vivo... sabe‑se lá como vivo e como durmo!

Nesta conjuntura desatou a chorar. A infelicidade do homem afligia‑me bastante, e achei que gratificá‑lo com menos de nove dinheiros seria muita dureza de coração. De maneira que lhe dei um dos meus xelins luzidios, que ele aceitou com grande humildade e veneração, e logo a seguir fê‑lo saltar com um piparote, para experimentar a genuidade da moeda.

Foi um tanto desconcertante verificar, quando me ajudaram a subir a diligência, que supunham ter eu comido todo o jantar, sem a colaboração de ninguém. Ouvi a dama que estava à janela dizer ao cocheiro: «Cuidado com essa criança, não vá rebentar!», e vi as criadas da estalagem acorrerem a observar o fenómeno, sufocando risadinhas. O meu infortunado amigo, aquele que me servira o jantar, recobrara o bom humor e associava‑se ao desfrute e não parecia nada comprometido. Isto despertou‑me certa desconfiança quanto à sua seriedade, embora, de um modo geral, eu possuísse então a boa fé das crianças, que lastimo haver depois trocado pela sabedoria das pessoas experientes.

Considerei todavia um pouco duro, confesso, dar azo, sem o merecer, às graçolas do cocheiro, que fingiu recear que a diligência tombasse para o lado que eu ocupava. A história do meu suposto apetite não tardou a espalhar‑se entre os passageiros, que se divertiram à minha custa. Até me perguntaram se, no colégio que eu ia frequentar, pagaria por dois ou três; se tinham feito preço especial para mim ou se se resignavam à tarefa ordinária; e muitas outras perguntas chocarreiras. Mas o pior de tudo era saber que me envergonharia de tornar a comer, quando se oferecesse oportunidade, e que, após uma refeição tão frugal, passaria fome toda a noite ‑ pois na minha precipitação esquecera‑me dos bolos no albergue. As minhas apreensões não foram vãs. Quando nos apeámos para cear, faltou‑me a coragem de o

fazer, se bem que tanto me apetecesse, e eu sentei‑me ao canto da lareira e declarei que não queria nada, o que não evitou novas pilhérias: um cavalheiro de voz rouca e feições grosseiras, que todo o caminho mastigara sanduíches (além de ter emborcado uma garrafa), disse que eu era como a jibóia, que se alimenta por uma vez e passa o resto do tempo a digerir.

Partíramos de Yarmouth às três horas da tarde e devíamos chegar a Londres na manhã seguinte, às oito horas. Estava um tempo magnífico e a tarde apresentava‑se deliciosa. Quando atravessámos uma aldeia, imaginei o que seria o interior dessas residências e as ocupações dos habitantes; e quando os garotos corriam atrás de nós, agarrando‑se aos varais do veículo e ali balançando por uns momentos, eu pensava se eles teriam os pais vivos e se reinava a felicidade nos seus lares. Não me faltavam temas para meditação, além de que o meu espírito jamais deixava de incidir no colégio para onde eu ia, o que era motivo de horríveis conjecturas. Às vezes, bem me lembro, a memória evocava Peggotty e a minha casa, e eu tentava, de forma confusa e obscura, recordar‑me dos meus sentimentos passados, antes de haver mordido a mão do senhor Murdstone: mas não consegui fazê‑lo inteiramente, tanto me parecia remota a data em que sucedera o incidente.

A noite não foi tão amena como a tarde, porque o tempo refrescara; e, como me tinham encaixado entre dois senhores (um deles o da voz rouca), para evitar que eu caísse da diligência, aqueles quase me sufocaram, cabeceando de sono e apertando‑me de um lado e outro. Em certa ocasião não me coibi de gritar «Por amor de Deus!», o que lhes desagradou, pois acordaram. Defronte de mim ia uma senhora idosa, com um casaco enorme de peles, a qual ao escuro mais parecia um molho de feno, tanta era a roupa que a cobria. Essa dama transportava um cabaz, de que não soubera como desembaraçar‑se antes de mo pôr debaixo dos pés. O cabaz provocava‑me cãibras e tornava‑me infeliz; mas, a cada movimento meu, chocavam‑se lá dentro objectos de vidro, e a sua possuidora pespegava‑me um pontapé doloroso, dizendo: «Esteja quieto, menino!»

Finalmente nasceu o Sol e os meus companheiros puderam dormir mais sossegados. Não se imaginam as dificuldades que tiveram durante a noite, manifestadas em suspiros e roncos espantosos. Conforme, porém, clareava, o sono tornava‑se mais leve, e, a pouco e pouco, foram despertando. Fiquei admirado quando os vi fingir que não haviam dormido nada, repudiando indignados a simples hipótese de terem fechado os olhos. Eis o que ainda hoje me surpreende, pois cheguei à conclusão que, de todas as fraquezas humanas, a que estamos menos dispostos a confessar (sei lá porquê!) é a de pegar no sono em viagem.

Não me deterei aqui a relatar que lugar assombroso se me afigurou Londres quando descobri de longe a cidade, nem como imaginei que as aventuras dos meus heróis predilectos ali se desenrolavam de contínuo, nem como vagamente entrevi esse cenário repleto de maravilhas e perversões, como nenhum outro no mundo. A pouco e pouco nos fomos aproximando, e chegámos à estalagem do bairro de Whitechapel à hora prevista. Não me lembro se era a do Touro Azul se a do Javali Azul, mas sei que era qualquer coisa dessa cor e que havia uma reprodução pintada na parte posterior da diligência.

O condutor relanceou‑me, ao descer, e disse à porta do escritório:

‑ Vem um menino chamado Murdstone, de Blunderstone, Suffolk. Alguém espera por ele?

Ninguém se apresentou.

‑ Experimente com o nome de Copperfield ‑ lembrei, desalentado.

O homem repetiu a pergunta, com o meu verdadeiro apelido.

Mas não. Não havia ninguém à minha espera. Aliás o inquérito não impressionara os assistentes, excepto um sujeito de polainas, cego de um olho, e que sugeriu me pusessem ao pescoço uma coleira de latão e me guardassem na cavalariça.

Trouxeram uma escada e eu apeei‑me atrás da senhora que se assemelhava a um molho de feno: não me atrevera a mexer‑me sem que ela recolhesse o cabaz. Já não havia mais passageiros na diligência, as malas foram todas retiradas, e começavam a desatrelar os cavalos. E ninguém aparecia para reclamar o moço embarcado em Blunderstone, Suffolk!

Mais solitário do que Robinson Crusoe (que não teve quem contemplasse a sua solidão), eu entrei no escritório e, por convite do funcionário de serviço, passei para trás do balcão e sentei‑me na balança em que pesavam a bagagem. Aí, enquanto olhava os embrulhos, fardos, livros, e aspirava o odor dos estábulos (desde então associado no meu espírito a essa manhã), começou a desfilar‑me na mente um cortejo de formidáveis considerações. Se ninguém viesse buscar‑me, por quanto tempo consentiriam na minha permanência ali? Deixar‑me‑iam ficar até que nada mais restasse dos meus sete xelins? Dormiria essa noite num daqueles caixotes, com as outras bagagens, e lavar‑me‑ia de manhã debaixo da bomba do pátio? Ou pôr‑me‑iam na rua todas as noites e voltaria no dia seguinte ao escritório, quando este reabrisse, até ser definitivamente reclamado? E que devia fazer se, afinal, o senhor Murdstone tivesse ideado esse plano para se desembaraçar de mim? Se permitissem a minha estada só até ao consumo completo dos sete xelins, que aconteceria quando eu começasse a sentir os efeitos da fome? Isso seria obviamente desagradável para os fregueses, além de implicar fosse para quem fosse a possibilidade de despesas do funeral.

Admitindo que partia imediatamente, iniciando uma marcha de regresso ao lar: como descobrir o caminho? E como esperaria andar tanto a pé? E, caso fosse bem sucedido na jornada, talvez o acolhimento o não fosse, excepto no tocante à Peggotty. Poderia apresentar‑me às autoridades competentes e oferecer‑me para soldado ou marinheiro; mas, com a minha idade, quem me aceitaria? Estes pensamentos, e muitos outros semelhantes, faziam‑me ruborizar. O medo, as apreensões davam‑me volta ao miolo. Estava no auge da minha aflição quando entrou um sujeito que disse qualquer coisa ao ouvido do empregado; este foi logo buscar‑me à balança, puxando‑me de esguelha, e empurrou‑me para o recém‑vindo como se eu acabasse de ser pesado, pago e expedido.

Ao sair do escritório, de mão dada com esse novo conhecimento, lancei‑lhe um olhar de revés. Tratava‑se de um rapaz esgalgado, de faces cavadas, e queixo quase tão negro como o do senhor Murdstone; mas nisto acabavam as semelhanças, pois não tinha suíças, e o cabelo, em vez de ser lustroso, era seco e rebelde. Envergava um fato preto, mal adaptado ao corpo, de mangas e pernas um tanto curtas. Usava plastrão branco, que não parecia impecavelmente limpo. Não quero dizer que o plastrão fosse toda a sua roupa branca, mas foi esta a impressão que me deixou.

‑ É o novo aluno? ‑ perguntou‑me.

‑ Sou, sim, senhor. Supus que sim. Não sabia.

‑ Sou um dos professores do Internato de Salem ‑ explicou ele. Fiz uma vénia, dominado pelo mais profundo respeito. E tive tanta vergonha de aludir a uma coisa tão prosaica como a minha mala perante uma sumidade daquelas que andámos uns poucos de passos antes que eu me atrevesse a mencioná‑la. Voltámos, pois, atrás, após a insinuação discreta que fiz de que essa mala me poderia ser necessária mais tarde. O professor informou o empregado da estação de que o carroceiro se encarregaria do transporte, ao meio‑dia.

‑ É longe? ‑ perguntei timidamente, quando nos pusemos de novo a caminho.

‑ Depois de passar Blackheath.

‑ Mas fica longe? ‑ insisti.

‑ Um bom bocado de caminho. Iremos na diligência. Cerca de seis milhas.

Sentia‑me tão fraco e cansado que a perspectiva dessa distância me inquietou bastante. Tomei então alento para lhe declarar que não comera nada em toda a noite e que lhe agradecia se me permitisse comprar qualquer alimento. Pareceu admirado ‑ ainda o vejo deter‑se e olhar‑me ‑ e, após uns instantes de reflexão, disse que precisava visitar uma velha que morava ali perto e que o melhor seria eu adquirir pão ou outra coisa que fosse saudável e preparar um almoço em casa da tal mulher; aí podia até encontrar leite.

Por consequência, entrámos numa padaria e, depois de eu ter proposto sucessivamente o que havia de mais indigesto, e que ele foi rejeitando, decidimo‑nos por um belo pãozinho escuro, que me custou três dinheiros. A seguir, numa mercearia, comprámos um ovo e uma fatia de presunto bastante entremeado, e disto resultou uma bela demasia do segundo dos meus xelins, pelo que considerei muito barata a vida na capital. Munidos destas provisões, recomeçámos a andar, no meio de tumulto e algazarra, de que se ressentiu a minha cabeça enfraquecida. Atravessámos a Ponte de Londres (creio que o meu companheiro assim a nomeou, mas eu já ia cheio de sono), e chegámos finalmente à casa da infeliz criatura a que me referi. Esta casa fazia parte de um bairro pobre, como percebi pelo seu aspecto, e também pela inscrição gravada numa pedra, sobre o portão: nela se dizia que o bairro havia sido fundado para vinte e cinco mulheres indigentes.

O professor do Internato de Salem levantou a aldrava de uma dessas portinhas pretas, todas semelhantes; tinham a um lado uma janela de vidraças, e, por cima, outra janela igual. Nessa casa vivia uma mulher velha e pobre, que nesse momento agitava o lume a fim de ferver o conteúdo de uma caçarola. A velha, ao descobrir o visitante, parou e, com o abanador nos joelhos, disse qualquer coisa que me soou como «Meu Charley!»; mas, ao ver‑me também, pôs‑se de pé e, esfregando as mãos, embaraçada, fez uma espécie de reverência curta.

‑ É capaz de cozer o almoço deste menino? ‑ perguntou o meu companheiro.

‑ Se sou capaz? Pois não havia de ser?

‑ Como está hoje a senhora Fibbitson? ‑ inquiriu o professor, olhando para a outra mulher, que ficara sentada numa poltrona, próxima da lareira; lembrava de tal modo um saco de roupa, que ainda hoje me felicito por não me haver sentado em cima dela, por engano.

‑ Não vai bem ‑ respondeu a primeira. ‑ Está num dos seus dias maus. Se o lume se apagasse, por casualidade, acredito que a sua vida se apagaria também.

Olharam para a velha doente, e eu olhei também. Embora o dia estivesse temperado, a criatura dir‑se‑ia só pensar no fogo. Até a julguei ciumenta da caçarola! Devia ter‑se indignado com o facto de o meu ovo ser posto logo a cozer e o meu presunto a fritar, pois vi‑a (quando mais ninguém olhava) brandir‑me o punho no decorrer dessas operações culinárias. O sol entrava a jorros pela janelinha, mas a enferma voltava‑lhe as costas e só se preocupava com o calor do fogão. Terminados que foram os preparativos do meu almoço, e desembaraçado o lume, a mulher desatou a rir, com grande regozijo ‑ e devo esclarecer que as suas risadas não eram nada melodiosas.

Sentei‑me à mesa, diante do pão, do ovo e da delgada fatia de presunto, assim como de uma tijela de leite, e saboreei a minha refeição. Enquanto estava assim ocupado, a primeira das velhas indagou do professor:

‑ Trouxeste a flauta?

‑ Trouxe ‑ respondeu ele.

‑ Então toca qualquer cousa ‑ rogou a mulher. ‑ Faz esse favor!

Com isto, o professor levou a mão à algibeira da sobrecasaca e exibiu três bocados de uma flauta, os quais atarrachou uns nos outros, e começou logo a tocar. A minha impressão, passados todos estes anos, é que jamais se tocou tão mal neste mundo. Extraiu do instrumento os sons mais tristes que eu até então ouvira, produzidos natural ou artificialmente. Não sei de que música se tratava (se música era, o que duvido), mas o caso é que me reconduziu aos meus desgostos, de tal maneira que a custo reprimi as lágrimas. Além disso tirou‑me o apetite e em seguida fez‑me tal sono que mal podia conservar os olhos abertos. Estes principiam a fechar‑se e a cabeça pende‑me para a frente sempre que recordo aquela cena. Mais uma vez o quartinho com a sua cantoneira, as cadeiras de espaldar direito, a escada íngreme que conduzia ao andar superior, as três penas de pavão que ornavam a prateleira da chaminé (quando lá entrei a primeira vez pensei que diria esse pavão se soubesse o destino que as suas penas teriam) ‑ mais uma vez tudo isso se dissipa aos meus olhos, e eu inclino a cabeça e adormeço. A flauta torna‑se inaudível, substituída pelo rumor das rodas da diligência, e eis‑me de novo em viagem. Um solavanco do veículo desperta‑me em sobressalto e a ária volta a soar; o professor do Internato de Salem, sentado de pernas cruzadas, toca com ar melancólico, enquanto a velha da casa o contempla deliciada. Ela, por sua vez, desaparece, ele desaparece também; já não há flauta, nem professor, nem Internato, nem David Copperfield: unicamente impera um sono profundíssimo.

Foi sonho, com certeza, mas em certo momento, enquanto ele soprava na flauta incrível, a velha da casa, que se aproximara cada vez mais do professor como se enlevada, debruçou‑se sobre as costas da cadeira e cingiu‑lhe meigamente a cabeça nos braços, o que fez parar por instantes a música. Eu estava meio acordado meio adormecido, naquela ocasião ou logo após, pois quando o homem recomeçou, vi e ouvi a velha perguntar à senhora Fibbitson se não era um encanto (o som da flauta, naturalmente), ao que a outra respondeu:

‑ Com certeza! Com certeza!

E curvou‑se para o lume, ao qual atribuiu, estou em crer, todo o mérito do concerto.

Transcorrido muito tempo do meu estado de torpor, o mestre do Internato de Salem desatarrachou a flauta, guardou no bolso os três pedaços, e trouxe‑me para fora da casa. A diligência encontrava‑se ali à mão; subimos para o lado do cocheiro, mas o sono não me largava, e foi preciso (quando houve nova paragem) meterem‑me no interior, onde eu dormi como um justo, até à subida de uma encosta íngreme, entre folhagem verde. Aí se deteve a diligência, pois atingíramos o término.

Meia dúzia de passos, e eu e o professor achámo‑nos no Internato de Salem, que era rodeado de muros de tijolo e tinha um ar soturno. Sobre a porta, aberta num desses muros, via‑se uma tábua com o nome do estabelecimento, e, por uma abertura gradeada, alguém nos examinou lá de dentro, quando puxámos a campainha. Era uma cara carrancuda, que eu, depois, vi pertencer a um homem forte, de pescoço taurino, fontes estreitas e cabelo rapado. Usava uma perna de pau. o professor explicou:

‑ É o novo aluno.

O coxo inspeccionou‑me dos pés à cabeça (não demorou muito tempo, atendendo à minha pequena estatura) e fechou a porta atrás de nós, arrecadando a chave. Encaminhámo‑nos para a casa, que ficava no meio de árvores grandes e sombrias, e ele, que permanecia no seu posto, chamou pelo meu guia:

‑ Senhor Mell!

Retrocedemos. O homem, de pé à porta de um cubículo, onde vivia, segurava um par de botas na mão.

‑ O sapateiro ‑ continuou ele ‑ veio depois de o senhor ter saído e disse que não podia consertá‑las mais. Já nada resta das primitivas!

Com estas palavras atirou as botas ao senhor Mell, que recuou uns passos para as apanhar e as considerou com ar desconsolado quando retomávamos a marcha. Notei então, pela primeira vez, que o calçado que ele trazia estava muito gasto e tinha até um buraco por onde espreitava a peúga.

O prédio, construção quadrada, de tijolos, compunha‑se de duas alas e parecia totalmente desguarnecido. Em volta estava tudo tão calmo que eu disse ao senhor Mell ter a impressão de que os alunos se haviam ausentado. O professor admirou‑se então de que eu não soubesse ser tempo de férias. Os estudantes tinham recolhido a penates, e o proprietário do estabelecimento, senhor Creakle, achava‑se com a mulher e a filha numa estância balnear. Segundo informação também do senhor Mell, eu fora para ali mandado como castigo do meu mau procedimento. Isto tudo foi‑me dito enquanto caminhávamos.

A aula, aonde ele me levou, deu‑me uma impressão de desamparo e tristeza como nunca sentira. Ainda hoje a recordo.

É uma sala comprida, com três longas filas de carteiras e seis bancos, e paredes eriçadas de escápulas para chapéus e ardósias. No chão mal lavado espalham‑se restos de cadernos velhos. Há caixas de papel para bichos‑da‑seda dispostas por cima das carteiras. Dois pobres ratinhos brancos, abandonados pelo dono, percorrem de alto a baixo um castelo bolorento feito de cartão e arame, e os seus olhinhos vermelhos procuram por todos os cantos um pouco de comida. Numa gaiola quase do seu tamanho, um pássaro salta ao poleiro e desce imediatamente, fazendo um rumor de matraca; mas não pia nem canta. Erra na aula um cheiro estranho e malsão, como o que se exala da belbutina húmida, das maçãs maduras de mais, dos livros apodrecidos. Se a sala não tivesse tecto e do céu caísse tinta em forma de chuva, neve ou granizo, conforme as estações do ano, o soalho não poderia estar mais negro e conspurcado.

Como o senhor Mell me deixasse só para ir guardar o par de botas sem conserto, eu dirigi‑me lentamente até ao outro extremo da aula, observando tudo isto, de caminho; e foi então que descobri de súbito um aviso de cartão, deixado na secretária. Tinha escritas estas palavras: Cuidado com ele, porque morde.

Saltei logo para cima da mesa, receoso de que estivesse debaixo dela pelo menos algum canzarrão. Mas, por mais que olhasse ao redor, não vi nada de semelhante. Estava ainda a investigar a sala quando voltou o senhor Mell e me perguntou que fazia eu ali empoleirado.

‑ Desculpe ‑ respondi. ‑ Procurava o cão. ‑ Cão? Qual cão?

‑ Aquele de que é preciso ter cautela. O que morde.

‑ Não, Copperfield ‑ volveu‑me gravemente. ‑ Não se trata de um cão mas de um menino. Tenho instruções para colocar este cartaz nas suas costas. Lastimo ver‑me obrigado a começar assim, mas são ordens.

Fez‑me descer da secretária e pendurou‑me dos ombros o cartão (que fora preparado para esse fim), como quem assenta uma mochila. Por toda a parte por onde andei, depois disso, tive o consolo de o trazer comigo.

O que sofri por causa desse letreiro ninguém pode imaginar. Quer o vissem ou não, eu julgava que o estavam sempre a ler; nem era alívio o facto de me virar e não ver ninguém, porque supunha que havia fatalmente alguém atrás de mim. O homem da perna de pau agravava‑me o sofrimento com o seu rigor feroz. Constituía uma autoridade, e, se me topava apoiado a uma árvore ou à parede, berrava lá do seu cubículo, com voz estentórea: «Você, aí, Copperfield! Mostre o distintivo, ou então faço queixa!»

O pátio do recreio, terreno vazio, de cascalho, ficava entre as traseiras da casa e as dependências, e eu sabia que os criados liam o cartaz, que o homem do talho e o padeiro também o liam, que todos, em suma, que entravam e saíam, tomavam conhecimento do meu opróbrio e tomavam precauções para não ser mordidos. Cheguei a ter realmente medo de mim, como de um selvagem perigoso.

Havia nesse pátio uma porta velha, na qual os rapazes costumavam gravar o nome. Estava inteiramente coberta de inscrições deste género. No terror de ver chegar o fim das férias e o regresso dos alunos, eu não podia ler o nome de nenhum sem pensar no que imaginariam ao ver o aviso Cuidado com ele, porque morde. Entre eles figurava o de J. Steerforth, gravado tão profunda e tão repetidamente que me convenci de que iria soletrar o cartaz com voz fortíssima e me puxaria pelos cabelos. Encontrei também outro, Tommy Traddles, que me deu a impressão de ser trocista e fingir que a minha pessoa o assustava. E ainda um terceiro, George Demple, que me incutiu a ideia de que entoaria o aviso com acompanhamento musical. Olhava assim, pobre criatura trémula, para todos esses nomes e ouvia já os seus possuidores ‑ eram quarenta e cinco os estudantes matriculados, conforme dissera o senhor Mell ‑ decretarem a minha exclusão, por unanimidade, e gritarem, cada qual a seu modo: Cuidado com ele, porque morde!

O mesmo quanto aos bancos e carteiras. O mesmo quanto à selva de leitos abandonados, que lobriguei furtivamente ao subir para me deitar, e o mesmo quando na cama. Todas as noites sonhava com minha mãe, tal como ela fora, ou que ia de visita a casa do senhor Peggotty, ou que viajava em diligência, ou que tornava a jantar com aquele infeliz criado meu amigo; e em todas estas ocasiões as pessoas gritavam alarmadas ao descobrir que eu não tinha como vestuário senão a camisa de dormir e o nefando cartaz às costas. Insuportável aflição esta, na monotonia da minha vida, sempre com a ideia de que as aulas reabririam! Diariamente me impunha o senhor Mell diversos trabalhos, de que eu me desempenhava menos mal, porque não tinha a presença dos irmãos Murdstones. Antes e depois desses exercícios escolares, passeava sob a vigilância do homem da perna de pau. Quão vívida me resta a lembrança da humidade da casa, das lajes estaladas do pátio, de um velho tonel rombo que aparava a água da chuva, dos troncos descorados de certas árvores sinistras, que pareciam gotejar mais, no Inverno, do que as outras, e florir menos na Primavera! Almoçávamos à uma hora, eu e o senhor Mell, no extremo da comprida sala desguarnecida, que só continha mesas de pinho e que cheirava a ranço. Em seguida voltavam os exercícios escolares, até à hora do chá, quando o professor se servia de uma xícara azul e eu de uma tijela de estanho. Todo o dia (só terminava às sete ou oito da noite), o senhor Mell, sentado à secretária na aula, e munido de papel, livros, pena, tinteiro e régua, fazia as contas (ao que averiguei) do último semestre. Depois de arrumar tudo aquilo, à noite, extraía a flauta da algibeira e soprava nela ‑ e eu a pouco e pouco cria vê‑lo transformar‑se em sopro e sumir‑se pelos buracos do instrumento.

Evoco‑me ainda naquela tenra idade, nesses quartos mal iluminados, com a cabeça apoiada na mão, a escutar a música do senhor Mell e preparando as lições para o dia seguinte. Vejo‑me depois, com os livros fechados e postos de parte, ainda a ouvir as melodias lúgubres do professor; mas, sentindo‑me triste e solitário, o que eu imaginava era a música que se tocava em minha casa ou o vento varrendo os plainos de Yarmouth. Revejo‑me a subir os degraus para me ir deitar e profiro, entre lágrimas, o nome de Peggotty; ou a descer de manhã e a espreitar, por uma fresta comprida da escada, para o sino do colégio, suspenso no topo de um alpendre sobrepujado de catavento, o que me fazia lembrar a hora em que ele soaria para as aulas, convocando J. Steerforth e os outros... Isto, todavia, era o menos comparado com a apreensão que me tolhia ao pensar no momento em que o coxo desferrolharia o portão ferrugento para dar entrada ao temível senhor Creakle. Não posso acreditar que fosse, em nenhum destes aspectos, personagem realmente perigosa; a verdade, porém, é que exibia sempre, nas costas, o cartaz ignominioso.

O senhor Mell não falava muito comigo, mas também não me tratava com rudeza. Julgo que, sem palavras, fazíamos companhia um ao outro. Esqueci‑me de dizer que ele falava às vezes consigo mesmo,  rangia os dentes, cerrava os punhos, arrepelava os cabelos de modo incrível, e fazia caretas. E, se de começo me inspirou medo, o certo é que depressa me habituei.

 

ALARGO O CÍRCULO DOS MEUS CONHECIMENTOS

Havia já cerca de um mês que eu levava esta existência quando o coxo começou a manquejar por toda a casa, com uma vassoura e um balde. Daí tirei a conclusão de que se faziam preparativos para receber o senhor Creakle e os estudantes. Não me enganava, porque não tardou que a vassoura entrasse na aula e nos expulsasse, a mim e ao senhor Mell. Fomos viver onde pudemos, desembaraçando‑nos de qualquer modo, durante dias, e incomodando duas ou três raparigas que pouco se tinham mostrado anteriormente. Andámos de contínuo no meio de tais ondas de poeira que eu espirrava como se o Internato de Salem fosse uma tabaqueira gigantesca.

Certo dia o professor participou‑me que o senhor Creakle vinha nessa tarde. Depois do chá, soube que ele já tinha chegado, e, antes de me deitar, o coxo foi buscar‑me para comparecer diante do director.

A parte da casa que este habitava era muito mais confortável do que o resto; até lhe pertencia um jardinzito que se podia considerar aprazível comparado com o nosso pátio poeirento, verdadeiro deserto em miniatura, onde (estava eu convencido) nenhum camelo ou dromedário se sentiria à vontade. Tomei a liberdade de reparar no corredor que atravessei e achei‑o também confortável. Foi a tremer que me apresentei ao senhor Creakle, e fiquei tão embaraçado que mal dei pela presença da mulher e da filha; só a ele prestei atenção. O senhor Creakle era homem forte, estava sentado numa poltrona, usava na corrente do relógio vários berloques e tinha à sua beira um copo e uma garrafa.

‑ Com que então ‑ exclamou ‑ é este o cavalheiro cujos dentes precisam de ser limados! Vira‑o de costas.

O da perna de pau voltou‑me, para que se visse o letreiro. E, depois de deixar correr algum tempo para um exame perfeito, voltou‑me outra vez e colocou‑se ao lado do director.

O senhor Creakle tinha cara rubicunda, olhos pequenos e muito encovados, veias grossas na testa, nariz curto e queixo saliente. Era calvo no alto da cabeça, mas puxava para cima as farripas grisalhas, que pareciam húmidas, de forma a entrelaçarem‑se. Mas o que mais me impressionou foi a circunstância de não ter voz e falar sussurrando. O esforço que isto lhe exigia, ou a consciência de se exprimir tão baixinho, dava‑lhe um ar irritado, que mais se evidenciava no inchar das veias quando queria conversar.

‑ Que me dizes acerca deste pequeno? ‑ perguntou o senhor Creakle ao da perna de pau.

‑ Por enquanto ainda não há nada contra ele. Não houve oportunidade.

Penso que o senhor Creakle teve uma desilusão, mas não compartilhada pela mulher e pela filha, as quais, pela primeira vez, observei de soslaio, reparando também que eram ambas magras e de aspecto pacífico.

‑ Aproxima‑te ‑ ordenou o senhor Creakle, fazendo um gesto com o dedo.

‑ Venha cá ‑ disse o coxo, repetindo o gesto do director.

‑ Tenho o gosto de conhecer o teu padrasto ‑ murmurou aquele, agarrando‑me numa orelha. ‑ É um homem de valor, e muito digno. Conhece‑me e eu conheço‑o. E tu, conheces‑me? Hem? ‑ prosseguiu o senhor Creakle, sempre a segurar‑me pela orelha.

‑ Não senhor, ainda não.

‑ Ainda não? Pois não demorará muito, nem?

‑ Não demorará muito ‑ repetiu o coxo. Mais tarde descobri que, devido a ter voz forte, servia de intérprete ao senhor Creakle junto dos alunos.

Assustei‑me muito e respondi que assim o esperava, se fosse do seu gosto; e ele, durante todo esse tempo, não deixou de me puxar a orelha, que já estava escaldante.

‑ Vou dizer‑te como sou ‑ murmurou o director, acabando por me largar a orelha, mas torcendo‑a a ponto de me fazer lágrimas nos olhos. ‑ Sou um tártaro.

‑ Um tártaro ‑ ecoou o coxo.

‑ Quando digo que faço uma coisa, faço‑a ‑ declarou o senhor Creakle. ‑ E quando digo que se faça uma coisa, ela faz‑se.

O da perna de pau repetiu a declaração.

‑ Sou pessoa decidida ‑ continuou o senhor Creakle. ‑ Assim mesmo. Cumpro o meu dever. Assim mesmo. Quando a carne e o sangue se revoltam contra mim ‑ dizendo Isto olhou para a mulher ‑ eu já não considero que seja a minha carne e o meu sangue.‑Virou‑se para o coxo e inquiriu: ‑ O tipo voltou?

‑ Não, senhor.

‑ Ah, não? Ele sabe quem sou. Que se conserve afastado! Que se conserve afastado ‑ repetiu o director, olhando para a mulher e dando uma punhada na mesa. ‑ Conhece‑me bem. E tu, rapazola, também começas a conhecer‑me ‑ ajuntou dirigindo‑se a mim. Em seguida ordenou ao coxo:‑Podes levá‑lo.

Gostei que ele me mandasse embora, pois a senhora Creakle e a filha já começavam a enxugar os olhos, e eu sofria tanto por elas como por mim. Entretanto lembrei‑me de uma pretensão que tinha em vista e não pude coibir‑me de pedir, ao mesmo tempo admirado da minha coragem:

‑ Faz‑me um favor?

‑ Oh, oh! ‑ retorquiu Creakle. ‑ O que temos agora? ‑ acrescentou, fitando‑me como se quisesse comer‑me com os olhos.

‑ Faz‑me um favor? Estou muito arrependido do meu acto e, se quisesse ter a bondade de me tirar este letreiro... antes que os alunos regressem...

Se o senhor Creakle estava furioso ou se quis apenas assustar‑me, isso não sei; a verdade é que pulou da cadeira, o que me levou a dar às de vila‑diogo sem esperar pelo meu custódio da perna de pau ‑ e só parei no quarto de dormir, quando vi que ninguém me perseguia. Deitei‑me, porque já era tempo, e ali fiquei a tremer cerca de duas horas.

Na manhã seguinte chegou o senhor Sharp, que era o primeiro dos professores, porque o senhor Mell lhe estava subordinado. Este tomava as refeições com os rapazes, ao passo que o outro se sentava à mesa do director. Era homem dócil, de aspecto decente, segundo me pareceu; tinha nariz grande, a cabeça um pouco à banda, como se lhe pesasse muito, e cabelo fino e ondulado. Todavia um dos alunos recém‑vindos informou‑me que se tratava de uma peruca, e que o senhor Sharp a levava a pentear, todos os sábados, ao cabeleireiro.

Este esclarecimento prestou‑mo o próprio Tom Traddles, o primeiro a voltar ao colégio após as férias. Apresentou‑se‑me dizendo que o seu nome figurava no canto direito do portão, por baixo da cavilha mais alta. «Traddles?», repeti, e ele respondeu: «Eu mesmo.» Em seguida pediu‑me todos os pormenores respeitantes a mim e à minha família.

Foi sorte ter sido esse Traddles o primeiro a regressar. O cartaz que eu trazia às costas divertiu‑o bastante e poupou‑me o embaraço de lho mostrar ou de o esconder. Indicou‑me aos outros, que depois apareceram, desta maneira: «Olhem pr'aquilo! Não é pândego?» Felizmente que eles vinham fatigados e não se entregaram às manifestações de troça que eu receava. É certo que alguns dançaram à minha volta, como índios, e a maior parte não resistiu à tenção de fingir medo de que eu mordesse. Até me afagaram o lombo, como se eu fosse um cão. A coisa, é claro, atrapalhou‑me um pouco, vendo‑me assim no meio de tantos desconhecidos, e até as lágrimas me vieram aos olhos. Todavia não foi tão mau como previa.

Só me consideraram formalmente admitido no colégio depois da chegada de J. Steerforth, rapaz que tinha fama de sabedor, era bem parecido e seria uns seis anos mais velho do que eu. Conduziram‑me junto dele como perante um juiz. Interrogou‑me no alpendre do pátio, acerca das particularidades do castigo que me fora aplicado, e dignou‑se opinar que a pena era vergonhosa, o que o tornou merecedor da minha eterna gratidão.

‑ Que dinheiro tens contigo, Copperfield? ‑ perguntou, tomando‑me de parte depois de ter lavrado aquela sentença.

Revelei‑lhe que possuía sete xelins.

‑ É melhor que mos dês para eu os acautelar. Isto é, se quiseres. Ninguém te obriga.

Apressei‑me a anuir àquela sugestão amigável e, abrindo a bolsa, despejei‑lhe na mão todo o seu conteúdo.

‑ Queres gastar agora algum dinheiro? ‑ indagou Steerforth.

‑ Não, obrigado.

‑ Se quiseres é só dizer.

‑ Não, obrigado ‑ repeti.

‑ Talvez te agradasse a ideia de despender uns dois xelins, mais ou menos, numa garrafa de licor de groselha, para se tomar no dormitório. Hem?

‑ Sim, gostava ‑ asseverei, se bem que tal hipótese jamais me houvesse ocorrido à mente.

‑ Óptimo ‑ volveu Steerforth. ‑ E decerto te seduz também a ideia de se comprarem uns bolos de amêndoa, coisa para um xelim...

Concordei novamente.

‑ E outro xelim, ou mais, em fruta, hem? Que tal? ‑ insinuou Steerforth. ‑ Meu caro Copperfield, não te privas de nada!

Sorri, porque ele sorrira, mas estava um tanto preocupado.

‑ Excelente ‑ disse Steerforth. ‑ Temos de aproveitar o melhor possível. Farei por ti tudo quanto estiver ao meu alcance. Posso sair quando me apetecer e trazer a mercadoria escondida. ‑ Com isto, meteu o dinheiro no bolso e, bondosamente, aconselhou‑me a que não me inquietasse: ele procederia de modo a que tudo corresse bem.

Cumpriu a sua palavra, se se pode dizer que tudo correu bem, pois eu sentia que as coisas corriam mal (imagine‑se, esbanjar assim o dinheiro da minha mãe!); conservei, no entanto, o papel que o envolvera, preciosa economia! Quando subimos para ir dormir, Steerforth mostrou‑me o produto dos meus sete xelins e espalhou‑o na cama, iluminada pelo luar, esclarecendo:

‑ Aí tens, Copperfield, o que será um grande banquete. Atendendo à minha idade, não poderia fazer as honras da festa,

tanto mais com a presença de Steerforth. Só pensar nisso me causava calafrios. Roguei‑lhe, pois, que se desse ao incómodo de presidir, no que fui secundado pelos outros rapazes que estavam no dormitório. Steerforth acedeu, sentou‑se no meu travesseiro e distribuiu as vitualhas com perfeita equidade, devo confessá‑lo. O licor foi servido num cálice sem pé, que era propriedade dele. Quanto a mim, fiquei instalado à sua esquerda, e os restantes comensais agruparam‑se no chão e nos leitos mais próximos.

Recordo‑me tão bem! Estamos ali sentados, cochichando (eu escuto respeitosamente), o luar penetra um pouco no quarto, através da janela, reproduzindo‑a pàlidamente no chão. Achamo‑nos quase todos na sombra, excepto quando Steerforth acende um fósforo a fim de procurar qualquer coisa na mesa e nos envolve numa efémera claridade azulada. De novo me invade uma impressão misteriosa resultante da obscuridade, do sussurro de vozes e do segredo de que a nossa festa se reveste. Ainda os oiço com um vago sentimento de solenidade e receio, que me enche de prazer por os ter assim reunidos, tão perto de mim, e que me faz tremer (embora finja rir) quando Traddles declara ter visto um fantasma a um canto.

Soube que o homem da perna de pau, cujo nome era Tungay, praticara no comércio do lúpulo e seguira depois Creakle na carreira do ensino, em consequência (diziam os rapazes) de se haver mutilado ao serviço do mesmo Creakle, por quem cometera muita desonestidade e de quem conhecia os segredos. Soube também que, salvo o director, Tungay considerava todo o estabelecimento, professores e alunos, como um antro de inimigos e que o único gozo da sua vida era ser mau e azedo. E soube ainda que o senhor Creakle tinha um filho de quem o coxo não gostava; o qual filho, que ajudava o pai no Internato, lhe dirigira algumas observações num dia em que a disciplina do colégio se tornara mais rigorosa, censurando‑o igualmente pela forma como tratava a mãe. Em consequência disto, o senhor Creakle expulsara‑o, e a mulher e a filha levavam uma existência triste.

Mas o que mais me espantou foi ouvir contar que havia um único aluno do colégio para quem o director jamais ousara levantar a mão, e que o tal aluno era J. Steerforth. Este confirmou o facto e declarou que gostaria de ver o senhor Creakle atrever‑se a semelhante façanha. Quando um aluno moderado (não fui eu) lhe perguntou o que faria se o caso se verificasse, ele acendeu um fósforo, como para dar mais brilho à sua resposta, e afirmou que principiaria por deitá‑lo a terra lançando‑lhe à cara um tinteiro (de sete xelins e meio) que estava sempre na prateleira do fogão. Ficámos todos ao escuro, imóveis, com a respiração suspensa.

Contaram‑me também que o senhor Sharp e o senhor Mell eram muito mal remunerados; e que, havendo à mesa do senhor Creakle pratos quentes e frios para o jantar, esperavam sempre que o senhor Sharp optasse pelos últimos. Quanto à cabeleira deste último, via‑se bem que não lhe acertava na cabeça, pois deixava à mostra, por trás, as ripas do cabelo natural.

Fui igualmente informado de que um dos estudantes frequentava o colégio em paga do fornecimento de carvão, por ser filho de um negociante deste produto, pelo que lhe chamavam o Permuta, nome extraído do compêndio que se referia a esta convenção comercial. A cerveja servida à mesa era um roubo feito aos pais, e o pudim uma imposição dos mesmos. Constava que a menina Creakle estava apaixonada por Steerforth, o que não me admirou, visto ele ter voz bonita, rosto aprazível, maneiras desenvoltas e cabelo encaracolado. O senhor Mell não era má pessoa, mas não possuía meio xelim de seu, e a mãe dele passava por indigente: ao ouvir este pormenor lembrei‑me da exclamação «Meu Charley!» proferida pela velha do bairro pobre. Mas, a este respeito, não fui indiscreto, o que intimamente me regozija.

Já havia terminado o banquete e ainda tudo isto me ressoava aos ouvidos. Na maior parte, os comensais tinham recolhido aos seus leitos logo que se esgotaram os comes e bebes. Eu e Steerforth ainda ficámos a conversar em surdina, já meio despidos, até que ele disse:

‑ Boa noite, Copperfield. Encarregar‑me‑ei de ti.

‑ És muito bondoso ‑ repliquei. ‑ Fico‑te bastante reconhecido.

‑ Não tens nenhuma irmã? Se tivesses havia de ser uma linda rapariga tímida, de olhos vivos. Gostaria de a conhecer.

‑ Não, não tenho ‑ respondi. ‑ Boa noite, Steerforth. Uma vez deitado, fiquei muito tempo a pensar nele, e lembro‑me de que me soergui na cama para o ver iluminado pelo luar: tinha o belo rosto voltado para mim e a cabeça reclinada no braço. Era, aos meus olhos, uma grande personagem, e, por isso, ocupava‑me os pensamentos. Os segredos do futuro não se reflectiam, porém, nessa face resplandecente. E no jardim dos sonhos em que passei toda a noite não havia uma única sombra debaixo dos seus passos.

 

O MEU PRIMEIRO SEMESTRE NO INTERNATO

As aulas recomeçaram solenemente no dia seguinte. Que profunda impressão experimentei quando, após o primeiro almoço, o senhor Creakle entrou e ao ruído das altercações sucedeu um silêncio mortal! O director parou à porta e relanceou‑nos a vista como um gigante dos livros de contos que vigia os seus cativos.

Tungay conservava‑se ao lado dele. Não houve necessidade de nos mandar calar, porque estávamos todos tolhidos da voz e dos movimentos.

Creakle tomou a palavra e o coxo, como de costume, repetiu o que o patrão dizia.

‑ Entramos no segundo período, rapazes. Tomai cuidado no que ides fazer. Sede fortes nas Upções que eu, previno‑vos, serei forte nos castigos. Nunca hesito. Por mais que vos laveis não apagareis os vestígios das marcas que eu vos deixar. E, agora, todos ao trabalho!

Acabada esta exortação, que se tornou a ouvir amplificada na voz de Tungay, Creakle aproximou‑se de mim e disse‑me que, se eu sabia morder, ele não o sabia menos. Mostrou‑me então a bengala e perguntou o que eu pensava daquele dente? Era aguçado, hem? Mordia bem? E a cada pergunta dava‑me uma pancada que me fazia torcer com dores. Depressa paguei, pois, como observou Steerforth, o meu tributo ao Internato de Salem. Quantas lágrimas verti.

Não quero dizer que só eu recebesse estes cunhos especiais de distinção. Pelo contrário, os alunos, na sua grande maioria (principalmente os mais novos) auferiam exemplos semelhantes deste tratamento todas as vezes que o senhor Creakle dava um giro pela sala. Metade da aula pranteava, antes mesmo de se iniciarem as lições quotidianas. E quantos estudantes choravam e sofriam no decorrer do ano lectivo, eis o que não me atrevo a comentar, com medo de parecer exagerado.

Creio que mais ninguém neste mundo apreciou a sua profissão como fez o senhor Creakle. Tinha um prazer mórbido em vergastar os rapazes, como se fosse a satisfação de um apetite devorador. Aquilo exercia nele uma fascinação que lhe não deixava repousar o espírito sem haver açoitado a torto e a direito durante todo o dia. Quando penso agora em semelhante criatura, o sangue revolta‑se com uma indignação tão desinteressada como se o caso pessoalmente me não dissesse respeito; mas sei que o homem era um brutamontes e um incapaz, que não tinha mais direito de ser director de um colégio como de ser almirante ou general, funções em que decerto teria feito muito menos mal.

Míseros propiciadores de um ídolo implacável, como nos curvávamos abjectamente diante dele! Que começo de vida foi o nosso, agora que o recordo: mostrar‑nos baixos e servis a quem não possuía qualidades mas apenas pretensões!

Vejo‑me sentado na minha carteira, observando o olhar dele, observando‑o humildemente, enquanto traça riscas num caderno de aritmética para outra vítima cujas mãos foram flageladas por essa mesma régua e que procura aplacar a dor esfregando‑as num lenço. Tenho muito que fazer. Não lhe espio o olhar por frivolidade mas porque me atrai morbidamente, num desejo temeroso de adivinhar o que vai fazer em seguida e se será a minha vez de sofrer ou a de outrem. Uma fila de miúdos, atrás de mim, também o espreita com interesse igual ao meu. Julgo que ele o sabe, embora finja que não. Faz esgares temíveis enquanto traça as linhas no caderno; e ei‑lo que envesga os olhos para o nosso lado, e nós baixamos todos a cabeça sobre os livros, e trememos. Momentos depois tornamos a erguer a vista. Um réu infeliz, acusado de ter feito mal o exercício, avança para o senhor Creakle, obedecendo ao seu chamamento. O delinquente balbucia desculpas, e promete ser melhor no dia seguinte. Creakle profere um gracejo antes de lhe bater, e todos rimos ‑ cachorros miseráveis que somos, mortalmente pálidos e de coração desfalecente.

Estou outra vez sentado à minha carteira, numa tarde sonolenta de Verão. Em volta de mim há um zumbido e um frémito, como se os rapazes fossem moscardos. Experimento uma sensação de amolecimento, devido à carne que comi (almoçámos cerca de hora e meia antes) e tenho a cabeça pesada como chumbo. Quem me dera dormir! Não desfito o senhor Creakle, pestanejando como uma coruja nova. Quando, um instante, sou vencido pelo sono, ainda o vejo, no meu torpor, a contar os cadernos famosos, até que ele vem subtilmente por trás e me desperta com uma reguada rápida nas costas.

Agora encontro‑me no pátio do recreio, sempre fascinado por ele, se bem que o não possa ver. A janela, perto da qual o director está a jantar, eleva‑se à minha frente e os meus olhos aí se cravam já que não me é possível cravá‑los na sua pessoa. Se o homem a ela assoma, o meu rosto reflecte um ar de submissão implorativa; se ele mira através da vidraça, os alunos mais atrevidos (excepto Steerforth) param no meio das suas brincadeiras para tomar um aspecto pensativo. Certo dia Traddles (o mais desastrado de todos) parte essa mesma vidraça com uma bola. Estremeço neste momento ao rever a cena e pensando que a bola podia ter atingido a cabeça preciosa do senhor Creakle.

Coitado do Traddles! Com o seu fato apertadíssimo, que lhe fazia os braços e as pernas assemelharem‑se a salsichas ou a tortas, era o mais alegre e também o mais infortunado de todos os alunos. Apanhava sempre (creio que nesse semestre apanhou diariamente, salvo uma segunda‑feira, dia de saída, em que só recebeu reguadas nas duas mãos). Tencionava escrever ao tio para se queixar deste tratamento, mas nunca o fez. Depois de ficar por algum tempo com a cabeça apoiada à carteira, animava‑se de novo, começava a rir e desenhava esqueletos na ardósia, mesmo antes de haver enxugado as lágrimas. A princípio estranhei que ele achasse consolação em fazer tais esqueletos e, durante certo tempo, considerei‑o uma espécie de ermita que quisesse ter sempre presente, por meio desses símbolos de morte, que o suplício da bengala não duraria eternamente. Mas concluí que a razão estava em ser coisa mais fácil, visto não exigir o desenho das feições.

Possuía em alto grau a noção da honra. Achava um dever solene, para todos os rapazes, apoiarem‑se uns aos outros. Disto veio a sofrer por mais de uma vez, especialmente um dia em que Steerforth riu na igreja e o sacristão o expulsou, tomando‑o por aquele. Ainda me lembro de o ver conduzido sob escolta, enquanto a assembleia inteira o olhava com desprezo. Nunca revelou quem fora o verdadeiro sacrílego, apesar de que, no dia seguinte, o caso o amargurasse: ficou tantas horas preso que saiu do cárcere com um autêntico cemitério de esqueletos desenhados no Dicionário de Latim. Teve ,porém, a sua recompensa: Stterforth declarou que Traddles não era nada cobarde, e todos compreenderam que não podia haver maior elogio. Eu, por minha parte, suportaria muita coisa (não sendo, atinai, tão corajoso como Traddles e muito mais novo do que ele) só para obter semelhante recompensa.

Ver Steerforth ir para a igreja de braço dado com a menina Creakle era um dos encantos da minha vida. Não achava que ela igualasse a pequena Emily em matéria de beleza, nem me sentia enamorado (não tinha semelhante audácia), mas considerava‑a uma rapariga bastante simpática, e quanto a distinção ninguém a ultrapassaria. Quando Steerforth, de calças brancas, lhe segurava na sombrinha, eu sentia‑me honrado com a sua camaradagem, e pensava que ela não podia deixar de o amar. Para mim, o senhor Sharp e o senhor Mell eram pessoas notáveis; mas, comparado com eles, Steerforth parecia o Sol no meio de duas estrelas.

Steerforth continuava a proteger‑me, e a sua amizade resultava muito útil, porque ninguém se atrevia a maçar‑me sabendo que ele me distinguia com o seu favor. Não seria capaz ‑ pelo menos não o fazia ‑ de me defender do senhor Creakle, por mais severo que este fosse comigo; dizia‑me sempre que eu precisava de imitá‑lo no denodo, que, se a coisa fosse com ele, jamais a suportaria. Bem percebia que falasse desse modo para me incutir coragem e no íntimo agradecia‑lhe a solicitude.

A austeridade do director deu‑me, aliás, certa vantagem, a única que desfrutava: o letreiro que eu trazia às costas começou a incomodá‑lo, de modo que tempos depois tive ordem de o tirar, e para sempre.

Uma circunstância fortuita cimentou a intimidade entre mim e Steerforth, duma forma que me trouxe grande orgulho e satisfação, embora originasse os seus inconvenientes. Certo dia, quando ele me honrou com a sua conversa no recreio, eu aventurei‑me a falar‑lhe de alguém ou de qualquer coisa (não me recordo de que se tratava) que me fazia lembrar personagem ou facto de Peregrine Pickle. Na ocasião Steerforth não disse nada, mas quando íamos deitar, à noite, perguntou‑me se eu possuía aquela obra.

Respondi‑lhe que não, e expliquei‑lhe como acontecera que a tivesse lido, assim como os outros livros de que já falei.

‑ E lembras‑te deles? ‑ indagou Steerforth.

‑ Perfeitamente. ‑ A minha memória era boa, o que me permitia recordar tudo muito bem.

‑ Nesse caso, Copperfield, hás‑de me contar. Não adormeço com facilidade e costumo acordar muito cedo. Repetir‑me‑ás essas histórias umas após outras. Será como nas Mil e Uma Noites.

Lisonjeou‑me deveras este acordo e resolvemos começar naquela mesma noite. Que tropelias pratiquei no texto dos meus autores favoritos, ao interpretá‑los de cor, não serei capaz de dizer e prefiro ignorá‑lo. Mas tinha neles arreigada fé, e o meu relato, ao que se me afigura, era simples e vivo, qualidades que hão‑de desculpar o resto.

Entretanto, à noite, eu caía de sono e outras vezes estava pouco disposto a reencetar a narrativa, o que me tornava penosa aquela obrigação. Devia, porém, fazê‑lo, sob pena de desiludir e desgostar Steerforth. Também, de manhã, via‑me ensonado, com vontade de continuar a dormir e achava desagradável ser acordado em sobressalto como a sultana Xerazada e ter de contar uma longa história antes que soasse a sineta do colégio. Ora Steerforth não desistia. Em compensação, explicava‑me os problemas e exercícios e ajudava‑me a fazer tudo quanto eu considerava difícil. Não perdia, pois, com a transacção. Contudo faça‑se‑me a justiça de acreditar que não era movido por interesse ou egoísmo, nem pelo medo que ele pudesse inspirar‑me. Admirava‑o e estimava‑o, bastando‑me como recompensa a sua aprovação. Dava tanto valor a isto que me dói o coração ao pensar hoje em tais ninharias. Steerforth mostrava‑se igualmente compreensivo, e de um modo que, em certos casos, suponho ter provocado um suplício de Tântalo em Traddles como nos outros. A prometida carta de Peggotty chegou por fim, e que carta consoladora! O segundo período já ia avançado quando isto sucedeu.

Além da carta veio um bolo, várias laranjas e duas garrafas de licor, e este tesouro, como era justo, depu‑lo aos pés de Steerforth, pedindo‑lhe que o distribuísse.

‑ Ouve, Copperfield ‑ disse o meu protector ‑ estas garrafas serão para humedeceres a garganta quando contares histórias.

Corei à sugestão e, na minha modéstia, pedi‑lhe que não pensasse em tal. Mas ele replicou‑me observando que eu às vezes andava encatarroado e que o licor o usaria para esse mesmo fim que ele determinara. Nestas condições guardou‑o no seu baú e passava‑o aos poucos para um frasco, quando achava que eu tinha necessidade de me fortalecer, dando‑mo a tomar através de uma cânula atravessada na rolha. Nalgumas ocasiões, para tornar o remédio mais eficaz, espremia nele uma laranja, ou adicionava umas gotas de essência de hortelã‑pimenta ou misturava‑lhe gengibre; e, embora não possa reconhecer que o gosto melhorava com estes adjuvantes nem que fosse o digestivo ideal para tomar àquela hora da noite, ou de manhã ao acordar, eu bebia‑o no entanto agradecido à sua bondade e manifestava‑lhe a minha gratidão.

O Peregrine e as outras histórias ocuparam‑nos durante meses, se não me engano. O entusiasmo nunca enfraqueceu por falta de temas e o licor durou quase tanto como as narrações. Traddles, coitado (nunca me lembro dele sem experimentar uma estranha vontade de rir e sem que as lágrimas me aflorem aos olhos), representava geralmente a parte do coro: fingia hilaridade nos passos mais cómicos e terror quando a descrição tomava um aspecto alarmante, o que, muitas vezes, me fazia perder o fio da meada. O seu maior truque era dar a impressão de que batia os dentes sempre que eu mencionava um alguazil, nas aventuras de Gil Blas, e lembro‑me de que, no momento em que Gil Blas encontra em Madrid o chefe dos ladrões, ele teve a ideia infeliz de simular tamanho horror que o senhor Creakle, rondando então nas proximidades do dormitório, ouviu o escarcéu e o castigou por mau comportamento nocturno.

O que em mim havia de romanesco e sonhador foi amplificado por esses relatos nas trevas, e talvez que, a este respeito, o caso me não favorecesse. Mas eu era acarinhado como um brinco naquela sala comum, sabia que a minha habilidade se divulgara entre os colegas e que lhes atraía a atenção, apesar de ser dos mais novos, e assim a reputação granjeada estimulava o meu pendor. Num colégio em que impera a pura crueldade, presidido ou não por um estúpido, não é de crer que se aprenda por aí além. Suponho que os meus camaradas foram tão ignorantes como costumam ser quaisquer alunos de colégio; estávamos atormentados, ensinavam‑nos à força e, portanto, éramos incapazes de aprender com proveito numa vida de infortúnio e de sobressaltos contínuos. Mas a minha vaidadezinha, estimulada por Steerforth, de certa maneira me serviu; sem ser muito poupado em matéria de castigos, tornei‑me contudo uma excepção à regra geral, a ponto de ir armazenando algumas migalhas de ciência.

Nisto muito me valeu o senhor Mell, a quem me sinto grato pela afeição que me dispensou. Sempre me afligiu ver como Steerforth o arreliava sistematicamente; raras vezes perdia ocasião de o ferir nos seus sentimentos e de induzir os outros a fazê‑lo. Por muito tempo me afligiu essa atitude, tanto mais que eu revelara a Steerforth a minha visita à casa das duas velhas indigentes: ser‑me‑ia impossível guardar esse segredo como me era impossível deixar de partilhar com ele um bolo ou qualquer outra coisa tangível. E sempre receei que o meu colega lhe falasse nisso e o magoasse com a alusão. Aquela visita teria consequências imprevistas e não despiciendas.

Certo dia em que o senhor Creakle ficou no seu quarto, por motivo de qualquer indisposição, houve grande balbúrdia na aula da manhã. Os estudantes, contentes com a ausência do director, mostravam‑se insubmissos, apesar de o coxo Tungay ter aparecido lá mais de uma vez e apontado o nome dos principais rebeldes (o que aliás não produziu muita impressão, porque de uma forma ou de outra os castigos abundariam no dia seguinte, e assim se aproveitava a oportunidade inesperada).

Era, a bem dizer, um meio feriado, por ser o último dia da semana. Mas como o barulho que faríamos no pátio podia incomodar o senhor Creakle, e o tempo não estava bom para passeios, obrigaram‑nos a reentrar na aula durante a tarde a fim de fazermos exercícios mais simples do que os habituais. Ao sábado, precisamente, é que o senhor Sharp ia pentear e frisar a cabeleira, e por isso o senhor Mell, que aguentava todas as estopadas, dirigiu sozinho os trabalhos desse dia.

Se eu pudesse ligar a ideia de um urso ou de um touro a um ente tão pacífico como o senhor Mell, diria que nessa tarde, em meio da refrega, ele se comparava com um desses animais assediado por uma chusma de cães. Ainda o evoco com a cabeça pendida sobre o livro e apoiada na mão ossuda, diligenciando prosseguir o seu labor fatigante, no meio de uma barulheira infernal susceptível de aturdir o próprio presidente da Câmara dos Deputados. Havia alunos que se levantavam para ir brincar num canto ao jogo do lume; havia os que cantavam, riam, falavam, dançavam, bramiam. Uns arrastavam os pés, outros andavam de roda do professor, troçando, fazendo esgares, imitando‑o nas costas ou às claras, motejando da sua pobreza, das botas, do casaco, da mãe, de tudo o que se relacionava com ele e que devia merecer respeito.

Erguendo‑se de repente, o senhor Mell bateu com o livro na secretária e gritou:

‑ Silêncio, rapazes! Que vem a ser isto? É intolerável! Acabo por enlouquecer. Por que se portam comigo dessa maneira?

Foi com o meu livro que ele bateu na mesa. Eu estava ao lado e segui o seu olhar, que relanceava toda a aula. Os alunos sustiveram‑se, alguns surpreendidos, outros amedrontados, muitos talvez arrependidos.

O lugar de Steerforth ficava ao fundo da sala; achava‑se indolentemente encostado à parede, de mãos nas algibeiras. Sempre que o professor o fitava, ele fazia o mesmo e fingia assobiar.

‑ Cale‑se, Steerforth! ‑ bradou‑lhe o senhor Mell.

‑ Cale‑se o senhor! ‑ replicou Steerforth, que enrubescera.‑ A quem é que fala?

‑ Sente‑se! ‑ ordenou o professor.

‑ Sente‑se também, e cumpra as suas obrigações.

Houve risinhos abafados e alguns aplausos. Mas o mestre estava tão pálido que o silêncio se restabeleceu logo. Um rapaz, que correra de trás da cátedra para arremedar mais uma vez a mãe do senhor Mell, mudou de intenção e disse que ia aparar a pena.

‑ Se julga, Steerforth, que eu desconheço a influência que exerce aqui sobre estes rapazes ‑e poisou a mão na minha cabeça, sem reparar no que fazia, julgo eu ‑ ou que eu o não vejo incitá‑los a ofender‑me por todos os meios... então está muito enganado!

‑ Enganado não estou ‑ redarguiu Steerforth, com a maior frieza ‑ e nem me dou ao trabalho de pensar no senhor.

O professor, de lábios trémulos, prosseguiu:

‑ Abusa da sua posição de favoritismo para insultar um cavalheiro...

‑ Um quê? Onde está ele?

Alguém exclamou:

‑ Devias envergonhar‑te, Steerforth. Isso é feio.

Era Traddles, a quem o mestre mandou imediatamente calar‑se.

‑ ... para insultar quem não é afortunado na vida e nunca lhe fez o menor mal. Você tem idade e entendimento para compreender as muitas razões que há para não me tratar dessa maneira ‑ continuou o senhor Mell, cujos lábios tremiam cada vez mais. ‑ Comete uma acção baixa, indigna. Tu, Copperfield, podes ir para o teu lugar se quiseres.

‑ Copperfield ‑ atalhou Steerforth, avançando. ‑ Espera um instante. Oiça‑me, senhor Mell, por uma vez. É o senhor que me classifica de baixo e indigno, e não passa de um mendigo descarado. Sempre foi mendigo, bem o sabe, mas, no caso presente, assume as raias do descaramento.

 

Não sei bem se ia bater no senhor Mell ou se o senhor Mell é que lhe ia bater, ou se realmente existia semelhante intenção em qualquer dos dois. Mas, de súbito, estabeleceu‑se em toda a aula uma suspensão, como se tudo se houvesse tornado de pedra, e nós vimos que o senhor Creakle e Tungay estavam no meio de nós. A mulher e a filha do director apareceram à porta, apavoradas, o senhor Mell, com os cotovelos na secretária, ficou por instantes paralizado. Então aquele, sacudindo‑o por um braço, disse assim:

‑ Espero que não se tenha esquecido, senhor Mell.

Desta vez o seu sopro de voz foi audível e o coxo não teve necessidade de lhe repetir as palavras.

‑ Não, senhor ‑ respondeu o mestre, oscilando a cabeça e afastando as mãos trémulas com que ocultava a cara. ‑ Não, senhor, não me esqueci e só lastimo que o senhor Creakle não se tenha lembrado de mim um pouco mais cedo. Teria sido mais generoso e mais justo. Poupar‑me‑ia muita coisa.

O senhor Creakle, olhando fixamente para o senhor Mell, apoiou‑se ao ombro de Tungay, subiu para o banco mais próximo e sentou‑se na secretária. Continuando a fitar do alto do seu trono o professor, que abanava sempre a cabeça e esfregava as mãos, muito agitado, voltou‑se para Steerforth e disse:

‑ Já que ele se não digna responder, fale você. Que se passou? Steerforth iludiu a pergunta durante uns segundos. Observava

o seu opositor com desprezo e cólera e permanecia silencioso. Não pude deixar, nesse momento, de pensar quanto a sua atitude era nobre e, em contrapartida, como era vulgar e mesquinha a do senhor Mell.

‑ Pois bem ‑ começou por fim o meu camarada ‑ que pretendia ele com isso de favoritismo?

‑ Favoritismo? ‑ repetiu o director, cujas veias incharam de repente. ‑ Quem falou de tal coisa?

‑ Foi ele.

Creakle virou‑se para o seu assistente.

‑ Que queria dizer com isso, senhor Mell?

‑ Queria dizer, senhor Creakle ‑ replicou o interpelado em voz baixa ‑ que nenhum aluno tem o direito de se valer da sua situação de favor para me rebaixar.

‑ Rebaixá‑lo, a si? Meu Deus! ‑ exclamou Creakle. ‑ Permita que lhe pergunte ‑ e aqui cruzou os braços no peito, com a bengala e tudo, e carregou de tal modo o cenho que mal se lhe viam os olhos ‑ permita que lhe pergunte se, ao empregar o termo favoritismo, não perdeu o respeito que me é devido. A mim, senhor ‑ insistiu, avançando a cabeça e ‑ Não fui justo ‑ replicou o senhor Mell ‑ confesso‑o. Não falaria dessa maneira se estivesse mais sereno.

Neste comenos interveio Steerforth.

‑ Então saiba que ele me chamou baixo e indigno e eu o tratei de mentiroso descarado. Talvez não devesse ter feito isso, mas fi‑lo e estou pronto a tomar a responsabilidade.

Sem calcular qual fosse aquela responsabilidade, eu rejubilei ao ouvir tão destemidas palavras. Os rapazes também se impressionaram, pois houve um sussurro geral, embora sem comentários mais concretos.

‑ Admiro‑me, Steerforth ‑ volveu o director ‑ se bem que a sua franqueza lhe faça honra. Admiro‑me que pronunciasse tal epíteto em relação a uma pessoa empregada neste Internato e por ele remunerada.

Steerforth deixou escapar uma risada.

‑ Isso não é resposta ‑ insistiu Creakle. ‑ Espero de si mais qualquer coisa.

Se o professor Mell me parecera desprezível perante a atitude elegante do aluno, que direi do director, que se me afigurava ainda mais desprezível?

‑ Ele que o negue ‑ disse Steerforth.

‑ Negar que é mendigo? ‑ acudiu Creakle. ‑ Acha que pede esmola pelas ruas?

‑ Se não o faz pessoalmente, então é alguém da sua família. Vem a dar no mesmo.

Steerforth lançou‑me uma olhadela, e o senhor Mell afagou‑me o ombro. Voltei‑me para ele, rubro de vergonha, mas os olhos de Mell estavam fixos em Steerforth; entretanto continuou a afagar‑me o ombro, sempre a fitar o seu adversário.

‑ Já que deseja uma explicação, senhor director ‑ começou Steerforth ‑ aí vai ela: a mãe do senhor Mell vive da caridade pública, numa casa de indigentes.

O alvejado não deixava de me passar a mão pelo ombro e de olhar para Steerforth. Num murmúrio, se bem ouvi, desabafou: «Era o que eu pensava.»

O director voltou‑se para o seu assistente, carrancudo, severo, e disse com forçada cortesia:

‑ Pois, senhor Mell, acaba de ouvir o que afirmou o aluno Steerforth. Peço‑lhe que tenha a bondade de o desmentir perante este auditório.

‑ Não há nada que desmentir ‑ respondeu o professor, no meio de um silêncio confrangedor. ‑ Ele tem razão, disse a pura verdade.

‑ Seja suficientemente leal para declarar diante de todos ‑ retorquiu Creakle ‑, se, até agora, eu tinha conhecimento desse facto.

‑ Conhecimento directo, não.

‑ O quê?! Pois não sabe que...

‑ Suponho que ao senhor nunca passou pela cabeça que eu desfrutasse de uma situação abastada ‑ explicou o professor. ‑ Não ignora qual tem sido sempre a minha posição nesta casa.

‑ O que percebo ‑ comentou o director, e as veias tornaram a entumescer‑se‑lhe ‑ é que está aqui numa situação falsa e que tomou o colégio por um asilo. Senhor Mell, faça favor de se ir embora, e quanto mais cedo melhor.

‑ Imediatamente ‑ disse o outro, levantando‑se. ‑ Despeço‑me de si e de todos ‑ acrescentou, relanceando a vista pela sala e dando‑me pancadinhas afáveis nas costas. ‑ James Steerforth, o que lhe desejo é que um dia se envergonhe do que hoje me fez. Por agora, prefiro que não seja meu amigo nem de ninguém da minha consideração.

Mais uma vez poisou a mão no meu ombro, tirou da secretária a flauta e alguns livros, deixou a chave para o seu sucessor e saiu da sala, com aquelas coisas debaixo do braço. Então o senhor Creakle fez um discurso, repetido pelo coxo, no qual agradeceu a Steerforth por haver afirmado (talvez com excessivo calor) a independência e a honorabilidade do Internato de Salem. Concluiu apertando a mão de Steerforth, enquanto nós soltávamos hurras, não sei por quem, mas decerto pelo meu protector, o que me fez associar a eles com energia, embora me sentisse acabrunhado. Seguidamente o senhor Creakle deu bengaladas em Traddles, porque o surpreendeu a chorar, em vez de aplaudir, pela partida do senhor Mell. E por fim regressou ao sofá, ou à cama, donde se havia levantado.

Ficámos sós e olhámos uns para os outros, desconcertados. Quanto a mim, estava tão triste e contrito do papel que desempenhara que só retive as lágrimas com medo de que Steerforth, que me observava, pudesse achar‑me pouco amigável, ou pouco atencioso para com ele, atendendo à nossa diferença de idade. Steerforth mostrou‑se indignado com Traddles e regozijou‑se com o castigo que o rapaz recebeu. O pobre Traddles, a quem a fase de depressão já havia passado, desenhava (de cabeça curvada sobre a carteira) uma nova série de esqueletos e insistiu em que o procedimento para com o senhor Mell não fora digno. No que lhe tocava, acrescentou, a coisa não tinha importância.

‑ Quem é que procedeu mal, ó maricas? ‑ replicou Steerforth.

‑ Quem senão tu, Steerforth!

‑ Que fiz eu?

‑ Que fizeste? Magoaste‑o nos seus sentimentos e causaste a perda do seu emprego.

‑ Magoei‑o? ‑ repetiu o outro com ar desdenhoso. ‑ Depressa se consolará. Não é tão sensível como a menina Traddles. E no que respeita ao emprego... tão bom, não é verdade?...  julgas que não vou escrever para minha casa, recomendando que lhe enviem dinheiro?

Achámos nobilíssima a intenção de Steerforth, cuja mãe era viúva e rica e fazia tudo o que o filho lhe pedia; gostámos também de ver Traddles posto no seu lugar e elevámos Steerforth às nuvens, em especial quando nos disse, quando nos contou (teve essa condescendência) que fizera tudo aquilo por nossa causa e para nosso bem, sem o menor proveito da sua parte.

Devo, porém, confessar que nessa noite, ao recomeçar as minhas histórias, a flauta do senhor Mell me soou dolorosamente aos ouvidos ‑ som que me pareceu realmente lúgubre quando, vendo Steerforth cansado, acabei por me calar, cada vez mais infeliz.

Não tardei em esquecer o senhor Mell, porque Steerforth, com o maior desembaraço, sem auxílio de qualquer livro (creio que sabia tudo de cor) se encarregou de substituir aquele nalgumas aulas, até que fosse contratado novo professor. Este veio‑nos de uma escola de ensino secundário e, antes de entrar em funções, jantou no colégio para nessa altura ser apresentado a Steerforth, que o aceitou sem reparos e nos disse que era um «tipo decente». Sem fazer ideia do que isto significava quanto às qualidades pedagógicas do mestre, desde logo o respeitei, sem duvidar dos seus altos conhecimentos científicos. Contudo, nunca ele me concedeu as atenções que recebi do seu antecessor, mas a verdade é que eu não tinha nada que me recomendasse.

Nesse período houve só outro acontecimento que saiu do ramerrão diário e que me deixou uma impressão indelével. E isto por muitas razões.

Uma tarde em que estávamos a ser atormentados de modo terrível, sob a férula do senhor Creakle, Tungay entrou na aula e gritou no seu vozeirão:

‑ Visitas para o Copperfield!

O director e o coxo trocaram algumas palavras acerca da identidade dessas visitas e quanto à sala em que seriam recebidas. Eu pusera‑me de pé, como de costume ao ouvir o meu nome; quase me senti doente de espanto. Enfim, deram‑me ordem de subir a escada de serviço, a fim de pôr um colarinho lavado antes de seguir para o refeitório. Obedeci e fi‑lo num estado de agitação e perplexidade como nunca experimentara. Alcancei a porta da sala, pensando que talvez fosse a minha mãe (até esse momento só me lembrara dos irmãos Murdstones), e, antes de dar volta ao puxador, parei para sufocar um soluço.

De começo, não vi ninguém. Mas como sentisse a porta resistir, olhei para trás dela, e, com a maior admiração, deparou‑se‑me o senhor Peggotty e o sobrinho Ham, que me faziam grandes cumprimentos, encostados à parede; não pude deixar de rir, mais do prazer de os encontrar do que do seu ar brincalhão. Apertamos efusivamente a dextra e eu tornei a rir, até que tirei o lenço e enxuguei os olhos.

O senhor Peggotty ‑ que, bem me lembro, nunca fechou a boca durante a visita ‑ ficou inquieto ao ver‑me chorar e deu uma cotovelada em Ham, para que este dissesse qualquer coisa.

- Então, menino Davy! ‑ começou o rapaz, com o seu sorriso ingénuo. ‑ Está muito crescido ‑ ajuntou a seguir.

- Cresci? ‑ repliquei, ainda a secar as lágrimas. Não tinha, se bem recordo, razões especiais para chorar. Mas os olhos humedeceram‑se‑me só por estar em presença de velhos amigos, não sei realmente porquê.

‑ Se cresceu! ‑ insistiu Ham. ‑ Não se faz ideia!

‑ É verdade!‑corroborou o tio.

Riram e eu ri também, e assim continuámos os três, até que me voltou a vontade de chorar.

‑ Tem tido notícias da minha mãe? ‑ perguntei ao senhor Peggotty. ‑ E como vai a sua irmã e minha querida amiga?

‑ optimamente.

‑ E a Emily? E a senhora Gummidge?

‑ Optimamente.

Fez‑se um silêncio. Peggotty, para o preencher, extraiu das algibeiras duas lagostas enormes, um caranguejo também grande e um saco amplo de lona cheio de camarões, colocando tudo nos braços de Ham.

‑ Ora aqui tem, menino. Sabíamos que gostava disto, quando esteve connosco. Por isso tomei a liberdade. Foi a velhota quem os cozeu. ‑ Como se lhe faltasse o assunto, insistiu no mesmo ponto: ‑ Sim, menino, foram cozidos pela senhora Gummidge.

Apresentei‑lhe os meus agradecimentos. Depois de olhar para Ham, que sorria acanhado, sem lhe fornecer qualquer deixa, Peggotty acrescentou:

‑ Viemos com vento favorável, aproveitando a maré, desde a nossa Yarmouth até Gravesend. Minha irmã escreveu‑nos a dizer o nome desta terra e pediu‑me que o visitasse se viesse um dia a Gravesend, e lhe desse os seus cumprimentos e que, quanto à família, vai optimamente. A Emily deve escrever à minha irmã quando nós voltarmos, para contar como é que eu encontrei o menino e como estava de saúde; e assim se fez uma bela ida e volta.

Pensei um bocado no que ele queria exprimir e percebi, por fim, que se referia ao círculo giratório das notícias. Então agradeci‑lhe sinceramente, e disse, sentindo‑me corar, que sem dúvida a Emily estava também muito mudada desde o tempo em que apanhávamos conchas na praia.

‑ Dia a dia torna‑se uma mulherzinha ‑ esclareceu o pescador. ‑ Pergunte‑lhe a ele.

Com isto designou Ham, que resplandecia de prazer, concordava e exibia sempre o braçado de mariscos.

‑ Tem uma carinha que é um encanto! ‑ ajuntou Peggotty.

‑ E tão instruída! ‑ acudiu o sobrinho.

‑ Escreve na perfeição ‑ acrescentou o tio. ‑ Uma letra que salta aos olhos, tão bem‑feitinha!

Era comovedor ver o entusiasmo do pescador pela sobrinha. O rosto grosseiro e peludo irradiava uma expressão de amor e de orgulho feliz, que eu não consigo descrever. Os olhos leais cintilavam como que animados por um sentimento que lhe vinha do coração. O peito largo arfava de prazer. As mãos vigorosas premiam‑se uma contra a outra, com ardor. Ao falar, sublinhava as frases com o braço direito, que para mim, pigmeu, tomava as proporções de um martelo de bigorna.

Ham estava tão entusiasmado como ele. Creio que continuariam ainda a falar de Emily se não fosse a entrada intempestiva de Steerforth; este, vendo‑me conversar a um canto com dois desconhecidos, interrompeu a ária que vinha cantarolando e disse:

‑ Não sabia que te encontravas aqui, Copperfield.

De facto, a sala não era geralmente a mais frequentada. Depois daquela observação, saiu.

Não sei se seria o facto de querer mostrar ter um amigo como Steerforth, se o desejo de lhe explicar como é que me relacionara com um homem como Peggotty que me fez chamá‑lo quando ele se retirava.

‑ Espera, Steerforth ‑ gritei. ‑ São dois marítimos de Yarmouth, excelentes amigos, parentes da minha antiga criada. Vieram de Gravesend para me visitar.

Steerforth retrocedeu.

‑ Ah, ah, muito prazer. Como passam?

Nas suas maneiras havia tal desembaraço, uma graciosidade tão isenta de basófia, que (ainda hoje estou persuadido) exercia nos outros uma espécie de enfeitiçamento. E ainda estou convencido de que o seu porte, vivacidade, voz agradável, beleza das feições e do corpo e não sei que encanto inato o dotavam de tamanha sedução que justificava as pessoas do facto de não lhe poderem resistir. Vi logo que os dois visitantes simpatizavam com Steerforth e parecia haverem‑se‑lhe entregado de alma e coração.

‑ Senhor Peggotty ‑ disse eu ‑ quando escrever à sua irmã diga‑lhe que o senhor Steerforth é muito bondoso e que, sem ele, não saberia que fazer de mim.

‑ Que disparate ‑ atalhou, rindo, o interessado. ‑ Não diga nada disso!

‑ E se o senhor Steerforth ‑ prossegui, dirigindo‑me sempre ao pescador ‑ aparecer algum dia em Norfolk ou Suffolk, pode crer que o levarei a ver a sua casa. ‑ Virando‑me para o meu colega, observei:‑ É uma casa construída num barco.

‑ Num barco? ‑ exclamou Steerforth. ‑ Pois então é a melhor residência para um marinheiro perfeito como este senhor.

- Tem razão, tem razão ‑ interrompeu Ham, rindo. ‑ Menino

Davy, o seu amigo tem muita razão. Um marinheiro perfeito, é o que ele é!

Peggotty não estava menos contente que o sobrinho, embora a sua modéstia lhe não permitisse fazer‑se eco desse louvor. Limitou‑se, pois, a agradecer, enquanto enfiava no colete as pontas do lenço de pescoço.

‑‑Faço o que posso, meus senhores...

‑. Não se pode exigir mais, senhor Peggotty ‑ asseverou Steerforth, que já decorara o nome do pescador.

‑ Aposto que é o mesmo que o senhor faz ‑ aduziu este ‑ porque há‑de fazer tudo pelo melhor. Agradeço‑lhe a atenção que me dispensou. Não passo de homem rude, mas estou às suas ordens. E a minha casa tambem, ofereço‑lha da melhor vontade se nos der o prazer de a visitar, na companhia do menino Davy. Desculpem o tempo que lhes tomámos, são horas de nos irmos andando. Desejo a ambos as maiores venturas.

Ham comungou nestes sentimentos e nós despedimo‑nos com a maior cordialidade. Nessa noite estive quase tentado a falar a Steerforth na pequena Emily, mas a minha timidez não o consentiu, tanto mais que tinha medo de que ele se risse. Transportámos os mariscos para o dormitório, às ocultas, e, antes de nos deitarmos, banqueteámo‑nos opiparamente. Mas Traddles não teve sorte. Era tão infortunado que mesmo uma ceia como aquela foi suficiente para lhe trazer complicações. Passou mal a noite, verdadeiramente prostrado, tudo por causa do caranguejo. Depois de haver ingerido purgantes sob formas líquidas e sólidas, em doses suficientes para matar um cavalo (na opinião de Demple, cujo pai era médico), ainda por cima recebeu bengaladas e ordem de traduzir seis capítulos gregos do Novo Testamento, por não ter confessado o delito.

O resto do período lectivo tenho‑o confuso na memória: só me lembro da nossa luta diária; da mudança das estações; das manhãs geladas, quando a sineta do colégio nos arrancava da cama e nos chamava de novo, nas noites escuras e frias, para o leito; da aula, à tarde, vagamente iluminada e mal aquecida (a da manhã era também uma máquina de fazer constipações); da carne cozida e da carne assada, do carneiro cozido e do carneiro assado; das fatias de pão com manteiga; dos livros dobrados no cantinho da margem; das ardósias estaladas; dos cadernos molhados de lágrimas; das bengaladas e reguadas; dos cortes de cabelo; dos domingos chuvosos; dos pudins de sebo; da atmosfera de tinta de escrever, que envolvia tudo.

Recordo‑me também, todavia, que a longínqua perspectiva das férias, por muito tempo um simples ponto estacionário, começava a aproximar‑se a pouco e pouco, a crescer mais e mais. Contávamos os meses, depois as semanas, por fim os dias.

No íntimo receava que não me mandassem buscar, e, quando Steerforth me disse que me reclamavam e eu tive a certeza de ir para casa, quanto temi quebrar uma perna, por exemplo, antes que esse momento chegasse! O dia da partida, que era de uma semana distante, passou a ser da semana seguinte, depois de amanhã e finalmente um hoje, uma determinada noite ‑ em que tomei lugar na mala‑posta de Yarmouth e regressei ao lar.

De caminho, dormi pouco e mal, com sonhos incoerentes acerca de mil e uma coisas. Mas, quando uma vez por outra acordava, o chão que eu via pela portinhola não era o do pátio de Salem, e o som que me chegava aos ouvidos não era o das pancadas que o senhor Creakle dava no Traddles mas o do cocheiro tangendo os seus cavalos.

 

MÍNHAS FÉRIAS, ESPECIALMENTE UMA TARDE AFORTUNADA

Quando chegámos, antes do alvorecer, à estalagem onde vivia o criado meu amigo, convidaram‑me a subir a um lindo quartinho de dormir que tinha sobre a porta esta palavra pintada: DELFIM. Sentia imenso frio, apesar do chá muito quente que me haviam servido no rés‑do‑chão, ao canto da lareira. E foi com prazer que me deitei no leito do Delfim, envolto nos seus lençóis e adormeci.

O carroceiro Barkis viria buscar‑me às nove horas da manhã. Levantei‑me às oito, um pouco aturdido pela brevidade do repouso nocturno, e já estava pronto à hora marcada. O homem recebeu‑me exactamente como se nos tivéssemos separado naquele instante e eu só houvesse entrado na estalagem para trocar dinheiro ou coisa parecida.

Logo que eu e a minha mala entrámos na carroça, o cavalo indolente partiu com o seu passo costumado.

‑ Está com bom aspecto, senhor Barkis ‑ disse‑lhe, pensando que isto lhe seria agradável.

Barkis esfregou a cara com o punho da camisa e olhou para ele como se esperasse aí encontrar um pouco de cor das faces; mas não se dignou replicar ao meu cumprimento.

‑ Entreguei o seu recado ‑ acrescentei. ‑ Escrevi à Peggotty.

O homem pareceu mal humorado e deu uma resposta seca.

Hesitei um instante e inquiri:

‑ Ficou zangado?

‑ Não, senhor.

‑ O recado não era esse?

‑ Sem dúvida... mas ficou tudo na mesma. Sem perceber bem, repeti:

‑ Ficou tudo na mesma?

‑ Não me ligou nenhuma.

‑ Esperava uma carta? ‑ volvi, admirado, pois a hipótese era nova para mim.

‑ Quando se diz que se suspira ‑ explicou o carroceiro, voltando‑se devagar no assento ‑ é porque se espera uma resposta.

‑ E então, senhor Barkis?

‑ Então ‑ retorquiu, tornando a olhar para as orelhas do cavalo ‑ ainda estou esperando essa resposta.

‑ Disse‑lhe isso, senhor Barkis?

‑ Não, senhor, não tinha razões para lhe escrever. Nunca lhe dirigi meia dúzia de palavras, e não iria agora dizer‑lhe...

‑ Quer que me encarregue disso? ‑ perguntei sem muita confiança.

‑ Se o menino quisesse ter a bondade ‑ começou ele, voltando‑se de novo, lentamente, para mim ‑, de lhe dizer... que o Barkis espera uma resposta... O nome dela é...?

‑ Peggotty.

‑ Nome próprio ou de família?

‑ De família. Foi baptizada com o de Clara.

Aquilo forneceu‑lhe matéria para grande reflexão. Cismava, e ia assobiando ao mesmo tempo.

‑ Pois,‑se fizer favor, diga‑lhe isto: «Peggotty, o Barkis espera resposta.» Ela, naturalmente, vai perguntar: «Resposta a quê?» E o menino replica: «Ao que te disse.» E ela: «Que é que disse?» E o menino: «Barkis suspira.» Ora aí tem.

Com esta sugestão engenhosa, o cocheiro deu‑me uma cotovelada, que me atingiu em cheio nas costelas. Em seguida, curvou‑se para o cavalo, como habitualmente, e não aludiu mais ao caso, excepto daí a meia hora, pouco mais ou menos, quando tirou da algibeira um bocado de giz e escreveu no interior da carroça: «Clara Peggotty», talvez para não se esquecer.

Que estranha sensação eu experimentava! Regresso ao lar, quando já não é o meu lar; recordar‑me dos velhos tempos, que são como os sonhos que não poderei sonhar mais... Esses dias em que eu, minha mãe e Peggotty não fazíamos senão um, sem ninguém que se interpusesse na nossa vida! Como isto se impunha ao meu espírito e me tornava triste, enquanto rodava pela estrada! Nem já sabia se me alegraria por voltar ou se mais valera ficar longe e esquecer tudo na companhia de Steerforth. Mas o facto era irremediável; depressa cheguei a casa, em cujo jardim os ulmeiros sem folhas contorciam os ramos numa atmosfera invernosa e desolada e o vento arrancava o que ainda havia dos antigos ninhos de gralhas.

O carroceiro depositou a mala ao portão, e deixou‑me. Eu dirigi‑me para casa, através da vereda de entrada, sempre a olhar para as janelas, não fosse aparecer a qualquer delas o senhor Murdstone ou a irmã! Todavia não vi ninguém e, chegando à porta da residência, como sabia abri‑la mesmo às escuras, fi‑lo sem ruído e entrei devagarinho.

Sabe Deus que memórias da infância despertaram em mim ao ouvir a voz da minha mãe, voz que vinha da saleta e que me alcançou quando eu penetrava no vestíbulo! Cantava em voz baixa, como devia fazer quando eu ainda não passava de um bebé. A cantiga é que era nova para mim, e contudo achei‑a tão familiar. Foi como um amigo que voltasse, após longa ausência.

Calculei, pela maneira pensativa como ela entoava a sua canção, que se encontrasse nesse momento só. Por isso entrei pé ante pé no quarto. A mãe estava sentada perto do lume, amamentando uma criança cuja mãozinha apertava contra o pescoço. Olhava‑a com ternura. Enganara‑me apenas em parte, porque não tinha outra companhia além desse miúdo.

Falei‑lhe, a mãe assustou‑se e soltou um grito. Vendo‑me, porém, chamou‑me seu querido Davy, seu adorado filho, e, vindo ao meu encontro, ajoelhou no chão e beijou‑me, cingindo a minha cabeça ao seu peito, muito próximo do pequeno ser que aí continuava aninhado, e pôs a mão dele nos meus lábios.

Desejei morrer. Tenho pena de não ter morrido nesse instante, com aquele sentimento no coração. Estava mais destinado ao Céu do que o estive pela vida fora.

‑ É teu irmão ‑ disse‑me ela, afagando‑me. ‑ Davy, meu filho, meu querido filho!

Beijava‑me sempre, com os braços de roda do meu pescoço. Achava‑se nessa posição quando Peggotty apareceu correndo e se acocorou junto de nós, acrescentando as suas manifestações às da minha mãe, por cerca de um quarto de hora.

Não deviam esperar‑me tão cedo. O carroceiro antecipara a hora da chegada. O senhor Murdstone e a irmã parece que tinham ido fazer uma visita na vizinhança e não regressariam antes da noite. Eu não contara com tanta sorte! Estarmos outra vez reunidos, sem estranhos! Por então, julguei‑me transportado aos velhos tempos.

Jantámos juntos perto da lareira. Peggotty queria servir‑nos, mas a minha mãe não consentiu e fê‑la sentar‑se connosco. Puseram‑me o meu antigo prato, onde estava representado, a castanho, um navio de guerra com as velas desfraldadas: Peggotty guardara‑o preciosamente durante a minha ausência, não queria por nada deste mundo vê‑lo destruído. Eu possuía também uma caneca privativa, com o nome David aí gravado, e tinha ainda um garfo e uma faca (a qual, aliás, não cortava).

Enquanto permanecemos à mesa, achei oportuno referir‑me ao senhor Barkis, mas ainda não acabara de falar e já Peggotty desatara a rir, cobrindo a cara com o avental.

‑ Que te aconteceu, rapariga? ‑ perguntou minha mãe.

A criada riu‑se com maior vontade, apertando com mais força o avental de encontro ao rosto; parecia ter enfiado a cabeça num saco. Minha mãe tentou arrancar‑lho.

‑‑Que é isso, pateta? ‑ insistiu ela.

‑ O raio do homem! ‑ exclamou por fim Peggotty. ‑ Imagine que quer casar comigo!

‑ Seria bom casamento para ti...

‑ Sei lá! Não me fale nisso. Nem que ele estivesse cheio de ouro até aos olhos. Nem esse nem outro.

‑ Então por que lho não dizes?

‑ Dizer‑lhe? ‑ repetiu Peggotty, olhando por cima do aventàl. ‑ A mim nunca fez a mínima declaração. Sabe bem com quem se metia. Se se atrevesse a tanto, pespegava‑lhe uma bofetada.

Estava vermelha como um tomate; mas tornou a esconder a cara, duas ou três vezes mais, para dissimular um violento acesso de hilaridade. Até que finalmente recomeçou a comer.

Notei que a minha mãe, embora sorrisse quando Peggotty olhava para ela, se tornara séria, meditabunda. Já desconfiara de que havia mudança. Ainda era bonita, porém denotava excesso de preocupações. Tinha as mãos tão magras e brancas que me pareciam transparentes. Contudo, a diferença que se produzira era de outro género: respeitava ao seu feitio, que achei nervoso, agitado. Estendeu os dedos e poisou‑os nos da criada, dizendo‑lhe, em tom afectuoso:

‑ Minha querida Peggotty, não vais casar‑te, pois não?

‑ Eu! ‑ exclamou a interpelada, alçando os braços. ‑ Por certo que não!

‑ Não seria já?

‑ Nunca! ‑ bradou a criada.

A mãe pegou‑lhe na mão e disse:

‑ Peggotty, não me abandones. Fica comigo. Talvez não seja por muito tempo. Que faria eu sem ti?

‑ Abandoná‑la, minha querida senhora? Por nada deste mundo! Como se lhe meteu semelhante ideia nessa cabecinha?

Havia já muito tempo que ela tratava minha mãe como uma criança.

A resposta foi um agradecimento, e Peggotty continuou, à sua moda:

‑ Eu, deixá‑la? Gostava de ver isso! Não, não, minha querida senhora! ‑ declarou, meneando a cabeça e cruzando os braços. ‑ Conheço quem ficaria satisfeito, se tal acontecesse. Mas engana‑se. Ficarei consigo até ser uma velha tonta. E quando estiver surda, cega e achacada, e não prestar para nada mais, só para receber ralhos dos senhores, então vou ter com o meu Davy e peço‑lhe que me dê asilo.

‑ Oh, Peggotty ‑ atalhei ‑ ficaria muito contente e recebia‑te de braços abertos.

‑ Deus abençoe o seu bom coração. Eu bem o sabia, menino. E beijou‑me, antecipando o seu reconhecimento pela prometida hospitalidade. Depois disto, tornou a cobrir a cabeça com o avental e riu‑se mais uma vez pensando no Barkis. Então pegou no bebé, que estava no berço, embalou‑o, e repô‑lo no mesmo lugar. Levantou a mesa, saiu, e veio com outra touca, e a caixa de costura, a fita métrica e um coto de vela, tudo exactamente como antes.

Sentámo‑nos defronte do fogão e conversámos pacificamente. Contei‑lhes a severidade de Creakle e elas lastimaram‑me condoídas. Expliquei‑lhes também como Steerforth era um rapaz simpático e quanto me protegia, e Peggotty participou que andaria vinte milhas a pé só para o conhecer. O meu irmãozinho acordou e eu, tomando‑o nos braços, acarinhei‑o ternamente. Quando outra vez adormeceu, aproximei‑me da minha mãe, repetindo o hábito de outrora, tão longamente interrompido, cingi‑a pela cintura e apoiei a cara no ombro dela. Os seus lindos cabelos de novo me envolveram como uma asa de anjo (lembro‑me que era esta a comparação que eu fazia) e senti‑me verdadeiramente feliz.

Enquanto estive ali sentado, a olhar para o lume e a imaginar imagens formando‑se nas brasas, eu quase acreditei que nunca me havia ausentado, que o senhor Murdstone e a irmã eram pura fantasia e que deviam extinguir‑se juntamente com o fogo. E que não existia mais nada de real senão a minha mãe, Peggotty e eu.

A criada passajava uma meia e trabalhou até que lhe faltou a luz, e então ficou com ela enfiada na mão esquerda, como uma luva, e a agulha na direita, pronta a dar outro ponto quando do borralho surgisse novo clarão. Não imagino a quem pertenceriam as meias que Peggotty continuamente passajava, nem donde podia vir uma provisão tão abundante. Desde a minha mais tenra infância que sempre a vi ocupada unicamente nesse género de trabalhos de agulha.

‑ Gostava de saber ‑ disse Peggotty, que às vezes era tomada de uma curiosidade quanto aos assuntos mais inesperados ‑, gostava de saber que será feito da tia‑avó de Davy.

‑ Oh, Peggotty, lembras‑te de cada uma! ‑ murmurou minha mãe, que parecia emergir do seu devaneio.

‑ Em todo o caso sempre queria saber...

‑‑Como é que te veio isso ao pensamento? Não haverá outras pessoas de quem possamos falar?

‑ Não sei como é, talvez até seja disparate, mas não escolho as pessoas de quem me recordo. As lembranças acodem, vêm e vão sem eu querer. Realmente, que seria feito daquela senhora?

‑ Ao ouvir‑te, julgar‑se‑ia que desejas nova visita da tia Betsey.

‑ Deus nos livre! ‑ exclamou Peggotty.

‑ Então não fales mais em coisas desagradáveis, se desejas o meu bem‑estar. A tia Betsey há‑de estar fechada na sua vivenda à beira‑mar, e lá continuará decerto. Mas, seja como for, não é provável que venha de novo incomodar‑nos.

‑ Não é provável, não. O que eu penso ‑ continuou a criada, com ar pensativo ‑ é se ela, por sua morte, deixa alguma coisa ao Davy.

‑ Meu Deus, Peggotty! Enlouqueceste. Não vês que até ficou ofendida só pelo facto de ele nascer?

‑ Talvez agora esteja disposta a perdoar‑lhe ‑ sugeriu Peggotty.

‑ Mas porquê? ‑ retorquiu vivamente a minha mãe.

‑ Porque tem agora um irmão...

A mãe começou logo a chorar, dizendo não compreender como é que Peggotty se atrevia a supor tal coisa.

‑ Como se este inocentinho, no seu berço, tivesse feito mal, a ti ou a quem quer que seja... Deixa‑te de ciúmes. Olha, mais vale que te cases com o senhor Barkis carroceiro. Quem to impede?

‑ Daria grande satisfação à senhora Murdstone ‑ afirmou Peggotty.

‑ Ai, que mau carácter o teu! Tens ciúmes da senhora Murdstone, o que é ridículo. Preferias seres tu a guardar as chaves e a distribuir os mantimentos? Não me admiraria nada. Bem sabes que ela só o faz por generosidade, na melhor das intenções. Não me digas, Peggotty, que não sabes.

A criada resmungou qualquer coisa que significava: «Vá ela para o diabo com as suas boas intenções», e deu a entender que, destas, estava o inferno cheio.

‑ Percebo o que queres dizer, minha rabugenta. Devias corar de vergonha. Mas vamos a uma coisa de cada vez. Não me escapas, Peggotty. Não a ouviste observar, com frequência, que sou muito estouvada e muito...

‑ Bonita ‑ concluiu a criada.

‑ Seja ‑ volveu a mãe, meio sorridente ‑ se ela tem o mau gosto de o pensar. Mas sendo assim, que culpa tenho eu?

‑ Ninguém a culpou de ser bonita.

‑ Sim, realmente ninguém o terá feito. No entanto, essa é a razão pela qual ela deseja poupar‑me muitos trabalhos. Nem eu sei se seria capaz de os levar a cabo! Levanta‑se cedo, deita‑se tarde, sempre num rodopio, a fazer tudo e a vasculhar tudo, na carvoeira, na despensa, em tantos lugares que não devem ser agradáveis. E ainda insinuas que não é pessoa dedicada!

‑ Não insinuei nada ‑ replicou Peggotty.

‑ Ora!‑atalhou a mãe. ‑ Não fazes outra coisa, além do teu serviço. Passas o tempo a insinuar. Era o que te dizia há pouco. Insinuas constantemente. Disse‑te que te compreendia e tu bem vês que sim. E quando falas das boas intenções do senhor Murdstone, finges que não as tomas a sério (porque, no fundo, não estás a ser sincera). Sabes tão bem como eu que essas intenções são boas e que não procedem de nenhum outro sentimento. Se parece haver nele severidade para com alguém (estou certa de que me entendes, Peggotty, assim como o Davy), é porque está convencido de que isso só traz vantagem. Estima bastante essa pessoa por amor de mim; trata‑se apenas do seu bem. Julga melhor do que eu, pois sou um tanto fraca, e vã, e muito nova, e ele é um homem sério, grave, e mais seguro juiz do que eu. Dá‑se a muitos trabalhos por minha causa ‑ rematou a mãe, cujos olhos se encheram de lágrimas ‑ e eu devo ser‑lhe reconhecida e submissa, mesmo em pensamento. Se não for assim, sinto remorsos e a mim própria me censuro.

Peggotty levou ao queixo o pé da meia que passajava e contemplou em silêncio o lume no fogão.

‑ Então ‑ disse a mãe, mudando de tom ‑ continuemos boas amigas, não suportaria a ideia de que te havias zangado. Sei que és amiga sincera, a única que tenho. Quando digo que és ridícula, ou irritante, ou qualquer coisa neste género, não esqueço a tua dedicação já tão antiga... desde o dia em que o meu defunto Copperfield me trouxe aqui pela primeira vez e tu vieste ao portão receber‑me.

A criada não se demorou a ratificar este tratado de amizade, apertando‑me ao peito com toda a força. Julgo que suspeitei então, por momentos, qual o verdadeiro sentido daquela conversa; e hoje estou convencido de que Peggotty a provocou só para dar à minha mãe oportunidade de se consolar fazendo‑lhe o pequeno sumário de querela a que se entregou com tanto gosto. O cálculo era justo, porque notei nela, no resto do serão, um ar mais à vontade e maior desprendimento em Peggotty.

Depois do chá, revolvidas as brasas e espevitadas as velas, eu li à Peggotty um capítulo do Livro dos Crocodilos, como evocação dos tempos idos (tirou‑o da algibeira; eu desconfio que ali o tivera guardado desde a minha partida). Em seguida falámos do Internato de Salem, o que me trouxe à balha o assunto de Steerforth, para mim o preferido. Sentíamo‑nos felizes. Aquela noite foi a última do nosso convívio e estava destinada a fechar uma parte da minha vida, que jamais se me apagará da memória.

Eram quase dez horas quando ouvimos um som de rodas. Pusemo‑nos todos de pé. A mãe disse‑me precipitadamente que a noite já ia adiantada e que o senhor Murdstone e a irmã professavam a opinião de que as crianças deviam deitar‑se cedo; em suma, que chegara o momento de eu recolher à cama. Beijei‑a e subi logo a escada, com uma vela na mão, antes que os Murdstones chegassem. Ao entrar no meu quarto (onde estivera encarcerado), tinha a impressão de que, com esses dois irmãos, penetrara na casa um sopro de ar frio, o qual levara dali, como uma pluma, o velho sentimento familiar.

Senti grande relutância, no dia seguinte, em descer para o primeiro almoço, pois não tornara a ver o meu padrasto depois do dia memorável em que o ofendera tão gravemente. Devia, porém, decidir‑me. Fui por duas ou três vezes até ao patamar e voltei ao quarto, em bicos de pés, até que, por fim, me apresentei na saleta.

O senhor Murdstone estava de costas para o fogão e a irmã preparava o chá. Ele olhou‑me com fixidez, como se não me reconhecesse.

Após um momento de embaraço, avancei e disse:

‑ Peço‑lhe perdão. Estou muito arrependido do que fiz e espero que seja benevolente.

‑ Estimo saber que te arrependeste, David ‑ respondeu ele.

Estendeu a mão, essa mesma mão que eu mordera, e eu não pude coibir‑me de olhar um instante para a cicatriz vermelha que aí avultava; mas não seria tão vermelha como a cor que me subiu às faces quando notei a sua expressão ameaçadora.

‑‑Como passa, minha senhora? ‑ perguntei, dirigindo‑me à Murdstone.

‑ Ah, meu Deus! ‑ suspirou ela, apresentando‑me a colher de chá em vez dos dedos. ‑ Quanto tempo duram as férias?

‑ Um mês.

‑ A contar de quando?

‑ A contar de hoje.

‑ Oh! Então faz menos um dia.

Assim tinha ela o calendário das férias, no qual todas as manhãs abatia um dia. Fez isso com ar triste até chegar a dez, mas, quando principiaram a ser dois algarismos, tornou‑se esperançada, e, conforme o tempo decorria, até parecia mais alegre.

Logo no primeiro dia tive a pouca sorte de a lançar num estado de sobressalto e consternação, embora ela, em geral, não fosse sujeita a estas fraquezas. Entrei no quarto em que a solteirona se encontrava com a minha mãe: nos joelhos desta estava o bebé, que não tinha mais do que umas semanas, e eu peguei‑o ao colo, com o maior cuidado. De súbito, a senhora Murdstone soltou um grito, e eu quase o deixava cair.

‑ Oh, Jane, que foi? ‑ inquiriu minha mãe.

‑ Pois não vê, Clara?

‑ Não vejo o quê, Jane?

‑ Ele tem‑no! Esse pequeno pegou no bebé!

Desfalecia de horror, mas endireitou‑se para correr até mim e tirou‑me a criança dos braços. Nessa altura perdeu os sentidos. E parecia tão doente que se viram obrigados a dar‑lhe licor de ginja. Quando se recompôs, proibiu‑me formalmente de tocar no meu irmão, sob nenhum pretexto. E a minha mãe, coitada, que teria desejado outra coisa (bem o compreendi), confirmou timidamente a interdição dizendo:

‑ Não há dúvida, querida Jane, de que tem razão.

Noutra ocasião em que estávamos juntos, essa criança inocente (que eu estimava tanto, por amor de minha mãe) foi causa de nova cólera da senhora Murdstone. A mãe conservava‑a ao colo e observava‑lhe os olhos. Depois chamou‑me e começou a examinar os meus.

A solteirona pôs de lado as contas que enfiava.

‑ Parecem‑se muito ‑ declarou por fim a mãe. ‑ São da cor dos meus. É espantosa a semelhança dos dois irmãos.

‑ Clara ‑ interveio a senhora Murdstone ‑ de que é que fala? ‑ Querida Jane ‑ volveu a interpelada, que se assustara com a dureza de tom da sua inquisidora. ‑ Acho que os dois pequenos têm os olhos iguais.

‑ Enlouqueceu, com certeza! ‑ exclamou a senhora Murdstone, levantando‑se furiosa. ‑ Não há semelhança nenhuma. Diferem em tudo. Como se atreve a comparar o filho do meu irmão com o seu? Não ficarei aqui nem mais um instante, se é para ouvir tais dislates. ‑ Disse isto e saiu, batendo a porta com força.

Em suma, eu não gozava de simpatia junto da senhora Murdstone. Nem junto de mais ninguém, nem sequer de mim mesmo, pois os que me estimavam não o podiam manifestar e os outros mostravam‑mo tanto que eu tinha sempre a sensação dolorosa do meu embaraço, rudeza e estupidez.

Compreendia que os incomodava tanto quanto eles me incomodavam. Se entrava num quarto em que estavam a conversar e se a minha mãe parecia contente, logo a inquietação lhe passava pelo rosto, como uma nuvem. Se o senhor Murdstone se achava de bom humor, eu anulava imediatamente essa boa disposição. Tinha a percepção suficiente para saber que a minha mãe era sempre a vítima; ela receava falar‑me ou ser agradável comigo, com medo de os magoar e de ouvir em seguida uma sarabanda; vivia no temor constante não só de os ofender mas de os ver ofendidos só com a minha presença. De maneira que tomei a decisão de me conservar o mais possível de parte. Quantas vezes ouvi, sozinho, o relógio da igreja soar as horas de Inverno, sentado no meu quarto triste, embrulhado no meu sobretudo e debruçado sobre um livro.

À noite, eu muitas vezes ia à cozinha e aí me sentava com Peggotty. Sentia‑me à vontade, mesmo sem aquele medo instintivo de mim mesmo. Os outros, porém, não gostavam disto. Consideravam‑me ainda necessário à reeducação da minha pobre mãe, para quem eu constituía uma provação que eles não podiam dispensar.

‑ David ‑ disse uma vez o senhor Murdstone, depois do jantar, quando me preparava, como de costume, para me retirar. ‑ Desgosta‑me ver que continuas taciturno.

‑ Como um urso! ‑ acrescentou a irmã. Fiquei parado e baixei a cabeça.

‑ Pois, David ‑ insistiu ele ‑, um temperamento desses é o pior que pode haver. Jane atalhou:

‑ Este rapaz é o mais obstinado de quantos tenho visto. Querida Clara, não lhe parece?

‑ Desculpe ‑ retorquiu a mãe. ‑ Estou certa de que me perdoará. Mas acha que compreende o David?

‑ Envergonhar‑me‑ia de mim mesma, Clara, se não compreendesse o rapaz, este ou outro qualquer. Não pretendo ser profunda, no entanto não me falta bom senso.

‑ Sem dúvida, querida Jane ‑ replicou a mãe. ‑ Sei que é uma pessoa enérgica...

‑ Não se trata disso, por amor de Deus!‑acudiu a outra, melindrada.

‑ É, sim, e todos o sabem. Estou plenamente convencida...

‑ Admitamos, Clara, que eu não compreendo o David ‑ disse a senhora Murdstone, compondo os grilhões da pulseira. ‑ Admitamos que não o compreendo inteiramente. É muito complicado para mim. Mas talvez a perspicácia de meu irmão nos ajude a entender o carácter do rapaz. E creio que ele dizia qualquer coisa a este respeito quando nós o interrompemos, aliás de uma forma pouco delicada.

‑ Suponho, Clara ‑ começou o marido, em voz baixa e com ar grave ‑ que pode haver, neste assunto, juízes menos apaixonados e melhores do que tu.

‑ Edward ‑ redarguiu timidamente a mulher ‑ és sempre melhor juiz do que eu, em todas as questões. Tu, e igualmente a Jane. Eu apenas dizia que...

‑ Dizias apenas uma coisa que demonstrava a tua fraqueza e inconsideração. Faze o possível de não insistir e domina‑te.

Os lábios da minha mãe moveram‑se, mas, em voz alta, só proferiu isto:

‑ Sim, querido Edward...

O senhor Murdstone virou‑se para mim e, com semblante sério, repetiu:

‑ Eu tinha observado, David, o meu desagrado por ver que tinhas esse feitio macambúzio. É uma coisa que não posso deixar desenvolver‑se sob as minhas vistas, sem a devida correcção. Tens de te esforçar por te corrigir. E a nós compete diligenciar nesse sentido.

‑ Desculpe ‑ balbuciei. ‑ O meu desejo não era esse, desde que voltei.

‑ Não te refugies na mentira ‑ replicou tão enfurecido que a minha mãe estendeu involuntariamente a mão para se interpor. ‑ Escondes‑te no teu quarto, por teimosia, em vez de vires para junto de nós. Fica sabendo, de uma vez para sempre, que te quero aqui. Exijo também que sejas obediente. Conheces‑me, David. Esta è a minha vontade.

A senhora Murdstone emitiu um riso rouco, meio sufocado, que denunciava a sua satisfação.

‑ Quero prontidão respeitosa para comigo, a tua mãe e a minha irmã. Não suporto que uma criança, por seu mero prazer, evite esta sala como se estivesse infectada. Senta‑te.

Deu‑me esta ordem como se faz a um cão, e, como um cão, obedeci.

‑ Mais uma coisa ‑ ajuntou ele. ‑ Reparo que tens prazer em companhias baixas, vulgares. Não deves acamaradar com os criados. A cozinha não te melhora nos aspectos em que precisas de aperfeiçoamento. Da mulher que te incita não direi nada, visto que tu, Clara ‑ e dirigiu‑se à minha mãe, baixando a voz ‑ tens a fraqueza de a escutar, devido decerto a velhas recordações e certas fantasias de há muito toleradas.

‑ Ilusão inexplicável!‑comentou Jane Murdstone.

‑ Quero dizer ‑ continuou ele, dirigindo‑se a mim ‑ que não concordo com o teu gosto pela companhia da senhora Peggotty e que tens de renunciar a ela. Agora, David, que me ouviste sabes quais podem ser as consequências de não me obedeceres à letra.

Eu sabia bem quais eram, mais do que o próprio suporia, e portando obedeci. Nunca mais me isolei no meu quarto, nem me refugiei junto de Peggotty. Dias após dias, fiquei melancolicamente na saleta, esperando pela hora de me ir deitar.

Que penoso constrangimento não experimentei, ali na mesma posição durante tanto tempo, sem me atrever a erguer um braço ou estender uma perna, com medo de que Jane Murdstone não se queixasse da minha agitação (como fazia ao menor pretexto!). Nem sequer dirigia a vista para esse lado, porque podia encontrar aqueles olhos hostis e perscrutantes que até nos meus achariam motivo de censura. Que aborrecimento intolerável, esse de ouvir o tiquetaque do relógio ou ver a senhora Murdstone enfiar contas de aço luzidias. Pensava então se essa mulher jamais se casaria e qual devia ser a sorte do marido infortunado que a recebesse, e contava, para me distrair, os torneados do fogão ou admirava o tecto e os desenhos do papel da parede.

Quantos passeios dei, sozinho, pelos caminhos enlameados, sob o Inverno rigoroso, levando comigo a pesada recordação da saleta com os irmãos Murdstones, carga monstruosa que era obrigado a suportar, pesadelo diurno impossível de banir do pensamento, que me esmagava a inteligência e a embotava!

Quantas refeições tomei em silêncio, constrangido, sentindo sempre que havia uma faca e um garfo a mais, os meus; um apetite a mais, o meu; um prato e uma cadeira a mais, esses de que me servia; e, enfim, alguém a mais, que era eu mesmo!

Quantas noites passei, quando traziam as velas e eu devia entreter‑me comigo só, sem me atrever a abrir um livro, a não ser o compêndio de Aritmética, sobre o qual suava, tão vazio ele era de interesse humano! As tabelas dos Pesos e Medidas, de súcia com hinos patrióticos e canções, recusavam‑se a ser decoradas, entravam‑se por um ouvido e saíam‑me por outro.

Quantos bocejos, quanto cabecear de sono, apesar dos meus esforços para me manter direito! Às vezes despertava sobressaltado; e, se fazia qualquer pergunta, ninguém se dignava responder. Eu não era ninguém, só servia para incomodar os outros. E que alívio quando Jane Murdstone, à primeira badalada das nove horas, me dava ordem de recolher à cama!

Assim se arrastaram os dias, até que chegou certa manhã em que a minha inimiga‑, passando‑me a última xícara de chá, declarou: «Acabaram‑se as férias!»

Não me importava partir. Encontrava‑me em tal estado de embrutecimento que o meu desejo era reencontrar Steerforth, se bem que por trás dele aparecesse a sombra de Creakle. Mais uma vez apareceu ao portão o carroceiro Barkis e mais uma vez a senhora Murdstone avisou minha mãe com um «Clara!» enérgico quando ela se inclinou para me dar o beijo de despedida.

Beijei‑a também, assim como o meu irmãozinho, e então senti‑me triste, não, porém, de me ir embora, pois entre nós cavara‑se um abismo e a separação já existia. O seu adeus, embora caloroso, não está tão presente na minha memória como o que se seguiu.

Achava‑me na carroça quando a ouvi pronunciar o meu nome. Voltei‑me e vi‑a à porta, com o pequenito nos braços, erguendo‑o para que eu o contemplasse. O tempo ainda se mantinha frio, mas sem vento. Nem um cabelo, nem uma dobra do seu vestido se moveu enquanto ela ali ficou olhando‑me intensamente e segurando sempre a criança à altura da cabeça.

Foi assim que a perdi. Foi assim que a evoquei mais tarde, no Internato ‑ uma presença silenciosa junto da minha cama ‑, olhando‑me com o mesmo olhar fixo e o bebé erguido nos braços.

 

PASSO UM ANIVERSÁRIO MEMORÁVEL

Não falarei dos acontecimentos que se produziram no colégio até ao dia do meu aniversário, que é no mês de Março. Nada recordo, aliás, senão que Steerforth continuava a merecer a minha maior admiração; devia partir no fim do período lectivo, quando muito, e andava mais animado e independente do que nunca, portanto mais simpático ainda aos meus olhos. É tudo quanto me lembra. O que distingue, para mim, aquela época é de tal importância que absorve todos os outros factos e os dissipa por completo.

Custa‑me a crer que passaram dois meses inteiros entre o regresso ao Internato de Salem e o advento do dia dos meus anos. Aceito, porém, que assim foi, porque não podia ter deixado de ser. De outra maneira acreditaria que o fim das férias e o meu natalício se seguiram sem interrupção.

Jamais me esquecerei do tempo que fazia nessa altura. Havia nevoeiro, através do qual via as coisas espectralmente. Sentia os cabelos colarem‑se, húmidos, às faces. À minha frente estendia‑se a aula, com uma ou outra vela acesa para nos iluminar na manhã brumosa. O hálito dos rapazes transformava‑se em vapor, que subia no ar quando eles respiravam. E quantos sopravam nos dedos, para atenuar o frio, ou batiam com os pés no soalho!

Era depois do primeiro almoço. Acabávamos de voltar do recreio quando chegou o senhor Sharp e me disse:

‑ David Copperfield, vai à sala!

Esperava um cabaz de Peggotty e esta ordem encheu‑me de regozijo. Alguns colegas pediram‑me que os contemplasse na distribuição do conteúdo do cesto, quando me levantei para sair, impando de satisfação.

‑ Não tenhas pressa, David ‑ recordou‑me o professor. ‑ Há tempo de sobra, meu rapaz.

Surpreender‑me‑ia o tom compassivo com que se exprimia se eu lhe tivesse prestado atenção. Mas só mais tarde pensei nisso. Desci precipitadamente e fui aos aposentos do senhor Creakle. Este encontrava‑se à mesa, almoçando, com a bengala e um jornal à sua frente, na mesa, e segurava na mão uma carta aberta. Quanto ao cabaz, nem sombras dele.

‑ David Copperfield ‑ disse a senhora Creakle, conduzindo‑me a um sofá. Sentou‑se e convidou‑me a sentar‑me a seu lado. ‑ Preciso de falar contigo. Há uma coisa que é necessário dizer‑te.

O marido, para quem naturalmente olhei, abanou a cabeça, sem erguer os olhos para mim, e sufocou um suspiro levando à boca uma enorme fatia de pão com manteiga.

‑ És muito novo ‑ continuou a senhora Creakle ‑ para saber que o mundo se modifica de hora a hora e que os que o habitam acabam por desaparecer. No entanto, todos nós temos de estar prevenidos. A alguns, acontece isso quando ainda são novos, outros quando já são velhos, e a muitos em qualquer altura da sua existência.

Observei‑a inquieto.

‑ Quando voltaste para aqui, depois das férias ‑ acrescentou ela, após um silêncio ‑ estavam todos bem na tua casa? ‑ Fez mais outra pausa e inquiriu: ‑ A tua mamã achava‑se de perfeita saúde?

Tremi, sem saber porquê, e continuei a observá‑la intensamente, sem sequer tentar responder.

‑ É porque ‑ prosseguiu a senhora Creakle ‑ tive esta manhã a triste notícia de que estava muito doente.

Entre mim e a mulher do director levantou‑se uma névoa, na qual, por instantes, ela pareceu afastar‑se. Então senti correrem‑me pelas faces lágrimas ardentes, e a sua figura tornou a surgir à minha frente.

‑ Está mesmo muito doente ‑ insistiu a senhora Creakle. Compreendi tudo.

‑ Morreu ‑ concluiu a minha informadora.

Não precisava dizer‑mo. Eu já principiara a chorar. Era órfão, sentia‑me só no mundo.

A senhora Creakle procedeu com muita bondade. Deixou‑me ali ficar todo o dia, e raras vezes desacompanhado. Continuei chorando, adormeci de cansaço e, ao acordar, tornei a verter lágrimas. Quando elas se me esgotaram, comecei a reflectir, e então a opressão que tinha no peito foi ainda mais forte. Nada poderia aliviar a minha dor.

Contudo os pensamentos eram vagos; não incidiam sobre a calamidade que me avassalara, mas erravam à volta dela. Pensei na nossa casa fechada e silenciosa; pensei no bebé que (segundo me dissera a senhora Creakle) se consumia há já algum tempo e que esperavam viesse a morrer também; pensei na cova de meu pai, no cemitério próximo da residência, e evoquei a minha mãe ali sepultada, sob a árvore que eu conhecia tão bem. Ao ficar só, subi para uma cadeira e vi‑me no espelho: tinha os olhos avermelhados, uma sombra de tristeza em todo o rosto. Passadas que foram umas horas, e como as lágrimas já não corriam com facilidade, considerei no que mais me haveria de afectar, quando me aproximasse da casa ‑ visto que me haviam convocado para o enterro. Experimentava uma impressão de dignidade ligada ao desgosto, o que me faria sobressair entre os meus camaradas e me dava certa importância.

Se jamais uma criança sofreu mágoa sincera, esse caso foi o meu. Contudo recordo‑me de que aquela sensação de importância me trouxe alguma satisfação quando atravessei o pátio enquanto Os outros alunos estavam nas lições. E ao vê‑los observarem‑me das janelas, nessa tarde, no momento em que se dirigiam para as aulas, achei‑me diferente, tomei um ar mais melancólico e andei com passo mais lento. Terminados os trabalhos escolares, eles vieram falar‑me e eu, no íntimo, considerei quanto fora bondoso em não afectar orgulho e os tratar exactamente como antes.

Devia partir no dia seguinte, à noite, não pela mala‑posta mas numa pesada carruagem que só fazia viagens nocturnas e era utilizada em especial pela gente do campo, que se deslocava para distâncias curtas. Nessa noite não contei histórias, e Traddles insistiu em me emprestar o seu travesseiro: não sei que vantagem supunha que isso me trazia, pois que eu tinha o meu; era, porém, tudo o que ele, coitado, podia dispor, além de uma folha de papel de carta coberta de desenhos de esqueletos. E isto mesmo me ofereceu quando nos despedimos, para me suavizar a dor e contribuir para o restabelecimento da paz da minha alma.

No dia seguinte, à tarde, deixei o Internato de Salem, e não tive dúvidas de que jamais lá voltaria. A viagem decorreu lentamente, a noite inteira; só chegámos a Yarmouth pelas nove ou dez horas da manhã. Procurei o senhor Barkis, e não o vi; no seu lugar estava um homem gordo, asmático, já velho, mas de aspecto jovial. Vestia de preto, tinha meias da mesma cor e fitas esgarçadas a apertarem‑lhe os calções nos joelhos. Na cabeça, um chapéu de abas largas. Chegou‑se ofegante à portinhola da carruagem e perguntou:

‑ É o menino Copperfield?

‑ Eu mesmo.

‑ Faça favor de vir comigo. Eu é que terei o prazer de o levar a casa.

Estendi‑lhe a mão, pensando quem seria aquele homem, e fomos a uma loja que ficava numa rua estreita e sobre a qual se via um letreiro com estes dizeres: OMER. NEGOCIANTE DE PANOS. ALFAIATE. CAPELISTA. TRAJES DE LUTO. Era um estabelecimento acanhado, onde se sufocava, cheio de fatos de toda a espécie, uns feitos, outros por acabar. Havia uma montra repleta de chapéus de feltro e toucas de senhora. Penetrámos num quarto contíguo onde trabalhavam três raparigas numa porção de tecidos pretos amontoados na mesa; pelo chão viam‑se bocadinhos de fazenda e retalhos. O fogão estava aceso. No ar errava o cheiro sufocante de crepes mornos; nessa altura eu não sabia o que era, mas sei‑o agora.

As três raparigas, que pareciam muito activas e satisfeitas, ergueram a cabeça para mim e retomaram logo o trabalho. Cosiam, cosiam, cosiam... Ao mesmo tempo ouviu‑se, duma oficina situada no pátio para onde dava a janela da loja, um som martelado e uniforme, rat... tat... tat... rat... tat... tat... tat...

O meu companheiro perguntou a uma das operárias:

‑ Isso vai adiantado, Minnie?

‑ Estamos a aprontar para a prova. Não tenha receio, pai. O senhor Omer tirou o chapéu e sentou‑se, arquejante. Só daí a pouco conseguiu replicar:

‑ Muito bem.

‑‑Pai!‑observou Minnie ‑ já me parece um porco‑marinho!

‑ Não sei como isto acontece ‑ redarguiu o homem. ‑ Eu sou assim.

‑ Não coma tanto. Isso faz‑lhe mal.

‑ De que serve privar‑me? ‑ murmurou o senhor Omer.

‑ De nada, realmente ‑ concordou a filha. ‑ Aqui, graças a Deus, fazemos pelo melhor.

‑ Espero que sim. Agora que já descansei um pouco, vai‑se tomar as medidas deste menino. Quer passar à loja? ‑ acrescentou, falando comigo.

Obedeci e passei à sua frente. Depois de me haver mostrado uma fazenda que, segundo a sua expressão, era de qualidade extra, e conveniente para luto de pai ou mãe, tomou‑me as medidas, que apontou num livro. Entretanto chamava‑me a atenção para o que tinha armazenado, certas novidades «acabadas de chegar».

‑ Desta maneira é que perdemos dinheiro ‑ disse ele. ‑ Mas as modas são como as pessoas. Aparecem, não se sabe quando, nem porquê, nem como, e depois vão, também não se sabe quando, nem porquê, nem como. Neste aspecto são como a vida, em minha opinião.

Eu estava muito acabrunhado para discutir este assunto, o qual, de qualquer modo, ultrapassaria as minhas possibilidades; e o senhor Omer conduziu‑me outra vez ao anexo, respirando de caminho com grande dificuldade.

Abriu então uma porta que dava para uma escada íngreme e gritou: «Tragam o chá e o pão com manteiga.» Ao fim de certo tempo, que aproveitei para reflectir, escutando o rumor das agulhas no compartimento e o som martelado que vinha do pátio, apareceu o tabuleiro do chá, que verifiquei ser‑me precisamente destinado.

‑ Conheço‑o ‑ declarou o senhor Omer, depois de me ter examinado um momento, sem que eu (como o luto me tirara o apetite) fizesse muita honra àquele almoço. ‑ Conheço‑o há bastante tempo, meu amiguinho.

‑ Ah, sim?

‑ Desde que nasceu. Bem posso dizer que mesmo antes. Conheci o seu pai: media cinco pés e nove polegadas e meia, e a sua cova ocupa uma área de vinte e cinco pés...

Rat‑tat‑tat... Rat‑tat‑tat...

- Jaz numa cova de vinte e cinco pés ‑ repetiu em tom amável. Não me lembro se foi por sua vontade ou a pedido de outrem.

‑ Sabe como passa o meu irmãozinho? ‑ perguntei.

O senhor Omer sacudiu a cabeça. Rat‑tat‑tat... Rat‑tat‑tat...

‑ Está nos braços da mãe ‑ replicou.

‑ Coitado! Morreu, o pobre pequeno?

‑ Não se amofine mais do que é justo. Sim, menino, o miúdo morreu.

Ao ouvir esta notícia reabriram‑se as feridas da alma. Abandonei o almoço, que mal encetara, e fui para outro canto da sala, apoiar a cabeça a outra mesa, que Minnie limpou a toda a pressa com medo de que as minhas lágrimas pusessem nódoas nos vestidos de luto que aí estavam. Era boa rapariga, e nada feia. Afastou‑me suavemente o cabelo, que me caía nos olhos; mas o facto de haver terminado a tempo a sua tarefa tornava‑a alegre, ao passo que os meus pensamentos eram tristes.

Depressa acabou a toada dos martelos. Um rapaz de boa aparência atravessou o pátio e entrou no quarto. Trazia um martelo na mão, e a boca tão cheia de pregos que foi preciso tirá‑los para poder falar.

‑ Então, Joram ‑ disse o senhor Omer ‑ como vai a coisa?

‑ Está pronta ‑ respondeu Joram.

Minnie corou de leve e as duas outras raparigas entreolharam‑se e sorriram.

‑ Quer dizer que trabalhou aqui à luz da vela, ontem à noite, enquanto eu estava na assembleia?

‑ Sim, senhor. Como prometeu que daríamos um passeio, concluído que fosse o trabalho, eu, a Minnie... e o senhor...

‑ Ah, julguei que me iam pôr de lado ‑ retorquiu Omer, levantando‑se. Houve uma pausa; voltando‑se para mim, acrescentou:‑ Gostaria de ver o...?

‑ Não, pai ‑ acudiu Minnie.

‑ Pensei que isso talvez lhe fosse agradável, meu amigo ‑ disse Omer. ‑ Mas é possível que tenha razão.

Não sei explicar como percebi que se tratava de ver o caixão da minha querida mãe. Nunca ouvira esse ruído, mas adivinhara o que era. E, quando o rapaz entrou, tive a certeza de que o trabalho estava concluído.

"Elas, por sua vez, deram por terminada a sua tarefa; as duas raparigas, cujos nomes eu ignorava, sacudiram as linhas e retalhos que tinham no fato e foram à loja pôr‑se em ordem e atender clientes. Minnie ficou a dobrar a costura e a guardá‑la em dois cabazes; achava‑se de joelhos e cantarolava uma ária alegre. Joram, evidentemente seu namorado, chegou‑se a ela e furtou‑lhe um beijo enquanto a pequena estava assim ocupada, e sem se preocupar com a minha presença; disse‑lhe que o pai fora buscar a carruagem e que devia preparar‑se a toda a pressa. Em seguida saiu. Então ela meteu o dedal e a tesoura na algibeira, enfiou cuidadosamente no corpete uma agulha com linha preta, e ajustou galantemente a capa e o chapéu, mirando‑se num espelhinho colocado atrás da porta, no qual eu via reflectir‑se‑lhe o rosto satisfeito.

Eu observava tudo isto do canto da mesa, perto da qual me sentara com a cabeça apoiada à mão e pensando em coisas muito diferentes. A carruagem não tardou a chegar defronte do estabelecimento. Aí puseram em primeiro lugar os cestos, depois eu subi para lá e os outros seguiram‑me. Era, tanto quanto me recordo, um veículo do tipo dos de transporte de pianos, pintado de cor escura e tirado por um cavalo preto de cauda comprida. Havia lugar suficiente para todos nós.

Creio nunca ter experimentado na minha vida (hoje talvez tenha mais experiência) um sentimento tão estranho como esse que me tomou ao vê‑los ir tão felizes, de carruagem, após semelhante ocupação. Não que estivesse zangado: mais provavelmente receoso, por me ver perdido no meio de criaturas de natureza completamente diversa da minha. Estavam tão contentes! O velho sentara‑se à frente e conduzia o veículo; o par jovem ia atrás e, sempre que ele falava, os dois inclinavam‑se para diante, cada qual de um lado daquele rosto bochechudo, com ar de profundo interesse. Desejariam conversar comigo, eu porém mantinha‑me triste no meu cantinho, escandalizado com aquelas carícias e alegria, que todavia não eram ruidosas, e admirado que o juízo de Deus os não castigasse pela sua dureza de coração.

Quando pararam para dar de comer ao cavalo, também comeram e beberam e se divertiram, mas eu não consegui tocar em nenhuma das coisas que lhes davam tanto gosto, e assim permaneci em jejum. Pela mesma razão, quando chegámos a casa, deixei‑me escorregar da carruagem, pela parte de trás, tão depressa quanto pude, a fim de me não encontrar com eles diante dessas janelas graves que em mim poisavam o seu olhar vazio, como olhos que outrora brilharam e agora se fechavam. Oh, nem valia a pena eu ter pensado no que me faria chorar ao regressar a casa: bastou‑me ver a janela do quarto da minha mãe e, em seguida, aquela que, em melhores tempos, fora a minha.

Achei‑me nos braços de Peggotty antes mesmo de chegar à porta, e ela é que me levou ao colo para casa. Logo que me viu, desatou a chorar, mas depressa se conteve e começou a andar devagarinho e a cochichar, como se tivesse medo de acordar os mortos. Soube que não se deitara nessa noite: passara‑a toda sempre acordada, em vigília; enquanto a pobrezinha (declarou) estivesse ali, ela jamais a abandonaria.

O senhor Murdstone não me ligou importância quando entrei na sala em que ele se encontrava próximo do lume, reflectindo sentado na sua poltrona. A irmã, muito ocupada à secretária, que estava repleta de cartas e papéis, estendeu‑me dois dedos frios e perguntou‑me em voz baixa, mas enérgica, se me haviam tirado as medidas para o fato de luto. Disse‑lhe que sim.

‑ E as suas camisas, trouxe‑as?

‑ Trouxe, minha senhora, juntamente com a minha roupa toda.

Foi todo o consolo que me dispensou a sua firmeza. Estou certo de que ela sentia grande prazer em mostrar, nessa ocasião, o que chamava o seu domínio, firmeza, força de carácter e todo o género de qualidades desagradáveis. Orgulhava‑se da sua inclinação para os negócios e provava‑o nessa altura, reduzindo tudo a uma questão de escrituras, sem se comover fosse com o que fosse. Todo o resto do dia, e dias seguintes, de manhã à noite, ficou sempre sentada à secretária, escrevendo tranquilamente, com uma pena dura e rangente, falando no mesmo tom baixo e imperturbável a qualquer pessoa, sem que um músculo da face se distendesse, sem que o som da voz se dulcificasse por um momento, sem que o vestuário manifestasse o mínimo descuido. O irmão, às vezes, pegava num livro, mas sem nunca o ler, ao que parecia. Abria‑o e olhava‑o como se lesse, mas permanecia uma hora sem voltar a página; em seguida poisava‑o e começava a andar cá e lá na sala. Eu ficava horas inteiras sentado, de braços cruzados, a vê‑lo passear e a contar‑lhe os passos. Murdstone raramente falava com a irmã, e, comigo, nem uma única vez. Só ele é que se agitava, à parte os relógios, na imobilidade absoluta da casa.

Durante os dias que precederam o enterro, não conversei com Peggotty: apenas a encontrava, ao subir ou descer a escada, perto do quarto em que jazia minha mãe e o filhinho; à noite, ela entrava no meu e sentava‑se à cabeceira da minha cama, antes que eu adormecesse. Um dia ou dois antes do enterro (creio que foi assim, embora não tenha a noção exacta do tempo nessa época penosa), ela levou‑me ao aposento da defunta. Lembro‑me somente de que, debaixo de qualquer coisa branca que cobria o leito, numa atmosfera de deslumbrante limpeza e frescura, eu imaginei ver corporizado o silêncio grave que reinava na casa; e quando quis erguer suavemente o lençol, eu bradei: «não, não, Peggotty!» e sustive‑lhe a mão.

O funeral podia ter‑se efectuado ontem à noite que eu não me recordaria mais pormenorizadamente: a própria atmosfera da sala, na ocasião em que cheguei à porta, o esplendor do lume no fogão, o vinho que cintilava nas garrafas, a forma dos copos e dos pratos, o perfume adocicado do bolo, o aroma que exalava o vestido da senhora Murdstone e os nossos fatos pretos.

O doutor Chillip encontrava‑se presente e falou‑me.

‑‑Como vai isso, David?‑perguntou amigavelmente.

Não pude dizer‑lhe que estivesse muito bem. Dei‑lhe a mão e ele reteve‑a na sua.

‑ Meu Deus! ‑ comentou com um sorriso bondoso ‑ como esta gente nova cresce a olhos vistos! Cresce tanto que a deixamos quase de reconhecer. Não é verdade, minha senhora?

Mas a senhora Murdstone não se dignou responder, e o médico, desconcertado, levou‑me para um canto e ficou silencioso.

Noto este facto não porque me preocupasse com a minha pessoa mas porque dei fé de tudo quanto se passou desde a minha volta a casa. O sino começou a tocar e o senhor Omer veio com outro homem para ultimar os preparativos. Naquela mesma sala se formou outrora o cortejo que acompanhou meu pai ao jazigo, conforme a Peggotty me contou.

Além do senhor Murdstone, de mim e do médico, está o nosso vizinho Grayper. Ao alcançarmos a porta da rua, vemos no jardim os homens que hão‑de conduzir o féretro. Depois seguem à nossa frente, com a sua carga, ao longo do atalho, entre os ulmeiros, transpõem o portão e entram no cemitério, onde tantas vezes ouvi cantar os pássaros em manhãs de Verão.

Estamos de pé em torno do caixão. Este dia parece‑me diferente dos outros; a luz não tem a mesma cor, é mais atenuada. Além disso há um silêncio solene, que nós trouxemos de casa com aquilo que descansa agora em terra. E enquanto ali estamos, oiço a voz do sacerdote, longínqua devido a nos acharmos ao ar livre, mas distinta e clara. Cita ele: «Eu sou a ressurreição e a vida, diz o Senhor.» Em seguida escuto soluços e descubro, um pouco distanciada, a serviçal boa e fiel que eu estimo como a mais ninguém no mundo e a quem tenho a certeza de que Deus dirá um dia: «Muito bem.»

Há muitas caras do meu conhecimento no meio da pequena assistência; caras que eu vi na igreja, de pessoas que foram das relações da minha mãe quando ela chegou à aldeia, em plena mocidade. .Não faço caso delas (só penso no meu desgosto) e contudo vejo‑as e reconheço‑as a todas; até Minnie, que está lá ao fundo, e lança olhadelas ao seu apaixonado, que se acha perto de mim.

Acabou‑se. Deitam terra na cova e nós tomamos o caminho de regresso. A casa ergue‑se diante de nós, tão bela e sempre a mesma, tão ligada no meu espírito à recordação infantil de tudo o que já não existe que o meu desgosto de há pouco nada é comparado com o que ela origina neste instante. Todavia conduzem‑me. O doutor Chillip fala‑me, e, quando chegamos à residência, dá‑me um copo de água. Peço‑lhe licença para subir ao meu quarto e ele diz‑me adeus com uma doçura feminina.

Para mim, repito, tudo isto foi como se acontecesse ontem. Factos mais recentes foram‑se arrastados para a margem onde renascerão um dia como todas as coisas esquecidas. Aquilo, porém, permanece como um rochedo imenso no meio do oceano. Eu sabia que a Peggotty viria visitar‑me ao quarto. A calma dominical desses momentos (o dia assemelhou‑se a um domingo!) coadunava‑se bem com a nossa natureza. Ela sentou‑se à borda da minha cama, pegou‑me na mão e ora a acariciou ora a levou aos lábios, como poderia fazer para consolar o meu irmãozinho, contando‑me à sua maneira o que tinha para me dizer acerca dos eventos passados.

«Havia já muito tempo que a sua mamã se não encontrava bem», começou Peggotty. «Tinha o espírito inquieto e não se sentia feliz. Quando a criança veio ao mundo, julguei de começo que a sua mãe melhorava, mas, pelo contrário, foi‑se tornando mais delicada, um pouco mais fraca todos os dias. Antes de nascer o seu irmãozinho, ela gostava de estar só, e nessas ocasiões chorava; mas, depois, cantava‑lhe tão meigamente que me pareceu uma vez, ao ouvi‑la, escutar uma voz celestial que se perdia nas alturas...

«Tornara‑se mais tímida, creio eu, e como que mais assustada, nos últimos tempos; uma palavra dura equivalia a uma pancada. Comigo, porém, foi sempre a mesma. Querido menino, a sua mãe nunca mudou para a Peggotty.»

Aqui a minha criada fez uma pausa e, por instantes, afagou a mão que eu lhe estendera.

‑ A derradeira vez que a vi Igual ao que fora antigamente foi naquela noite em que o menino chegou. No dia em que partiu, disse‑me ela: Não tornarei a ver o meu querido filho. Pressinto isto e sei que não me engano.

«Tentou manter‑se assim, e muitas vezes mostrava‑se alegre, mas era forçado. Nunca disse ao marido o que a mim dissera nesse dia; uma noite, contudo, pouco mais ou menos uma semana antes daquilo, endereçou‑lhe estas palavras: Meu amigo, creio que cheguei ao fim.

«‑ Tenho a alma serena, Peggotty ‑ disse‑me ela quando nesse dia a deitei. ‑ Ele há‑de habituar‑se, a pouco e pouco, a esta ideia, coitado, durante os dias que ainda restam. Depois, acabar‑se‑á tudo. Estou deveras fatigada. Se é sono, fica junto de mim enquanto durmo; não me abandones. Que Deus abençoe os meus dois filhos! Que Deus proteja e guarde o meu pobre pequeno órfão de pai!

«Desde então não a deixei», continuou Peggotty. «Ela falava‑lhes muitas vezes, no andar de baixo. (Amava‑os, não podia impedir‑se de amar os que a rodeavam.) Mas, quando se iam embora, voltava‑se para mim como se não houvesse descanso senão ao lado da Peggotty, e nunca adormecia sozinha.

«Na última noite, beijou‑me e disse: ‑ Se o meu pequenino morrer também, peço‑te que o ponhas nos meus braços e nos enterrem ambos. ‑ Assim se fez, porque o pobre cordeirinho só lhe sobreviveu um dia. ‑ Que o meu filho querido nos acompanhe ao cemitério, e diz‑lhe que a mãe, todo o tempo que esteve aqui deitada, o abençoou não só uma como mil vezes.

A estas palavras seguiu‑se novo silêncio. Peggotty tornou a afagar‑me.

«A noite ia avançada quando ela me pediu água. Depois de ter bebido, mostrou‑me um sorriso resignado.

«Chegou o dia seguinte. O sol nascera. A sua mãe disse‑me então quanto o senhor Copperfield havia sido sempre bom e indulgente, afirmando‑lhe muitas vezes, quando ela duvidava de si mesma, que um coração terno era mais precioso e mais forte do que toda a sabedoria do mundo e que ela o tornava bastante venturoso. ‑ Peggotty ‑ acrescentou a sua mãe ‑ chega‑me a ti (estava muito fraca) e volta‑me na tua direcção: a tua cara afasta‑se e eu quero tê‑la mais perto. ‑ Fiz o que me pedia. Ah, menino Davy, chegara o tempo em que se mostrava certo o que eu lhe dissera aquando da nossa primeira separação. A sua mãe sentiu‑se feliz em descansar a cabeça no braço desta tonta da Peggotty e morreu como uma criança que adormece.»

Assim acabou o relato da Peggotty. Desde que eu soube da morte da minha mãe, desapareceu‑me da memória a lembrança do que ela fora recentemente. Evocava‑a, daí por diante, como a mãe juvenil das minhas primeiras impressões de criança, aquela que enrolava os seus anéis de cabelo em torno dos dedos e que dançava comigo ao crepúsculo, na sala. A narração da Peggotty, em vez de me recordar os últimos tempos da sua vida, enraizou‑me no espírito a primeira imagem. É decerto estranho, mas verdadeiro. Pela morte, recuperara, de golpe, a calma e a mocidade; o resto estava cancelado.

A mãe que jazia no túmulo era a mãe da minha primeira infância. A criaturinha que ela guardava nos braços era como se fosse eu próprio, tal como fora outrora, e para sempre silencioso no seu seio.

 

FICO ABANDONADO, MAS A PROVIDÊNCIA SOCORRE‑ME

O primeiro assunto de que tratou a senhora Murdstone, depois do dia da cerimónia fúnebre, quando a luz entrou livremente pelas janelas da casa, foi despedir a Peggotty, prevenindo‑a com um mês de antecipação. Embora a rapariga tivesse pouca vontade de continuar ao serviço, creio que ela teria ficado por amizade para comigo, de preferência a aceitar o melhor lugar do mundo. Explicou‑me então que nos teríamos de separar e ambos nos apoquentámos com essa perspectiva.

Quanto a mim e ao meu futuro, nem uma palavra me disseram. Quanto gostariam eles de me mandar também embora, avisando‑me trinta dias antes, como fizeram à criada! Um dia reuni toda a minha coragem e perguntei à senhora Murdstone quando voltava para o internato; respondeu‑me secamente ser de opinião de que eu não voltava a Salem. Não apurei mais nada. Sentia‑me preocupado com o que fariam de mim, e Peggotty não o estava menos, mas nem ela nem eu obtivemos qualquer esclarecimento a este respeito.

Produzira‑se na minha situação certa mudança que, se bem me descarregasse de um grande peso na actualidade, teria podido, se eu fosse capaz de reflectir nisso atentamente, inquietar‑me ainda mais quanto ao futuro. Eis o facto. As obrigações que me haviam imposto quase tinham cessado de todo. Nem exigiam que me conservasse no meu triste posto da sala; e até a senhora Murdstone, com expressão carrancuda, me fazia sinal para que me afastasse, quando me ia sentar. Deixavam‑me ir, sempre que quisesse, para o lado de Peggotty, e nem sequer me perguntavam para onde me dirigia. De começo, tremia todos os dias pensando se o senhor Murdstone iria tomar conta da minha educação, ou que a ela se consagrasse a sua irmã. Mas depressa compreendi que esses temores eram infundados e que o mais que podia recear era que me deixassem ao abandono.

Julgo que esta descoberta me não impressionou muito nessa ocasião. Eu andava ainda atordoado com o desgosto da morte da minha mãe, e como que insensível a todas as considerações secundárias. Lembro‑me de que meditei, nesses momentos, no caso, e conclui ser possível que eu não aprendesse mais e que ninguém se ocupasse de mim; que me transformasse num pobre diabo melancólico, votado a uma vida de ociosidade na aldeia. Como poderia escapar a esse destino? Partindo para longe, como um herói de romance, a fim de procurar fortuna algures? Isto, porém, eram só visões passageiras, sonhos de acordado, que se desenhavam ou inscreviam vagamente nas paredes do meu quarto e, dissipando‑se, só deixavam a nudez da cal.

‑ Peggotty ‑ disse‑lhe um dia, em tom pensativo e em voz baixa, quando aquecia as mãos à lareira da cozinha. ‑ Peggotty, o senhor Murdstone ainda gosta menos de mim do que antigamente. Se pudesse deixar de me ver, ficaria satisfeitíssimo.

‑ Deve ser do desgosto ‑ volveu a criada, afagando‑me o cabelo.

‑ Eu também sinto esse desgosto, Peggotty. Se acreditasse que era só isso, não me importava. Mas não é, é outra coisa.

‑ Como o sabe, menino? ‑ inquiriu ela, após um silêncio.

‑ O desgosto dele é outro, muito diferente. Está triste neste momento, sentado ao pé do lume, com a irmã. Mas se eu entrasse, ele sentiria logo outra coisa.

‑ O quê?

‑ Cólera ‑ respondi, imitando involuntariamente o seu torvo carregar de cenho. ‑ Se estivesse apenas triste, não me olharia como olha. Eu só tenho tristeza, e creio que isso me torna mais amável.

Peggotty ficou um momento calada, e eu, também silencioso, entretive‑me a aquecer as mãos.

‑ Menino Davy ‑ disse ela por fim.

‑ Que é, Peggotty?

‑ Tentei, por todas as formas possíveis e impossíveis, encontrar aqui em Blunderstone um lugar que me conviesse; mas é coisa que não existe, meu querido.

‑ E que tencionas fazer, Peggotty? ‑ indaguei preocupado. ‑ Aonde vais tentar a fortuna?

‑ Suponho que serei obrigada a viver em Yarmouth ‑ respondeu ela.

‑ Se fosses um pouco mais longe, a verdade é que te perderia para sempre ‑ observei, animando‑me um tanto. ‑ Mas, aí, ver‑te‑ei uma vez por outra. Não estarás no fim do mundo, parece‑me...

‑ Pelo contrário, e graças a Deus! ‑ exclamou Peggotty, entusiasmada. ‑ Enquanto o menino estiver aqui, não se passará uma semana sem que eu venha visitá‑lo.

Esta promessa desanuviou‑me o espírito. Mas ainda havia mais, pois a rapariga continuou:

‑ Olhe, menino Davy, eu vou passar, primeiramente, uns quinze dias com o meu irmão, o tempo necessário para assentar na minha vida futura e descansar um bocadinho. E como não precisam de si neste momento, pensei que talvez deixassem que me acompanhasse a Yarmouth.

A parte o meu desejo de estar de bem com as pessoas que me rodeavam, este projecto era a coisa que mais me poderia despertar um sentimento de prazer naquela ocasião. A ideia de voltar a ter à minha roda aqueles rostos francos, iluminados por um sorriso de bom acolhimento, de reencontrar a calma e a doçura das manhãs de domingo, em que os sinos tocam, de tornar a ver os navios emergindo vagamente da bruma e de vaguear com a Emily em procura de conchinhas na praia ‑ estas imagens tranquilizavam‑me o coração. Mas cedo me assaltaram dúvidas quanto à realização do plano. A senhora Murdstone consentiria nele? Todavia esta inquietação não tardou em abrandar: Peggotty, com uma ousadia que me espantou, fez imediatamente a proposta, quando a irmã do meu padrasto irrompeu na cozinha para a sua ronda nocturna.

‑ David não fará nada de bom nessa terra ‑ disse a senhora Murdstone, examinando um frasco de conservas. ‑ Mas também, aqui, não será melhor, e a preguiça é a mãe de todos os vícios.

Peggotty ia já replicar, mas conteve‑se por amor do seu menino e ficou muda.

‑ Hum! ‑ continuou a solteirona, sempre ocupada com a inspecção. ‑ O que mais importa é que o senhor Murdstone não seja incomodado. Parece‑me que o mais acertado é autorizar essa ida.

Agradeci‑lhe, sem manifestar muita alegria, com medo que isso a levasse a retirar o consentimento. Não me coibi de pensar que esta atitude era prudente, tanto mais que a vi olhar‑me por cima do bocal do frasco com tanta acidez como se os olhos dela tivessem absorvido todo o vinagre da conserva. Fosse como fosse, a permissão estava dada, e manteve‑se. Terminado que foi o prazo de um mês, preparámo‑nos ambos para partir, eu e Peggotty.

Barkis entrou para vir buscar as malas da criada. Jamais o vira transpor os umbrais da casa. Ao colocar aos ombros o baú de Peggotty, lançou‑me um olhar que tinha certo significado, se é que o rosto de Barkis alguma vez exprimiu qualquer coisa.

Naturalmente que a rapariga estava triste com a Ideia de deixar uma residência que fora sua durante tantos anos e onde formara as duas afeições mais sólidas da sua existência: a que me votava e a que dedicara à minha mãe. Nessa manhã ela havia ido ao cemitério. Quando tomou assento na carroça, levou o lenço aos olhos para os enxugar.

Enquanto a viu nessa posição, o carroceiro não deu o menor sinal de vida; estava no mesmo lugar e na mesma atitude do costume, como um boneco empalhado. Mas quando Peggotty começou a olhar ao redor e a falar comigo, ele meneou a cabeça e fez uma carantonha que queria dizer um sorriso. A quem o dirigia, e porquê? Não faço a mínima ideia.

‑ Lindo dia, senhor Barkis! ‑ disse eu, por delicadeza.

‑ Não está mau ‑ confirmou o homem, que em geral era muito reservado e não se comprometia com facilidade.

‑ Actualmente a Peggotty goza de perfeita saúde ‑ acrescentei, a fim de lhe dar prazer.

‑ Ah, sim? ‑ volveu Barkis. Reflectiu uns segundos, deitou‑lhe uma olhadela e inquiriu: ‑ Está confortável, na verdade?

Peggotty largou a rir e respondeu afirmativamente.

‑ Tem a certeza? ‑ insistiu ele, deslizando no banco para lhe dar uma cotovelada. ‑ Tem a certeza? Hem?

E, a cada pergunta, Barkis aproximava‑se mais e movia o cotovelo, de tal modo que, por fim, estávamos acurralados a um canto e eu tão apertado que me sentia desfalecer.

Como a criada lhe chamasse a atenção para o meu constrangimento, Barkis deixou‑me logo um pouco de espaço e foi‑se afastando gradualmente. Mas não pude impedir‑me de considerar que ele descobrira um meio excelente de exprimir os seus sentimentos, um processo original e pitoresco, que o dispensava de fazer as despesas da conversa. Por algum tempo ainda soltou risadinhas de satisfação, até que, virando‑se outra vez para Peggotty, repetiu: «Com que então sente‑se confortável!», e tornou a apertar‑se contra nós, ao ponto de quase me tolher a respiração. Serviu‑se mais vezes dessa manobra, fazendo sempre a mesma pergunta e com idêntico resultado. Acabei por me levantar, quando o via abeirar‑se de nós, e invoquei o pretexto da paisagem; assim achei‑me mais à vontade.

Barkis teve a amabilidade de parar a carroça diante de uma estalagem, para nos oferecer cerveja e carneiro assado. Enquanto Peggotty bebia, o homem foi tomado de novo desejo de contacto e esteve prestes a sufocá‑la. Mas, ao retomarmos a jornada, várias circunstâncias se opuseram a que ele prosseguisse nas suas galantarias: o pavimento da estrada estava em tais condições que não nos deixou tempo para pensarmos noutra coisa.

O senhor Peggotty e o sobrinho Ham esperavam‑nos no lugar do costume. Receberam‑me, e à minha criada, da maneira mais afectuosa, e apertaram a mão de Barkis (que, de chapéu desabado para a nuca e de ar distraído, sorria com um embaraço que me pareceu comunicar‑se‑lhe também às pernas). O senhor Peggotty e o Ham pegaram cada qual numa das malas da irmã e da tia e nessa ocasião o carroceiro fez‑me sinal para que me aproximasse dele.

‑ Escute, menino. A coisa caminha bem!

Olhei‑o no rosto e repliquei com um acento que procurei tornar profundo:

‑ Ah!

‑ Não foi só aquilo ‑ ajuntou ele em tom confidencial. ‑ A coisa caminha bem!

‑ Ah! ‑ repeti.

‑ Sabe quem «suspirava», hem? Fiz com a cabeça um sinal afirmativo.

‑ Pois caminha muito bem ‑ rematou Barkis, apertando a minha mão. ‑ Sou seu amigo. Graças a si, a coisa caminhou muito bem. E vai de bem a melhor.

Quando queria exprimir‑se com clareza, Barkis era tão enigmático que eu poderia contemplá‑lo durante uma hora sem que a sua expressão me esclarecesse mais do que o mostrador de um relógio parado. Mas Peggotty chamava por mim, e, de caminho, perguntou‑me o que é que ele dissera. Informei‑a de que a sua frase predilecta fora: «a coisa vai muito bem».

‑ Não me admira, vindo desse descarado ‑ comentou ela. ‑ Mas não importa. Menino Davy, que diria se a sua Peggotty pensasse em casar‑se?

‑ Ora... suponho que gostarias de mim como tens gostado sempre ‑ respondi após um momento de reflexão.

Com grande pasmo dos transeuntes e dos membros da família, que nos acompanhavam, a corajosa rapariga não resistiu a beijar‑me ali mesmo, protestando a sua afeição inalterável.

‑‑Então, menino, que diria a uma coisa dessas?

‑ Se pensasse em casar... com o senhor Barkis?

‑ Nem mais nem menos.

‑ Acho excelente ideia, pois nesse caso terias à disposição cavalo e carroça para ires visitar‑me...

‑ Ah, que este menino possui bom senso! ‑ murmurou ela. ‑ É nisso mesmo que eu penso há um mês. É nisso mesmo que eu penso há um mês. É verdade, creio que seria a minha independência, sem contar que trabalharia de melhor vontade, em minha casa, do que na casa alheia. Sei lá para que prestaria agora, se servisse em casa dos outros! Demais a mais ficaria perto do sítio em que repousa a minha defunta querida ‑ acrescentou Peggotty com ar sonhador ‑ e podia lá ir de vez em quando. E, ao vir a minha vez, talvez ficasse enterrada não muito longe dela.

Durante algum tempo não dissemos nada.

‑ Mas não pensarei mais nisso se a ideia o contraria, menino Davy. Nem que leiam os banhos cem vezes na igreja, eu num caso desses não tomaria marido!

‑ Olha bem para mim, Peggotty, e vê se não estou contente, se não desejo isso com tanta vontade!

Com efeito, desejava‑o de todo o meu coração.

‑ Pois bem, menino ‑ retorquiu ela, apertando‑me nos braços. ‑ Tenho pensado maduramente no assunto. Mas tornarei a pensar e falarei ao meu irmão. Entretanto fica o segredo entre nós. Barkis é homem sério, pessoa simples, e eu espero cumprir os meus deveres de esposa. Veremos se a coisa caminha bem...

Esta citação, tirada dos discursos de Barkis, divertiu‑nos tanto que começámos a rir. íamos pois de excelente humor quando chegámos à vista da residência do senhor Peggotty, a qual não mudara muito, salvo que me pareceu mais pequena.

A senhora Gummidge esperava‑nos à porta, como se não houvesse saído dali desde a última vez. Tudo no interior estava na mesma, até o vaso azul do meu quarto, guarnecido de plantas marinhas. Fui dar uma volta pelo alpendre, onde as mesmas lagostas, lagostins e caranguejos, possuídas do mesmo desejo de se agarrarem a tudo, pareciam sempre aglomeradas no mesmo canto.

Quanto, porém, à Emily ‑ nada. Por isso perguntei ao senhor Peggotty onde se encontrava a pequena.

‑ Está na escola ‑ informou ele, limpando o suor da testa, que o esforço de carregar a mala da irmã lhe produzia. ‑ Dentro de vinte ninutos estará de volta ‑ ajuntou, consultando o relógio. ‑ Sentimos a sua falta, durante este tempo.

A senhora Gummidge gemeu.

‑ Anime‑se, mulher! ‑ disse o senhor Peggotty.

‑ Sofro com isso mais do que ninguém. Sou uma pobre criatura só no mundo, e ela é a única pessoa que tem paciência de me aturar.

A senhora Gummidge, sempre a gemer e a abanar a cabeça, foi activar o lume, e o senhor Peggotty circunvagou por nós a vista e murmurou: «o velho», do que eu conclui que o humor da sua hóspeda não melhorara desde a minha última visita.

A casa achava‑se ‑ ou pelo menos devia achar‑se ‑ tão agradável como outrora. Contudo não me produziu a mesma impressão. Sentia‑me um pouco descoroçoado. Talvez fosse devido à ausência de Emily. Sabia por que caminho ela vinha e não tardei a sair ao seu encontro, tomando pelo atalho.

Passado pouco tempo apareceu ao longe um vulto, e eu reconheci Emily, sempre pequenina de estatura, se bem que tivesse crescido alguma coisa. Mas, quando se aproximou e eu lhe vi os olhos mais azuis do que nunca, o rosto cheio de covinhas e toda a sua pessoa bela e jovial, experimentei uma sensação tão estranha que fui tentado a fingir que a não reconhecia e a passar sempre, como se me interessassse apenas algo no horizonte. Se não me engano, continuei a proceder assim no resto da minha vida.

A pequena é que não fez caso disso. Descobriu‑me logo e começou então a correr e a rir, sem se deter junto de mim. Fui‑lhe no encalço, mas Emily correu tão depressa que só a alcancei já perto de casa.

‑ Com que então és tu? ‑ disse ela.

‑ Bem sabias que eu estava cá, Emily.

Tentei beijá‑la, mas a pequena levou as mãos aos lábios rubros, declarando que já neto era criança, e fugiu para dentro de casa, rindo mais do que nunca.

Parecia deliciada com o facto de me arreliar, e esta mudança espantou‑me deveras. Estava a mesa posta para o chá, com o nosso baú colocado como assento no lugar costumado; mas, em vez de vir sentar‑se junto de mim, Emily foi fazer companhia à resmungona da senhora Gummidge. E, quando o senhor Peggotty lhe perguntou qual o motivo, ela espalhou os cabelos pela cara, a fim de se esconder, e limitou‑se a rir.

‑ É muito mimada ‑ comentou ele, afagando‑a com a mão grossa.

‑ Ora se é! ‑ exclamou Ham. ‑ É, sim, senhor Davy. Olhava‑a risonho, com um misto de admiração e amor, o que o tornava corado como um pêro.

De facto, toda a gente mimava a pequena Emily, em especial o tio Peggotty, de quem ela fazia gato‑sapato. Tal era a minha opinião, pelo menos quando a vi tão desembaraçada. Tinha, porém, natureza afectuosa e tão doce, umas maneiras tão hábeis em conciliar a astúcia com a timidez, que eu me senti mais do que nunca subjugado.

Mostrou‑se ao mesmo tempo sensível pelos infortúnios alheios. Quando nós todos estávamos em círculo de roda da lareira, depois do chá, o senhor Peggotty aludiu à dor por que eu acabava de passar, as lágrimas afloraram aos olhos de Emily e ela contemplou‑me com tanta bondade que fiquei para sempre reconhecido.

‑ Também aqui temos uma órfãzinha ‑ disse o dono da casa, passando‑lhe os dedos nos caracóis do cabelo. Depois virou‑se para Ham, a quem deu uma palmada no peito, e acrescentou: ‑ E este também é órfão, embora não pareça.

‑ Se o tivesse como tutor, senhor Peggotty ‑ ripostei ‑ julgo que não me sentiria órfão.

‑ Muito bem lembrado, senhor Davy ‑ bradou Ham, entusiasmado. ‑ Muito bem!

E retribuiu a palmada ao tio, enquanto Emily se levantava para o beijar.

‑ E o seu amigo como passa? ‑ perguntou‑me o pescador.

‑ Steerforth? ‑ sugeri.

‑ Ah, é este o nome ‑ exclamou o senhor Peggotty, falando com Ham. ‑ Já me havia esquecido.

‑ Chamava‑lhe Rudderford ‑ observou o sobrinho com uma risada.

‑ Pois seja, mas Steer ou Rudder é tudo o mesmo. Como vai ele, senhor Davy?

‑ Estava óptimo quando parti ‑ repliquei.

‑ Esse é que é um amigo! ‑ disse o senhor Peggotty, estendendo o cachimbo. ‑ Amigo às direitas. Raios me comam se não dá gosto de ver!

‑ E é bonito, não é? ‑ atalhei, porque aqueles elogios me enchiam o coração.

‑ Bonito? Até parece um... um... palavra que não sei explicar. Tem um ar tão decidido!

‑ Realmente, é esse o seu carácter ‑ asseverei. ‑ É bravo como um leão e não se imagina quanto é leal.

‑ Suponho ‑ murmurou o pescador, olhando através do fumo do cachimbo ‑ que no tocante a aprender em livros ninguém lhe leva a palma.

‑ Tem razão ‑ acentuei, encantado. ‑ Sabe tudo. É uma inteligência portentosa.

‑ Ora aí está um amigo! ‑ repetiu o senhor Peggotty, agitando gravemente a cabeça.

‑ Nada parece ser‑lhe difícil ‑ disse por meu turno. ‑ Basta‑lhe um olhar para uma lição para ficar a sabê‑la. E é o melhor jogador de criquete que jamais houve. Facilmente nos vence, assim como no jogo das damas.

O senhor Peggotty tornou a oscilar a cabeça, como se quisesse confirmar estes acertos.

‑ Fala tão bem que é capaz de convencer toda a gente. E que diria o senhor se o ouvisse cantar?

Novamente Peggotty meneou a cabeça, querendo significar que não punha em dúvida.

‑ E, além disso, é um rapaz tão generoso, belo e nobre ‑ continuei, arrastado pelo meu tema preferido ‑ que nem se lhe podem dar todos os adjectivos que merece. Sei que nunca lhe agradecerei suficientemente a protecção tão generosa que ele me concedeu a mim que era tão pequeno e estudante de uma classe tão abaixo da sua!

Prossegui neste teor, inflamando‑me a pouco e pouco, quando o meu olhar se poisou no rosto de Emily, apoiado sobre a tábua da mesa; a pequena escutava‑me com a mais profunda atenção, sem respirar, de pupilas brilhantes como jóias e faces cobertas de rubor. Estava tão séria e tão bonita que eu me detive, admirado; todos a observaram nesse instante e começaram a rir.

‑ Emily é como eu ‑ disse a minha criada. ‑ Gostaria de o ver.

A pequena perturbou‑se, ao notar que a examinávamos. Baixou a cabeça e corou ainda mais. Depois, relanceando‑nos e percebendo que ainda a olhávamos (eu seria capaz de ficar horas inteiras a vê‑la), fugiu dali e só regressou na ocasião de ir para a cama.

Eu dormia no meu antigo leito, à popa do barco, e o vento varria o plaino, exactamente como outrora. Mas não podia coibir‑me de pensar, agora, que ele gemia por aqueles que já não eram deste mundo; e, em vez de imaginar, como antes, que o mar poderia subir e arrastar o barco, sonhava com outro mar que galgara a minha vida e subvertera o meu lar feliz. Enquanto a queixa do vento e da água sussurrava aos meus ouvidos, eu pedia a Deus que me tornasse homem para casar com a Emily. E, nesta súplica, adormeci cheio de amor.

Os dias passavam quase como anteriormente, apenas com a diferença (mas diferença grande) de que raramente passeávamos na praia. Emily tinha de estudar as suas lições, tinha tarefas caseiras e, grande parte do dia, eu não lhe punha a vista em cima. Sabia eu, porém, que mesmo noutras circunstâncias não vaguearíamos como outrora. Embora cheia de caprichos infantis, ela era uma mulherzinha, muito mais do que eu esperava. Dava‑me a impressão de que se distanciara bastante de mim em pouco mais de um ano. Estimava‑me, é certo, mas troçava‑me também e arreliava‑me. Quando eu ia ao seu encontro, ela tomava por outro caminho e ria‑me na cara quando eu regressava a casa, desiludido. O melhor momento para mim era esse em que Emily trabalhava na soleira da porta; eu sentava‑me nos degraus de madeira e lia‑lhe qualquer coisa. Hoje tenho a impressão de que nunca vi mais luminosas tardes de Abril, de jamais haver contemplado uma criaturinha mais radiante do que essa que estava à entrada do velho barco‑residência, e de jamais ter admirado um céu como aquele, nem um mar semelhante, nem iguais navios vogando ao longe no esplendor de uma atmosfera de oiro.

Logo na primeira noite Barkis apareceu, extremamente perturbado. Trazia um lenço com laranjas, dobrado pelos quatro cantos, e, como não houvesse feito qualquer referência a esse objecto, supuseram, depois da partida dele, que o deixara por esquecimento; Ham correu na sua peugada, para lho entregar, e, à volta, informou‑nos que se tratava de uma oferta para a Peggotty. Desde então veio todas as noites, sempre à mesma hora, acompanhado de um embrulho a que nunca aludia e que abandonava atrás da porta. Estas dádivas afectuosas eram do género mais estranho e variado. Lembro‑me, entre outras, de meio alqueire de batatas, dois brincos de azeviche, cebolas, uma caixa de dominó, um canário na sua gaiola, um presunto fumado, pés de porco e uma almofadinha para pregar alfinetes.

Tanto quanto me recordo, Barkis fazia a corte à minha criada de uma forma particularíssima. Raras vezes abria a boca; ficava sentado perto do fogão, na mesma atitude que tomava quando em cima da carroça, e olhava fixamente para a Peggotty, que estava do outro lado da mesa. Certa noite, creio que inspirado pelo amor, apoderou‑se do coto da vela com que a rapariga costumava encerar a linha de coser, meteu‑o no bolso do colete e levou‑o consigo. Daí por diante a sua maior satisfação consistia em apresentar a Peggotty, quando esta precisava, o coto de vela pegado ao forro da algibeira e meio derretido; logo que ela acabava de se servir, metia‑o outra vez no bolso. Tinha o ar de pessoa feliz e não se sentia obrigado a falar. Mesmo quando levava a rapariga a passear na praia, limitava‑se a perguntar‑lhe, de tempos a tempos, se estava confortável. Não me esqueço dos ataques de riso que ela tinha, por mais de meia hora, com a cara escondida no avental, depois da partida do seu apaixonado. A verdade é que nos divertíamos todos menos mal, salvo essa triste senhora Gumniidge, que devia ter sido, ao que parece, cortejada de maneira semelhante, e a quem isto fazia constantemente evocar a memória do «velho».

Aproximava‑se o fim das minhas férias quando me participaram que a Peggotty e o senhor Barkis iam sair por um dia e que nós devíamos acompanhá‑los, eu e a Emily. Quase tive uma insónia, na perspectiva desse imenso prazer: estar um dia inteiro com Emily. Levantámo‑nos cedo e, mal acabáramos o primeiro almoço, apareceu Barkis ao longe, conduzindo uma carruagem de duas rodas e de quatro lugares; vinha ao encontro do objecto das suas inclinações. Este ‑ ou seja, Peggotty ‑ vestia, como de costume, o seu traje de luto, simples e asseado. Mas Barkis estava resplandecente no seu casaco novo, azul. O alfaiate deixara‑o tão folgado que o comprimento das mangas tornava inúteis as luvas, ainda que o tempo fosse dos mais frios. Quanto à gola, era tão alta que lhe levantava o cabelo para o topo do crânio. Os botões, enormes, cintilavam. Calças castanhas escuras e colete de camurça acabavam por fazer do senhor Barkis, aos meus olhos, um prodígio de respeitabilidade.

No meio da pressa que se estabelecera, percebemos que o senhor Peggotty tinha preparado um sapato velho para ser atirado aos noivos, quando estes partissem, e que significava boa sorte. Ofereceu‑o, pois, à senhora Gummidge.

‑ Não, Daniel, mais vale que seja outrem a lançá‑lo ‑ disse ela, falando com o pescador. ‑ Sou apenas uma pobre criatura, sozinha no mundo, e tudo o que me lembra isto causa‑me contrariedades.

‑ Ora, adeus! ‑ respondeu o senhor Peggotty. ‑ Pegue nisso e atire!

‑ Não, Daniel ‑ insistiu a senhora Gummidge, abanando a cabeça e gemendo. ‑ Se eu fosse menos sensível, não digo que o não fizesse. O Daniel não é tão sensível como eu. Não tem contrariedades e não é uma contrariedade para os outros. Mais vale que o lance com a sua própria mão.

Mas nessa altura a Peggotty, que beijara já toda a gente derredor, com grande precipitação, gritou da carruagem onde nos achávamos (eu e Emily lado a lado) que competia à senhora Gummidge atirar o sapato velho. De modo que ela acabou por o fazer, mas custa‑me dizer que se desempenhou da incumbência de tal maneira que lançou como que um balde de água fria na alegria geral; logo a seguir desfez‑se em lágrimas e caiu desamparada nos braços de Ham, declarando saber muito bem que era um fardo para todos e que seria preferível levá‑la já para o asilo. Esta ideia afigurou‑se‑me sensata e eu achei que Ham se devia desempenhar imediatamente do encargo.

Em todo o caso, partimos e o nosso primeiro cuidado foi parar defronte de uma igreja. O senhor Barkis amarrou o cavalo às grades do portão e entrou com a Peggotty, deixando‑me só com Emily na carruagem. Aproveitei o ensejo para passar o braço em volta da cintura da pequena e lhe propor que nos tornássemos muito amigos. Ela aceitou a sugestão e permitiu‑me que a beijasse: e eu fui ao ponto de lhe declarar que não poderia amar nunca outra mulher e que estava disposto a derramar o sangue de quem aspirasse ao seu afecto.

Como Emily achou aquilo engraçado! Com muita gravidade, fingiu‑se infinitamente mais velha e ajuizada do que eu, e tratou‑me, essa feiticeira, de «piegas». Em seguida desatou a rir tão contente que esqueci o desgosto de ter ouvido dos seus lábios aquela classificação tão desdenhosa, e todo me entreguei ao gosto de a contemplar.

Barkis e a Peggotty ficaram muito tempo na igreja, mas saíram por fim, e nós tomámos o caminho do campo. Barkis voltou‑se para mim e disse, piscando o olho (observe‑se, de passagem que o não julgava capaz de semelhante liberdade):

‑ Que nome tinha ela quando partimos?

‑ Clara Peggotty ‑ respondi.

‑ E agora, que nome tem?

‑ Não é o mesmo?

‑ Não. É Clara Peggotty Barkis ‑ exclamou com uma gargalhada que fez tremer a carruagem.

Em suma, estavam casados. Por isso haviam entrado na igreja. Peggotty decidira que tudo se passaria discretamente; o sacristão fora a única testemunha. Ficou um tanto escandalizada por ouvir o marido anunciar daquela forma a sua união, e não deixou de me apertar contra si para provar que o seu afecto não diminuía. Daí a pouco, já mais reconfortada, declarou‑se satisfeita com o sucedido.

Parámos numa estalagem onde éramos esperados e em que nos serviram um bom almoço. O dia passou‑se agradavelmente. Se Peggotty se casasse todos os dias, desde há dez anos, não teria um ar tão à vontade. Não se modificara nada. Saí com ela e com Emily, para dar uma volta antes do chá, enquanto Barkis fumava filosoficamente, contente, suponho, de pensar na sua felicidade. Em todo o caso despertou‑se‑lhe o apetite; embora tivesse comido muita carne de porco e hortaliças, e consumido uma galinha ou duas, foi necessário dar‑lhe ainda toucinho frio ao chá, o que ele fez desaparecer sem qualquer dificuldade.

Tenho reflectido neste casamento e acho sempre que foi deveras curioso, inocente e original. Ao cair da noite tomámos de novo a carruagem e voltámos tranquilamente, admirando as estrelas, que foram o assunto da conversa. Era eu, sobretudo, quem dava as explicações e assim abria ao senhor Barkis horizontes novos.

Disse‑lhe tudo quanto sabia; mas ele teria acreditado em mais, se a fantasia me levasse a inventar, tanto o seu respeito pela minha inteligência. Até o ouvi declarar à mulher, dessa vez, que eu era um Róscio [6] menino.

Depois de termos esgotado esse tema, ou melhor, quando esgotei as faculdades intelectuais de Barkis, a pequena Emily envolveu‑se comigo num cobertor velho que nos abrigou no resto da viagem. Ah, quanto eu a amava! Que ventura, pensei, se fôssemos casados, e vivêssemos não importa onde, no meio de árvores, no campo, sem nunca envelhecer, sem aprender mais nada, sempre crianças, sempre errando de mão dada, ao sol, pelos prados floridos, descansando à noite a cabeça no musgo, para dormir de um sono só, calmo e puro, até ao momento em que, mortos, os pássaros nos enterrassem! Eis o género de imagem desprovida de qualquer realidade terrena, iluminada pelo resplendor da nossa inocência e tão imprecisa como as estrelas longínquas, que nos povoavam os sonhos em todo o trajecto. Agrada‑me pensar que no enlace de Peggotty havia dois corações tão cândidos como o da pequena Emily e o meu; agrada‑me pensar que os Cupidos e as Graças tomaram essas formas imateriais no seu modesto cortejo.

Chegámos a boas horas, nessa noite, ao velho barco; e, à porta, despedimo‑nos do senhor e da senhora Barkis, que seguiam para a sua nova morada, ternamente unidos. Compreendi então, pela primeira vez, que perdera a minha Peggotty; e, ao deitar‑me, experimentaria grande desgosto se não tivesse a povoar‑me o espírito a imagem de Emily, que dormia sob o mesmo tecto que eu.

O pescador e o sobrinho sabiam tão bem como eu quais eram os meus pensamentos. À ceia, mostraram‑se risonhos para ver se me afugentavam as ideias tristes. Emily veio sentar‑se a meu lado pela primeira e última vez durante a minha permanência ali. Foi uma forma extraordinária de pôr remate a esse dia extraordinário.

A maré era à noite. Pouco tempo depois de nos deitarmos, o senhor Peggotty e Ham foram para a pesca. Eu sentia‑me cheio de bravura ao pensar que ficava só nessa casa solitária para proteger a pequena Emily e a senhora Gummidge. Desejaria que um leão ou uma serpente nos atacasse, ou qualquer monstro mal intencionado. Daria cabo dele e cobrir‑me‑ia de glória. Mas nenhum animal deste género passeou nessa noite na praia de Yarmouth e eu supri o feito heróico sonhando com dragões até de manhã.

Nessa altura Peggotty voltou e, como de costume, bateu‑me à janela, tudo como se o carroceiro Barkis fosse apenas um sonho. Depois do primeiro almoço, ela levou‑me ao seu novo domicílio, que era pequeno mas bonito. Entre todos os bens móveis que aí figuravam, o que maior impressão me fez foi sem dúvida, na sala, uma velha secretária feita não sei de que madeira escura, cuja parte superior se abria e, uma vez abaixada, servia de mesa de escrever. Dentro havia uma edição in‑quarto do Livro dos Mártires de Fox. Descobri esse volume precioso (de que não lembro uma só palavra) e mergulhei logo na sua leitura. Após esse dia nunca mais fui a essa casa sem me ajoelhar numa cadeira para abrir o escrínio onde tamanho tesouro se encerrava; em seguida estendia os braços na mesa e devorava de novo aquele texto. Suponho que me atraíam em especial as gravuras numerosas que representavam toda a espécie de atrocidades. Os Mártires e a casa da Peggotty ficaram para sempre associados no meu espírito.

Nesse dia despedi‑me do senhor Peggotty, de Ham, da senhora Gummidge e da pequena Emily, e passei a noite na residência da minha antiga criada, num quartinho do sótão (o Livro dos Crocodilos estava no chão, perto da minha cabeça). Esse quarto, dizia Peggotty, era para mim e conservar‑se‑ia sempre no mesmo estado.

‑ Nova ou velha, querido menino Davy, enquanto eu viver e tiver este tecto, encontrá‑lo‑á a toda a hora ao seu dispor. Ocupar‑me‑ei dele todos os dias, como fazia ao seu quarto lá na sua casa; e ainda que o menino vá para a China, pode ter a certeza de que ele ficará sempre limpo e arrumado na sua ausência.

No fundo do coração eu sentia a fidelidade sincera da minha Peggotty, e agradeci‑lhe o melhor que pude, isto é, com dificuldade, porque ela me cingia com os braços. Vim na carroça, com o casal Barkis; deixaram‑me, desgostosos, ao portão da residência, e foi para mim um espectáculo novo ver a carroça afastar‑se levando Peggotty e deixando‑me só, sob os velhos ulmeiros, diante da casa onde ninguém me olhava com ternura ou afeição.

Caí então num estado de abandono de que não consigo lembrar‑me sem angústia. Fiquei na maior solidão, longe de qualquer olhar amigo, privado da companhia dos rapazes da minha idade e só a contas com pensamentos sombrios, que ainda parecem enevoar este papel em que escrevo.

Quanto não teria eu dado para que me mandassem para o mais severo dos internatos, aprender qualquer coisa, fosse ela qual fosse e em qualquer lugar do mundo! Não antevia, porém, nenhuma mudança na minha situação. Não gostavam de mim e desleixavam‑me, fria e obstinadamente. Creio que as finanças do senhor Murdstone não iam bem nesse momento, mas este precalço em nada influenciava a minha sorte. Ele não me tolerava, e, pondo‑me de parte, tentava, suponho, afastar a ideia de que eu tinha alguns direitos; e o caso é que o conseguiu.

Eu não era precisamente maltratado. Não me batiam, não morria de fome; mas os processos com que me distinguiam jamais se atenuavam: aplicavam‑nos sistematicamente e sem cólera. Os dias sucediam‑se aos dias, as semanas às semanas,  os meses aos meses, e em casa continuavam a descurar‑me friamente. Às vezes penso no que teriam feito de mim se eu houvesse adoecido; deixar‑me‑iam deitado no meu quarto solitário para aí deperecer no isolamento habitual, ou alguém me ajudaria a curar‑me?

Quando os irmãos Murdstones estavam em casa, eu tomava as refeições com eles; na sua ausência almoçava e jantava só. Mas, sempre, passava o tempo a vaguear pelas salas e jardim ou na vizinhança, sem que tomassem conta da minha pessoa. Entretanto providenciavam ciosamente para que eu não arranjasse amigos, com medo talvez de que me queixasse a algum deles. Por isso, embora o doutor Chillip me convidasse com frequência a visitá‑lo (era viúvo, perdera anos antes uma esposa loira, que associo na minha memória a uma pelagem pálida de gato mosqueado), raras vezes tinha o gosto de passar a tarde no seu consultório, a ler qualquer livro para mim desconhecido, enquanto o odor de farmácia me chegava às narinas, ou a esmagar qualquer coisa num almofariz, sob a sua direcção complacente.

Pela mesma razão e também, sem dúvida, por causa do ódio antigo que lhe votavam, raras vezes me permitiam ir visitar a Peggotty. Fiel à sua promessa, ela vinha ver‑me, ou melhor, concedia‑me uma entrevista a pouca distância dali, uma vez por semana, e nunca chegava de mãos vazias. Mas eu recebia quase sempre uma recusa quando pedia licença para ir a casa dela; se, porém, a obtinha, o que só acontecia com largos intervalos, verificava então coisas curiosas, por exemplo: que o senhor Barkis era um nadinha forreta, ou, como dizia delicadamente a mulher, «um pouco apertado», e que guardava dinheiro num baú debaixo da cama, fingindo no entanto que lá só havia roupa. Era nesse sítio que se ocultava a sua riqueza, com uma modéstia tão teimosa que não seria possível, senão usando qualquer ardil, fazer surgir a mais pequena parcela do tesouro. Para regularizar as suas contas, ao sábado, Peggotty entregava‑se a maquinações longas e complicadas como a Conspiração da Pólvora contra Jaime I e o Parlamento.

Durante este tempo sentia perderem‑se as poucas esperanças que tinha (no abandono geral a que me entregara) de modificar a minha vida; e que desgraçada ela seria sem os meus velhos livros! Era esta a única consolação. Se me conservei fiel a eles, por seu turno eles me compensaram desse amor. Li‑os e reli‑os não sei quantas vezes!

Agora abeiro‑me de uma época da minha existência de que nunca poderei esquecer‑me, tanto se me gravou na memória. Ela sempre se me apresentou diante de mim sem sequer ser evocada, como um fantasma que assombrou os meus tempos mais felizes.

Certo dia em que saíra e errava pelas imediações, sem fito e sonhador, como o meu género de vida me impusera, encontrei ao virar de uma esquina o senhor Murdstone que passeava com outro cavalheiro. No embaraço que isso provocou, ia cruzar‑me com eles quando o desconhecido exclamou: ‑ Não é Brooks?

‑ Não, senhor. Sou David Copperfield.

‑ Ora, não me diga. É Brooks ‑ insistiu o homem. ‑ Brooks de Sheffield. Este é que é o seu nome.

A estas palavras observei‑o mais atentamente. A sua maneira de rir recordou‑me o senhor Quinion, que eu fora visitar em Lowestoft, com o próprio Murdstone, antes... Enfim, adiante, não preciso de lembrar a época.

‑ Que é feito de você, Brooks? Que escola frequenta?

‑ Por enquanto está em casa ‑ disse o meu padrasto. ‑ Não vai ao colégio. Não sei que deva fazer dele. É difícil de dirigir.

O seu olhar, esse olhar falso que eu conhecia tão bem, poisou‑se em mim por instantes. Então Murdstone carregou o cenho e desviou a vista num gesto de aversão.

‑ Pois está um lindo tempo! ‑ comentou o senhor Quinion, olhando para nós ambos, ao que se me afigurou.

Houve um silêncio e eu procurei a melhor forma de desembaraçar o ombro da mão de Quinion; mas este disse:

‑ Julgo que continua a ser um rapazinho esperto. Hem, Brooks?

‑ Oh, é esperto de mais ‑ atalhou, impaciente, o senhor Murdstone. ‑ É melhor que o deixes ir. Não gostará que o retenhas.

Ouvindo isto, o homem deixou‑me seguir e eu fui para casa. Voltando‑me para trás, quando entrava no jardim, vi o senhor Murdstone apoiado ao portão do cemitério e a conversar com o seu amigo. Olhavam ambos para mim e calculei que se ocupavam da minha pessoa.

Nessa noite, o senhor Quinion dormiu em nossa casa. Depois do primeiro almoço, no dia seguinte, preparava‑me para sair da sala quando o senhor Murdstone me chamou. Sentou‑se gravemente a outra mesa e a irmã instalou‑se à sua secretária. O senhor Quinion, de mãos nas algibeiras, olhava pela janela. Eu, de pé, observava‑os a todos.

‑ David ‑ disse o senhor Murdstone ‑ quando se é novo deve‑se fazer qualquer coisa, e não ser ocioso e vadiar.

‑ Como tu ‑ acrescentou a irmã.

‑ Jane, deixa‑me falar, se fazes favor. Dizia eu, David, que se deve fazer qualquer coisa, quando se é novo, e não andar de braços cruzados. Sobretudo quando se trata de um rapaz do teu génio, que bem precisa ser corrigido e a quem o melhor serviço que se pode prestar será obrigá‑lo ao trabalho, para o disciplinar.

‑ Disso precisa bastante! ‑ comentou a senhora Murdstone. ‑ Tem de ser disciplinado.

O irmão lançou‑lhe um olhar meio de censura meio de aprovação, e prosseguiu:

‑ Creio que sabes, David, que não sou rico. Em todo o caso, participo‑te. Recebeste uma educação esmerada. A educação custa dinheiro, e, ainda que eu o pudesse despender, acho que não haveria vantagem em voltares para o colégio. O que te espera é a luta pela vida e, quanto mais cedo principiares, melhor.

No íntimo pensei que isso já tinha eu começado, à minha maneira. O senhor Murdstone continuou:

‑ Já ouviste falar, suponho, dos nossos escritórios...

‑ Os nossos escritórios? ‑ repeti.

‑ Sim, de Murdstone & Grinby, negociantes de vinhos.

Eu devia ter dado a impressão de que hesitava, porque ele ajuntou precipitadamente:

‑ Ouviste falar de escritórios, ou negócios, ou caves, ou armazéns, ou algo de semelhante...

‑ Acho que sim, que ouvi falar de vinhos ‑ declarei, lembrando‑me dos informes vagos que tinha quanto aos recursos dele e da irmã.

‑ Pouco importa ‑ respondeu. ‑ Esse negócio dirige‑o o senhor Quinion.

Deitei uma olhadela respeitosa ao senhor Quinion, que continuava postado à janela.

‑ O senhor Quinion explicou‑me que há vários rapazes empregados na casa e não compreende por que motivo tu também não estás lá.

‑ Visto não haver nada em perspectiva para ele... ‑ observou o senhor Quinion em voz baixa, voltando metade do corpo.

Murdstone esboçou um gesto de impaciência, quase de cólera, e atalhou:

‑ As condições são estas: ganharás o bastante para o teu sustento e os teus alfinetes. Quanto ao alojamento, pagá‑lo‑ei do meu bolso, assim como à lavadeira.

‑ Até a certa importância que estabeleceremos ‑ acudiu a irmã.

‑ Ocupar‑nos‑emos ainda do teu vestuário, pois que não estás apto, por enquanto, a esportular para isso. Irás então para Londres com o senhor Quinion a fim de te estreares na vida, David, por tua conta.

‑ Em suma ‑ acrescentou a senhora Murdstone ‑ ficas instalado na existência e poderás cumprir as tuas obrigações.

Compreendi muito bem que se desembaraçavam de mim, mas não me recordo se estava assustado ou contente. Ficara indeciso e oscilava entre dois pólos, sem tocar num nem noutro. Aliás não tinha muito tempo à minha frente, para classificar as ideias, porque o senhor Quinion partia no dia seguinte.

Imagine‑se a minha saída nesse dia: levava o meu chapelinho branco muito usado, com uma fita de crepe pelo luto da minha mãe, casaco preto e calças de belbutina grossa, que a senhora Murdstone devia considerar uma armadura perfeita para me proteger as pernas nessa luta com a vida, que eu ia iniciar. E eis‑me assim equipado, com tudo o que possuo metido numa mala pequena, sentado, pobre criança só no mundo (como diria a senhora Gummidge) na mala‑posta que me leva com o senhor Quinion a Yarmouth, onde tomaremos a diligência para Londres. A nossa casa e a igreja diminuem ao longe: o túmulo e a sua árvore ocultam‑se com as coisas que desfilam diante de nós. Do meu velho largo dos jogos já não se ergue o campanário. O céu está vazio.

 

INICIO A VIDA POR MINHA CONTA E NÃO A ACHO AGRADÁVEL

Conheço agora suficientemente a vida para ser capaz de me admirar demasiado seja do que for; mas surpreendo‑me, ainda hoje, da facilidade com que fui abandonado em idade tão tenra. Acho extraordinário que ninguém intercedesse em favor de uma criança tão dotada, possuidora de grandes faculdades de observação, de espírito vivo, ardente, delicado e muito sensível de alma e corpo. Mas ninguém esboçou um gesto e eu, aos dez anos, tornei‑me servente da casa Murdstone & Grinby.

O armazém de Murdstone & Grinby ficava situado à borda de água, em Blackfriars. Melhoramentos recentes alteraram a fisionomia do local: nesse tempo era o último prédio ao fim de uma rua estreita que descia serpenteando até ao rio e que terminava nuns degraus de embarque e desembarque. Casa velha, arruinada, com um embarcadouro privativo, dava para a água quando a maré subia e para o lodo quando esta baixava. Os ratos corriam por toda a parte.

Murdstone & Grinby tinham negócios variados, mas o fornecimento de vinhos e licores a certos navios constituía parte importante do seu comércio. Não sei aonde se destinavam esses barcos; alguns faziam a travessia das índias Orientais e também das Antilhas. Daí resultava grande quantidade de garrafas vazias, pelo que empregavam muitos homens e crianças a examiná‑las à luz, a separar as que estavam rachadas e a lavar as outras. Quando não existiam garrafas vazias, havia letreiros para colar nas garrafas cheias, rolhas para adaptar aos gargalos, cápsulas que se punham nessas rolhas, garrafas que se acomodavam em caixas. Eis qual era a minha tarefa, assim como a das outras crianças.

Éramos três ou quatro. Tinham‑me instalado num canto perto da entrada, e, para me ver, ao senhor Quinion bastava levantar‑se, no seu escritório, e olhar por uma abertura praticada na parte superior da secretária. Foi aí que, na manhã do meu primeiro dia de trabalho, compareceu o mais velho dos pequenos operários para me indicar o que eu devia fazer. Chamava‑se Mick Walker, usava avental esfarrapado e um boné de papel. Disse‑me que o pai era barqueiro e que figurava, com chapéu de veludo preto, no cortejo do presidente da Câmara. Informou‑me também de que o nosso camarada principal seria um rapaz que me apresentou com o nome, para mim extraordinário, de Batata Farinhenta. Descobri no entanto que esse nome não era o do baptismo mas que lhe fora dado no armazém em consequência da sua cor semelhante à farinha. O pai do Batata acarretava água, função que desempenhava com outra, mais honrosa, de bombeiro num grande teatro, onde uma parenta do rapaz, creio que sua irmã, representava nas pantominas.

As palavras não conseguem descrever as torturas secretas da minha alma quando me vi mergulhado em semelhante companhia. Comparava esses colegas da vida quotidiana com os que tive na minha infância feliz, sem falar de Steerforth, Traddles e outros. Senti sufocadas à nascença todas as esperanças de me tornar um homem distinto e instruído. A ideia da minha satisfação desesperada, a vergonha da minha condição, a dor de pensar que tudo quanto aprendera, fizera a minha alegria e me estimulara a imaginação e as ambições se apagaria pouco a pouco sem nunca mais voltar, eis o que realmente é impossível descrever. Todas as vezes que Mick Walker me deixava só, nessa manhã, eu misturava as minhas lágrimas à água com que lavava as garrafas, e soluçava como se também houvesse uma fenda no meu peito e ele ameaçasse romper‑se.

O relógio do escritório marcava meio‑dia e meia‑hora e todos se preparavam para comer, quando o senhor Quinion bateu na vidraça do seu gabinete e me fez sinal para entrar. Achei‑me diante de um homem de meia‑idade, deveras corpulento, com sobretudo castanho e calças pretas justas, calvo, de crânio enorme e luzidio. Voltou para mim a cara larga. O fato estava muito usado, mas o colarinho era imponente. Usava bengala, de cujo castão pendiam duas borlas; do pescoço descia‑lhe um fio que segurava o monóculo: era só para ornamento, como mais tarde descobri, pois raras vezes olhava através dele e, quando o fazia, não conseguia ver nada.

‑ Aqui o tem ‑ disse o senhor Quinion, designando‑me.

‑ É esse o moço Copperfield? ‑ retorquiu o desconhecido com certa entoação condescendente e ar de importância, difícil de definir, mas que pretendia ser distinto e que me causou grande impressão. ‑ Espero que passe bem de saúde.

Respondi que ia muito bem e que pensava o mesmo a seu respeito. Deus sabe como me sentia constrangido, mas não estava no meu feitio queixar‑me muito nesse período da minha existência.

‑ Graças a Deus, estou óptimo ‑ replicou o desconhecido. ‑ Recebi do senhor Murdstone uma carta em que manifestava o desejo de que eu o recebesse, a si, Copperfield, num aposento situado nas traseiras da minha casa e que presentemente está vago... para arrendar, evidentemente... ‑ acrescentou, com um sorriso e numa efusão de confiança. ‑ Será o quarto de dormir do jovem estreante que neste momento tenho o prazer de...

Aqui, fez um gesto de mão e repôs a papada dentro do colarinho.

‑ É o senhor Micawber ‑ explicou‑me o senhor Quinion.

‑ É o meu nome ‑ confirmou aquele.

‑ O senhor Murdstone ‑ prosseguiu o meu patrão ‑ conhece o senhor Micawber, que recebe uma comissão sobre as encomendas que nos transmite, quando as obtém. O senhor Murdstone escreveu‑lhe a propósito do seu alojamento, Copperfield, e ele tomá‑lo‑á como locatário.

‑ O meu endereço ‑ participou Micawber ‑ é Windsor Terrace, no caminho da City. Eu... enfim ‑ rematou com o mesmo ar distinto e nova efusão de confiança ‑ é lá que moro.

Cumprimentei‑o, com uma vénia.

‑ Como imagino ‑ prosseguiu ele ‑ que as suas peregrinações nesta metrópole ainda não foram muito dilatadas, e que o meu jovem amigo tenha alguma dificuldade em penetrar nos dédalos da moderna Babilónia quando procurar o caminho da City... isto é ‑ resumiu, numa nova efusão de confiança ‑ que possa perder‑se... terei o gosto de o vir buscar para o iniciar no caminho mais curto.

Agradeci‑lhe sinceramente, pois era mostrar muita amizade aquela proposta que ele se dava o incómodo de apresentar.

‑ A que horas ‑ disse Micawber ‑ é que...

‑ Pelas oito ‑ esclareceu o senhor Quinion.

‑ Está bem, pelas oito. E agora, senhor Quinion, dê‑me a honra de que me despeça de si. Não o quero perturbar por mais tempo.

Com estas palavras, pôs o chapéu e saiu, de bengala debaixo do braço. Ia muito direito e principiou a cantarolar logo que deixou o gabinete.

Então o senhor Quinion exortou‑me solenemente a ser o mais útil possível no armazém de Murdstone & Grinby e contratou‑me por um salário semanal de seis xelins. Não tenho a certeza de que fossem seis xelins ou sete; talvez fossem seis de começo e sete depois. Pagou‑me uma semana adiantada (do seu bolso, suponho), e dessa importância dei seis dinheiros ao Batata Farinhenta para me levar nessa mesma noite a minha mala a Windsor Terrace; embora pequena, era pesada de mais para mim. Gastei ainda outros seis dinheiros no almoço, que constou de um pastel de carne e uma cerveja num botequim da vizinhança. Em seguida consumi a hora destinada a essa refeição passeando pelas ruas do bairro. À noite, quando chegou a hora fixada, reapareceu Micawber. Lavei as mãos e a cara para poder emparceirar com a distinção das suas maneiras, e fomos à nossa casa, pois é assim, julgo eu, que a devo nomear daqui por diante. De caminho, Micawber chamou‑me a atenção para os nomes das ruas e a forma das esquinas, para que me servissem de pontos de referência no dia seguinte de manhã.

Uma vez em Windsor Terrace (notei que o local, miserável como o seu morador, se esforçava por disfarçar, como ele), Micawber apresentou‑me à esposa, que era uma mulher magra e envelhecida e que estava sentada na sala, com uma criança ao colo. O primeiro andar da residência quase não tinha mobília e, para que não se reparasse nisso, costumavam fechar as janelas. Essa criança era gémea de outra, e ora uma ora outra a senhora Micawber segurava nos braços, de forma que nunca as vi lado a lado.

Havia mais dois filhos: um de quatro anos, do sexo masculino, e uma menina dos seus três anos. O número de habitantes completava‑se com uma rapariga muito morena, que tinha o costume de fungar e que servia de criada. Ainda não decorrera meia hora e já ela me informava que era órfã e que viera do asilo de São Lucas, nos arredores. O meu quarto situava‑se no último andar, na parte de trás; estreito, de paredes forradas de papel copiografado (onde a minha imaginação via pãezinhos azuis), não continha quase nenhum mobiliário.

‑ Nunca pensei ‑ disse a senhora Micawber, sentando‑se para tomar fôlego, depois de ter subido a escada (sem nunca largar a criança) a fim de me mostrar o aposento; ‑ nunca pensei, antes do meu casamento, quando vivia com meus pais, que me veria obrigada um dia a tomar um inquilino... Mas o meu marido tem as suas dificuldades e a gente deve passar por cima dos sentimentos pessoais.

‑ É verdade ‑ ripostei.

‑ As dificuldades do Micawber acabrunham‑no por agora, e nem sei se conseguirá livrar‑se delas. Quando eu vivia com meus pais, nem compreendia o que significava essa palavra dificuldades, no sentido em que a emprego nesta ocasião: mas a experiência ensina[7], como dizia o papá.

Não sei se me disse que Micawber fora oficial dos fuzileiros navais, ou se eu imaginei tal coisa. Sei apenas que me convenci, ignoro porquê, de que ele servira efectivamente na infantaria da Marinha. Nessa altura, era corretor de diversas casas comerciais, mas ganhava pouco, ou quase nada, se tanto me atrevo a supor.

‑ Se os seus credores ‑ prosseguiu a dona da casa ‑ não lhe quiserem dar uma oportunidade, sofrerão as consequências, e quanto mais cedo as coisas acabarem, melhor. Micawber, neste momento, não pode pagar nada, nem sequer as custas judiciais.

Nunca compreendi se a minha independência precoce fazia esquecer a minha idade à senhora Micawber, ou se o assunto a preocupava a tal ponto que ela seria capaz de o mencionar aos próprios gémeos, se não tivesse outro interlocutor; em todo o caso, foi este o tema que iniciou e que prosseguiu durante todo o tempo em que a conheci.

Coitada da senhora Micawber! Dizia ter feito todos os esforços possíveis, e não duvido. A meio da porta da rua havia uma chapa de cobre onde se liam estas palavras: Pensão para gente moça. Nunca vi, porém, que alguém ali fosse educado, nem sequer que aparecesse qualquer rapaz ou rapariga, ou que se fizessem preparativos para receber um pensionista. Os únicos visitantes de quem se falava eram os credores, e estes vinham a toda a hora do dia (e alguns verdadeiramente ferozes). Conheci um, mal encarado, sapateiro de seu ofício, que se metia no corredor logo às sete da manhã e que gritava ao dono da casa, nos primeiros degraus:

‑ Ainda não saiu, não é verdade? Então pague! Não se esconda! Cobarde! Eu no seu lugar aparecia e pagava. Vamos a isso!

Como não recebesse resposta a estas palavras contundentes, o homem empregava termos mais fortes, como «ladrão» e «caloteiro». Estes, porém, não faziam mais efeito que os outros, e o credor descia à rua e barafustava sob as janelas, pois sabia que Micawber se achava num dos quartos do segundo andar. Nesse momento Micawber estaria cheio de dor e de remorsos, a ponto (descobri‑o mais tarde, ouvindo a mulher gritar) de voltar contra si uma navalha de barba; mas, daí a meia hora, quando muito, engraxaria as botas com minucioso cuidado e sairia cantarolando, com um ar mais distinto do que nunca. A mulher também mudava facilmente de humor. Vi‑a uma vez desmaiar às três horas, por terem vindo reclamar certos impostos, e depois (às quatro horas) presentear‑se com costeletas panadas e cerveja morna, tudo pago à custa de duas colheres de café postas no prego. Outra vez, ao voltar para casa mais cedo que o costume, deparei‑a estendida diante do fogão (com um dos gémeos, já se sabe) e aparentemente sem sentidos; e contudo, nessa noite, vi‑a muito contente a comer costeletas e a contar a sua vida em casa dos pais, nos bons tempos de outrora.

Foi nesta casa e com esta família que eu passei todas as minhas horas vagas. Por minha conta corria a despesa do primeiro almoço, que se compunha de um pãozinho de um dinheiro e de um dinheiro de leite. Tinha outro pão e um bocado de queijo guardado para quando voltasse, à noite. Isto fazia um furo no meu salário, é certo, mas passava o resto do dia no armazém e o dinheiro devia durar‑me até ao fim da semana. Desde a segunda‑feira de manhã até ao sábado à noite, eu não recebia conselho, incitamento, consolo ou auxílio de ninguém, fosse de que género fosse. Esperava tanto isso como ir para o Céu!

Era tão novo, tão criança e tão pouco preparado ‑ como podia ser de outra forma? ‑ para me governar a mim mesmo que me acontecia às vezes, ao dirigir‑me para o armazém, deixar‑me seduzir por bolos rançosos vendidos por metade do preço à porta das confeitarias, e gastar assim o dinheiro do meu almoço. Nesses dias, dispensava‑me de almoçar ou então comprava um pão dos mais pequenos ou uma fatia de pudim. Lembro‑me de duas pastelarias onde se vendia pudim e que eu frequentava alternadamente consoante o estado das minhas finanças. Uma ficava situada num pátio próximo da igreja de São Martinho e que hoje desapareceu por completo. Aí, o pudim era de passas de Corinto (verdadeira especialidade), mas custava caro e, por dois dinheiros, não se tinha mais do que o equivalente a um dinheiro da qualidade mais ordinária. Este encontrava‑se numa loja do Strand, num sítio mais tarde reconstruído. Era um pudim pálido, compacto, pesado e mole, com as passas inteiras e muito espaçadas. Estava quente à hora do meu almoço, que muitas vezes constava apenas desse alimento. Quando eu almoçava a valer, comprava chouriço e um pão grande, ou então, num restaurante, um pedaço de carne de vaca por quatro dinheiros; ou, ainda, entrava num café defronte do nosso armazém, estabelecimento velho e de ar miserável, chamado Leão, ou Leão e qualquer coisa mais que esqueci, e pedia pão, queijo e um copo de cerveja. Lembro‑me de que um dia, trazendo o meu pão debaixo do braço, embrulhado num bocado de papel, como um livro, fui depois a um restaurante famoso perto de Drury Lane comer, com esse pão, meia dose de bife. Não sei o que o criado teria pensado dessa estranha aparição de um rapazinho desacompanhado num lugar tão à moda: o certo é que me viu, com espanto, devorar o pão com bife e até chamou outro empregado para assistir à cena. Dei‑lhe meio dinheiro como gorjeta, e lamento que ele tenha aceitado.

À hora do chá dispúnhamos, creio, de trinta minutos. Quando eu tinha dinheiro suficiente, tomava uma xícara de café e uma fatia de pão com manteiga; caso contrário, contemplava uma loja de caça na Fleet Street, ou ia de passeio até ao mercado de Covent Garden admirar os ananases. Apreciava errar em volta do Adelph(1), por me parecer local misterioso, com as suas arcadas e chegar defronte de uma taberna junto do rio: em frente abria‑se um largo onde dançavam descarregadores de carvão. Sentei‑me num banco, para assistir ao baile. Que teriam pensado de mim?

Era tão novo, tão pequeno, que muitas vezes, ao entrar num botequim onde me não conheciam, a fim de tomar um copo de cerveja ou de trazer uma garrafa para o meu almoço, os empregados hesitavam em me servir. Recordo‑me de que, numa noite quente, penetrei num café e perguntei ao dono:

‑ Quanto custa uma caneca da melhor cerveja, de qualidade realmente superior?

Tratava‑se de uma ocasião extraordinária, não sei qual. Talvez o dia dos meus anos.

‑ Dois dinheiros e meio. É o preço da cerveja verdadeiramente boa.

‑ Pois então ‑ disse eu, exibindo a bolsa ‑ dê‑me uma caneca bem tirada.

O homem olhou‑me dos pés à cabeça, por cima do balcão, com um sorriso estranho. E, em vez de tirar a cerveja, olhou para o outro lado do tabique e falou com a mulher. Esta compareceu, com a costura na mão, e começou a examinar‑me. Ainda nos vejo, aos três: o taberneiro, em mangas de camisa, apoiado ao balcão, a mulher olhando‑me curiosa e eu, um pouco confuso, mirando‑os do outro lado do estabelecimento. Interrogaram‑me abundantemente, quiseram saber o meu nome, idade, morada, emprego e como viera ter ali. A isto, confesso, para não comprometer ninguém, inventei respostas adequadas. Serviram‑me cerveja, porém desconfio que não foi da melhor; e a dona da casa, inclinando‑se no seu posto, restituiu‑me o dinheiro e deu‑me um beijo meio de admiração meio de dó, mas onde pôs, tenho a certeza, todo o seu coração de mulher.

Não, não exagero, mesmo inconsciente e involuntariamente, a exiguidade dos meus recursos nem as dificuldades da minha vida. Se o senhor Quinion me dava às vezes um xelim, eu empregava‑o numa refeição, almoço ou chá. Trabalhava de manhã à noite, miseravelmente vestido, com homens e crianças vulgares. Vagueava pelas ruas, mal alimentado. Sem a Providência divina, atendendo ao pouco cuidado que me dispensavam, eu teria podido tornar‑me um ladrão ou um vagabundo.

No entanto, adquiri certa posição na firma Murdstone & Grinby. O senhor Quinion, apesar de tão ocupado, procurava diferençar‑me dos restantes operários; por meu lado, nunca disse a ninguém quais tinham sido as circunstâncias que me levaram àquele emprego. Sofri em segredo, e muito, e esse segredo jamais transpareceu. A extensão desse sofrimento ultrapassa, como já observei, as minhas faculdades de narrador. Calava‑me, e ia trabalhando. Desde o princípio compreendi que, se não me desempenhasse das funções tão bem como os outros, não escaparia aos insultos e ao desprezo. Depressa fiquei tão hábil e expedito como qualquer dos restantes rapazes. Embora me familiarizasse com eles, o meu comportamento e maneiras divergiam das suas o suficiente para os conservar a distância. Chamavam‑me em geral (e os homens também) o «fidalguinho» e igualmente o «menino de Suffolk». Um tal Gregory, capataz dos enfardadores, e outro chamado Tipp, carroceiro, que usava jaqueta encarnada, tratavam‑me por David, mas creio que era só quando estávamos sem mais ninguém e porque eu procurava distraí‑los (sempre trabalhando, é claro) com o que me ficara de antigas leituras, pois a maior parte delas diluíam‑se na memória. O Batata Farinhenta revoltou‑se um dia contra a deferência que me concediam, mas Mick Walk pô‑lo logo no seu lugar.

Não tinha qualquer esperança de fugir a este género de vida, e até já renunciara à ideia. Estou plenamente convencido de que nunca me conformei nem por um instante, e que me considerava o mais desgraçado do mundo; todavia suportava a minha sorte e não revelava a verdade nas cartas que escrevia, nem sequer à Peggotty (a minha mais assídua correspondente), não só por vergonha como também pela afeição que lhe consagrava.

Os embaraços financeiros de Micawber aumentavam os tormentos. No estado de abandono em que me achava, ligara‑me bastante a essa família e, mesmo só, não deixava de cogitar nos aborrecimentos da senhora Micawber e nas dívidas do marido. Sábado à noite era uma alegria para mim, pois voltava com o meu salário de seis ou sete xelins no bolso e vinha de caminho admirando as lojas: até fazia cálculos quanto às coisas que poderia comprar com essa quantia. Demais a mais, a saída do emprego verificava‑se mais cedo. O mesmo sucedia no domingo de manhã, quando preparava numa bacia de barba a quantidade de chá ou café que adquirira na véspera e me demorava, sentado, a gozar o almoço. Não era raro que o senhor Micawber soluçasse violentamente no começo dos nossos serões de sábado para acabar mais tarde por uma canção. Quantas vezes o vi entrar lavado em lágrimas, declarando que só lhe restava entregar‑se à prisão! E depois via‑o deitar‑se, já fazendo cálculos quanto à despesa de uma varanda na casa, na hipótese de «as coisas mudarem», que era a sua expressão favorita. A mulher navegava nas mesmas águas.

Mal‑grado a diferença de idade, estabeleceu‑se entre nós uma camaradagem que, suponho, se originava na semelhança de situações económicas. Todavia nunca aceitei nenhum convite para comer ou beber a expensas deles (sabendo que deviam no talho e na padaria e que possuíam apenas o necessário), até ao dia em que a senhora Micawber me concedeu plena confiança. E fê‑lo, uma noite, nestes termos:

‑ Senhor Copperfield, não o considero como um estranho e não hesito em lhe dizer que as dificuldades do meu marido atingiram um ponto crítico.

Estas palavras provocaram‑me grande desgosto e foi bastante condoído que contemplei os olhos vermelhos da dona da casa. Esta prosseguiu:

‑ Salvo uma fatiazinha de queijo flamengo, recurso inútil para as necessidades de uma família, não temos na despensa nada que se possa comer. Habituei‑me a falar de despensa quando habitava com meus pais e emprego o termo quase sem pensar. O que quero dizer é que estamos na última penúria.

Tinha dois ou três xelins das minhas economias da semana, pelo que hoje presumo que esta conversa se verificava numa quarta‑feira à noite. Tirei precipitadamente o dinheiro do bolso e pedi à senhora Micawber, com sincera comoção, que se dignasse aceitar esse empréstimo. Mas a dama, beijando‑me, convidou‑me a guardar outra vez as moedas, explicando que não podia consentir em tal coisa.

‑ Não, caro senhor Copperfield, longe de mim semelhante ideia! Mas como tem inteligência superior ao comum da sua idade, pode prestar‑me, se quiser, um serviço de outra ordem, o qual aceitarei reconhecida.

Incitei a senhora Micawber a declarar de que se tratava.

‑ Tenho‑me desfeito dos meus objectos de prata, por várias vezes: seis colheres de café, duas de sal e uma concha de açúcar, tudo isto em segredo. Mas os gémeos ocupam‑me muito, e, quando me recordo dos meus pais, acho estas transacções penosas. Há ainda algumas coisas de que nos podíamos desfazer. O meu marido é muito sensível para se encarregar do assunto, e Clickett ‑era o nome da rapariga que viera do asilo ‑ tem um espírito tão vulgar que tomaria grandes liberdades se lhe déssemos essa confiança. Senhor Copperfield, se eu ousasse pedir‑lhe...

Compreendi, enfim, a senhora Micawber e ofereci‑lhe, sem reserva, os meus préstimos. Comecei nessa mesma noite a separar os objectos de transporte mais fácil, e quase todas as manhãs me incumbia de serviços dessa natureza, antes de ir ao armazém de Murdstone & Grinby.

O senhor Micawber possuía vários livros num cacifo que ele chamava a sua «biblioteca», e foi por eles que principiámos. Levei‑os uns atrás dos outros a um alfarrabista da estrada que conduz à City (a qual, em grande parte, se compõe de lojas desse género e de mercadores de pássaros) e vendi‑os pelo preço que ele estipulou. Este alfarrabista, que morava nuns aposentos atrás da loja, embebedava‑se todas as noites, e a mulher ralhava‑lhe todas as manhãs. Por mais de uma vez, ao ir lá de manhã cedo, encontrei‑o num leito de campanha, com um olho negro, testemunho evidente dos excessos da véspera (creio que era irascível quando bebia); então procurava com mãos trémulas nas algibeiras do fato disperso no chão os xelins necessários à compra, ao passo que a mulher, de sapatos cambados e um filho nos braços, o descompunha de contínuo. Em certas ocasiões o homem perdera o dinheiro e pedia‑me que voltasse mais tarde; mas a mulher nunca estava desprevenida (naturalmente apoderara‑se do dinheiro durante a embriaguez do marido) e regularizava o negócio secretamente na escada, enquanto descíamos ambos.

Começava a ser conhecido em casa do penhorista. O empregado principal interessava‑se por mim e pedia‑me às vezes que declinasse um substantivo ou um adjectivo latino ou conjugasse um verbo, ao mesmo tempo que se ocupava do meu assunto. Nessas ocasiões a senhora Micawber preparava uma boa refeição, que tinha para mim um sabor particular, de excelentes recordações.

Enfim, o embaraço financeiro de Micawber atingiu o auge. Um dia foi preso, de manhã cedo, e conduzido à esquadra de Kings Bench, em Boroupgh High Street. Ao sair de casa, declarou‑me que tudo acabava para ele, e creio que, de facto, estava muito confrangido. Eu também. Soube, depois, que antes do meio‑dia se entretivera alegremente a jogar aos nove paus, na prisão.

No primeiro domingo após o encarceramento, eu devia ir visitá‑lo e jantar com ele. Tinha de perguntar qual o caminho para certo sítio e, antes de chegar, topar outro sítio e, perto deste, encontrar um pátio que haveria de atravessar, depois seguir direito até descobrir um carcereiro. Fiz tudo isto e, quando lobriguei por fim o carcereiro (pobre criança que eu era!), pensei em Roderick Random na prisão, por dívidas, e no homem que ele vira, o qual só tinha por vestuário uma velha manta: e o coração pulsou‑me tão fortemente que mal distingui a imagem flutuante do homem.

Micawber esperava‑me à porta; subimos para a sua cela (no penúltimo andar) e chorámos muito. Declarou‑me solenemente, bem me recordo, que a sua sorte me devia servir de lição e observou‑me que, se alguém tivesse um rendimento de vinte libras anuais e gastasse dezanove libras, dezanove xelins e seis dinheiros, seria feliz, mas, se despendesse vinte libras e um xelim, seria desgraçado. Após o que me pediu um xelim emprestado para comprar cerveja, me entregou uma letra sacada sobre a senhora Micawber pela dita importância, e, repondo o lenço na algibeira, recuperou o bom humor.

Ficámos sentados diante do lume (dois tijolos colocados na grelha ferrugenta impediam que se queimasse muito carvão), até ao momento em que outro devedor, que partilhava a mesma cela, chegou da cozinha com o pedaço de carneiro que era a nossa refeição, paga pelos três. Depois mandaram‑me ter com o «capitão Hopkins», que habitava mesmo por cima, a fim de lhe dizer que eu era amigo de Micawber e lhe pedia me emprestasse uma faca e um garfo.

O capitão Hopkins emprestou‑me a faca e o garfo e pediu‑me transmitisse os seus cumprimentos ao senhor Micawber. No quartinho estava uma senhora de ar enxovalhado, assim como duas raparigas pálidas, filhas daquele, e de cabelos espessos e sujos. Pensei que mais valia solicitar do capitão Hopkins a sua faca e o garfo do que o seu pente de uso pessoal. O homem usava bigodes enormes e tinha um sobretudo castanho, muito velho, sem outra roupa. O colchão estava enrolado a um canto, com os lençóis e o resto, e tudo quanto ele possuía de loiça e panelas enfileirava numa única prateleira. Adivinhei (sabe Deus como!) que as duas raparigas cabeludas eram filhas do capitão, mas que a mulher enxovalhada não era sua esposa. Permaneci timidamente no limiar, durante uns dois minutos, e depois desci com a faca e garfo emprestados.

Aquele jantar teve qualquer coisa de boémio e agradável, no fim de contas. De tarde fui devolver ao capitão o que ele me cedera e voltei a casa para reconfortar a senhora Micawber, relatando‑lhe a minha visita. Ao ver‑me regressar, desmaiou.

Depois preparou‑nos uma bebida composta de cerveja, ovos e noz‑moscada.

Não sei como a mobília veio a ser vendida, nem quem a vendeu, porque eu não fui. Em todo o caso, tudo foi vendido e levado numa carroça de mudanças, salvo as camas, algumas cadeiras e a mesa da cozinha; com estes móveis acampámos, por assim dizer, nas duas salas de Windsor Terrace, a senhora Micawber, os filhos, a órfã e eu, e assim vivíamos noite e dia. Ignoro quanto tempo durou esta vida, mas parece‑me que foi longa. Por fim a senhora Micawber resolveu instalar‑se na prisão, onde o marido dispunha agora de um quarto particular. Fui encarregado de levar a chave da casa ao senhorio, que ficou contente por a recuperar; as camas seguiram (exceptuando a minha) para a cadeia de Kings Bench. Para mim, alugaram um quarto nos arredores deste estabelecimento, o que me deu prazer, porque nos habituáramos a viver juntos, eu e os Micawbers, através de todos os percalços. Também descobriram, para a órfã, alojamento barato nas proximidades. O meu aposento era uma água‑furtada tranquila, que dava para o estaleiro; quando dele tomei posse, julguei‑me num verdadeiro paraíso, tanto mais que me parecia haver uma solução para as dificuldades de Micawber.

Durante este tempo continuei a trabalhar no armazém de Murd‑stone & Grinby, nas mesmas ocupações vulgares, com os mesmos companheiros vulgares, e experimentando sempre a mesma sensação de uma decadência imerecida. Felizmente para mim nunca travei conhecimento com aqueles numerosos rapazes que eu via diariamente entrar no emprego e sair de lá, ou errando pelas ruas à hora das refeições: prosseguia nessa vida triste e solitária e só contava comigo. As únicas alterações de que me lembro foram, em primeiro lugar, o estado miserável a que o meu fato chegou e, em segundo, o sentir‑me liberto, em grande parte, das preocupações dos Micawbers, pois houve parentes e amigos que lhes valeram no transe aflitivo por que passavam. Viviam na prisão com mais conforto do que ultimamente desfrutavam. Eu tomava, ao presente, o primeiro almoço com eles, em virtude de qualquer combinação cujos pormenores esqueci. Esqueci‑me também das horas a que abriam as portas, de manhã, para me deixarem entrar; só sei que estava a pé às seis horas e que o lugar em que esperava, passeando, era em geral a velha ponte de Londres. Às vezes sentava‑me num dos contrafortes de pedra e observava os transeuntes; por cima dos balaústres via o sol brilhar na água e iluminar a parte superior do monumento. A órfã vinha ao meu encontro e eu inventava, para ela, histórias surpreendentes acerca dos cais e da Torre de Londres: naturalmente eu também acreditava nelas. À noite, voltava à prisão e andava cá e lá no pátio com o senhor Micawber, ou a jogar às cartas com a senhora Micawber, ouvindo ao mesmo tempo o que ela contava a respeito dos pais. Ignoro se o meu padrasto sabia qual era então o meu domicílio; nunca falei nisso nos escritórios de Murdstone & Grinby.

Os negócios de Micawber, embora já houvesse passado a crise mais aguda, continuavam complicados em virtude de certa acta de que falavam muito e que hoje suponho ter sido qualquer acordo com os credores; mas eu compreendia mal do que se tratava e confundia, bem me recordo, com esses pergaminhos diabólicos que parece foram outrora muito espalhados na Alemanha. Afinal esse documento desapareceu, ao que julgo, não sei como; pelo menos deixou de ser um escolho ameaçador para os Micawbers, e a dama informou‑me de que a «sua família» decidira que o preso requeresse a sua libertação baseado na lei dos devedores insolventes, o que se devia verificar daí a seis semanas.

‑ E então ‑ disse por seu turno Micawber, que estava presente ‑ se Deus quiser começarei a deitar a cabeça de fora e a viver de uma forma muito diferente, se... enfim, se as coisas se modificarem.

Para corresponder a todas estas possibilidades, lembro‑me de que Micawber, por essa época, enviou uma petição à Câmara dos Deputados, em que sugeria a modificação da lei relativa à prisão por dívidas. Aponto isto porque demonstra como eu acomodava o texto dos meus antigos livros à minha nova existência; como contava histórias cujas personagens eram tiradas das pessoas que encontrava na rua; e como certas facetas do meu carácter (que revelarei inconscientemente, escrevendo acerca da minha vida) se já iam formando a pouco e pouco.

Havia na prisão um clube no qual o senhor Micawber, como pessoa bem educada, gozava de muita autoridade. Ele expusera ao clube a ideia da sua petição, e o clube aplaudira‑o vivamente. Em consequência disto, Micawber (que era homem excelente, activo em tudo menos nos seus negócios e desejoso sempre de trabalhar em qualquer coisa de que auferisse benefício) deitara mãos à obra: escrevera a petição, copiara‑a numa folha enorme de papel, colocara‑a em cima da mesa e convidara todos os encarcerados a virem assiná‑la no seu quarto, se quisessem.

Quando ouvi dizer que era ocasião da assinatura, tive imensa curiosidade de os ver entrar um após outro, embora já os conhecesse quase todos, e consegui autorização de Murdstone & Grinby Para me ausentar durante uma hora. Assim, instalei‑me a um canto do quarto de Micawber. O capitão Hopkins (que se lavara nesse dia em honra da cerimónia), postou‑se a um lado para ler o documento aos que ainda o não conheciam. Por fim abriu‑se a porta e começaram a entrar os presos, que assinavam e logo saíam. A todos o capitão perguntava:

‑ Leu o papel?

‑ Não.

‑ Quer ouvi‑lo?

Se o interpelado tinha a fraqueza de se mostrar disposto a escutar a leitura, ele, com voz forte e sonora, lia a petição, sem poupar uma só palavra. Tê‑la‑ia lido vinte mil vezes seguidas se vinte mil pessoas pretendessem ouvir. Lembro‑me de como dava ênfase a expressões como «Os representantes do povo reunidos em Parlamento... Os autores desta petição dirigem‑se humildemente aos dignos deputados... Os infortunados súbditos de Sua Majestade...» Dir‑se‑ia que estas frases tomavam na sua boca forma real e suculenta. Durante esse tempo, Micawber escutava com a vaidade do autor e contemplava (com ar indulgente) as pontas aguçadas que guarneciam o muro fronteiro.

Enquanto eu, todos os dias, fazia o percurso entre Southwark e Blackfriars, e deambulava à hora das refeições pelas ruas sombrias cujo pavimento talvez ainda tenha a marca dos meus passos de criança, a mim mesmo perguntava se faltaria alguém na multidão de indivíduos que desfilavam no meu espírito ao som da voz do capitão Hopkins. Quando evoco o passado, nessa época dolorosa da minha infância, penso a que ponto as histórias, que eu inventava então para eles, sustinham como numa bruma fantástica os factos que a memória me representa. E, quando piso de novo esses lugares, não me admiro de ver andar à minha frente uma criança inocente, que eu sigo com olhar compadecido, uma criança romanesca que, dessas aventuras estranhas e dessas coisas sórdidas, criou um mundo imaginário.

 

NÃO MELHORA O MEU GOSTO PELA VIDA INDEPENDENTE, E EU TOMO UMA RESOLUÇÃO IMPORTANTE

A petição de Micawber foi oportuna, e a sua restituição à liberdade não tardou, com grande aprazimento meu, em virtude da lei relativa aos devedores insolventes. Os credores não se mostraram implacáveis; a senhora Micawber informou‑me que o terrível sapateiro declarara, em plena audiência, que não lhe queria pessoalmente mal, mas que gostava lhe pagassem o que lhe deviam. Acrescentou que isto participava da natureza humana.

Uma vez regularizado o seu caso, Micawber voltou à cadeia de Kings Bench a fim de pagar as custas judiciais e preencher as formalidades necessárias à sua soltura. O clube recebeu‑o com entusiasmo e, nessa noite, reuniu‑se em sua honra, enquanto eu e a senhora Micawber comíamos guisado de carneiro, rodeados pelas crianças adormecidas.

‑ Em semelhante circunstância ‑ disse ela ‑ quero que tome mais um pouco desta cerveja morna em memória de meus pais.

‑ Já morreram? ‑ perguntei, depois de haver feito o brinde.

‑ A minha mãe deixou o mundo antes de começarem as dificuldades do meu marido, ou pelo menos antes que elas se tornassem sérias .O meu pai viveu o suficiente para lhe servir várias vezes de fiador, depois expirou, no meio da consternação geral.

Meneou a cabeça e verteu uma lágrima de piedade filial sobre o gémeo que segurava ao colo nesse instante.

Eu não podia desejar ocasião mais favorável para lhe fazer uma pergunta que me respeitava intimamente:

‑ Posso indagar o que tenciona fazer, agora que o senhor Micawber retoma a liberdade, isento das antigas preocupações? Já tomou alguma deliberação?

‑ A minha família ‑ retorquiu ela, pronunciando esta palavra em tom grave, se bem que eu não percebesse a quem se referia ‑, a minha família é de parecer que o meu marido faria bem em sair de Londres e empregar os seus talentos na província. Micawber é homem de muito engenho, senhor Copperfield.

Confirmei a asserção.

‑ De muito engenho ‑ repetiu a senhora Micawber. ‑ A minha família acha que com um pouco de protecção se podia tirar partido da sua capacidade na administração das alfândegas. A minha família é influente na região e deseja que ele vá para Plymouth. Considera indispensável a sua presença nesse lugar.

‑ Para estar pronto...?

‑ Exactamente, para estar pronto no caso de aparecer qualquer coisa...

‑ A senhora iria também?

Os acontecimentos do dia, combinados com os gémios e a libação da cerveja morna e misturada de especiarias haviam actuado nos nervos da senhora Micawber, que principiou a chorar e respondeu:

‑ Nunca abandonarei o meu marido, Micawber pode, de início, dissimular‑me os seus embaraços, e o seu carácter optimista é capaz de supor que os subjuga. O colar de pérolas e os braceletes que herdei da minha mãe foram vendidos por menos de metade do seu valor. O adereço de coral que era o presente de casamento do meu pai foi completamente desbaratado. Mas nunca abandonarei Micawber. Não! ‑ insistiu a mulher, cada vez mais comovida ‑ Jamais consentirei! É inútil pedirem‑no.

Perante tamanha agitação senti‑me pouco à vontade. Como se a senhora Micawber pudesse imaginar que eu lhe pedia esse sacrifício. Fiquei, pois, inquieto, contemplando‑a.

‑ Micawber tem os seus defeitos. Não nego que é muito imprevidente. Não nego que me deixou na ignorância dos seus recursos e das suas dívidas ‑ continuou ela, olhando para a parede. ‑ Mas jamais o abandonarei!

Como elevasse a pouco e pouco a voz, por fim já soltava autênticos berros. Assustei‑me tanto que corri à sala onde o clube se reunia sob a presidência de Micawber, que nesse momento dirigia um coro frenético, e participei‑lhe que a esposa se achava em estado alarmante. O homem enterneceu‑se e acompanhou‑me, com o colete coberto de restos de mariscos com que ele acabava de se regalar.

‑ Emma, anjo meu! ‑ bradou, precipitando‑se para o quarto. ‑ Que aconteceu?

‑ Nunca te abandonarei, Micawber! ‑ replicou ela.

‑ Vida minha! ‑ disse Micawber, tomando‑a nos braços.‑ Não duvido.

‑ És o pai dos meus filhos! ‑ continuou a mulher. ‑ O pai dos meus gémeos. O esposo da minha alma! Jamais abandonarei o senhor Micawber!

Ficou ele tão impressionado com esta prova de ternura (eu próprio estava banhado em lágrimas) que abraçou a mulher com paixão, implorando‑lhe que se tranquilizasse e olhasse para ele. Mas quanto mais o fazia, mais ela se enervava e mais desviava a vista. Nestas circunstâncias, Micawber cedeu à comoção da esposa e misturou as suas lágrimas às dela e às minhas; e acabou por me pedir que lhe levasse uma cadeira ao patamar enquanto ele a metia na cama. Bem desejaria eu safar‑me, mas o homem não consentiu enquanto a sineta não tocou para a saída das visitas. Conservei‑me, pois, no patamar, até que Micawber reapareceu, com outra cadeira.

‑ Como está agora a senhora? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Muito combalida ‑ replicou, abanando a cabeça. ‑ É a reacção. Ah, que dia tremendo! Estamos agora sós no mundo e desprovidos de tudo!

Micawber apertou a minha mão, gemeu e desatou a chorar. Sentia‑me comovido mas, ao mesmo tempo, descoroçoado. Pensava que seria de contentamento esta conjuntura há tanto tempo esperada! Os Micawber, habituados de tal maneira à adversidade, não tiravam partido da situação, e nessa noite pareciam tão tristes como antes. Quando a sineta tocou, ele acompanhou‑me até ao pátio e, ao despedir‑se de mim, deu‑me a sua bênção. Afligia‑me a ideia de o deixar, tão desesperado o via.

Através de toda esta confusão e abatimento, tão inesperados para mim, o que eu compreendia era que eles iam sair de Londres: portanto, estava próxima a nossa separação. Nessa noite, no meu regresso a casa e no decurso das horas de insónia que se seguiram, enquanto estava estirado na cama, veio‑me uma ideia (não sei como me germinou no espírito) que depois tomou a forma de uma resolução perfeita.

Eu estava habituado aos Micawbers, tornara‑me seu íntimo nas horas amargas e, sem eles, achava‑me destituído de amigos. Tinha de procurar de novo um quarto e viver outra vez entre estranhos. Achar‑me‑ia à toa na vida, e a experiência dizia‑me com antecipação o que seria de mim. Essa experiência futura feria‑me os sentimentos delicados, o opróbrio e o sofrimento renasciam na minha alma, e a conclusão que tirei foi de que tal existência me seria insuportável.

Bem podia não haver qualquer esperança de me esquivar ao destino se não tomasse uma iniciativa. Raras vezes ouvia falar da senhora Murdstone e nunca do irmão. Tinham‑me remetido dois pacotes de roupa por intermédio do senhor Quinion, acompanhados de ambas as vezes de um papel que dizia confiarem na minha aplicação ao trabalho e cumprimento dos deveres. Nunca me davam esperança de sair da condição de operário vulgar, condição que tendia a ser perpetuamente a minha.

No dia seguinte (ainda estava muito agitado por causa da minha resolução), verifiquei que a senhora Micawber não exagerara quanto à partida da família. Arrendaram um apartamento por uma semana na casa em que eu morava; depois deviam ir para Plymouth. O senhor Micawber, nessa mesma tarde, foi ao escritório de Murdstone & Grinby participar ao senhor Quinion que a sua partida o obrigava a separar‑se de mim e para lhe dar as melhores informações a meu respeito, que aliás eu merecia, ao que julgo. O senhor Quinion chamou o carroceiro Tipp, que era casado e tinha um quarto para alugar. Esse quarto ficou para mim, com grande satisfação recíproca, segundo ele devia supor, porque eu mantinha a decisão tomada, embora não a dissesse a ninguém.

Passei com os Micawbers o tempo que ainda nos restava de vida sob o mesmo tecto, e creio que a nossa amizade aumentava com o decorrer dos dias. No último domingo convidaram‑me para o jantar, que constou de fatias de carne de porco com doce de maçãs e um pudim. Eu comprara na véspera à noite um cavalinho de pau para oferecer ao pequeno William Micawber e uma boneca para a pequena, que se chamava Emma como a mãe. Gratifiquei ainda com um xelim a órfã, que ia ser despedida.

O dia foi muito agradável, apesar de estarmos todos um tanto comovidos com a ideia da separação próxima.

‑ Nunca mais poderei, senhor Copperfield ‑ disse a senhora Micawber ‑ pensar neste período em que meu marido andou tão atrapalhado sem pensar igualmente em si. Procedeu sempre connosco da forma mais obsequiosa e delicada. Não era um locatário, era um amigo.

‑ Minha querida ‑ acudiu o marido ‑ Copperfield (ultimamente habituara‑se a tratar‑me mais familiarmente) tem coração sensível aos infortúnios dos seus semelhantes quando estão na adversidade; tem cabeça capaz de raciocinar e mãos para... enfim, uma aptidão geral a dispor de todos os objectos de que nos queremos desfazer.

Declarei quanto ficava grato ao elogio e repeti que tinha muita pena de me separar deles.

‑ Meu jovem amigo ‑ redarguiu Micawber ‑, eu sou mais velho do que você, tenho experiência da vida, tenho experiência... em suma, de aborrecimentos. Por agora, e antes que me depare qualquer coisa (não será mais, posso dizer‑lhe, que uma questão de horas), nada tenho para lhe oferecer senão conselhos. Entretanto, os meus conselhos valem a pena ser escutados, no sentido de que... enfim, de que eu próprio nunca os segui e que sou...

Aqui Micawber, que não fizera outra coisa senão sorrir, deteve‑se, carregou o cenho e concluiu: ‑ ... sou o miserável que você tem debaixo da sua vista.

‑ Oh, Micawber! ‑ exclamou vivamente a esposa.

‑ Sim ‑ replicou ele, tornando a sorrir ‑ o miserável que tem sob a sua vista. Eis o meu conselho: não deixe nunca para o dia seguinte o que possa fazer hoje mesmo. Protelar é roubar tempo.

‑ A máxima de meu defunto pai ‑ comentou a senhora Micawber.

‑ Minha querida, o teu pai era perfeito no seu género e Deus me defenda de o denegrir. Era no conjunto um verdadeiro homem, como diz Shakespeare. Jamais conheceremos outro da sua idade com pernas tão bem feitas para as polainas nem tão capazes de ler sem óculos. Mas aplicou aquela máxima ao nosso casamento, minha querida, e tudo se concluiu de modo tão prematuro que nunca me restabeleci dessa despesa.

Micawber lançou um olhar de soslaio à mulher e acrescentou:

‑ Não que esteja arrependido. Pelo contrário, minha filha. Depois disto tomou um ar grave durante uns minutos.

‑ O meu outro conselho, Copperfield, você conhece‑o: rendimento anual, vinte libras; despesa anual, dezanove libras, dezanove xelins e seis dinheiros. Resultado: felicidade. Rendimento anual: vinte libras. Despesa anual: vinte libras e seis dinheiros. Resultado: infelicidade. A flor está murcha, a folha seca, o deus do dia desaparece iluminando uma cena lúgubre e... numa palavra, você está para sempre vencido. Como eu!

Para tornar o seu exemplo mais impressivo, Micawber ingeriu um trago de ponche, com ar de imensa satisfação, e assobiou uma ária de gaita de foles.

Não me esqueci de lhe afirmar que observaria esses preceitos, com todo o rigor, o que aliás era inútil, pois nesse momento percebia‑se que eles me sugestionavam fortemente. No dia seguinte voltei a encontrar toda a família na estação da diligência e vi‑os, saudoso, tomar assento na viatura.

‑ Senhor Copperfield ‑ disse a senhora Micawber ‑ que Deus o abençoe! Nunca poderei esquecer o que se passou, e, ainda que o pudesse, não o quereria.

‑ Copperfield, adeus! ‑ exclamou Micawber. ‑ Prosperidades! Se eu, de futuro, chegar a crer que a minha ruína lhe serviu de lição, sentirei que não ocupei inutilmente o lugar de outrem neste mundo. No caso de se me deparar qualquer coisa (no que eu confio), serei deveras feliz se estiver em meu poder melhorar a sua situação.

Creio que, enquanto estava sentada com as crianças na diligência e me encontrava na rua, a vê‑los com ar triste, a senhora Micawber compreendeu que espécie de rapaz eu era na realidade. Julgo isso porque ela me fez sinal para subir, com uma expressão diferente, maternal: cingiu‑me o pescoço com o braço e beijou‑me como se eu fosse seu próprio filho. Só tive o tempo de me apear antes que o veículo partisse; mal podia distinguir a família Micawber no meio dos lenços agitados. Num minuto tudo desapareceu. Ficámos na estrada, eu e a órfã, olhando‑nos sem nos ver; depois, com um aperto de mão, despedimo‑nos: ela voltou, suponho, para o asilo de São Lucas e eu fui iniciar um dia melancólico no armazém de Murdstone & Grinby.

Não tencionava, porém, continuar aí uma existência medíocre. Não. Tinha decidido fugir, fosse como fosse, para o campo e ir contar a minha triste história à única parente que possuía no mundo, à minha tia Betsey.

Já observei que não sabia como me entrara na cabeça essa ideia desesperada. Mas, uma vez aí, permaneceu.

E fixou‑se de tal maneira que nunca tive outra tão determinada em todo o resto da minha vida. Não me parece que jamais acreditasse haver nela a mínima esperança, mas a resolução estava tomada e só faltava dar‑lhe execução.

Cem vezes desde que a ideia me acudira, afugentando‑me o sono, eu repisara mentalmente a história do meu nascimento; agradava‑me tanto, outrora, que a minha mãe ma contasse que já a sabia de cor. A tia tinha nela apenas uma aparição, aparição terrível, mas havia no seu comportamento uma pequena particularidade que eu gostava de lembrar e que me infundia um clarão de esperança. Não me podia esquecer de que a mãe sentira que ela lhe acariciava os cabelos; embora isto talvez fosse uma ilusão, ainda assim eu imaginava um quadro em que a tia terrível se deixava enternecer pela beleza da sobrinha. Este episódio dulcificava tudo, e é muito possível que, sendo apenas um pormenor, se ampliasse no entanto no meu espírito e gradualmente engendrasse a minha resolução.

Como eu próprio não soubesse onde habitava a tia Betsey, escrevi uma carta extensíssima à Peggotty e, à laia de parêntese, introduzi este período: fingi ter ouvido falar de uma dama que vivia algures (indiquei um sítio, ao acaso) e mostrei curiosidade em saber se era esse o nome. No decurso da carta, disse que precisava de meio guinéu, para certo fim que revelaria mais tarde se ela quisesse emprestar‑me essa quantia, reembolsável quando eu estivesse apto a fazê‑lo.

Não tardei a receber a resposta de Peggotty, cheia como de costume das maiores demonstrações de amizade. Incluía nela o meio guinéu (quanto lhe custaria a extraí‑lo do cofre de Barkis?) e dizia que a tia Betsey morava perto de Dover, mas que ignorava se era mesmo em Dover, ou Hythe, Sandgate ou Folkestone. Um dos homens que trabalhavam comigo informou‑me entretanto que essas localidades ficavam perto umas das outras, e considerei que isto bastava para o meu propósito. Resolvi, pois, pôr‑me a caminho no fim da semana.

O meu conceito de boa reputação não me permitiu que deixasse Murdstone & Grinby antes do sábado à noite. Recebera uma semana adiantada, e por isso resolvi não me dirigir à caixa à hora habitual para receber o salário. Por esta mesma razão é que pedira o meio guinéu emprestado; com ele faria as despesas da viagem. Assim, quando chegou o sábado, estando nós todos no armazém à espera do pagamento costumado, o carroceiro Tipp foi à frente receber o seu dinheiro, e, nesse momento, apertei a mão de Mick Walker e pedi‑lhe que, ao chegar a minha vez, dissesse ao senhor Quinion que eu fora levar a minha mala a casa de Tipp; despedi‑me do Farinhento e saí.

Essa mala estava no meu antigo alojamento, do outro lado do rio. Aproveitei o reverso de um dos rótulos de expedição que colávamos nos barris e escrevi: David. Para ser reclamada no Escritório da Diligência em Dover. Tinha esse letreiro pronto na algibeira para o colocar na mala quando a retirasse da casa. Pelo caminho fui procurando alguém que ma pudesse levar ao local da diligência.

Havia um rapaz de pernas compridas que costumava estar na estrada de Blackfriars junto do Obelisco, com o seu carrinho de transportes. Vi‑o e perguntei‑lhe se queria encarregar‑se de um serviço.

‑ Que serviço? ‑ replicou.

‑ Levar uma mala.

‑ Que mala?

Expliquei‑lhe que era a minha, que a deixara no extremo da rua e que desejava alguém que a conduzisse por seis dinheiros à estação da diligência, a fim de seguir para Dover.

Aceitou o preço, saltou logo para a traquitana, que era um estrado de madeira assente sobre rodas, e partiu com grande estardalhaço, tão rápido que eu mal podia acompanhar a corrida do muar.

O ar insolente do rapaz e, em particular, o modo como ele mascava uma palhinha enquanto falava, não me agradava positivamente; mas o contrato estava feito. Mandei‑o, pois, ao quarto que eu deixara, ele desceu com a mala e colocou‑a na carreta. Ainda não me apetecia colar o letreiro, com medo que algum membro da família do senhorio percebesse o meu plano e me detivesse. Disse então ao rapaz que lhe agradecia se parasse um instante ao chegar diante da muralha da prisão de Kings' Bench. Mal pronunciara estas palavras, partiu à desfilada, como se ele, a mala, o carro e o muar estivessem todos furiosos. Sentia a alma pela boca fora de tanto correr atrás deles e de chamar, quando cheguei ao ponto combinado.

Estava coradíssimo e, na minha agitação, deixei cair o meio guinéu da algibeira, ao tirar de lá o letreiro. Meti‑o na boca, por precaução, e, apesar de ter as mãos trémulas, consegui fixar o rótulo quando senti o rapaz dar‑me um soco no queixo e arrancar‑me o dinheiro.

‑ Com que então! ‑ berrou ele, agarrando‑me no casaco e fazendo uma careta medonha. ‑ Isto diz respeito à polícia, não? Tencionas safar‑te, hem? Vem comigo à esquadra, patife!

‑ Entregue‑me o dinheiro, por favor! ‑ roguei, assustado. ‑ E deixe‑me em paz.

‑ Vamos à esquadra ‑ repetiu o moço de fretes. ‑ Provarás na polícia que te pertence.

‑ Dê‑me o dinheiro e a mala! ‑ insisti, já lavado em lágrimas. O outro repetia sempre «Vamos à esquadra!», e puxava‑me com

força para junto do muar, como se achasse analogia entre o animal e a autoridade policial. Depois mudou de táctica, saltou para o carro, sentou‑se na minha mala e, declarando que ia chamar um polícia, partiu com maior estrondo e velocidade do que nunca.

Corri atrás dele, tão depressa quanto pude, mas estava muito ofegante para gritar e, ainda que me fosse fácil, não ousaria fazê‑lo. Durante meia milha estive para ser esmagado uma dúzia de vezes. Ora perdia de vista o fugitivo, ora o tornava a descobrir, para de novo me desaparecer e vê‑lo daí a instantes; recebia chicotadas de passagem, insultos, caía na lama, levantava‑me, esbarrava num transeunte, precipitava‑me contra um poste. Finalmente, vencido pelo calor e o medo, pensando que meia Londres me perseguiria e prenderia, deixei o moço levar a mala e o dinheiro para onde quisesse; e, arquejando e banhado de pranto, mas sem parar, tomei a direcção de Greenwich, que sabia ficar no caminho de Dover, para alcançar o sítio onde minha tia Betsey se acolhera. Dos bens deste mundo possuía tão poucos como os que trouxera na noite em que a minha vinda a ele causara a essa dama tanto temor.

 

CONSEQUÊNCIAS DA MINHA RESOLUÇÃO

Tanto quanto sei, eu devia ter a ideia louca de ir a correr até Dover quando renunciei à perseguição do rapaz e da sua carroça para tomar o caminho de Greenwich. Consegui, pois, reconsiderar, porque parei em Kant Road, num terreiro em que havia uma fonte com uma estátua enorme e desinteressante, a qual soprava uma concha sem água. Aí me sentei no degrau de uma porta, esfalfado, exausto dos esforços a que me entregara e tão ofegante que mal tinha força de lamentar a perda da mala e do meio guinéu.

Caíra a noite. Enquanto ali repousava, ouvi os relógios darem as dez horas. Felizmente era uma noite de Verão e o tempo estava óptimo. Quando recobrei fôlego e me refiz da impressão de afogamento que sentia na garganta, levantei‑me e recomecei a andar. Por maior que fosse a desolação em que me abismara, nem por um instante pensei em arrepiar caminho. Ainda que a estrada se achasse obstruída pela neve, suponho que nem nesse caso desistiria do intento.

Aborrecia‑me no entanto saber que, no bolso, só tinha três moedas de cobre, cuja proveniência até ignorava. Comecei a imaginar o que diriam os jornais se eu fosse encontrado dois dias mais tarde, morto, ao lado de uma sebe; e ia andando a custo e cheio de tristeza, embora com a pressa de que era capaz, quando passei perto de uma loja em que havia um cartaz. Lendo‑o, verifiquei que anunciava a compra de vestuário de homem e de senhora; também pagavam bem trapos, ossos e lixo doméstico. O dono da loja estava sentado à porta, em mangas de camisa, a fumar. Como se viam fatos pendurados do tecto, à luz débil de duas velas acesas no interior, deu‑me ele a impressão de que enforcara os seus inimigos, por vingança, e que saboreava agora a sua vitória.

A minha frequentação recente do casal Micawber ensinara‑me que há sempre meio de obviar às nossas necessidades. Dobrei a esquina da primeira rua, tirei o colete, pu‑lo embrulhado debaixo do braço e voltei à porta da loja.

‑ Faz‑me favor... ‑ disse ao homem. ‑ Queria vender isto por um preço razoável.

O senhor Dolloby (era, pelo menos, o nome que figurava no anúncio) pegou no colete, descançou o cachimbo e entrou na loja. Eu segui‑o. Ele, com os dedos, retirou o morrão das velas, estendeu o colete no balcão e contemplou‑o; depois expô‑lo mais à luz, e tornou a contemplá‑lo. Acabou por me dizer:

‑ Quanto quer por isto?

‑ O senhor sabe melhor do que eu ‑ repliquei modestamente. ‑ Não posso ser ao mesmo tempo comprador e vendedor. Diga um preço.

‑ Talvez dezoito dinheiros... ‑ volvi tímido, após uma hesitação.

O senhor Dolloby dobrou o colete e devolveu‑mo.

‑ Se lhe desse metade disso, punha a família a pão e água. Esta forma de apresentar a questão desagradava‑me bastante, porque me colocava na situação dolorosa de pôr a família do senhor Dolloby a pão e água. No entanto, a minha necessidade era tão urgente que declarei aceitar nove dinheiros se a transacção lhe conviesse. O homem pagou‑mos, resmungando. Desejei‑lhe boa noite e saí da loja com nove dinheiros a mais e um colete a menos. Mas, ao abotoar o casaco, achei que ele não fazia muita falta.

Na realidade, previa que o casaco ia tomar o mesmo caminho e que teria de chegar a Dover em ceroulas e camisa. E ainda era estar com sorte! Todavia o caso não me preocupava grandemente. À parte o facto de sentir que havia à minha frente uma distância considerável e a irritação que me causava o procedimento do moço de fretes, suponho que não compreendia bem as dificuldades que se me deparavam quando recomecei a andar com mais esses nove dinheiros no bolso.

Ideara um projecto para passar a noite, e preparava‑me para o executar. O plano consistia em deitar‑me por trás do muro do meu antigo internato, onde havia medas de feno. Achava que a proximidade dos condiscípulos e do dormitório (em que contara tantas histórias) me daria a sugestão de estar acompanhado, embora os rapazes ignorassem a minha presença e o dormitório me não servisse de abrigo.

O dia fora ingrato e eu estava fatigadíssimo quando finalmente trepei a encosta de Blackheath. Não me foi fácil descobrir o colégio de Salem, mas sempre dei com ele, e topei, a um canto, a palha, sobre que me deitei depois de ter ladeado o muro, olhado para todas as janelas e reconhecido que no interior reinavam as trevas e o silêncio. Nunca esquecerei a sensação de isolamento que experimentei ao estender‑me sobre a meda, sem ter, pela primeira vez, um tecto que me cobrisse.

O sono venceu‑me, nessa noite, como a tantos outros proscritos para quem as portas das casas estavam fechadas e contra quem ladravam os cães de guarda. Sonhei que estava deitado no meu leito do internato e que conversava com os alunos. Acordei e vi‑me sentado, com o nome de Steerforth nos lábios, a olhar espantado para a claridade trémula das estrelas que me envolviam. Quando me recordei do lugar em que me encontrava a essa hora tardia, fui tomado de uma espécie de terror e, erguendo‑me, caminhei sem fito. Mas sosseguei vendo atenuar‑se a luz das estrelas e a palidez do céu anunciar‑me o regresso do dia. Como os olhos se me fechassem do cansaço, tornei a deitar‑me e adormeci, com a impressão contínua, durante o sono, de que tinha frio. Enfim, fui despertado pelos raios de sol e pela sineta que badalava dentro dos muros do colégio. Se me fosse possível ter um encontro com Steerforth, erraria pelas imediações até que ele saísse sozinho: mas sabia que devia ter deixado o internato há muito tempo. Talvez lá estivesse ainda Traddles, o que se me afigurou duvidoso, e além disso não confiava muito na sua discrição para lhe dar conta da minha aventura, por mais que reconhecesse a bondade da sua alma. Afastei‑me, pois, do colégio, com precaução, enquanto os alunos do senhor Creakle se levantavam, e tomei o caminho poeirento que me tinham indicado como sendo a estrada de Dover, na altura em que frequentava as aulas de Salem. Mal pensava então que poderia um dia jornadear por aquelas paragens!

Como essa manhã de domingo me pareceu diferente das que eu passara outrora em Yarmouth! À hora do ofício divino ouvi soar os sinos das igrejas, enquanto eu prosseguia dificultosamente pela estrada fora. Cruzava‑me com pessoas que se dirigiam para lá. Passei defronte de uma ou duas em que os fiéis se reuniam; daí saíam cânticos que se evolavam ao céu: e o sacristão, sentado à sombra fresca do pórtico ou debaixo de um teixo, enxugava a testa com a mão e olhava‑me espantado. A paz desses domingos passados reinava por toda a parte, excepto no meu coração. Aqui residia a diferença. Sentia‑me criminoso sob a sujidade e o pó, com o cabelo desgrenhado. Se não evocasse a minha mãe, em todo o esplendor da mocidade e da beleza, chorando ao canto da lareira, e a minha tia enternecida junto dela, não sei se teria ânimo de continuar até ao dia seguinte. Mas essa visão ia à minha frente e eu seguia‑a.

Caminhei, nesse domingo, vinte e três milhas em linha recta, e com que dificuldade, porque não estava habituado a semelhante fadiga! Vejo‑me ainda, ao anoitecer, atravessando a ponte de Rochester: estava esgotado, doíam‑me os pés e comia o pão que comprara para a ceia. Por momentos tentaram‑me certas casas que ostentavam o letreiro: «Dá‑se hospedagem a viandantes». Não me atrevia, porém, a gastar os poucos cobres que me restavam, e tinha sobretudo medo da cara sinistra dos caminhantes que se cruzavam comigo. Não pedia, pois, abrigo senão ao céu. Custosamente cheguei a Chatham, que, no seu aspecto nocturno, é uma fantasmagoria de greda, pontes levadiças e barcos desmantelados junto a um rio de lama onde arribassem arcas de Noé. Enfiei, por fim, numa espécie de plataforma de canhões coberta de ervas, acima de um atalho onde andava cá e lá uma sentinela. Deitei‑me, ao lado de uma peça de artilharia e, contente por ouvir os passos da sentinela e sentir a sua companhia (embora soubesse tanto da minha presença como os internos de Salem quando me estendi atrás do muro), adormeci profundamente e assim fiquei até de manhã.

De manhã, achei‑me inteiriçado e com dores nos pés. Aturdia‑me por completo o rufar dos tambores e o barulho dos passos dos soldados que pareciam cercar‑me por toda a parte quando considerei necessário descer pelo atalho estreito e comprido. Sentindo que não poderia ir muito além nesse dia, para conservar algumas forças com que alcançasse o termo da jornada, resolvi consagrar essas horas à venda do meu casaco. De modo que o tirei, para me habituar à sua falta, e, metendo‑o debaixo do braço, comecei a inspeccionar as diversas baiucas dos adelos.

O lugar era bem escolhido para vender um casaco, pois havia inúmeros negociantes de roupa usada, os quais em geral estacionavam à porta das respectivas lojas, cocando a aproximação dos clientes. Como, porém, muitos deles tinham em depósito dólmanes de oficiais com dragonas e outros acessórios, fiquei intimidado com o aspecto sumptuoso do seu comércio e vagueei durante muito tempo antes de oferecer a minha mercadoria.

Esta modéstia atraiu a minha atenção para os negociantes de ferro‑velho para uso dos marinheiros e armazéns do género do do senhor Dolloby, de preferência aos comerciantes vulgares. Até que descobri um, cuja aparência achei prometedora, à esquina de uma travessa suja que terminava num campo de urtigas entre uma paliçada em que se viam roupas de marujo, em segunda mão: estas pareciam ter transbordado da loja e flutuarem ao vento no meio de camas de ferro, espingardas ferrugentas, chapéus de oleado e bandejas repletas de chaves de todos os tamanhos e feitios, capazes de abrirem todas as portas deste mundo.

A lojeca, pequena e baixa, era obscurecida mais do que iluminada por uma janela donde pendiam fatos. Chegava‑se lá descendo uns degraus. O coração batia‑me quando entrei e o meu tremor não diminuiu ao lobrigar um velho medonho, cuja parte inferior da cara estava coberta de barba grisalha e espessa. O homem saía de uma espécie de caverna soturna, atrás da loja, e agarrou‑me pelos cabelos. Realmente, era um velho horrível! Usava um colete de flanela cheio de nódoas e tresandava a aguardente. A cama, tapada com um pedaço de pano rasgado e remendado, ficava nesse antro donde ele saía e por onde se via, através de uma janela, o campo de urtigas e um burro coxo.

‑ Que queres? ‑ perguntou em tom lamuriento, mostrando os dentes com ar feroz. ‑ Ai, os meus olhos, os braços! Que é que queres? Ai os pulmões, o fígado! Que queres? Gorou! Gorou!

Admirei‑me tanto deste discurso, e em especial desse estranho nome repetido duas vezes, semelhante a uma matraca que tivesse na garganta, que me faltou a voz para responder. Então o velho, que não me largava os cabelos, insistiu:

‑ Que queres? Ai, meus olhos, meus braços! Que queres? Ai, os meus pulmões, o meu fígado! Que queres? Oh, Gorou!

E soltou este último grito com tal energia que os olhos quase lhe saíram das órbitas.

‑ Desejava saber ‑ disse, tremendo todo ‑ se me comprava este casaco...

Então aqueles dedos, que pareciam as garras de uma ave gigantesca, largaram‑me o cabelo. O homem pôs os óculos, que não embelezavam muito os olhos inflamados, e perguntou, examinando a mercadoria:

‑ Quanto queres pelo casaco? Oh, Gorou! Quanto queres?

‑ Meia coroa ‑ repliquei, recobrando ânimo.

‑ Ai os meus pulmões, o meu fígado! Não! Ai os meus olhos! Não! Ai os meus membros! Não! Dezoito dinheiros. Gorou!

Todas as vezes que soltava esta exclamação, os olhos pareciam sair‑lhe das órbitas. Pronunciava as palavras num tom plangente, sempre o mesmo, que principiava docemente, aumentava e decrescia de novo.

‑ Está bem ‑ disse, encantado por fechar o negócio. – Aceito dezoito dinheiros.

‑ Ai o meu fígado!‑gritou o velho, atirando o casaco para cima da mesa. ‑ Sai daqui! Ai os meus pulmões! Sai daqui! Ai os meus olhos, as pernas... Gorou! Não me peças dinheiro. Façamos uma troca.

Nunca na minha vida estive tão apavorado. Mas disse‑lhe humildemente que precisava de dinheiro e que outro objecto me seria inútil; que esperaria lá fora, como ele desejava; que não havia pressa nenhuma. Saí, pois, e sentei‑me num canto. Ali fiquei durante horas, tantas que o sol sucedeu à sombra e a sombra ao sol, e eu sempre à espera do dinheiro.

Calculo que naquele negócio jamais houve semelhante louco ou semelhante bêbedo. O homem era conhecido na vizinhança e passava por ter vendido a alma ao diabo, como logo soube pelos garotos que a cada instante faziam irrupção na loja e apregoavam essa história, gritando‑lhe que fosse buscar o oiro.

‑ O senhor não é pobre, Charley, mas finge‑o. Mostre um pouco desse oiro que o diabo lhe deu em troca da sua alma. Vamos! Está dentro do colchão. Basta rasgá‑lo, e pronto, Charley!

Aquelas entradas intempestivas e a proposta de lhe emprestarem uma faca para rasgar o colchão exasperavam‑no a tal ponto que ele passava o dia a correr atrás dos pequenos e estes a fugir. Por vezes, na sua fúria, o velho tomava‑me por um desses garotos e atirava‑se a mim, com uma carantonha horrível, como se quisesse despedaçar‑me; depois, reconhecendo a tempo o engano, reentrava na loja e estendia‑se na cama (segundo me parecia, pela direcção da voz), e vociferava, entremeando as palavras com muitos «Gorous». Para cúmulo da desgraça, os diabretes estabeleciam um elo entre mim e o velho, atendendo à perseverança com que eu esperava à porta, e atiravam‑me pedras, maltratando‑me constantemente.

O homem fez várias tentativas para me persuadir a aceitar uma troca: apareceu com uma cana de pesca, depois com um violino, um chapéu tricórnio, uma flauta... Resisti a todas estas propostas e mantive‑me no meu posto, desesperado, suplicando‑Lhe de cada vez, com lágrimas nos olhos, que me desse o dinheiro ou o casaco. Finalmente começou a pagar‑me moedinha a moedinha e muito tempo decorreu antes que chegássemos à quantia de um xelim.

‑ Ai meus olhos, meus membros! ‑ exclamou então, lançando um olhar horrendo pela porta da loja, após um longo intervalo. ‑ Chegam mais dois dinheiros?

‑ Partiria sem lhe pedir mais nada ‑ respondi. ‑ Mas preciso absolutamente de dinheiro.

‑ Oh, Gorou! (É impossível descrever a careta que acompanhou esta exclamação. Estava meio oculto pela porta e só deixava ver o rosto velhaco.) ‑ Chegam mais quatro dinheiros? Eu estava tão esgotado que concluí a transacção. Em seguida, pegando com a mão trémula no dinheiro que ele segurava nas garras, afastei‑me dali, por estar cheio de fome e de sede, mas só depois de comer e beber é que, tomando coragem, retomei a caminhada por mais umas sete milhas, manquejando sempre.

Quando anoiteceu deitei‑me sobre outro feixe de palha, e aí repousei convenientemente, depois de ter lavado num riacho os pés cobertos de empolas e os haver embrulhado, como pude, nalgumas folhas frescas. Ao partir de novo, no dia seguinte de manhã, vi que o percurso seria através de lúpulos e de pomares. Como a estação ia adiantada, as maçãs maduras davam a esses campos um matiz vermelho, e em alguns lugares os que colhiam lúpulo já tinham iniciado o seu trabalho. Tudo isto se me afigurou muito belo, e eu decidi deitar‑me nessa noite no meio das plantas, imaginando achar alegre companhia nessas longas filas de estacas em que as folhas se enlaçavam graciosamente.

Os vagabundos inquietaram‑me dessa vez mais do que nunca e inspiraram‑me um terror de que ainda guardo viva lembrança. Alguns bandidos de ar feroz, olhavam‑me de passagem, detinham‑se, gritavam de longe, para que lhes fosse falar, e, quando eu dava às de vila‑diogo, atiravam‑me pedras. Recordo‑me de um rapaz, creio que picheleiro, a avaliar pela sacola e pelo maçarico, e que ia acompanhado de uma mulher. Voltou a cara para mim e fitou‑me; em seguida ordenou‑me com voz tremenda que voltasse atrás, e eu, assustado, parei.

‑ Vem quando te chamarem ‑ disse o picheleiro. ‑ Senão espeto‑te a barriga.

Achei preferível obedecer. Ao aproximar‑me, e olhando para eles com ideia de os enternecer, notei que a mulher tinha uma vista tapada.

‑ Para onde vais? ‑ perguntou o rapaz, agarrando‑me na camisa para se assegurar de que eu não fugiria.

‑ Para Dover ‑ respondi.

‑ E donde vens? ‑ continuou, sem nunca me largar a camisa.

‑ De Londres.

‑ Que é que roubas?

‑ Nada...

‑ Ah, se te fazes muito fino, racho‑te a cabeça!

Com a mão livre esboçou o gesto de me bater. Depois olhou‑me de alto a baixo.

‑ Tens contigo com que se possa tomar uma cerveja? Se tens, despacha‑te, antes que te tire o dinheiro.

Tê‑lo‑ia feito se não encontrasse o olhar da mulher, que me fez um sinal imperceptível e disse «não» simplesmente com o mover dos lábios.

‑ Sou muito pobre ‑ redargui, tentando sorrir. ‑ Não tenho dinheiro.

‑ Que é isso que eu vejo? ‑ exclamou o picheleiro; observava‑me com tamanha severidade que eu quase receei que ele tivesse visto o meu dinheiro através do forro da algibeira.

‑ Por favor... ‑ balbuciei.

‑ Que vejo eu? Usas o lenço de seda do meu irmão? Dá‑mo já! Arrebatou‑mo do pescoço num instante e entregou‑o à mulher, que desatou a rir, como se se tratasse de um gracejo; em seguida restituiu‑mo, tornou a fazer um sinal imperceptível e murmurou: «Vai‑te!» Antes que eu pudesse obedecer, o rapaz voltou a tirar‑me o lenço, com tamanha brutalidade que eu voei como uma pena, e atou‑o no seu pescoço. Virando‑se para a mulher, blasfemando, deitou‑a ao chão com um soco. Jamais esquecerei o espectáculo dessa mulher caída por terra. Tombara‑lhe o chapéu e os cabelos ficaram brancos de poeira. Quando já ia a certa distância, olhei para trás e vi‑a sentada, no meio da vereda, limpando com a ponta do xaile o sangue que lhe escorria da cara. O homem continuara o seu caminho.

Esta aventura horripilou‑me de tal maneira que, desde então, quando percebia a aproximação de gente desta espécie, retrocedia para me ocultar fosse onde fosse, e aí ficava até que se perdessem de vista. Tive de repetir muitas vezes esta manobra, de que resultou atrasar consideràvelmente a viagem. Mas, em todas estas dificuldades, fui sempre protegido e guiado pelo retrato imaginário da minha mãe na sua mocidade, antes da minha vinda ao mundo. Era a minha companhia de todas as horas.

Estava lá, no meio dos campos de lúpulo, quando me estendia para dormir. Estava presente ao meu despertar, de manhã. Seguira à minha frente durante todo o dia. Desde esse tempo, está associado no meu espírito à recordação da rua soalheira de Cantuária, que parece dormitar sob esta luz escaldante; associado igualmente ao espectáculo das velhas casas, das velhas portas, da catedral majestosa, cor de cinza, e aos corvos que voavam de roda das torres. Quando cheguei finalmente às colinas nuas de greda que se estiram a perder de vista, nos arredores de Dover, essa imagem infundiu‑me alguma esperança na desolação da paisagem, e só me abandonou quando atingi esse primeiro objectivo da jornada, pondo o pé na própria cidade de Dover, seis dias após o início daquela; porque então, coisa estranha, quando me achei seminu, de sapatos dilacerados, poeirento e queimado do sol, no lugar por que ansiara tanto, essa imagem dissipou‑se como um sonho e eu fiquei sozinho, fraco e abatido.

Perguntei primeiramente aos barqueiros se conheciam a minha tia, e recebi diversas respostas, todas diferentes. Disse‑me um que ela morava no farol de South Foreland e que o ar do mar lhe queimara os bigodes. Outro disse que estava amarrada à bóia ao largo do porto e só podia ser visitada na maré baixa. Disse‑me um terceiro que se encontrava presa em Maidstone por haver raptado crianças. Ainda outro, que fora vista montada numa vassora, na última rajada forte, e que viajara directamente para Calais. Os cocheiros de praça, entre os quais procedi a um inquérito, não foram menos chalaceadores nem menos desrespeitosos. E os lojistas, desagradados da minha aparência pouco recomendável, geralmente replicavam (sem me ouvir) que não davam esmolas a ninguém. Sentia‑me mais abandonado e infeliz do que em nenhum outro momento da minha evasão. O dinheiro fora‑se e já não tinha nada que vendesse. Estava cheio de fome e de sede, consumido, e o propósito da viagem afigurava‑se‑me tão longínquo como se ainda me achasse em Londres.

Passara a manhã naquelas buscas, e sentara‑me nos degraus de uma loja desocupada, à esquina da rua, perto do mercado, a pensar se devia ir ao acaso até às outras terras de que ouvira falar, quando um cocheiro que seguia com o seu trem deixou cair o cobertor do cavalo. Ao restituir o que acabava de apanhar do chão, notei o ar simpático do homem e animei‑me a perguntar‑lhe se sabia onde morava a senhora Trotwood, embora já houvesse indagado isto tantas vezes que as palavras quase me expiravam nos lábios.

‑ Trotwood? Deixa‑me ver, Esse nome não me é estranho. Uma senhora velha?

‑ Sim, bastante.

‑ Mas que se conserva muito direita? ‑ continuou ele, endireitando também as costas.

‑ Creio que sim.

‑ E usa um saco? Um saco muito grande? E que é um tanto rabugenta, impertinente?

O coração pulava‑me ao ouvir a verosimilhança desta descrição.

‑ Pois então, sobe por ali fora ‑ disse o cocheiro, indicando o sítio com o chicote ‑ e vai sempre em frente até chegar às casas que deitam para o mar. Mas a minha opinião é que ela te não dará nada. Toma lá isto para ti.

Era um dinheiro, que aceitei reconhecido e com que comprei um pão. Fui‑o comendo pelo caminho indicado e andei muito tempo antes de alcançar as casas de que o homem me falara. Por fim enxerguei‑as e, já próximo delas, entrei numa loja que parecia vender de tudo e onde perguntei se me podiam informar quanto à residência da senhora Trotwood. Dirigira‑me a um homem que estava atrás do balcão e que nessa altura pesava arroz para uma mulher nova; esta, porém, tomou a pergunta como endereçada a ela mesma e voltou‑se vivamente.

‑ A minha patroa? ‑ exclamou. ‑ Que queres, pequeno?

‑ Desejava falar‑lhe...

‑ Para lhe pedires esmola, não é isso? ‑ replicou a mulher.

‑ Não, senhora.

Depois, lembrando‑me que, no fim de contas, a minha finalidade era essa, calei‑me embaraçado e senti o rubor subir‑me às faces.

A criada da minha tia (visto que era esta a sua profissão, a avaliar pelo que dissera) meteu o arroz no cabaz que trazia e saiu da loja, aconselhando‑me que a seguisse se queria saber onde morava a senhora Trotwood. Não me fiz rogado, se bem que tivesse chegado a tal grau de confusão e cansaço que as pernas se me dobravam. Segui, pois, a mulher e chegámos daí a pouco a uma vivenda pequena e nada feia, com janelas salientes. Tinha adiante um pàtiozinho ou jardim quadrado, coberto de areia e adornado de algumas flores bem cuidadas, que exalavam perfume delicioso.

‑ É esta a casa da senhora Trotwood ‑ disse a criada ‑, Já ficas a saber. Não te posso fazer mais nada.

Com isto, entrou precipitadamente, como se quisesse repudiar qualquer responsabilidade na minha visita. Deixou‑me, pois, junto à porta do jardim, e eu olhei com ar melancólico para a janela do que julguei ser a sala: uma cortina de cassa entreaberta, um anteparo em forma de leque fixado ao peitoril da janela, uma mesa pequena e uma poltrona levaram‑me a pensar que talvez a minha tia, nesse momento, aí pontificasse com toda a majestade.

Eu tinha as botas em mísero estado, com as solas totalmente esfrangalhadas, a biqueira partida e tão arrebentada que nem se podia reconhecer o que era. O chapéu (que me servira de barrete de dormir) estava tão amachucado e deformado que sem exagero se poderia comparar com uma caçarola velha e amolgada, sem cabo, atirada para o lixo. A camisa e as calças, molhadas do suor e do orvalho, e sujas das ervas, apresentavam rasgões e só serviriam para vestir um espantalho. O cabelo não fora penteado nem escovado desde que abandonara Londres. A cara, o pescoço, que não estavam habituados ao sol e ao ar livre, mostravam‑se da cor das amoras maduras. Sentia‑me da cabeça aos pés coberto de greda e de terra e quase tão branco como se saísse de um forno de cal. Foi desta forma, de que eu tinha perfeita consciência, que resolvera apresentar‑me e dar uma primeira impressão à temível tia Betsey.

Nada se movia na janela da sala e eu concluí, ao fim de uns minutos, que a tia não estava lá. Ergui a vista ao andar superior e vi um cavalheiro de aspecto risonho e agradável, e de cabelos grisalhos, o qual me fechou um olho com ar grotesco e me fez, com a cabeça, por várias vezes, sinais ora de incitamento ora de negação; depois deu uma gargalhada e desapareceu.

Mais desconcertado fiquei com esse procedimento inesperado, e até deliberara eclipsar‑me para reflectir no melhor modo de agir quando surgiu de casa uma dama, com um lenço enrolado na touca, luvas de jardinagem, avental de grande algibeira, como o dos portageiros, e enorme podão. Reconheci imediatamente a tia Betsey, pois saíra de casa em passo firme, como a minha mãe, coitada, ma descrevera muitas vezes, depois de a ter visto andar no nosso jardim das «Gralhas», em Blunderstone.

‑ Vai‑te embora! ‑ gritou ela, abanando a cabeça e agitando o podão. ‑ Circula. Aqui não quero garotos.

Vi‑a, de coração alvoroçado, encaminhar‑se rigidamente para um canto do jardim e abaixar‑se para arrancar qualquer plantazinha. Então, sem muita coragem mas com a energia do desespero, avancei lentamente para ela e toquei‑lhe com um dedo.

‑ Faça favor, senhora... Estremeceu e alçou a vista.

‑ Faça favor, minha tia.

‑ Hem? ‑ replicou a velha, espantada ao máximo.

‑ Tia, sou o seu sobrinho...

‑ Oh, Deus do Céu!

E caiu sentada no passeio do jardim.

‑ Sou David Copperfield, de Blunderstone, Suffolk, aonde a senhora foi, na noite em que nasci, visitar a minha mãe. Tenho sido muito infeliz depois da sua morte. Descuidaram‑me, não fizeram nada pela minha educação, fiquei entregue a mim mesmo, puseram‑me num trabalho para que não fui feito. Por isso fugi, para vir procurá‑la. Roubaram‑me na ocasião da partida e eu vim a pé todo o caminho, sem dormir numa cama desde o princípio da viagem.

Aqui o meu estoicismo abandonou‑me de repente e, fazendo um gesto com as mãos para mostrar os andrajos e tomá‑los como testemunhas do que havia sofrido, senti‑me dominado pelo choro que tentara reter durante toda aquela semana.

O pasmo expulsara da fisionomia da senhora Trotwood qualquer outra expressão. Ela continuava sentada no saibro e olhava‑me fixamente, mas, quando comecei a chorar, levantou‑se com rapidez, agarrou‑me pela gola da camisa e levou‑me para a sala. O seu primeiro cuidado foi de abrir um vasto armário, donde tirou várias garrafas; e fez‑me ingerir um pouco de cada uma delas. Creio que as tirara ao acaso, pois tenho quase a certeza de que provei anis, molho de anchovas, condimento de salada... Depois de me administrar estes cordiais, como eu estivesse em estado de grande depressão nervosa, que se manifestava por soluços contínuos, a tia colocou‑me no canapé, com um xaile debaixo da cabeça e, sob os pés, o lenço que lhe adornava a touca, tudo para que eu não lhe sujasse a cobertura do móvel; em seguida, sentando‑se atrás do anteparo verde da janela (o que me impedia de lhe ver a cara), exclamou por intervalos: «Deus do Céu!», como se fossem tiros de canhão disparados de minuto a minuto.

Daí a pouco tocou a campainha.

‑ Janet ‑ disse a tia, quando a criada compareceu ‑ vai lá acima, dá os meus cumprimentos ao senhor Dick e diz‑lhe que lhe quero falar.

A rapariga pareceu um tanto surpreendida de me ver estendido no canapé, sem movimento (não desejava mexer‑me para não desagradar à tia), mas foi cumprir a ordem. A dona da casa, de mãos atrás das costas, passeou cá e lá na sala, até que entrou, sorrindo, o cavalheiro que me vira da janela do primeiro andar.

‑ Senhor Dick, não se faça tolo, porque mais ninguém será tão sensato quando quer. E por de mais sabido. De maneira que lhe peço dê atenção...

O senhor Dick tomou logo um ar grave e olhou para mim, como que a suplicar‑me que nada dissesse quanto à cena da janela. A tia prosseguiu:

‑ Já ouviu falar, não é verdade, de David Copperfield? Sabemos bem que sim, não se finja desmemoriado.

‑ David Copperfield? ‑ repetiu o senhor Dick, que me deu a ideia de não estar muito lembrado do nome. ‑ David Copperfield? Ah, sim, sim! David, com certeza.

‑ Pois este rapaz é filho dele. Seria muito parecido com o pai, se o não fosse também com a mãe.

‑‑Filho dele?‑exclamou o senhor Dick. ‑ Filho de David? Realmente?

‑ Sim, senhor, e fê‑la bonita. Fugiu! Ah, não seria a irmã, Betsey Trotwood, que faria uma coisa dessas!

E a tia meneou energicamente a cabeça, cheia de confiança no carácter e procedimento de uma criatura que afinal não chegara a nascer.

‑ Acha que ela não fugiria? ‑observou o senhor Dick.

‑ Meu Deus, que homem! ‑ bradou a tia. ‑ Como ele fala! Pois eu não sei isso muito bem? Ela ficaria a viver com a madrinha, tão dedicadas uma à outra como nunca! Donde fugiria Betsey Trotwood, ou para onde?

‑ Para parte nenhuma ‑ respondeu o senhor Dick.

‑ Nesse caso ‑ retorquiu a senhora Trotwood ‑ por que faz cara de parvo quando o senhor é fino como um coral? Pois aqui está o moço David Copperfield, e o que lhe pergunto agora é o seguinte: que hei‑de fazer dele?

‑ Que há‑de fazer dele? ‑ repetiu o senhor Dick em voz débil e coçando a cabeça. ‑ Sim, que fazer dele?

A tia ergueu um dedo, e, com expressão séria, declarou:

‑ Preciso de um conselho, e que seja bom.

‑ Eu, se fosse a senhora ‑ volveu o senhor Dick, reflectindo e olhando‑me com ar abstracto ‑ eu...‑Pareceu de repente inspirado e acrescentou vivamente: ‑ Dava‑lhe um banho!

‑ Janet ‑ disse a tia, voltando‑se numa atitude triunfante, que eu então não compreendi. ‑ Aquece o banho para o menino.

Embora bastante interessado no diálogo, não pude impedir‑me de observar a dona da casa, a criada e o senhor Dick, e de terminar o exame da sala em que estávamos.

A tia era uma senhora alta, de feições duras mas não desagradáveis. O rosto, a voz, o porte, o andar tinham qualquer coisa de inflexível que bastava para explicar o efeito que produziu sobre uma criatura dócil como a minha mãe. Todavia esse rosto não era feio, apesar de rude e austero. Notei, em particular, que possuía um olhar vivo e brilhante; os cabelos brancos formavam dois bandós encimados por uma touca frisada: esse toucado estava então mais difundido do que hoje, e terminava em fitas que se prendiam sob o queixo. O vestido cor de alfazema, apresentava‑se muito limpo, mas curto, decerto para lhe deixar os movimentos livres: lembro‑me de que esse vestido me sugeriu um traje de amazona a que tivessem encurtado a saia. Exibia a um lado um relógio de homem, a calcular pelo seu volume, seguro por uma corrente com berloques. No pescoço e nas mangas via‑se uma espécie de colarinho e de punhos de camisa.

O senhor Dick, como já disse, tinha cabelo grisalho e cor rosada; e isto seria suficiente, se não devesse acrescentar que a cabeça era singularmente curvada, embora não pela idade: supor‑se‑ia antes a cabeça de um dos alunos do senhor Creakle, depois de castigado. Os olhos grandes, salientes, brilhavam com uma claridade húmida e estranha, o que, junto às suas maneiras distraídas, à submissão perante a senhora Trotwood, e à alegria infantil quando esta o elogiava, me fazia pensar que não possuía o juízo todo. Ora, mais por isto do que pelo resto, a sua presença na casa intrigava‑me deveras. Vestia como toda a gente, um casaco cinzento, simples, colete branco e calças brancas. Usava também relógio, no bolsinho do colete, e fazia tinir dinheiro nas algibeiras, do que parecia muito orgulhoso.

Janet, rapariga de faces frescas, orçava pelos vinte anos e constituía um modelo de asseio. Se bem que não observasse então mais nada de especial a seu respeito, posso agora dizer o que não descobri senão mais tarde, isto é, que estava incluída numa série de protegidas que a minha tia tomara ao seu serviço precisamente para as educar no horror dos homens, renúncia que afinal terminava, em geral, por um casamento com o rapaz da padaria.

A sala apresentava‑se tão limpa como a senhora Trotwood ou a criada. Descansando ainda há pouco a pena, para meditar, senti de novo entrar o ar salino de mistura com o aroma das flores. Revi os móveis à moda desse tempo, bem esfregados e luzidios, a cadeira e a mesa que só a tia tinha o direito de ocupar atrás do anteparo verde, em forma de leque, fronteiro à janela, o tapete coberto com um pano, o gato, o escalfador, os dois canários, a loiça antiga, a poncheira cheia de pétalas de rosa secas, o armário grande que guardava todo o género de garrafas e frascos, e, ó milagre, destoando de tudo isto, a minha pessoa poeirenta em cima de um canapé, atento ao mínimo pormenor do que me rodeava.

Janet fora preparar o banho. De repente a senhora Trotwood empertigou‑se cheia de indignação e gritou em voz sufocada, que me assustou:

‑ Burros, Janet!

Reapareceu a criada, a correr, como se houvesse fogo em casa, e precipitou‑se para um trato de relva da frente, onde duas senhoras, montadas em burros, haviam tido a audácia de entrar. Ela própria arremessou‑se para lá e, puxando pela rédea de um terceiro animal (em cima do qual estava uma criança escarranchada), desviou‑o para fora desse recinto sagrado. Em seguida puxou as orelhas do infeliz arrieiro, que se atrevera a permitir semelhante profanação.

Nunca soube se a minha tia tinha legalmente direito de passagem por aquele relvado, mas assim se convencera e isso bastava. A ofensa mais grave que se lhe podia fazer e que exigia vingança imediata era conduzir um burro por esse sítio imaculado. Fosse qual fosse a ocupação que a absorvesse nesse momento, e por mais interessante que se mostrasse a conversa em que tomasse parte, bastava um daqueles animais para a distrair de tudo; sem demora investia sobre ele..Havia cântaros de água e agulhetas em pontos ocultos, prontos a serem despejados em cima dos contraventores. Havia paus atrás da porta. Faziam‑se rondas inesperadas. Era um estado de guerra permanente. Talvez que isto estimulasse agradavelmente os arrieiros, talvez que os burros (os mais inteligentes), sabendo do que se tratava, gostassem de ir ali em razão da teimosia que lhes é habitual. Só sei que houve três alarmes enquanto me preparavam o banho; no decurso do último, que foi o mais movimentado, vi a minha tia acometer sozinha um rapaz ruivo dos seus quinze anos e bater com a cabeça dele contra a porta do jardim antes que a vítima pudesse compreender o que se passava. Estas interrupções pareciam‑me na verdade risíveis, tanto mais que a senhora Trotwood estava então ocupada em ministrar‑me caldo às colheres de sopa (persuadida de que eu realmente morria de fome e que era preciso alimentar‑me em pequenas doses); e quando eu tinha ainda a boca aberta, largou a colher no chão e gritou: «Burros, Janet!», partindo logo ao ataque. O banho suavizou‑me muito, pois começava a sentir dores agudas nos membros, em consequência das noites passadas ao relento, e estava tão cansado que tinha dificuldade em manter‑me atento cinco minutos seguidos. Depois de tomar o banho, a tia e Janet vestiram‑me uma camisa e um par de calças do senhor Dick e envolveram‑me em dois ou três xailes grandes. Não sei a que espécie de embrulho me assemelhava, assim entrajado, mas, em todo o caso, o embrulho produziu calor. Estava, porém, muito fraco e caía de sono; estendi‑me outra vez no canapé e adormeci. Fora decerto um sonho originado na imagem que há muito tempo me ocupava o espírito, mas acordei com a impressão de que a tia viera curvar‑se sobre mim, que me afastara o cabelo do rosto, que permanecera um grande bocado de pé a contemplar‑me. As palavras «belo rapazinho» ou «coitadito», pareciam ressoar‑me aos ouvidos, mas, ao despertar, não havia nada, com certeza, que pudesse convencer‑me de que ela as pronunciara, pois vi‑a sentada à janela, atrás do anteparo verde que estava montado numa espécie de eixo e rodava em todos os sentidos.

Jantámos daí a curtos instantes. Serviram‑nos galinha assada e um pudim. Eu próprio achava‑me à mesa um pouco à maneira de um frango encordelado e só com muita dificuldade mexia o braço. Mas como fora a tia quem me enfaixara, eu não me atrevia a queixar‑me de estar constrangido. Durante todo o tempo, inquietava‑me a ideia de saber o que a senhora Trotwood ia fazer de mim; ora ela comia em silêncio profundo, limitando‑se a fitar‑me por momentos (achava‑me à sua frente) e a repetir «Deus do Céu!»

Quando levantaram a toalha para trazer xerez, de que tomei um copo, a tia mandou de novo chamar o senhor Dick, que se sentou connosco e assumiu um ar grave a pedido da dona da casa. Então ordenou‑me esta que contasse a minha história; fi‑lo devagar, sempre interrompido pelas suas perguntas. Ao passo que seguia no meu relato, o senhor Dick olhou de contínuo para mim (decerto para não adormecer) e, quando lhe escapava um sorriso, logo se arrependia vendo a senhora Trotwood franzir a testa.

‑ O que não posso compreender é a razão por que tornou a casar essa desgraçada rapariga ‑ observou a tia, quando acabei.

‑ Talvez se apaixonasse pelo segundo marido ‑ sugeriu o senhor Dick.

‑ Apaixonar‑se! ‑ repetiu a senhora Trotwood. ‑ Que quer dizer? Que tinha ela que se apaixonar?

‑ Quem sabe se achou prazer nisso?... ‑ volveu o senhor Dick.

‑ Prazer! Francamente! Belo prazer para esta pobre criança... dar‑lhe outro pai que não deixaria de a maltratar, de uma forma ou de outra! Que queria essa rapariga, gostaria de saber. Tivera um marido. Vira David Copperfield deixar o mundo; tivera um filho. Que mais desejava?

O senhor Dick fez‑me, às escondidas, um sinal de cabeça, como se considerasse aquele raciocínio irrefutável.

‑ Nem conseguiu ter outra criança ‑ continuou a tia. ‑ Onde está a irmã deste, a minha afilhada Betsey Trotwood? Não haveria perigo de que ela viesse ao mundo!

O senhor Dick parecia consternado.

‑ Esse mèdicozinho de pacotilha ‑ acrescentou a senhora Trotwood ‑ Jillips ou lá como é que se chama, que é que fazia? Tudo o que soube dizer nesse momento foi: «É um rapaz!» Um rapaz! Ah, que imbecis todos eles!

O ardor deste discurso apavorou o senhor Dick, e a mim também, para dizer a verdade.

‑ E depois ‑ insistiu a senhora Trotwood ‑ além de prejudicar a irmã deste pequeno, ainda por cima torna a casar‑se! Casa‑se com um qualquer e prejudica por seu turno este rapazinho! E a consequência natural (só ela para não prever isto) é que o transformou num vagabundo, um verdadeiro Caim antes de atingir a idade adulta.

O senhor Dick olhou‑me atentamente para ver se eu correspondia à descrição.

‑ E ainda essa mulher chamada Pagã, ou Peggotty, também se casa por sua vez, como se não tivesse visto os males que acompanham necessariamente um acto desses. Espero ao menos ‑ ajuntou a tia, oscilando a cabeça ‑ que o marido saiba pegar num atiçador e metê‑la uma vez por outra na ordem.

Afligia‑me ouvir falar assim da minha velha amiga Peggotty, e ripostei à caluniadora dizendo que a minha antiga criada era das pessoas mais fiéis, sinceras e desinteressadas deste mundo; que sempre estimara com a maior ternura; que fora muito dedicada à minha mãe, e até a sustivera, moribunda, no braço e dela recebera um beijo de gratidão. Ao lembrar‑me de ambas, a comoção sufocou‑me e foi entre lágrimas que declarei considerar a casa de Peggotty o meu lar, que tudo o que era seu meu era também, e que eu iria refugiar‑me lá se não fosse a sua condição modesta, que me coibia de lhe causar embaraços.

Com o choro, deixei tombar a cabeça na esquina da mesa e escondi a cara nas mãos.

‑ Está bem, está bem, tens razão em defender os que te protegeram ‑ observou a tia. E, em voz alta, acrescentou: ‑ Burros, Janet!

Estou convencido de que, sem esses burros inoportunos, chegaríamos a compreender‑nos, eu e a tia, pois ela colocara a mão no meu ombro; assim animado, senti qualquer coisa que me impelia a abraçá‑la e a pedir‑lhe protecção. Mas aquelas interrupções e a agitação em que a pôs a luta que se travava fora extinguiram por então qualquer pensamento mais terno. E a tia não cessou de dizer, indignada, dirigindo‑se ao senhor Dick, que estava disposta a pedir justiça aos tribunais, intentando processos por violação de propriedade aos donos de todos os burros de Dover. A coisa prolongou‑se até à hora do chá.

Depois desta refeição, ficámos perto da janela para espiar os possíveis invasores, até que caiu a noite e Janet trouxe velas e o tabuleiro do gamão. Em seguida correu os reposteiros.

‑ Agora, senhor Dick ‑ recomeçou a tia, com semblante grave e erguendo um dedo, como antes. ‑ Tenho outra pergunta para si. Olhe para este pequeno.

‑ O filho de David? ‑ disse aquele, com ar de atenção e embaraço.

‑ Precisamente. Que faria você, entretanto?

‑ Que faria eu do filho de David, é o que quer saber? Mandava‑o para a cama.

‑ Janet! ‑ gritou a tia com o mesmo tom de satisfação triunfante que já notara. ‑ O senhor Dick tem sempre razão. Se a cama estiver pronta, lá iremos levá‑lo.

Janet participou que sim e então fizeram‑me subir a escada, suavemente, mas um pouco à maneira de um preso: a senhora Trotwood ia à frente e Janet fechava o cortejo. A única circunstância que me incutiu esperança foi a tia haver parado nos degraus para inquirir donde vinha certo cheiro a queimado. Janet respondeu que acabara de lançar fogo, na cozinha, à minha camisa esgarçada e suja. Ora no meu quarto não havia outra roupa além da incrível vestimenta que eu envergava. E, depois de a tia me deixar ali, prevenindo‑me de que a vela, já muito consumida, só duraria cinco minutos, senti fechar‑se a porta à chave, pelo lado de fora. Reflectindo em tudo isto, deduzi que ela, nada conhecendo a meu respeito, concluíra que eu tinha o hábito de fugir e, consequentemente, tomava precauções para me conservar a bom recato.

O quarto ficava no último andar da casa, o que me agradou verificar. Dava para o mar, que o luar prateava. Após ter rezado, vi extinguir‑se o resto da vela, e fiquei sentado a contemplar o efeito dos raios da Lua na água, como se fosse um livro em que se pudesse ler o meu destino; ou como se devesse ver a minha mãe com o seu filhinho descer do céu e avançar por essa estrada cintilante, para me olhar ‑ como no dia em que eu surpreendera o seu rosto meigo pela derradeira vez. Lembro‑me como esta impressão solene foi substituída, quando desviei a vista, pelo sentimento de gratidão e de calma que me inspirava o espectáculo do leito de cortinados brancos; e, mais ainda, ao deitar‑me, pelo doce refúgio de lençóis imaculados! Recordo‑me também que pensei em todos os lugares solitários em que dormira ao ar livre, e pedi a Deus me fizesse mercê de nunca mais me achar sem abrigo nem de esquecer aqueles que o não têm. Em seguida afigurou‑se‑me que flutuava ao longo da esteira melancólica e luminosa traçada no mar, para me perder enfim no mundo dos meus sonhos.

 

A TIA TOMA UMA RESOLUÇÃO A MEU RESPEITO

De manhã, quando desci, encontrei a tia mergulhada em profundas meditações, diante da mesa do primeiro almoço, com o cotovelo no tabuleiro, de modo que a água da chaleira caía na toalha, ensopando‑a. A minha entrada fê‑la recair em si. Eu tinha a certeza de ser o tema dos seus devaneios e mais do que nunca fiquei ansioso quanto às suas intenções a meu respeito. Todavia não ousei exprimir os meus sentimentos com medo de a escandalizar. Como, porém, os meus olhos eram menos dóceis do que a língua, muitas vezes se poisaram no rosto da senhora Trotwood durante o tempo que durou o almoço. E sempre que a olhava, não podia deixar de ver que ela também me estava observando, de forma estranha e pensativa, como se eu me encontrasse a imensa distância e não a seu lado na mesinha de pé de galo. Acabado o almoço, reclinou‑se com ar decidido no espaldar da cadeira, enrugou a testa, cruzou os braços e contemplou‑me demoradamente, com tamanha atenção que experimentei um constrangimento insuportável. Como eu ainda não acabara de comer, disfarcei a perturbação continuando ocupado a mastigar; mas a faca embaraçava‑se no garfo, saltavam‑me a grande altura bocadinhos de presunto quando os queria cortar, sufocava‑me com o chá, que me dava no goto. Por fim achei preferível desistir e mantive‑me parado, com as faces a arder, sob o olhar perscrutante da tia Betsey.

Passado um bom momento, ela disse:

‑ Escuta.

Ergui a vista e sustive respeitoso a vivacidade dos seus olhos.

‑ Escrevi‑lhe ‑ declarou. ‑ Ao teu padrasto. Mandei‑lhe uma carta, que espero seja tomada em consideração. Caso contrário, teremos guerra aberta.

‑ Ele sabe onde eu estou? ‑ perguntei inquieto.

‑ Comuniquei‑lhe isso ‑ respondeu a tia, apoiando a frase com um gesto de cabeça.

‑ E vai... mandar‑me para lá? ‑ continuei, ainda mais Inquieto.

‑ Não sei. Veremos.

‑ O que será de mim, voltar para a companhia do senhor Murdstone! ‑ exclamei num desabafo.

‑ Não sei ainda. Por enquanto nada te posso dizer. Veremos.

A estas palavras a coragem abandonou‑me. Senti‑me abatido, de coração pesado. A tia, sem parecer reparar em mim, pôs um avental de tecido grosseiro, que tirou do armário, lavou ela mesma as xícaras, que pôs no tabuleiro, a que juntou a toalha, que dobrara, e tocou para que Janet viesse buscar tudo. Varreu em seguida as migalhas, com uma vassourinha (depois de haver calçado um par de luvas), até que se não viu no tapete o mínimo grão de poeira, e arrumou a sala, que aliás já estava cuidadosamente arrumada. Cumpridas que foram todas estas obrigações, tirou as luvas e o avental, dobrou‑o, e guardou este e aquelas outra vez no armário. Seguidamente trouxe a caixa de costura para a mesa pessoal do cantinho da janela aberta e começou a trabalhar por trás do anteparo verde que a protegia da luz.

‑ Queres fazer‑me um favor? ‑ disse ela, enquanto enfiava a agulha. ‑ Vai lá acima ao quarto do senhor Dick, dá‑lhe bons‑dias por mim e informa‑o de que eu gostaria de saber se o seu memorial vai adiantado.

Levantei‑me pressuroso para me desempenhar da incumbência.

‑ Suponho ‑ continuou, fitando‑me com tanta intensidade como à agulha que acabava de enfiar ‑ suponho que julgas o nome do senhor Dick muito abreviado.

‑ Assim pensei ontem, tia ‑ confessei.

‑ Não imaginas que o não tem completo, se lhe apetecer usá‑lo ‑ acrescentou a senhora Trotwood, com certa sobranceria. ‑ Chama‑se Richard Babley.

Ia ripostar, por um sentimento de modéstia, que estava pronto a tratá‑lo por esse nome completo; mas a tia logo atalhou:

‑ Contudo não o trates assim, porque ele não gosta. É uma das suas singularidades. Afinal, pensando bem, não é tão singular como isso. Deus sabe quanto o senhor Dick tem sofrido de parte das pessoas que usam aquele apelido! Daí a sua antipatia figadal. Ao presente é apenas Dick, aqui e por toda a parte, embora ele não vá a mais parte nenhuma. Tem, pois, cuidado meu filho, de não o chamares senão senhor Dick.

Prometi obedecer e subi ao outro piso para me desempenhar do encargo; de caminho pensei que, se o senhor Dick trabalhava há tanto tempo no seu memorial, com o ardor com que eu o vira fazê‑lo (através da porta aberta) quando descera a escada, o dito memorial devia realmente ir muito adiantado. Achei‑o à secretária, com uma pena comprida na mão e a cabeça quase colada ao papel. Estava ele tão absorto que tive tempo de observar um enorme papagaio voador, a um canto, maços de manuscritos em desordem, uma quantidade de penas e sobretudo grande provisão de tinta (parecia ter dúzias de frascos). Só depois é que reparou em mim.

‑ Ah! ‑ exclamou ele, descansando a pena. ‑ Vou‑lhe dizer uma coisa ‑ acrescentou, baixando a voz. ‑ Mas não o repita a ninguém.

Fez sinal para que me aproximasse e falou‑me ao ouvido:

‑ Este mundo é louco. Louco como o manicómio de Bedlam ‑ sentenciou, rindo satisfeito e servindo‑se de uma pitada de rapé, de uma boceta colocada na mesa.

Dei‑lhe conhecimento da minha missão sem me atrever a emitir opiniões pessoais acerca disso.

‑ Pois bem, rapaz, dê por mim cumprimentos à senhora Trotwood e diga‑lhe que... julgo fazer progressos ‑ concluiu o senhor Dick, passando a mão pelo cabelo e lançando um olhar desconfiado ao manuscrito, ‑ Frequentou o liceu?

‑ Sim, senhor, mas pouco tempo ‑ respondi.

‑ Lembra‑se ‑ ajuntou, olhando‑me com atenção e pegando na pena para escrever o meu esclarecimento ‑ em que data cortaram a cabeça ao rei Carlos I?

Disse crer que fora no ano de 1649.

‑ Ora bem ‑ volveu ele, roçando‑me a orelha com a pena e fitando‑me duvidoso ‑ isso é o que contam os livros, mas eu não percebo como é possível. Porque, se foi há tanto tempo, como se explica que as pessoas que o rodeavam cometeram o erro de transpor para a minha cabeça um pouco da confusão que havia na dele, após ter sido cortada?

Surpreendi‑me a valer com o problema, todavia não pude dar‑Lhe qualquer justificação aceitável.

‑ É muito estranho ‑ observou o senhor Dick, olhando desanimado para os seus documentos e tornando a passar a mão na cabeça. ‑ Mas nunca logrei tirar isto a limpo. Não há maneira, não há! Mas não importa ‑ acrescentou jovialmente, como se despertasse das suas meditações. ‑ Temos muito tempo. Dê cumprimentos à senhora Trotwood e diga‑lhe que isto avança.

Ia‑me embora quando ele me chamou a atenção para o papagaio de papel.

‑ Que lhe parece isto?

Repliquei que achava óptimo, e que devia ter pelo menos sete pés de altura.

‑ Eu é que o fiz. Nós dois pô‑lo‑emos a voar. Vê aqui? Mostrou‑me uma caligrafia miudinha e laboriosamente traçada no papel, mas tão nítida que, ao percorrer as linhas com a vista, me pareceu descobrir uma ou outra alusão ao rei Carlos I.

‑ Tem muita guita ‑ participou‑me ‑ e, quando sobe muito alto, proclama os factos a maior distância. É uma forma de difusão. Não sei onde eles podem cair, depende das circunstâncias, do vento, etc. Tento a minha oportunidade.

Era tão ingénua a sua fisionomia, tão simpática e respeitável, apesar da aparência de força e de vida, que eu não tinha a certeza de que, da sua parte, não fosse uma brincadeira inocente. Por isso comecei a rir, e ele fez o mesmo; separámo‑nos, pois, como os melhores amigos do mundo.

‑ Então, pequeno ‑ disse a minha tia, quando voltei ‑ que faz esta manhã o senhor Dick?

Referi que lhe mandava cumprimentos e que fazia progressos.

‑ Que pensas do senhor Dick? ‑ inquiriu a tia.

Procurei vagamente esquivar‑me a esta pergunta, retorquindo que o achara bem. Mas era impossível iludir a senhora Trotwood, que poisou a costura nos joelhos e replicou, cruzando os braços:

‑ Ora... A tua irmã Betsey Trotwood dir‑me‑ia imediatamente o que pensava fosse de quem fosse. Imita a tua irmã o melhor que puderes, e fala.

‑ Não será o senhor Dick... não será... Pergunto porque não sei, tia... Não terá a cabeça... um tanto desarranjada? ‑ balbuciei, pois sentia aventurar‑me num terreno escorregadio.

‑ Não a tem mesmo nada!

‑ Ah!‑volvi com voz fraca.

‑ Se há qualquer coisa no mundo que não esteja desarranjada, essa é a cabeça do senhor Dick ‑ asseverou a tia num tom enérgico e peremptório.

Não encontrei nada que dissesse senão o mesmo «Ah!».

‑ Consideraram‑no louco ‑ prosseguiu a senhora Trotwood. ‑ Tenho prazer em repetir isto, porque afinal a verdade é que gozo da sua companhia e dos seus conselhos há já dez anos, ou seja, desde que a tua irmã Betsey iludiu as minhas esperanças.

‑ Há já tanto tempo?

‑ E eram pessoas distintas essas que tiveram a audácia de o apodar de louco. O senhor Dick é meu parente por afinidade, mas afastado; não vale a pena explicar como. Se não fosse eu, o irmão punha‑o no manicómio para sempre. Ora aí está.

Não me agrada ser hipócrita, mas ao ver a tia tão acalorada neste assunto, esforcei‑me por fazer coro com ela, mostrando‑me igualmente indignado.

‑ Esse irmão é um estúpido orgulhoso ‑ afirmou a tia. ‑Achava o senhor Dick um tanto excêntrico... embora não o seja mais do que a maioria dos mortais... e ia interná‑lo, apesar de haver sido entregue ao seu cuidado pelo defunto pai, que o tinha apenas como um pobre de espírito. Esse pai é que era ajuizado, por pensar assim! Não passava de um louco, esse!

A senhora Trotwood tinha um ar tão convencido que eu tratei de compor um semelhante que incutisse a mesma convicção.

‑ Eu intervim ‑ continuou ela ‑ e fiz uma proposta. Disse‑Lhe: «O seu irmão está em perfeito juízo; tem‑no mais do que o senhor. Deixe‑o usufruir do seu pequeno rendimento e deixe‑o vir viver comigo. Eu, por mim, não o receio. Não o maltratarei como fazem certos indivíduos (não falo apenas dos do manicómio).» Depois de alguma discussão, entregaram‑mo e ele vive cá desde esse tempo, é de facto o homem mais amável e mais fácil de tratar. E quanto aos seus conselhos! Mas ninguém sabe o que vale o espírito deste homem, senão eu! Ele tinha uma irmã de quem era muito amigo: excelente criatura que só pecou por fazer o que as mulheres fazem: casou‑se! E o marido fez o que estes costumam fazer: tornou‑a infeliz. O caso produziu tal efeito no senhor Dick que, junto ao medo que o irmão lhe inspirava, o receio de ser maltratado pelo cunhado causou‑lhe uma febre cerebral. Isto passou‑se muito antes de vir morar nesta casa, mas a lembrança ainda o acabrunha. Ele falou‑te do rei Carlos I?

‑ Falou, sim, tia.

‑ Ah! ‑ exclamou ela, esfregando o nariz, como se levemente contrariada. ‑ É uma forma alegórica que o senhor Dick arranjou para evocar essa história. A doença está associada na sua mente a uma grande perturbação (o que é natural) e assim vem a comparação... a imagem ou lá que é... de que se serve para a definir. E por que não, se isso lhe agrada?

‑ Sim, senhora.

‑ Não é a linguagem dos negócios nem a da sociedade, bem sei, e eis a razão por que insisto com ele para que não aluda ao caso no seu memorial.

‑ É um memorial acerca da sua própria vida? ‑ perguntei.

‑ É, filho ‑ volveu a tia, esfregando outra vez o nariz. ‑ Compõe um memorial a respeito da sua situação, dirigido ao ministro da Justiça ou ao ministro de qualquer coisa, enfim a um desses sujeitos pagos para receberem memoriais. Creio que o enviará dentro de dias. Ainda não conseguiu redigi‑lo sem fazer alusão àquele caso... Mas não importa. Está ocupado.

Realmente descobri, com o tempo, que o senhor Dick se esforçava havia mais de dez anos por impedir que o rei Carlos I entrasse no seu memorial: este, porém, não deixava de aí se introduzir, e ainda lá estava.

‑ Repito que ninguém além de mim ‑ insistiu a tia Betsey ‑ sabe o que vale o espírito deste homem. Gosta de pôr a voar, de tempos a tempos, um papagaio de papel. E depois? Franklin fazia o mesmo. Era quacre ou coisa parecida, se não me engano. E um quacre que põe a voar um papagaio de papel é muito mais risível do que outro homem qualquer.

Se soubesse que a tia recapitulava estes pormenores para minha edificação pessoal ou para me dar uma prova de confiança, sentir‑me‑ia lisonjeado e acharia de bom agoiro esse testemunho de estima. Mas com dificuldade poderia deixar de ver que, se ela se lançava nessas explicações, era porque fazia a pergunta a si mesma, independentemente da minha pessoa, embora se me dirigisse na ausência de qualquer auditório.

Ao mesmo tempo devo dizer que a generosidade com que a senhora Trotwood defendia o pobre e inofensivo senhor Dick me não inspirava apenas esperanças egoístas a meu respeito mas despertava no meu coração sentimentos desinteressados quanto a ela. Creio que começava a persuadir‑me de que, apesar de todas as suas excentricidades e caprichos singulares, a tia Betsey merecia alguma deferência e confiança. Embora estivesse nesse dia tão alerta como na véspera, e que os burros fossem da mesma forma escorraçados; se bem que experimentasse violento acesso de indignação ao notar um rapaz que passara e piscara o olho a Janet, que estava a uma das janelas (o que constituía grave atentado à dignidade da senhora Trotwood), afigurou‑se‑me que sentia por ela, se não menos temor, pelo menos maior consideração.

Andei extremamente inquieto enquanto não chegava a resposta do senhor Murdstone à carta que a tia lhe escrevera. Fazia, porém, grandes esforços para dissimular e ser o mais possível agradável tanto a ela como ao senhor Dick. Eu devia sair com este para experimentarmos aquele gigantesco papagaio de papel, mas não tinha outro fato além do traje pouco dignificante de que me dotaram no primeiro dia, o que me fazia reter em casa, excepto para um passeio higiénico de uma hora que dava com a tia diante da vivenda, antes de me deitar, logo que principiava a anoitecer. Enfim, chegou a resposta do senhor Murdstone, e a tia participou‑me (o que me apavorou) que ele viria em pessoa no dia seguinte, para lhe falar. Nesse dia, pois, sempre vestido daquela maneira estranha, eu comecei a contar as horas, nervoso e febril, debatendo‑me entre fracas esperanças e receios crescentes. Previa o terror em que me lançaria a vista dessa personagem sinistra e tremia naquela expectativa ansiosa.

A tia estava um pouco mais severa e imperiosa que o costume, mas não observei nenhum outro sinal de que se preparasse para receber a visita que tanto me aterrava. Ficara a trabalhar junto da janela e eu permaneci à sua beira até uma hora avançada da tarde, pensando em todos os resultados possíveis e impossíveis da diligência do senhor Murdstone. O jantar atrasava‑se indefinidamente, até que a tia o mandou servir ‑ mas nesse momento deu um grito de alarme: «Burros, Janet», e eu vi, cheio de aflição, a senhora Murdstone montada num asno, atravessar deliberadamente o relvado proibido e parar diante da residência, sobre que circunvagava o olhar curioso.

‑ Siga o seu caminho! ‑ ordenou a tia, agitando, da janela, a cabeça e o punho. ‑ Não tem nada que fazer aqui! Isso é violação de propriedade. Descarada!

Estava de tal forma exasperada com a forma calma como a senhora Murdstone examinava tudo à sua volta, que na verdade acreditei não tardar a ficar paralisada e momentaneamente incapaz de proceder ao ataque, como de costume. Aproveitei o ensejo para lhe dizer que se tratava da senhora Murdstone e que o senhor que chegava nessa ocasião, logo atrás da delinquente, era o próprio Murdstone em carne e osso.

‑ Tanto me faz! ‑ replicou a tia, agitando sempre a cabeça e fazendo pela janela gestos pouco acolhedores. ‑ Não admito violação da propriedade. Vão‑se embora! Janet, expulsa‑os!

E então presenciei, escondido atrás da tia, uma cena de batalha renhida: o burro, solidamente estribado nas quatro patas, resistia a toda a gente. Janet puxava‑o pela rédea a fim de o fazer voltar, o senhor Murdstone procurava impeli‑lo para a frente, a irmã daquele dava à Janet pancadas com a sombrinha, e vários garotos, que tinham vindo assistir ao combate, soltavam gritos infernais. Mas a tia, reconhecendo entre os últimos o arrieiro da sua maior aversão, um dos inimigos encarniçados (se bem que só tivesse treze anos), precipitou‑se para o teatro da refrega, atirou‑se a ele e agarrou‑o. Depois trouxe‑o para o jardim, com a camisa repuxada para a cabeça e raspando o calçado no chão; ao mesmo tempo gritava à Janet que fosse chamar a polícia e o juiz, para o prender, julgar e executar imediatamente. Todavia esta fase da acção não durou muito, pois o birbante, que era perito em esquivar‑se (arte de que a minha tia ignorava as regras), depressa fugiu com um grito de vitória, deixando na relva a marca das botas ferradas e levando triunfalmente o seu burro.

Durante esta última parte da luta, a senhora Murdstone deixara a montada, e, com o irmão, esperava, no baixo da escada, que a senhora Trotwood tivesse oportunidade de os receber. Um pouco agitada ainda por aquele combate, a tia passou ao lado deles, com grande dignidade, entrou em casa e fingiu não os ver senão no momento em que Janet os veio anunciar.

‑ Vou‑me embora ou fico? ‑ perguntei trémulo.

‑ Fica ‑ respondeu a tia.

Com isto, empurrou‑me para um canto, à sua ilharga, e aí me aprisionou atrás de uma cadeira, como se eu estivesse no cárcere ou na teia de um tribunal. Continuei a ocupar esta posição durante toda a entrevista e foi assim que vi penetrar na sala os irmãos Murdstones.

‑ Oh! ‑ disse a tia Betsey ‑ eu não sabia a quem tinha a honra de dirigir recriminações. Mas é que não permito a ninguém que passe com um burro sobre a relva. Não abro excepções.

‑ Aí está uma norma pouco agradável para os visitantes ‑ observou a senhora Murdstone.

‑ Pois é!

O senhor Murdstone temeu que se reabrissem as hostilidades e interveio, exclamando:

‑ Minha senhora ...

‑ Perdão, cavalheiro ‑ retorquiu a dona da casa, lançando‑lhe um olhar penetrante. ‑ O senhor é aquele que casou com a viúva do meu defunto sobrinho David Copperfield, das «Gralhas», em Blunderstone? Não percebo o que fazem lá essas gralhas.

‑ Sou eu ‑ declarou o meu padrasto.

‑ Desculpe lhe diga que teria sido muito melhor que houvesse deixado essa pobre senhora tranquila.

‑ Estou de acordo com a opinião da senhora Trotwood ‑ acudiu a Murdstone, que não podia estar calada ‑ na medida em que acho que a pobre Clara não passava, nas coisas essenciais, de uma criança...

‑ É um consolo, minha senhora, para si e para mim, que avançamos na vida e não receamos que os encantos pessoais façam a nossa desgraça, que ninguém possa dizer outro tanto de nós.

‑ Sem dúvida! E, como diz, teria sido muito melhor para o meu irmão que jamais houvesse contraído semelhante casamento. Sempre fui desse parecer.

‑ Não duvido ‑ rematou a tia. Tocou a campainha e disse: ‑ Janet, dá os meus cumprimentos ao senhor Dick e pede‑lhe que venha cá.

Enquanto esperava, a tia Betsey conservou‑se direita, rígida, olhando para a parede com ar aborrecido. Depois de o senhor Dick chegar, ela procedeu à cerimónia das apresentações.

‑ O senhor Dick, um velho amigo, em cujo julgamento deponho toda a confiança ‑ acrescentou elevando a voz para chamar à ordem o apresentado, que mordia a unha do polegar numa atitude pouco espiritual.

O velhote, compreendendo a alusão, tirou o dedo da boca e ficou de pé no meio do grupo, enquanto o seu rosto exprimia crescente gravidade e atenção. A tia fez sinal de cabeça ao senhor Murdstone, que recomeçou:

‑ Quando recebi a carta, minha senhora, calculei que seria mais digno de mim e decerto mais respeitoso para si...

‑ Obrigada ‑ atalhou a tia, que o examinava sempre. ‑ Não se preocupe comigo.

‑ ... vir pessoalmente responder, apesar do transtorno da viagem. Essa infeliz criança, que fugiu do seio dos seus amigos e das suas ocupações...

‑ E cujo aspecto ‑ interrompeu a senhora Murdstone, para atrair a atenção geral para o meu traje escandaloso ‑ é tão deselegante...

‑ Jane ‑ acudiu o irmão ‑ faz o favor de não me interromperes. Esta infeliz criança, senhora Trotwood, foi causadora de muitos aborrecimentos e embaraços na nossa vida conjugal, durante a vida da minha querida mulher, e mesmo depois. É taciturno e revoltado, tem carácter violento, uma natureza indócil, intratável. Experimentámos, eu e minha irmã, corrigir‑lhe os vícios; nada conseguimos. Julguei, ou melhor, julgámos, porque a minha irmã, devo dizê‑lo, goza da minha inteira confiança, que seria mais conveniente que a senhora recebesse esta grave declaração feita directamente por nós, sem o mínimo rancor.

‑ Meu irmão não precisa do meu testemunho para confirmar as suas palavras ‑ disse a senhora Murdstone. ‑ Só lhe peço licença para acrescentar que, de todos os rapazes deste mundo, eu considero este o pior.

‑ E é dizer muito! ‑ comentou a tia Betsey, num tom seco.

‑ Vistos os factos, não é exagero ‑ respondeu a visitante.

‑ Tenho opiniões pessoais quanto à sua educação ‑ recomeçou o meu padrasto, cujo rosto se tornava mais sombrio conforme a tia e ele se observavam com maior atenção. ‑ Elas são fundadas em parte no que sei acerca do David e em parte no que sei a respeito dos meus meios e recursos. Enfim, actuo em consequência e não preciso de ajuntar mais nada. Basta‑me dizer que coloquei esse pequeno sob a vigilância de um dos meus amigos, numa casa de comércio muito digna. Mas não lhe agradou, e ele fugiu, errando pelos campos como um vagabundo. Chegou aqui andrajoso, minha senhora, e eu desejo pôr debaixo dos seus olhos, com toda a franqueza, os resultados concretos do socorro que tenciona prestar‑lhe.

‑ Mas falemos antes desse emprego numa casa muito digna ‑ interveio a tia. ‑ Se se tratasse do seu próprio filho, o senhor tê‑lo‑ia colocado lá?

‑ Se fosse filho do meu irmão ‑ acudiu a senhora Murdstone ‑, o seu feitio seria, espero, muito diverso.

‑ Ou então, se a pobre mãe fosse ainda viva, pô‑lo‑iam nesse mesmo lugar tão digno? ‑ insistiu a tia Betsey.

‑ Creio ‑ respondeu o senhor Murdstone ‑ que a Clara se não teria oposto ao que nós, eu e minha irmã, considerámos o melhor partido.

A senhora Murdstone corroborou estas palavras com um murmúrio suficientemente audível.

‑ Ah, que infeliz criatura, essa Clara!

O senhor Dick, que durante todo este tempo fizera tilintar dinheiro nos bolsos, tornou‑se tão indiscreto que a sua protectora achou necessário impor‑lhe silêncio com o olhar, antes de dizer:

‑ A pensão dessa pobre mulher caducou com ela?

‑ Sim, senhora ‑ replicou o meu padrasto.

‑ E a propriedadezinha, a casa e o jardim, não sei se das «Gralhas»... sem gralhas... não devia passar para o filho?

‑ Tudo isto lhe havia sido deixado sem condições pelo primeiro marido ‑ explicou a senhora Murdstone. Mas a minha tia interrompeu‑a com extrema impaciência e irritação:

‑ Meu Deus, não precisa dizê‑lo! Deixado sem condições... Sim, não vejo David Copperfield tão previdente que impusesse condições. Mas, quando ela tornou a casar, quando cometeu o erro espantoso de o tomar como segundo marido, senhor Murdstone, ninguém levantou a voz em favor desta criança?

‑ A minha defunta esposa amava‑me muito ‑ afirmou o senhor Murdstone ‑ e depositava em mim confiança absoluta.

‑ A sua defunta esposa era uma infeliz criança que não percebia nada da vida ‑ respondeu a senhora Trotwood, acompanhando as palavras com um movimento de cabeça. ‑ Era isso mesmo, senhor Murdstone. E agora, que tem mais para dizer?

‑ Simplesmente isto, minha senhora. Vim aqui para levar o David, sem condições, e fazer dele o que entender que é melhor e o tratar da maneira que me aprouver. Não vim fazer promessas nem tomar consigo qualquer compromisso. É possível que a senhora tenha a intenção de o apoiar na sua fuga e de lhe escutar as queixas. As suas maneiras, senhora Trotwood, permita que lhe diga, não me parecem conciliadoras. Pois bem: devo preveni‑la de que, se o apoiar uma vez, será para sempre; se intervier entre mim e ele, a sua intervenção será definitiva. Não estou a brincar, porque comigo não se brinca. Estou disposto a aceitá‑lo e levá‑lo, mas pela última vez. Estará ele pronto a acompanhar‑me? Se não estiver, se a senhora quer declarar que ele não está... sob qualquer pretexto que seja, não importa qual, a minha porta fechar‑se‑á para sempre e entenderei que a sua, minha senhora, está aberta.

A tia Betsey escutou este discurso com a maior atenção, mais empertigada do que nunca, de mãos cruzadas nos joelhos e olhar severamente fixo no seu interlocutor. Quando este acabou, ela voltou os olhos de modo a ver a senhora Murdstone, sem todavia mudar de atitude, e disse:

‑ E a senhora, tem alguma coisa a acrescentar?

‑ Realmente, senhora Trotwood, o que tínhamos que dizer foi tão bem apresentado pelo meu irmão, e todos os factos que conheço foram tão claramente expostos por ele, que só me resta agradecer a sua delicadeza. Na verdade, a sua extrema delicadeza, minha senhora ‑ repetiu a irmã do meu padrasto, com uma ironia que não perturbou mais a tia Betsey do que a teria perturbado o explodir do canhão sob o qual eu dormira em Chatham.

‑ E o interessado, que diz? ‑ perguntou a tia. ‑ Estás pronto para partir, David?

Informei‑a de que não e roguei‑lhe que não me deixasse fazê‑lo. Disse que o senhor Murdstone e a irmã nunca tinham gostado de mim, que nunca foram bons para mim. Que haviam tornado a minha mãe (tão minha amiga!) infeliz por minha causa; sabia‑o muito bem e Peggotty igualmente o sabia. Disse ainda que sofrera mais do que se podia crer, atendendo à minha pouca idade. Supliquei‑lhe (não me lembro já em que termos, só me recordo de que estava muito comovido) que me protegesse e me defendesse por amor do meu pai.

‑ Senhor Dick ‑ acrescentou a tia ‑ que se há‑de fazer desta criança?

O senhor Dick reflectiu, hesitou; então a cara iluminou‑se‑lhe e ele redarguiu:

‑ Mande‑o tirar medidas para um fato.

‑ Senhor Dick ‑ disse, triunfante, a tia Betsey ‑ o seu bom senso é inestimável.

Em seguida, tendo‑lhe dado um aperto de mão caloroso, puxou‑me para si e foi dizendo ao senhor Murdstone:

‑ Podem partir quando quiserem. Conservo este pequeno, correrei o risco. Se é como declararam, poderei, em todo o caso, fazer tanto por ele como os senhores fizeram. Mas não acredito uma só palavra do que disseram.

‑ Se a senhora fosse um homem... ‑ ripostou o meu padrasto, encolhendo os ombros e levantando‑se.

‑ Que disparate! ‑ volveu a tia. ‑ Cale‑se!

‑ Extrema delicadeza! ‑ exclama a senhora Murdstone, levantando‑se também. ‑ É de mais, francamente.

‑ Julga ‑ disse a tia, fingindo não ouvir a irmã de Murdstone e continuando a dirigir‑se a este e a sacudir a cabeça duma forma indescritível ‑ julga que não adivinho a existência que passou a infortunada mulher nas suas mãos? Julga que não sei que dia nefasto foi para a desgraçada criatura esse em que o senhor lhe apareceu pela primeira vez, sorridente e amável, como se fosse incapaz de fazer mal a uma mosca?

‑ Nunca ouvi nada de tão delicado! ‑ comentou a senhora Murdstone.

‑ Compreendo‑o muito bem ‑ prosseguiu a tia ‑ como se sempre o tivesse visto e ouvido. Ah, o senhor começou por ser o mais requintado deste mundo. A inocentinha nunca vira semelhante homem. Era a doçura em pessoa! Mostrava‑se encantador para com o filho. Seria para ele um segundo pai, viveriam todos no paraíso, hem? Ora adeus, deixe‑me em paz!

‑ Nunca na minha vida ouvi ninguém exprimir‑se deste modo ‑ desabafou a senhora Murdstone.

‑ E quando se apoderou daquela tontinha (Deus me perdoe falar assim de quem já lá está!), o senhor tratou de a moldar, como se não lhe tivesse feito bastante mal, a ela e aos seus! Começou a aprisioná‑la, como um passarinho, e, depois de a engordar, fê‑la despojar‑se a pouco e pouco, ensinando‑a a cantar no mesmo tom do senhor!

‑ Isso é loucura ou embriaguez! ‑ bradou a senhora Murdstone, furiosa por não poder estancar a corrente de palavras da minha tia. ‑ Mas suponho que é embriaguez!

Betsey Trotwood, sem fazer o mínimo caso desta interrupção, continuou a dirigir‑se ao senhor Murdstone.

‑ Tornou‑se o tirano dessa infeliz ‑ disse apontando‑lhe o dedo ‑ e esmagou‑lhe o coração. Era dócil, bem sei, sabia‑o muito antes que o senhor a conhecesse, e o senhor escolheu o seu ponto fraco para lhe infligir os golpes que a mataram.

Eis a verdade; quer lhe agrade ou não, aqui a tem para o seu governo. Façam agora o que quiserem, o senhor e os que foram os seus instrumentos.

‑ Dê‑me licença que pergunte ‑ atalhou a senhora Murdstone ‑ a quem se referia quando falou nos instrumentos do meu irmão.

Sempre sem lhe ligar importância, e sem dar sinal de escandalizada, a tia Betsey continuou:

‑ Saltava à vista, como disse, muitos anos antes que o senhor a conhecesse (e por que entrou nos planos misteriosos da Providência que esse conhecimento se verificasse, eis o que não entendo), saltava à vista, repito, que essa pobre criaturinha tão dócil voltaria a casar mais dia menos dia; mas eu esperava que não fosse tão desastrosamente. Foi na época em que ela deu à luz o pequeno que aqui está, este pequeno que lhe serviu, senhor Murdstone, para atormentar a mãe e que para si se tornou uma lembrança desagradável, um objecto odioso. Mas não vale a pena estremecer ‑ acrescentou a tia ‑, eu sei que digo a verdade.

O homem conservara‑se todo este tempo de pé, junto da porta, olhando atentamente para a dona da casa. Tinha um sorriso nos lábios e franzia o sobrecenho. Notei então que, sempre a sorrir, empalidecera de repente e que parecia ofegar como quem acabasse de correr.

‑ Passe muito bem ‑ concluiu Betsey Trotwood. ‑ Adeus igualmente, minha senhora ‑ ajuntou, virando‑se de súbito para a irmã do meu padrasto. ‑ Se a vir mais alguma vez passar de burro sobre a minha relva, arranco‑lhe o chapéu e espezinho‑o. Tão certo como estarmos aqui neste momento!

Seria preciso um pintor, e um pintor pouco vulgar, para reproduzir a fisionomia da senhora Trotwood enquanto expressava este sentimento tão inesperado, e a da senhora Murdstone, enquanto escutava a outra. Mas o tom do discurso, como o seu conteúdo, era tão fogoso, que a última, sem dizer palavra, tomou discretamente o braço do irmão e saiu de casa com ar sobranceiro. A tia, sempre na janela, viu‑os afastarem‑se, pronta, não duvido, a pôr em execução a sua ameaça, no caso em que o burro reaparecesse.

Todavia, como não houvesse nenhuma provocação, o rosto da tia suavizou‑se a pouco e pouco e ela ficou tão amável que me atrevi a agradecer‑lhe e a beijá‑la, passando‑lhe os braços de roda do pescoço. Em seguida apertei a mão do senhor Dick, que comentava o resultado do incidente com grandes gargalhadas.

‑ O senhor ficará a ser, juntamente comigo, tutor deste pequeno ‑ disse‑lhe Betsey.

‑ Terei muito gosto em ser tutor do filho de David ‑ respondeu ele.

‑ Muito bem ‑ replicou a tia ‑ a coisa está resolvida. Lembrei‑me agora de uma coisa, senhor Dick. Se lhe chamasse, a ele, Trotwood?

‑ Decerto, decerto. Chame‑lhe Trotwood. Trotwood, filho de David.

‑ Quer dizer Trotwood Copperfield?

‑ Sim, sem dúvida, Trotwood Copperfield ‑ repetiu o outro, um pouco desconcertado.

A tia ficou tão encantada com a ideia que a roupa já feita que me comprou nessa mesma tarde foi marcada com a sua própria mão, a tinta indelével com um «Trotwood Copperfield», antes de eu a vestir. E ficou combinado que o resto do fato, encomendado por medida, levaria a mesma marca.

Assim principiei a minha nova existência, com um nome novo e entre coisas que para mim eram todas novas. Uma vez fora de incertezas, julguei sonhar ainda por mais uns dias. Nem pensava que tinha um estranho par de tutores: a tia e o senhor Dick. Nunca pensava em nada distintamente. O que havia de mais claro no meu espírito era que a minha vida passada em Blunderstone se afastara bruscamente e que flutuava no vago a uma distância infinita, e também que acabava de descer um véu, e para sempre, sobre a vida que eu levara no armazém de Murdstone & Grinby. Ninguém jamais ergueu esse véu; e neste relato só o levantei de má vontade para o deixar cair de novo com o maior gosto. A recordação dessa existência é para mim dolorosa, tanto de sofrimento moral como de desespero, e nunca tive coragem de calcular quanto tempo tive de a suportar. Durou um ano, ou mais, ou menos? Não sei. Sei apenas que foi, depois cessou de ser, que a contei e não a evocarei mais.



 

[1]Membrana que cobre a cabeça do feto. Quando a criança a tem na ocasião de vir ao mundo, diz‑se que nasceu num fole, isto é que será feliz ‑ e que nunca se afogará.

[2]Hindu que afecta as maneiras e o modo de falar dos ingleses.

[3]Mulher de um cã.

[4]Ham, em inglês, corresponde ao português Cam ou Cão, um dos três filhos de Noé.

[5]Familiarmente, Topsawyer é um senhor de importância.

[6]Alusão ao prodigioso actor romano Quintus Roscius Gallus

[7]Experientia does it por experientia docet, trocadilho intraduzível.

                                                                                            

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O melhor da literatura para todos os gostos e idades