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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DAVID COPPERFIELD p4 / Charles Dickens
DAVID COPPERFIELD p4 / Charles Dickens

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DAVID COPPERFIELD

 

O SENHOR DICK REALIZA AS PROFECIAS DE BETSEY

Havia já algum tempo que eu deixara o doutor Strong; mas habitava no mesmo bairro e visitava‑o com frequência; por duas ou três vezes fomos a sua casa tomar chá ou jantar. O Veterano estabelecera‑se sob o tecto do genro; não mudara muito, e as mesmas borboletas imortais continuavam a oscilar‑lhe nas abas do chapéu. Semelhante a muitas outras mães que encontrei no decurso da minha existência, a senhora Markleham gostava mais de divertimentos do que a filha. Precisava de inúmeras distracções, e, como Veterano sagaz, fingia consagrar‑se à sua vergôntea quando afinal só consultava os seus gostos pessoais. O desejo que tinha Strong de que a mulher se distraísse era pois agradável a esta mãe excelente, que louvava sem reservas este bom discernimento conjugal. Aliás não duvido de que ela fizesse sangrar a ferida do doutor, sem o saber, tudo devido à sua frivolidade e egoísmo próprio da idade madura (de que, no entanto, não são inseparáveis). O certo é que o confirmou na ideia de que ele representava um estorvo para a mulher e de que não existia qualquer afinidade entre os esposos. Assim, aprovava imediatamente todas as sugestões tendentes a aligeirar o fardo que pesava na vida de Annie.

‑ Meu caro amigo ‑ disse‑lhe ela um dia ,, na minha presença ‑ você sabe muito bem que Annie acabará por se enfastiar de estar sempre aqui metida.

Indulgente, Strong fez um sinal afirmativo.

‑ Quando ela tiver a idade da mãe ‑ prosseguiu a senhora Markleham, agitando o leque ‑ então a coisa será diferente. A mim podem‑me encarcerar, uma vez que eu tenha parceiros simpáticos para uma partida de cartas. Mas não sou Annie, e Annie não é a mãe!

‑ Evidentemente ‑ corroborou o doutor.

‑ Você é o melhor dos homens. Sim, senhor ‑ ele fizera um gesto como para negar ‑ bem posso dizê‑lo à sua frente como o repito nas costas: é o melhor dos homens, mas... não tem os mesmos interesses da sua mulher.

‑ Decerto... ‑ volveu ele, melancólico.

‑ Pois é claro que não ‑ insistiu o Veterano. ‑ Vejamos, por exemplo, o dicionário. Que de mais útil haverá do que um dicionário? O significado das palavras! Sem o doutor Johnson ou outros deste género, nós estaríamos agora privados de dizer um termo no seu sentido exacto. Mas não se pode exigir que uma obra dessas interesse a Annie, sobretudo durante a sua feitura. Não acha?

Strong assentiu com um sinal de cabeça.

‑ Eis porque concordo plenamente com a sua solicitude ‑ concluiu a senhora Markleham, tocando‑lhe no ombro com o leque fechado. ‑ Isso prova, ao contrário de muita gente idosa, que não espera a dedicação excessiva das pessoas novas. Estudou o carácter de Annie e compreende‑o. É isto o que se me afigura adorável!

Pareceu‑me que o rosto do doutor Strong, apesar de toda a sua calma e paciência, deixava adivinhar a dor que tais cumprimentos lhe infligiam.

‑ Por isso, meu caro ‑ acrescentou o Veterano, acompanhando as palavras com pancadinhas afáveis do leque ‑ você pode dar‑me as suas ordens em qualquer altura. Estou inteiramente à sua disposição, pronta a acompanhar Annie à ópera, a um concerto, a exposições, a toda a parte. E nunca me verá cansada. O dever, meu amigo, antes de quaisquer outras considerações!

Cumpriu a promessa. Era uma dessas pessoas capazes de suportar todas as distracções, e a sua perseverança jamais recuou diante de qualquer. Raras vezes pegava no jornal sem aí descobrir algo que a filha pudesse apreciar, como espectáculo. A Annie pouco valia protestar de que já estava farta de tudo. A mãe retorquia‑lhe sempre:

‑ Não estás a ser sincera. E, além disso, deves corresponder à generosidade do teu marido.

Estas observações, feitas em geral diante do professor, constituíam para Annie a principal razão de renunciar às suas objecções. Resignava‑se a seguir a mãe para toda a parte onde o Veterano quisesse ir.

Poucas vezes Maldon as acompanhava. Dora e a tia Betsey eram às vezes convidadas a fazê‑lo, e aceitavam, ora uma ora outra, ou mesmo as duas. Noutro tempo a aquiescência de Dora causar‑me‑ia inquietação, mas reflectindo no que se passara no gabinete de Strong, naquela noite famosa, a minha desconfiança diminuiu. Achei que o doutor tinha razão, e as minhas suspeitas ficaram por aí.

Betsey coçava o nariz, quando estávamos sós, e afirmava‑me que não percebia nada. Gostaria, é claro, que esses esposos fossem mais felizes, e não acreditava que «a nossa amiga marcial» (como chamava ao Veterano, ou seja, à senhora Markleham) pudesse resolver o problema. E observava: «Se a nossa amiga marcial começasse por cortar as borboletas do chapéu e as desse aos limpa‑chaminés para o 1 de Maio, seria o seu melhor passo na senda da razão.»

No senhor Dick é que a tia depositava uma confiança constante. Este homem, dizia‑me ela, tem evidentemente a sua ideia, e «se conseguisse alguma vez deitá‑la cá para fora, haveria de se cobrir de glória».

Desconhecedor desta predição, Dick continuava nos mesmos termos com o professor Strong, sem avançar nem recuar. Um dia, porém, meses depois do meu casamento, ele enfiou a cabeça pela porta do quarto onde eu trabalhava só (Dora fora tomar chá com a tia Trotwood e as tias Spenlows) e disse‑me em tom misterioso:

‑ Não o incomodo com uma palavrinha, Trot?

‑ De maneira nenhuma, senhor Dick. Entre!

‑ Trot ‑ principiou ele, apoiando o dedo no nariz, depois de me haver apertado a mão ‑, antes de me sentar desejaria que me permitisse uma observaçãozinha. Conhece a sua tia?

‑ Mais ou menos.

‑ É a mulher mais extraordinária do mundo!

Assim aliviado com esta declaração, o senhor Dick sentou‑se com mais gravidade que usualmente e olhou para mim.

‑ E agora, meu filho, vou‑lhe fazer uma pergunta.

‑ Quantas queira ‑ respondi.

‑ Como me considera? ‑ inquiriu Dick, cruzando os braços.

‑ Como um velho amigo muito estimado.

‑ Obrigado, Trot ‑ replicou rindo e estendendo a mão, no seu entusiasmo. ‑ Mas quero dizer, meu filho: como me considera neste aspecto? ‑ E indicou a testa. Eu não sabia que retorquir, mas Dick sugeriu‑me a resposta. ‑ Débil?

‑ Não sei... Sim, talvez ‑ concluí, hesitante.

‑ Exactamente! ‑ acudiu ele, que parecia satisfeito com a minha opinião. ‑ Quer dizer que... no dia em que me tiraram da cabeça os cuidados... há cerca de... ‑ Aqui Dick fez girar as mãos, rapidamente, uma em torno da outra, o que repetiu várias vezes, para exprimir confusão. ‑ Foi o que se produziu em mim, hem? ‑ Anuí, com um gesto, e ele prosseguiu: ‑ Enfim, meu filho, sou um pobre de espírito. ‑ Isto foi proferido em voz mais baixa.

Eu ia fazer reservas a essa dedução, mas Dick impediu‑mas.

‑ Sim, sim, é verdade. Ela entende que não, porém é a pura verdade. Sei‑o bem. Se ela não tivesse tomado o meu partido e me não recolhesse durante todos estes anos, eu haveria levado uma vida miserável. Mas possuo para as minhas necessidades. Não toco no que me rendem as minhas cópias, ponho guardado numa caixa. Fiz testamento, em que lhe deixo tudo. Será rica e poderosa!

O senhor Dick exibiu o lenço e enxugou os olhos. Depois dobrou‑o com cuidado, achatou‑o entre as mãos, tornou a metê‑lo na algibeira e pareceu então afastar a minha tia dos pensamentos.

‑ É rapaz sensato, Trot ‑ disse o senhor Dick. ‑ Sabe como o doutor Strong é pessoa erudita. Sabe a honra que me concede com a sua condescendência. Não é orgulhoso, apesar de sábio: chega a ser humilde diante deste pobre Dick, que é tão simplório e ignorante. Escrevi o nome dele num bocado de papel, que enfiei na guita do meu papagaio e ele subiu até às alturas em que este pairava no meio das aves. Até o céu se tornou mais azul!

Ficou felicíssimo quando observei que o doutor Strong merecia aquela homenagem.

‑ E a mulher, tão bela, é uma estrela ‑ continuou. ‑ Uma estrela cintilante. Vi‑a brilhar, meu filho, mas... ‑ aproximou a cadeira e colocou‑me a sua mão no joelho ‑ ... há nuvens, há muitas nuvens!

‑ Que nuvens? ‑ indaguei.

Dick olhava‑me com tanta ansiedade que diligenciei compreender e respondi‑lhe tão devagar e distintamente como se desse explicações a uma criança:

‑ Existe entre eles um mal‑entendido lamentável. É um segredo. Talvez seja consequência fatal da diferença de idades. Talvez, na origem, fosse apenas uma coisa insignificante...

Dick, que absorvia cada uma das minhas frases, ficou silencioso um momento e fitou‑me com ar meditativo, sempre com a mão no meu joelho.

‑ O doutor não está zangado com ela, pois não? ‑ perguntou ao fim de um instante.

‑ Não. Adora‑a.

‑ Então já sei ‑ exclamou Dick.

Ao ver o júbilo repentino com que ele me deu uma palmada e se reclinou na cadeira, erguendo as sobrancelhas tão altas quanto possível, julguei‑o mais louco do que nunca.

Mas, subitamente, tornou‑se grave e, inclinando‑se outra vez para a frente, disse‑me depois de haver tirado novamente o lenço, com ar respeitoso, como se esse lenço representasse de facto a minha tia:

‑ É a mulher mais extraordinária deste mundo. Como se explica que ela não tenha ainda composto as coisas?

‑ Trata‑se de um caso difícil e muito delicado para que alguém interfira.

- E este grande sábio ‑ prosseguiu Dick, apontando‑me com

o dedo ‑, por que não fez nada também?

‑ Pela mesma razão.

‑ Então já sei! ‑ repetiu, erguendo‑se à minha frente mais triunfante do que nunca se mostrara. Sacudiu a cabeça e bateu no peito com tanta insistência que julguei ir‑lhe faltar a respiração.

‑ Um pobre diabo um tanto desassisado, um inocente, um pobre de espírito ‑ de novo bateu no peito ‑ é capaz de fazer o que não se atrevem a obrar criaturas mais conceituadas. Eu os reconciliarei, meu filho. Vou tentar. Não me quererão mal, a mim. Não se zangarão comigo. Pouco se importarão se eu lhes disser tolices. Sou apenas o senhor Dick. E quem se rala com o senhor Dick? Ninguém! Puf! ‑ E assoprou como para fazer desaparecer a sua modesta pessoa.

Foi bom que chegasse a esse ponto das suas revelações, porque na mesma ocasião ouvimos parar à cancela do jardim a carruagem que trazia Dora e a tia Betsey.

‑ Nem uma palavra! ‑ recomendou‑me, num sussurro. ‑ Que seja só Dick metido no caso, Dick o simplório, o louco. Há algum tempo que tinha a impressão de que isto aconteceria. Depois do que me disse, meu filho, estou absolutamente certo.

Realmente, não deixou escapar mais nada acerca deste assunto; mas durante meia hora fez‑me accionados de género telegráfico (que provocaram perturbação no espírito da senhora Trotwood) para me impor o silêncio mais completo.

Com grande surpresa minha, não tornei a ouvir falar do assunto nas duas ou três semanas seguintes, ainda que eu tomasse muito interesse pelo resultado dos seus esforços, pois notara nas conclusões um clarão de bom senso (para não falar dos bons sentimentos, sempre activos no senhor Dick). Acabei por acreditar que ele abandonara o projecto, por leviandade e instabilidade de ideias.

Um dia em que Dora não tivera vontade de sair, fui com a tia Betsey, em passeio, até à casa do doutor Strong. Estávamos no Outono, estação em que as sessões do Parlamento não perturbam a paz da tarde; e recordo‑me de que o cheiro das folhas que calcávamos aos pés me fazia evocar Blunderstone, e que a velha sensação das minhas desventuras pareceu passar nos suspiros do vento.

Caía a noite quando lá chegámos. A senhora Strong acabava de deixar o jardim, onde o senhor Dick se azafamava ainda a podar com o jardineiro. O doutor estava com alguém no escritório, mas a mulher explicou‑nos que a visita seria breve e pediu‑nos que esperássemos para falar com o marido. Entrámos com ela na sala e instalámo‑nos junto da janela de persianas corridas. Recebiam sem cerimónia os amigos velhos e os vizinhos como nós.

Mal haviam decorrido uns minutos quando a senhora Markleham, que achava sempre ocasião de complicar as coisas, entrou de escantilhão, exibindo o jornal, e exclamou ofegante: ‑ Annie, por que não me disseste que estava gente no escritório?

‑ Mamã ‑ respondeu a senhora Strong, sem se perturbar ‑ como podia eu adivinhar que isso lhe interessava?

‑ Interessar‑me! ‑ repetiu o Veterano, deixando‑se cair no sofá. ‑ Acabo de receber a maior comoção da minha vida!

‑ Então vem do escritório, mamã?

‑ Pois é claro que sim! E surpreendi o meu genro... imagine, senhora Trotwood, e você, David... a fazer o seu testamento!

A filha, que olhava pela janela, voltou bruscamente a cabeça.

‑ Sim, querida Annie ‑ insistiu a senhora Markleham, colocando o jornal sobre os joelhos, como uma toalha, e dando‑lhe pancadinhas com as duas mãos. ‑ A fazer o seu testamento! Que previdência a sua e que prova de amor! Devo contar‑te tudo com pormenores. É necessário. Presto assim justiça a esse homem admirável. Admirável, sim. Não sei se sabe, senhora Trotwood, que nesta casa não se acende uma vela antes que escureça de vez. Foi o que me atraiu ao escritório, onde vi luz. Abri a porta e descobri Strong na companhia de dois homens de leis, segundo depreendi da sua aparência. Estavam todos três de pé, de roda da mesa. O nosso doutor, com a pena na mão, dizia: «Isto é a prova»... ouve bem, Annie, são palavras suas... «da confiança que tenho em minha mulher, a quem lego tudo sem condições». Ouvindo isto, com o alvoroço natural numa mãe, exclamei:  «Meu Deus!  Peço desculpa!» e fugi pelo corredor adiante.

A senhora Strong abriu a janela (que também servia de porta) e saiu para a varanda, apoiando‑se a um dos pilares.

‑ Ora diga‑me, senhora Trotwood, diga‑me, David ‑ continuou o Veterano, que seguira maquinalmente a filha com os olhos ‑ não é consolador ver um homem da idade do doutor achar força de ânimo suficiente para fazer uma coisa destas? Isto prova que eu tinha carradas de razão. Quando o doutor Strong me foi visitar e me pediu a mão de Annie em casamento, eu observei a esta: «Quanto a mim não ponho qualquer dúvida de que ele fará por ti mesma mais do que se comprometeu a fazer.»

Neste comenos tocou a sineta e ouvimos os passos das visitas, que se afastavam.

‑ Deve estar tudo concluído ‑ notou a senhora Markleham, depois de haver apurado o ouvido. ‑ O simpático doutor assinou o seu testamento e pô‑lo nas mãos do notário. Agora tem o espírito sossegado, e bem merece. Que grande espírito! Annie, minha filha, vou ao escritório, com o jornal, e averiguarei tudo. Senhora Trotwood, David, peço‑lhes, venham também.

Tive a impressão de que o senhor Dick se encontrava no corredor, quando a acompanhámos, e que a minha tia, pelo caminho, esfregava violentamente o nariz, a fim de aliviar, sem ruído, a irritação que lhe causava a «nossa amiga marcial»; mas quem entrou em primeiro lugar no escritório, como é que a senhora Markleham tomou posse da sua poltrona ou como é que eu e a tia Betsey ficámos perto da porta, isso tudo esqueci, se é que realmente cheguei a saber.

O que sei é que vimos o doutor antes que ele nos visse, sentado à secretária, no meio dos livros que tanto amava, e com o rosto pálido apoiado à mão. No mesmo instante vimos a mulher deslizar na sala, pálida também e trémula, pelo braço do senhor Dick ‑ que poisou a mão livre no braço de Strong. Este ergueu a cabeça com ar ausente, e, no momento em que fazia esse movimento, Annie caiu de joelhos a seus pés: erguendo para ele as mãos súplices, fitou‑o com um olhar que jamais olvidarei.

Vendo isto, a senhora Markleham largou o jornal e arregalou tanto os olhos que não acho melhor comparação do que dizer que se assemelhou à figura de proa de um navio cujo nome fosse Surpresa.

Ao relatar estes factos, ainda tenho presente a doçura do professor e a sua admiração, a dignidade que conservava a mulher na sua atitude impetrante, a solicitude amável do senhor Dick e a convicção com que a tia Betsey murmurou, pensando nos benefícios com que até aí o cumulara: «E este homem é um louco!»

‑ Annie! Levanta‑te! ‑ ordenou o marido. E ela então disse:

‑ Peço que ninguém saia daqui sem que ele, rompendo o silêncio com que esconde a sua generosidade, declare a todos o que houve entre nós.

A senhora Markleham, recuperando enfim o uso da fala, inchada de orgulho maternal e ao mesmo tempo de indignação, exclamou:

‑ Annie, põe‑te de pé imediatamente e não cubras a família de vergonha humilhando‑te desse modo, salvo se resolveste tirar‑me o juízo.

‑ Mamã ‑ respondeu Annie ‑ não perca o tempo com palavreado. Faço apelo ao meu marido, e a senhora, neste momento, nada tem que fazer aqui.

‑ Nada tenho que fazer aqui? ‑ repetiu a mãe. ‑ Esta rapariga endoideceu. Tragam‑me um copo de água!

Eu estava muito ocupado com o doutor e a mulher para satisfazer aquele pedido, que também não impressionou mais ninguém. E a senhora Markleham continuou a ofegar, a rebolar os olhos e a abanar‑se com o leque.

‑ Annie ‑ disse o professor, tomando‑lhe ternamente a mão entre as suas. ‑ Minha querida! Se na nossa vida conjugal se produziu a pouco e pouco uma alteração, a culpa não foi tua, foi minha, minha unicamente. O meu afecto não mudou, nem a minha admiração e respeito. Quero fazer‑te feliz. Amo‑te e respeito‑te profundamente. Levanta‑te, Annie, por favor!

Ela, porém não se mexeu. Depois de o haver contemplado um momento, arrastou‑se mais para ele, pôs‑lhe o braço nos joelhos e, aí apoiando a testa, respondeu:

‑ Se tenho aqui um amigo que possa dizer uma palavra neste assunto, um amigo capaz de formular as dúvidas que o meu coração me segreda às vezes, um amigo que respeite o meu marido e conheça seja o que for susceptível de nos ajudar ao entendimento mútuo, eu suplico a esse amigo o favor de se manifestar. Seguiu‑se um silêncio profundo. Após instantes de hesitação constrangida, quebrei‑o declarando:

‑ Senhora Strong, há uma coisa que eu sei, uma coisa que o doutor me pediu encarecidamente que ocultasse e de que nunca falei até agora. Mas creio ter chegado a hora em que seria má compreensão da palavra dada continuar calado, pois acho que é o momento de me desobrigar da promessa.

Annie voltou o rosto para mim e eu convenci‑me de que tinha razão. Aliás era‑me difícil resistir a esse rogo mudo, ainda mesmo que a persuasão do meu direito fosse menos convincente.

‑ A nossa paz futura talvez esteja nas suas mãos ‑ disse ela. ‑ Confio em que não me esconderá nada. Sei de antemão que tudo quanto possa fazer me provará sempre o nobre coração do meu marido. De qualquer maneira que isso me atinja, não importa, eu falarei depois por mim, diante dele e diante de Deus.

Perante um requerimento desta ordem, não solicitei autorização do professor. Sem deformar a verdade, apenas o necessário para diminuir a grosseria de Uriah Heep, contei o que se havia passado uma noite naquela mesma sala. Seria impossível descrever a expressão da senhora Markleham durante o meu relato e as exclamações pungentes com que ela o sublinhou.

Quando acabei, Annie permaneceu uns segundos silenciosa, de cabeça curvada; em seguida pegou na mão do marido (sentado ainda na mesma atitude de quando entráramos), premiu‑a contra o peito e beijou‑a. O senhor Dick foi ajudá‑la a erguer‑se e Annie recomeçou, apoiando‑se a este e olhando para Strong, de quem nunca desviara a vista.

‑ Vou revelar, diante de todos, o que senti desde o meu casamento ‑ disse em voz baixa, terna e respeitosa. ‑ Não poderia viver mais se conservasse só para mim o mínimo pormenor, sabendo o que sei agora.

‑ Annie ‑ atalhou Strong com doçura ‑ jamais duvidei de ti, minha querida. Isso não é necessário.

‑ É, sim! ‑ replicou a mulher no mesmo tom. ‑ Convém pôr o meu coração a descoberto diante do homem tão generoso e fiel que, de ano para ano e de dia para dia, vim amando e venerando mais. Deus é testemunha.

‑ Ora essa ‑ contraveio a senhora Markleham ‑ se eu tenho algum direito...

‑ Não tem nenhum direito ‑ objectou a minha tia, indignada, mas em voz sumida.

‑ ... de observar que é perfeitamente supérfluo entrar em semelhantes minúcias...

‑ Só o meu marido pode ser juiz nesta matéria, mamã ‑ respondeu Annie, sem desviar os olhos da cara do doutor. ‑ E ele escutar‑me‑á. Fui a primeira a sofrer, e por muito tempo...

‑ Essa agora! ‑ balbuciou a senhora Markleham.

‑ Quando eu era muito nova ‑ prosseguiu a filha ‑ tive um amigo e mestre, cuja lembrança está ligada aos meus primeiros conhecimentos. Era um amigo cheio de paciência, íntimo de meu pai, e para mim sempre querido. Tudo quanto sei a ele o devo. Adornou‑me a inteligência com os primeiros tesouros e imprimiu‑lhe o seu espírito. Creio que não seriam tão preciosos se os houvesse recebido de outrem.

‑ A mãe não fez nada, hem?

‑ Fez, mamã, mas o seu a seu dono. Conforme cresci, guardei no coração a sua imagem. Orgulhava‑me do interesse que esse homem me dispensava. Sentia‑me ligada a ele por todos os laços da afeição e do reconhecimento. Considerava‑o... como direi?... um pai, um director espiritual, cujas opiniões tinham maior valor para mim do que todos os elogios do resto do mundo, e em quem depositaria fé e confiança mesmo que duvidasse de toda a gente. A mamã sabe quanto eu era ainda nova e inexperiente na ocasião em que me apresentou de súbito um candidato à minha mão...

‑ Repeti‑o pelo menos cinquenta vezes a todos os que aqui estão ‑ declarou a senhora Markleham.

‑ Então cale‑se ‑ resmungou a minha tia ‑ e não o diga mais.

‑ Seria tão grande mudança ‑ prosseguiu Annie ‑ tão grande perda que fiquei perturbadíssima. Não passava de uma criança! Teria de considerar de maneira diferente aquele para quem durante tanto tempo erguera o olhar cheia de veneração. Mas fiquei tão envaidecida com a sua escolha que aceitei, e assim nos casámos.

‑ Em St. Alphage de Cantuária ‑ recordou a mãe.

‑ E não se cala! ‑ disse a tia Betsey em voz baixa, com azedume. ‑ Diabos a levem!

‑ Nunca pensei ‑ continuou Annie, ruborizando‑se ‑ nas vantagens materiais que o meu marido me traria. No meu coração juvenil não havia lugar para preocupações tão mesquinhas. Mamã, desculpe se lhe recordo, mas foi a primeira a dar‑me a entender que alguém me poderia lesar, tanto a mim como a ele.

‑ Eu? ‑ exclamou o Veterano.

‑ Sim, você, com certeza ‑ murmurou a tia Betsey ‑ e esse leque não altera nada, minha amiga marcial.

‑ Foi a primeira tristeza da minha vida, a causa primária de todos os momentos de melancolia que conheci. Esses instantes de depressão desde há algum tempo que se têm multiplicado, mas não, meu generoso amigo, pela razão que julgas. Não albergo na alma nem um só pensamento, saudade ou esperança que não venha de ti.

Alçou o olhar e uniu as mãos. Não creio que um anjo fosse mais belo nem mais sincero. O doutor fitou‑a com tanta intensidade como Annie fazia a ele.

‑ A mamã nunca pediu nada para si, pelo que não pode ser censurada, nem sequer nas suas intenções. Mas, quando vi todas as solicitações que te faziam em meu nome, a exploração a que sujeitavam o amor que me dedicavas, a irritação que sentia o doutor Wickfield na sua amizade sincera por ti, compreendi que me expusera à desconfiança de haver vendido o meu amor e de o ter vendido, a ti! Vi‑me acabrunhada sob o peso de uma vergonha imerecida, a qual te obrigava a partilhar. Não conseguirei exprimir, e a mamã não pode imaginar, o sofrimento que para mim foi este receio, este cuidado contínuo, quando no íntimo eu bem sabia que desde o casamento consagrara a ti a felicidade e a dignidade da minha vida.

‑ Aí está a gratidão que se pode esperar ‑ observou a senhora Markleham, lamurienta ‑ depois de se concorrer para o bem da família.

‑ Foi então que a mamã começou a importunar‑te por causa do meu primo Jack Maldon. Afeiçoara‑me muito a ele ‑ Annie falava em voz baixa, mas sem a menor hesitação ‑ e, na infância, brincáramos aos namorados. Noutras circunstâncias, persuadír‑me‑ia naturalmente de que o amava e tê‑lo‑ia desposado, para minha desgraça. Não poderia haver maior disparidade num casamento, tão incompatíveis somos em tudo.

Estas últimas palavras fizeram‑me meditar, como se possuíssem um interesse especial ou qualquer aplicação mal definida. Ela, porém, continuou:

‑ Nada tínhamos de comum. Há muito tempo que me convenci disto. Se não existissem outras razões da minha gratidão para com Strong (e elas existem em abundância) bastaria esta de me evitar a consumação do primeiro impulso enganador de um coração indisciplinado.

Annie estava de pé, Imóvel diante do marido, e a sua gravidade inculcava não sei quê de impressionante, embora se exprimisse sempre com muita calma.

‑ Enquanto Jack esperava ser objecto das tuas liberalidades, generosamente consentidas pelo amor que me dedicavas, e eu me sentia infeliz pelo papel mercenário que me obrigavam a desempenhar, quanto mais digno seria que ele se desenvencilhasse sozinho das suas dificuldades! No seu lugar, era o que eu faria, por maiores privações por que tivesse de passar. Mas não o desprezava por isso, até ao dia do seu embarque para a índia. Nessa ocasião, compreendi que era pérfido e ingrato, e qual a ideia que inspirava a atenção com que me observava o doutor Wickfield. Tive, pela primeira vez, a intuição das suspeitas que pesavam sobre mim.

‑ Suspeitas, não, Annie!

‑ No teu espírito talvez que não, meu amigo. Quando te procurei naquela noite, para depor diante de ti o meu fardo de dor e vergonha; quando percebi que mais valia confessar que sob o teu tecto um dos meus parentes (de quem eras benfeitor, para me seres agradável) ousara dizer palavras que nunca deviam ser proferidas, ainda que eu fosse a pessoa venal que ele supunha, então senti‑me revoltar contra a ignomínia que significava semelhante declaração. Essa fala expirou‑se‑me nos lábios e jamais até hoje os transpôs.,

A senhora Markleham recostou‑se na poltrona, com um gemido breve, e escondeu a cara no leque, como se resolvida a permanecer oculta o resto do tempo.

‑ Nunca mais, depois disso, troquei com ele uma palavra, senão na tua presença, e apenas para evitar explicações, passaram‑se anos desde que soube, da minha boca, qual era aqui a sua situação. A bondade que lhe manifestavas às ocultas e que depois me contavas, para me fazer surpresa e dar prazer, só serviu, como deves supor, para tornar mais penoso e mais pesado o segredo da minha vida.

Deixou‑se escorregar lentamente aos pés do marido, apesar dos esforços que este fez para a impedir, e recomeçou, mirando‑o com os olhos cheios de lágrimas:

‑ Não fales ainda! Deixa‑me acrescentar alguma coisa mais. Com ou sem razão, se tivesse de principiar, faria exactamente o mesmo. E todavia mal podes imaginar o que foi o meu sofrimento. Supunham que o meu coração era venal, e as aparências confirmavam tal suspeita. Eu era demasiado nova e não tinha ninguém que me aconselhasse. Entre mim e a minha mãe havia, no que respeitava à tua pessoa, um abismo profundo. Se me calei, ocultando a mágoa que me torturava, era pelo respeito que te devia e que desejava me fosse retribuído.

‑ Annie, minha querida Annie! ‑ murmurou o doutor.

‑ Um pouco ainda, só mais umas palavras. Pensava que poderias ter casado com outra rapariga qualquer, que não te expusesse a estes percalços e te constituísse um lar digno de ambos. Achava que mais valera ter ficado tua aluna e quase tua filha. Assustava‑me a ideia de me sentir tão pouco merecedora de um homem como tu. Se protelei esta confissão, foi pelo respeito que te tributava e na esperança de que, um dia, me respeitasses do mesmo modo.

‑ Esse dia raiou há muito, Annie, e só a noite eterna lhe porá termo ‑ respondeu Strong.

‑ Ainda não acabei. Decidi em seguida, e fiz juramento, suportar todo o opróbrio daquele que tu cumularas de benefícios. E agora, para terminar, meu querido, meu melhor amigo: acabo de compreender a razão da mudança que havia notado em ti ultimamente. Ela causara‑me tanta apoquentação, tanta dor!

Mas atribuíra tudo ora às minhas velhas preocupações, ora a vagas suspeitas mais próximas da verdade. Por acaso, soube também esta noite toda a amplitude da nobre confiança que depositavas em mim, a despeito deste mal‑entendido. Não posso esperar que todo o amor e respeito que te concederei em retribuição me tornem digna da tua preciosa confiança; mas, fortalecida por tudo o que me foi dado ouvir, é‑me lícito erguer os olhos para o teu rosto amado, que eu venero como o de um pai e adoro como o de um marido; desde a infância me habituei a considerar‑te um amigo, e declaro‑te solenemente que, mesmo nos meus pensamentos mais frívolos, jamais te causei qualquer mal, nunca faltei ao amor e fidelidade que te devo.

Tinha passado os braços derredor do pescoço de Strong, que nela apoiou a cabeça, misturando os cabelos grisalhos aos caracóis castanhos da mulher.

‑ Guarda‑me junto do teu coração ‑ pediu ela. ‑ Nunca me abandones. Não tornes a falar de disparidade entre nós, pois só existe aquela que se compõe das minhas imperfeições. O meu amor tem crescido todos os anos, e, como está alicerçado sobre rocha, durará perpetuamente.

No silêncio que se estabeleceu, a minha tia avançou gravemente para o senhor Dick, sem se apressar nada, e cingiu‑o ao peito dando‑lhe ao mesmo tempo um beijo. Creio que foi uma felicidade para o prestígio dele a senhora Trotwood achar‑se ali, pois bem me palpitou que o nosso Dick, no cúmulo da alegria, se preparava para saltar na sala a pé coxinho.

‑ É um homem notável, Dick ‑ disse a tia Betsey, com ar de profunda admiração. ‑ E não me contrarie, porque eu o conheço muito bem! ‑ Assim falando, puxou‑me pelo casaco e nós três saímos do quarto sem ruído. Pelo caminho, acrescentou: ‑ Em todo o caso, calou o bico à nossa amiga marcial. Isto basta para me fazer dormir sossegada, ainda que não houvesse mais nada que me regozijasse.

‑ Receio que ela ficasse acabrunhada ‑ respondeu o senhor Dick, em tom condoído.

‑ O quê? Um crocodilo acabrunhado? ‑ volveu a tia. ‑ É uma coisa que nunca vi.

‑ Eu nem sequer jamais vi um crocodilo ‑ rematou o senhor Dick.

‑ Nunca teriam sucedido estas complicações se não fosse essa criatura ‑ declarou a tia, cheia de convicção. ‑ Bom seria que certas mães deixassem as filhas em paz, depois de as casarem, sem lhes testemunhar afecto tão excessivo. Imaginam que, tendo dado ao mundo uma infeliz (que não teve culpa de nascer), lhes assiste o direito de a atormentar mortalmente. Não te parece, Trot?

Eu pensava em tudo o que ouvira. Algumas expressões ainda me ressoavam na cabeça. Casamentos desventurados por incompatibilidade de génios... o primeiro impulso ilusório de um coração indisciplinado... Amor alicerçado numa rocha... Chegávamos, porém a casa. As folhas secas, que os nossos pés calcavam, revestiam o chão, arrastadas pelo vento do Outono.

 

COMPREENSÃO

Eu devia estar casado há cerca de um ano, se a minha fraca memória não falha, quando, ao voltar certa noite de um passeio solitário, pensando no livro que andava a escrever (o êxito bafejara‑me e o meu primeiro romance ocupava‑me o espírito), passei defronte da casa da senhora Steerforth. Isto acontecia‑me muitas vezes desde que habitava na vizinhança, embora o evitasse, se me fosse possível tomar outro caminho (o que me obrigava a grandes desvios); por isso, com frequência me via diante do prédio em que ela morava.

Limitei‑me a lançar uma olhadela, ao mesmo tempo que estugava o passo. A casa estava sempre com ar triste, sombrio; nenhuma das salas dava para a estrada, e as velhas janelas estreitas, de vidraças sólidas, fechadas, pareciam particularmente tenebrosas, se bem que nunca inculcassem júbilo. Havia um corredor coberto, através de um pátio pavimentado, mas dessa entrada nunca ninguém se servia. Existia também, para iluminar a escada, uma fresta oval, a única que não tinha cortina e partilhava, com o resto, do mesmo ar de abandono. Não me recordo de ter visto claridade em qualquer ponto da residência. Se eu fosse um transeunte qualquer, pensaria que o morador morrera e que mais ninguém vivia lá. E quantas especulações me viriam à mente se não me fosse dado conhecer esses recantos!

De maneira que procurei esquecer a habitação dos Steerforths, mas era uma coisa difícil porque ela despertava em mim um cortejo de reflexões. Nessa noite, as recordações da infância misturaram‑se às minhas lembranças mais recentes, às esperanças mal desfolhadas e às sombras informes de decepções vagamente pressentidas ‑ esta mescla de experiência e imaginação própria para o elaborar da obra que me absorvia o espírito. E que força de sugestão tomou, maior do que nunca! Prosseguia o meu caminho, fantasiando coisas, quando uma voz me fez estremecer.

Era uma voz de mulher, e não tardei a reconhecer a criadinha da senhora Steerforth, que outrora usava fitas azuis na touca. Nessa ocasião não as trazia, para condizer, suponho, com a nova atmosfera da casa, e substituíra‑as por dois simples laços acastanhados, de tom bastante sério.

‑ Não se importa de entrar um instante para falar com a senhora Dartle? ‑ perguntou‑me ela.

‑ Foi a senhora Dartle que a mandou?

‑ Esta noite, não, mas vem a dar no mesmo. Viu‑o passar há dois ou três dias e recomendou‑me que ficasse na escada, a trabalhar, a fim de ver quando o senhor passava e lhe pedisse que entrasse.

Obedeci e, pelo caminho, perguntei à rapariga como ia a senhora Steerforth. Respondeu‑me que a patroa não estava muito bem e, muitas vezes, nem saía do quarto.

Ao chegar a certo ponto, indicou‑me em que parte do jardim se encontrava a senhora Dartle, e deixou‑me só. Rosa achava‑se sentada numa espécie de terraço alto, que dominava a cidade. Era uma noite escura, com uma luz baça no céu; ao ver o panorama que se estendia ameaçador a seus pés, com um objecto maior salientando‑se aqui e ali na lúgubre claridade crepuscular, pareceu‑me que tudo se casava perfeitamente com a estranha criatura que me aguardava.

Notando a minha aproximação, ela pôs‑se de pé a fim de me receber. Afigurou‑se‑me ainda mais pálida e magra do que no nosso último encontro. Os olhos cintilavam mais e a cicatriz do lábio tornara‑se mais visível. Não manifestámos grande cordialidade um para com o outro. Havíamo‑nos separado sem amenidade nessa altura, e o desdém que lhe observei no rosto a senhora Dartle não tentou disfarçar.

‑ Disseram‑me que desejava falar comigo ‑ comecei, pondo a mão no espaldar do banco, porque me recusara a aceder ao seu convite para me sentar.

‑ Como quiser ‑ retorquiu. ‑ Já encontraram essa mulher?

‑ Não.

‑ Mas fugiu‑lhe.

Enquanto me olhava, vi‑lhe agitarem‑se os lábios delgados como se ávidos de insultar a pessoa a quem se referia.

‑ Fugiu? ‑ repeti.

‑ Sim, abandonou‑o ‑ declarou, soltando uma risada. ‑ Se a não acharam, nunca mais ninguém lhe põe a vista em cima. Até é possível que tenha morrido.

Nunca me fora dado presenciar em nenhum rosto uma expressão de crueldade mais triunfante.

‑ Desejar‑lhe a morte ‑ redargui ‑ talvez seja o voto mais caridoso que uma pessoa do seu sexo possa formular. Regozija‑me verificar, senhora Dartle, que o tempo a dulcificou.

Rosa não se dignou responder‑me, mas, virando‑se para mim com novo riso desdenhoso, disse daí a pouco:

‑ Faz parte do grupo de amigos dessa excelente mulher tão caluniada, não é verdade? É o seu campeão e defende‑lhe os direitos. Quer saber tudo o que se diz a respeito dela?

‑ Quero.

Levantou‑se, com um sorriso mau, deu uns passos em direcção a uma sebe de azevinhos que separava o relvado da horta, e ordenou em voz alta «Apareça!» no tom com que teria falado a um animal imundo.

‑ Abster‑se‑á, naturalmente, neste lugar, de qualquer acto de justiça ou de vingança, senhor Copperfield, não é assim? ‑ ajuntou Rosa Dartle olhando‑me por cima do ombro, com a mesma expressão irónica.

Aquiesci, num gesto afirmativo, sem compreender bem o que ela queria dizer: «Apareça!», repetiu, e daí a instantes voltou atrás acompanhada do muito digno mordomo Littimer, que, sempre respeitoso, se inclinou e ficou em posição de sentido. O ar de graça perversa e de vitória, estranhamente mesclado a certo encanto feminino, com que me fitou enquanto se sentava na cadeira que nos separava, era próprio de uma crudelíssima princesa lendária.

‑ E agora ‑ continuou, imperiosa, sem olhar para o criado e tapando com a mão a cicatriz, que dessa vez devia estremecer não de dor mas de gozo ‑ conte ao senhor Copperfield a história dessa fuga.

‑ Eu e o senhor James, minha senhora...

‑ Não se dirija a mim ‑ atalhou ela, carregando o cenho.

‑ Eu e o senhor James, senhor Copperfield...

‑ Nem a mim! ‑ disse por meu turno.

Littimer, sem se desconcertar, deu a entender, por uma leve inclinação de cabeça, que estava às nossas ordens, e recomeçou:

‑ Eu e o senhor James vivemos no estrangeiro com essa rapariga desde o dia em que ela deixou Yarmouth sob a protecção do senhor James. Fomos a muitas partes diferentes e vimos muitos países. Passámos em França, Suíça, Itália, em suma, quase por todos...

Olhava as costas do banco, como se se dirigisse a ele, tamborilando aí com as pontas dos dedos tal se extraísse acordes de um piano mudo.  »

‑ O senhor James afeiçoou‑se de maneira pouco vulgar a essa rapariga e esteve durante certo tempo mais calmo do que o fora durante todos os anos em que o servi. A rapariga aperfeiçoou‑se bastante e aprendeu a falar as línguas de todas essas nações; já não parecia a mesma criatura provinciana do princípio. Notei que a admiravam muito em todas as cidades por onde passávamos.

Rosa Dartle levou a mão a um lado do corpo. Vi Littimer relanceá‑la e sorrir como para si mesmo.

‑ Sim, senhor, admiravam‑na muito, essa menina. Com os seus vestidos, o aspecto saudável que lhe dava o sol e o ar, o interesse de que a rodeavam, e tudo mais... os seus méritos realçavam‑se, chamando a atenção de toda a gente.

Deteve‑se um minuto. Os olhos da senhora Dartle erravam sem repouso pelo horizonte distante, e ela mordia o lábio inferior para impedir o tremor da boca.

Tirando as mãos das costas do banco e unindo‑as, enquanto se apoiava sobre uma perna, Littimer prosseguiu de olhar baixo, com a cabeça respeitável inclinada para o ombro.

‑ As coisas continuaram assim: a menina tinha momentos de depressão, até ao instante em que principiou, creio eu, a cansar‑se do senhor James e a mostrar‑se arrependida. Então as coisas pioraram. O senhor James tornou‑se volúvel e irritável. E quanto mais ele se irritava, mais ela ficava triste. Entre os dois, a minha vida não corria em maré de rosas. Entretanto recompuseram‑se e aquela existência arrastou‑se por mais tempo do que seria de esperar.

Desviando o olhar do horizonte, Rosa Dartle poisou‑o em mim, como anteriormente. O criado, depois de haver pigarreado de leve, atrás da mão, passou a apoiar‑se na outra perna e recomeçou:

‑ Enfim, e em seguida a numerosas discussões e censuras, o senhor James deixou certa manhã a vivenda em que habitávamos, nos arredores de Nápoles (pois a menina gostava muito do mar) e, pretextando uma viagem de um ou dois dias, encarregou‑me de anunciar àquela que, para bem de todos, resolvera ‑ novo acesso de tosse ‑ ir‑se embora... Mas devo explicar que o senhor James procedeu muito bem, pois havia proposto à menina casá‑la com um homem respeitável, disposto a esquecer o passado e que era o que ela acharia de melhor, matrimonialmente falando, visto a família da menina ser de condição tão humilde.

Recaiu sobre a outra perna e humedeceu os beiços. Eu estava convencido de que o miserável se referia a si mesmo, o que vi confirmado pela expressão de Rosa Dartle.

‑ Devia eu, também, propor esse casamento. Estava pronto a fazer o pedido e tudo mais que me fosse possível para tirar o senhor James de embaraços e restabelecer a harmonia entre ele e a mãe, que tanto sofria por sua causa. Desempenhei‑me, pois, da comissão. A violência da rapariga, quando se compenetrou da situação depois da partida do senhor James, ultrapassa tudo o que se possa imaginar. Parecia louca e foi necessário segurá‑la à força, porque, no caso de não achar uma faca para se matar ou de não se atirar às ondas, seria pelo menos capaz de partir a cabeça no mármore do chão.

Rosa Dartle, reclinada no espaldar do banco, de cara transfigurada, parecia saborear as palavras que saíam da boca daquele homem.

‑ Mas ‑ continuou o mordomo, esfregando as mãos com ar confuso ‑ quando cheguei ao segundo recado que o patrão me confiara e que devia, ao que julgo, ser considerado em todo o caso como uma intenção generosa, é que a rapariga se mostrou verdadeiramente como era. Jamais assisti a tamanho acesso de furor! O seu comportamento foi abominável. Não manifestou nem gratidão, nem sensibilidade, nem paciência, nem bom senso. Se eu não estivesse de sobreaviso, ela ter‑me‑ia matado.

‑ O que depõe a seu favor ‑ comentei, indignado.

Littimer curvou a cabeça, murmurando: «Realmente, senhor Copperfield? É porque é muito novo.» E prosseguiu a narração:

‑ Em resumo, necessitei de afastar dela, por algum tempo, qualquer objecto que lhe servisse para atentar contra a sua vida ou de outra pessoa, e conservá‑la encarcerada. Conseguiu, no entanto, escapar de noite, arrancando os postigos que eu pregara por minhas próprias mãos e deixando‑se cair numa latada por baixo da janela. Depois disto nunca mais se ouviu falar dessa criatura, que eu saiba.

‑ Decerto morreu ‑ sugeriu a senhora Dartle, com um sorriso, como se tivesse repelido com o pé o cadáver da pobre rapariga.

‑ Ou talvez se afogasse ‑ opinou Littimer, aproveitando a ocasião para se dirigir a alguém. ‑ É muito possível. Ou encontrou, porventura, socorro entre os pescadores e suas famílias. Como se comprazia na frequentação dessa gente, ia muitas vezes para a praia, conversava com eles e sentava‑se nas canoas. Aí passava dias inteiros, quando o senhor James estava ausente. O senhor James não gostou quando soube que ela dissera um dia às crianças que também era filha de pescador e que, como elas, correra outrora na praia do seu país.

Ó Emily! Bela e infeliz criatura! Evoquei‑a sentada nessa costa longínqua, no meio daquelas crianças que lhe recordavam a inocência da sua infância, escutando essas vozitas que poderiam chamá‑la mamã se ela se houvesse tornado mulher de um pobre pescador, e ouvindo a grande voz do mar que exclamava um eterno «Nunca mais!»

‑ Quando se provou que era desnecessário tentar mais qualquer coisa, minha senhora...

‑ Já lhe disse que não se dirigisse a mim, Littimer ‑ replicou Rosa Dartle com soberano desdém.

‑ Foi a senhora que me falou. Peço desculpa. Vou obedecer, que é a minha obrigação.

‑ Então acabe a sua história e retire‑se.

‑ Quando se provou que era inútil procurar mais ‑ recomeçou o criado com ar submisso, sem todavia perder a dignidade ‑ fui encontrar‑me com o senhor James no lugar para onde deveria escrever‑lhe e contei‑lhe o que se havia passado. Trocámos palavras um tanto acaloradas e eu achei preferível deixá‑lo. Suportei muito da parte do meu patrão, mas ele fora longe de mais. Ofendera‑me. Como conhecia a deplorável desavença entre o senhor James e a mãe, e calculava bem a ansiedade desta, tomei a liberdade de voltar para Inglaterra a fim de a pôr ao facto...

‑ Pago por mim ‑ elucidou a senhora Dartle.

‑ Exactamente, minha senhora... a fim de lhe contar o que sabia. Não creio ‑ rematou Littimer após um minuto de reflexão ‑ que haja mais qualquer coisa que seja preciso acrescentar. Estou actualmente sem emprego e gostaria de descobrir um lugar adequado...

Rosa Dartle olhou‑me, como para inquirir se eu desejava saber mais. Atravessou‑me o espírito uma ideia, e repliquei:

‑ Pergunte a este indivíduo ‑ era o qualificativo mais brando que me ocorria ‑ se interceptaram uma carta enviada a essa rapariga pela família ou se ele supõe que ela a recebeu.

Littimer ficou imóvel e mudo, de olhos fitos no chão, unindo as pontas dos dedos da mão esquerda às pontas dos dedos da mão direita. Rosa virou‑se desdenhosamente para ele.

‑ Peço perdão, minha senhora ‑ disse o criado, como se emergisse de um sonho ‑ mas, por mais dócil que eu seja, tenho a minha dignidade, embora de servo. A senhora e o senhor Copperfield são duas pessoas diferentes. Se o senhor Copperfield deseja mais alguma informação, tomarei a liberdade de lhe lembrar que pode fazer‑me directamente a pergunta. Preciso de salvaguardar a minha reputação.

Após uns instantes de luta interior, virei‑me para o homem e declarei:

‑ Ouviu a minha pergunta. Considere que lhe foi dirigida pessoalmente, se insiste nisso. Que me responde?

‑ Senhor Copperfield ‑ retorquiu ele, afastando e aproximando as pontas dos dedos ‑ a minha resposta não pode ser categórica. Trair a confiança do senhor James em relação à mãe e traí‑la quanto ao senhor, eis duas coisas diversas. É pouco provável, em minha opinião, que o senhor James tenha facilitado a recepção de cartas que aumentariam a tristeza e o mau humor; mas prefiro calar‑me.

‑ Mais nada? ‑ interveio Rosa Dartle.

Repliquei que não tinha mais nada que dizer, a não ser, acrescentei quando ele se afastava, que tendo compreendido o papel desempenhado por aquele indivíduo nesta história desagradável, participá‑lo‑ia ao homem honrado que servira de pai à rapariga e, por consequência, lhe recomendava não se mostrasse muito em público.

Littimer parara ao ouvir estas palavras, que escutara com a sua fleuma habitual.

‑ Muito obrigado, senhor Copperfield. Mas há‑de desculpar‑me se lhe disser que não há escravos nem negreiros neste país e que ninguém tem o direito de fazer justiça por suas mãos. Portanto, não temo ir aonde me aprouver.

Com isto, inclinou‑se cortesmente, diante de cada um de nós, e desapareceu atrás da sebe de azevinhos por onde viera. Eu e Rosa Dartle contemplámo‑nos um momento em silêncio; a sua atitude era exactamente a mesma de quando trouxera aquele homem.

‑ Além disso ‑ acrescentou ela com ar desdenhoso ‑ diz que o patrão deve andar ao longo das costas de Espanha e que assim continua a satisfazer o seu pendor pela navegação. Não é pormenor, todavia, que o interesse, Copperfield. Entre aqueles dois orgulhosos, a mãe e o filho, o abismo é cada vez mais fundo e muito fraca a esperança de uma reconciliação, pois têm carácter idêntico e são ambos obstinados. Também não é coisa que o interesse, mas justifica o que lhe vou dizer. Esse demónio de quem você faz um anjo, isto é, a criaturinha vulgar que James levantou do lodo, talvez esteja ainda viva ‑ os olhos pretos de Rosa mergulharam nos meus, o dedo trémulo ergueu‑se ‑ porque os entes vulgares possuem em geral uma constituição rija. Neste caso, você decerto gostaria de encontrar essa pérola valiosa e tomá‑la ao seu cuidado. Igualmente o desejamos, para que James não lhe caia outra vez nas garras. Neste pormenor estamos ligados pelo interesse comum, e eis a razão pela qual, estando eu disposta a fazer à rapariga todo o mal possível, o mandei chamar para ouvir o que acabou de ouvir.

Notei na cara dela que alguém se aproximava por trás de mim. Era a senhora Steerforth, que me estendeu a mão com maior frieza do que antes, exagerando ainda a sua antiga majestade. Contudo surpreendi‑lhe, comovido, a recordação da minha velha amizade pelo filho. Mudara muito. O vulto distinto estava menos erecto, no rosto sulcavam‑se rugas, os cabelos apresentavam‑se quase todos brancos. Mas, quando se sentou no banco, pareceu‑me ainda bastante bela. Reconheci‑lhe os olhos brilhantes, cujo esplendor me obsidiava os sonhos de colegial.

‑ Rosa, o senhor Copperfield sabe tudo?

‑ Sim, senhora.

‑ E ouviu pessoalmente o Littimer?

‑ Visto que assim era da sua vontade...

‑ Obrigada, Rosa. Tenho estado em correspondência sucinta com o seu amigo de outro tempo, senhor Copperfield ‑ ajuntou voltando‑se para mim ‑ mas ele não recuperou o sentimento dos seus deveres filiais. Por isso o meu fito agora é aquele que Rosa lhe indicou. Se se puder tranquilizar esse honesto homem que o senhor trouxe cá, e que eu lastimo (é tudo quanto posso dizer), impedindo ao mesmo tempo o meu filho de recair nas malhas duma intrigante... tanto melhor.

Endireitou‑se e mirou em frente, para a distância.

‑ Minha senhora ‑ repliquei respeitosamente ‑ não deixo de a compreender. Não receie que eu dê interpretação maldosa aos motivos que a levam a agir. Mas, conhecedor como sou, desde a infância, dessa desgraçada família, sinto‑me na obrigação de declarar: se supõe que a rapariga a quem fizeram tanto mal não foi cruelmente enganada e não preferiria agora mil mortes a aceitar um copo de água da mão de James Steerforth, a senhora ilude‑se redondamente!

‑ Não intervenhas, Rosa ‑ bradou a dona da casa ‑ isto não tem importância. É casado, senhor Copperfield?

Disse‑lhe que efectivamente casara havia já algum tempo.

‑ E obtém êxito? ‑ continuou ela. ‑ Pouco sei do que se passa por fora, na vida retirada que levo; mas consta‑me que o senhor começa a adquirir nome...

‑ Bafejou‑me a sorte e, de facto, elogiam‑me...

‑ Já não tem mãe? ‑ A voz dela tornara‑se mais suave.

‑ Não, senhora.

‑ É pena. Orgulhar‑se‑ia do filho. Boa noite!

Tomei a mão que me estendeu com uma dignidade inflexível. Essa não estava tão calma como se a paz remasse naquele espírito; o orgulho da senhora Steerforth mandava até nas palpitações do coração e fazia espalhar‑se‑lhe na cara essa máscara de placidez através da qual ela olhava a direito para o horizonte longínquo.

Ao afastar‑me, pelo terraço adiante, não me coibi de observar a atenção que as duas senhoras davam à perspectiva urbana que se entenebrecia, como que a fechar‑se de roda delas. Aqui e ali cintilavam as primeiras luzes na cidade distante; sobre o bairro do poente atardava‑se, no céu, uma claridade lívida. Mas, em baixo, o nevoeiro subia do vale como uma onda que se perdia no escuro, e essa maré cheia parecia submergir a mãe e a prima de James. Tenho razões para me lembrar da cena e de o fazer com terror, pois quando tornei a ver as duas mulheres um mar tempestuoso soltara‑se‑lhes aos pés.

Competia‑me informar Daniel Peggotty do que havia sabido. No dia seguinte, à noite, parti pelas ruas de Londres em sua procura. Ele errava sempre, tomado da ideia fixa de descobrir a sobrinha, e estava mais frequentemente na capital do que noutra parte qualquer. Quantas vezes o topara percorrendo essas vias para ver se encontrava a horas mortas aquela que tanto receava aí achar!

Conservava o quarto alugado por cima da mercearia de Hungerford Market, de que já falei noutras ocasiões, e donde saía para se consagrar à sua vagabundagem misericordiosa. Foi lá que compareci. Quando perguntei por ele, as pessoas da casa disseram‑me que ainda estava no aposento.

Lia sentado ao pé da janela, em cujo peitoril se ostentavam vasos de flores. O quarto era de uma ordem, de um asseio meticuloso. Vi logo que Peggotty o desejava sempre pronto a receber a sobrinha e que nunca saía sem pensar que a poderia trazer consigo. Não me ouviu bater e só ergueu a vista ao sentir a minha mão poisar‑se‑lhe no ombro.

‑ O menino Davy! Oh, quanto lhe estou grato! Do fundo da alma lhe agradeço esta visita. Sente‑se por favor. Muito me alegra vê‑lo.

‑ Senhor Peggotty ‑ disse eu, aceitando a cadeira que me apresentava ‑ não tenha muita esperança. Recebi notícias...

‑ De Emily?

Levou a mão à boca, nervosamente, e empalideceu, fitando os olhos nos meus.

‑ Não sei onde se esconde, mas a verdade é que já não está com ele.

Sentou‑se, olhando‑me sempre, e escutou‑me num silêncio profundo. Não esqueço a impressão de dignidade, até de beleza, que me deu a gravidade resignada desse rosto quando, tendo a pouco e pouco desviado a vista, curvou a cabeça e apoiou a testa na mão. Não me interrompeu uma única vez e ficou durante todo o tempo perfeitamente imóvel. Parecia que acompanhava, através do meu relato, o vulto de Emily e desdenhava todos os outros como sombras sem valor.

Quando acabei, ele cobriu a cara com as mãos e ficou calado. Olhei para a janela e, por momentos, admirei as flores.

‑ Que se lhe afigura tudo isto, menino Davy? ‑ perguntou‑me por fim.

‑ Creio que está viva ‑ respondi.

‑ Não sei. O abalo devia ter sido muito violento e quem sabe se, desvairada... Essa água azul de que ela falava tanto... Se pensava tanto no mar, anos a fio, é que o mar devia ser o seu túmulo.

Pronunciou lentamente estas palavras, em voz baixa e como se assustado, ao mesmo tempo que passeava no quarto.

‑ Contudo, menino Davy ‑ acrescentou ‑ também me parece que está viva. É o meu pressentimento. Hei‑de encontrá‑la, é uma ideia que me tem conduzido e sustentado por tanto tempo que não posso acreditar que me engane. Não! Emily está viva.

Bateu com a mão na mesa e a cara tisnada tomou um ar de resolução irredutível.

‑‑A minha Emily vive, menino Davy!‑declarou com firmeza. ‑ Não sei onde nem como, mas há uma voz que mo diz.

Tinha uma aparência de inspiração ao pronunciar estas palavras. Esperei um instante até que ele pudesse conceder‑me toda a sua atenção; em seguida principiei a explicar‑lhe as precauções que, na véspera à noite, achara ser conveniente tomar.

‑ E agora, meu caro amigo... ‑ comecei.

‑ Muito obrigado pela sua bondade ‑ exclamou, apertando‑me a dextra.

‑ É provável ‑ prossegui ‑ que venha a Londres, onde mais facilmente se poderá esconder, e esconder‑se há‑de ser o seu maior desejo... A não ser que regresse a casa.

‑ A casa não voltará ‑ volveu Peggotty abanando tristemente a cabeça. ‑ Talvez o fizesse, se houvesse partido noutras circunstâncias, mas assim...

‑ Se vier a Londres ‑ sugeri ‑ julgo haver uma pessoa que tem probabilidades de a encontrar. Escute‑me, meu amigo, e pense no seu generoso projecto. Lembra‑se de Martha?

‑ Minha conterrânea?

‑ Essa mesma. Sabe que está nesta cidade?

‑ Vi‑a por essas ruas ‑ respondeu‑me com um arrepio.

‑ Mas não sabe que a Emily se mostrou condoída de Martha, assim como Ham, muito antes da fuga, e que ela escutou a nossa conversa, atrás da porta, quando entrámos num café.

‑ Menino Davy! ‑ disse o pescador, estupefacto. ‑ Naquela noite em que nevava tanto?

‑ Justamente. Não a tornei a ver depois disso. Fui‑lhe ainda no encalço, mas a rapariga desaparecera. Não achei conveniente mencionar o nome diante de si, meu amigo, mas parece‑me agora que devemos procurá‑la. É uma pista. Compreende?

‑ Muito bem, menino Davy.

Baixáramos a voz e continuámos a falar num sussurro. ‑ Diz que não a viu? Acha que poderemos descobri‑la? Quanto a mim, só por um acaso.

‑ Talvez eu saiba onde topá‑la, menino Davy.

‑ Já é noite. Visto que estamos juntos, aproveitemos o ensejo e vamos tentar descobri‑la.

Daniel Peggotty anuiu e preparou‑se para me acompanhar. Fingindo que o não observava, notei no entanto que ele arranjava cuidadosamente o quarto, punha à mão uma vela e acessórios, compunha a cama e tirava duma gaveta um vestido de Emily (que me lembrava de já ter visto e que estava muito bem dobrado juntamente com os outros). Colocou‑o em cima da cadeira, com alguma roupa branca e uma touca. Absteve‑se de fazer qualquer comentário ao facto, e eu segui‑lhe o exemplo. Quantas vezes já devia ele ter feito esses preparativos noite após noite!

‑ Houve um tempo ‑ disse ele ao descer a escada ‑ em que essa Martha me parecia boa para servir de lama aos sapatos de Emily. Deus me perdoe, como mudei!

Pelo caminho, parte para entreter a conversa, parte para satisfazer a curiosidade, pedi‑lhe notícias de Ham. Respondeu‑me quase nos mesmos termos que outrora: Ham não alterara os seus hábitos, continuava sem gosto pela vida, mas era incapaz de se queixar e toda a gente o estimava.

Indaguei se Daniel conhecia o estado de espírito do sobrinho quanto ao responsável da desgraça que afligia a todos. Se achava perigo nessa disposição e o que faria Ham se se encontrasse algum dia frente a frente com Steerforth.

‑ Não sei, menino Davy. Tenho pensado nisso muitas vezes, mas não cheguei a qualquer conclusão.

Recordei‑lhe o nosso passeio matutino na praia, depois de Emily ter partido.

‑ Lembra‑se ‑ perguntei ‑ do seu ar desvairado ao olhar para as ondas e da maneira como falou do «fim de tudo»?

‑ Lembro‑me, sim.

‑ Em sua opinião, que queria ele dizer?

‑ Menino Davy, muita vez perguntei isso a mim mesmo e nunca fui capaz de responder. Coisa curiosa: apesar de saber que é pessoa branda, não me arrisco a averiguar qual a sua intenção. Sempre me falou o mais respeitosamente possível e não me parece que vá agora mudar; no entanto, o seu pensamento não é claro, é um mar fundo onde as ideias se agitam e eu nada consigo discernir.

‑ Tem razão. Também a mim me inquieta.

‑ E ainda os seus modos destemidos, embora igualmente resultem da alteração que nele se produziu. Não creio que jamais faça mal a quem quer que seja, e contudo preferia que esses dois homens nunca se encontrassem.

Acabávamos de entrar no centro da cidade pelo Temple Bar. Daniel Peggotty calou‑se e, caminhando a meu lado, abandonou‑se ao pensamento que ocupava toda a sua vida. Andava com aquela concentração de espírito que fazia dele uma pessoa silenciosa e solitária no meio da multidão. Aproximávamo‑nos da Blackfriars Bridge quando Daniel se voltou para me mostrar o vulto de uma mulher que errava só do outro lado da rua. Reconheci logo Martha. Atravessámos para lá e apressámos o passo a fim de a alcançar; mas pensei que ela estaria decerto mais disposta a falar de Emily se a convidássemos a ir a um sítio tranquilo, onde ninguém reparasse em nós. Aconselhei, pois, o meu companheiro a segui‑la em vez de a fazer parar, com a vantagem ainda de sabermos para onde é que se dirigia.

Daniel aquiesceu e nós seguimo‑la de longe, sem nunca a perder de vista. Entretanto tomámos precauções para que ela não nos visse. Martha deteve‑se em certa altura, para escutar uma banda de música; imitámo‑la.

Depois deambulou por muito tempo. Fomos sempre no seu encalço. Era evidente, pela maneira como regulava o passo, que se encaminhava para lugar determinado. Isto, combinado com o facto de que ela vagueava muito pelas ruas mais frequentadas e também com a ideia da estranha fascinação que existe em seguir alguém misteriosamente, levou‑me a persistir na minha primeira ideia. Por fim, a rapariga virou para uma rua sombria e menos barulhenta.

‑ Agora podemos abordá‑la ‑ disse eu. E estugámos o passo na sua peugada.

 

MARTHA

Chegáramos a Westminster. Fora necessário retroceder para a poder seguir, porque ela vinha em sentido contrário ao nosso quando a descobrimos; e a abadia foi o ponto em que passou da luz e movimento para lugares mais ermos. Uma vez fora do bulício, começou a avançar rapidamente, até que a alcançámos à beira de água, numa estreita rua de Millbank. Nessa ocasião, atravessou a calçada para fugir aos passos que ouvia próximos e, sem se voltar, acelerou mais ainda a marcha.

Para além de um pórtico sombrio, onde à noite estacionavam carroças, divisei uma nesga de rio; aí parei e, em silêncio, toquei no braço do meu companheiro; mas abstivemo‑nos de passar para o outro lado e continuámos a espiá‑la do passeio fronteiro, ocultos pelas sombras dos prédios.

Havia nesse tempo, e ainda hoje a podemos ver, no extremo dessa rua quase ao nível de água, uma pequena construção de madeira, talvez outrora estação dos barcos da travessia. Era mesmo no final da artéria, junto à fila de casas ribeirinhas. Uma vez aí, Martha estacou, como se chegasse ao seu destino; retomou, porém, o andamento pela margem, com maior lentidão, e sem nunca perder de vista o Tamisa.

Eu pensara sempre que ela ia entrar nalguma dessas casas, e tivera a vaga esperança de que isso se relacionasse com a nossa Emily. A tal hora o sítio é lúgubre, mais opressivo, triste, solitário do que outro qualquer ponto de Londres. Não havia nem cais nem armazéns nem residências na zona que abrange os muros lisos da Cadeia; ao pé desses muros ficava o fosso coberto de Iodo, e as ervas e plantas bravias cobriam as terras pantanosas das imediações. Ali apodreciam carcaças de casas, iniciadas sob maus auspícios e nunca concluídas. Além disso o solo estava juncado de caldeiras ferrugentas, de rodas, manivelas, tubos, fogões, pás, âncoras, sinos de mergulhador, asas de moinhos e não sei que mais objectos acumulados por algum sucateiro: emergiam da lama, onde se haviam enterrado em dias de chuva, pelo seu próprio peso, e onde pareciam querer esconder‑se para sempre. O estridor e clarão das várias fábricas instaladas ao longo da margem vinham perturbar a noite sem todavia dissipar o fumo abundante que vomitavam as suas chaminés. Veredas e atalhos lodosos conduziam até ao rio através do limo da maré baixa, e serpenteavam entre velhas estacas cobertas de uma substância viscosa, semelhante a cabeleiras verdes, e de farrapos de cartazes do ano anterior, que ofereciam recompensas pelo salvamento dos afogados. Constava que ficava nesse sítio uma das valas abertas para enterrar os mortos da Peste Grande: podia‑se supor que ela espalhava em torno as suas emanações peçonhentas ou que a paisagem tomara esse aspecto de pesadelo devido à acção das cheias do rio putrefacto.

Como se fizesse parte das imundícies expelidas pelo rio e abandonadas à corrupção e apodrecimento, a mulher que seguíamos desceu até à borda de água e olhou a corrente, só e imóvel na noite.

Havia lanchas e barcaças encalhadas na vasa, e estas permitiram‑nos chegar a uns metros da criatura, sem ser vistos nem pressentidos. Fiz então sinal a Daniel que ficasse onde estava e saí da sombra para falar à rapariga. Não foi sem receio que me aproximei, porque me incutiu realmente medo a sua atitude naquele lugar sinistro, a contemplar os reflexos tortuosos das luzes no fluxo vigoroso, à sombra cavernosa da ponte de ferro.

Julgo que mastigava palavras, e lembro‑me de que, absorta na contemplação, tirara o xaile e o enrolava nas mãos, num movimento inquieto e maquinal que sugeria uma sonâmbula. Também não esqueci a ideia que então me ocorreu de que ela, assim transtornada, me fugisse antes que eu a pudesse agarrar.

‑ Martha! ‑ bradei‑lhe.

Soltou um grito de terror e debateu‑se com tanta força que me parece não alcançaria o meu propósito sem ajuda de outra pessoa. Mas uns dedos mais fortes do que os meus se apoderaram dela e, quando levantei o olhar aterrado e vi quem era, Martha deixou‑se cair entre nós, após um último esforço. Levámo‑la a alguma distância da margem, a um ponto onde havia pedras enxutas. Aí, a rapariga chorou, lamentando‑se. Por fim, sentou‑se sobre essas pedras e apoiou a cabeça nas mãos.

‑ O rio! ‑ exclamou desesperada. ‑ O rio!

‑ Caluda! ‑ intimei. ‑ Sossegue.

Ela ainda repetiu a mesma palavra, com idêntico desespero.

‑ Sei que se parece comigo, e sei que lhe pertenço. É a única companhia possível para as mulheres como eu. Vem dos campos, onde ainda é puro, e depois arrasta‑se conspurcado, e vai por caminhos torvos, como a minha vida, para o vasto mar sempre inquieto. Sei que tenho de ir com ele!

Nunca antes sentira uma voz que revelasse tanta amargura.

‑ Não posso afastar‑me dele. Não posso esquecê‑lo. Obceca‑me dia e noite. É a única coisa no mundo de que sou digna, ou que seja digna de mim. O rio pavoroso!

Olhando para o meu companheiro, li‑lhe no rosto a história da sobrinha. Daniel fixava Martha, mudo e imóvel. Nunca antes eu vira, quer pintados quer na realidade, o horror e a compaixão tão pateticamente combinados. Daniel tremia como se estivesse prestes a cair, e a mão ‑ em que toquei, tanto o seu aspecto me alarmava ‑ era tão fria como o mármore.

‑ Ela delira ‑ disse‑lhe ao ouvido. ‑ Daqui a pouco já não falará desta forma.

Não sei o que ele quis responder‑me. Os lábios moveram‑se e o homem julgou ter proferido qualquer coisa, mas limitara‑se a designá‑la com a mão estendida.

Uma nova crise de lágrimas sacudia a rapariga. Tornou a esconder a cara e ficou estendida no chão, entre as pedras, como a imagem prostrada da humilhação e do desânimo. Devíamos esperar pelo fim dessa crise se quiséssemos falar‑lhe com esperança de ser ouvidos. Evitei que Daniel Peggotty a levantasse e aguardámos em silêncio que Martha se recompusesse. Curvei-me depois, para a ajudar a erguer‑se, e vi‑a tomar uma atitude de quem pretende ir‑se embora; mas estava tão fraca que se encostou a uma das barcaças.

‑ Reconheceu quem me acompanha, Martha? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Reconheci ‑ confirmou em voz baixa.

‑ Sabe que esta noite a seguimos por muito tempo?

Abanou a cabeça, sem olhar para nós, e permaneceu de pé numa posição constrangida, com o chapéu e o xaile numa das mãos e comprimindo a testa com a outra mão fechada.

‑ Já está mais sossegada para falar de um assunto que também lhe interessa? Lembra‑se daquela noite de nove?

Mais uma vez a rapariga soluçou, balbuciando agradecimentos inarticulados: ficara‑me grata por não a haver expulsado então.

‑ Não quero dizer nada em minha defesa ‑ declarou ela daí a um momento. ‑ Sou má mulher. Uma perdida. Nenhuma esperança me resta. Mas ‑ acrescentou, afastando‑se de Peggotty ‑ explique‑lhe (se não me despreza muito) que em nada concorri para a desgraça da sobrinha.

‑ Ninguém a acusou ‑ respondi‑lhe com a mesma gravidade que ela pusera no seu requerimento.

‑ Foi o senhor, se não me engano, que entrou na cozinha, naquela noite em que ela teve dó de mim e se mostrou tão generosa; quando não fugiu, como faziam as outras, mas antes me socorreu bondosamente. Foi o senhor?

‑ Fui eu.

‑ Há muito tempo que eu me teria lançado ao rio ‑ ajuntou com um olhar tremendo, na direcção do Tamisa ‑ se na consciência me pesasse qualquer mal feito à Emily. Quanto a isto, nada tenho que me acuse.

‑ A razão por que Emily fugiu é suficientemente conhecida ‑ repliquei‑lhe. ‑ Cremos firmemente, sabemos que você está inocente nesse ponto.

‑ Bem podia eu regenerar‑me, graças a ela, se o meu coração não fosse tão ruim! ‑ exclamou a rapariga num tom de grande amargura. ‑ Emily foi sempre tão boa para mim! Só me dirigiu palavras cheias de juízo e bondade. Poderia lá tentar fazê‑la como eu, sabendo o que sou? No dia em que perdi tudo quanto dá apreço à vida, o pior foi pensar que me separava dela para sempre.

Daniel Peggotty, de pé, com a mão poisada na proa de um barco e de olhos baixos, levou a outra mão à cara, enquanto Martha prosseguia:

‑ E quando soube o que se havia passado, um pouco antes dessa noite famosa, por informação de alguém da nossa terra, o que mais me afligiu foi a ideia de que muitos se lembrariam de que éramos amigas e que decerto fora eu quem a corrompera. Contudo, Deus sabe que daria a vida para que Emily reencontrasse a sua boa reputação.

Martha perdera havia muito o hábito de se dominar, e a expressão confrangedora dos remorsos e angústia que sentia chegava a ser uma coisa impressionante.

‑ Dar a vida teria sido pouco. Não, viveria para esperar a velhice por estas ruas miseráveis, para errar, objecto de aversão, nas trevas, para ver nascer o Sol por cima destas casas sórdidas e recordar‑me do tempo em que esse mesmo astro vinha despertar‑me no meu quarto. Aceitaria esta velhice para, em compensação, a salvar!

Abaixando‑se para as pedras, agarrou algumas em cada mão, e apertou‑as, como se as quisesse machucar. Contorcia‑se, mudando constantemente de posição, estendendo os braços e cruzando‑os diante dos olhos, qual se desejasse afastar o pouco de claridade que nos envolvia, e deixando tombar a cabeça como ao peso de recordações difíceis de suportar.

‑ Que posso fazer? ‑ bradou, tomada de enorme desespero. ‑ Como poderia continuar a viver assim, para ser a minha própria maldição e a vergonha de todos quantos se aproximam de mim? ‑ De súbito, virou‑se para o meu companheiro. ‑ Calque‑me aos pés. Mate‑me! Quando o senhor andava tão orgulhoso dela, acharia que eu a ofendia só com o facto de a acotovelar na rua. O senhor não acredita... e que razões teria para isso?... numa só palavra saída dos meus lábios. Sentir‑se‑ia diminuído, mesmo hoje, se nos visse falar uma com a outra, ela e eu. Não me queixo. Não tenho a ilusão de que sejamos parecidas, entre nós ambas cavou‑se um abismo imenso. Todavia, do fundo do meu pecado e do meu sofrimento, estou‑lhe calorosamente grata e estimo‑a sempre. Repila‑me, como os outros. Mate‑me por ter ousado ser o que sou, depois de a haver conhecido. Mas não pense mal de mim!

Enquanto ela o suplicava deste modo, Daniel olhava‑a com ar atónito. Quando a rapariga se calou, sentiu‑se amparada nos braços do pescador, que a erguia mansamente e dizia:

‑ Martha, não queira Deus que eu seja teu juiz. Eu menos que outro qualquer, minha filha. Fizesses o que fizesses, o que não sabes é a alteração que a pouco e pouco se operou em mim.

Finalmente... ‑ Calou‑se um momento, e recomeçou: ‑ Não sabes o motivo por que eu e este senhor quisemos falar contigo. Ignoras o que desejamos dizer‑te. Agora escuta.

A influência de Daniel foi instantânea. Martha manteve‑se de pé diante dele, tímida, como se receando encontrar os olhos desse homem. A violência, porém, da sua dor apaziguara‑se por completo.

‑ Se tivesses ouvido o que se passou entre mim e o senhor Copperfield, nessa noite em que nevava tanto, saberias que tenho andado... por toda a parte, em busca da minha querida sobrinha. A minha querida sobrinha ‑ repetiu com firmeza ‑ porque me é agora mais querida, Martha, do que nunca.

A rapariga escondeu a cara nas mãos e não respondeu.

‑ Ouvi‑a contar que tu tinhas ficado órfã de tenra idade, e sem amigos que pudessem substituir‑te, de qualquer modo, os pais. Se houvesses tido alguém, amá‑lo‑ias com o tempo e compreenderias que a minha sobrinha era para mim como uma filha.

Como Martha tremesse, em silêncio, Daniel levantou o xaile, que caíra no chão, e abafou‑a com desvelo.

‑ E eis porque ‑ continuou ele ‑ eu sei que Emily iria comigo até ao fim do mundo, logo que me tornasse a encontrar, mas que também seria capaz de ir até ao fim do mundo para evitar esse encontro. Embora não haja nenhuma razão para que duvide da minha amizade, e ela não ponha essa amizade em dúvida, a vergonha instalou‑se diante de nós e separou‑nos.

Compreendi mais uma vez que o homem, pela maneira simples e comovedora como se exprimia, já havia revolvido esse problema por todos os lados.

‑ Segundo as nossas previsões, minhas e do senhor Copperfield, é crível que ela volte sozinha a Londres, um dia. Acreditamos, eu e o senhor Copperfield, que tu estás tão inocente de tudo isto como qualquer recém‑nascido. Disseste que a Emily foi boa, generosa, amável contigo. Ainda bem. Já calculava que assim seria. Sempre o foi com toda a gente. Estás‑lhe grata e gostas dela. Então, ajuda‑nos com todas as tuas forças a descobri‑la, e que o Céu te recompense.

Martha lançou‑lhe uma olhadela rápida, e pela primeira vez ‑ como se desconfiasse das palavras que ouvira.

‑ Tem confiança em mim? ‑ perguntou com voz sufocada pela surpresa.

‑ Absoluta ‑ replicou Peggotty.

‑ Para que eu lhe fale, se a encontrar, e lhe dê abrigo, caso tenha um abrigo para partilhar com ela? E para trazê‑la junto de si, ou levá‑lo junto da Emily, sem que esta suspeite do que se trata?

‑ Isso mesmo ‑ respondemos nós dois ao mesmo tempo. Fitou‑nos e prometeu solenemente consagrar‑se com fervor e

fidelidade a essa tarefa, não recuar perante nada, nem renunciar ao que empreendera enquanto houvesse um clarão de esperança. Se faltasse à promessa, anulando assim o propósito que ora teria na vida e era isento de qualquer mal, então que ficasse mais desgraçada ainda do que no momento em que se aproximara do rio, abandonada de todo o socorro dos homens.

Pronunciou estas palavras em voz baixa, olhando desta vez para o céu. Ao terminar o juramento, continuou de pé, imóvel, contemplando as águas torvas do Tamisa.

Achámos então conveniente pô‑la ao facto de tudo quanto sabíamos e que já contei pormenorizadamente. Escutou‑me com a maior atenção. O rosto alterava‑se‑lhe às vezes, mas lia‑se‑lhe sempre a mesma deliberação nas diversas expressões. Os olhos não raramente se lhe encheram de lágrimas, que ela reprimia. Era perfeita agora a sua alma.

No final perguntou‑nos para onde poderia escrever, se houvesse algo que relatar. Escrevi, à luz frouxa que ali restava, o endereço de cada um de nós numa folha da minha agenda, papel que ela enfiou no corpete. Quisemos saber onde habitava. Respondeu, após um minuto de hesitação:

‑ Nunca muito tempo no mesmo lugar. Mais vale não saber. Peggotty segredou‑me uma ideia que, aliás, me ocorrera já.

Tirei a bolsa e quis convencer a rapariga a aceitar dinheiro, ou, pelo menos, a vir mais tarde a aceitá‑lo. Expliquei‑lhe que o meu companheiro, para homem da sua condição, não se podia dizer que fosse pobre, e que a nós repugnava saber que ela se lançaria naquelas buscas apenas com os seus próprios recursos. Todavia Martha resistiu às sugestões e, neste aspecto, Daniel Peggotty não foi capaz de a persuadir; agradeceu sinceramente, mas continuou inflexível.

‑ Talvez encontre trabalho ‑ replicou. ‑ Vou tentar.

‑ Mas, entretanto, aceite qualquer coisa ‑ propus‑lhe.

‑ Nunca poderia fazer isto por dinheiro, ainda que morresse de fome. Darem‑me a paga do serviço seria retirar‑me a confiança depositada em mim, destruir‑me a finalidade que concederam à minha existência, a única coisa que me impede de me atirar ao rio!

‑ Por amor de Deus, ponha de lado, e para sempre, semelhante pensamento! ‑ ordenei. ‑ Se quisermos, todos podemos ser úteis.

Estremeceu, moveram‑se‑lhe os lábios e o rosto ficou pálido.

‑ Quem sabe ‑ redarguiu ‑ se o senhor foi inspirado por Deus para salvar uma desgraçada e conduzi‑la ao arrependimento? Não me atrevo a crer, seria muito ousado da minha parte. Mas, se puder realmente ser útil, é possível que assim suceda, pois até agora só tenho semeado o mal. Com o trabalho de que me incumbiram, não me arriscarei a pôr termo à vida. Eis tudo quanto sei e sou capaz de dizer.

De novo reprimiu as lágrimas que lhe afloravam aos olhos. Depois de haver tocado no pescador com mão trémula (como se ele tivesse o poder de curar), Martha encaminhou‑se pela margem tenebrosa. Devia ter estado doente por muito tempo. Observando‑a de perto, notei que estava envelhecida e feia e que os olhos esmorecidos revelavam privações e miséria.

Seguimo‑la a distância, visto que íamos na mesma direcção, até ao momento em que tornámos a atingir as ruas iluminadas e populosas. A minha confiança na sua promessa era tão grande que perguntei a Peggotty se não seria indelicado continuar a espiá‑la. Ele foi da minha opinião e, assim, virámos para Highgate, deixando‑a entregue ao seu destino. Peggotty acompanhou‑me grande parte do caminho, e, quando nos separámos esperançados no êxito desta nova tentativa, vi‑lhe no rosto uma compaixão profunda, cuja origem me não foi difícil compreender.

Cheguei a casa à meia‑noite. Estava defronte da porta, ouvindo o timbre grave dos sinos de São Paulo, quando reparei, com enorme surpresa, que se encontrava aberta a cancela da vivenda de minha tia e que uma luz débil do vestíbulo projectava o seu reflexo na estrada. Sabendo que a tia era atreita a alarmes e calculando que estivesse a seguir no horizonte o progresso de um incêndio imaginário, entrei para lhe falar. Qual não foi o meu espanto ao ver um homem, de pé, no meio do jardinzito!

Tinha nas mãos uma grande garrafa e um copo e estava a beber. Detive‑me logo, escondido pela verdura espessa da sebe, pois a Lua, embora um pouco velada, fizera a sua aparição. Reconheci naquele indivíduo o homem que eu julgara outrora ser apenas fruto da imaginação do senhor Dick e que um dia encontrara com a tia, nas ruas da cidade.

Bebia, mas comia também, e parecia esfomeado. Devia observar a vivenda com curiosidade, como se fosse a primeira vez que ali comparecia. Depois de se haver abaixado para descansar a garrafa, ergueu de novo os olhos para as janelas e mirou derredor, mas com ar inquieto e impaciente, como se já estivesse na hora de partir.

A luz do vestíbulo teve um eclipse momentâneo, e a tia Betsey surgiu. Vinha nervosa. Entregou dinheiro ao desconhecido, contando‑lho na palma da mão; ouvi‑o tilintar.

‑ Que hei‑de fazer com estas moedas? ‑ replicou ele.

‑ É tudo de quanto disponho ‑ disse a tia.

‑ Então não me vou embora. E o dinheiro pode ficar aqui.

‑ Que homem nocivo! ‑ exclamou Betsey, indignada. ‑ E como

eu tenho sido fraca! Bastaria não abrir mais a porta para ficar livre destas visitas!

‑ E por que não o faz?

‑ É o senhor que mo pergunta? Que coração o seu!

Ele continuava na mesma atitude, a somar o dinheiro e a abanar a cabeça. E acabou por dizer:

‑ É tudo o que tencionava dar‑me?

‑ É tudo o que posso dar ‑ retrocou a tia. ‑ Sabe que sofri prejuízos graves. Sou mais pobre do que noutro tempo. Já lho tinha dito. Agora que tem o dinheiro, por que me inflige o tormento da sua presença? Contemplar aquilo em que o senhor se tornou!

‑ Tornei‑me numa pessoa que mete dó, se é isto que quer insinuar. Vivo uma vida de cão.

‑ Despojou‑me da maior parte dos meus bens. Fechou‑me o coração contra toda a gente, e isto durante anos. Tratou‑me com perfídia, ingratidão e crueldade. Vá‑se embora e arrependa‑se. Não acrescente mais ultrajes à longa lista dos que me fez suportar.

‑ Tudo isso é muito bonito. Mas parece que tenho de me contentar com este pouco.

Apesar de tudo, devia ter‑se impressionado com as lágrimas da minha tia, e saiu furtivamente do jardim. Dei dois ou três passos rápidos, como se acabasse de chegar, e cruzei‑me com ele na porta: ele saía e eu entrava, e, de passagem, olhámo‑nos sem muita simpatia.

Ao chegar junto da tia, comecei:

‑ Outra vez este homem que não deixa de a assustar! Quer que lhe fale? Quem é?

‑ Meu filho ‑ respondeu Betsey, pegando‑me no braço. ‑ Entra, e não me digas nada antes de dez minutos.

Sentámo‑nos na saleta. A tia retirou‑se depois para trás de um biombo e, durante cerca de um quarto de hora, ali esteve enxugando os olhos. Até que reapareceu, se instalou perto de mim, e me disse sossegadamente:

‑ Trot, era o meu marido.

‑ O seu marido! Julgava‑o morto.

‑ Morto para mim, mas ainda vivo. Eu estava estupefacto.

‑ Betsey Trotwood não foi feita para efusões sentimentais ‑ declarou ela ‑ mas houve um tempo em que acreditou cegamente neste homem. Em que o amou, Trot, sinceramente! Em que não lhe recusaria nenhuma prova de amor nem de fidelidade. Ele agradeceu‑lhe delapidando‑lhe a fazenda e despedaçando‑lhe o coração. E foi por isso que ela abriu uma cova e lá enterrou toda essa sentimentalidade. Depois cobriu‑a de terra e calcou‑a.

‑ Querida tia!

‑ Deixei‑o ‑ continuou Betsey, poisando, como de costume, a sua mão na minha. ‑ Fi‑lo com generosidade. Posso dizer, Trot, que tenho sido generosa todos estes anos. Foi tão cruel comigo que eu facilmente conseguiria uma separação vantajosa para mim. Mas não quis. Gastou depressa tudo quanto lhe dei.

Degradou‑se cada vez mais. Casou, suponho, com outra mulher, fez‑se aventureiro, jogador, ratoneiro. Acabas de ver em que se tornou. Mas era homem bem parecido, quando casámos ‑ acrescentou com um eco, na voz, da sua velha admiração, do seu antigo orgulho. ‑ E julguei (como sou estúpida) que ele fosse a honra em pessoa!

Deu‑me um aperto de mão e meneou a cabeça.

‑ Hoje não é nada para mim, Trot. Menos do que nada. Mas em lugar de o punir pelos seus malefícios (a que se entregaria, rondando por aqui), prefiro pagar‑lhe, uma vez por outra, para que me deixe em paz. Fui tola no dia em que o aceitei por marido, e nisto não tenho cura, porque não tolero a ideia de ,que sofra em demasia essa sombra do ente que amei outrora. Porque eu amei realmente, Trot, talvez como nenhuma outra mulher.

A tia, com um suspiro, deu por terminado o assunto, ajuntando ainda:

‑ Ficaste a conhecer o princípio, o meio e o fim. Não tornaremos a falar do caso, e, naturalmente, tu não o repetirás a ninguém. Eis a história desagradável da minha vida. Guardá‑la‑emos para nós, Trot.

 

A MINHA VIDA DOMÉSTICA

Eu trabalhava com afinco no meu livro, sem todavia consentir que ele impedisse as minhas obrigações jornalísticas. O volume apareceu e alcançou muito êxito. Mas não me deixei atordoar pelos elogios que me soavam aos ouvidos, embora me desvanecessem e o autor não tivesse opinião inferior à dos outros pelo seu trabalho. A minha observação da natureza humana provou‑me sempre que quem dispõe de razões para crer em si nunca se ufana diante do público, a fim de que este possa confiar nele. Por isso continuei modesto, para ser digno. E quanto mais louvores recebi mais diligenciei merecê‑los.

Não tenho intenção, neste memorial (ainda que seja, em todos os aspectos, o reflexo da minha vida), de contar a história dos meus outros romances, que se exprimem por si mesmos. E, se falo deles acidentalmente, é porque constituíram balizas na minha carreira.

Tendo algumas razões para crer, por essa altura, que a natureza e as circunstâncias haviam feito de mim um escritor, prossegui confiante a minha vocação. Sem esta certeza, naturalmente abandonava a literatura, consagrando as minhas energias a outra actividade qualquer ‑ e procuraria averiguar o que as circunstâncias e a natureza tinham ao certo operado em mim, e nada mais.

Por outro lado, os artigos que publiquei em jornais e revistas foram tão apreciados que após este novo triunfo me julguei com direito de dispensar aquelas sessões parlamentares, tão enfadonhas. Uma bela tarde anotei pela última vez a música celestial dos senhores deputados e nunca mais a tornei a ouvir, depois disso.

Estava casado há já um ano e meio. Feitas que foram aquelas referências de arranjo doméstico, abstivemo‑nos por completo de nos interessar pela casa. Ela governava‑se por si, e, além disso, havíamos contratado uma espécie de pajem. A função principal deste moço era de discutir com a cozinheira: representava, neste particular, o papel de um perfeito Whittington, mas sem gato e sem a mínima probabilidade de vir a ser presidente do Município. Creio que ele vivia no meio de uma saraivada de tampas de panela. Uma luta perpétua, essa existência. Gritava por socorro nas ocasiões mais inconvenientes: quando tínhamos convidados a jantar, ou amigos ao serão ‑ e, nesses momentos, vinha a correr da cozinha sob uma chuva de projécteis. Ser‑nos‑ia agradável livrar‑nos do rapaz, mas ele afeiçoara‑se a nós e não nos queria deixar. Tinha a lágrima ao canto do olho, e pranteava tanto quando falávamos em despedi‑lo que fomos obrigados a mantê‑lo. Órfão de mãe, e sem outros parentes, além de uma irmã que se safara para a América quando o tomámos ao serviço, ficou ao nosso cuidado como se de um enjeitado se tratasse. Sofria imensamente do seu infortúnio e passava o tempo a enxugar os olhos com a manga do casaco e a abaixar‑se para assoar o nariz num canto do lenço, que por economia conservava em parte na algibeira.

Este pajem infeliz, admitido numa hora nefasta por seis libras e dez xelins anuais, foi origem, para mim, de uma série interminável de dissabores. Via‑o crescer (e crescia como um feijão) e eu esperava apreensivo pelo dia em que o rapaz começasse a barbear‑se, ou até a ter cabelos brancos ou a ficar calvo. Não fazia ideia de como poderia livrar‑me dele, e, pensando no futuro, imaginava os embaraços que me traria quando chegasse a velho.

O que eu não esperava era o processo que esse desgraçado achou para me tirar de dificuldades. Furtou o relógio de Dora, que não tinha (como tudo o que nos pertencia) lugar certo para estar; depois vendeu‑o e gastou o dinheiro assim obtido (sempre fora pouco inteligente, o pobre rapaz) em viagens de ida e volta na imperial da diligência que fazia serviço entre Londres e Uxbridge. Foi preso e levado à esquadra da Bow Street quando realizava (se bem me recordo) a sua décima quinta viagem. Possuía então quatro xelins e seis dinheiros, e um pífaro de segunda mão, de que aliás nem sabia servir‑se.

A surpresa e suas consequências teriam sido menos desagradáveis para mim se ele não se mostrasse arrependido. Mas a sua contrição, deveras notável, manifestou‑se de forma estranha: não por uma vez, mas às prestações. Por exemplo: no dia seguinte àquele em que eu tive de ser ouvido como queixoso, fez certas revelações acerca de uma grade de garrafas da adega, que julgávamos cheias mas que estavam completamente vazias.

Pensámos que ele, dessa forma, aliviaria a consciência (dizendo também o pior possível da cozinheira), porém dois dias mais tarde, espicaçado por novos remorsos, contou que a dita cozinheira tinha uma pequena que vinha todas as manhãs comer o nosso pão, e que ele próprio se deixara subornar pelo leiteiro para o ocultar na carvoeira. Passados mais dois ou três dias, as autoridades preveniram‑me de que as confissões haviam aumentado com a descoberta de lombos de vaca sonegados e de lençóis escondidos. Um pouco depois, enveredou por um caminho diferente e participou a intenção que tinha o criado do café fronteiro de nos assaltar a casa, o que provocou a detenção imediata do indiciado. Acabei por ter tanta vergonha do meu papel de vítima que lhe teria dado tudo para que o rapaz se calasse ou que o deixassem fugir. Mas, convencido de que me fazia grandes favores, prosseguiu impávido na senda das revelações!

Já para o fim, escapava‑me quando via o enviado da polícia aproximar‑se com novas informações; e passei a vida a dissimular‑me até ao dia em que ele foi julgado e condenado a deportação. Mesmo assim não pôde ficar sossegado e começou a escrever‑nos cartas, umas atrás das outras; desejava tanto ver Dora antes de partir, que ela o foi visitar e desmaiou ao reconhecê‑lo através das grades da prisão. Enfim, a minha vida não conheceu verdadeira paz senão quando deixou a cidade mais tarde para cumprir a pena como pastor (vim a sabê‑lo mais tarde) em «sítio montanhoso»: onde, não faço geogràficamente a mínima ideia.

Tudo isto nos forçou a reflexões graves, apresentando‑me os nossos erros sob novo aspecto. Não pude coibir‑me de um dia falar a Dora do assunto, apesar de toda a ternura que ela me inspirava.

‑ Meu amor ‑ disse‑lhe ‑, custa‑me muito pensar que as consequências da nossa incúria e falta de ordem não só nos prejudicam (nós já estamos habituados), mas também os outros.

‑ Durante tanto tempo estiveste calado ‑ ripostou Dora ‑ e agora voltas a zangar‑te!

‑ Não, querida. Deixa‑me explicar a minha ideia.

‑ Parece‑me que não desejo conhecê‑la.

‑ Pois quero que a conheças, meu amor. Põe o Jip no chão.

Dora aproximou‑me o focinho do cão, dando ao mesmo tempo um gritinho, para me fazer perder a seriedade. Não o conseguiu. Mandou então o animal para a casota‑pagode e olhou com ar de resignação e de braços cruzados.

‑ A verdade é que, minha querida ‑ principiei ‑ somos pessoas contagiosas. Contaminamos todos os que nos rodeiam.

Poderia ter continuado neste estilo imaginoso se o rosto de Dora me não advertisse de que ela pensava a sério se eu lhe ia propor uma nova vacina ou qualquer remédio para combater semelhante doença. De maneira que suspendi as metáforas e me expliquei mais claramente.

‑ Não só, minha filha, perdemos dinheiro, conforto e até às vezes a boa disposição na desordem, mas incorremos na terrível responsabilidade de corromper todos os que entram ao nosso serviço ou que tratam connosco. Principio a crer que a culpa não é inteiramente só de uma parte, mas que esta gente procede mal porque nós mesmos não procedemos como deve ser.

‑ Essa acusação é tremenda! ‑ exclamou Dora, arregalando os olhos. ‑ Já me viste furtar relógios de ouro?

‑ Minha querida, não digas tolices. Quem se referiu a relógios de ouro?

‑ Tu bem o sabes. Disseste que procedi mal e comparaste‑me a ele.

‑ A quem?

‑ Ao criado, ao pequeno ‑ retorquiu ela, entre soluços. ‑ É preciso seres muito mau para comparar tua mulher com um criado ladrão. Por que não me disseste o que pensavas de mim, antes do casamento? Por que não me disseste, redondamente, estar convencido de que eu valia menos do que um moço deportado? Ah, que opinião tens de mim! Oh, meu Deus!

‑ Espera, Dora, meu amor ‑ acudi tentando retirar brandamente o lenço que ela levara aos olhos. ‑ O que estás a dizer é não só ridículo como perverso. Aliás, não é verdade.

‑ Sempre afirmaste que ele mentia, e agora acusas‑me do mesmo defeito. Que vai ser de mim?

‑ Meu amor, suplico‑te que sejas sensata e escutes aquilo que te digo e repito. Querida Dora, a não ser que aprendamos a cumprir o nosso dever para com aqueles que empregamos, eles por sua vez não aprenderão a cumprir o seu para com os patrões. Creio que lhes damos oportunidade de transgredir. Ainda que o nosso desleixo fosse voluntário (o que não é), escasseia‑nos o direito de continuar desta forma. Corrompemos positivamente o pessoal. É necessário pensar nisto. Não posso evitar de reflectir no caso, Dora. E aqui tens o que te queria dizer. Agora não fiques amuada.

Por muito tempo, Dora recusou‑se a consentir que eu lhe tirasse o lenço da cara. Continuava soluçando e murmurava, por trás daquele anteparo, que se eu era tão difícil não me devia ter casado. Por que não lhe dissera, mesmo na véspera do enlace, que tinha a certeza de ir ser infeliz? Se a não podia suportar, por que a não recambiava para Putney, a casa das tias, ou para a índia, reunir‑se a Julia Mills? Julia ficaria muito contente e não a compararia com um criado gatuno; Julia nunca a tratara de semelhante modo. Enfim, Dora mostrava‑se tão desolada, e esta desolação afligia‑me a tal ponto que senti a inutilidade de recomeçar tentativas desse género, por mais ternas palavras que empregasse. Fazia‑se mister achar outra solução.

Mas qual? «Formar‑lhe o espírito»? Este lugar‑comum tinha algo de sonoro e de prometedor, e eu decidi formar o espírito de Dora.

Principiei logo. Quando minha mulher se fazia pueril, eu bem queria prestar‑me aos seus caprichos, mas procurava tornar‑me sério. Ela sentia‑se descoroçoada ‑ e eu também. Falava‑lhe de assuntos que me interessavam. Li‑lhe Shakespeare, o que a fatigou ao máximo. Adoptei o costume de lhe dar, como por acaso, pequenos esclarecimentos úteis ou opiniões graves, e isto sobressaltava‑a, como se eu lhe rebentasse petardos aos ouvidos. Por mais hábil ou naturalmente que procedesse, para formar o espírito da minha juvenil esposa, não podia fugir a observar que ela compreendia por instinto aonde eu queria chegar e ficava logo tomada da mais viva inquietação. Considerava, em particular, Shakespeare um indivíduo perigoso. A formação daquele espírito progredia muito lentamente.

Recrutei Traddles para este serviço e, sempre que ele nos vinha visitar, eu começava a doutriná‑lo, para edificação indirecta de Dora. Foi incrível a quantidade de conhecimentos práticos de que dotei Traddles, mas isso não teve outro efeito em Dora senão aterrá‑la, no receio de que chegasse a sua vez. Tomei a atitude do mestre‑escola, mas dava‑me a impressão de que brincava com minha mulher à aranha e à mosca e que saía do meu buraco para pregar valentes sustos à rapariga.

Contudo, havendo decorrido esse estágio, achei que lhe «formara o espírito» e perseverei durante alguns meses. Por fim concluí que não lucrara nada, embora tivesse feito de ouriço ou de porco‑espinho, e comecei a pensar se o espírito dela já não estaria definitivamente formado e, com estas considerações, abandonei de vez o projecto, mais sedutor em palavras do que em factos. Resolvi, assim, contentar‑me com uma Dora infantil, sem tentar modificá‑la fosse no que fosse. Estava seriamente fatigado de ser sagaz e prudente e de ver a minha mulher no pólo oposto, sempre constrangida. E, assim, vim um dia para casa com brincos para lhe oferecer e uma coleira para o Jip, e o desejo de passar a ser agradável.

Dora ficou encantada com os presentes e beijou‑me cheia de satisfação. Continuava, porém, uma nuvem entre nós, e, se bem que ela fosse leve, decidi fazê‑la desaparecer. Se devia haver uma sombra, que fosse apenas dentro de mim.

Sentei‑me no sofá, junto de Dora, e pus‑lhe os brincos nas orelhas. Depois declarei‑lhe que não andávamos bem unidos nesses últimos tempos, e que a culpa era minha: disso estava persuadido ‑ e talvez não me enganasse!

‑ Para encurtar razões, Dora: procuro aperfeiçoar‑me.

‑ E fazer o mesmo a mim, Doady, não é verdade? Respondi com um sinal afirmativo e tornei a beijá‑la.

‑ Isto não serve de nada ‑ disse ela, oscilando a cabeça para fazer tilintar os brincos. ‑ Sabes como sou criança, e como desejei que mo chamasses desde o princípio. Se o não conseguires, temo que não possas amar‑me. Tens a certeza que não pensas, às vezes, que mais valera...

‑ O quê, meu amor?

‑ Nada.

Deitou‑me os braços ao pescoço, desatou a rir, classificou‑se de parvinha e escondeu o rosto no meu ombro: eram tantos os caracóis que foi difícil afastá‑los para lhe tornar a ver a cara.

‑ ... que mais valera ficar sossegado em vez de tentar formar o espírito de uma esposa‑criança? ‑ disse eu por meu turno, troçando de mim próprio. ‑ Era esta a pergunta? A resposta é afirmativa...

‑ Chegaste a essa conclusão? ‑ redarguiu Dora. ‑ Ah, que maroto!

‑ Mas não farei mais nenhumas tentativas. Amo a minha mulherzinha assim como ela é.

‑ Palavra? Não é intrujice? ‑ perguntou Dora, chegando‑se a mim.

‑ Porque hei‑de querer alterar o que me tem sido tão precioso? Tu não podes ser mais encantadora do que sendo naturalmente o que és, e nós não empreenderemos experiências idiotas. Voltaremos aos velhos hábitos e seremos felizes.

‑ Seremos felizes! ‑ repetiu Dora. ‑ Sim, sim, o dia inteiro. E não te zangarás se as coisas correrem um pouco à matroca, de tempos a tempos?

‑ Não, nada. Faremos o melhor que pudermos.

‑ Não voltarás a dizer‑me que tornamos os outros maus? ‑ implorou Dora. ‑ Não imaginas como é aborrecido ouvir uma coisa dessas!

‑ Não voltarei ‑ prometi.

‑ É melhor que eu seja estúpida do que infeliz, não achas?

‑ É melhor seres Dora, e já chega!

Abanou a cabeça, fitou‑me de olhos radiantes, beijou‑me, riu jovialmente e fugiu para ir pôr no Jip a coleira nova.

Foi assim que findou a minha última tentativa para modificar Dora. Fora infeliz na experiência. Não podia suportar a minha sabedoria solitária, não a podia conciliar com o desejo dela de ser uma esposa‑criança. Deliberei, pois, fazer sem alarde tudo quanto pudesse para melhorar o nosso modo de agir; previa, no entanto, que seria pouco útil se eu não retomasse o meu papel de aranha sempre a espreitar a ocasião.

E aquela sombra que nãO devia existir entre nós, para me ficar no fundo do coração? Como acontecera isso?

Pairava‑me de contínuo na existência o velho mal‑estar. Se se modificara, fora para se agravar mais. Permanecia de forma vaga, semelhante a uma canção triste ouvida ao longe, durante a noite. Eu amava a minha mulher com grande ternura e era feliz; mas a felicidade com que sonhara vagamente outrora não se parecia com aquela de que eu gozava; faltava‑lhe sempre qualquer coisa.

Para ser fiel à promessa que a mim próprio fiz de transcrever neste livro rigorosamente, tudo o que sentia, perscruto de novo o coração e ponho‑lhe a nu os segredos. O que eu perdera (considero agora e sempre considerarei) fora o sonho da mocidade, um sonho irrealizável e que me acompanhava com um sofrimento bastante compreensível, o que em geral acontece aos homens. Mas, por outro lado, sabia que seria melhor minha mulher ajudar‑me mais um pouco e partilhar comigo os pensamentos que eu guardava só para mim. E isto não era irrealizável.

Entre estas duas conclusões, que se não conciliavam, eu ia oscilando sem me aperceber claramente da sua oposição. Quando pensava nesses sonhos alados da juventude, esses sonhos impossíveis, lembrava‑me dessa idade feliz, a adolescência, que para mim passara já. À minha frente erguiam‑se, como sombras, os tempos decorridos, as horas em que convivera com Agnes naquela querida e velha residência. Eram fantasmas que talvez venham a renascer noutro mundo mas que não se reanimaram neste em que vivemos.

Não raramente diligenciava imaginar o que teria podido suceder ou que fatalmente haveria acontecido se eu e Dora nunca nos tivéssemos encontrado. Ela, porém, estava tão intimamente ligada à minha existência que esta ideia não chegava a tomar vulto e logo se me desaparecia da vista, como filandras ao vento.

Amava‑a sempre. O que analiso aqui dormia (e despertava em parte, para recair, logo adormecido) no mais obscuro da minha alma. Eu mal tinha consciência do facto, não acho que as minhas palavras ou acções pudessem de qualquer modo reflecti‑lo. Suportava o peso de todas as nossas preocupações e projectos. Dora aparava‑me as penas, e nós sentíamos que o nosso fardo estava proporcionado às nossas forças. Ela tinha‑me verdadeiro amor, orgulhava‑se de mim; e quando Agnes, nas cartas que lhe escrevia, notava em frases sentidas o interesse com que os meus velhos amigos ouviam falar da minha reputação crescente, ou liam os livros que eu publicava, Dora referia‑me essas cartas, com lágrimas de alegria nos olhos brilhantes, e acrescentava que eu era o seu adorado Doady e o seu marido célebre.

«O primeiro impulso ilusório de um coração indisciplinado.» Estas palavras da senhora Strong vinham‑me constantemente à memória. Acordava muitas vezes de noite, escutando‑as, e lembro‑me até de as ter visto em sonho escritas nas paredes da casa. Pois eu sabia agora que o meu próprio coração estava indisciplinado quando me apaixonei por Dora e que, se assim não fosse, não sentiria, depois do casamento, o que experimentava em segredo.

«Não pode haver enlace mais desigual do que esse em que existe incompatibilidade de génios.» Outra frase que se me fixara no espírito. Tentara adaptar ao meu o temperamento de Dora e esta tentativa malograra‑se. Só me restava adaptar o meu carácter ao seu, partilhar com ela o que pudesse, suportar‑lhe o fardo sobre os meus ombros e ser feliz apesar de tudo. Tal foi a disciplina que forcejei por me impor quando comecei a reflectir. E, mercê dela, o meu segundo ano de casado foi mais venturoso do que o primeiro, e ‑ o que ainda valia mais ‑ a vida de Dora resplandeceu com isso.

Contudo, para os fins desse ano, a saúde de Dora fraquejou. Eu esperava que outras mãos mais leves do que as minhas ajudassem a formar‑lhe o espírito e que um sorriso de nené no seu seio tornasse verdadeira mulher a que até aí fora apenas esposa‑criança. Mas não seria assim. A almazinha bateu as asas um momento no limiar da sua prisão e depois, inconsciente do cativeiro, tomou o voo.

‑ Quando eu puder correr outra vez, tia ‑ disse um dia Dora ‑ levarei o Jip atrás de mim. Ele está a tornar‑se mole, preguiçoso.

‑ Bem me parece ‑ respondeu a tia, que trabalhava placidamente ao lado dela ‑ que a sua única doença é a preguiça. Está velho, Dora.

‑ Acha isso? É esquisito, pensar que o Jip envelhece!

‑ É um mal a que estamos todos sujeitos, minha filha, conforme vamos avançando na vida.

‑ Mas o Jip... ‑ retorquiu Dora, contemplando o cachorro cheia de dó. ‑ Coitado...

‑ Estou certa de que ainda viverá bastante ‑ replicou a tia acariciando a face de Dora, que se abaixara para contemplar Jip. O animal levantou‑se logo nas patas traseiras e tentou diversos esforços asmáticos para erguer bem a cabeça. ‑ Será bom pôr‑lhe flanela na casota, no Inverno. Mas olha para ele. Por mais alquebrado que estiver, há‑de encontrar fôlego para vir ladrar‑me às saias.

Dora ajudara Jip a subir para o sofá, donde realmente desafiava a tia Betsey com tal furor que ia perdendo o equilíbrio. Quanto mais a senhora Trotwood o olhava, mais ele se insurgia, pois ela ultimamente usava óculos e o cachorro considerava isso uma ofensa pessoal.

Embora a custo, a dona persuadiu‑o a deitar‑se, e, vendo‑o já calmo, distraiu‑se a passar e repassar uma das longas orelhas entre os dedos, repetindo com ar pensativo: «Até este cãozinho! Coitado do Jip!»

‑ Seja como for, os pulmões ainda estão em bom estado ‑ disse jovialmente Betsey ‑ e as antipatias ainda vivas. Tem muitos anos à sua frente. Mas se queres um cão para correr contigo, este de facto já tem muita idade. Dar‑te‑ei outro.

‑ Obrigada, tia ‑ respondeu Dora, hesitante.

‑ Não queres? ‑ perguntou a tia, tirando os óculos.

‑ Não seria capaz de ter outro cão. Era uma crueldade feita a este. Nem poderia gostar de mais nenhum. Outro qualquer, não me tendo conhecido antes do casamento, não ladraria ao Doady quando o visse aparecer.

‑ É verdade ‑ corroborou a tia. ‑ Tens razão.

‑ Não ficou zangada?

‑ Eu! ‑ exclamou Betsey curvando‑se afectuosamente para ela. ‑ Imaginares tal coisa!

‑ Na verdade, não o pensava a sério. O que estou é cansada, o que me provocou a tolice de falar do Jip. Sempre fui tola, como sabe. E tu, Jip, que viveste sempre comigo, conheces‑me muito bem. Lá porque mudaste um pouco não há razão para te fazer mal.

O animal apertou‑se contra a dona e lambeu‑lhe vagarosamente a mão.

‑ Não és ainda tão velho que me queiras deixar, pois não? Ainda faremos companhia um ao outro.

Minha Dora querida! Quando ela desceu para almoçar, no domingo seguinte, ficou tão contente por ver Traddles (que todos os domingos jantava connosco) que nos convencemos que ela, dentro de pouco, estaria saudável como antes. Mas alguém nos disse: «Esperem ainda uns dias.» E depois: «Mais outros dias.» Afinal não andava nem corria. Embora sempre bonita e alegre, os pés que dançavam tão ligeiros em volta de Jip pareciam imóveis e inertes.

Não tardou que eu a tivesse de trazer ao colo, todas as manhãs, e de a levar ao colo todas as noites. Agarrava‑se‑me ao pescoço e ria como se eu fizesse aquilo para ganhar uma aposta. Jip latia e pulava de roda, ou passava à frente e voltava atrás, ofegante, para verificar se realmente o seguíamos. A tia Betsey, a melhor e mais disposta das enfermeiras, acompanhava‑nos, pesada e trôpega, verdadeira massa ambulante de xailes e almofadas. Dick não cederia a ninguém o seu papel de porta‑facho. E Traddles contemplava‑nos muita vez do baixo da escada e recebia recados de Dora para a sua sempre noiva. Fazíamos, na verdade, um cortejo divertido e a mais alegre era a minha esposa‑criança.

Com frequência, porém, quando a tomava nos braços e a achava mais leve, penetrava‑me uma sensação de frio inexplicável, como se me aproximasse de qualquer região gelada, ainda invisível, que me paralisava a vida. Evitava dar um nome a esse sentimento, ou analisá‑lo. Mas certa noite em que o sentira mais forte do que nunca, e quando Betsey se despediu com um derradeiro grito de «adeus, botãozinho de flor», eu sentei‑me só à escrivaninha e chorei ao pensar no nome fatal que se me impunha e na flor que se fanava, mal desabrochada ainda.

 

ESTOU ENVOLTO EM MISTÉRIO

Uma bela manhã recebi pelo correio a carta seguinte (datada de Cantuária e remetida para Doctor's Commons), e que li com certa surpresa.

 

Meu caro senhor

Circunstâncias alheias à minha vontade originaram, por algum tempo, a interrupção desta convivência que, apesar dos poucos ócios que me deixa o cumprimento das obrigações da profissão para contemplar as cenas e acontecimentos pretéritos, coloridos pelos matizes prismáticos da memória, sempre me concedeu, e continuará a conceder‑me, as mais raras e consoladoras sensações morais. Este facto, querido senhor, combinado com a posição eminente a que « seu talento o elevou, impede de me atrever a aspirar à honra de me dirigir ao companheiro da mocidade pelo nome familiar de Copperfield! Basta‑me dizer que esse nome será sempre preciosamente conservado entre os tesouros da nossa casa, (refiro‑me aos documentos coleccionados por minha mulher e respeitantes aos nossos antigos locatários) com sentimentos de grande estima a que não é estranha a afeição.

Não compete ao homem colocado, pelos seus erros e pelo concurso fortuito de acontecimentos tristes, na situação de um navio naufragado (se me é permitido empregar uma comparação marítima) pegar neste momento na pena para escrever com o vocabulário dos cumprimentos, das felicitações. Esse trabalho ficará para mãos mais hábeis e dignas.

Se as suas ocupações tão importantes lhe consentirem decifrar estes símbolos imperfeitos ‑ o que pode ser, ou não ser, conforme as circunstâncias ‑ perguntará naturalmente que motivo me levou a redigir esta missiva. Seja‑me lícito confessar que reconheço o carácter justíssimo dessa pergunta e me proponho expô‑lo, depois de o ter prevenido de que não se trata de assunto de natureza pecuniária.

Sem aludir de modo mais directo a qualquer capacidade latente que eu talvez possua de manejar o raio ou de orientar para aqui e ali a sua chama devoradora e vingativa, dar‑me‑á licença de observar, de passagem, que os meus sonhos mais belos para sempre se desvaneceram; que a minha pás está perturbada e destruída a possibilidade de ser alegre; que o coração está há muito tempo fora do seu lugar e que já não ando de cabeça erguida entre os meus semelhantes. O pulgão atacou a flor, o cálice de amargura encheu‑se até às bordas, as larvas trabalham e disporão qualquer dia da sua vítima. Quanto mais depressa melhor. Mas basta de digressões.

Posto numa situação moral particularmente penosa, onde nem chega a influência benéfica exercida por Emma na sua tripla qualidade de mulher, esposa e mãe, resolvi afastar‑me por algum tempo e outorgar‑me uma folga de quarenta e oito horas para rever o quadro metropolitano da felicidade transcorrida. Entre outras angras de paz doméstica e tranquilidade de alma, os meus pés encaminhar‑se‑ão certamente para a prisão de King's Bench. Ao dizer‑lhe que estarei lá (D. V. [1]) defronte da muralha meridional dessa mansão de encarcerados por processos cíveis, às sete horas da noite de depois de amanhã, tenho cumprido o objecto desta comunicação epistolar.

Não me sinto qualificado para solicitar ao meu velho amigo senhor Copperfield nem ao meu outro velho amigo doutor Thomas Traddles, digno ornamento do foro (se ainda é vivo e ainda frequenta esses lugares) que condescendam em ir ao meu encontro e renovar (tanto quanto possível) as nossas relações de outro tempo. Limito‑me a observar que à dita hora e dito local poderão encontrar os últimos vestígios que restam de uma torre em ruínas.

Wilkins Micawber.

P. S. Convém acrescentar ao texto supra que minha mulher não está no segredo destas minhas intenções.

 

Li e reli esta carta. Mesmo levando em conta a sublimidade do estilo epistolar de Micawber e o prazer extraordinário que ele sentia em redigir extensas cartas a propósito de tudo e de nada, não pude deixar de crer que algo de importante se ocultava nesta missiva tão arrevesada. Pu‑la de lado, para reflectir, e depois tornei a pegar nela a fim de a ler mais uma vez. Nesse instante chegou Traddles e a minha perplexidade atingiu o cúmulo.

‑ Caro amigo ‑ disse‑lhe eu ‑ nunca tive tanta satisfação em te ver. Chegas mesmo a propósito para me valeres com o teu bom senso. Acabo de receber uma carta deveras esquisita do senhor Micawber.

‑ Palavra? ‑ exclamou Traddles. ‑ Custa a crer! Pois eu acabo de receber uma carta da mulher dele.

Nesse comenos, animado pelo exercício pedestre e pela surpresa, Traddles apresentou‑se de cabelos eriçados, como se tivesse visto um fantasma, e tirou a carta da algibeira. Eu, em troca, dei‑lhe a que recebera.

Vi‑o mergulhar no âmago da epístola de Micawber. Respondi com um encolher de ombros ao que ele fizera ao ler manejar o raio... orientar para aqui e ali a sua chama devoradora e vingativa. Depois engolfei‑me na leitura da carta de Emma, que era assim concebida:

 

Os meus melhores cumprimentos ao doutor Thomas Traddles: se se lembra ainda de uma pessoa que conheceu outrora, permite que lhe peça uns minutos de atenção? Afianço‑lhe que não abusaria assim da sua bondade se não me sentisse tão à beira da loucura.

Por mais penoso que tal assunto seja para mim, é a indiferença de Wilkins Micawber (dantes tão apegado à família) que me leva a rogar‑lhe a sua indulgência, doutor Traddles. Não pode fazer ideia exacta da transformação que se operou no comportamento do meu marido, do seu desvario, da sua violência. Este estado tem vindo piorando gradualmente, a ponto de se aproximar já da alienação mental. Não se passa um só dia, garanto‑lhe, sem que se dê uma manifestação do que digo. Micawber chegou a declarar que tinha vendido a alma ao diabo!

Há certo tempo que a dissimulação e o mistério se tornaram os aspectos fundamentais do seu carácter, substituindo a confiança ilimitada que depositava em mim. Basta que me dirija a ele para indicar o que desejaria comer para que me participe querer pedir a separação. Ontem à noite os gémeos pediram‑lhe dois dinheiros para comprar uma especialidade da doçaria local ‑ e ele ameaçou‑os com uma faca de abrir ostras!

O senhor doutor perdoar‑me‑á todos estes pormenores, mas sem eles dificilmente compreenderia a situação deplorável em que nos achamos.

E agora ousarei confiar‑lhe o propósito desta carta? Permitir‑me‑á que apele para a swa solicitude amiga? Decerto, porque conheço o seu coração.

O olhar perscrutante da afeição não se deixa cegar com facilidade, sobretudo numa mulher. Micawber vai partir para Londres. Embora dissimulasse, esta manhã, o rótulo que estava a escrever para colar na mala, a vista de lince da minha ansiedade conjugal ainda descobriu as letras finais (... d, r, e, s) distintamente traçadas. A diligência tem no West End, como ponto de chegada, a Golden Cross. Atrever‑me‑ei a solicitar‑lhe que procure esse pobre transviado e faça o possível de o persuadir a ser assisado! Atrever‑me‑ei a rogar ao doutor Traddles que tente intervir entre Micawber e a família, que ele tanto tortura? Talvez seja pedir de mais!

Se o senhor Copperfield se lembrasse ainda de uma pessoa obscura como eu, o doutor Traddles seria capaz de lhe transmitir a minha humilde súplica e inalterável estima? De qualquer maneira, peço o obséquio de considerar esta carta como estritamente confidencial e de não aludir a ela por nada deste mundo, o mais tènuamente que seja, diante de Micawber. Caso deseje responder‑me (o que se me afigura pouco provável), umas palavras endereçadas a M. E., Posta Restante, Cantuária, engendraria consequências menos penosas do que se fosse dirigida directamente àquela que, na maior desolação, se assina muito amiga e impetrante

Emma Micawber.

 

‑ Que te parece essa carta? ‑ perguntou‑me Traddles, com um relance de olhos na minha direcção, depois de a ter percorrido com a vista pela segunda vez.

‑ E que pensas da outra? ‑ repostei, pois ele continuava a soletrá‑la, de cenho carregado.

‑ Creio que ambas, Copperfield, dizem mais do que marido e mulher costumam em geral dizer na sua correspondência... mas não sei o quê. Qualquer delas é escrita de boa fé, não duvido, e sem conivência. Coitada da senhora Micawber! ‑comparávamos agora a epístola de Emma com a do marido, ambos de pé ao lado um do outro. ‑ Seria uma obra de caridade responder‑lhe, ao menos para lhe afirmar que iremos encontrar‑nos com ele.

Acedi logo, com tanto maior empenho quanto me censurava no íntimo por haver tratado com indiferença a carta da senhora Micawber. Fizera‑me reflectir, como disse, durante algum tempo, porém as minhas próprias apoquentações e o que sabia da vida dos Micawbers depressa haviam afastado essa gente dos meus pensamentos. É claro que, se uma vez por outra o nome deles me acudia à mente, era para matutar em que «obrigações pecuniárias» estariam envolvidos em Cantuária e me recordar do tom reservado que Micawber adoptara diante de mim depois de ser empregado de Uriah Heep.

Escrevi, pois, a Emma uma carta consoladora, em nome de nós dois e que assinámos juntos. Ao irmos pô‑la no correio,

conversámos bastante pelo caminho e evocámos todo o género de suposições, que seria supérfluo enumerar aqui. Na mesma noite revelámos o segredo à tia Betsey e decidimos comparecer pontualmente à entrevista marcada por Micawber.

Embora tivéssemos cerca de um quarto de hora de avanço, ele já se encontrava no ponto indicado. Estava de braços cruzados, diante da muralha, considerando com expressão sentimental os espigões do topo, como se fossem raminhos de árvores entrelaçados que houvessem sombreado a sua juventude.

Quando nos aproximámos vimos quanto as suas maneiras tinham mudado, quanto ele era, de uma forma geral, menos distinto. Para esta espécie de excursão, de preferência ao fato preto das funções oficiais, envergara a sobrecasaca e calças muito justas de outro tempo, mas isto não lhe dava a mesma elegância de outrora. A pouco e pouco, no decurso da conversa, aquela recomeçou a impor‑se: todavia o monóculo dir‑se‑ia pender com menos à‑vontade, e o colarinho, embora ainda de proporções imponentes, não conservava a rigidez antiga.

‑ Cavalheiros ‑ disse Micawber depois das primeiras saudações ‑ são meus amigos nos dias de desgraça, portanto amigos verdadeiros. Permitam‑me que pergunte pela saúde da senhora Copperfield in esse e da senhora Traddles in posse... supondo, é claro, que o meu amigo Traddles ainda não esteja unido ao objecto da sua afeição, para os bons como para os maus dias.

Agradecemos‑lhe a delicadeza e respondemos como convinha. Ele então chamou‑nos a atenção para a muralha e expressou‑se nestes termos:

‑ Afianço‑lhes, cavalheiros ‑ e, quando o interrompi para protestar contra este vocativo cerimonioso, e pedir nos tratasse como dantes, continuou: ‑ Meu caro Copperfield, a sua cordialidade comove‑me. ‑ Neste momento apertou‑me a dextra. ‑ Semelhante recepção feita às ruínas deste Templo (outrora digno do nome de Homem, se assim me ouso classificar) testemunha um coração que honra o género humano. Eu ia dizer‑lhes que contemplava mais uma vez este asilo de paz em que decorreram algumas das horas mais felizes da minha vida!

‑ Graças à presença da senhora Micawber ‑ observei. ‑ Espero que ela esteja de boa saúde.

‑ Muito obrigado ‑ replicou Micawber, cujo rosto se entenebreceu. ‑ Ela vai menos‑mal. E eis agora ‑ recomeçou, meneando tristemente a cabeça ‑ o King's Bench. Este lugar onde, pela primeira vez na minha vida, o peso esmagador das minhas obrigações pecuniárias não me era recordado dia após dia pela voz de intrusos que se recusavam a deixar‑me o corredor; em que as portas não tinham campainha que pudesse ser tocada pelos credores, e os meirinhos eram desnecessários e as reclamações sustidas ao portão. Cavalheiros, quando a sombra dos ornamentos de ferro desta muralha de tijolos caía sobre a areia da Parada, eu via os meus filhos percorrer o dédalo do intrincado desenho e tomar cuidado em não pôr os pés nos cantos sombrios. Cada pedra desta casa tornara‑se‑me familiar. Se eu denuncio alguma comoção, peço‑lhes que a compreendam e a desculpem.

‑ Todos nós, senhor Micawber, seguimos depois disso o nosso fado... ‑ observei‑lhe.

‑ Senhor Copperfield ‑ replicou com amargura ‑ quando eu habitava este retiro, podia olhar de frente os meus semelhantes e seria capaz de os castigar se me ofendessem. Já não os posso tratar com essa segurança gloriosa! ‑ Afastando‑se, abatido, do edifício, Micawber aceitou o meu braço, de um lado, e do outro o de Traddles, e seguiu connosco, retomando o fio do seu discurso: ‑ Há marcos na estrada do túmulo que nós desejaríamos (se tal desejo não fosse ímpio) jamais haver ultrapassado. O King's Bench é um desses marcos na minha carreira tão variada.

‑ Está desanimado, senhor Micawber? ‑ disse‑lhe Traddles.

‑ Se estou!

‑ Espero que não tivesse tomado aversão ao Direito, pois, como sabe, sou advogado.

Micawber não lhe respondeu.

‑ E como vai o nosso amigo Heep? ‑ inquiri, após um momento de silêncio.

O homem empalideceu, ficou subitamente muito excitado e replicou:

‑ Se ele é seu amigo, lastimo; se o consideram meu amigo, só posso ter um sorriso sarcástico. De qualquer maneira (espero não os magoar) contentar‑me‑ei em responder isto: seja qual for o seu estado de saúde, ele tem sempre o aspecto de uma raposa... para não dizer de um demónio. Permitir‑me‑ão que não prossiga num assunto que me tem reduzido ao desespero no exercício da profissão.

Desculpei‑me por haver involuntariamente aflorado um tema que o transtornava tanto, e acrescentei:

‑ Posso inquirir notícias da senhora Wickfield e do pai sem cair no mesmo erro?

‑ A senhora Wickfield ‑ explicou ele, corando desta vez ‑ é sempre um modelo de virtudes. Meu caro Copperfield, acho que essa dama brilha como a única estrela na minha estrada sombria. O respeito que lhe consagro, a admiração que me inspira a sua docilidade, lealdade e demais partes... não têm limites! Oh, levem‑me para uma artéria mais deserta, porque no estado em que me encontro esta comoção é demasiado forte para mim!

Levámo‑lo rapidamente para uma travessa estreita, onde Micawber tirou o lenço e se apoiou a uma parede. Se eu o olhava com a mesma gravidade de Traddles, o nosso companheiro havia de nos achar pouco consoladores.

‑ Quer o meu destino ‑ disse soluçando sinceramente, embora com um resto da sua velha afectação ‑ que os mais nobres sentimentos naturais se tornem para mim em censuras. A homenagem que presto à senhora Wickfield cai‑me como uma dúzia de frechas no coração. Mais valia que me deixassem partir, como um vagabundo, pela superfície do globo. Em pouco tempo, os vermes tomarão conta do meu corpo.

Sem darmos despacho a este requerimento, permanecemos imóveis até que ele voltou a guardar o lenço, endireitou o colarinho e, para disfarçar, pois havia vizinhança, cantarolou qualquer coisa, desabando o chapéu para a orelha. Declarei então, não sabendo que o tornaríamos a ver, que me daria muito gosto em apresentá‑lo à minha tia, isto no caso de querer acompanhar‑nos a Highgate, onde tinha cama ao seu dispor.

‑ Fará um ponche à sua moda ‑ acrescentei ‑ e esquecerá todas as suas preocupações na recordação dos bons tempos.

‑ E se isso o aliviar mais, senhor Micawber ‑ acudiu Traddles com prudência ‑ confie‑nos o que o atormenta.

‑ Cavalheiros ‑ redarguiu Micawber ‑ façam de mim o que quiserem. Sou apenas uma palhinha à superfície do oceano, e estou empurrado por todos os lados pelos elefantes... perdão, queria dizer pelos elementos.

Prosseguimos de braço dado e chegámos à diligência na ocasião em que ela ia partir. Alcançámos Highgate sem nenhum incidente de viagem. Eu pensava o que seria preferível contar ou fazer em casa, e Traddles, evidentemente, cogitava no mesmo. Micawber viera a maior parte do trajecto mergulhado em melancolia profunda. Fez um ou outro esforço para se recompor e ainda cantarolou, mas, a cada recaída, o espectáculo irónico de um chapéu desabado e de um colarinho muito subido transformava a sua tristeza em algo de impressionante.

Entrámos na residência da senhora Trotwood, e não na minha, por causa do estado de saúde de Dora. A tia compareceu quando a prevenimos e recebeu o senhor Micawber com grande amabilidade. Este beijou‑lhe a mão, aproximou‑se da janela e, tirando o lenço, lutou em silêncio contra as lágrimas que pretendiam aflorar‑lhe aos olhos.

O senhor Dick estava presente. Confrangia‑se tanto com as dores alheias que apertou a mão do visitante meia dúzia de vezes, pelo menos, no decurso de cinco minutos. Tão ardente compaixão da parte de um desconhecido influiu de tal maneira no coração de Micawber que não resistiu a exclamar, a cada aperto de mão: «Oh, cavalheiro, por quem é!» Com o que o senhor Dick, por seu turno comovido, recomeçava com maior vigor.

‑ A benevolência deste cavalheiro ‑ disse Micawber à minha tia ‑ derruba‑me literalmente, se me consente empregar uma expressão tirada de um dos nossos desportos mais brutais.

Recepções como esta, minha senhora, são demolidoras para quem se debate sob o duplo fardo da inquietação e da perplexidade.

‑ O meu amigo Dick ‑ replicou a tia Betsey ‑ não é um homem vulgar.

‑ Também o creio. Caro cavalheiro ‑ acrescentou virando‑se para o senhor Dick, que lhe tornou a apertar a mão ‑ estou profundamente sensibilizado com a sua cordialidade.

‑ Como se sente? ‑ perguntou‑lhe ansioso o senhor Dick.

‑ Assim assado, caro senhor ‑ respondeu Micawber suspirando.

‑ Não deve deixar‑se derrotar.

Estas palavras consoladoras e novo aperto de mão foram em excesso para Micawber.

‑ Tenho tido a sorte, às vezes ‑ exclamou ele ‑ de encontrar um oásis no meio das vicissitudes da existência; mas nunca se me deparou nenhum tão verde e tão cheio de refrigério!

Noutra ocasião qualquer isto ter‑me‑ia feito sorrir, mas estávamos constrangidos, pouco à vontade; inquietava‑me tanto ver Micawber dividido entre os desejos contraditórios de falar e de se calar, que cheguei a sentir febre. Traddles, sentado à borda da cadeira, de olhos esbugalhados e cabelos mais hirtos do que nunca, fitava alternadamente o chão e o senhor Micawber, sem sequer tentar dizer fosse o que fosse. A tia Betsey concentrava sobre o visitante a sua atenção e era a única de nós todos que não perdera a serenidade. Fazia as honras da conversa e obrigava‑o a falar, quer ele quisesse ou não.

‑ É um velho amigo do meu sobrinho, senhor Micawber. Tenho pena de não me haver sido dado o gosto de o conhecer há mais tempo.

‑ Minha senhora, eu por meu lado lamento não ter tido a honra de lhe ser apresentado antes desta noite. Não fui sempre a ruína que sou hoje.

‑ Espero que a senhora Micawber e os seus filhos estejam bem...

Micawber baixou acabeça, e com ar desesperado, depois de uns momentos de hesitação, disse:

‑ Tão bem como é de crer que estejam infelizes estrangeiros ou desterrados...

‑ Meu Deus, senhor Micawber! ‑ exclamou Betsey, com a sua costumada brusquidão. ‑ Que quer dizer com isso?

‑ A subsistência dos meus, minha senhora, periclita. O meu patrão...

Aqui Micawber deteve‑se como se de propósito e começou a descascar os limões que por minha ordem, lhe tinham trazido juntamente com os demais ingredientes necessários à confecção do ponche.

‑ O seu patrão, dizia o senhor... ‑ acudiu o senhor Dick, sacudindo‑lhe o braço para lhe recordar o assunto interrompido.

‑ Ah, é verdade... Agradeço‑lhe. ‑ Novo aperto de mão. ‑ Ele, o senhor Heep, deu‑me um dia a honra de participar que, sem os emolumentos atinentes à minha situação, no seu cartório eu não seria decerto mais que um saltimbanco que percorre o país, a engolir espadas ou a tragar fogo. Pois, tanto quanto sei, os meus filhos estarão reduzidos ao extremo de ganhar a vida dando cabriolas, enquanto minha mulher animará as suas proezas desnaturadas servindo‑se de um realejo.

Micawber, com um movimento da faca, ocasional mas expressivo, deu a entender que esses exercícios seriam prováveis depois da sua morte. Em seguida voltou a ocupar‑se dos limões, com ar desesperado.

A tia Betsey apoiou o cotovelo sobre a mesinha de pé‑de‑galo, que estava próxima, e examinou atentamente o senhor Micawber. Apesar da repugnância que eu experimentava em lhe arrancar uma confidência que ele não parecia disposto a fazer livremente, apegar‑me‑ia às suas últimas palavras se o não visse proceder a estranhos preparativos. Deitou a casca do limão na chaleira, o açúcar no prato do espevitador de velas, a aguardente no jarro vazio, e esperou confiante que a água fervesse para a retirar com o castiçal. Compreendi que estava iminente uma crise. Juntou ao acaso todos os utensílios e ingredientes, levantou‑se da cadeira e, tirando o lenço, principiou a chorar.

‑ Meu caro Copperfield ‑ murmurou no meio dos soluços ‑ esta operação requer, mais do que nenhuma, um espírito calmo e o domínio de si mesmo. Não conseguirei levá‑la a termo. Nem vale a pena pensar nisso!

‑ Mas que aconteceu, senhor Micawber? Estamos entre amigos.

‑ Entre amigos! ‑ repetiu ele. E tudo o que tencionava ocultar subiu‑lhe à boca. ‑ Meu Deus, é precisamente por me ver entre amigos que me encontro em tal estado de espírito. O que há, meus senhores? O que não há, é que se devia perguntar. O que há é infâmia, vileza, ludíbrio, conspiração. E esta reunião atroz tem o nome de... Heep!

A senhora Trotwood bateu palmas e nós todos prestámos a maior atenção.

‑ Não lutarei mais! ‑ exclamou Micawber, agitando frenético o lenço e lançando de tempos a tempos os braços para diante, como se nadasse contra uma corrente impetuosa. ‑ Esta vida não continuará assim. Sou um ser miserável, posto à margem de tudo que torna a existência tolerável. Considerei‑me como um interdito ao serviço de um canalha infernal. Restituam‑me a esposa, os filhos, devolvam Micawber ao pobre indivíduo que vegeta agora sob este nome. Se amanhã me ordenarem que engula uma espada, obedecerei. E com apetite!

Eu nunca vira ninguém tão excitado. Tentei tranquilizá‑lo, fazê‑lo dizer coisas mais sensatas. Mas o homem excedia‑se e não escutava a voz do bom senso.

‑ Não serei digno de convívio com gente sã ‑ declarou Micawber, arquejando e soluçando sempre ‑ antes de esmagar essa serpente asquerosa chamada... Heep! Não tornarei a aceitar a hospitalidade seja de quem for antes de ter sumido... na lava do Vesúvio... esse velhaco infame... que se chama Heep! Tomar qualquer coisa sob este tecto... especialmente ponche... sufocar‑me‑ia... a não ser que tivesse esganado primeiro esse biltre abominável... chamado Heep! Já não quero novos conhecimentos... nem falar com os outros... nem ir a parte nenhuma... sem ter destruído, reduzido a pó... esse hipócrita... esse perjuro consumado... que se chama... Heep!

Realmente, receei ver o senhor Micawber morrer‑nos debaixo dos olhos. A maneira como ele se debatia através dessas frases inarticuladas e, sempre que se aproximava do nome de... Heep, a forma como abria caminho, quase desmaiando, para proferir esse apelido com uma violência inacreditável ‑ tudo isto tinha muito de assustador. Mas depressa se deixou recair na cadeira, ainda espumando de todas as cores possíveis, um nó na garganta obstruía‑lhe a fala, Dir‑se‑ia estar nas vascas da agonia. Procurei socorrê‑lo, mas repeliu‑me com um gesto, surdo às minhas objecções.

‑ Não, Copperfield! Nem uma palavra antes que... senhora Wickfield... desagravar os malefícios desse patife... Heep! ‑ Estou certo de que não poderia dizer seis palavras seguidas sem a energia com que esta última parecia electrizá‑lo, quando ele a sentia vir. ‑ Um segredo inviolável para todos... sem excepção... de hoje a uma semana... almoço... todos nós... até a senhora Trotwood e este excelente cavalheiro... no hotel de Cantuária onde... a senhora Micawber... e eu próprio... desmascararei esse celerado intolerável... esse... Heep! Não digo mais nada. Não escutarei nada... vou‑me embora já... incapaz de suportar a companhia... na pista desse maldito traidor, esse... Heep!

Depois da repetição deste nome mágico, feita com maior energia do que nunca, Micawber precipitou‑se para fora de casa, deixando‑nos mergulhados num misto de agitação, de esperança e de espanto quase semelhantes ao seu. Mas mesmo então o seu amor da epistolografia foi mais forte que tudo, pois, antes que a nossa comoção se aquietasse, recebi de uma taberna próxima a seguinte pastoral escrita pouco antes:

 

Estritamente confidencial. Meu caro senhor

Venho rogar‑lhe o favor de transmitir à sua ilustríssima tia as minhas desculpas pelos excessos a que me acabo de entregar.

Uma crise moral (mais fácil de imaginar do que de descrever) determinou a actividade de um vulcão que dormia há muito tempo.

Espero ter conseguido explicar claramente o encontro que lhes demos para de hoje a oito dias, na parte da manhã, nesse restaurante em que eu e minha mulher tivemos a honra, outrora, de unir as nossas vozes às dos senhores, no ardor das bem conhecidas estrofes escritas nas margens do Tweed [2].

Uma vês; cumprido este dever e este acto de reparação, necessária para poder olhar de frente os meus semelhantes, nada mais terei que dizer, excepto que me ponham no campo do repouso eterno, onde Na estreita cela para sempre Dormem os rústicos avós...

E com esta simples inscrição:

Wilkins Micawber.

 

REALIZA‑SE O SONHO DE DANIEL PEGGOTTY

Haviam decorrido uns meses depois da entrevista que tivéramos com Martha, à beira do Tamisa. Eu não a tornara a ver, ela todavia escrevera por várias vezes a Daniel Peggotty. Nada resultara das suas porfiadas diligências. Não se recolhera o menor indício que conduzisse à descoberta de Emily, Devo confessar que principiava a crer que ela tinha morrido.

Contudo a confiança do tio nunca enfraquecera. Tanto quanto sei ‑ e esse coração simples creio que não tinha segredos para mim ‑ ele manteve sempre a certeza de a encontrar. Dispunha de uma paciência infinita. E embora eu temesse ao pensar no que seria a sua angústia se um dia lhe fosse roubada essa firme certeza, havia nela qualquer coisa mística, e comovia tanto senti‑la nas mais puras profundezas da sua alma que o respeito e veneração que ele me inspirava aumentavam constantemente.

Essa esperança não era do género que crê e não actua. Toda a vida fora homem de acção. Sabia quanto era necessário, em tudo, começar por agir sem desfalecimentos. Vi‑o levantar‑se a meio da noite, receando que por qualquer circunstância a luz se houvesse apagado na janela da velha embarcação ancorada; vi‑o depois pôr‑se a caminho para Yarmouth; vi‑o pegar no bordão e calcorrear sessenta a oitenta milhas. Até Nápoles foi por mar, depois de ouvir a narrativa da senhora Dartle. Realizava todas estas viagens constante e resoluto, fazendo economias severas com vista ao instante em que toparia a sobrinha. Nunca, nessa busca porfiada, lhe ouvi soltar um queixume ou dizer que estava cansado, ou confessar desânimo.

Dora tinha‑o visto por várias vezes depois do nosso casamento. Lembro‑me dele, de pé ao lado do sofá, com o boné de pêlo comprido na mão; lembro‑me do espanto tímido que se manifestava nos olhos azuis da minha mulher. Em certas ocasiões, quando ele vinha, ao cair da tarde, conversar comigo, eu animava‑o a fumar cachimbo no jardim, enquanto passeávamos; e então confrangia‑me a ideia do seu lar destruído. Recordava‑me do bem‑estar que ali sentira, em pequeno, quando o lume crepitava e o vento gemia derredor.

Certo dia, pela mesma hora, Peggotty veio dizer‑me que Martha o esperara na véspera à noite, perto da sua casa, no momento em que ele saía. E recomendara‑lhe que de nenhum modo deixasse Londres antes de ela o procurar novamente.

‑ Explicou‑lhe porquê? ‑ indaguei.

‑ Não lhe perguntei, menino Davy, mas a rapariga nunca fala muito. Obrigou‑me a prometer‑lhe isso, e foi‑se embora.

‑ Disse‑lhe mais ou menos quando tornaria a procurá‑lo?

‑ Não, menino Davy ‑ replicou Peggotty, passando com ar pensativo a mão pela cara. ‑ Também quis saber, mas não obtive outra informação.

Eu já evitava dar‑lhe muitas esperanças, de maneira que me limitei a acrescentar, sem mais comentários, que ele decerto a veria em breve. Guardei para mim as reflexões que a notícia me inspirara; e essas reflexões não eram optimistas.

Outra vez à tarde, passeava eu no jardim. Guardo a recordação precisa do momento: era a segunda semana de incertezas acerca de Micawber. Chovera todo o dia e a atmosfera estava húmida, com a folhagem espessa vergando ao peso das gotas de água. Mas, embora ainda houvesse nuvens no céu, a chuva cessara e a passarada chilreava. Eu ia e vinha, e entretanto descera a noite e as vozes das aves calaram‑se. Em mim se concentrou esse silêncio especial das noites do campo, quando os mais ténues dos ramos de árvore se imobilizam e não se ouve senão o ruído das folhas que largam os últimos pingos.

Existia ao lado da vivenda um corredor coberto de hera, ao fim do qual se descortinava a estrada. Absorto nos meus pensamentos, virei a cabeça naquela direcção e vi que estava alguém do lado de fora a olhar ansiosamente para mim e a fazer‑me sinais.

‑ Martha! ‑ exclamei, indo ao seu encontro.

‑ Pode sair comigo? ‑ perguntou‑me muito agitada. ‑ Fui a casa dele, mas não estava. Deixei‑lhe um bilhete dizendo‑lhe onde nos encontraria, o qual ficou em cima da mesa. Informaram‑me de que não tardava a entrar. Tenho notícias. Pode acompanhar‑me já?

Por única resposta, transpus a vedação. A rapariga, com um gesto dos dedos, impôs‑me silêncio, e encaminhou‑se para Londres, donde devia ter vindo a pé e a toda a pressa.

Perguntei‑lhe se era para lá que nós íamos. Respondeu‑me afirmativamente, com o mesmo gesto rápido que já empregara, e eu mandei parar um trem vazio que passava... Subimos para ele. Disse a Martha que indicasse a direcção ao cocheiro.

‑ Mais ou menos nas imediações de Golden Square. E sem demora! ‑ elucidou.

Em seguida, encolheu‑se num canto da carruagem, tapou a cara com a mão trémula, e, com a outra, fez gesto idêntico aos precedentes, como se não suportasse o som de vozes.

Agora já muito perturbado, e perdido entre os fogos cruzados da esperança e do temor, olhei para Martha em busca de uma explicação. Vendo‑lhe, porém, o desejo insistente de silêncio e não tendo, por minha parte, grande vontade de falar, continuei mudo. Não trocámos uma palavra. De vez em quando, ela olhava para o exterior, como se achasse que íamos muito devagar, o que aliás não era o caso; depois retomava sempre a atitude primitiva. O trem deixou‑nos numa das entradas do largo que ela indicara e eu disse ao cocheiro que esperasse, porque não sabíamos se ainda seria preciso. Martha apoiou a mão no meu braço e arrastou‑me por uma dessas ruas escuras, tão numerosas naqueles sítios, onde as casas, outrora belas residências familiares, se haviam tornado há muito tempo pobres habitações de aposentos alugados. Depois de passarmos a porta aberta de uma delas, Martha largou‑me o braço e fez sinal que a seguisse pela escada, tão concorrida que parecia um afluente da rua.

A casa estava repleta de inquilinos. À nossa passagem abriam‑se portas e apareciam rostos; antes de entrar vi mulheres e crianças que nos espiavam à janela, atrás de vasos de plantas. Suponho que excitáramos a curiosidade dos locatários. A escada era larga e assoalhada, de corrimão maciço feito de madeira escura, as portas sobrepostas de cornijas, ornadas de frutos e flores esculpidas; havia bancos nos vãos. Mas todos estes sinais de grandeza pretérita se apresentavam lastimàvelmente desfigurados e sujos; a podridão, a humidade e a velhice tinham atacado o soalho, nalgumas partes já pouco sólido e perigoso. Notei que se tentara deter a derrocada geral insuflando sangue novo nessa carcaça oscilante; aqui e ali velhas obras de madeira consertadas com pinho: dir‑se‑ia a união inconveniente de um nobre arruinado com uma rapariga do povo, em que cada um se arrepia do outro. Algumas das janelas que davam para o pátio mostravam‑se tapadas, e as outras exibiam vidraças partidas. Através dos caixilhos apodrecidos, pelos quais entrava ar corrupto, descobri outras janelas sem vidros de outras casas arruinadas.

Subimos até ao último andar. Duas ou três vezes, pelo caminho, parecera‑me que ia à nossa frente uma mulher, pelo menos divisava‑lhe a saia. Ao alcançarmos o derradeiro patamar, que nos separava do telhado, vimos perfeitamente a desconhecida parar um instante defronte da porta, depois girar o puxador e entrar. ‑ Que é isto? ‑ murmurou Martha. ‑ Entrou no meu quarto. E não a conheço.

Conhecia‑a eu. Estupefacto, verificara que era Rosa Dartle. Em termos vagos, expliquei à minha companheira que se tratava de uma senhora que eu já tinha visto. Daí a pouco ouvimos‑lhe a voz, mas sem poder distinguir ainda o que ela dizia. Martha, surpreendida, impôs‑me outra vez silêncio e conduziu‑me sem ruído por uma porta pequena, sem fecho, que pertencia a um quartinho minúsculo, pouco maior do que um armário. Entre este e o quarto que ela dissera ser o seu, existia uma comunicação, nesse momento entreaberta. Detivemo‑nos ali, ofegantes da subida; não descortinava do aposento contíguo, que parecia grande, senão a cama e algumas vulgaríssimas estampas de navios nas paredes. Não podia lobrigar nem a senhora Dartle nem a pessoa com quem ela falava. E decerto a Martha acontecia o mesmo, porque eu estava mais bem colocado. Por instantes reinou silêncio absoluto.

‑ Não importa que essa criatura não esteja ‑ dizia Rosa Dartle. ‑ Nunca ouvi esse nome. A si é que eu desejo falar.

‑ A mim? ‑ retorquiu uma voz branda. Percorreu‑me o corpo um arrepio: a voz de Emily!

‑ Sim, senhora. Vim admirá‑la. O quê? Não se envergonha desse rosto que tanto mal causou?

O ódio intenso e implacável que vibrava naquela voz, a violência fria e calculada, a raiva contida, deram‑me o retrato exacto da senhora Dartle, como se a visse em plena claridade. Percebia‑lhe os olhos pretos fulgurantes e o corpo emagrecido, e a cicatriz branca que lhe cruzava os lábios e que fremia e palpitava.

‑ Vim ver ‑ continuou Rosa ‑ o objecto dos caprichos de James Steerforth, a criatura que fugiu com ele e que alimenta as más linguas da sua terra natal, a companheira descarada, hábil e provocante de um homem como James Steerforth! Quis saber como era feita uma mulher desse género.

Ouviu‑se um rumor, como se a pobre rapariga, a quem se dirigiam estes ultrajes, se houvesse precipitado para a porta. Mas a outra impediu‑lhe a saída. Pairou o silêncio.

A senhora Dartle voltou a falar, de dentes cerrados e batendo o pé:

‑ Fique aí! Ou então participarei a todo o prédio e a toda a rua o que você é! Se tentar fugir, retê‑la‑ei, nem que seja pelos cabelos, e levantarei contra a sua pessoa as pedras da calçada.

Como resposta, senti um murmúrio apavorado. Depois houve novo silêncio. Eu não sabia que fizesse. Por maior desejo que fosse o meu de pôr cobro à cena, achava que não tinha o direito de me mostrar. Só Daniel Peggotty poderia aparecer e levá‑la. Não chegaria ele, nunca mais? Isto pensava eu cheio de impaciência.

‑ Com que então ‑ prosseguiu Rosa, rindo desdenhosamente ‑ vejo‑a por fim! Coitado do rapaz, que se deixou prender por essa falsa modéstia e essa cabecinha à banda!

‑ Por amor de Deus, cale‑se! ‑ suplicou Emily. ‑ Seja a senhora quem for, conhece a minha triste história. Então, poupe‑me, por amor de Deus, se quer que os outros lhe façam o mesmo.

‑ A mim, querer que me poupem? ‑ respondeu Rosa, enfurecida. ‑ Que é que existe de comum entre nós, desejava saber!

‑ Apenas o sexo ‑ volveu Emily lacrimosa.

‑ E isso, invocado por um ser tão abjecto como você, é um laço que bastaria para me gelar o coração, se nele houvesse ainda espaço para outra coisa além do desprezo e do horror. O nosso sexo! Muita honra faz ao nosso sexo...

‑ Mereço que assim me tratem, mas é cruel. Pense no que sofri e naquilo em que me tornei. Ó Martha, volta para cá, volta depressa!

Rosa instalara‑se numa cadeira defronte da porta e baixou os olhos, como se Emily se lhe rojasse aos pés. Estando nesse momento entre mim e a janela, eu podia ver‑lhe o lábio desdenhoso e o olhar atroz fixando‑se intensamente num único ponto, com uma avidez triunfante.

‑ Oiça o que lhe vou dizer e reserve as suas manhas para os incautos. Espera comover‑me, a mim, com lágrimas? Nem com lágrimas nem com sorrisos, sua escrava vendida!

‑ Tenha dó desta infeliz. Mostre‑me um pouco de compaixão, para que eu não enlouqueça.

‑ Não seria grande castigo para as suas culpas. Sabe o que fez? Já pensou no lar que destruiu?

‑ Ah, não se passa um só dia, uma só noite em que eu não pense nisso! ‑ exclamou Emily.

Pude então entrevê‑la, de joelhos, com a cabeça lançada para trás, o rosto pálido erguido ao céu, as mãos juntas e estendidas com desespero e o cabelo lustroso esparso pelos ombros.

‑ Não se passou um dia ‑ continuou ‑ em que o não revisse tal como na hora funesta em que lhe voltei costas para sempre. Ó minha casa! Querido tio! Se tu houvesses sabido a tortura que seria para mim o teu amor, quando me desviei do bom caminho, se ao menos te zangasses uma vez comigo... eu não conheceria a força desse amor nem experimentaria tantos remorsos... Que consolo posso ter, se foram sempre tão bons para com esta ingrata?

Caiu com a face para o chão perante a criatura imperiosa sentada na cadeira e, com gestos imploradores, tentou pegar‑lhe na fímbria da saia.

Rosa Dartle não deixava de a contemplar, tão impassível como uma estátua de bronze. Apertava os lábios com força, talvez pela necessidade de se conter (esta foi a minha convicção) para não agredir com os pés a bela a eles ajoelhada. Distinguia‑a perfeitamente: toda a energia da mulher se concentrava naqueles lábios cerrados. Peggotty nunca chegaria? ‑ Oh, mísera vaidade dos vermes da terra! ‑ disse ela quando acabou por dominar as pulsações desaustinadas do coração.

‑ O seu lar! Imagina que eu supus que você praticou um acto que se não emenda com dinheiro? Você era apenas uma mercadoria nesse lar, e foi vendida e comprada como todas as outras mercadorias que os da sua laia negoceiam.

‑ Ah, isso não! Diga o que quiser, mas não faça recair a minha desonra, o meu opróbrio, mais do que é necessário, sobre pessoas que são tão honestas como a senhora. De mim não tenha dó, mas a eles respeite‑os, se é uma dama!

‑ Refiro‑me ‑ objectou Rosa Dartle, sem fazer caso daquela súplica e subtraindo a saia ao contacto impuro da mão de Emily ‑ refiro‑me ao lar dele, onde vivo! Realmente ‑ acrescentou olhando para a pobre rapariga prostrada a seus pés e apontando para ela, com um riso desdenhoso ‑ aí está um belo assunto de divisão entre mãe e filho de boas famílias, uma digna razão de desgosto onde você não seria admitida nem sequer como criada. Lama apanhada no rego da rua para divertimento de uma hora, e depois recambiada ao lugar de origem!

‑ Não, não! ‑ bradou Emily, unindo as mãos. ‑ Até ao dia em que ele se me atravessou no caminho... ah, por que alvoreceu esse dia para ele e não me trouxe, a mim, a tumba?... eu fui educada tão virtuosamente como a senhora ou outra dama qualquer, e ia casar com um homem como nenhum melhor casaria consigo ou com outra senhora da melhor estirpe! Se vive em casa desse homem e o conhece, a senhora sabe decerto o poder que James era capaz de exercer numa rapariga fraca e frívola. Não me defendo, mas sei bem, e James sabe igualmente muito bem (pelo menos sabê‑lo‑á à hora da morte), que se serviu desse poder para me iludir e que eu nele acreditei e o amei.

Rosa Dartle pulou da cadeira, recuou, e, recuando sempre, ergueu a mão para Emily, com um rosto tão desfigurado pela cólera que eu estive quase a lançar‑me entre ambas. Mas o golpe desferido ao acaso caiu no vácuo. Quando a vi de pé e ofegante, fitando Emily com todo o ódio de que era capaz, e tremendo dos pés à cabeça na sua raiva e no seu desprezo, pensei que não presenciara até aí e jamais voltaria a presenciar espectáculo semelhante.

‑ Você, amá‑lo? Você? ‑ gritou, de punhos fechados e tão trémula como se apenas esperasse encontrar uma arma para a brandir sobre o objecto da sua ira.

Emily afastara‑se para longe do alcance da minha vista. Não houve resposta.

‑ E tem o descaramento de mo dizer? ‑ insistiu Rosa. ‑ Por que não são açoitadas criaturas desta ordem? Se estivesse na minha mão castigar, faria morrer sob o chicote esta mulher desaforada!

E tê‑lo‑ia feito, não tenho dúvida. Não seria eu que lhe confiaria qualquer instrumento de tortura, enquanto durou aquele olhar carregado de ódio.

Mas lentamente, muito lentamente, começou a rir e apontou para Emily com o dedo, qual se tratasse de um símbolo de chacota para toda a gente.

‑ Ela, amar! Aquela carcaça! E pretender que ele também a amou! Ah, ah, ah! Que intrujonas, estas criaturas!

A troça era pior do que o extravasar da raiva. Tivesse eu de ser exposto a alguma delas, haveria preferido a última.

Mas Rosa não consentiu a si mesma a continuação desse abandono à hilaridade. Depressa se dominou e, fossem quais fossem os seus sentimentos, soube então reprimi‑los.

‑ Vim aqui ‑ declarou ‑ ver, como já disse, com que se parecia esta pura fonte de amor... Era a curiosidade que me impelia. Estou satisfeita. Também lhe queria dizer que mais vale voltar sem demora à sua casa e esconder‑se aí no meio das dignas pessoas que a esperam e a quem o dinheiro que você leva consolará. Quando o gastar de todo, pode tornar a amar e a ter confiança... Eu julgava encontrar um brinquedo partido, que já durara o bastante: uma lantejoula barata, descorada, lançada fora. Mas, desde que tenho à minha frente ouro de lei, uma dama autêntica, uma inocente enganada, cujo coração juvenil está ainda cheio de amor e confiança... é assim que finge ser, de acordo com a sua história... acrescentarei mais alguma coisa. Oiça bem, pois vou fazer o que digo. Está atenta? Isto é a sério!

Voltara a ser violenta, mas foi coisa rápida, e a fisionomia tornou‑se risonha.

‑ Esconda‑se ‑ acrescentou ‑ ou na sua casa ou noutro lado qualquer. Mas num lugar inatingível. Faça uma vida obscura, ou, melhor, uma vida de morta. Se o seu coração não estalou, admiro‑me que não achasse meio de o forçar a calar‑se. Tenho ouvido dizer que há processos para isso, e creio que são fáceis de encontrar.

Interrompeu‑a um gemido sufocado de Emily. Rosa emudeceu e escutou o gemer da outra como música celestial.

‑ Talvez eu seja de uma natureza estranha ‑ recomeçou a senhora Dartle. ‑ Não posso respirar livremente o mesmo ar que você respira. Acho‑o viciado. Por isso quero que ele se purifique, desembaraçando‑o da sua presença. Se amanhã souber que ainda cá se encontra, contarei alto e bom som a sua história a toda a gente. Consta‑me que há por aqui mulheres honestas, e é pena que tenham semelhante companheira no seu seio. Se, ao ir‑se embora, procurar refúgio nesta cidade, sob qualquer condição que não a sua (que pode usar sem que ninguém a moleste), eu prestar‑lhe‑ei o mesmo serviço, se souber onde se abriga. Ajudada por um homem que ainda há pouco aspirava à honra de obter a sua mão, não duvido de que alcançarei os meus fins.

Peggotty nunca chegaria? Por quanto tempo mais suportaria eu aquilo?

‑ Meu Deus, meu Deus! ‑ murmurou a infeliz Emily no tom que, pensei, sensibilizaria um coração empedernido mas que não provocou nenhuma comoção no rosto sorridente de Rosa Dartle. ‑ Que vai ser de mim? Em que vou acabar?

‑ Acabar? ‑ ripostou a outra. ‑ Vai viver contente com os seus pensamentos. Consagrar a existência às recordações da ternura de James Steerforth (que desejava fazer de si a mulher do seu criado, não é verdade?) ou a um sentimento de gratidão para com o ente recto e virtuoso que a receberia como uma dádiva. Ou ainda, se essas lembranças magníficas, se a consciência da sua própria virtude e do esplendor que ela lhe deu aos olhos de tudo que tem figura humana lhe não bastarem, despose o homem sério de que lhe falei e que a condescendência dele lhe traga felicidade. Se isto, todavia, lhe não for suficiente, então morra! Há montes de lixo para tais mortes; suba‑os e erga o seu voo para o céu.

Senti um passo distante na escada; reconheci‑o imediatamente. Era ele, graças a Deus!

Depois de dizer aquelas palavras, Rosa afastou‑se e eu deixei de a ver.

‑ Mas tome cuidado ‑ ouvi ainda recomendar aquele algoz, no momento em que abria a porta para sair ‑ estou resolvida, por motivos pessoais, a originar a sua perdição se não se colocar longe da minha alçada ou não abandonar a máscara que ostenta. É isto que quero salientar. E, quando digo uma coisa, faço‑a!

Os passos na escada aproximavam‑se cada vez mais; o homem passou ao lado daquela que descia e entrou à pressa no quarto.

‑ Meu tio!

A este nome seguiu‑se um grito tremendo. Esperei um momento, e então, olhando para lá, vi Daniel segurar o corpo inanimado de Emily. Contemplou‑lhe a cara durante algum tempo, curvou‑se para a beijar (com que ternura!) e tapou‑a com um lenço.

‑ Menino Davy ‑ disse‑me ele em voz baixa e trémula ‑ agradeço ao Pai celeste por ter realizado o meu sonho! Agradeço do fundo do coração por me ter conduzido, pelas Suas vias, até à minha querida sobrinha.

Dizendo estas palavras, levantou‑a nos braços e, com aquelas faces veladas pendidas no seu peito, transportou‑a imóvel e inconsciente até ao baixo da escada.

 

INÍCIO DE UMA VIAGEM MAIS LONGA

De manhã cedo, no outro dia, passeava eu no jardim, com a minha tia (que já não fazia muito exercício, pois se ocupava quase sempre de Dora) quando me vieram dizer que Daniel Peggotty queria falar comigo. Entrou no jardim, caminhando ao meu encontro, logo que me viu ir em direcção do gradeamento; e, como de costume, desbarretou‑se diante da senhora Trotwood, por quem tinha o maior respeito.

Eu acabara de contar à tia o que se havia passado na véspera à noite. Sem abrir a boca, ela aproximou‑se do visitante, olhando‑o com muita simpatia, apertou‑lhe a mão e deu‑lhe uma pancadinha no braço. Tudo isto foi tão expressivo que eram realmente desnecessárias as palavras, e Peggotty compreendeu tão bem como se Betsey Trotwood lhe tivesse feito um discurso.

‑ Volto para dentro, Trot ‑ declarou ela ‑ por causa do nosso botãozinho de rosa, que não tardará a levantar‑se.

‑ Não é por mim que se vai embora? ‑ observou o recém‑chegado. ‑ Dá‑me a impressão de que a expulso...

‑ O senhor tem qualquer coisa que dizer ‑ respondeu a tia ‑ e isso far‑se‑á melhor sem mim.

‑ Pois, se não se importa, dar‑me‑ia prazer ficando... a não ser, é claro, que as minhas palavras a aborreçam.

‑ Realmente? ‑ volveu Betsey, bem humorada. ‑ Então ficarei. E passou o braço no de Peggotty a fim de o conduzir ao caramanchel do fundo do jardim, onde se sentou num banco a meu lado. Havia lugar para o pescador, mas este preferia conservar‑se de pé, com a mão apoiada a uma mesa rústica. Não pude deixar de notar, vendo‑o nesse momento, quanta força e energia revelava essa mão musculosa, assim como a harmonia que reinava entre ela e a testa serena, coroada de cabelos grisalhos.

‑ Levei ontem à noite ‑ começou ele fitando‑nos ‑, a minha querida sobrinha para os meus aposentos, onde a esperava havia tanto tempo e tudo preparara para ela. Emily esteve umas horas sem me reconhecer. Em seguida ajoelhou diante de mim e, depois de rezar, descreveu‑me como tudo se passara. Bem pode calcular como me senti confrangido, apesar de todo o meu reconhecimento ao Salvador, ao ouvir ressoar‑lhe a voz que tão alegre escutara outrora no meu lar e ao vê‑la humilhada no pó em que Ele um dia escreveu com o seu dedo divino.

Limpou a cara com a manga, sem se importar de esconder a razão do facto. Clareou a voz e prosseguiu:

‑ Mas não demorou muito, pois que a reencontrei.

Bastou-me essa ideia para não pensar em mais nada. E nem sei agora por que lhe falo do assunto. Ainda há pouco não tinha intenção de referir isto. Veio‑me naturalmente à boca, antes que eu compreendesse.

‑ Nunca pensa na sua pessoa, senhor Peggotty ‑ disse a minha tia. ‑ Será um dia recompensado.

Daniel, em cujo rosto brincava a sombra das folhas, inclinou‑se admirado diante da senhora Trotwood, para lhe agradecer a bondade, e retomou o fio do discurso:

‑ Quando a minha Emily fugiu dessa casa em que a fechara aquela serpente que o menino Davy conhece (a sua história é verdadeira, Deus o confunda!) aproveitou a noite para correr sempre. Havia escuro mas o céu estava estrelado. Ia como louca. Foi pela praia adiante, crendo topar o velho barco e gritando que não olhássemos, porque ela passava nesse instante. Ouvia a própria voz como se fosse alheia. Magoou‑se nos seixos, mas não deu por isso, como se também fosse feita de pedra. Correu muito tempo, com zumbidos nos ouvidos e clarões nos olhos. De repente (pelo menos assim julgou) o dia apareceu. Chovia e soprava vento. Viu‑se deitada ao pé de um monte de calhaus e uma mulher na língua do país, perguntando que lhe sucedera.

Daniel Peggotty via tudo quanto contava. A cena desfilava‑lhe distintamente perante o olhar e por isso a descrevia com tanta nitidez. Até me parece que, neste momento em que escrevo, assisti de facto ao episódio.

‑ Quando Emily examinou essa mulher, reconheceu uma dessas com quem muitas vezes conversava à beira‑mar. Conhecia tão bem o país, milhas e milhas de costa! Andara por ali a pé, de barco, de carruagem. A dita mulher não tinha filhos, casara pouco antes, mas esperava um. Que Deus me oiça quando rogo que essa criança seja a sua felicidade, o seu consolo, o seu orgulho até ao fim da vida! Possa amar a mãe e respeitá‑la na velhice, ajudá‑la até às derradeiras horas e ser o seu anjo bom neste mundo e no outro!

‑ Amém ‑ disse a tia.

‑ De começo aquela mulher fora muito tímida e arisca, e punha‑se de lado, com a sua roca, se Emily lhe ia falar e às crianças. Mas Emily tomara a iniciativa de se lhe dirigir e, como a criatura gostava muito dos miúdos, e a minha sobrinha também, depressa se tornaram amigas, e a tal ponto que, nessas ocasiões, oferecia flores à visitante. Pois na noite da fuga perguntou à Emily o que lhe acontecera, e a pequena contou‑lhe tudo. A outra levou‑a para sua casa. Sim, senhores, deu‑lhe abrigo!

Peggotty tapou o rosto. Estava mais comovido com aquele acto de bondade do que por qualquer outra coisa ocorrida após a noite memorável. Eu e a tia não tentámos intervir.

‑ Era uma simples cabana, como se imagina ‑ continuou ele. ‑ Ali, porém, Emily achou lugar (o marido da sua protectora andava embarcado) e ali se manteve escondida: aos vizinhos haviam pedido o maior segredo. Emily adoeceu a certa altura, com imensa febre, e o que me parece estranho (mas talvez os sábios expliquem) a língua desse país esqueceu‑a por completo, só conhecia presentemente a sua, a qual por seu lado ninguém compreendia. Emily recorda‑se, como se se tratasse de um sonho, que estava deitada, a falar o seu idioma, e a julgar que o velho barco existia no outro lado da ponta mais próxima, na baía; orava e implorava que para aí mandassem alguém com a missão de participar que se encontrava moribunda e para lhe trazerem nem que fosse uma só palavra de perdão. Pensava a todo o tempo que esse de quem falei rondava perto ou então que entrara no próprio quarto, e gritava desalmadamente à mulher para que a livrasse dessa presença, embora soubesse que não podiam entender a linguagem. Sentia zumbidos outra vez, e via clarões diante dos olhos. Para ela não havia nem passado nem presente nem futuro, mas tudo ao mesmo tempo, juntamente com o que nunca houvera nem poderia haver. Tudo se lhe baralhava na cabeça, numa extraordinária confusão. De contínuo ria e cantava. Não sei quantos dias isto durou, o certo é que, após um sono muito prolongado, acordou mais fraca do que uma criancinha.

Aqui se deteve, como se buscasse lenitivo aos terrores sugeridos pela própria descrição. Em seguida a um silêncio que durou instantes prosseguiu a narrativa:

‑ Despertou, pois, uma bela tarde em que não havia outro rumor senão o marulho do mar azul. De princípio supôs que se achava em sua casa, num domingo de manhã: mas dissiparam‑Lhe a ideia as folhas de vinha que enquadravam a janela e as colinas distantes. Então a amiga entrou e foi sentar‑se à borda do leito. Emily compreendeu que o velho barco não estava do outro lado da porta, porém muito mais longe; lembrou‑se de onde se encontrava, e porquê, e desatou a soluçar ao peito daquela honrada mulher que a recolhera.

Não podia referir‑se a esta boa amiga de Emily sem que lhe corressem as lágrimas. Seria difícil coibir‑se e soluçou outra vez, abençoando‑a.

‑ Isso fez bem à minha sobrinha ‑ acrescentou, depois de haver testemunhado uma comoção que não pude impedir‑me de partilhar, Quanto à tia Betsey, chorava como uma criança. ‑ Fez bem à Emily, que começou a restabelecer‑se. Mas esquecera por completo, como disse, a língua desse país e via‑se obrigada a exprimir‑se por sinais. Continuou melhorando de dia para dia, devagar mas com segurança. Aprendia os nomes dos objectos usuais (que parecia nunca ter ouvido na sua vida), quando um dia, sentada à janela, olhava para uma petiza que brincava na praia, a pequena estendeu‑lhe de repente a mão e gritou qualquer coisa que significava: «Filha de pescador, vê esta concha!» Emily compreendeu‑a, chorou, e a memória voltou‑lhe de súbito.

«Quando Emily readquiriu forças ‑ disse Peggotty depois de breve silêncio ‑ tratou de deixar aqueles sítios e de regressar ao seu país. O marido da sua amiga voltara já, e ele e a mulher conseguiram embarcá‑la num barco de carga que ia para Leorne e, de lá, para França. Emily possuía algum dinheiro, contudo eles não quiseram aceitar nada por tudo o que tinham feito. Quase me regozijo, embora fossem tão pobres. O que praticaram ser‑Lhes‑á contado na Eternidade, onde nem as traças nem a ferrugem fazem dano, nem os ladrões têm azo para roubar. Menino Davy, esse tesouro durará mais que todos os tesouros da terra.

«Emily chegou a França e empregou‑se como criada numa estalagem do porto. E foi aí que, certo dia, surgiu a tal serpente. Se me cair sob as mãos nem sei o que lhe farei nessa altura! Logo que ela o enxergou (sem ser vista por ele) o seu terror voltou‑lhe e desatou a fugir para longe do ar que esse maldito respirava. Veio ter a Inglaterra e desembarcou em Dover.

«Não sei ao certo quando principiou a lhe faltar a coragem, mas a verdade é que, a bordo, fizera tenção de regressar à velha residência. Uma vez em Inglaterra, pôs‑se a caminho para lá ir ter. O medo, porém, de que não lhe perdoassem, de ser apontada a dedo, de haver causado a morte deste ou daquele dentre nós, e outras coisas mais, levaram‑na a mudar de ideias, forçosamente, pelo caminho. «Querido tio!», disse‑me ela, «o receio de não ser digna de fazer o que o meu coração despedaçado e sangrento tanto queria foi a pior das provações. Quanto desejei beijar a soleira da nossa porta, de aí poisar esta cara amaldiçoada e ser, de manhã, achada morta ali mesmo!»

«Veio a Londres ‑ ajuntou Peggotty baixando a voz até ficar num murmúrio temeroso. ‑ Ela que, na sua vida, jamais viera aqui, e sem dinheiro, e bela, e nova! Logo que chegou, ainda atrapalhada, encontrou uma amiga: uma mulher decente, que lhe falou de costura, lhe prometeu arranjar trabalho e um abrigo para a noite e procurar por mim, na manhã seguinte. Quando a querida pequena ‑ comentou o pescador com voz vibrante de gratidão ‑ estava à beira de um abismo que eu nem quero imaginar, essa amiga, Martha, fiel à sua promessa, apareceu para a salvar.

Não pude reprimir um grito de alegria.

‑ Menino Davy ‑ disse‑me ele, apertando a minha mão com vigor ‑ foi o menino quem me falou dessa Martha. Agradeço‑lhe do coração. Ela não nos iludiu. Sabia, por amarga experiência, o que convinha fazer. E fê‑lo. E o Senhor encaminhou‑a. Veio, pálida e agitada, acordar Emily. «Levanta‑te», disse, «foge a um perigo pior do que a morte. Vem comigo.»

As pessoas do prédio tentaram detê‑la, mas era o mesmo que deter o mar. «Afastem‑se», ordenou. Contou depois a Emily que me tinha visto, que sabia quanto eu a estimava e lhe perdoara. Cedeu‑lhe a sua roupa e arrastou‑a consigo, trémula e quase a desfalecer, sem dar ouvidos ao que diziam os outros. Cortou por meio deles com a minha querida sobrinha, no escuro da noite, para longe do abismo da perdição.

«Velou a minha Emily esgotada até bastante tarde, no dia seguinte ‑ prosseguiu Peggotty, que levou a mão ao peito arfante ‑ e em seguida andou à minha procura, e também à sua, menino Davy. Não dissera à pequena o motivo por que saía, com medo de que lhe faltasse a coragem, mais uma vez, e tentasse esconder‑se. Como é que aquela mulher cruel soube que Emily estava ali, é que não percebo. Talvez esse de quem tenho falado as visse entrar. Não importa. O principal é que a minha sobrinha está salva.

«Ficámos juntos toda a noite. Terá sido pouco, como tempo (segundo ela observou); e menos ainda se pensar o que vi desse rosto adorado; mas os seus braços, a noite inteira, cingiram‑me o pescoço e a cabeça poisou‑se‑me no peito. E sabemos que podemos confiar um no outro, para sempre.

Calou‑se, e a mão que poisara na mesa sugeria, pela sua imobilidade absoluta, uma vontade capaz de combater leões.

‑ Trot ‑ interveio a tia Betsey ‑ foi uma alegria para mim quando tomei a decisão de amadrinhar tua malograda irmã; mas, depois disso, nada me daria tanto prazer como ser madrinha do filho dessa mulher.

Daniel inclinou a cabeça para corroborar a senhora Trotwood, mas a sua comoção não lhe permitiu falar do objecto dos seus desvelos. Mantivemos todos silêncio, imersos nas nossas reflexões. A tia enxugava os olhos, por momentos chegava a chorar convulsivamente, e depois ria como uma tonta. Acabei por dizer:

‑ Ainda não lhe perguntei, senhor Peggotty, se tem planos feitos para o futuro.

‑ Sim, senhor, e já os participei à Emily. Há muitos países, longe deste, e o nosso futuro estende‑se além dos mares...

‑ Tia ‑ observei ‑ eles vão emigrar, os dois.

‑ É verdade, menino Davy. Na Austrália ninguém fará censuras à minha querida sobrinha. Aí começaremos uma vida nova.

Quis saber se já tinham fixado a data da partida.

‑ Esta manhãzinha fui às docas pedir informações acerca de navios. Dentro de seis semanas ou dois meses há um que deve partir. Vi‑o e até subi a bordo. Embarcaremos nesse.

‑ Coitado do Ham! ‑ sussurrei.

‑ A minha irmã trata‑lhe da casa, e ele afeiçoou‑se‑lhe ‑ explicou Peggotty à tia Betsey. Habituara‑se a falar‑lhe pacificamente, ao passo que, diante de outras pessoas, nem se decidia a abrir a boca. ‑ Coitado do Ham, sim! ‑ disse por seu turno, abanando a cabeça. ‑ Poucas esperanças lhe ficaram na vida.

‑ E a senhora Gummidge? ‑ indaguei.

‑ Ah, bem arreliado me trouxe ‑ replicou o pescador, com. um olhar de perplexidade que a pouco e pouco se foi dissipando e que lhe surgia quando se ocupava da viúva. ‑ Bem sabe o menino, se ela começa a pensar no defunto não se torna muito divertida. Aqui para nós, se eu não tivesse conhecido o velhote, achá‑la‑ia implicante, mas, como conheci os méritos do marido, posso desculpá‑la.

Eu e a tia concordámos.

‑ A minha irmã... não digo sempre, mas, enfim, algumas vezes... talvez achasse a senhora Gummidge enfadonha. Por isso não tenciono deixá‑la muito tempo com eles; hei‑de encontrar onde a instale, para que viva sozinha, e, antes de me ir embora, deixo‑lhe estabelecida uma pensão, para que não passe dificuldades. Não há ninguém mais fiel do que esta criatura. Com a idade que tem, não se lhe vai pedir que entre num navio e demande terra desconhecida, do outro lado do mundo. Pois é isto que penso fazer dela.

Não se esquecia de ninguém. Acudia às necessidades de todos, excepto as de si mesmo.

‑ Emily fica comigo. Coitada, precisa de repouso, de paz! Prepara o vestuário de que vamos carecer. Depois, embarcamos. Espero que os seus desgostos se dissipem um tanto ao ver‑se de novo envolvida pelo carinho do tio.

A tia Betsey, com um sinal de cabeça, confirmou essa esperança, o que Peggotty considerou como uma grande honra.

‑ Há ainda uma coisa, menino Davy ‑ disse ele enfiando a mão na algibeira interior e tirando gravemente o maço de papéis que eu já tinha visto e que ele espalhou na mesa. ‑ Existem estas notas, cinquenta libras e dez xelins. Quis acrescentar‑lhes o dinheiro com o qual ela fugiu; perguntei‑lhe quanto era (sem a informar do motivo) e já o pus de parte. Não sou perito neste assunto; quer fazer o favor de verificar?

Apresentou‑me um bocado de papel, desculpando‑se da sua ignorância, e olhou‑me enquanto eu somava. A conta estava certa.

‑ Muito obrigado ‑ replicou, guardando a importância. ‑ Isto, se não põe objecção, menino Davy, vou meter num sobrescrito com o nome dele, e esse noutro sobrescrito endereçado à mãe. Direi, sem mais explicações, qual a sua procedência; que me vou embora e que não vale a pena devolver‑mo.

Afirmei‑lhe que achava muito bem, e que esse rasgo o dignificava.

‑ Disse que havia ainda uma coisa ‑ prosseguiu Daniel com um sorriso pensativo. ‑ Mas afinal eram duas. Eu não tinha a certeza, ao sair esta manhã, de poder anunciar ao Ham, em pessoa, o que acabava tão miraculosamente de acontecer.

Por isso lhe escrevi uma carta, que pus no correio, e na qual conto tudo o que se passou, acrescentando que iria lá amanhã para regularizar tudo mais e, naturalmente, despedir‑me das pessoas de Yarmouth.

‑ E gostava que eu o acompanhasse? ‑ perguntei, vendo que ele não despejara todo o saco.

‑ Se puder prestar‑me esse grande favor, menino Davy ‑ replicou Peggotty.

Como Dora, que tinha bom fundo, desejasse que eu fosse útil a Daniel (segundo ela me sugeriu em conversa), prometi que de boa vontade iria com ele. No dia seguinte, de manhã, tomámos a diligência de Yarmouth para aquele trajecto tão nosso conhecido.

À noite, ao atravessarmos a rua familiar (com Peggotty a carregar a minha mala, apesar dos meus protestos), deitei uma olhadela à loja de Omer & Joram e lobriguei ali o velho a fumar o seu cachimbo.

Eu preferia não estar presente quando Daniel encontrasse a irmã e o sobrinho, de maneira que o senhor Omer me serviu de pretexto para ficar uns momentos atrás.

‑ Então como vai ‑inquiri ao entrar na loja ‑ depois deste tempo todo?

O ancião desfez com um gesto o fumo, para ver quem era, e reconheceu‑me, o que lhe deu satisfação.

‑ Deveria levantar‑me, senhor Copperfield, para lhe agradecer a honra desta visita, mas tenho as pernas em tal estado que só me desloco em cadeirinha de rodas. À excepção, porém, das pernas e dos pulmões, posso dizer‑lhe, cheio de gratidão, que estou tão bem como qualquer mortal.

Felicitei‑o pelo seu bom aspecto e bom humor e verifiquei então que a sua poltrona tinha realmente rodas.

‑ É engenhoso, não é? ‑ observou‑me, seguindo a direcção do meu olhar e afagando o braço da poltrona. ‑ E tão leve como uma pena e vai tão direita como a mala‑posta. Basta dizer‑lhe que a minha neta apoia nas costas a cabeça e eis‑me a caminho! E então para se fumar cachimbo não há melhor instalação do que esta.

Nunca ninguém soube, mais do que ele, tomar as coisas tão alegremente. Estava tão radiante como se a poltrona, a asma, a paralisia das pernas fossem estratagemas inventados para lhe dar mais valor ao cachimbo.

‑ Afianço‑lhe ‑ disse‑me ‑ que vejo melhor a vida daqui donde me confino do que de outra maneira qualquer. Ficaria surpreendido se soubesse a porção de gente que se detém um momento para tagarelar comigo durante o dia. Além disso, acho mais que ler nas gazetas, sentado nesta cadeira, do que antigamente quando andava por fora. Quanto aos livros em geral, é incrível a quantidade que devoro! Eis o que faz a minha força.

Se a doença fosse nos olhos, que teria sido de mim? Mas, nas pernas, que importância tem? Quando as utilizava, só serviam para me tornar o fôlego mais curto. Agora, quando quero ir até à rua ou mesmo à praia, chamo o Dick, o aprendiz mais novo de Joram, e parto de carrinho como o presidente do Município de Londres!

Ao proferir estas palavras quase sufocava de riso.

‑ Meu Deus! ‑ concluiu, retomando o cachimbo ‑ é preciso aceitar as coisas boas e más ao mesmo tempo. A nossa função é habituarmo‑nos. Sabe que o Joram tem feito bom negócio?

‑ Ainda bem.

‑ Calculei que a notícia lhe agradasse. Joram e Minnie continuam a ser dois pombinhos. Que podia eu desejar de melhor? Que valem as minhas pernas ao lado disso?‑O desprezo supremo que testemunhava aos próprios membros, enquanto fumava na sua poltrona, constituía uma das mais deliciosas extravagâncias que eu conheci. ‑ E depois que comecei a ler, o senhor, por sua banda, principiou a escrever, hem? ‑ acrescentou com um olhar de admiração. ‑ Que belo livro compôs! Que expressões soberbas! E quanto a ter vontade de dormir... ah, não!

Ri, para lhe demonstrar a minha satisfação. Mas devo aduzir que essa associação de ideias me pareceu significativa.

‑ Quando ponho esse livro em cima da mesa ‑ continuou o senhor Omer ‑ e o contemplo, um, dois, três volumes, palavra que me sinto orgulhoso ao pensar que tive a honra de conhecer a sua família. Há quanto tempo já! Em Blunderstone, onde uma linda criança repousa ao lado da mãe. E o senhor também era pequenino, nessa altura. Meu Deus, meu Deus!

Desviei a conversa e falei de Emily. Depois de lhe haver garantido que não me esquecera do interesse que ele lhe dedicara sempre e da bondade com que a tratara, fiz‑lhe um relato sucinto da forma como o tio a encontrou, graças a Martha, o que, sabia eu, dava gosto ao velho. Escutou com a maior atenção e, quando acabei, disse‑me comovido:

‑ Alegra‑me deveras, senhor Copperfield! Há muito tempo que não ouvia notícias tão boas. Meu Deus, meu Deus! E agora que vão fazer em benefício dessa pobre Martha?

‑ Toca num ponto em que ultimamente tenho pensado, senhor Omer, mas acerca do qual ainda o não posso esclarecer. Daniel Peggotty não se explicou ainda e eu tenho escrúpulo de o interrogar neste assunto. Estou certo de que ele a não esqueceu; nunca se esquece de quem é bom e desinteressado.

‑ Pois, senhor Copperfield ‑ volveu ele, retomando o curso dos seus pensamentos ‑ façam o que fizerem, eu insisto em participar de qualquer acção. Inscreva‑me pela soma que achar conveniente, e previna‑me. Nunca acreditei que essa rapariga fosse má no fundo, e apraz‑me saber que tinha razão. Minha filha Minnie também vai ficar contente por ver que eu tinha razão. As raparigas gostam de nos contradizer de vez em quando (a mãe dela era assim!), mas possuem bom coração. O que Minnie diz de Martha é só por falar. Não me atrevo a contar‑lhe os motivos pelos quais a minha filha acha necessário dar tanto à língua. É só por falar, acredite. Será capaz de fazer tudo pela outra, com a condição de a coisa ficar secreta. Então, senhor Copperfield, inscreva‑me pela quantia que quiser, e mande‑me informar para onde devo expedir o dinheiro. Meu Deus! ‑ continuou o senhor Omer ‑ quando a gente percebe que se aproxima o Instante em que o fim da existência se liga com a infância; quando, por mais forte que for, se vê passeado de carrinho, como um nené, o que o pode regozijar é praticar uma boa acção. Não falo particularmente de mim, a minha opinião é que estamos todos a descer a encosta, não interessa a idade. Rejubilemos, portanto, se nos deparar ocasião de praticar o bem!

Sacudiu a cinza do cachimbo, que poisou no rebordo arranjado para isso, no braço da poltrona, e recomeçou:

‑ Olhe o primo de Emily, esse que deveria ser o seu marido, um dos mais belos moços de Yarmouth. Pois saiba que vem cá muitas vezes conversar ou ler‑me em voz alta, não raramente durante uma hora. Eis o que classifico de boa acção. A vida deste rapaz é toda generosidade.

‑ Eu vinha precisamente visitá‑lo ‑ declarei.

‑ Palavra? Diga‑lhe então que vou indo bem, que lhe mando cumprimentos. Minnie e Joram estão num baile. Haviam de apreciar muito a sua visita, como eu, se se encontrassem em casa. Minnie quase nem quer sair, «por causa do papá», como ela diz. De maneira que esta noite jurei que me deitava às seis horas, se a rapariga não saísse! O resultado ‑ o senhor Omer riu com tal estrondo do seu ardil que a poltrona e todo o corpo estremeceram ‑ foi ela e Joram comparecerem no baile!

Estendi‑lhe a mão e dei‑lhe boa‑noite.

‑ Um momento, senhor Copperfield. Se se vai embora sem ver o meu elefantinho, nem sabe o que perde. Nunca viu coisa parecida! Minnie!

A voz musical da netinha respondeu de algures do andar de cima.

‑ Cá estou, avô.

Era uma linda petiza, de compridos cabelos loiros e encaracolados. Entrou a correr na loja.

‑ Eis o meu elefantinho ‑ disse o senhor Omer, acariciando a pequena. ‑ De raça siamesa! Vamos, elefantinho.

Minnie abriu a porta que dava para a sala, o que me permitiu ver que estava agora convertida em quarto do velho, pois ele não podia transportar‑se ao andar superior. Depois, com a cabeça, empurrou a poltrona de rodas.

‑ O elefante empurra com a cabeça ‑ disse o senhor Omer. ‑ Vamos, elefantinho, um, dois, três!

A este sinal, a pequena, com uma destreza que parecia miraculosa, fez a poltrona rodar para a sala, sem tocar na porta, enquanto o avô se divertia sinceramente com esta proeza, e virava para mim a face radiante, com ar de triunfo, como se fosse a consequência dos seus próprios esforços.

Após uma volta pela povoação, fui ao domicílio de Ham. A minha velha criada vivia agora aí e alugara a casa ao sucessor do defunto Barkis, que por óptimo preço adquirira a carroça, o cavalo e a clientela. Creio que era ainda o mesmo cavalo do tempo de Barkis.

Encontrei-a na cozinha muito asseada, em companhia da senhora Gummidge, que Daniel Peggotty fora pessoalmente chamar ao barco‑residência. Suponho que mais ninguém a convenceria a abandonar o seu posto. A Peggotty e a senhora Gummidge tinham os respectivos aventais a cobrir‑lhes a cabeça. Ham saíra nesse momento para «dar um giro pela praia»; daí a pouco regressou, agradou‑se muito da minha presença e eu julgo que realmente dei prazer a todos com a visita. Aludimos com entusiasmo às riquezas que Daniel iria acumular nesse país novo e às maravilhas que nos descreveria nas suas cartas. Não se pronunciou o nome de Emily, mas fizemos‑lhe várias referências veladas. Foi Ham quem se exprimiu com maior serenidade.

A minha velha criada, ao acompanhar‑me com uma vela ao seu quartinho (onde vi em cima da mesa o Livro dos Crocodilos), deu‑me a entender que o rapaz tinha o coração alanceado, embora mostrasse sempre muita coragem e doçura e trabalhasse mais e melhor do que qualquer carpinteiro naval dessa costa. Havia ocasiões, à noite, disse‑me ela, em que falava dos tempos do barco‑residência e da infância de Emily, mas nunca da mocidade da rapariga.

Afigurara‑se‑me, por certos indícios, que Ham desejava encontrar‑se a sós comigo. Resolvi, pois, pôr‑me a caminho, no dia seguinte, à tarde, a fim de o topar na volta do trabalho. Com esta decisão, adormeci. Nessa noite, pela primeira vez desde há muito tempo, a vela desapareceu de trás das vidraças da janela; Daniel dormiu na sua velha rede e o vento murmurou‑lhe em torno da casa a sua canção de embalar.

. No outro dia, ele vendeu o barco e os apetrechos de pesca. Para Londres, mandou tudo aquilo de que podia precisar; desfez‑se do resto ou deu‑o à senhora Gummidge, que ficou todo o dia a acompanhá‑lo. Como me assaltasse o desejo saudoso de rever o velho barco, disse‑lhes que iria lá ter nessa noite. Mas fiz as coisas de forma a poder avistar‑me, antes, com o sobrinho.

Era fácil encontrá‑lo, pois sabia onde o rapaz trabalhava. Dei com ele, de facto, numa região deserta da praia, que eu sabia ser seu ponto de passagem. Não me enganei quanto à suspeita de que pretendia conversar comigo.

‑ Viu‑a, menino Davy? ‑ foi logo a sua primeira pergunta.

‑ Só um instante, e desmaiada ‑ respondi‑lhe brandamente. Daí a um minuto recomeçou:

‑ Espera vê‑la, menino Davy?

‑ Seria penoso para ela, parece‑me.

‑ Sim, também creio.

‑ Ham  ‑ disse‑lhe com doçura ‑  posso escrever‑lhe da sua parte, no caso de me ser impossível falar‑lhe directamente. Desempenhar‑me‑ei disso como de uma missão sagrada.

‑ Acredito, e agradeço‑lhe do coração. Penso que há qualquer coisa que ela devia saber.

‑ O quê?

Demos uns passos em silêncio, e o rapaz explicou:

‑ Não é que eu lhe perdoe. Não, não é isso. Antes serei eu a pedir‑lhe perdão por lhe haver imposto o meu amor. Às vezes considero que, se a Emily não tivesse prometido casar comigo, mostrar‑me‑ia tanta confiança fraterna que talvez me houvesse contado o que a atormentava e pedido conselho. Talvez eu a tivesse salvado.

Peguei‑lhe na mão.

‑ Nada mais?

‑ Há ainda outra coisa, menino David, se é que sou capaz de me explicar.

Andámos desta vez maior espaço em silêncio antes que Ham retomasse a palavra. As pausas que eu indicar por reticências não significam que ele chorasse, mas apenas que se recolhia para se expressar com mais clareza.

‑ Amava‑... e amo a saudade que sinto... tão profundamente... que seria, capaz de a fazer crer que sou feliz. Só podia ser feliz esquecendo‑a... mas não acho que tenha coragem de a deixar supor tal coisa. No entanto, o menino Davy, que é tão hábil, talvez descobrisse o que se deve dizer para que ela não julgue que eu sofro muito... embora a estime sempre e esteja tão triste... Não vá imaginar que estou fatigado da vida... se bem que espere reencontrá‑la, sem recriminações... lá onde os perversos deixam de fazer mal e os aflitos têm repouso... para que os remorsos dela sejam apaziguados... apesar de saber que eu não poderia casar com outra... Diga‑lhe que rezo por sua intenção... pelo muito amor que lhe tinha...

Apertei‑lhe outra vez a mão viril e garanti‑lhe que transmitiria tudo isso o melhor que pudesse.

‑ Muito obrigado, menino Davy. Foi bondade sua vir ao meu encontro. E ter acompanhado aqui o meu tio. A minha tia viúva deve ir a Londres antes da partida deles, de maneira que se acharão todos mais uma vez reunidos. Eu é que não tornarei a ver, isso bem no sei, o meu tio Daniel. Não o dizemos, mas sentimos. E mais vale que assim seja. A última vez que lhe falar, peço‑lhe que lhe diga... quanta afeição e gratidão de órfão lhe tributo. Foi para mim mais do que um pai.

Também lhe fiz esta promessa, e da melhor vontade.

Com um gesto de mão, que significava a sua impossibilidade de tornar a entrar no barco‑residência, Ham afastou‑se.

Fiquei a vê‑lo atravssar a praia, ao luar, e prosseguir o seu caminho, até ao momento em que se perdeu na distância.

A porta do barco‑residência estava aberta e, ao entrar, achei‑o vazio de todo o mobiliário, salvo um dos velhos baús, no qual estava sentada a senhora Gummidge, com um cabaz ao colo e de olhos fitos em Daniel Peggotty. Este, de cotovelo apoiado no fogão, via esmorecerem as brasas no fundo da lareira. Quando me pressentiu, ergueu a cabeça e falou com desembaraço.

‑ Com que então, menino Davy, vem dizer adeus como prometeu? ‑ Pegou na vela, para iluminar o quarto, e acrescentou:

‑ Está nu de tudo, hem?

‑ Vejo que não perdeu o seu tempo.

‑ Não, não nos estivemos a divertir. A senhora Gummidge trabalhou como... ‑ E Peggotty olhou para ela, esperando provocar‑lhe um sorriso aprovador.

A mulher, curvada sobre o cabaz, não respondeu.

‑ Ali está o baú em cima do qual se sentava, sempre com a Emily ‑ disse‑me ela em voz baixa. ‑ Levá‑lo‑ei comigo, assim como tudo mais. E olhe o seu aposento, menino Davy. Não se podia desejar maior desolação.

Na verdade, o vento, embora fraco, tinha um rumor solene e envolvia a casa abandonada, como se numa queixa lúgubre. Tudo desaparecera, até o espelhinho com moldura de embrechado. Lembrei‑me das noites que ali passara, da rapariga de olhos azuis que me havia enfeitiçado tanto; lembrei‑me de Steerforth ‑ e logo me acudiu a ideia louca de que ele estivesse perto e eu o fosse encontrar de um momento para outro.

‑ Isto vai levar tempo ‑ observou Peggotty, baixando a voz

‑ para achar novos inquilinos. Hão‑de crer, agora, que dá pouca sorte!

‑ Pertence a alguém destas redondezas? ‑ inquiri.

‑ A um construtor de mastros, que mora na parte alta da cidade. Esta noite vou entregar‑lhe a chave.

Dirigimo‑nos a outro aposento e voltámos junto da senhora Gummidge, sempre sentada no baú. Ao descansar o castiçal no fogão, Peggotty pediu‑lhe que se levantasse, a fim de poder retirar aquele móvel antes de apagar a luz.

‑ Daniel ‑ disse‑lhe a viúva, largando o cabaz e agarrando‑se ao seu protector ‑ meu caro Daniel, as últimas palavras que quero proferir nesta casa é que não deve deixar‑me. Com certeza não tem essa tenção, não é verdade?

Peggotty, estupefacto, relanceou a vista por mim e pela senhora Gummidge, como se despertasse de um sonho. Ela continuou, suplicante:

‑ Oh, não, Daniel, não! Leve‑me consigo. Servi‑lo‑ei com fidelidade. Se há escravos nesse país para onde vai, serei eu a sua escrava, e com alegria; mas não me abandone, Daniel!

‑ Boa alma ‑ retorquiu ele, abanando a cabeça ‑ não faz ideia da duração desta viagem nem da nossa vida lá longe.

‑ Calculo, Daniel. Mas, pela primeira vez sob este tecto, digo‑Lhe que voltarei aqui para morrer, se não me levar consigo. Sei trabalhar. Sei viver com dureza. Sei ser paciente e dócil, mais do que imagina. Ao menos experimente, Daniel! Não levantarei a minha pensão, ainda que esteja cheia de fome, mas irei consigo e com a Emily até ao fim do mundo, se mo consentir! Sei muito bem o que há, sei que me supõe uma inútil, mas já não é assim, Daniel: tanto pensei nas suas desgraças que fiquei um pouco melhor. Menino Davy, interceda por mim. Conheço os desgostos deles, conheço os hábitos da Emily, talvez os possa consolar de vez em quando, ao mesmo tempo que trabalho. Daniel, meu caro Daniel, deixe‑me partir consigo!

E a senhora Gummidge pegou na mão do pescador e beijou‑a com afecto simples e comovente, num transporte humilde de abnegação e reconhecimento que ele bem merecia.

Pusemos o baú cá fora, apagámos a vela, fechámos a porta à chave e partimos, deixando o velho barco bem guardado, semelhante a um ponto negro no meio da noite.

No dia seguinte, quando nos encontrámos na imperial da diligência, a caminho de Londres, a senhora Gummidge e o seu cabaz já estavam no banco traseiro e ela resplandecia de satisfação.

 

ASSISTO A UMA EXPLOSÃO

Quando estávamos a vinte e quatro horas do dia tão misteriosamente fixado pelo senhor Micawber, reunimo‑nos, eu e a tia, para combinar o que faríamos, pois ela hesitava ainda em deixar a Dora só. Ah, com que facilidade eu levava agora ao colo minha mulher, de manhã e à noite, devido à sua magreza!

Pendíamos, apesar das recomendações de Micawber, para a solução de a tia ficar em casa e ser representada por mim e pelo senhor Dick. Tínhamos chegado a esta resolução quando Dora estragou o projecto declarando que jamais perdoaria, a si mesma e ao mauzão do marido se Betsey lhe fizesse companhia, sob qualquer pretexto.

‑ Não lhe falo mais ‑ declarou Dora, sacudindo os caracóis. ‑ Vou ser antipática. Mandarei o Jip ladrar‑lhe todo o dia. Se a senhora não for, convenço‑me de que é uma velha embirrenta.

‑ Botãozinho de rosa ‑ respondeu a tia, rindo ‑‑ bem sabes que não podes passar sem mim.

‑ Posso, sim, senhora. Não me presta nenhum serviço. Só me conta histórias desagradáveis de quando Doady era pequeno e chegou a casa coberto de pó, com os sapatos esburacados. Nunca diz nada que me dê prazer! ‑ Mas logo acrescentou, beijando Betsey: ‑ Isto é a brincar!

Não fosse a senhora Trotwood tomá‑la a sério...

‑ Mas ao menos escute ‑ continuou Dora. ‑ A senhora tem de ir. Não a deixo em paz sem me prometer que vai. Tornarei a vida deste mau marido de tal forma horrorosa, se ele não a obrigar a ir! E tome cuidado com o Jip, hem? Demais a mais ‑ acrescentou, lançando para trás os cabelos soltos e olhando‑nos com ar interrogativo ‑ por que não haveriam de ir os dois? Eu não estou assim tão doente! Ou estarei?

‑ Que pergunta, filha ‑ replicou a tia.

‑ Que ideia! ‑ disse por meu turno.

‑ Bem sei que sou uma tonta! ‑ disse ela olhando atentamente ora para um ora para outro de nós, e estendendo os lindos lábios para nos beijar, ao mesmo tempo que reclinava a cabeça no travesseiro. ‑ Está pois combinado que vão ambos; de outro modo não os acreditarei e começo a chorar.

Vi então na fisionomia de Betsey que ela principiava a ceder, e assim o rosto de Dora iluminou‑se, pois que também tivera a mesma desconfiança.

‑ À volta terão tanto que me contar! E eu levarei uma semana a compreendê‑los; tenho a certeza de que os não compreenderei logo, se se tratar de negócios. Não há dúvida de que se trata de negócios. Demais a mais, se houver contas de somar, nunca eu as perceberei. Ah, já estou a ver a cara deste mauzão! Enfim, está decidido que vão os dois, hem? É apenas uma noite, o Jip ocupar‑se‑á de mim. Doady leva‑me já para cima, antes de sair, e eu só tornarei a descer depois de voltarem. Digam à Agnes que lhe ralho muito porque nunca me vem visitar.

Sem mais discussão, consentimos em partir, mas declarámos a Dora que era uma hipòcritazinha, que se fingia mais doente do que estava, só para ter aqueles mimos. Minha mulher ficou contente e mostrou‑se bem disposta com a solução. Nessa mesma tarde partimos os quatro, isto é, a tia, o senhor Dick, Traddles e eu, para Cantuária, tomando a mala‑posta de Dover.

No hotel em que Micawber nos pedira que esperássemos, e onde fomos admitidos, com certa dificuldade, em plena noite, encontrei uma carta em que ele anunciava a sua vinda no dia seguinte de manhã, às nove horas e meia em ponto.

Depois disso recolhemos enregelados, a essa hora incómoda, às respectivas camas, atravessando corredores compridos, sem ar, cujo cheiro fazia supor que estavam há anos imersos numa atmosfera de cozinha e de cavalariça.

Cedinho, no outro dia, fui vaguear pelas ruas velhas e tranquilas da cidade, entre pórticos antigos e igrejas veneráveis. As gralhas voavam derredor das torres da catedral, e as mesmas torres, olhando sempre para a extensão imutável dos campos férteis cortados de arroios claros, recortavam‑se no céu puro da manhã como se aquela terra não sofresse a mínima alteração. Contudo, quando os sinos soaram, foi para me falar com Voz triste de mudanças por toda a parte, da sua velhice e da mocidade de Dora, e de todos quantos, não tendo chegado a velhos, tinham vivido, amado e desaparecido. E as últimas vibrações das badaladas punham gemidos na armadura enferrujada do Príncipe Negro, que lá pendia, despertavam partículas de pó na profundidade do tempo e dissipavam‑se no espaço como círculos na água.

Observei a velha casa do canto da rua, mas sem me aproximar, receoso de ser visto e de prejudicar involuntariamente o êxito do plano que eu viera servir. O sol matutino dardejava oblíquo sobre as empenas e as janelas, cujas vidraças doirava, e ao meu coração pareceu transmitir‑se um pouco da sua paz.

Deambulei em seguida, por uma hora, no campo, e regressei pela rua direita, que entretanto acordara do seu repouso nocturno. Entre as pessoas que se azafamavam nas lojas, reconheci o meu inimigo de outrora, o rapaz do talho, promovido actualmente à dignidade de patrão, com as suas botas altas e acompanhado de uma criança. Acalentava o filho e tinha o aspecto de respeitável membro da colectividade.

Estávamos impacientes, inquietos, quando tomámos lugar à mesa. É que nos aproximávamos das nove e meia e assim a expectativa tornava‑se ansiosa. Depressa deixámos de fingir que nos ocupávamos do almoço, que desde o começo fora para nós ‑ salvo o senhor Dick ‑ mera formalidade. Betsey passeou cá e lá na sala, Traddles foi sentar‑se no canapé e eu fui até à janela para espiar a chegada do senhor Micawber. Não precisámos de esperar muito tempo, porque ao dar o relógio a meia hora ele apareceu na rua.

‑ Aí vem! ‑ gritei. ‑ E sem o traje «jurídico».

A tia apertou as fitas do chapéu (trouxera‑o para a mesa do almoço) e pôs o xaile como quem se apresta para um acto solene. Traddles abotoou o casaco com ar resoluto. O senhor Dick, alarmado com estes preparativos, mas julgando necessário imitá‑los, carregou com as duas mãos o chapéu na cabeça... e tirou‑o logo para saudar o recém‑vindo.

‑ Minha senhora e meus senhores, bom dia, cavalheiro ‑ isto ao senhor Dick, que lhe apertava freneticamente a mão ‑ é realmente muito amável...

‑ Já almoçou? ‑ perguntou Dick. ‑ Coma uma costeleta.

‑ Por nada deste mundo, cavalheiro ‑ respondeu Micawber, detendo o outro, que já ia tocar a campainha. ‑ Eu e o apetite, senhor Dixon, estamos de relações cortadas há muito tempo.

Dixon ficou tão contente por ouvir que o tratavam por este nome (o que considerava grande favor), que tornou a apertar a dextra de Micawber e riu como uma criança.

‑ Atenção, Dick ‑ ordenou Betsey.

Dick, corando, assumiu um ar de seriedade.

‑ E agora, senhor Micawber ‑ continuou a tia, calçando as luvas ‑ estamos prontos para o Vesúvio ou seja lá o que for, desde que o deseje.

‑ Minha senhora ‑ replicou este ‑ creio que vão assistir dentro de pouco a uma erupção. Doutor Traddles, permite‑me, espero, revelar que temos trocado correspondência?

‑ Certamente. Copperfield ‑ acrescentou Traddles, que eu olhava com surpresa ‑ o senhor Micawber consultou‑me acerca das suas intenções e eu aconselhei‑o o melhor que pude.

‑ Se não me engano, doutor Traddles, o que se vai seguir é uma comunicação importante.

‑ Em extremo ‑ confirmou Traddles.

‑ Nestas condições, minha senhora e meus senhores, talvez me consintam a honra de lhes submeter, por agora, as directrizes de um homem que, não merecendo embora ser visto sob outro aspecto que o de ente abandonado na praia da natureza humana, é contudo seu semelhante, ainda que sob forma deturpada do original por via dos erros humanos e a força acumulada de um produto de circunstâncias...

‑ Temos inteira confiança no senhor ‑ retorquiu ‑ e faremos o que desejar.

‑ Senhor Copperfield, a sua confiança, no caso presente, é muito bem aceite. Pedir‑lhes‑ei, pois, dispensa de cinco minutos, e esperarei que vão informar‑se da saúde da senhora Wickfield ao escritório de Wickfield & Heep, onde sou empregado.

Assim falando, e com grande pasmo da minha parte, englobou‑nos no mesmo cumprimento e desapareceu. Os seus modos eram altamente distantes, e tinha o rosto muito pálido.

Traddles limitou‑se a sorrir e fez com a cabeça um sinal de concordância (os cabelos haviam‑se‑lhe eriçado) quando olhámos para ele à cata de mais explicações. Então tirei o relógio e, como último recurso, contei até cinco minutos. A senhora Trotwood, com o seu na mão, fez o mesmo. Expirado que foi o prazo, Traddles deu‑lhe o braço e nós partimos em cortejo para o velho prédio, sem trocar palavra pelo caminho.

Encontrámos Micawber à sua secretária, na torrinha do rés‑do‑chão. Escrevia, ou fingia escrever, com ardor. A régua grossa, que enfiara no colete, não estava tão bem escondida como ele supunha, e, surgindo umas polegadas abaixo do queixo, assemelhava‑se a um plastrão de novo género.

Como parecesse que todos aguardavam ser eu a usar da palavra, perguntei em voz alta:

‑ Passou bem, senhor Micawber?

‑ Senhor Copperfield ‑ respondeu ele gravemente ‑ confio em que esteja de óptima saúde.

‑ A senhora Wickfield está em casa? ‑ inquiri.

‑ O pai, com febre devido ao reumatismo, conserva‑se de cama; a filha, porém, terá muito gosto, creio, em receber velhos amigos. Querem seguir‑me?

Precedeu‑nos na sala de jantar (a primeira divisão da residência onde eu havia entrado outrora) e, abrindo de par em par a porta do antigo gabinete de Wickfield, anunciou com voz estentórea:

‑ A senhora Trotwood, o senhor David Copperfield, o doutor Traddles e o senhor Dixon!

Eu não voltara a ver Uriah Heep depois da cena da bofetada. A nossa visita não deixou de o surpreender, tanto quanto nos surpreendia a nós mesmos. Não franzia as sobrancelhas, porque na verdade não as tinha, mas uniu de tal maneira as pálpebras que os olhinhos desapareceram quase por completo, e a mão ossuda que levou ao queixo denotou a inquietação que dele se apoderara. Isto, todavia, só demorou um instante, o tempo necessário para eu entrar na sala e o lobrigar por cima do ombro da minha tia. Daí a um segundo, o homem mostrava‑se tão humilde e obsequioso como nunca.

‑ Sim, senhores, palavra que se pode considerar uma boa surpresa! Todos os meus amigos de São Paulo visitando‑me ao mesmo tempo! Eis um prazer que eu não esperava. Senhor Copperfield, confio em que passe bem e, se me permite exprimir um humilde voto, que esteja de boa disposição para com aqueles que lhe serão sempre afeiçoados, quer o senhor queira ou não queira. Oxalá a senhora Copperfield tenha sentido melhoras. Inquietámo‑nos muito com as más notícias que nos deram quanto á sua saúde nestes últimos tempos, acredite!

Eu não queria consentir que ele me apertasse a mão, mas como evitá‑lo?

‑ As coisas modificaram‑se muito por aqui, minha senhora, desde a época em que eu era humilde empregado e lhe segurava no cavalo, quando a senhora chegava cá ‑ disse Heep à tia Betsey, com o seu sorriso mais melífluo. ‑ Eu, porém, não mudei, senhora Trotwood.

‑ Na verdade ‑ respondeu ela ‑ acho que cumpriu as promessas da sua mocidade, se é que isto lhe pode dar satisfação!

‑ Obrigado, minha senhora, pela sua bondosa opinião ‑ redarguiu Heep com uma das suas mais horrorosas contorções. ‑ Micawber, previna a senhora Wickfield e a minha mãe. A mamã vai ficar deslumbrada quando vir tão distinta companhia ‑ rematou ele, oferecendo cadeiras.

‑ Não estava ocupado, senhor Heep? ‑ perguntou Traddles, cujo olhar acabava de se cruzar com aquele olhar dissimulado que nos espiava e nos evitava ao mesmo tempo.

‑ Não, senhor doutor ‑ volveu Uriah, retomando a cadeira à secretária e apertando uma na outra as mãos magras, palma contra palma, entre os joelhos esqueléticos. ‑ Não tanto quanto desejaria. Mas, como sabe, os homens de leis, os tubarões e as sanguessugas são insaciáveis. E claro que não nos falta trabalho, para mim e para Micawber, visto que o doutor Wickfield se acha mais ou menos impossibilitado. Posso dizer, contudo, que é tanto por gosto como por obrigação que o substituímos. Creio que não o conheceu intimamente, não é verdade, doutor Traddles? Parece‑me que só uma vez tive a honra de o encontrar aqui.

‑ Realmente, não o conheci tanto como isso ‑ ripostou Traddles. ‑ Aliás tê‑lo‑ia vindo procurar mais cedo, senhor Heep.

Havia qualquer coisa no tom desta resposta que obrigou Heep a relancear o seu interlocutor com sinistra expressão de desconfiança. Mas esta desapareceu ao deparar‑se‑lhe a boa figura de Traddles, as suas maneiras simples, os seus cabelos à escovinha; e Uriah recomeçou, com uma crispação nervosa no esguio corpo descarnado, mas sobretudo na garganta:

‑ Lastimo, doutor Traddles. Tê‑lo‑ia certamente estimado tanto como nós todos. As suas pequeninas fraquezas torná‑lo‑iam mais querido. Mas, se quer ouvir falar com eloquência do meu sócio, dirija‑se ao senhor Copperfield. A família Wickfield é assunto sobre que ele está bem informado; se não o escutou ainda, aconselho‑o a que o faça.

Não me competia recusar este cumprimento, mas nessa altura Agnes entrou, escoltada por Micawber. Achei‑a menos senhora de si que de costume; parecia cansada e ansiosa. Todavia a cordialidade sincera e a beleza calma, que eram seu apanágio, brilhavam com uma luz mais suave.

Vi Uriah observá‑la enquanto ela nos saudava, e a impressão que me deu foi de um génio mau contemplando um espírito benéfico. Durante esse tempo, Micawber e Traddles trocaram um breve sinal; o último deixou a sala, sem que ninguém notasse, excepto eu.

‑ Pode retirar‑se, Micawber ‑ disse Uriah.

Micawber, porém, com os dedos no regrão enfiado no colete, continuou de pé defronte da porta, olhando decididamente aquele homem, que era seu patrão, como de igual para igual.

‑ Que espera? ‑ insistiu Uriah. ‑ Micawber, não ouviu que lhe dei ordem para se retirar?

‑ Ouvi ‑ respondeu Micawber, impassível.

‑ Então por que fica aí?

‑ Porque... ora, porque me apraz!

As faces de Uriah perderam o resto de cor e uma palidez malsã, apenas matizada pelo reflexo do rubor que lhe subira à testa, invadiu‑as por completo. Mirou atentamente o seu ajudante, num ar de expectação, ofegando.

‑ É um indisciplinado, como todos sabem ‑ disse‑lhe com um sorriso amarelo ‑ e bem suspeito que terei de o despedir. Saia! Falar‑lhe‑ei mais tarde.

‑ Se há velhacos neste mundo ‑ exclamou de súbito Micawber, com inesperada violência ‑ o maior de todos dá pelo nome de... HEEP!

Uriah recuou, como se o tivessem espancado ou mordido. Percorrendo‑nos lentamente com o olhar, com a expressão mais sinistra de que o seu semblante podia ser susceptível, murmurou em voz sufocada:

‑ Oh! Trata‑se de uma conspiração? Marcaram entrevista para aqui? Está conluiado com o meu ajudante, senhor Copperfield? Pois bem, tome cuidado. Isto não trará consequências. Sabemos de que força somos, eu e o senhor. Entre nós só existe antipatia. Sempre se mostrou, desde o primeiro dia que para cá veio, um pretensiosozinho, e agora tem inveja do meu êxito. Não é assim? Mas nada de maquinações contra mim! Derrotá‑lo‑ei neste campo. Desapareça, Micawber, daqui a pouco irei falar consigo.

‑ Senhor Micawber ‑ intervim ‑ este indivíduo acaba de mudar repentinamente sob muitos aspectos. Já é extraordinário que ele tivesse dito a verdade acerca de um ponto. Tudo me demonstra que está em apuros. Trate‑o, portanto, como merece.

‑ Ah, que súcia! ‑ replicou Uriah com a mesma voz surda, enxugando com a mão lívida o suor que lhe escorria da testa.

‑ Comprar o meu empregado, que é a escória da sociedade (tal qual o senhor Copperfield antes que se condoessem dele, como se sabe!), para me desonrar com as suas mentiras!  Senhora Trotwood, devia pôr cobro a esta brincadeira... ou então eu é que porei cobro ao vagabundo do seu marido, mais depressa do que a senhora desejaria. Se a minha profissão me deu azo a conhecer a sua história, dela saberei servir‑me, não tenha dúvida. Menina Wickfield, se mantém alguma afeição ao seu pai, mais vale que não se junte a esta corja. Alguns dos presentes tenho‑os nas mãos. Pois que reflictam enquanto é tempo. E você em especial, Micawber, pense se não deseja ser liquidado. Aconselho‑o a retirar‑se e a esperar que eu o procure, seu imbecil. Onde está a minha mãe? ‑ perguntou de súbito, percebendo com ansiedade que Traddles se ausentara e puxando pelo cordão da campainha.

‑ Lindo procedimento, na minha própria casa!

‑ A senhora Heep está aqui ‑ disse Traddles, que voltava com a digna mãe de semelhante filho. ‑ Tomei a liberdade de me apresentar a ela.

‑ Quem é o senhor para se apresentar assim? E que faz aqui?

‑ Sou o procurador e amigo do doutor Wickfield ‑ participou Traddles em tom calmo. ‑ Tenho plenos poderes para agir quando for preciso.

‑ À força de beber, esse velho louco recaiu na infância e a procuração deve ter‑lhe sido extorquida fraudulentamente ‑ disse Uriah, com ar mais sinistro do que nunca.

‑ Sim, alguma coisa foi extorquida fraudulentamente ‑ observou Traddles, sem se perturbar. ‑ Eu sei, e o senhor Heep também sabe. Vamos submeter esta questão ao senhor Micawber, se nos permite.

‑ Ury! ‑ bradou a senhora Heep, num tom que revelava angústia.

‑ Cale‑se, mamã! Quanto menos se disser, melhor.

‑ Mas, Ury...

‑ Já lhe pedi que se calasse. Deixe‑me tratar deste assunto.

Embora eu soubesse há muito que a sua amabilidade era fingida e as suas maneiras pérfidas e enganadoras, nunca havia apreciado a extensão daquela hipocrisia até ao momento em que o vi finalmente sem máscara. A rapidez com que ele a deixou cair, ao compreender que estava apanhado no laço, a maldade, insolência e ódio que deixou transparecer; o ricto que lhe dava ainda a alegria de pensar em todo o mal que havia feito (embora se sentisse perdido e já sem possibilidade de desforra), tudo isto, apesar de conforme à experiência que eu tinha dele, tomou‑me a princípio de improviso, a mim, que o conhecia desde longa data e o detestava tão cordialmente.

Não me ocuparei do olhar que me lançou quando nos contemplou um após outro; sempre me convencera de que me detestava e se não esquecia da marca dos meus dedos na sua cara. Mas quando o olhar dele se poisou em Agnes, e eu vi a raiva que sentia por lhe escapar todo o poder sobre essa vítima (e a exibição, perante o malogro, da paixão odiosa que o forçara a aspirar a uma pessoa cujas virtudes jamais soubera apreciar), revoltou‑me só a ideia de que ela devia viver nas imediações daquele homem.

Após haver coçado por certo tempo a parte inferior do queixo, sempre a mirar‑nos com aqueles olhos maus por cima dos dedos sinistros, Heep dirigiu‑se mais uma vez a mim, num tom meio suplicante meio insultuoso.

‑ Considerará lícito uma coisa destas, senhor Copperfield, o senhor que se gaba de ser tão cavalheiro? Insinuar‑se na minha casa e em seguida escutar às portas com o meu empregado? Se fosse eu, que fizesse semelhante coisa, nada haveria de extraordinário, pois não me faço passar por bem educado, embora nunca fosse vagabundo, como foi o senhor, segundo conta Micawber; mas o senhor Copperfield! Não receia proceder dessa forma? Não pensou no que eu posso fazer em retribuição nem nos inconvenientes que resultariam se o acusasse de cumplicidade delituosa? Muito bem. Veremos. O senhor... não sei quê... ia fazer uma pergunta a Micawber. Pois que a faça. Por que espera? Ele decorou a lição, como se vê...

Notando que nada disto produzia qualquer efeito na assistência, sentou‑se na borda da mesa, com as mãos nos bolsos e um dos pés chatos passado sobre a outra perna, e esperou sem se mexer o que pudesse seguir‑se.

Micawber, a quem eu com muita dificuldade contive a impetuosidade e que, por várias vezes, interviera com apartes, Micawber precipitou‑se finalmente para diante, tirou o regrão do colete (na aparência à laia de arma defensiva) e extraiu da algibeira uma folha imensa de papel dobrada em forma de carta.

Desdobrou‑a com o seu velho gesto nobre e, contemplando o conteúdo como se alimentasse grande admiração pela arte do seu estilo, principiou a ler o que se segue:

 

«Minha senhora e meus senhores...»

‑ Deus me acuda! ‑ exclamou a meia voz a tia Betsey. ‑ Este homem escreve cartas às resmas!

Sem lhe prestar atenção, Micawber continuou:

«... Ao vir denunciar perante os senhores talvez o mais consumado dos patifes... ‑ Sem desviar a vista do papel, brandiu a régua, como uma batuta magistral, na direcção da cabeça de Uriah. ‑ ... eu não peço clemência para mim. Exposto desde o meu nascimento a obrigações pecuniárias que não podia satisfazer, sempre fui joguete de circunstâncias degradantes. A Ignorância, a Necessidade, o Desespero e a Loucura têm, colectiva ou separadamente, sido os servidores da minha carreira.»

O prazer com que Micawber se apresentava como vítima de horríveis catástrofes igualava a pompa com que lia o memorial e a espécie de homenagem que ele prestava à sua obra, meneando a cabeça quando havia um período que lhe agradava em cheio.

«Foi debaixo deste peso da Ignomínia, Necessidade, Desespero e Loucura que entrei no cartório da firma conhecida pelo nome de Wickfield & Heep, mas realmente dirigido por HEEP. HEEP só é a mola oculta desta máquina. HEEP o falsário. HEEP o embusteiro.»

Ao escutar estas últimas palavras, Uriah tomou uma lividez azulada, deu um pulo como para se apoderar do papel e rasgá‑lo. Micawber, com prodigiosa habilidade, ou muita sorte, deixou cair a régua que tinha entre os dedos sobre a mão do seu antagonista, que a dobrou. O golpe soou seco, dir‑se‑ia que se partira um pedaço de madeira.

‑ Diabos o levem! ‑ exclamou Heep contorcendo‑se de forma nova, desta vez em consequência da dor sentida. ‑ Despedi‑lo‑ei!

‑ Aproxime‑se mais, seu HEEP... [3] de infâmia ‑ ripostou ofegante Micawber. ‑ Se tem cabeça, eu já lha arrebento. Aproxime‑se, sendo capaz!

Creio bem que jamais vira coisa tão ridícula (mesmo na ocasião o notei): Micawber en garde com o regrão e gritando «Aproxime‑se», ao passo que eu e Traddles o repelíamos para um canto, donde ele teimava em sair logo.

O adversário, resmungando entre dentes, depois de haver torcido e retorcido por momentos a mão magoada, acabou por tirar lentamente o lenço para a envolver, e em seguida, segurando‑a com a outra, sentou‑se de ar soturno, sobre a mesa, baixando a cabeça.

Micawber, vendo‑o suficientemente sossegado, recomeçou a leitura:

«Os emolumentos, em virtude dos quais me resolvi a entrar para o serviço de HEEP ‑ detinha‑se sempre perante este nome e proferia‑o com energia surpreendente ‑ não estavam determinados, excepto quanto à soma irrisória de vinte e dois xelins e seis dinheiros por semana. O resto devia depender do valor dos meus serviços, ou, por outros termos mais expressivos, da mesquinhez da sua natureza, da cupidez dos meus móbiles, da pobreza da minha família, da maior ou menor semelhança moral (ou antes, imoral) entre mim e HEEP. Precisarei observar que em breve me vi forçado a solicitar dele adiantamentos monetários para o estipêndio de minha mulher e filhos, que embora esfaimados iam crescendo? Necessitarei dizer que esta conjuntura fora prevista por HEEP? Que esses adiantamentos foram garantidos por letras e outras formas de reconhecimento de dívida, autorizadas pelas instituições jurídicas deste país? Que deste modo caí na rede que ele me preparara!»

A alegria que a sua destreza epistolar proporcionava a Micawber, na descrição deste triste estado de coisas, parecia largamente compensar‑lhe o desgosto e as preocupações que a realidade pudesse ter‑lhe causado. E prosseguiu:

«Foi então que HEEP começou a conceder‑nos a sua confiança, pelo menos tanta quanto o exigia a realização das suas manobras infernais. Foi então que principiei, se posso exprimir‑me num estilo shakespeariano, a languescer, a definhar‑me, a consumir‑me. Os meus serviços eram constantemente solicitados para falsificar documentos e mistificar uma personagem que designarei sob a inicial de sr. W. Este sr. W. estava a ser enganado, mantido na ignorância, iludido de todas as maneiras possíveis, mas entretanto o celerado do HEEP fingia perante ele uma gratidão e um afecto sem limites. Isto era de si já muito grave, mas como diz algures o príncipe dinamarquês dos filósofos, com essa naturalidade universal que caracteriza o mais ilustre ornamento da época isabelina: «o pior está ainda por vir!»

Micawber sentiu‑se tão contente com esta citação tão bem colocada que se brindou (e nos brindou) com segunda leitura da frase, simulando haver perdido o fio do discurso.

é minha intenção ‑ continuou ‑ enumerar aqui com minúcias as várias prevaricações de importância secundária de que fui cúmplice com o meu silêncio. O meu propósito, quando cessei a luta que em mim se travava entre comer e não comer, existir e não existir, foi aproveitar a oportunidade que tinha de descobrir e denunciar os principais latrocínios cometidos à custa desse cavalheiro W. pelo réu HEEP. Calando‑me interiormente, por sugestão dessa conselheira muda que Deus nos deu, e, exteriormente, por uma conselheira não menos convincente que nomearei também pela letra W. (a senhora W.), consagrei‑me à tarefa árdua de investigador clandestino, tarefa que prossegue, tanto quanto sei, e creia e posso afirmar, há mais de uma dúzia de lunações.»

Leu este passo como se se tratasse de um Acto do Parlamento. Parecia imensamente reconfortado pelo simples som das palavras.

«As minhas acusações contra HEEP ‑ acrescentou com um relance de vista na direcção deste e um movimento da régua colocada sob o braço esquerdo, para a ter pronta em caso de necessidade ‑ são as que seguem.»

Retivemos a respiração, tanto quanto me recorda. Em todo o caso, tenho a certeza de que Uriah continha a sua. Micawber leu: «Em primeiro lugar: quando as faculdades e a memória do senhor W., por motivos que não vêm para o caso, principiaram a decrescer, HEEP complicou e intrincou voluntariamente os processos do cartório. Se W. estava menos apto a se ocupar dos autos, HEEP forçava‑o a isso; foi assim que obteve a assinatura de W. em documentos importantes que lhe eram apresentados como de importância secundária. Levou nas mesmas condições W. a autorizar que se dispusesse de um depósito de doze mil seiscentas e catorze libras, dois xelins e nove dinheiros, que empregou para pagamento de falsas despesas ou défices que ou já estavam cobertos ou nunca tinham existido. Deu a esta operação a aparência de ter sido iniciada de modo infeliz e não desgraçadamente concluída; e depois disso serviu‑se dela como meio de extorsão por ameaças e instrumento de tortura.»

‑ Tem de provar o que ele diz, Copperfield! ‑ acudiu Uriah, sacudindo a cabeça com ar ameaçador. ‑ Tudo em seu devido tempo.

Mas Micawber interveio, dizendo:

‑ Pergunte a HEEP, doutor Traddles, quem lhe sucedeu na casa que ele habitava.

‑ É esse imbecil em pessoa ‑ volveu Heep em tom desdenhoso.

‑ E pergunte a HEEP se nunca guardou nessa casa uma agenda... ‑ continuou Micawber.

Vi a mão descarnada de Uriah, que ainda coçava o queixo, imobilizar‑se de repente.

‑ Ou então pergunte‑lhe se queimou uma na dita casa. Se responder afirmativamente e indagar onde estão as cinzas, mande‑o ter com Wilkins Micawber e ouvirá falar de uma coisa que não é do seu agrado.

A expressão de triunfo de Micawber inquietou deveras a mãe de Uriah, que exclamou impressionada:

‑ Ury! Ury! Sê humilde, capitula!

‑ Mamã ‑ retorquiu Heep ‑ faça favor de se calar. Está assustada e não sabe o que diz. Humilde! ‑ repetiu olhando‑me escarninho. ‑ Com a minha humildade, humilhei razoavelmente alguns dos que estão aqui, em pouco tempo.

Micawber, repousando com distinção a papada na gravata, recomeçou a ler a sua prosa.

«Em segundo lugar: HEEP tem, por diversas vezes, ao que julgo e posso afirmar...»

‑ Isso não chega! ‑ declarou Uriah, aliviado. ‑ Mamã, não diga nada.

‑ Trataremos de apresentar qualquer coisa que seja prova suficiente. Não tarda muito ‑ replicou Micawber, que prosseguiu:

«... sistematicamente imitou a assinatura do senhor W. em diferentes livros, registos e documentos, e imitou‑a incontestavelmente num caso que eu posso provar. É o que segue...»

E Micawber deixou mais uma vez transparecer o gosto que lhe proporcionava a acumulação solene de palavras, a qual, embora ridícula nessa emergência, não era todavia circunstância peculiar apenas ao nosso amigo. Tenho‑a observado no decurso da minha vida em legião. Chega a parecer‑me uma regra geral. Assim, quando prestam juramento perante a Lei, dir‑se‑ia rejubilarem no instante em que, através de uma catarata de palavras sonoras, exprimem uma ideia vulgar. Falamos da tirania da linguagem, mas gostamos também de a tiranizar; apreciamos o facto de ter um exército de termos supérfluos (detestar, abominar e abjurar, etc.) às nossas ordens para as ocasiões de vulto, e achamos que esta superabundância denota grandiosidade, esplendor. Assim como em ocasiões de cerimónia o que nos interessa é exibir uniformes vistosos, sem atender ao seu significado, igualmente o sentido e a propriedade das nossas expressões assumem importância secundária, uma vez que estas sejam pomposas. E assim como certas pessoas se prejudicam por ostentar fardas em excesso, e como os escravos, quando numerosos, se revoltam contra os amos, eu julgo conhecer uma nação que incorreu em graves dificuldades pelo prazer de abusar de enorme séquito de palavras.

Foi quase com um estalo de língua que Micawber retomou a sua leitura:

«... O senhor W. estava doente e a sua morte inscrita no cálculo das probabilidades, o que poderia trazer certas descobertas e a ruína do domínio exercido por HEEP sobre a família W. (o que é a opinião do abaixo assinado, Wilkins Micawber)... a não ser que se conseguisse, por uma pressão secreta nos sentimentos filiais da senhora W., levá‑la a impedir qualquer investigação nos negócios da firma. De maneira que o dito HEEP achou conveniente ter em seu nome um reconhecimento de dívida da parte do sr. W. quanto à soma de doze mil seiscentas e catorze libras, doze xelins e nove dinheiros e respectivos juros, hipoteticamente adiantada pelo mesmo HEEP ao sr. W. para salvar este da desonra. Na realidade, ele nunca emprestou semelhante soma. As assinaturas constantes da escritura são falsas; possuo da sua mão outras imitações, feitas na tal agenda, as quais, embora em parte chamuscadas pelo fogo, são ainda perfeitamente legíveis. Ora eu nunca assinei, como testemunha, o acto de que acabo de falar, e guardo nos meus papéis a mencionada falsificação.»

Uriah Heep sobressaltou‑se, puxou um molho de chaves da algibeira e abriu uma das gavetas da sua secretária; mas, dando subitamente conta do que fazia, desviou a vista, não sem a ter antes relanceado pelo conteúdo da gaveta.

‑ Guardo nos meus papéis a mencionada falsificação ‑ repetiu Micawber; olhando derredor, como se anunciasse o texto de um sermão. ‑ Isto é, tinha‑a ainda esta manhã quando escrevi este memorial, mas entreguei‑a depois ao doutor Traddles.

‑ Confirmo ‑ acudiu este último.

‑ Ury, Ury! ‑ gritou a senhora Heep ‑ sê humilde e capitula. Meus senhores, sei que o meu filho será outra vez humilde se lhe deixarem tempo necessário para se recompor. Senhor Copperfield, sabe muito bem que ele sempre foi humilde, não é verdade?

Era estranho ver a mãe continuar fiel ao velho embuste, quando já o filho reconhecera a sua inutilidade.

‑ Mamã ‑ retorquiu este, mordendo com, fúria o lenço que lhe atava a mão ‑ seria preferível que pegasse numa espingarda e a descarregasse sobre mim!

‑ Estimo‑te tanto, Ury! ‑ murmurou a senhora Heep. E estou convencido de que ela realmente o estimava, e que ele também, por mais singular que pareça, lhe retribuía na mesma moeda. Faziam, no fundo, um lindo par! ‑ Não suporto ver‑te provocar estes senhores e ainda aumentar mais o perigo. Disse já ao cavalheiro que veio anunciar‑me que estava tudo descoberto e que respondia pela tua humildade e a tua atitude conciliadora. Vejam, meus senhores, como sou humilde, eu! Não se importem com ele. Uriah supunha‑me o instigador destas revelações ‑ eu, aliás, nada fiz para o desiludir ‑ e portanto a sua animosidade voltava‑se contra mim. Então, respondendo à mãe, observou:

‑ Ele seria capaz de lhe dar cem libras para que a senhora dissesse muito menos do que disse.

‑ Não pude evitá‑lo, Ury. Custa‑me ver‑te assim ameaçado só pela teima de não curvares a cabeça. Torna‑te outra vez humilde!

Heep ficou silencioso, sempre a morder o lenço. Então, com ar provocante, replicou:

‑ Que há mais, senhor Copperfield? Se não há mais nada, saiam! Por que olham todos dessa maneira?

Micawber retomou imediatamente a leitura, contente por haver descoberto uma ocupação que tanto lhe quadrava:

«Em terceiro e último lugar: declaro que, por meio de livros falsificados e dos memorandos reais de HEEP, a começar pela agenda em parte queimada (a qual não compreendi aquando da nossa instalação naquela casa) e que a senhora Micawber descobriu por acaso no cubículo destinado ao despejo das cinzas da nossa lareira, estou agora habilitado a provar que as fraquezas, erros e até as virtudes, o amor paternal e o sentimento da honra do infeliz sr. W. foram durante anos explorados e deformados por HEEP a fim de servir os seus desígnios abjectos. Que o sr. W. foi durante esses anos iludido de todas as formas possíveis e imagináveis para maior proveito desse mesmo HEEP, avaro, pérfido e cúpido. Que o único fim de HEEP, à parte a sua cupidez, era submeter inteiramente o sr. W. e sua filha (sobre a qual tinha outras vistas de que por enquanto não falarei). Que o seu derradeiro acto, datado de há poucos meses, foi decidir o sr. W. a renunciar à sua parte na firma e até a assinar um contrato de venda da casa com todo o recheio, em troca de certa anuidade que seria devidamente paga por HEEP em cada um dos quatro trimestres do ano. Que estas maquinações, iniciadas com relatórios alarmantes e fictícios acerca dos recursos de que dispunha o sr. W. numa época em que, havendo‑se metido em especulações imprudentes, não tinha naturalmente à mão as somas de que era moralmente e legalmente responsável, continuaram com pretensos empréstimos de dinheiro a juros elevadíssimos, provenientes na realidade de Heep, mas fraudulentamente obtidos por Heep do próprio sr. W. ou por ele recusados, sob o pretexto das tais especulações; e ainda continuaram por uma série variada de chicanas sem escrúpulos, acabando por se multiplicar de tal maneira que o desgraçado sr. W. soçobrou numa onda de desespero. Acreditando na falência, não só dos seus bens como das suas esperanças e da sua honra, não dispunha o sr. W. doutro recurso senão este monstro de aparência humana ‑ Micawber sublinhou a frase, compreendendo o valor da sua originalidade ‑ que, tornando‑se‑lhe indispensável, consumara a sua ruína! Comprometo‑me a provar tudo isto... e provavelmente ainda muitas outras coisas.»

Murmurei umas palavras a Agnes, que chorava de alegria e desgosto, junto de mim. Houve um movimento geral, como se Micawber tivesse acabado. Contudo, cheio de gravidade, ele pediu‑nos desculpa e chegou à peroração do memorial, denunciando uma satisfação infinita, se bem que eivada de tristeza.

«Termino agora. Só me resta provar o fundamento das minhas acusações, e em seguida, com a minha desditosa família, desaparecer de lugares em que parece que estamos a mais. Isto não tardará a acontecer. Pode‑se naturalmente supor que o nosso filho mais novo venha a ser o primeiro a sucumbir de inanição, por ser o membro mais frágil do nosso grupo: em seguida acompanhá‑lo‑ão os nosssos famosos gémeos. Que seja! Quanto a mim, esta peregrinação a Cantuária contribuiu muito para me aproximar do túmulo; a prisão por processo cível e a miséria farão em breve o resto. Espero que as dificuldades e os riscos de uma investigação ‑ cujas primeiras conclusões foram lentamente apuradas, apesar da urgência de ocupações árduas, sob o peso de cuidados esmagadores, ao nascer da alva, ao orvalho dos crepúsculos, até nas sombras da noite, sob o olhar vigilante de um ser que seria supérfluo chamar Demónio ‑ combinados com o esforço de um pai de família sem pecúnia suficiente para disso tirar partido, quando completada a dita investigação, possam ser como borrifos de água fresca lançados na minha pira funerária. Mais não peço. Que ao menos se diga de mim, com justiça, o mesmo que disseram de um grande herói naval que não pretendo igualar: que o que fiz o foi com desprezo de considerações mercenárias e egoístas.

«Pela Inglaterra, pela Pátria e pela Beleza!

 (assinado) Wilkins Micawber.»

 

Enormemente comovido, mas sempre contente, o senhor Micawber dobrou o papel e apresentou‑o à minha tia, com uma vénia, como coisa que ela devesse querer conservar.

Havia ali, como já notara aquando da minha primeira visita, já tão distante, um cofre, e a chave estava na fechadura.

Pareceu‑me que cruzara o espírito de Uriah uma rápida suspeita; sob o olhar de Micawber, ele atravessou a sala e abriu‑o bruscamente de par em par. Encontrava‑se vazio.

‑ Onde estão os livros? ‑ bradou, com a cara congestionada. ‑ Houve um ladrão que os roubou!

Micawber bateu no peito com a régua.

‑ Fui eu ‑ confessou. ‑ Quando vim pedir‑lhe a chave, como de costume, mas um pouco mais cedo, esta manhã, para abrir o cofre.

‑ Não se preocupe ‑ interveio Traddles. ‑ Os livros estão em meu poder. Cuidarei deles, conforme me autoriza a procuração de que lhe falei.

‑ É então receptador de coisas roubadas? ‑ perguntou Uriah.

‑ Sou, nas circunstâncias presentes ‑ respondeu Traddles.

Qual não foi o meu espanto ver a tia Betsey, até aí profundamente silenciosa e atenta, precipitar‑se para Heep e agarrá‑lo pela gola do casaco com as duas mãos.

‑ Sabe o que quero, eu? ‑ disse ela.

‑ Uma camisa‑de‑forças ‑ sugeriu Heep.

‑ Não, mas o meu dinheiro! Querida Agnes, enquanto julguei que esse dinheiro fora realmente delapidado pelo seu pai, não quis (nem sequer a Trot) contar uma só palavra da entrega que lhe fizera de certas somas. Entretanto sei que esta criatura é o único responsável, e por isso quero o que é meu! Trot, ajuda‑me a recuperá‑lo!

Ignoro se a tia imaginou que Uriah tinha essa importância na gravata, mas o certo é que a puxou, como se de facto lá estivesse. Apressei‑me a afastá‑la e a garantir‑lhe que procuraríamos fazer com que ele restituísse o que desviara, até ao último ceitil. Esta garantia, reforçada por uns minutos de reflexão, acabou por a tranquilizar; mas não pareceu de nenhum modo desconcertada com a atitude que tomara (embora não pudéssemos dizer o mesmo do chapéu) e retomou sossegadamente o seu lugar.

Havia já momentos que a senhora Heep não cessava de recomendar ao filho que fosse «humilde», e até ajoelhara sucessivamente diante de cada um de nós para nos fazer promessas extravagantes. Uriah sentou‑a na poltrona e, de pé a seu lado, cabisbaixo, retendo‑a por um braço (mas sem rudeza, aliás), disse‑me com ar feroz:

‑ Que vai fazer?

‑ Já lho direi ‑ acudiu Traddles.

‑ Este Copperfield não tem língua? ‑ resmungou Uriah. ‑ Não sei quanto lhe daria para saber se lha cortaram!

‑ O meu Ury vai ser muito humilde ‑ prometeu a senhora Heep. ‑ Não façam caso do que ele diz, meus senhores!

‑ Eis o que se vai fazer ‑ principiou Traddles. ‑ Começaremos por esse acto de renúncia, que nos deve ser entregue imediatamente, e do qual já se falou.

‑ E se eu o não tiver?

‑ Como sei que já o tem, não podemos supor nada de semelhante ‑ retorquiu Traddles.

Devo confessar que foi a primeira vez que prestei inteira justiça ao juízo claro, ao bom senso e à simplicidade do meu camarada, assim como à sua prática e paciência.

‑ Depois ‑ continuou ‑ tem de se preparar para largar mão de tudo quanto a sua rapacidade se apropriou. Todos os livros e documentos da firma ficarão em nosso poder, e igualmente todos os seus livros e documentos pessoais, contabilidade e títulos de ambas as proveniências. Numa palavra, tudo o que aqui está.

‑ Ah, sim? Isso veremos ‑ volveu Uriah. ‑ Preciso de reflectir.

‑ Decerto. Mas entretanto, e até que esteja tudo como queremos, as coisas estarão em nossa posse e convidamo‑lo (ou obrigamo‑lo, se prefere) a não sair do seu quarto nem falar com mais ninguém.

‑ Não aceito! ‑ declarou com força Uriah Heep.

‑ A cadeia de Maidstone é lugar seguro para um detido. E embora a lei possa levar mais tempo para nos fazer justiça, e não esteja apta a praticá‑la tão completamente como o senhor, a verdade, todavia, é que ela o castigará. Meu Deus, sabe isto tão bem como eu! Copperfield, queres ir à administração e voltar com dois polícias?

Ao ouvir estas palavras, a senhora Heep caiu de novo ajoelhada em frente de Agnes, chorando e afirmando que Uriah era muito humilde, que se passara tudo realmente como disséramos, e que, se ele não fizesse o que pretendíamos, ela o substituiria nesse mister, o que daria o mesmo resultado. Os seus temores pela sorte do filho quase lhe tiravam o juízo. Saber o que ele faria, se possuísse um pouco de coragem, equivaleria a indagar como procederia um vil rafeiro se tivesse a audácia do tigre. Heep não era mais do que cobardia, e esta manifestou‑se mais nessa ocasião que em outro momento da sua vida.

‑ Espere! ‑ gritou‑me, enquanto passava a mão pela testa húmida. ‑ Mamã, cale‑se! Já que se lhe tem de dar o papel, vá buscá‑lo.

‑ Queira acompanhá‑la, senhor Dick, se faz favor ‑ disse Traddles.

Orgulhoso desta missão, cujo alcance compreendia, Dick seguiu‑a como um cão de pastor poderia seguir uma ovelha. A senhora Heep não lhe causou nenhum percalço, porque voltou não só com o documento, mas ainda com a caixa em que ele se guardava; aí achámos um livro de Banco e outros papéis que nos foram úteis mais tarde.

‑ Óptimo! ‑ comentou Traddles. ‑ Agora, senhor Heep, pode retirar‑se para reflectir. E não se esqueça de que não há outra solução além daquela que estipulei e que esta tem de ser observada.

Uriah, sem erguer a vista do chão, dirigiu‑se para a saída com passos pesados, ainda a coçar o queixo; detendo‑se um instante, murmurou‑me:

‑ Copperfield, munca deixei de o odiar! Sempre foi ambicioso, sempre esteve contra mim!

‑ Como já tive ocasião de lhe dizer, o senhor é que, na sua cupidez, esteve sempre contra toda a gente. Deve ser‑lhe proveitoso reflectir, de futuro, em que a avidez e a manha acabam por ultrapassar os seus fins, neste mundo abjecto, e portanto terminam mal. Isto é tão certo como a morte.

Ao que Uriah respondeu, escarninho:

‑ Ou tão certo como o que nos ensinaram na escola (essa escola em que fiz tamanha provisão de humildade quando nos diziam das nove às onze horas que o trabalho era uma maldição, e das onze à uma hora que era um bem, uma alegria e uma honra, e não sei que mais. Os sermões são mais ou menos lógicos como os deles. Mas a humildade serve de qualquer coisa, hem? Sem ela eu jamais teria embaído o meu distinto patrão e sócio. Micawber, meu velho fanfarrão, hás‑de mas pagar!

Micawber, com o mais soberano desprezo para com Uriah, e de dedo estendido, empertigou‑se o mais que pôde, até que o adversário se esgueirou; em seguida, virando‑se para mim, concedeu‑me a satisfação de assistir «ao restabelecimento da confiança natural entre ele e a mulher». Após isto, convidou todo o grupo para ir contemplar tão comovente espectáculo.

‑ O véu que durante tanto tempo se interpôs entre mim e a senhora Micawber acaba de se rasgar ‑ declarou. ‑ Os meus filhos e o autor dos seus dias podem agora ver‑se em pé de igualdade.

Estávamos todos gratíssimos e desejosos de lho testemunhar, tanto quanto no‑lo permitia o nosso espírito agitado, e creio que iríamos de tropel se Agnes não tivesse de ficar tomando conta do pai, incapaz de suportar, por então, mais que um simples luzeiro de esperança. Além disto, era necessário estar de atalaia quanto a Heep. Traddles ficou para cumprir esta missão, enquanto esperava que o senhor Dick o viesse substituir, e nós partimos, eu, a tia Betsey e aquele último, na companhia de Micawber. Ao deixar assim precipitadamente a criatura a quem tanto devia, e pensando no destino a que ela milagrosamente escapara, abençoei os sofrimentos dos meus verdes anos, que me haviam permitido conhecer a família de Wilkins.

A casa destes Micawbers não era longe e a porta de entrada dava directamente para a sala de visitas. Ele entrou com a sua pressa habitual e nós achamo‑nos, de repente, no seio da família; correndo para os braços da mulher, exclamou: «Emma, Emma, meu amor!» Ela soltou um grito e cingiu o marido ao peito. A filha mais velha, que embalava o recém‑nascido (a que se referiu o memorial de Micawber) ficou visivelmente comovida. O nené estremeceu. Os gémeos demonstraram o seu júbilo por meio de manifestações deslocadas, mas inocentes. O filho dos Micawbers, cujo temperamento parecia acidulado por decepções precoces, abandonou‑se a melhores sentimentos e começou a choramingar.

‑ Emma! ‑ continuou o dono da casa. ‑ Dissipou‑se a nuvem que pesava sobre a minha alma. A confiança mútua, que durante tanto tempo reinou entre nós, voltou para não mais sofrer qualquer eclipse. E agora, viva a pobreza! ‑ concluiu chorando. ‑ Viva a miséria, a fome, os farrapos, o temporal, a mendicidade! A confiança mútua amparar‑nos‑á até ao fim.

Sempre soltando exclamações, Micawber depositou a mulher numa cadeira e beijou os filhos, em roda, com o ar de que lhe eram agradáveis as sombrias perspectivas anunciadas, coisa que a geração nova decerto não considerou com tanto optimismo. Propôs‑Lhes a seguir que fossem pelas ruas de Cantuária, entoando um coro, visto que não possuíam outros recursos.

Mas a senhora Micawber desmaiara devido à comoção sofrida, e tratou‑se de a reanimar, mesmo antes de organizar o coro. Disso se encarregaram minha tia e o senhor Micawber, e então apresentaram‑lhe a senhora Trotwood; a mim reconheceu‑me sem dificuldade.

‑ Desculpe ‑ disse a pobre esposa, estendendo‑me a sua mão ‑ mas não sou saudável e foi demasiado forte a circunstância de ver dissipar‑se o mal‑entendido que existia entre mim e o Wilkins.

‑ São todos os seus filhos? ‑ perguntou‑lhe a tia Betsey.

‑ Por agora não há mais ‑ respondeu a senhora Micawber.

‑ E o primogénito a que se destina? ‑ continuou Betsey, com ar meditativo.

‑ Ao chegar cá pensava fazê‑lo entrar na Igreja, ou mais exactamente no coro ‑ disse o pai. ‑ Mas não precisavam de tenor nesta catedral, e ele... em suma, habituou‑se a cantar nos botequins de preferência aos lugares santos.

‑ Todavia está cheio de boas intenções ‑ interveio a mãe.

‑ Não duvido, minha querida, das suas boas intenções ‑ redarguiu Micawber ‑ mas ainda não dei fé de que as tivesse posto em prática, de uma maneira ou de outra.

O filho reassumiu o seu ar sorumbático e perguntou, com mau génio, que é que devia fazer. Por acaso nascera carpinteiro ou decorador, mais do que nascera pássaro? Devia ir fundar, na rua ao lado, uma loja de boticário? Correr ao tribunal, proclamando‑se advogado? Ou estrear‑se à força na ópera e vencer pela violência? Era‑lhe lícito fazer qualquer destas coisas, sem estar preparado?

Betsey Trotwood meditou um instante.

‑ Senhor Micawber ‑ disse ela ‑ admiro‑me de que não lhe ocorresse a ideia de emigrar...

‑ Esse foi o sonho da minha mocidade e esperança ilusória da idade madura ‑ replicou Wilkins.

Entre parênteses direi estar convencido de que ele jamais pensara em semelhante coisa.

‑ Deveras? ‑ volveu Betsey, lançando‑me um olhar rápido. ‑ E não seria agora excelente ocasião para realizar o projecto?

‑ O capital, minha senhora, o capital... ‑ objectou Micawber. E a mulher observou:

‑ É a única dificuldade, meu caro senhor Copperfield. A única.

‑ Capital? ‑ repetiu a tia Betsey. ‑ O senhor prestou‑nos um serviço enorme. Que podemos fazer de mais justo do que proporcionar‑lhe esse capital?

‑ Eu não poderia aceitar presentes ‑ retorquiu Wilkins Micawber, cheio de ardor e animação ‑ mas se alguém nos quisesse adiantar uma importância suficiente (digamos, a cinco por cento ao ano), sob a minha simples garantia pessoal... por meio de letras a doze, dezoito e vinte e quatro meses, respectivamente, para dar tempo a que surgisse qualquer coisa.

‑ Se alguém quisesse? Com certeza que se quer e se há‑de fazer, nas condições desejadas ‑ afirmou‑lhe a tia. ‑ Pensem ambos no caso. David conhece gente que vai partir em breve para a Austrália. Se resolverem embarcar, por que não haveriam de seguir no mesmo navio? Podem ajudar‑se uns aos outros. Reflicta nisto, senhor Micawber, e também a sua esposa. Pesem entretanto os prós e os contras.

‑ Só lhe quero fazer uma pergunta, minha senhora ‑ interveio a mulher de Micawber. ‑ O clima é saudável?

‑ O mais saudável do mundo!

‑ Muito bem. A pergunta é esta: as condições do país serão de molde a permitir a um homem com os dotes de Micawber elevar‑se na escala social? Não se trata, por ora, de saber se lhe é possível aspirar a ser governador ou algo de semelhante. Mas os seus talentos acharão aí campo bastante para se exercerem e atingir o seu verdadeiro desenvolvimento?

‑ Não haveria melhor sítio para uma pessoa os exercer, se se comportar bem e trabalhar com afinco.

‑ Comportar bem e trabalhar com afinco ‑ repetiu a senhora Micawber, como criatura que sabe o que são coisas práticas. ‑ Nessas condições ‑ declarou ‑ parece‑me que a Austrália é evidentemente a esfera de acção requerida por alguém como Micawber.

‑ Estou certo ‑ acudiu o marido ‑ que nas circunstâncias presentes é esse o único país que convém a mim e à minha família, e que se há‑de apresentar algo de muito extraordinário naquele ponto do mundo. Aliás não é longe, comparativamente falando. E embora a sua generosa proposta mereça ser bem ponderada, afianço‑lhe que desde agora será apenas uma questão de formalidades.

Esquecerei algum dia como esse homem se tornou, do pé para a mão, o mais optimista de todos e logo se viu rico, ou como a mulher começou a discorrer acerca dos hábitos dos cangurus? Esquecerei jamais aquela rua de Cantuária em dia de mercado, quando Micawber, admirando os bois que passavam para a feira, sugeria o fazendeiro australiano que se encontra de passagem na sua terra natal?

 

OUTRA RETROSPECTIVA

Mais uma vez terei de fazer uma pausa. A minha esposa‑criança! Na memória uma sombra se me desloca, um rosto calmo, cujo amor inocente, cuja beleza infantil parece murmurar: «Detém‑te e pensa em mim. Volta‑te para contemplar o botãozinho de rosa que se esfolha e palpita no chão.»

Obedeço. Empalidecem as outras imagens. Reencontro‑me com Dora na pequenina casa que habitávamos. Já nem sei há quanto tempo está ela doente. Esse sofrimento tornou‑se‑me tão familiar que nem conto os dias que passam. O seu número, aliás, não é muito grande, semanas ou meses, mas, para mim, afigura‑se extenuante.

Deixaram de me dizer «espera até ver». Comecei a acreditar, confusamente, que jamais despontará a manhã em que voltarei a admirar a minha Dora correndo ao sol, com o Jip, no jardim.

Tem‑se a impressão de que Jip envelheceu subitamente. Talvez já não encontre na dona a razão da sua própria alegria comunicativa e da sua própria juventude. Está triste, de olhar baixo, fraco das pernas. Não ladra contra a senhora Trotwood e esta lamenta que ele se não encolerize: pelo contrário, arrasta‑se na sua direcção, quando está na cama de Dora e a tia à cabeceira, a fim de lhe lamber meigamente a mão.

Dora sorri‑nos, sempre bela. Nunca se queixa nem se impacienta. Acha‑nos muito prestimosos, que o pobre do marido se afadiga, que a tia dorme menos e a trata com excessivo desvelo. Às vezes as velhotas Spenlows vêm visitá‑la e nós falamos do nosso casamento e dos bons tempos de outrora.

Quanta calma e imobilidade parecem reflectir-se na existência ‑ em toda a minha existência, interior e exterior ‑ quando me sento nesse quartinho pacífico e bem ordenado, de luz velada, onde os olhos azuis da minha esposa‑criança se poisam nos meus e onde os dedinhos dela se entrelaçam nas minhas mãos! Passam‑se assim tantas horas! Todavia, entre todos estes instantes, três se me gravaram profundamente na memória.

É manhã. Dora, que sai airosa das mãos da minha tia, mostra‑me os lindos cabelos encaracolados ‑ tem a cabeça sobre o travesseiro ‑ e ela gosta de os usar numa rede, finos e sedosos.

‑ Não sou vaidosa, nem trocista ‑ diz vendo‑me sorrir. ‑ Mas tu achava‑los bonitos e, quando comecei a pensar em ti, olhava‑me com frequência ao espelho pensando se apreciarias que te desse uma madeixa. Como ficaste tolinho, quando ta ofereci, Doady!

‑ Foi no dia em que pintavas as flores que eu te trouxera, Dora, e em que eu te confessei o meu amor.

‑ Eu é que não quis dizer‑te então quanto havia chorado ao contemplá‑las, porque compreendera como eras meu amigo. Se um dia puder andar como dantes, iremos rever todos esses sítios onde fomos tão patetas, não é verdade? Repetir alguns dos nossos passeios! E lembramo‑nos do papá!

‑ Sim, sim, e seremos felicíssimos! Para isso tens de melhorar quanto antes, minha querida.

‑ Ah, não há‑de tardar. Se soubesses como tenho progredido nas melhoras!

E de tarde. Encontro‑me na mesma cadeira, junto ao leito, e as mesmas faces voltaram‑se para mim. Temos estado silenciosos. No rosto de Dora paira um sorriso. Já deixei de carregar o meu querido fardo abaixo e acima nas escadas. Dora fica de cama todo o dia.

‑ Doady.

‑ Adorada esposa...

‑ Espero que não aches disparatado o que te pedir, depois do que me disseste há pouco tempo a respeito da saúde do doutor Wickfield. Gostava tanto de ver Agnes! Preciso muito de a ver.

‑ Escrever‑lhe‑ei, Dora.

‑ Palavra?

‑ Imediatamente.

‑ Que bom rapaz tu és, Doady. Segura‑me com o teu braço. Afianço‑te que não se trata de um capricho. Não, não é um capricho estúpido. Preciso realmente de lhe falar.

‑ Acredito. Basta‑me comunicar‑lhe esse teu desejo e ela virá logo.

‑ Sentes‑te agora muito só quando estás no rés‑do‑chão?‑ pergunta‑me Dora ao ouvido, com o braço passado em torno do meu pescoço.

‑ Fatalmente que assim devia ser, pois vejo a tua poltrona vazia.

‑ A minha poltrona vazia!

Agarra‑se a mim por momentos, calada, e depois diz:

‑ E faço‑te bastante falta, Doady? ‑ Com um sorriso radiante, acrescenta: ‑ Mesmo assim parvinha como sou?

‑ Querida Dora, quem me faria mais falta neste mundo?

‑ Ah, meu amigo, estou tão contente... e tão triste! ‑ confessa cingindo‑se ainda mais ao meu corpo e rodeando‑me o pescoço com os braços.

Ri e chora ao mesmo tempo, depois acalma‑se e garante‑me que é muito feliz.

‑ Muito! ‑ insiste. ‑ Manda cumprimentos à Agnes e diz‑lhe que necessito de lhe falar; em seguida não desejarei mais nada.

‑ Salvo curares‑te, Dora.

‑ Ah, Doady! Às vezes penso... bem sabes como sou tontinha... que jamais me restabelecerei.

‑ Não digas isso! Nem sequer penses em semelhante coisa!

‑ Se puder evitá‑lo, Doady. Mas sinto‑me felicíssima, embora o meu querido marido se veja tão só diante da poltrona vazia da sua esposa‑criança.

É noite e eu estou outra vez só com Dora. Agnes chegou. Já passou um dia inteiro e uma noite connosco.. Ficámos, eu, ela e a tia, junto da minha mulher desde a manhã. Não falámos muito, mas Dora esteve absolutamente satisfeita, de bom humor. Agora encontramo‑nos sós.

Sei finalmente que a minha esposa‑criança me vai deixar em breve. Disseram‑mo, e nada do que me disseram alterou o que já eu pensava: o que estou é longe de me compenetrar dessa verdade. Não posso assimilá‑la. Várias vezes, durante o dia, afastei‑me para um canto e chorei às escondidas. Lembrei‑me de Aquele que outrora chorou a propósito destas separações entre vivos e mortos. Penso nessa história repleta de bondade e compaixão. Tento resignar‑me, consolar‑me e espero consegui‑lo. Mas do que não chego a persuadir‑me é de que o fim chegará fatalmente. Tenho a sua mão na minha; o coração dela e o meu fazem só um. Vejo o seu amor ainda vivo e intacto. É impossível impedir‑me de conservar um pálido raio de esperança. Quem sabe se ela será poupada à morte?

‑ Vou dizer‑te uma coisa, Doady. Uma coisa que ultimamente tenho estado para dizer... Não te aborrecerás? ‑ pergunta‑me ela com um olhar repleto de doçura.

‑ Aborrecer‑me, filha?

‑ É que não sei o que tu pensarás nem o que pode ter‑te acontecido se pensaste antes. Quem sabe se já tiveste a mesma ideia que eu? Doady, meu querido... talvez eu fosse nova de mais.

Descanso a cara no travesseiro, ao lado dela, e ela olha‑me enquanto se exprime com voz terna. A pouco e pouco, escutando‑a, percebo desconsolado que Dora me fala de coisas idas.

‑‑Creio, sim, que era nova de mais. Não me refiro apenas à idade, mas também à experiência, à reflexão, a tudo. Era tão patetinha! Mais valera que nos houvéssemos estimado como crianças, e depois tivéssemos esquecido... A conclusão que tiro é de que não estava apta ao casamento.

Esforço‑me por deter as lágrimas e digo:

‑ Oh, Dora, meu amor, pelo menos estavas tão apta como eu.

‑ Não sei ‑ insiste, sacudindo, como outrora, os caracóis. ‑ Talvez. Mas, se fosse mais adulta, poderia influenciar‑te. Aliás és bastante inteligente... e eu nunca o fui!

‑ Fomos felizes, minha adorada.

‑ Tenho sido muito feliz ‑ confirmou ela. ‑ Mas, com os anos, o meu querido marido deve ter‑se enfastiado da sua esposa‑criança. Cada vez menos lhe serve de companheira. Cada vez mais ele sente faltas no seu lar. Não, não fiz progressos. As coisas são o que são.

‑ Oh, Dora! Não fales assim! Cada uma das tuas palavras é uma censura.

‑ Enganas‑te ‑ replica, beijando‑me. ‑ Meu querido, nunca mereceste qualquer censura, e eu amo‑te muito para me atrever a censurar‑te. Este foi o meu único mérito, além do ser bonita, na tua opinião. Sentes‑te sozinho, no andar de baixo?

‑ Muito só.

‑ Não chores. A minha poltrona continua lá?

‑ No lugar do costume.

‑ Ah, como tu choras! Cala‑te! E agora promete‑me uma coisa. Preciso de falar com a Agnes. Quando desceres, diz‑lhe que venha ter comigo. Enquanto eu estiver com ela, que ninguém entre, nem sequer a tua tia. Quero falar‑lhe a sós. Absolutamente sozinhas.

Prometo que chamarei a Agnes, sem demora; mas custa‑me a deixá‑la, tamanha é a minha dor.

Falando‑me ao ouvido, Dora insiste:

‑ Será melhor assim. Doady, dentro de uns anos já não me poderias amar, e, outros anos decorridos, ter‑te‑ia desiludido tanto, e enfastiado, que o teu amor estaria morto. Sei que sou nova de mais e suficientemente idiota. Mais vale que isto acabe assim.

Agnes está na sala, quando desço ao rés‑do‑chão. Transmito‑lhe o recado de Dora. Desaparece logo, deixando‑me só com Jip.

O pagode deste encontra‑se perto do lume, e ele, lá dentro na sua imensa cama de flanela, procura adormecer, gemebundo. A Lua brilha alta e clara. Contemplo a noite, derramo lágrimas, o coração indisciplinado sofre cruelmente.

Sento‑me junto ao fogão e penso com remorsos vagos em todos estes sentimentos ocultos que alimentei depois do meu casamento: penso em todos estes pequenos nadas da minha vida com Dora e considero quanto é verdade o dizer‑se que a existência é feita desses nadas. Emergindo do oceano das minhas recordações, revejo sempre a imagem da querida esposa‑criança tal qual a conheci, adornada das graças do amor juvenil e de todos os encantos que pode haver numa paixão. Valeria mais, efectivamente, que nos tivéssemos estimado como crianças e depois nos esquecêssemos um do outro? Responde‑me, coração indisciplinado!

Mal sei como o tempo passa até ao momento em que sou chamado à realidade pelo velho Jip. Sempre agitado,

sai da casota chinesa e olha‑me; vai até à porta e chora para que eu o deixe subir ao primeiro andar.

‑ Esta noite, não, Jip, esta noite, não!

Volta lentamente para o meu lado, lambe‑me as mãos e ergue até mim os olhos velados pela idade.

‑ Oh, Jip, quem sabe se nunca mais?

Deita‑se‑me aos pés, estende‑se como para dormir e, com um grito de aflição, expira.

‑ Agnes, olhe! Olhe aqui!

Aquela expressão de dor e piedade, a torrente de lágrimas, o apelo que me dirige e que eu tanto receava, a mão alçada solenemente para o céu...

‑ Então, Agnes?

Acabou‑se. A noite adensa‑se em volta de mim e, durante um momento, tudo desaparece da minha lembrança.

 

AS TRANSACÇÕES DE MICAWBER

Não é ocasião oportuna para descrever o meu estado de espírito acabrunhado pela dor. Cheguei a pensar que o Futuro se me fechara, que a energia e acção da minha vida tinham atingido o seu termo, que nunca mais acharia refúgio senão no túmulo. Assim vim a pensar, porém não sob o primeiro golpe da adversidade: a convicção invadiu‑me a pouco e pouco. Se os acontecimentos que vou relatar se não tivessem precipitado à minha volta, de começo para confundir e depois para me aumentar a aflição, pode ser (embora não me pareça provável) que eu houvesse caído imediatamente naquele estado de ânimo. De facto produziu‑se, antes que eu tomasse plena consciência da minha desgraça, um intervalo durante o qual até supus que o meu desgosto perdera a sua acuidade e em que o espírito se apaziguou ao pensar na imensa ingenuidade da história encerrada na sua última página.

Não me lembro com exactidão quando me propuseram pela primeira vez ir ao estrangeiro e quando decidimos que buscaria lenitivo na mudança de ares e nas viagens. A influência de Agnes inspirou de tal maneira todos os nossos pensamentos, palavras e acções nesses dias de luto que este projecto pode sem dúvida ser‑Lhe atribuído; todavia aquela influência registou‑se tão discretamente que me é impossível afirmar seja o que for.

E então principiei a ver nesta associação de ideias (que se fizera sempre na minha mente) entre ela e o vitral da igreja um pressentimento do que devia Agnes ser para mim no dia marcado para aquele meu infortúnio. Desde esse instante inolvidável em que ergueu à minha frente a mão, Agnes foi, durante as horas dolorosas, como um anjo celeste instalado no meu lar solitário. Quando a morte comparecera, a minha esposa‑criança (contaram‑me mais tarde) adormecera nos braços da minha amiga, com um sorriso nos lábios. Saí do meu torpor para ver as lágrimas compassivas de Agnes e ouvi as suas palavras de esperança e de paz. A sua fisionomia suave evocava um mundo mais puro e mais próximo dos céus, ali inclinada sobre o meu coração desordenado a fim de lhe temperar o sofrimento.

Mas adiante.

Eu deveria partir para o estrangeiro. Isto parecia ter‑se resolvido entre nós, desde os primeiros dias. A terra cobria agora o que, da minha defunta, era perecível: só faltava o que Micawber definia pela «pulverização final de Heep» e o embarque dos emigrantes.

A pedido de Traddles, o amigo mais dedicado desta época de luto, voltámos a Cantuária, eu, a tia Betsey e Agnes Wickfield. Traddles havia trabalhado sem descanso desde a «entrevista explosiva». Quando a senhora Micawber me viu chegar todo vestido de preto ficou visivelmente comovida. Naquele coração albergavam‑se sentimentos bons, que o tempo não modificara. A tia falou‑lhes deste modo:

‑ E agora, já pensaram na proposta que lhes fiz, da ida para a Austrália?

‑ Minha querida senhora ‑ respondeu Wilkins Micawber ‑ eu não saberia exprimir melhor a conclusão a que minha mulher chegou, assim como este seu fiel servidor (cada um por seu lado e conjuntamente), senão repetindo as palavras de um poeta ilustre e dizendo‑lhe que a nossa canoa está na praia e o nosso navio no mar.

‑ Muitíssimo bem ‑ declarou a senhora Trotwood. ‑ Faço votos pelo bom êxito dessa deliberação tão sensata.

‑ Dá‑nos muita honra, minha senhora. ‑ Em seguida, reportando‑se ao seu memorando: ‑ Quanto à assistência material que nos permitirá lançar o nosso frágil esquife no oceano da aventura, reconsiderei nesta questão importante. Peço‑lhe o favor de aceitar as minhas letras à ordem, devidamente preenchidas, a dezoito, vinte e quatro, e trinta meses. A proposta que previamente lhe submetera era de doze, dezoito e vinte e quatro meses, mas receei que tal prazo não fosse suficiente. É possível ‑ continuou Micawber, lançando a vista derredor, como se a sala fosse um campo de muitas jeiras cultivadas ‑ que à apresentação da primeira letra a nossa colheita não tenha sido boa ou ainda não haja começado. Creio que a mão‑de‑obra é às vezes difícil de obter nessa região do nosso império colonial, onde o destino nos porá em contacto com um solo fecundo.

‑ Faça as coisas como entender ‑ replicou a minha tia.

‑ Eu e minha mulher ficamos profundamente gratos à delicadeza dos nossos amigos e protectores. Desejo ser extremamente prático e pontual. Como estamos prestes a mudar inteiramente de vida e reunimos as nossas forças (o que representa um rasgo de rara amplitude), parece‑me Indispensável, para salvaguarda da nossa dignidade pessoal e exemplo aos nossos filhos, que estes preparativos fiquem concluídos, por assim dizer, tratando de homem para homem.

Não sei se Micawber atribuía um sentido particular a esta última expressão; mas o caso é que pareceu agradar‑lhe extraordinariamente, e ele repetiu‑a, tossicando com ar grave: «de homem para homem.»

‑ Sugiro ‑ acrescentou ele ‑ letras à ordem, uma comodidade do mundo comercial (que nós devemos, suponho, aos judeus, os quais me parece que dela usaram e abusaram em seguida), por serem títulos negociáveis. Mas se preferir um recibo, ou outra garantia qualquer, terei muito gosto em anuir a essa modalidade. De homem para homem.

A tia observou que, num assunto em que as duas partes estavam dispostas a aceitar não importa quais condições, de bom grado anuiria a tudo. Micawber declarou‑se da mesma opinião.

‑ No que respeita, minha senhora, aos nossos arranjos domésticos ‑ prosseguiu Micawber, com certa ênfase ‑ visto que vamos enfrentar novo destino, gostaria de lhos dar a entender. A minha filha mais velha vai todas as manhãs às cinco horas a uma casa da vizinhança para aprender a arte, se arte existe, de ordenhar vacas. Os pequenos mais novos receberam ordem de dar atenção, conforme as circunstâncias lhes permitam, aos hábitos dos porcos e das aves nos bairros mais pobres da cidade, ocupação em que já por duas vezes estiveram em risco de ser maltratados. Eu próprio estudei, na semana passada, a maneira de amassar e cozer pão, e o meu filho Wilkins sai sempre com um pau, a fim de conduzir gado na hipótese de os condutores dos animais lhe permitirem uma ajuda benévola... o que, lastimo dizer, é raro, pois em geral o recambiam com imprecações várias.

‑ Tudo isso é excelente ‑ asseverou a tia Betsey, em tom animador. ‑ Palpita‑me que a senhora Micawber também está muito ocupada.

‑ Querida senhora ‑ volveu esta, com o seu ar de pessoa prática ‑ devo confessar que não estive assim tão ocupada em trabalhos respeitantes à faina da cultura da terra e criação de animais domésticos, embora saiba que isso exigirá a minha atenção nessas plagas longínquas. Os ócios que pude arrancar às tarefas caseiras empreguei‑os em escrever demoradamente à minha família. Devo dizer‑lhe, senhor Copperfield ‑ ajuntou a senhora Micawber, que acabava sempre por se voltar para mim, por hábito adquirido, fosse qual fosse o seu interlocutor ‑ devo dizer‑lhe que chegou o momento em que o passado recua para o esquecimento e a família precisa de estender‑nos a mão; em que o leão necessita reconciliar‑se com o cordeiro, ou seja a minha gente com o senhor Micawber.

Respondi que abundava no mesmo parecer.

‑ É pelo menos, senhor Copperfield, a minha maneira de considerar o assunto. Quando eu ainda vivia em casa de meus pais, sempre que havia um tema de discussão no nosso pequenino grupo, o papá inquiria de mim: «Como é que a nossa Emma resolveria a questão?» Bem sei que o papá era muito indulgente; todavia tenho o meu modo de reflectir, por mais erróneo que possa ser, acerca da frieza que sempre reinou entre meu marido e a minha família.

‑ Certamente. É muito natural ‑ ripostou a tia Betsey.

‑ Pois bem ‑ recomeçou a senhora Micawber. ‑ Não afirmo que as minhas conclusões não sejam falsas; isso é mesmo provável, mas, em meu entender, o abismo que se cavou entre Micawber e a minha família deve ser imputado ao receio que esta última tinha de ver o meu marido pedir‑lhe auxílio financeiro. Não me coíbo de pensar - acrescentou com um ar de profunda sabedoria ‑ que há membros desta família que temem ver Micawber ir solicitar‑lhes o nome, não para dar aos filhos no dia do baptizado, mas para caucionar letras negociáveis na Bolsa.

O tom compenetrado com que ela nos participou esta descoberta, como se ninguém até então houvesse suspeitado de semelhante coisa, pareceu causar admiração (mais do que a notícia) à senhora Trotwood, que ripostou:

‑ Não me espantaria de que tivesse razão no que diz!

‑ Como Micawber está em véspera de derrubar os obstáculos financeiros que durante tanto tempo o impediram de se mover e de principiar vida nova num país em que as suas habilidades tão vastas encontrariam campo para se desenvolver (o que em minha opinião é muito importante, pois do que ele precisa, é realmente espaço) parece‑me que a minha família deveria nesta ocasião dar um passo ao nosso encontro. Gostaria que Wilkins e os meus se juntassem num grande jantar oferecido pela minha família e em que um dos seus membros mais salientes bebesse à saúde e prosperidade do meu marido, o que proporcionaria a este oportunidade de expor os seus pontos de vista.

‑ Minha querida ‑ interveio Wilkins, com certa animação ‑ mais vale que eu diga redondamente e já que se um dia expusesse os meus pontos de vista a essa assembleia, eles haveriam de parecer deveras contundentes. Na verdade, acho que a tua família se compõe, no conjunto, de snobs impertinentes, e, em pormenor, de autênticos bandidos.

‑ Micawber ‑ atalhou ela, abanando a cabeça. ‑ Não! Tu nunqa os compreendeste, e eles nunca te compreenderam.

O marido tossiu.

‑ Emma, lamento muito ter‑me deixado levar por frases que, em rigor, podem passar por violentas. Eu queria apenas dizer que bem posso embarcar para o estrangeiro sem que eles tenham dado um passo para me auxiliar... Prefiro deixar a Inglaterra pelo meu único esforço, sem ficar a dever‑lhes nada. Por outro lado, a experiência diz‑me que nem sequer se dignarão responder às tuas cartas.

A questão resolveu‑se assim amigavelmente e Micawber deu o braço à mulher e declarou‑nos, com um olhar para os livros e documentos que juncavam a mesa diante de Traddles, que nos iam deixar sós, o que logo fizeram cerimoniosamente.

‑ Meu caro Copperfield ‑ disse‑me Traddles reclinando‑se no encosto da cadeira, quando eles já tinham partido, e olhando‑me com um afecto que lhe fez humedecer a vista e levantar os cabelos em todas as direcções ‑ não me desculpo de te importunar nesta altura, pois sei que te interessas bastante pelo caso e até podes desanuviar as ideias. Espero que não te sintas fatigado em excesso...

‑ Estou como sempre, Traddles ‑ respondi após um silêncio. ‑ É natural que pensemos na minha tia, antes de mais ninguém. Sabes tudo quanto ela fez.

‑ Decerto, decerto. Quem seria capaz de o esquecer?

‑ Mas há mais. ultimamente teve novos aborrecimentos. Vai todos os dias a Londres, e muitas vezes parte de manhã cedo para só voltar à noite. Ontem, com esta nossa viagem em perspectiva, não regressou antes da meia‑noite. Sabes como é bondosa para com os outros. Não quer confessar‑me o que a atormenta.

A tia Betsey, muito pálida, com o rosto sulcado de rugas profundas, não se moveu enquanto eu não acabei. Depois desceram‑lhe lágrimas pelas faces. Poisando a mão na minha, continuou calada.

‑ É necessário prestar justiça ao senhor Micawber ‑ declarou Traddles. ‑ Se ele nunca foi capaz de fazer coisas boas para si, não tem descanso quando se trata de beneficiar os outros. Neste aspecto, é um trabalhador incansável! O ardor que desenvolveu, o ímpeto desesperado com que mergulhou, dia e noite, nesta papelada, sem falar do número incalculável de cartas que escreveu, tudo isto merece ser bem ponderado. É extraordinário!

‑ Cartas! ‑ exclamou a senhora Trotwood. ‑ Estou convencida de que os seus próprios sonhos se desenrolam sob a forma epistolar.

‑ Também o senhor Dick ‑ prosseguiu Traddles ‑ tem sido extraordinário. Desde que o renderam na guarda à pessoa de Uriah Heep, o que realizou com zelo inexcedível, consagrou‑se inteiramente ao doutor Wickfield. Sem falar da ajuda que nos presta em copiar os documentos de que precisamos, tarefa que ele cumpre aliás com muito gosto.

‑ Dick é homem notável ‑ opinou a minha tia. ‑ Sempre o disse, Trot.

‑ Agrada‑me comunicar ‑ participou Traddles ‑ que na sua ausência, minha senhora, o doutor Wickfield fez grandes progressos quanto à saúde. Liberto do pesadelo que sobre ele impendia há tanto tempo e das terríveis preocupações que o esmagavam, o nosso amigo já não é o mesmo. Por momentos ainda lhe regressa a faculdade de concentrar a atenção num assunto; até nos auxiliou sobremaneira tornando claros certos pontos obscuros. Mas quero informá‑los quanto aos resultados obtidos, passando por alto, por falta de tempo, outros estímulos recebidos de mais pessoas.

A naturalidade e simplicidade do seu discurso denunciavam claramente que Traddles se exprimia assim para nos incutir esperança e permitir a Agnes ouvir pronunciar com mais confiança o nome do pai; apesar de tudo, não era menos agradável de escutar.

‑ E agora, vejamos ‑ acrescentou contemplando o que se alastrava sobre a mesa. ‑ Depois de ter dado a isto uma certa ordem e desfeito algumas confusões, penso que o doutor Wickfield pode liquidar os seus negócios e fechar o cartório sem acusar défice nem desvio de qualquer espécie.

‑ Graças a Deus! ‑ exclamou Agnes, cheia de fervor.

‑ Mas o remanescente (admitindo já a hipótese da venda da casa) será tão pouco para o seu sustento, umas centenas de libras quando muito, que penso talvez fosse preferível ele conservar a gestão dos bens que lhe foram de há muito confiados. Os amigos poderiam aconselhá‑lo. Agora é livre. Mesmo a senhora ‑ dirigia‑se a Agnes ‑ e Copperfield e eu...

‑ Pensei nisso, Trot ‑ acudiu Agnes ‑ e afigura‑se‑me que não convém, ainda que por conselho de um amigo a quem sou grata e a quem tanto devo.

‑ Não digo que seja um conselho ‑ observou Traddles. ‑ Foi apenas sugestão.

‑ Agrada‑me ouvi‑lo ‑ volveu Agnes com firmeza ‑ porque me dá a esperança, e quase a certeza, de que somos da mesma opinião. Meu caro Traddles, e você, Trot, que posso eu desejar mais do que ver o meu pai aposentado com honra? Sempre desejei, se o visse escapado aos laços que o prendiam, tornar‑lhe a vida mais amena, consagrando‑lhe a minha solicitude e ternura.. Garantir o nosso futuro será a maior felicidade que me podem conceder, depois de o ver isento de cuidados e responsabilidades.

‑ Mas já pensou nos meios, Agnes?

‑ Quantas vezes! Não tenha medo, caro Trot. Estou certa de que triunfarei. Há aqui muita gente que me conhece e não me admiraria se obtivesse êxito. As nossas necessidades são poucas. Se alugar esta velha residência e fundar uma escola, serei ao mesmo tempo útil e venturosa.

O ardor tranquilo e a alacridade da voz evocaram‑me tão vivamente primeiro a velha casa e depois o meu lar solitário que, de comoção, perdi a fala. Traddles, durante uns minutos, fingiu estar muito ocupado com os seus papéis.

‑ E agora, senhora Trotwood ‑ disse ele virando‑se para a minha tia ‑ esse dinheiro que lhe pertence...

‑ Meu Deus, doutor! ‑ suspirou Betsey. ‑ Tudo quanto posso dizer é que, se ele desapareceu, eu saberei suportar o infortúnio. Se o recuperarmos...

‑ Havia inicialmente oito mil libras em títulos do Estado, não é assim? ‑ indagou Traddles.

‑ Exactamente.

‑ Só pude encontrar cinco... ‑ retorquiu o advogado, com ar perplexo.

‑ Cinco mil libras ou cinco libras? ‑ perguntou Betsey, sem se desconcertar.

‑ Cinco mil ‑ confirmou Traddles.

‑ Era tudo o que restava ‑ explicou a tia. ‑ Eu própria vendi três mil. Mil para pagar o teu estágio, Trot, e as outras duas mil tenho‑as comigo. Quando perdi tudo o que possuía, achei mais sensato não falar neste dinheiro mas guardá‑lo em segredo na previsão de dias piores. Queria ver como saía da experiência, Trot, e tu por teu lado saíste‑te bem, à força de perseverança, renúncia e energia. Dick também. Não me digam mais nada, que tenho os nervos abalados.

Ninguém o acreditaria ao vê‑la ali sentada, tão pacífica, de braços cruzados. A verdade é que estava notavelmente senhora de si.

‑ Então tenho o prazer de considerar ‑ redarguiu Traddles, radiante ‑ que entrámos na posse de todos os seus bens...

‑ Não me felicitem! ‑ ordenou Betsey. ‑ Mas como foi isso, doutor Traddles?

‑ Julgava que o doutor Wickfield a tinha desapossado desses títulos?

‑ Naturalmente ‑ assentiu a senhora Trotwood. ‑ E por isso me calei. Não dissemos nada, Agnes?

‑ Na realidade, eles foram vendidos, em virtude da procuração que passou ao doutor Wickfield, ou do subestabelecimento feito mais tarde por este. O patife do Heep fingiu perante o sócio (provando‑lhe por meio de números!) que levantara o dinheiro segundo as instruções recebidas a fim de evitar outras descobertas e promover a novos embaraços. Wickfield, incapaz de lhe resistir, cedeu em seguida à fraqueza de lhe pagar, senhora Trotwood, por várias vezes, juros fictícios de um capital que sabia já não existir, fazendo‑se assim cúmplice da fraude.

‑ E acabou por tomar sobre si todo o odioso da história ‑ obtemperou Betsey ‑ porque me escreveu uma carta desesperada em que se acusava de roubos, de concessões incríveis. Então visitei‑o certa manhã, pedi uma vela, queimei a carta, e disse‑lhe que reparasse, se um dia lhe fosse possível, o mal que me fizera e a si mesmo, mas em todo o caso que se calasse por causa da filha.

Observámos completo silêncio. Agnes cobriu o rosto com as mãos.

‑ De forma que o senhor ‑ continuou a tia daí a uns segundos ‑ conseguiu de facto arrancar‑lhe todo esse dinheiro?

‑ Micawber pô‑lo entre a espada e a parede e o homem não pôde escapar. Creio aliás que se apoderou desses valores não para satisfazer a sua avareza mas para se vingar de Copperfield.

A mim mo declarou, acrescentando que juntaria dinheiro seu, se necessário, para fazer mal a David.

‑ Ah! ‑ exclamou Betsey, carregando o sobrolho e relanceando Agnes. ‑ E que fim levou esse biltre?

‑ Não sei. Deixou Cantuária, com a mãe, que todo o tempo gemeu, suplicou e falou. Partiram para Londres, é tudo quanto posso dizer, excepto que se portou comigo, antes disso, o mais indignamente que se imagina. Pareceu acreditar que eu era tão responsável como Micawber da sua desonra, o que tomei (como lhe disse, ao próprio) por um cumprimento.

‑ Supões que levou dinheiro, Traddles? ‑ perguntei.

‑ Bem me parece que sim! ‑ replicou meneando gravemente a cabeça. ‑ Estou convencido de que embolsou boa maquia, de qualquer maneira. Mas creio que podes verificar, se tiveres oportunidade de lhe seguir as pegadas, que o dinheiro nunca o impedirá de praticar malfeitorias. É um trapaceiro da pior espécie e, seja qual for a carreira que empreender, tomará sempre por caminhos tortuosos. É a sua única consolação. Rastejando sempre para atingir qualquer fim mesquinho, passará o tempo a esbarrar em obstáculos e, por consequência, desconfiará de todos os que se lhe opuserem e odiá‑los‑á. Praticará o mal sob todos os pretextos ou mesmo sem nenhum. Nem é preciso conhecer‑lhe aqui o cadastro para o adivinhar.

‑ Um monstro de baixeza! ‑ comentou a tia. ‑ E quanto ao senhor Micawber, que se há‑de fazer entretanto?

‑ Mais uma vez terei de o louvar alto e bom som. Se a sua paciência e perseverança não fossem tão grandes, não teríamos chegado a este resultado tão satisfatório. Penso que Micawber fez o bem por amor do bem; não se percam de vista as condições que ele poderia ter imposto a Uriah Heep em troca do seu silêncio!

‑ Isso é verdade.

‑ Antes de mais ‑ notou Traddles, um pouco embaraçado ‑ devo dizer que achei razoável, não podendo realizar tudo por mim, negligenciar dois pontos neste arranjo ilegal (porque tudo isto é ilegal, de cabo a rabo). O caso era difícil. Aquelas letras que ele assinou por causa dos adiantamentos...

‑ Devem ser pagas.

‑ Mas não sei nem quando é o prazo nem onde estão ‑ respondeu Traddles ‑ e palpita‑me que, entre esta data e a da sua partida, Micawber há‑de ser constantemente preso e penhorado.

‑ Então passaremos o tempo a libertá‑lo da prisão e da penhora." A quanto monta o total?

‑ Micawber registou todas essas transacções (assim lhes chama) num caderninho e a soma é de cento e trinta e três libras e cinco xelins ‑ respondeu Traddles sorrindo.

‑ Pois bem, dar‑lhe‑emos isso e mais ainda. Agnes, minha filha, mais tarde trataremos da maneira de dividir esse encargo. Quanto deverá ser? Quinhentas libras?

Eu e Traddles chegámos logo a acordo a respeito desta importância. Recomendámos que lhe fosse entregue dinheiro de contado e que pagássemos todas as letras sacadas, cujo credor era Uriah Heep (mas sem prevenirmos o nosso amigo), conforme fosse expirando o respectivo prazo. Também propusemos pagar a toda a família as passagens e equipamento necessário, e entregar‑lhe mais cem libras; quanto a estas, aceitaríamos as condições por ele oferecidas para o reembolso, isto por mera formalidade, atendendo a que Micawber acharia que esta solução lhe dava dignidade. Sugeri, por outro lado, esclarecer Daniel Peggotty acerca do carácter e história do seu companheiro de viagem, e deixar‑lhe toda a liberdade para lhe fazer um empréstimo de outras cem libras. Propus‑me igualmente interessar Peggotty pela pessoa de Micawber, contando‑lhe tudo o que se me afigurasse oportuno e esforçar‑me por que houvesse entre eles simpatia recíproca. Ninguém discordou da ideia e posso acrescentar que o resultado foi bom.

Vendo que Traddles olhava outra vez, inquieto, para a minha tia, lembrei‑lhe o segundo e último ponto que tínhamos anunciado.

‑ Tu e a tua tia desculpar‑me‑eis, Copperfield, se afloro um assunto penoso, como receio que seja ‑ disse ele, hesitante. ‑ Mas julgo necessário recordar que, no dia da memorável denúncia de Micawber, Heep aludiu ameaçador... ao marido da senhora Trotwood.

Betsey, sem perder a rigidez nem a calma aparente, fez sinal de cabeça aprovador.

‑ Talvez ‑ continuou o advogado ‑ fosse mera impertinência...

‑ Não foi ‑ retorquiu ela.

‑ Então, e peço desculpa de insistir, esse indivíduo existe realmente e pode pô‑la em risco?

‑ É verdade.

Traddles explicou que não se atrevera a falar disso, porque não pudera ser um caso que se incluísse nas condições impostas a Heep, tal qual acontecera com as letras sacadas. «Actualmente já não temos poder sobre o sócio do doutor Wickfield e, se ele estiver apto a causar‑nos prejuízo, a qualquer de nós, fá‑lo‑á pela certa.»

A tia nem se mexeu; apenas lhe correram novas lágrimas pelas faces. Por fim disse:

‑ Tem absoluta razão. Ainda bem que se referiu a isso.

‑ Poderei eu, ou Copperfield, fazer qualquer coisa? ‑ inquiriu Traddles com a maior candura.

‑ Não. Nada ‑ replicou a tia. ‑ Agradeço‑lhe muito. Trot, meu filho, a ameaça é vã. Chamemos agora o casal Micawber. E que ninguém me fale!

Deu uma pancadinha na saia e permaneceu hirta, de olhos fitos na porta. Quando os Micawbers apareceram, disse‑lhes:

‑ Deliberámos quanto à sua viagem. Desculpem tê‑los deixado tanto tempo lá fora. Vou explicar as combinações que lhes propomos.

E expô‑las, com infinita satisfação da família candidata à emigração, nesse momento completa nos seus membros. Depois disso, como a pontualidade de Micawber era um ponto de honra, ele logo se precipitou para o exterior a fim de adquirir os impressos necessários ao preenchimento das letras. Mas a sua alegria foi de curta dura, por que daí a pouco voltou acompanhado de um meirinho para nos declarar, entre um dilúvio de lágrimas, que estava tudo acabado. Como já esperávamos este incidente, de que Uriah Heep era naturalmente a causa, arranjámos imediatamente o dinheiro requerido. Cinco minutos decorridos, já se podia ver Micawber, sentado à mesa, a redigir as letras com o ar de beatitude que só lhe conferia esse trabalho tão agradável (ou a preparação de um ponche). Manuseava aqueles papéis como se fossem quadros e mirava‑os de revés com um prazer de artista. Anotava gravemente as datas e os algarismos na sua agenda, em seguida contemplava tudo com o sentimento profundo do seu alto valor: era um espectáculo que merecia realmente ser observado.

‑ E agora, o que pode fazer de melhor, se me permite um conselho ‑ disse‑lhe Betsey, após um silêncio ‑ é renunciar para sempre a essa ocupação.

‑ Minha senhora, tenciono consignar o juramento na página virginal do meu porvir. Minha mulher será testemunha. Espero ‑ ajuntou solenemente Micawber ‑ que meu filho Wilkins se lembre toda a vida que mais vale para ele meter a mão no fogo do que dela se servir para tocar nas serpentes que empeçonharam o sangue de seu desgraçado pai.

Deveras comovido, oferecia a imagem do desespero e contemplava as serpentes (isto é, as letras) com horror melancólico, em que subsistia algo da sua antiga admiração. Após isto, dobrou‑as e meteu‑as na algibeira.

Com isto terminaram os acontecimentos do dia. Estávamos lassos de tristeza e fadiga. Minha tia devia voltar para Londres na manhã seguinte, acompanhada por mim. Resolveu‑se que os Micawbers nos seguiriam depois de ter vendido os móveis a um ferro‑velho; que os assuntos de Wickfield seriam regularizados o mais rapidamente possível sob a direcção de Traddles; e que Agnes regressaria também a Londres para aí aguardar o fim destes ajustes.

Passámos a noite na velha residência, a qual, desembaraçada da presença de Heep, parecia convalescer de uma enfermidade. Dormi no meu antigo quarto, como um náufrago reposto no seu lar.

No dia seguinte partimos, mas para a casa da tia Betsey e não para a minha. Quando ficámos sós, como outrora, ela disse‑me, antes de se ir deitar:

‑ Trot, queres realmente saber o que me atormentava nestes últimos dias?

‑ Decerto, tia. Se houvesse jamais um momento em que desejaria não ver cuidados nem aborrecimentos de que não pudesse partilhar, esse é o de agora.

‑ Já tens demasiados desgostos, rapaz, sem ser preciso que lhes acrescentes os meus. Foi só por isso que te ocultei o que se passava.

‑ Bem sei. Mas diga tudo então.

‑ Queres acompanhar‑me para não muito longe, amanhã de manhã?

‑ Naturalmente.

‑ Nesse caso, combinemos para as nove horas. Será nessa ocasião que te revelarei o degredo.

Às nove horas, pois, do dia seguinte, partimos de carruagem para Londres. Atravessámos numerosas ruas antes de chegar a um dos hospitais. Perto do velho edifício esperava um churrião. O cocheiro reconheceu a minha tia e, obedecendo a um gesto que ela lhe fez da portinhola do veículo, começou a pôr‑se lentamente em marcha. Nós seguimo‑lo.

‑ Estás agora a perceber? ‑ perguntou‑me Betsey. ‑ Ele finou‑se.

‑ No hospital?

‑ Sim.

Mantinha‑se impassível a meu lado, mas tornei a descortinar‑lhe novas lágrimas nos olhos.

‑ Já estivera aqui uma vez ‑ continuou. ‑ Sofria há muito tempo. Era um homem gasto. Quando se apercebeu do seu estado, desta última vez, mandou‑me prevenir. Mostrou‑se amargamente arrependido.

‑ E veio cá, evidentemente, tia.

‑ Vim. Passei depois várias horas com ele.

‑ Morreu na véspera da nossa ida a Cantuária? Betsey fez sinal afirmativo.

Agora já ninguém podia fazer mal à senhora Trotwood. A ameaça era vã.

Deixámos Londres e encaminhámo‑nos para o cemitério de Hornsey.

‑ É preferível aqui a outro lugar. Foi nesta parte que nasceu.

Apeámo‑nos e fomos atrás do féretro modesto. Num canto de que bem me recordo, leu‑se o ofício respectivo.

‑ Faz hoje trinta e seis anos, Trot ‑ disse a tia no regresso, dentro da carruagem ‑ que nós casámos. Deus nos perdoe a todos!

Betsey poisava a sua mão na minha. E, de repente, começou a soluçar.

‑ Era um belo homem nesse tempo! Mudou tanto depois!

Mas a sua comoção não demorou muito. Aliviada pelo pranto, ficou novamente calma e até alegre. Os nervos haviam sido abalados, confessou‑me, senão ter‑se‑ia conservado mais serena.

Reentrámos na vivenda Highgate, onde esperava uma carta de Micawber, recebida nessa mesma manhã. Rezava assim:

 

«Cantuária, sexta‑feira. «Ilustríssima Senhora e prezado Copperfield:

«A bela terra da promissão, que se revelava já no horizonte, está mais uma vez envolta em névoa impenetrável e para sempre Oculta aos olhos de um mísero à toa na vida, cuja sorte se consumou.

«Nova façanha acaba de se verificar (através do tribunal de King's Bench, em Westminster) com outra acção da série Heep contra Micawber. E o acusado está neste momento em poder do xerife, sob a sua jurisdição legal.

«É este o dia, é esta a hora,

Eis o combate que apavora!

Do fero Eduardo as tropas chegam

Com os grilhões e a escravidão. [4]

«Condenado a uma morte rápida (pois o sofrimento moral não é tolerável além de certa medida, e esta pressinto que a atingi), encontro‑me no limite da minha carreira. Deus a guarde! Deus o guarde!

«Algum viajante futuro, ao visitar um dia (movido pela curiosidade, que espero matizada de compaixão) este cárcere destinado aos devedores insolventes, talvez medite um pouco se descobrir, traçadas com um prego ferrugento, naquelas paredes, «as iniciais obscuras de «W. M. «P. E. ‑ Reabro a carta para lhes dizer que o nosso comum amigo doutor Thomas Traddles (que ainda nos não deixou e tem óptimo aspecto quanto à saúde) pagou a dívida e as custas em nome da Ilustríssima Senhora Trotwood, e que nós estamos, eu e a família, cumulados de felicidade terrena.»

 

TEMPESTADE

Abeiro‑me de um acontecimento da minha vida, tão indelével, tão tremendo, tão preso por uma infinidade de laços a tudo o que o precedeu nestas páginas que, desde o começo da minha história, o vejo crescer mais e mais e mais como uma torre enorme na planície, e até julguei sentir‑lhe antecipadamente a sombra nos incidentes da minha infância.

Com ele sonhei depois durante anos. Muitas vezes acordei em sobressalto, crendo ouvir a sua fúria desencadear‑se no meu quarto, no silêncio da noite. Ainda hoje tenho esse sonho, embora a intervalos mais ou menos distanciados. Associo‑o ora a um vento tempestuoso ora ao rumor mais atenuado de um marulho na praia. Tratarei de o registar tão claramente como o vi desenrolar‑se. Não é uma lembrança, tenho‑o à minha frente, desdobra‑se de novo diante de mim.

Quando o navio dos emigrantes se preparava para se fazer ao largo, a minha velha criada chegou a Londres. Ela, o irmão, os Micawbers e eu tornámo‑nos então inseparáveis. Mas nunca pude ver a Emily.

Uma noite dos últimos dias eu estava só com os dois Peggottys. Acertámos de falar do Ham. Contaram‑me a ternura com que o rapaz se despedira da tia e a calma viril de que se revestira. Nos derradeiros tempos ele devia ter sofrido muito, segundo pensavam. A Peggoty não fazia segredo neste particular, e todos nós lhe escutámos atentos o que ela (que vivera com o sobrinho tantas semanas) nos aprouve contar a este respeito.

Eu e a minha tia, por essa altura, deixámos as nossas vivendas de Highgate, eu porque tencionava partir em viagem pelo estrangeiro, Betsey porque queria regressar à sua casa de Dover. Passámos entretanto a habitar um rés‑do‑chão em Covent Garden. Certa noite, depois da conversa de que acabo de falar, regressei a penates reflectindo no que Ham (quando da minha última visita a Yarmouth) me dissera e na ideia que me ocorrera de deixar então uma carta a Emily: afinal decidira escrever‑lhe mais tarde, admitindo sempre a hipótese de a rapariga desejar remeter ao infeliz noivo duas palavras de despedida. Sentia‑me na obrigação de lhe oferecer essa possibilidade.

Instalei‑me, pois, no quarto, para lhe escrever antes de me deitar. Disse‑lhe que falara com Ham e que ele me pedira lhe comunicasse o que os leitores já sabem. Repeti‑lhe isso fielmente. Não havia oportunidade de fazer censuras, ainda que me assistisse esse direito. Deixei a carta bem em evidência, para que a remetessem ao seu destino no dia seguinte, e escrevi umas palavras a Daniel Peggotty relativas ao assunto. Quando me deitei já era de madrugada.

Sentia‑me mais fraco do que supunha, e, como o sono não veio logo, só me levantei muito tarde. O que me despertou foi a presença silenciosa da minha tia à cabeceira do leito. Percebi‑a através de uma espécie de nevoeiro, como em geral sucede em casos semelhantes.

‑ Trot, meu filho ‑ disse ela, quando abri os olhos ‑ não podia decidir‑me a acordar‑te. O senhor Peggotty está lá fora. Deve entrar?

Respondi afirmativamente e ele apareceu logo.

‑ Menino Davy ‑ começou, depois de me haver apertado a mão ‑ entreguei a sua carta à Emily e ela envia‑lhe esta. Roga‑lhe o favor de a ler e de se encarregar de tudo.

‑ Conhece o texto? ‑ indaguei.

O pescador, com ar triste, confirmou a hipótese. Abri o papel e inteirei‑me do que se segue:

 

«Recebi a sua informação. Não sei que lhe diga para agradecer tanta bondade, tanta generosidade que me concede!

«Conservarei no meu coração, até à morte, as suas palavras. São espinhos cruéis, mas ao mesmo tempo grande consolação. Rezei, enquanto as lia; rezei tanto! Quando vejo o que o senhor é, e o que é o meu tio, compreendo o que deve ser Deus, e atrevo‑me a implorá‑Lo.

«Adeus para sempre, meu amigo, adeus para sempre neste mundo. Se, no outro, eu for perdoada, talvez lá me reveja criança e corra para si! Mais uma vês obrigada, que Deus lhe pague! Adeus para sempre.»

 

Tal era a carta, manchada das suas lágrimas.

‑ Poderei dizer, a ela, que o senhor não vê inconveniente... e que terá a bondade de se encarregar...? ‑ perguntou‑me Daniel, quando eu terminei a leitura.

‑ Sem dúvida ‑ ripostei. ‑ Mas estou a pensar...

‑ Em quê?

‑ Penso que vou voltar a Yarmouth. Ainda temos muito tempo, antes da partida do navio. Lembro‑me tanto do rapaz, que está tão só! Se eu lhe transmitisse esta carta e depois dissesse à Emily que ele a recebeu... não seria concorrer para o bem de ambos? A viagem não me custará nada: tenho o espírito perturbado e a deslocação ser‑me‑ia salutar. Partirei esta tarde.

Embora ele porfiasse em me dissuadir, eu percebia que Peggotty comungava nos meus sentimentos. Bastar‑me‑ia este incitamento, se eu precisasse de algum. A meu pedido, Daniel foi ao escritório da diligência marcar‑me um lugar ao lado do cocheiro. E, à hora aprazada, seguimos por aquela longa estrada que eu já percorrera no meio de tantas vicissitudes.

‑ Não acha ‑ perguntei ao cocheiro ‑ este céu muito estranho? Não me lembro de ter visto nada semelhante.

‑ Eu também não ‑ respondeu‑me. ‑ Isto pressagia vento. Não tarda muito que o mar esteja encapelado.

Realmente o céu, semeado de manchas num tom do fumo da lenha verde, era cruzado por nuvens rápidas, que formavam pirâmides enormes. A Lua dir‑se‑ia transtornada ao aparecer de vez em quando no meio daquela confusão, como se alguma perturbação terrível das leis naturais a assustasse e lhe fizesse perder o rumo.

O vento soprara todo o dia e o barulho que se ouvia agora tornava‑se medonho. Uma hora após a nossa partida, a força dele aumentara imensamente e o firmamento enegrecera mais. Com o avanço da noite, as nuvens aproximavam‑se umas das outras, cobriam todo o céu e adensavam as trevas. Os cavalos da diligência progrediam com dificuldade. Várias vezes pararam a meio da noite (estávamos em fins de Setembro, quando elas se tornam mais compridas). Podia‑se recear que a viatura, impelida pelo vento, se voltasse na estrada. O temporal, de tempos a tempos, trazia consigo remoinhos de chuva fustigante. Então, quando um grupo de árvores ou um muro nos oferecia abrigo, nós sentia‑mo‑nos contentes por nos deter ali, na impossibilidade de prosseguir a luta.

Raiou a aurora e aumentou mais a força do vento. Recordava‑me de, em Yarmouth, ter assistido a tempestades que apavoravam os marítimos, porém nunca vira nada que se comparasse a esta. Chegámos a Ipswich com grande atraso, depois de disputar às rajadas cada palmo de terreno das dez milhas que nos separavam de Londres, e topámos no mercado diversos moradores que tinham saído da cama, temendo que as chaminés das casas desabassem. Outros apareceram no pátio da estalagem, enquanto se fazia a muda dos cavalos. Contaram‑nos que grandes placas de chumbo haviam sido arrancadas a um campanário e projectadas numa viela, que inteiramente bloqueavam. Dizia‑se que gente do campo, recentemente chegada, observara pelo caminho portentosas árvores desenraizadas e até mós atravessadas na passagem. E o vento, longe de se acalmar, soprava cada vez mais forte.

Quanto mais nos aproximávamos do mar (a pouco e pouco, e a custo), mais essa força se fazia poderosa, porque dali é que ela irradiava. Muito tempo antes de vermos as ondas, sentimos na boca os borrifos salgados. A maré estava baixa, e o mar havia‑se retirado, deixando à mostra grande extensão plana da vizinhança de Yarmouth. Havia inúmeras poças disseminadas. Ao descobrirmos a água, por intervalos, no horizonte, acima dos abismos flutuantes, veio‑nos a impressão de outra costa, com os seus edifícios, as suas torres. Atingimos finalmente a cidade. Os habitantes acorreram às respectivas portas, mostrando‑se de través, com o cabelo despenteado, cheios de admiração pela proeza da diligência, que ousara afrontar semelhante noite.

Apeei‑me na velha estalagem, e em seguida fui na direcção do mar, escorregando na rua invadida pela areia, pelas algas, pelos flocos de espuma. Tinha medo das telhas e ardósias que caíam e esbarrava com os transeuntes com quem me encontrava nas encruzilhadas mais fustigadas do vento. Próximo da praia, vi não só pescadores mas a metade dos moradores da terra encostados às paredes das casas; de vez em quando alguns atreviam‑se à borrasca para contemplar ao largo o vendaval, mas logo recuavam aos ziguezagues.

Juntei‑me a estes grupos. Havia mulheres lamuriando: os maridos tinham partido para a pesca do arenque e das ostras e, segundo todas as probabilidades, deviam ter naufragado antes de poder alcançar abrigo. Viam‑se velhos marinheiros de cabelo branco, que oscilavam a cabeça olhando o céu e a água e conversavam entre si em voz baixa; armadores agitados e tristes; crianças apertadas umas contra as outras, interrogando mudamente os adultos; e até lobos do mar afeitos ao perigo mas que se mostravam preocupados como os outros homens: quando investigavam o mar, dir‑se‑ia que espiavam um inimigo.

Por fim houve uma calma suficiente para eu observar os elementos no meio da ventania que levantava pedras e areia, e fiquei estupefacto. A mais pequena dessas muralhas líquidas, que chegavam sempre mais altas, parecia capaz de submergir a cidade. Quando a vaga se retirava com um rugido rouco, dir‑se‑ia abrir furnas na areia como se quisesse minar a costa. De cada vez que uma dessas ondas de crina branca se quebrava com fragor antes de atingir a terra, os seus fragmentos, talvez animados da mesma fúria, reuniam‑se imediatamente para formar um novo monstro. Colinas movediças cavavam‑se em vales; outros vales em movimento (roçados por vezes pela asa de uma procelária isolada) erguiam‑se então em colinas; afundavam‑se massas de água para logo ressaltar, abalando a costa com um trovão medonho. Todas estas formas rolavam tumultuosas, deslocando‑se, transformando‑se sem tréguas. A margem imaginária do horizonte subia e descia com as suas torres e edifícios, as nuvens corriam rápidas e negras; eu julgava assistir a uma dilaceração, a uma revolta da natureza inteira.

Ham não se achava entre as pessoas que essa tempestade memorável tinha reunido, e eu deliberei ir procurá‑lo a casa. Bati à porta e ninguém veio abri‑la. Fui então pelas ruas e travessas até ao arsenal em que o rapaz trabalhava. Aí me informaram de que ele partira para Lowestoft, chamado para reparações urgentes, em que era muito hábil; mas estaria de volta no dia seguinte de manhã.

Retrocedi para a estalagem e, depois de me ter lavado, vestido e tentado em vão dormir, vi que eram cinco horas da tarde. Estava ao canto do lume, no salão do café, quando o criado veio atiçar as brasas para ter oportunidade de tagarelar. Disse‑me que dois navios carvoeiros haviam soçobrado com a equipagem, a algumas milhas da costa, e também que se avistavam barcos em perigo na baía, os quais diligenciavam evitar que o temporal os lançasse à terra. «Que Deus se amerceie deles e de todos os pobres marinheiros», acrescentou o homem, «se a próxima noite for igual à última!»

Muito abatido, sofrendo da solidão e mais inquieto pela ausência de Ham, perdera a noção do tempo e do espaço, pois a confusão dos últimos dias afectara‑me mais do que eu supunha. Se, por exemplo, saísse, não me admiraria de ver na cidade alguém que eu sabia estar na capital. De uma forma estranha, trazia o espírito alheado, mas simultaneamente desperto pela recordação dos lugares sempre evocadores para mim e particularmente vivos e penetrantes na memória.

Assim neste estado, as notícias tristes que o criado me deu quanto àqueles barcos intensificaram a minha preocupação acerca de Ham. Não me coibia de pensar que ele era capaz de vir de Lowestoft por via marítima, arriscando‑se a perecer afogado. Esta apreensão tornou‑se tão obcecante que resolvi voltar ao arsenal antes do jantar a fim de perguntar ao capataz se ele julgava que Ham Peggotty tomaria, para regresso, alguma embarcação. Nesse caso, seguiria logo para Lowestoft no propósito de evitar essa viagem, e traria Ham comigo, por terra.

Na dúvida, porém, jantei à pressa e fui lá; cheguei mesmo a tempo, porque já iam fechar a porta. O capataz riu‑se da minha desconfiança e disse‑me que o carpinteiro não corria perigo. Era moço ajuizado, incapaz de embarcar com semelhante tempo. Estava, desde criança, habituado a conhecer o mar.

Era o que eu calculava, e quase tive vergonha da minha resolução, à qual todavia me senti obrigado. O uivar do vento, o bater de portas e janelas, a oscilação aparente dos muros e paredes e o tumulto prodigioso do mar eram ainda mais pavorosos que de manhã. Além disso reinava escuridão profunda, o que emprestava ao temporal aspectos medonhos, reais ou imaginários.

Eu não podia nem comer nem estar parado, nem fazer nada de concreto. Alguma coisa em mim, correspondendo dèbilmente à tempestade exterior, vinha perturbar‑me as profundezas da memória e provocava aí o tumulto. Contudo, no turbilhão das ideias que corriam tão vertiginosas como as vagas, a minha apoquentação quanto a Ham ocupava sempre o primeiro lugar. Mal tinha jantado e procurei reconfortar‑me com dois copos de vinho. Em vão!

Amolentado, sentei‑me diante do lume, sem perder consciência do tropel dos elementos nem do lugar em que me encontrava. Em mim dir‑se‑ia pairar apenas um horror indefinido e, quando despertei, ou melhor, quando me desfiz da letargia que me pregava à poltrona, todo o meu ser fremiu de um medo inexplicável e sem objecto.

Andei cá e lá no quarto, quis ler uma velha gazeta, prestei atenção aos ruídos espantosos do exterior, e contemplei rostos, cenas e formas variadas que as chamas desenhavam. Por fim o tiquetaque regular do relógio imperturbável causou‑me tamanha tortura que decidi ir para a cama.

Foi‑me reconfortante, em tal noite, saber que alguns dos criados da estalagem, tinham deliberado ficar de vigília até de manhã. Deitei‑me bastante cansado e cheio de sono, porém mal me estendi na cama estas sensações desapareceram como por mágica e eu senti‑me bem acordado, com todos os sentidos alerta.

Fiquei horas a escutar a água e o vento, supondo ouvir ora gritos ao largo, ora o tiro de alarme, ora prédios que se desmoronavam. Levantei‑me várias vezes para ir ver o que se passava: mas só enxergava, na vidraça, o reflexo da vela que deixara acesa e a minha cara de espanto a investigar o vazio da noite.

Até que a minha agitação atingiu tal paroxismo que enfiei precipitadamente o fato, e desci a escada. Na cozinha monumental, em cujas traves lobriguei presuntos e résteas de cebolas, os vigilantes agrupavam‑se em atitudes várias de roda da mesa, expressamente afastada da chaminé e encostada à porta. Uma rapariga bonita, que tapara os ouvidos com o avental, soltou um grito ao ver‑me chegar, crendo tratar‑se de um fantasma; mas os outros tiveram maior presença de espírito e alegraram‑se por ver aumentar o número dos circunstantes. Um dos homens, voltando ao tema da conversa interrompida, perguntou‑me se eu acreditava que as almas dos marinheiros dos dois barcos naufragados errassem no meio da tempestade.

Demorei‑me com eles pelo menos duas horas. Uma vez fui abrir a porta do pátio, a fim de espreitar a rua deserta. A areia, as algas, os flocos de espuma continuavam a esvoaçar e eu vi‑me obrigado a pedir ajuda para fechar a porta, que as rajadas impeliam para dentro.

Quando por fim voltei ao meu quarto solitário, reinava aí completa escuridão. Mas estava fatigadíssimo e, logo que me deitei, caí ‑ do alto de uma torre ao fundo do precipício ‑ no sono mais intenso. Fossem, porém, quais fossem as cenas variadas em que se desenvolveram os meus sonhos, o vento nunca deixou de soprar. Até que perdi este último contacto com a realidade, e, em companhia de dois amigos queridos, mas cujos nomes ignoro, me achei prestes a atacar uma cidade, sob o estrondo do canhão!

O canhoneio era tão violento e contínuo que eu não chegava a perceber uma coisa que no entanto desejava ouvir; enfim, com um esforço sobre‑humano, acordei. Era dia, oito ou nove horas; a tempestade rugia, substituindo os tiros de canhão. Alguém batia e chamava por mim à porta.

‑ Que é? ‑ perguntei.

‑ Um naufrágio! Muito perto.

Saltei da cama e indaguei que naufrágio era.

‑ Uma escuna espanhola ou portuguesa, carregada de fruta e vinho. Despache‑se, senhor Copperfield, se quiser ver. Na praia dizem que ela vai despedaçar‑se de um momento para outro.

A voz excitada afastou‑se e esmoreceu na escada. Eu vesti‑me tão depressa quanto pude a fim de me precipitar para a rua.

Adiante de mim corria a multidão, seguindo o mesmo caminho, o da praia. Apressei‑me ainda mais e ultrapassei várias pessoas: dentro de pouco estava frente ao mar embravecido.

Talvez o vento se houvesse acalmado um pouco, mas na proporção, por exemplo, de meia dúzia de canhões que, em cem, se tivessem calado no meu sonho. E o mar, cuja agitação crescera durante a noite, estava sem dúvida mais pavoroso do que na véspera. Todos os aspectos que ele oferecera então dir‑se‑iam ampliados, e a altura a que as vagas se elevavam e de que se precipitavam depois cavalgando umas sobre as outras, para rebentar em hostes intermináveis, essa altura era uma coisa aterradora.

No primeiro instante, incapaz de ouvir outro som além do vento e das ondas, perdido na chusma em que remava indizível confusão, com a respiração sufocada pela tempestade, eu sentia‑me tão aturdido que nem pude descobrir o navio quando olhei para o mar: via apenas a crista espumante das vagas alterosas. Um marinheiro, seminu, que se achava perto de mim, estendeu para a esquerda o braço, no qual uma seta tatuada indicava a mesma direcção. E, de repente, descobri o navio muito próximo!

Tinha um mastro quebrado, a cerca de meio metro do convés, e pendia pela borda fora numa baralhada de velas e aparelhos, e, enquanto o navio oscilava com violência inconcebível, essa massa de despojos vinha bater‑lhe no costado como para o destruir de vez. A bordo lutavam por se desembaraçar dos destroços, pois, quando a embarcação, que estava de esguelha, se virou para nós por efeito do balanço, claramente distingui os homens que trabalhavam com machados e, entre eles, um vulto ágil de cabelos encaracolados e compridos. Mas, nessa ocasião, subiu um grito estridente da multidão, abafando o ruído do vento e das ondas. Uma vaga enorme cobriu o navio, submergindo‑o com a tripulação, mastaréus, barris, tábuas, paveses, todos esses acessórios despedaçados.

Via‑se ainda o segundo mastro com farrapos de uma vela e uma desordem indescritível de cordas partidas, que flutuavam ao vento. O mesmo marinheiro gritou‑me aos ouvidos que o barco havia culapado uma primeira vez, e se erguera para de novo ir embater no fundo. Pareceu‑me ouvir acrescentar que se partira pelo meio. Realmente, era impossível resistir a um ataque tão violento. Entretanto outro grito soava na praia. Do abismo surgiam quatro homens, que se agarravam ao cordame do segundo mastro; entre esses homens estava o rapaz ágil do cabelo encaracolado.

Havia a bordo um sino e, enquanto o navio balanceava, arrojando‑se como um animal furioso, ora a mostrar todo o arqueamento quando se voltava na direcção em que estávamos, ora somente a quilha quando dava um salto selvático para as águas, o tal sino badalava dobrando a finados por aqueles infelizes; o som atingia‑nos, trazido pelo vento. De novo se submergiu o destroço, para reaparecer à superfície. Já faltavam dois dos náufragos. Em terra a angústia aumentava. Os homens gemiam, unindo as mãos numa prece. As mulheres choravam e desviavam a cabeça. Corria gente como louca através da areia, pedindo socorro quando afinal já não havia possibilidade de o prestar. Supliquei também a um grupo de marítimos que eu conhecia: «Não deixem morrer esses dois desgraçados perante os nossos olhos!»

Aflitos, os homens davam‑me a entender ‑ não sei como, mas eu estava muito impressionado para compreender o pouco que conseguia ouvir ‑ que tinham corajosamente preparado a canoa de salvamento havia já uma hora, mas que não podiam lançá‑la ao mar. Ninguém perdera o juízo ao ponto de, por outro lado, se atirar às ondas amarrado a uma corda e ir buscar os náufragos. Nada mais se podia tentar. De repente, porém, correu uma notícia sensacional. Vi abrirem‑se alas e aparecer Ham no primeiro plano.

Corri ao seu encontro, talvez para lhe repetir a minha súplica de salvação. Qual foi, porém, o meu terror ‑ espectáculo terrível e novo para mim ‑ ao perceber no seu ar resoluto (exactamente como no dia seguinte ao da fuga de Emily) que o rapaz se decidira a correr um sério risco. Agarrei‑o então pelos braços e roguei aos camaradas que não o deixassem perder‑se, que não consentissem no seu acto de heroísmo.

Sentindo novo burburinho, olhei para os destroços ao sabor das ondas. O resto de vela, com pancadas cruéis, forçou um dos náufragos a largá‑la; o outro, mais ágil, continuou sozinho pendurado do pedaço de mastro.

Perante tal cena os meus rogos seriam já inúteis, tanto mais que conhecia a vontade indomável de Ham Peggotty.

‑ Menino Davy ‑ disse‑me ele em tom jovial, apertando‑me as duas mãos ‑ se chegou a minha hora, paciência. Que o Senhor nos abençoe a todos! Amigos, preparem‑me. Eu vou.

Vi‑me arrastado, mas suavemente, a alguns metros dali, e escutei confusamente as pessoas que me rodeavam explicar‑me que ele estava decidido a ir, com ou sem ajuda, e que eu aumentaria o perigo se dificultasse as precauções que tomavam para sua salvaguarda. Não me lembro o que respondi nem o que eles alegaram mais. Havia idas e vindas na praia; notei que corriam velozes com a corda de um cabrestante e que entravam no grupo que escondia Ham aos meus olhos. Em seguida descobri‑o, só, com a sua camisola e calças de marinheiro; tinha uma corda enrolada na mão ou no punho, e outra em volta do corpo; alguns dos melhores homens daquela costa seguravam na extremidade, deixando‑a deslizar, sem que a esticassem, na areia que lhes estava aos pés.

Tornava‑se evidente, mesmo para os meus olhos pouco experimentados, que o destroço se deslocava, separando‑se pelo meio, e que a sobrevivência do último náufrago, agarrado ao mastro, seria coisa de minutos. O rapaz, no entanto, mantinha‑se firme, tinha na cabeça um boné vermelho, de feitio esquisito: e enquanto a prancha que o sustinha se desfazia a pouco e pouco, ele agitava o boné num gesto que me recordou, de súbito, alguém outrora muito da minha intimidade.

Ham espiava o mar, em lugar desviado, e havia atrás de si o grande silêncio da multidão que retinha o fôlego. À sua frente desenrolava‑se a tempestade. Uma vaga enorme refluiu e ele, lançando um olhar aos que seguravam na corda, atirou‑se na perseguição da onda. Daí a instantes entrava em luta com outras que retrocediam, elevando‑se no cimo delas, caindo nos vales que se abriam, perdido no meio da espuma. Então foi repelido para a praia e os camaradas puxaram‑no precipitadamente.

Estava ferido. Do lugar onde me conservava, enxerguei sangue no rosto. Ham, porém, não fazia caso disso. Pareceu‑me que dissera aos camaradas para o deixarem mais lasso, afrouxando a corda (pelo menos assim inferi dos seus gestos); e voltou a atirar‑se ao mar.

Desta vez dirigiu‑se para o local do sinistro, alçado na crista das ondas, tombando no côncavo delas, tão depressa rechaçado como impelido para diante, mas lutando sempre sem desfalecimento. A distância era curta, mas a violência do mar e do vento tornavam o combate mortal. Por fim aproximou‑se do destroço. Achava‑se tão perto que bastaria uma braçada vigorosa para lhe tocar... quando uma imensa muralha de água verde avançou para a costa, subvertendo tudo ‑ e os restos do navio desapareceram.

Ao correr para o ponto em que içavam a corda, vi voltear no mar uns pequenos fragmentos, como se fosse um simples barril que se houvesse despedaçado. Em todos os rostos lia‑se sincera consternação. Puxaram o corpo e eu contemplei‑o a meus pés, inerte. Era cadáver. Transportaram‑no para a casa mais próxima e, como agora ninguém mo impedia, andei de volta dele, azafamado, porque eu procurava por todos os meios reanimar o que já não tinha vida. A vaga enorme matara‑o num instante e aquele coração generoso tinha parado para sempre.

Encontrei‑me sentado à beira do seu leito, perdidas que foram todas as esperanças. Um pescador, que me conhecia desde a minha infância e a de Emily, veio sussurrar o meu nome à porta.

‑ Quer descer? ‑ perguntou‑me alguém de uma palidez de cinza, com as lágrimas a correrem‑lhe pelas faces.

O seu olhar despertou em mim uma antiga recordação, confirmando a suspeita que eu pouco antes tivera.

‑ Deu um cadáver à costa? ‑ inquiri.

‑ Sim, senhor.

‑ Conhece‑o?

Não me respondeu, mas conduziu‑me à praia. E, no sítio onde eu e Emily, crianças, apanhámos conchinhas, ali onde o vento espalhara destroços do velho barco‑residência, destruído nessa noite, no meio das ruínas daquele lar que ele injuriara, o rapaz de cabelo encaracolado jazia com a cabeça apoiada no braço, como muitas vezes eu o vira dormir no colégio.

 

A FERIDA NOVA E A ANTIGA

Não tinhas necessidade, ó Steerforth, de me recomendar, na última vez em que nos vimos, na ocasião de uma despedida que eu mal podia crer definitiva: «Promete‑me que só te lembrarás do meu lado bom.» Assim eu fizera; como podia agora mudar de ideias, perante tal espectáculo?

Estenderam‑no numa padiola, cobriram‑no com uma bandeira e transportaram‑no para a povoação. Todos os que o conduziam eram seus velhos conhecidos: tinham ido para o mar com ele, haviam‑no admirado alegre e garboso. Seguiram no meio do estrépito do temporal, silenciosos entre todo aquele tumulto, e encaminharam‑se para a vivenda onde já se alojara a Morte.

Mas, ao poisar a padiola na entrada, entreolharam‑se cochichando. Eu sabia a razão disso. Achavam que não era conveniente colocá‑lo no mesmo quarto do outro. Fomos, pois, para a cidade e depositámos a nossa carga na estalagem. Logo que pude conciliar as ideias, mandei chamar Joram e pedi‑lhe que me arranjasse um veículo que o pudesse levar a Londres, durante a noite. A mais ninguém competiria, além de mim, tomar conta do cadáver e preparar a mãe para o receber. Tratava‑se de um dever cruel, que me impus cumprir tão fielmente quanto possível.

Escolhi a noite para a viagem a fim de evitar os curiosos. Mas, embora fosse quase meia‑noite, quando a minha carruagem saiu do pátio da estalagem, seguida daquilo que me estava confiado, muita gente esperava na rua. Em vários lugares, ao atravessar a cidade e até curta distância fora de portas, fui encontrando diversos grupos. Todavia daí a pouco achava‑me em pleno campo, na desolação da noite, com os restos mortais do meu amigo de infância.

E foi por um belo dia de Outono, cerca do meio‑dia, quando as folhas secas perfumavam a terra ou adornavam ainda os ramos doirados pelo sol, com os seus coloridos amarelos, rubros ou castanhos, que eu cheguei a Highgate. Percorri a derradeira milha a pé, pensando como devia proceder. A carruagem deixara‑a a alguma distância, à espera das minhas ordens.

Não observei alteração na casa. Nenhuma janela estava aberta, não havia o menor sinal de vida no triste corredor pavimentado nem na galeria que levava à porta sempre fechada. O vento amainara e nada tugia nem mugia.

De começo não tive coragem de bater ao portão. Quando me compenetrei dessa necessidade, pareceu‑me que o próprio som da campainha falava por mim. A criadita apareceu, de chave na mão, e, olhando‑me ansiosa, disse‑me ao abrir:

‑ Desculpe, senhor Copperfield, mas está doente?

‑ Tive muitos aborrecimentos e estou cansado.

‑ Aconteceu alguma coisa? O senhor James...?

‑ Cale‑se ‑ ordenei‑lhe. ‑ Sim, aconteceu uma coisa, que devo participar à senhora Steerforth. Ela está em casa?

A rapariga respondeu‑me, com ar inquieto, que a senhora raras vezes saía, mesmo de carruagem, e que me recebia com certeza. Aliás já se encontrava levantada, acrescentou, e a senhora Dartle acompanhava‑a nesse momento. Que havia de dizer, ao anunciar‑me?

Recomendei‑lhe que não deixasse transparecer nada na expressão do rosto e se limitasse a apresentar‑lhe o meu bilhete‑de‑visita, dizendo que eu esperava. Em seguida sentei‑me na sala (aonde já havíamos chegado), até que a criada reapareceu. As janelas estavam meio fechadas, parecia que ninguém comparecia ali. Há muito tempo que não tocavam harpa. Na parede via‑se o retrato de James criança. Continuava no mesmo canto a escrivaninha em que a senhora Steerforth guardava as cartas do filho; pensei se ela as lia agora, se jamais as tornaria a ler!

Reinava tanta tranquilidade na residência que eu sentia os passos leves da criada no primeiro andar. Voltou para me informar que a senhora estava doente, não podia descer, mas que, se eu quisesse ir ao seu quarto, me agradecia esse incómodo. Daí a poucos minutos achava‑me defronte dela.

A senhora Steerforth, afinal, encontrava‑se no quarto do filho e não no seu. Compreendi que a saudade a levara até lá e que, pela mesma razão, conservava derredor todos os troféus de James obtidos no colégio, na ordem em que ele os deixara. A explicação que deu foi que os seus aposentos não convinham a uma doente, mas o seu ar repelia qualquer indício de verdade no facto.

Como de costume, junto da poltrona da dona da casa encontrei a senhora Dartle. Logo que os olhos pretos desta última se poisaram nos meus, percebi que ela suspeitava de que eu lhes trazia más notícias. Instantaneamente se tornou visível a cicatriz do lábio. Rosa recuou um passo, de maneira a esconder a cara, não fosse a outra desconfiar, e perscrutou‑me com um olhar penetrante que não esmoreceu e nem por um instante se desviou de mim.

‑ Lastimo verificar que está de luto, senhor Copperfield ‑ disse a mãe de James.

‑ Tive a infelicidade de perder minha mulher.

‑ É muito novo para tamanha provação. As minhas condolências. Espero que o Tempo actue favoravelmente.

‑ Também eu ‑ respondi, fitando‑a ‑ espero que o Tempo proceda igualmente consigo, minha senhora. É o que nos resta de melhor nas grandes desgraças.

A gravidade das minhas palavras e as lágrimas que me assomaram aos olhos acabaram por inquietá‑la. O curso dos seus pensamentos pareceu deter‑se de súbito e mudar de direcção.

Procurei manter firme a voz para suavemente proferir o nome do filho, mas não pude deixar de sucumbir a um leve tremor. A senhora Steerforth pronunciou duas ou três vezes esse nome em voz baixa. Depois observou com uma calma forçada:

‑ Meu filho está doente?

‑ Muito.

‑ Viu‑o?

‑ Sim, senhora.

‑ Reconciliaram‑se?

Era‑me impossível afirmar ou negar. A senhora Steerforth virou de leve a cabeça para o ponto em que se achava Rosa Dartle e eu aproveitei esse instante para murmurar à dama de companhia:

‑ Morreu!

A fim de evitar que, fitando‑a, a pobre mãe visse no rosto de Rosa escrita a verdade, o que não estava ainda preparada para suportar, apressei‑me a chamar‑lhe a atenção. Entretanto a outra levara as mãos à cabeça, num gesto de horror e desespero.

Então a viúva olhou para mim ao mesmo tempo que alçava os dedos à testa. Supliquei‑lhe que sossegasse, preparando‑se para sofrer o que eu tinha de contar; mais valera, porém, lhe pedisse que chorasse, pois a senhora Steerforth estava impassível como uma estátua de pedra.

‑ A última vez que aqui vim ‑ balbuciei ‑ a senhora Dartle disse‑me que James andava embarcado. A noite de anteontem foi terrível no mar. Se ele navegava nessa ocasião, e perto de uma costa perigosa, e se o barco que avistaram era o seu, como disseram...

‑ Rosa! ‑ ordenou a viúva. ‑ Aproxima‑te.

A dama de companhia obedeceu, mas sem amenidade nem comoção. Contemplou aquela mãe, envolvendo‑a no seu olhar de fogo e desatou numa gargalhada pavorosa.

‑ Então, hem? Está satisfeito o seu orgulho? Mulher insensata! Agora, que ele pagou... com a vida! Está a perceber? Com a vida!

A senhora Steerforth, hirta na sua poltrona, não emitiu um gemido mas fitou‑a com olhos desvairados.

‑ Sim! ‑ continuou Rosa, batendo frenética no peito. ‑ Olhe para mim, e gema, e chore! Repare na obra do seu filho defunto!

‑ E indicou a cicatriz da boca.

O queixume que a mãe exalava de tempos a tempos apertava‑me o coração. Esse queixume era sempre igual. Inarticulado, sufocado. Sempre acompanhado de um movimento de impotência da cabeça, sem todavia mostrar alteração nas feições.

Passava pelos lábios cerrados, pelos dentes unidos, como se as maxilas se tivessem paralisado e o rosto petrificado de horror.

‑ Lembra‑se do dia em que ele me fez isto? Lembra‑se do dia em que, levado por esse orgulho e violência que herdou da senhora e que a senhora lisonjeava, ele me fez isto e desfigurou para sempre? Olhe, estou marcada até à morte pela sua cólera. Agora sofra e chore pelo que fez dele!

‑ Senhora Dartle ‑ implorei ‑ em nome de Deus...

‑ Deixe‑me falar ‑ ripostou, voltando para mim o olhar chamejante. ‑ E o senhor cale‑se! Olhe, repito, mãe orgulhosa de um filho orgulhoso e pérfido! Sofra pela educação que lhe deu. Deplore a corrupção em que o lançou! Lastime a sua perda! E chore pela minha!

Apertava os punhos, tremia‑lhe todo o corpo magro, consumido, como se a paixão a matasse a pouco e pouco.

‑ Arrependa‑se da teimosia que lhe transmitiu! O orgulho dele não a pode ferir, porque é também o seu orgulho. Desde o berço que a senhora o fez como ele era e atrofiou o que devia ser. Está recompensada agora dos seus anos de porfiado labor?

‑ Senhora Dartle ‑ intervim ‑ que crueldade!

‑ Nada impedirá que eu fale enquanto aqui estiver! Sofri todo este tempo para me calar agora? Estimava‑o mais do que a senhora o estimou! ‑ exclamou Rosa virando‑se para a mãe de James. ‑ Fui capaz de o amar sem nada pedir como retribuição. Se tivesse sido mulher dele, tornar‑me‑ia escrava dos seus caprichos apenas em troca de uma palavra de amor por ano. Sim, sim, quem melhor do que eu o sabe? A senhora foi exigente, orgulhosa, formalista e egoísta. O meu amor seria devoção; teria calcado aos pés as suas lamúrias, senhora!

De olhos chispantes, bateu com o pé no chão para juntar o gesto à palavra.

‑ Olhe!‑continuou tacteando a cicatriz com mão impiedosa. ‑ Quando ele cresceu o suficiente para compreender o que fizera, ficou arrependido. Eu sabia cantar para seu deleite, sabia falar‑lhe, sabia mostrar o interesse que sentia por tudo quanto ele praticava e adquiri com o meu trabalho os conhecimentos susceptíveis de o atrair e captar. Na idade em que foi puro e sincero, concedeu‑me o seu amor. Amou‑me, sim! Quantas vezes, depois de se haver desembaraçado da senhora, James veio ter comigo!

Disse isto com vaidade, em tom de desafio, no meio do seu delírio; mas também com um ardor em que a sua antiga ternura pareceu renascer um momento das cinzas frias.

‑ Acabei... como aliás devia ter previsto, se ele me não tivesse fascinado pelas suas assiduidades juvenis... acabei por ser uma boneca, um joguete que lhe ocupava as horas vagas, coisa que podia retomar e largar à vontade e com que podia divertir‑se sempre que estivesse disposto a tal. Quando se cansou, eu cansei‑me também. Quando o seu capricho terminou não tentei arraigar o meu poder, do mesmo modo que não consentiria em ser sua esposa se ele o quisesse à força. Separámo‑nos sem uma palavra. Talvez a senhora o notasse, sem o lamentar. Em seguida fui, entre ambos, como um móvel deteriorado, sem olhos, sem ouvidos, sem coração e sem memória. Está a gemer? Pois vá gemendo sobre o que fez dele e não sobre o seu amor. Repito que houve tempo em que o estimei mais do que a senhora.

Aqueles olhos brilhantes e acusadores fixavam o olhar imóvel e o rosto gelado da senhora Steerforth; mas quando recomeçou o gemido, ela nem por isso se comoveu, como se esse rosto fosse apenas um retrato.

‑ Senhora Dartle ‑ insisti ‑ vejo que é insensível, aliás ter‑se‑ia compadecido desta mãe angustiada...

‑ Compadecer‑me? ‑ replicou violentamente. ‑ Dela? Esta obra é sua. Que vá gemendo sobre a seara que semeou com as próprias mãos.

‑ E se as culpas do filho...?

‑ Culpas? ‑ repetiu Rosa, soltando soluços convulsos. ‑ Quem se atreve a culpá‑lo? A alma de James valia milhões de vezes mais que a dos amigos perante quem ele se rebaixava.

‑ Ninguém o podia ter estimado mais do que eu, nem conservar uma recordação mais querida ‑ repliquei. ‑ Eu queria dizer que, se a senhora se não compadece da mãe e se as culpas do filho... Foi muito rigoroso para com os seus pecados, senhora Dartle.

‑ É falso! ‑ volveu vivamente. ‑ Eu amava‑o!

‑ ... Se as culpas de James se não podem apagar da sua lembrança em semelhante ocasião, olhe ao menos para esta mulher como se a visse pela primeira vez e socorra‑a no que puder.

A senhora Steerforth não se mexera, parecia quase incapaz de um movimento. Direita, rígida, de olhar fixo, soltava a intervalos o mesmo queixume, com o mesmo oscilar de cabeça, mas sem dar outro sinal de vida.

Subitamente Rosa Dartle ajoelhou diante dela e começou a desacolchetar‑lhe o vestido.

‑ Que sejas maldito! ‑ gritou‑me, virando‑se para mim com ar colérico misturado de dor. ‑ Vieste aqui só para espalhar a desgraça! Que sejas maldito! Vai‑te embora!

Puxei o cordão da campainha, para chamar os criados. Rosa Dartle tomara nos braços aquela forma inanimada e, sempre de joelhos, inundava‑a de lágrimas, beijava‑a, embalando‑a de encontro ao coração como se se tratasse de uma criança, e tentava, por todos os meios que pode inspirar a ternura, despertar‑lhe os sentidos suspensos. Como já não receasse deixá‑las sós, saí sem ruído do quarto.

Voltei mais tarde e estendemos James na cama do aposento materno. A senhora Steerforth continuava no mesmo estado, segundo me informaram. Rosa não a deixara. Os médicos estavam presentes. Tinham experimentado todos os processos de reanimação, porém ela mantinha‑se como uma estátua, salvo um ou outro gemido que soltava de vez em quando.

Percorri a casa desolada e fechei todos os postigos, acabando pelos do quarto em que James repousava. Ergui‑lhe a mão de chumbo e apoiei‑a contra o meu coração. Não havia agora senão morte e silêncio, apenas perturbado pelos queixumes de uma mãe.

 

OS EMIGRANTES

Antes de me abandonar à minha mágoa, devia ainda ocultar estes acontecimentos aos que partiam, e despedir‑me deles com ar de ignorância feliz. Não podia perder tempo.

Nessa mesma noite, chamei de parte Wilkins Micawber e encarreguei‑o de impedir que a notícia das tristes ocorrências chegasse aos ouvidos de Daniel Peggotty. Micawber aceitou com entusiasmo esta missão e prometeu‑me interceptar todos os jornais, sem o que seria impossível evitar o conhecimento da catástrofe.

‑ Para que ele os saiba ‑ declarou ‑ será preciso passar sobre o meu cadáver!

Devo informar que Micawber, para se adaptar à sua vida nova, tomara um aspecto de filibusteiro audaz, não bem à margem da lei mas antes na defensiva e muito vivo e pronto. Podia‑se supô‑lo um homem bastante confinado a uma região erma, longe da civilização e prestes a voltar à solidão nativa.

Entre outras coisas, obtivera um equipamento completo de oleado e chapéu de palha, de copa baixa, exteriormente alcatroado. Quando deambulava com esse traje rude, com um óculo de longo alcance debaixo do braço, disposto a perscrutar o céu e o horizonte, assemelhava‑se mais a um marítimo do que o próprio Daniel. O resto da família estava também apto a entrar em acção. A mulher usava chapéu de fitas bem amarradas ao queixo, e envolvia‑se num xaile que a fazia parecer‑se (como eu na célebre noite da minha chegada a casa da tia Betsey) com um verdadeiro embrulho atado fortemente pelo lado de trás da cintura. A filha enfronhara‑se igualmente, na previsão das piores tempestades e sem o menor adorno. O filho primogénito quase desaparecia numa camisola de lã, com óptimas calças de fazenda peluda como eu nunca vira. Quanto aos pequenos, andavam enfardados, como conservas, em forros impermeáveis. Micawber e o rapaz mais velho arregaçavam as mangas no punho a fim de estar prontos a dar um murro, a tropeçar ou a soltar o grito de «Iça!» à menor advertência.

Foi assim que nos encontrámos ao cair da noite. Traddles e eu, instalados nos degraus de pau então conhecidos pelo nome de Escada de Hungerford, dispúnhamo‑nos a observar a partida de um navio que transportava grande parte dos seus bens.

Eu contara a Traddles a medonha tragédia e ele ficara profundamente impressionado, mas achava também que a caridade nos ordenava que a mantivéssemos secreta e queria ajudar‑me nessa obra de misericórdia. Nessa ocasião é que tomei Micawber de parte e obtive a sua promessa de guardar segredo.

Os Micawbers haviam‑se hospedado por cima de uma taberna suja e arruinada, próximo desses degraus, e cujos quartos de tabiques de madeira davam para o rio. Como emigrantes, suscitavam a curiosidade de Hungerford e arredores. Atraíam tanto o interesse dos habitantes que nos vimos forçados a procurar refúgio naqueles aposentos. Era uma das divisões de ressalto do prédio, com as águas fluviais correndo em baixo. A minha tia e Agnes estavam ali ocupadas a confeccionar vestidos para as crianças poderem mudar durante a viagem. A velha criada Peggotty auxiliava‑as na tarefa, muito calada, com a sua eterna caixa de costura, a sua fita métrica e o coto de vela, que tinham sobrevivido já a tanta coisa!

Não foi fácil responder às perguntas que nos fizeram, e muito menos sussurrar à Peggotty, quando Micawber lhe disse que entrasse, que eu entregara a carta e que tudo ia bem. Se deixasse transparecer um pouco da minha comoção, o próprio luto que usava bastaria para a justificar.

‑ E quando parte o navio, senhor Micawber? ‑ perguntou a senhora Trotwood.

Micawber achou necessário prepará‑las gradualmente, quer a tia Betsey quer a mulher, para essa notícia, pois declarou apenas que seria mais cedo do que na véspera se supunha.

‑ Preveniram‑no, naturalmente...

‑ Sim, senhora.

‑ Então quando parte?

‑ Disseram‑me que estivéssemos a bordo, sem falta, antes das sete horas da manhã.

‑ Côa breca! É muito cedo! ‑ exclamou a tia. ‑ Será por motivos relacionados com a navegação, senhor Peggotty?

‑ Deve ser, minha senhora. O barco descerá o rio antes da maré. Se o senhor Davy e a minha irmã forem a Gravesend, no outro dia, pelas doze horas, ver‑nos‑ão aí pela última vez.

‑ Lá estaremos, sem dúvida ‑ asseverei.

‑ Até lá ‑ observou Micawber lançando‑me um olhar entendido ‑ eu e o senhor Peggotty não perderemos de vista a nossa bagagem. Emma, meu amor ‑, continuou ele, pigarreando e assumindo o ar mais distinto que podia ‑ o meu amigo doutor Thomas Traddles teve a bondade de me sugerir, em segredo, que fosse requisitar os ingredientes necessários à composição de uma quantidade moderada dessa bebida que está intimamente ligada na nossa memória ao rosbife da Velha Inglaterra. Enfim, refiro‑me ao ponche. Em tempos normais não hesitaria em requerer a indulgência das senhoras Trotwood e Wickfield, mas...

‑ Tudo o que posso dizer ‑ retorquiu Betsey ‑ é que brindarei com o maior prazer à sua felicidade e êxito, senhor Micawber.

‑ E eu também ‑ disse Agnes, sorridente.

Em seguida Micawber desceu ao botequim, onde tinha o ar de quem estava em casa, e voltou com um cântaro fumegante. Não pude deixar de notar que ele descascara todos os limões com o seu canivete, o qual (como convém a um colono experimentado) tinha comprimento razoável, e que depois limpou, com certa ostentação, na manga do casaco. Percebi então que a senhora Micawber e os dois filhos mais velhos possuíam também esses instrumentos temíveis, ao passo que cada um dos mais novos trazia uma simples colher de pau segura por um fio sólido. Sempre para se preparar quer para vida no mar ou na selva, Micawber, em vez de servir o ponche, à mulher e aos dois filhos mais velhos, em copos, o que poderia fazer facilmente, porque havia abundância deles, apresentou‑lhes a bebida dentro de púcaros de estanho, que depois tornou a guardar na algibeira.

‑ Renunciamos ‑ disse‑me com intensa satisfação o senhor Micawber ‑ a todo o conforto da velha mãe‑pátria. Os habitantes da floresta não podem esperar, naturalmente, participar dos requintes do país da Liberdade.

Nessa altura veio um garoto dizer a Micawber que o esperavam em baixo.

‑ Tenho o pressentimento ‑ disse a mulher dele ‑ que é alguém da minha família.

‑ Nesse caso, minha querida ‑ observou o marido com a impetuosidade costumada quando se falava desse assunto ‑ como esse membro da tua família, seja qual for, nos tem feito esperar tanto tempo, agora é ocasião de esperar por sua vez.

‑ Micawber ‑ replicou a mulher, baixando a voz ‑ numa situação destas...

‑ Emma ‑ redarguiu ele, levantando‑se ‑ as minhas culpas são sempre as mesmas. Continuo a ser um réprobo.

‑ Os meus parentes parece que, por fim, se convenceram do mau procedimento havido até agora ‑ ripostou a mulher. ‑ Se querem estender‑te a mão, não a recuses!

‑ Pois seja, minha querida.

‑ E se não for por eles, ao menos fá‑lo por mim, Micawber.

‑ Esse aspecto da questão é, neste momento, irresistível. Não estou disposto a cair nos braços de nenhum membro da tua família; contudo, esse que espera lá em baixo não verá a sua cordialidade frustrada.

Micawber saiu e esteve ausente uns minutos, durante os quais Emma deu mostras de recear que se ouvisse qualquer discussão entre o marido e o «parente». Por fim reapareceu o mesmo garoto, que me apresentou um papel escrito a lápis, no qual eu li esta fórmula jurídica: «Heep contra Micawber».

Por aí soube que ele fora de novo preso e, no cúmulo do desespero, me suplicava lhe mandasse o canivete e o copo (coisas que por acaso tirara do bolso pouco antes) porque lhe podiam ser úteis durante os breves instantes em que teria ainda de viver encarcerado. Pedia‑me também, como derradeira prova de amizade, que acompanhasse a família ao hospício da paróquia e esquecesse que jamais existira um ente como ele.

Como resposta, desci naturalmente ao rés‑do‑chão para lhe dar o dinheiro preciso, e achei Micawber sentado a um canto, a olhar carrancudo para o meirinho responsável pela sua captura. Uma vez saldada a dívida, e ele liberto, abraçou‑me com fervor, e em seguida apontou a transacção no seu canhenho, tomando cuidado em não omitir nem a mais pequena fracção da soma liquidada.

Essa famosa agenda lembrou‑lhe outra transacção. De regresso ao quarto (onde explicou a ausência dizendo que fora retido por circunstâncias alheias à sua vontade), exibiu uma enorme folha de papel dobrado em muitas partes e coberta de numerosas operações feitas com esmero. Do relance de olhos que lhe deitei, devo confessar que nunca vi tais somas figurarem num caderno de apontamentos. Parece que se tratava de cálculos de juros compostos sobre o que ele chamava um «total de quarenta e uma libras, dez xelins e onze dinheiros e meio» em períodos variáveis. Após exame atento a esses cálculos e uma avaliação rigorosa dos seus recursos, conseguiu estabelecer a soma exacta, com os tais juros durante dois anos, quinze meses e catorze dias, a partir da presente data. Pela importância assim obtida preencheu uma letra, que entregou logo a Traddles, como quitação completa da sua dívida (sempre de «homem para homem») e com toda a espécie de agradecimentos.

‑ Tenho ainda o pressentimento ‑ disse a senhora Micawber, meneando a cabeça com ar pensativo ‑ de que a minha família fará a sua aparição a bordo antes da nossa partida.

Micawber deu a impressão de também ter pressentimentos a esse respeito, mas afundou‑os no copo e engoliu‑os com o ponche.

‑ Se tiver oportunidade de escrever para Inglaterra ‑ disse a senhora Trotwood à senhora Micawber ‑ não se esqueça de nos dar notícias suas.

‑ Sinto‑me feliz por saber que desejam as nossas notícias ‑ ripostou a última. ‑ Eu não deixarei de lhes escrever. O senhor Copperfield, como velho amigo íntimo, igualmente se não recusará a enviar‑nos uma carta de tempos a tempos, ele que conheceu os gémeos quando ainda vagiam!

Informei‑a de que teria sempre muito gosto em retribuir a correspondência recebida.

‑ Se Deus quiser ‑ interveio Micawber ‑ não faltarão ocasiões. O oceano, nestes dias, está repleto de navios. Não deixaremos de encontrar alguns durante a travessia. No fim de contas, é uma pequena viagem ‑ acrescentou, brincando com o monóculo. ‑ A distância é puramente imaginária.

Que estranha coisa, penso hoje, ouvir Micawber falar de uma viagem da Inglaterra à Austrália como de um simples passeio à Mancha, ao passo que ele mesmo, referindo‑se a uma ida de Londres a Cantuária, se expressava como quem fosse de uma ponta a outra do mundo!

‑ Diligenciarei ‑ dizia o nosso amigo ‑ durante a travessia, por lhes contar histórias, e penso que as melodias de meu filho Wilkins serão apreciadas do mesmo modo. Quando minha mulher se habituar ao balanço do navio, creio que não terá dúvida em cantar alguma peça do seu repertório. Espero ver muitas vezes golfinhos, tanto a bombordo como a estibordo. Não faltarão espectáculos interessantes. Em suma ‑ concluiu com toda a distinção de outrora ‑ é provável que a viagem seja tão excitante que nós fiquemos desconsolados quando o vigia gritar finalmente «Terra!»

Com isto, esvaziou o copo de estanho, num gesto gracioso, como se terminasse na realidade uma viagem e passasse, com brilho, no exame feito perante grandes autoridades navais. A mulher falou por seu turno:

‑ Confio, senhor Copperfield, em que certos ramos da nossa família se perpetuem no solo da pátria. Não te faças carrancudo, Micawber! Não me refiro à minha família propriamente dita, mas aos filhos dos nossos filhos. Por mais forte que seja a vergôntea, não posso esquecer a árvore que lhe deu origem ‑ murmurou oscilando a cabeça. ‑ E quando a nossa linhagem atingir as honrarias e a riqueza, confesso que gostaria de ver essa riqueza entrar nos cofres da velha Albion.

‑ Minha querida ‑ replicou o marido ‑ que a velha Albion se arranje sozinha! Devo dizer que ela nunca fez muito por mim e que não tenho nada com que me regozijar.

‑ Não tens razão, Micawber! Partes para esse país longínquo não para enfraquecer mas para fortificar os laços que nos unem à mãe‑pátria.

‑ Esses laços, minha filha, repito que nunca me impuseram tais obrigações que me levem a hesitar em atar novos laços.

‑ Mais uma vez, Micawber, digo que não tens razão. Não conheces as tuas possibilidades. São elas que, mesmo nas circunstâncias futuras, reforçarão esses laços que nos unem à pátria.

Micawber, de sobrancelhas erguidas, escutava do fundo da sua poltrona, ora aprovando ora repudiando os pontos de vista da mulher conforme ela os ia expondo ‑ mas deveras compenetrado da sua previdência.

‑ Caro senhor Copperfield ‑ prosseguiu ela, virando‑se para mim ‑ parece‑me bastante desejável que Micawber, logo a seguir à partida, se convença da sua situação. Sabe que eu não partilho as opiniões optimistas do meu marido. Sou, se me permitem, essencialmente prática. Não ignoro que esta viagem é muito comprida, e que não deixará de haver privações e aborrecimentos. Mas sei, por outro lado, o que vale Wilkins Micawber. Conheço‑lhe as faculdades latentes, por isso acredito que é de importância vital para ele compenetrar‑se da sua posição.

‑ Meu amor, talvez me autorizes a observar ser mais provável que eu me compenetre dessa posição no momento presente.

‑ Não acho, Micawber. Não de todo. Veja, senhor Copperfield: o caso do meu marido é especialíssimo. Micawber parte para um país distante com o único propósito de ser compreendido e apreciado pela primeira vez na sua vida. Desejo que ele se coloque à proa desse navio e declare com firmeza: «Venho conquistar este país. Tendes honrarias para me dar? Tendes riquezas? Lugares bem retribuídos? Oferecei‑mos! Mereço‑os.»

Micawber olhou‑nos: dir‑se‑ia concordar com a ideia.

‑ Desejo ainda ‑ continuou Emma, com o seu ar pousado ‑ que Micawber seja o César do seu próprio destino. Eis, senhor Copperfield, o que me parece ser a verdadeira posição. Desde o primeiro dia da viagem, ele devia colocar‑se à proa e dizer: «Basta de demoras e de decepções! Basta de pobreza! Tudo isto era bom no velho mundo. Aqui é o novo. Soou a hora das reparações. Que elas se apresentem!»

O marido cruzou os braços com ar resoluto, como se já estivesse à proa do navio.

‑ E se ele agir assim, se compreender as suas possibilidades, não tenho razão em afirmar que Micawber, em lugar de os enfraquecer, fortalecerá os braços que o prendem à Grã‑Bretanha? Se, naquele hemisfério, se afirmar uma grande personalidade, quem me diz que a sua influência se não fará sentir na Inglaterra? Como se pode admitir que ele, erguendo o ceptro do poder na Austrália, não seja ninguém na velha pátria? Sou apenas mulher, mas não seria digna de mim, nem do meu pai, se acreditasse em semelhante absurdo!

A convicção da senhora Micawber quanto ao valor dos seus argumentos dava àquela eloquência uma elevação moral que eu ainda lhe não conhecia.

‑ E eis porque ‑ rematou ela ‑ eu desejo tão ardentemente regressar ao solo natal. É possível... direi mesmo provável... que Micawber entre na História, e convém que esteja representado neste país que lhe deu o ser mas se recusou a empregá‑lo.

‑ Minha querida ‑ atalhou o marido ‑ é impossível não me sentir impressionado pelo teu afecto. Admirei sempre o teu bom senso. O que for soará. Não queira Deus que eu recuse à minha terra parte das riquezas que os meus descendentes decerto acumularão.

‑ Muito bem ‑ disse a tia Betsey, com um sinalzinho de cabeça a Daniel Peggotty ‑ e eu brindo à sua saúde e ao êxito de todos. Que as bênçãos do Céu os acompanhem!

Peggotty colocou no chão os dois pequenos Micawbers, que tinha nos joelhos, para se reunir ao casal e beberem todos pelas intenções manifestadas. Apertou a mão dos dois, como de camaradas, e o rosto iluminou‑se‑lhe com um sorriso. Previ que ele seria amado e respeitado em toda a parte onde estivesse.

Micawber autorizou até os miúdos a molhar as suas colheres de pau no copo dele, para comungarem do brinde. Acabado este, a tia Betsey e Agnes puseram‑se de pé e despediram‑se dos emigrantes. Os adeuses foram melancólicos. Todos choraram; os pequeninos agarraram‑se a Agnes até ao último minuto, e nós deixámos a pobre senhora Micawber inconsolável, pranteando e soluçando à débil claridade de uma vela, que vista do exterior devia assemelhar‑se a um tristíssimo farol.

No dia seguinte voltei para saber se eles já tinham partido. Haviam seguido numa lancha às cinco horas da manhã. Compreendo melhor do que nunca o vácuo que provocam tais separações ao sentir como esse botequim de soalho oscilante, onde os vira na véspera à noite, me parecia desolado, agora que eles já não o ocupavam.

No dia seguinte à tarde fomos para Gravesend, eu e a minha velha criada. Vimos o navio a meio do rio, cercado de uma chusma de lanchas. O vento era favorável. O sinal de partida flutuava no topo do mastro. Aluguei imediatamente uma canoa para nos levar a bordo. Depois de haver atravessado aquele turbilhão em que a azáfama era enorme e de que o navio era o centro, chegámos junto do costado. Daniel recebeu‑nos na coberta. Disse‑me que Micawber acabava de ser preso mais uma (e última) vez a requerimento de Heep, e que (satisfeito o meu pedido) ele, Peggotty, liquidara a dívida. Reembolsei‑o. Em seguida o emigrante conduziu‑nos à entreponte. Aí se dissiparam os meus receios de que o boato dos acontecimentos de Yarmouth pudesse ter chegado aos seus ouvidos, pois Micawber surgiu da sombra, enfiou o braço no de Daniel, com ar de protecção amigável, e declarou‑me que nunca se haviam separado desde o embarque.

O lugar era tão insólito para mim, tão escuro e estreito, que de começo não pude distinguir nada; mas a pouco e pouco os olhos habituaram‑se à obscuridade e eu julguei‑me no meio de um quadro de Van Ostade [5]. Entre barrotes, caixas, tábuas e peças várias do navio, beliches, malas, embrulhos, barris e pertences dos emigrantes, iluminados aqui e ali pela claridade amarelada que descia de lanternas suspensas e oscilantes e de uma escotilha ou respiradouro, acumulavam‑se grupos de pessoas que entabulavam novos conhecimentos, ou se despediam, que riam, falavam, choravam, comiam ou bebiam; uns já estavam instalados como em sua casa, no cantinho que lhes fora atribuído, com os pequenos sentados em tamboretes ou cadeirinhas; outros porfiavam por descobrir lugar de repouso e erravam como almas penadas. Desde as crianças quase recém‑nascidas até aos velhos, havia de todas as idades. Desde os agricultores que traziam terra da pátria na sola das botas até aos ferreiros que mostravam na pele restos de fuligem e de fumo, viam‑se representantes de todas as profissões, ali se acotovelando no pouco espaço da entreponte. Como deixasse correr o olhar em volta de mim, julguei ver, sentado perto de uma portinhola aberta, um dos pequenos Micawbers ao lado de uma rapariga parecida com Emiily. A minha atenção foi atraída para ela pelo facto de que alguém a deixava depois de a ter beijado: essa pessoa, deslizando suavemente pelo meio daquele rebuliço, deu‑me a impressão de ser Agnes. Mas perdi-a de vista naquela confusão de idas e vindas e na agitação do meu próprio espírito. Compreendi que era chegado o momento de os visitantes abandonarem o navio. A minha velha criada Peggotty chorava sentada no baú, junto de mim, e a senhora Gummidge, auxiliada por uma rapariga vestida de preto, acomodava a bagagem de Daniel. Este perguntou‑me:

‑ Tem algumas palavras para nos dirigir antes de partirmos? Teremos esquecido alguma coisa?

‑ Uma coisa só: Martha.

Daniel tocou no ombro da mulher de quem eu acabava de falar, e Martha surgiu à minha frente.

‑ Ah, digno homem que você é! ‑ exclamei. ‑ Deus o abençoe! Leva‑a consigo, não é verdade?

Ela respondeu por ele, desfazendo‑se em soluços. Não pude dizer mais nada, mas apertei com força a mão do pescador.

Os visitantes esvaziavam o navio. Restava‑me fazer o mais difícil. Repeti a Daniel o que me encarregara de lhe transmitir o sobrinho. Daniel ficou profundamente comovido. Quando, porém, me recomendou retribuísse a Ham as provas de afecto e de saudade, ainda maior foi a minha comoção.

Soara a hora. Abracei‑o, tomei pelo braço a minha criada e afastei‑me rapidamente. Na coberta, encontrei a senhora Micawber, que lançava derredor olhar desvairado na esperança de ver aparecer a família. As suas últimas palavras foram para me dizer que jamais se separaria do marido.

Descemos para a nossa canoa e aguardámos, não muito longe, que o navio levantasse a âncora. A tarde estava calma e clara. O barco ficava entre nós e o poente, e cada mastro, cada verga se salientava no fundo avermelhado. Nunca vi nada de tão belo, nada que inspirasse tanta tristeza e esperança, ao mesmo tempo, como esse esplêndido navio imóvel nas ondas purpúreas, e todas aquelas cabeças que se comprimiam nos paveses, numa expectativa silenciosa.

Um momento só. Logo que as velas se enfunaram ao sopro do vento e o navio estremeceu, de todas as embarcações pequenas que o rodeavam estrugiram aclamações vibrantes, imitadas pelos que iam a bordo e que entre uns e outros se repetiam como um eco. O coração pareceu‑me que rebentava quando ouvi esses gritos e vi agitarem‑se lenços e chapéus. E então descobri‑a, a ela!

Estava ao lado do tio, agarrada ao seu ombro, trémula. Ele designou‑me com mão febril e ela, divisando‑nos, lançou‑me com um gesto o derradeiro adeus.

Ah, sim, Emily, tão bela e abatida, continua sob a sua protecção, porque ele te foi sempre fiel no seu grande amor!

Nimbados de luz rósea, de pé no convés, ambos distanciados dos outros, ela cingida a ele, ele amparando‑a com ternura, os dois se afastaram da minha vista a pouco e pouco. A noite descera sobre as colinas de Kent quando alcançámos a costa. Emily pesava‑me, sombria, no coração.

 

AUSÊNCIA

Foi uma noite longa e sombria que me envolveu, povoada pelos espectros de muitas esperanças, de recordações queridas, erros, sofrimentos vãos e saudades.

Deixei a Inglaterra sem estar ainda bem compenetrado do abalo que me atingira. Deixei todos os que me eram caros e parti imaginando que resistira à dor e que esta desaparecera. Como quem, no campo de batalha, recebe uma ferida mortal sem quase sentir que foi alvejado, eu não fiz, uma vez só com o meu coração indómito, a mais pequena ideia do ferimento com que teria de lutar.

E não o compreendi, depois, repentinamente, mas a pouco e pouco, passo a passo. A desolação que me acompanhara na partida tornou‑se de hora para hora mais grave e mais profunda. Era, de início, uma sensação de vazio e de melancolia, em seguida, de modo imperceptível, transformou‑se em consciência desesperada de tudo quanto eu perdera: amor, amizade, gosto à vida; de tudo quanto fora destruído: a minha esperança, o meu primeiro afecto, castelo no ar da minha vida; de tudo o que me restava: o vácuo e a solidão imensa que se estendia ininterrupta até ao negro horizonte.

Se a minha mágoa era egoísta, disso eu não dava fé. Chorava pela minha esposa‑criança, arrancada, tão nova, à sua vida em flor. Chorava por aquele que podia ter ganhado o amor e a admiração de milhares de seres como havia desde há muito ganhado a minha estima. Chorava por aquele coração destroçado que encontrara repouso no mar enfurecido, e pelos sobreviventes dispersos de um lar humilde onde eu, ainda criança, ouvira soprar o vento da noite.

Julguei que nunca mais me desfaria dessa tristeza que se acumulara em mim. Errava por toda a parte acompanhado do meu triste fardo. Sentia‑lhe o peso e dizia comigo que nada o poderia aliviar. Quando o desespero atingiu o cúmulo, supus que ia morrer. Pensava às vezes que preferia morrer na minha casa e que devia retomar o caminho para lá voltar. Outras, pelo contrário, afastava‑me cada vez mais, passando de cidade em cidade, procurando não sei quê e fugindo não sei de que perigo.

Não me é possível reviver, uma após outra, todas as sombrias fases da minha perturbação mental. Há sonhos que não se podem contar senão vaga e imperfeitamente; e quando me forço a lançar a vista ao passado, a esse momento da minha existência, parece‑me outra vez um sonho. Vejo‑me entre as urbes estrangeiras, palácios, catedrais, templos, castelos, túmulos, ruas fantásticas, lugares eternos que a História ou a Imaginação consagrou ‑ exactamente como poderia fazer num sonho, arrastando sempre o fardo pesado, mal consciente dos objectos conforme eles se iam apagando perante mim. Uma tristeza universal no seio de uma melancolia obcecante, eis a noite em que soçobrou o meu coração indisciplinado. Mas deixemos isso, e, ao sair desse sonho longo e triste, contemplemos a aurora!

Viajei durante meses com esssa nuvem escura que se me adensava sem cessar na alma. Razões obscuras, que em mim ainda combatiam debilmente, impediam‑me de voltar a casa, e eu continuava a minha peregrinação. Por vezes vagueava sem repouso de terra em terra, sem me deter em nenhuma parte; outras, demorava‑me muito tempo no mesmo sítio. Nem propósito nem desejo me sustinham.

Achava‑me então na Suíça. Saíra de Itália por um desses grandes desfiladeiros dos Alpes e errava com um guia pelos trilhos sinuosos das montanhas. Não sei se essas medonhas solidões me falavam ao coração. Descobrira uma sublimidade terrível naquelas altitudes e nesses precipícios assombrosos, nas torrentes estrondeantes, nos vastos campos de neve e de gelo: eles, porém, ainda me não tinham ensinado fosse o que fosse.

Cheguei uma tarde, antes do crepúsculo, a um vale em que devia passar a noite. Enquanto descia por uma vereda que serpenteava no flanco do monte, creio que se apoderou de mim, lentamente, uma sensação de beleza e serenidade (há muito esquecida), um apaziguamento originado na calma do vale que eu já via cintilar perante os olhos deslumbrados. Parei uma vez, recordo‑me, sentindo uma tristeza que não era opressiva e de nenhum modo desesperada. Lembro‑me da esperança que experimentei de que em mim se produzisse uma alteração para melhor. Entrei no vale quando o sol‑poente brilhava nos altos picos nevosos que o rodeavam como nuvens eternas. As encostas inferiores da montanha, que formavam o espaço em que se anichava a aldeia, eram de um verde opulento. Por cima dessa vegetação luxuriante, afundavam‑se pinhais sombrios como se fossem cunhas metidas nos campos de neve e protegiam o caminho quando se despenhavam aludes. Mais acima erguiam‑se muralhas abruptas, rochas cinzentas, gelo cintilante, estreitas pastagens de um verde tenro que se perdiam na brancura fria. Espalhados no sopé da montanha, viam‑se pontos minúsculos que representavam, cada um, um lar, casas de madeira isoladas que a grandeza do cenário tornava semelhantes a brinquedos. A própria aldeia era pequenina, acaçapada no vale, com a sua ponte de pau sobre a torrente que saltava de rocha em rocha e depois desaparecia sussurrando entre as árvores. No ar tranquilo subia um canto longínquo de vozes de pastores. Mas, quando uma nuvem purpúrea veio pairar na ilharga da montanha, tive a impressão de que essas vozes saiam de lá e que essa música não era terrestre. De súbito, do meio desta serenidade, a mãe Natureza falou‑me, e eu, pacificado, descansei a cabeça fatigada no chão e chorei como nunca mais o fizera após a morte de Dora.

Ao chegar, encontrei um maço de cartas que me esperavam; fui então passear fora da povoação a fim de as ler enquanto me preparavam a ceia. Outras cartas anteriores não as recebera ainda, e eu mesmo não tivera coragem de escrever além de duas linhas a este ou àquele para comunicar a minha presença em tal ponto. Abri, pois, o maço e vi numa das cartas a caligrafia de Agnes. A seu respeito só me dizia que estava satisfeita e que tudo corria bem como esperara. Em seguida ocupava‑se apenas de mim.

Não me dava qualquer conselho, não me impunha nenhuma obrigação, repetia unicamente, com o fervor habitual, a confiança que depositava na minha pessoa. Sabia (acrescentava) que uma natureza assim era capaz de transformar o sofrimento numa bênção; sabia que as provações e aflições me exaltariam e fortificariam a alma. Tinha a certeza de que eu alcançaria, através do desgosto, maior energia e elevação nos meus sentimentos. Orgulhava‑se da minha fama e desejava vê‑la crescer; estava certa de que eu continuaria a trabalhar. Não ignorava que, em mim, a dor se transformaria em força, deixando de ser uma fraqueza. Tal como as infelicidades da minha infância haviam contribuído para me formar, também maiores desgraças me incitariam a aperfeiçoar‑me e a concorrer para que ensinasse aos outros o que assim aprendera. Recomendava‑me a Deus, que chamara a Si a minha esposa inocente; assegurava‑me a sua afeição fraternal, que me acompanharia para toda a parte aonde eu fosse; e, vaidosa do que eu já realizara, mais o estava quanto àquilo que eu haveria ainda de realizar.

Apertei esta carta ao coração e pensei nos sentimentos que uma hora antes ainda experimentava. Quando ouvi as vozes esmorecerem ao longe, e a nuvem empalidecer, e o vale cobrir‑se de sombras, e a neve doirada do cimo dos montes confundir‑se com a palidez do céu nocturno, inversamente se me dissiparam no peito as sombras da noite interior e então compreendi o amor que Agnes me despertava. Doravante ela seria para mim mais querida do que o fora até esse instante!

Reli a carta muitas vezes. Escrevi‑lhe antes de me deitar. Disse‑lhe que tivera grande necessidade da sua ajuda; que, assim distante como estava, não era nem nunca fora o que me supunha ser, mas que me inspirava confiança em me tornar o que ela imaginara e que o iria tentar.

Esforcei‑me realmente. Dentro de três meses, faria um ano que principiara o meu luto. Decidi não tomar nenhuma resolução antes de expirarem esses três meses, mas fazer entretanto uma tentativa. Vivi todo esse tempo no vale e nas suas imediações.

Decorridos os noventa dias, deliberei ficar ainda mais alguns longe de casa, instalando‑me provisoriamente na Suíça, país que a lembrança daquela noite me tornava querido. Pegaria de novo na pena e trabalharia.

Recorri humildemente a Deus como Agnes me aconselhara. Procurei a natureza, e não o fiz em vão; reabri o coração aos meus semelhantes, que evitava havia já tantos meses. Depressa tive quase tantos amigos nessa região como em Yarmouth, e, quando lá voltei na Primavera seguinte (pois fora obrigado a ir a Genebra no começo do Inverno), o acolhimento cordial dos seus habitantes, embora expresso em língua estrangeira, encontrou eco na minha alma.

Com paciência e afinco, trabalhei desde manhã cedo até noite adiantada. Escrevi uma história que se inspirava nas minhas recentes aventuras e mandei‑a ao Traddles, que a publicou em boas condições para mim. Não tardou que os ecos da minha reputação crescente me fossem trazidos por viajantes que eu encontrava por acaso. Depois de um pouco de descanso e de algumas mudanças, recomecei a tarefa imposta com o velho ardor, desenvolvendo uma nova ideia que se engendrara na minha imaginação. Quanto mais avançava na execução da obra, mais desenvolvia os meus recursos para fazer o melhor que pudesse. Tratava‑se do terceiro romance. Ia ainda muito no início quando, num intervalo de repouso, decidi regressar a Inglaterra.

Embora estudando e trabalhando com perseverança, habituara‑me a fazer bastante exercício. A saúde, algo comprometida no começo das viagens, estava ao presente normalizada. Tinha visto muita coisa, percorrera numerosos países e aumentara, suponho, a minha bagagem de conhecimentos.

Disse tudo quanto valia a pena memorar acerca deste tempo de ausência, mas só com uma excepção: se ainda não falei disto, não foi para dissimular alguns dos meus pensamentos, pois, como informei no princípio, faço o relato da minha vida. Quis, porém, dar um lugar à parte quanto aos mistérios do coração; deixei‑os para o fim, e a sua oportunidade chegou.

Em que momento fixei em Agnes as minhas esperanças? Não posso precisar qual o período em que a minha dor se achou ligada à ideia de que havia, durante uma mocidade caprichosa, desdenhado o tesouro do meu amor. Talvez fosse o primeiro pressentimento dessa verdade que me provocara outrora um vago mal‑estar, a sensação de vazio que jamais se preencheria. Mas esse pensamento invadiu‑me como uma nova censura, como um novo remorso, agora que me encontrava tão só e triste no mundo.

Se eu me achasse, naquele instante, perto de Agnes, fatalmente que trairia os meus sentimentos nalguma hora de fraqueza.

Foi este vago receio que de começo me reteve fora de Inglaterra. Não poderia deixar perder a mínima parcela da sua afeição fraternal; e, se me denunciasse, criaria um constrangimento até aí desconhecido entre nós.

Como esquecer que era responsável, por pensamentos e actos, do sentimento que ela me consagrava? Se Agnes me tivesse algum dia amado com outra espécie de amor, eu tê‑la‑ia repelido. Ainda criança, habituara‑me a considerá‑la muito acima de caprichos levianos, pois era outro o objecto de todo o meu ardor e ternura. Não teria feito o que então fiz; se Agnes se tornara para mim uma irmã, foi por vontade minha e do seu nobre coração.

No início da mudança que se começava a operar em mim, quando procurei compreender‑me e ser melhor, antevia ‑ se bem que após uma fase de provação mais ou menos longa‑ o instante em que poderia esperar corrigir o erro passado e ter a ventura de a desposar. Mas, com o tempo, empalideceu e dissipou‑se esta perspectiva frágil. Se Agnes nunca amara, mais sagrada se me tornava, depois de todas as confidências que lhe fizera, e o conhecimento que adquirira do meu coração inconstante, e o sacrifício a que se entregara para ser apenas uma irmã e uma amiga, ganhando deste modo, sobre si mesma, uma grande vitória. Se, pelo contrário, me tivesse amado algum dia, amar‑me‑ia ainda no presente?

Eu sempre sentira quanto era fraco perante a sua firmeza e força de ânimo, e agora sentia‑o mais do que nunca. Fosse o que fosse aquilo em que nos tornássemos se eu então me portasse de outro modo, actualmente seria coisa que não poderíamos ser. Deixara passar a ocasião e, por minha culpa, perdera Agnes.

Na verdade, sofri muito com estas lutas; elas me encheram de tristeza e remorsos, mas sempre pensei que o meu dever e a minha honra me ordenavam que afastasse, com vergonha, qualquer tentação de virar de novo as minhas esperanças para a querida amiga de quem me desviara de forma tão leviana quando essas esperanças estavam em flor; este sentimento residia na base de todas as minhas reflexões. Agora já não buscava dissimular o meu amor, mas persuadira‑me de que era tarde de mais e que as nossas relações deviam continuar a ser o que eram há já tanto tempo.

Muito havia eu pensado na ideia de Dora quanto ao que podia ter sucedido naqueles anos que deveríamos percorrer se o destino fosse outro. Sempre achei que os acontecimentos que não se realizam são muitas vezes tão reais nas suas consequências como esses que efectivamente se produzem. Esses anos de que Dora falara tornaram‑se realidades para meu castigo, e sê‑lo‑iam de qualquer maneira (apenas um pouco mais tarde, por certo) se nos houvéssemos separado logo aos primeiros dias da aventura insensata. Esforcei‑me por converter o que podia ter havido entre mim e Agnes num processo de desenvolver a minha abnegação, vontade e conhecimento íntimo, com todas as suas faltas e erros. Assim o pensamento do que poderia ter sido engendrou em mim a convicção de que daí em diante já era possível.

Estas perplexidades e hesitações foram as areias movediças em que o meu espírito vagueou desde o dia em que saí de casa até àquele em que a ela regressei, três anos mais tarde. Com efeito, três anos decorreram após a partida do navio dos emigrantes, quando uma tarde, à mesma hora crepuscular e no mesmo sítio contemplei da coberta do paquete que me devolvia ao lar as ondas róseas em que vira reflectir‑se o navio que os transportara.

Três anos. Longos no conjunto, porém curtos para viver e rever a pátria que me era tão cara, e também Agnes, mas Agnes não era minha, nem o seria nunca; podia ter sido, contudo era tarde de mais!

 

REGRESSO

Desembarquei em Londres por uma tarde de Outono fria e chuvosa. Vi mais lama e nevoeiro num minuto do que vira durante um ano. Tive de ir a pé desde a Alfândega ao Monumento antes que encontrasse um trem; e embora as fachadas dos prédios que se erguiam acima dos passeios invadidos pela enxurrada fossem para mim velhos conhecimentos, não me coibi de pensar que eram conhecimentos pouco asseados.

Tenho pensado várias vezes que a partida de um sítio familiar parece sempre ser o sinal de uma alteração. Quando notei, pela portinhola da carruagem, que uma antiga casa da Fish Street, respeitada desde muito tempo pelos pintores, carpinteiros e pedreiros, fora demolida na minha ausência e que alargavam uma rua vizinha, cuja estreiteza e insalubridade eram proverbiais, quase esperei achar a catedral de São Paulo imensamente envelhecida.

Preparava‑me assim a deparar mudanças na vida dos meus amigos. A tia Betsey estabelecera‑se novamente na sua vivenda de Dover, e Traddles começara a ter uma clientela sofrível, como advogado, logo após a minha saída. Vivia na Gray's Inn e dissera‑me numa das suas últimas cartas que tencionava unir‑se finalmente à mais adorada rapariga do mundo.

Esperavam‑me para o Natal, mas não pensavam que eu chegasse tão cedo. Deixava‑os de propósito laborar no erro para ter o gosto de os surpreender. Contudo fui suficientemente perverso para experimentar certa decepção verificando que ninguém me aguardava, obrigado assim a ir só e silencioso no meu trem, pelas ruas nevoentas..

Todavia consolaram‑me um pouco as lojas mais famosas, com os seus escaparates bem iluminados. Quando me apeei, diante do café da Gray's Inn, recuperara por completo o bom humor. Lembrei‑me então do tempo, tão diverso, em que me hospedara na Golden Cross e de todas as vicissitudes que se lhe seguiram. O caso, porém, era bastante natural.

‑ Sabe onde é que mora o doutor Traddles? ‑ perguntei ao criado, enquanto me aquecia ao fogão na sala do café.

‑ Holbom Court, número 2.

‑ Creio que o doutor Traddles se tem feito notar como advogado...

‑ Não sei de nada ‑ replicou‑me. ‑ Mas é provável.

E o sujeito, que era de meia‑idade e descamado, pediu melhor informação a um colega, homem robusto, de vasta papada, pessoa de maior autoridade. Este surgiu de uma espécie de banco de igreja, onde estava com uma caixa, a lista dos telefones, um anuário dos tribunais e outra papelada diversa.

‑ O doutor Traddles ‑ repetiu o criado anémico ‑ é no n.º 2, no pátio, não é verdade?

O outro despediu‑o com um gesto e voltou‑se gravemente para mim.

‑ Eu perguntava se o doutor Traddles, do n.o 2, no pátio, não começava a ser conhecido como advogado ‑ expliquei ao empregado robusto.

‑ Nunca ouvi falar ‑ replicou‑me com voz cheia e rouca. Tive pena do Traddles.

‑ Deve ser pessoa nova ‑ opinou ele, olhando‑me com severidade. ‑ Há quanto tempo mora esse senhor aqui?

‑ Há mais de três anos.

O interpelado, que ali vivia pelo menos há quarenta anos, não podia evidentemente prosseguir um assunto tão pouco interessante. Indagou o que é que eu desejava comer e eu compenetrei‑me de que, de facto, me encontrava outra vez na Inglaterra. Sentia‑me desconcertado quanto ao renome do pobre Traddles, pensando que não havia qualquer esperança de futuro para ele. Encomendei docilmente peixe e um bife e meditei defronte do lume sobre a obscuridade do meu amigo.

Percorri com o olhar o salão, cujo soalho tinha areia espalhada. O tampo das mesas, brilhante, reflectia a intensidade dos focos de luz; os reposteiros, que eram espessos, verdes, e pendiam de varões de cobre, dividiam o café em pequenos gabinetes íntimos; os dois fogões chamejavam; havia filas de garrafas cheias, e, contemplando tudo isso, pensei na dificuldade de tomar de assalto tanto a Inglaterra como o foro. Entretanto subia ao meu quarto para mudar de roupa, que estava molhada. As proporções daquele velho aposento forrado de papel, por cima da porta de entrada, a imensidade tranquila da cama de dossel, a gravidade impassível da cómoda, tudo parecia conjugar‑se para ameaçar implacavelmente as esperanças de Traddles e de todos os moços temerários. Tornei à sala, para jantar. E ainda aí, a lentidão prudente do serviço, o silêncio apaziguador dos lugares deixados vazios pelos hóspedes em férias tudo isto me falava eloquentemente da audácia do Traddles e das poucas probabilidades que ele tinha de vincar a sua situação antes de decorridos vinte anos.

Nunca eu vira nada semelhante depois da minha partida e senti quanto eram vãs as esperanças que depositara no meu amigo. O primeiro dos dois criados não se arriscou muito pelas imediações, consagrando‑se de preferência ao serviço de um senhor de idade, de polainas, diante de quem um copo de vinho do Porto, colheita especial, parecia ter ido instalar‑se de moto próprio, porque não dera nenhuma ordem nesse sentido. O outro criado explicou‑me que o senhor de idade era um notário aposentado, que habitava ali e tinha dinheiro a rodos.

Constava que ia deixar todos os seus bens à filha da lavadeira, e que possuía um faqueiro de prata primoroso, fechado numa secretária e muito embaciado pela falta de uso. Em sua casa nunca se vira à mesa mais de um talher. Nesta altura deixei de pensar em Traddles, convicto de que não restava a mínima esperança ao rapaz.

Não obstante, ansioso como estava de ver Traddles, ingeri à pressa o meu jantar e saí pela porta que dava para o pátio. Encontrei sem dificuldade o n.o 2. O letreiro ali afixado informou‑me que o causídico ocupava um apartamento no último andar. Subi para lá. A escada era velha e desconjuntada, mal alumiada em cada patamar por uma lamparina bruxuleante de vidro imundo.

Tropeçando nos degraus, julguei ao mesmo tempo ouvir francas gargalhadas, um riso que não era de advogado nem de empregados seus, mas antes de raparigas, duas ou três raparigas muito animadas. Todavia, ao deter‑me para escutar, tive a infelicidade de meter o pé num buraco e de trambolhar ruidosamente. Quando me levantei, fizera‑se silêncio. Acabei a minha ascensão um pouco às apalpadelas e devagar, e o coração pulsou‑me com força ao descobrir uma porta em que havia um bilhete‑de‑visita de Traddles. Bati. Houve idas e vindas precipitadas, mas nada mais. Bati segunda vez.

Um homenzinho de ar dorminhoco, meio paquete meio escrevente, um tanto esbaforido, apareceu à porta, considerou‑me com cara de desafio, e eu perguntei‑lhe:

‑ O senhor doutor Traddles está?

‑ Sim, senhor, mas ocupado.

‑ Gostaria de lhe falar.

Depois de me ter examinado uns segundos, o rapaz decidiu‑se a introduzir‑me nos aposentos de Traddles. Para este efeito, abriu mais a porta e deixou‑me entrar, primeiramente num vestíbulo ou coisa que o valha, depois numa saleta, onde me achei em presença do meu velho amigo (também esfalfado), diante de uma mesa e curvado sobre uma pilha de processos.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou Traddles, erguendo a vista. ‑ És tu, Copperfield? ‑ E precipitou‑se para os meus braços, em que o apertei calorosamente.

‑ Vai tudo bem, meu caro Traddles?

‑ Tudo, meu caro Copperfield. Só há notícias boas.

Quase chorámos ambos de alegria.

‑ Prezado amigo ‑ disse‑me ele, eriçando mais os cabelos, no seu entusiasmo, o que era afinal uma operação supérflua. ‑ Meu velho camarada, que enfim reencontro! Que prazer em tornar a ver‑te! Estás bastante queimado. Palavra de honra, nunca me senti tão feliz, caríssimo Copperfield, nunca!

Eu não conseguia exprimir a minha comoção. Nem sequer pude falar.

‑ Meu bom amigo ‑ prosseguiu Traddles ‑ eis‑te célebre, famoso! Meu Deus, mas quando é que chegaste? E donde vens? Que é que fizeste?

Sem esperar resposta a qualquer destas perguntas, Traddles, que me instalara numa poltrona ao canto do fogão, atiçava o fogo vigorosamente com uma das mãos e, com a outra, puxava a minha gravata, na ideia extravagante de que fosse um sobretudo. Sem largar o atiçador, cingiu‑me de novo nos braços e eu apertei‑o nos meus; e, rindo e chorando, sentámo‑nos de cada lado do fogão ainda de mão dada.

‑ Imagine‑se! Estavas tão próximo do regresso e não assististe à cerimónia!

‑ Que cerimónia, Traddles?

‑ Não recebeste a minha última carta? ‑ retorquiu abrindo muito os olhos.

‑ Pois não, se era a que falava da cerimónia.

Traddles enfiou os dedos pelos cabelos, que se eriçaram de vez, e, pondo‑me depois as mãos nos joelhos, declarou:

‑ Estou casado!

‑ Casado?! ‑ bradei jubilosamente.

‑ Sim, senhor. Que Deus me abençoe. Casado pelo reverendo Horace... com a Sophy... no Devonshire. Olha, ela está atrás do reposteiro. Aí a tens!

Para meu máximo assombro, saiu do seu esconderijo, nesse momento, risonha e corada, a mais amorosa rapariga do mundo. E (como não pude evitar de o dizer nesse instante), julgo que nunca vira nenhuma recém‑casada tão contente, tão amável, tão radiante! Beijei‑a como velho conhecido e, aos dois, enderecei as minhas felicitações sinceras.

‑ Que bela reunião ‑ comentou Traddles. ‑ E como tu estás bronzeado, Copperfield! Ah, sou tão feliz...

‑ Eu também ‑ participei.

‑ E eu! ‑ acudiu Sophy, sempre risonha e corada.

‑ Somos todos tão felizes quanto possível ‑ rematou Traddles. ‑ Até as irmãs estão satisfeitas. É verdade, já me tinha esquecido delas!

‑ Esquecido?

‑ Sim, as irmãs de Sophy, as minhas cunhadas! Estão cá. Vieram conhecer Londres. A verdade é que... A propósito, foste tu que tropeçaste na escada, Copperfield?

‑ Fui eu ‑ confessei, rindo.

‑ Pois nessa ocasião eu brincava doidamente com elas. Mais precisamente, brincávamos aos escondarelos. Mas como isso não parecia sério, se aparecesse algum dos meus constituintes, elas deram às de vila‑diogo. Estão presentemente... a escutar à porta ‑ concluiu Traddles, lançando uma olhadela à porta do outro quarto.

‑ Lastimo ter sido causa de se interromper o jogo... ‑ observei.

‑ Gostava ‑ volveu Traddles ‑ que as visses a fugir quando bateste, e depois voltar para reunir as travessas que deixaram cair da cabeça na corrida. Minha querida, queres ir buscá‑las?

Sophy obedeceu e nós ouvimos a risada com que receberam a irmã quando esta entrou no quarto contíguo.

‑ Verdadeiramente musical, este riso ‑ notou Traddles. ‑ Tão agradável de ouvir! Só isto basta para alegrar este pardieiro! E então para mim, que tenho sido um solteirão, a coisa soa divinamente. Uma delícia. Coitadas das pequenas! Sofreram muito ao perder Sophy, que continua a ser, afianço‑te, a rapariga mais amorosa do mundo. Vê‑las assim alegres torna‑me tão feliz! A companhia da gente nova não tem que se lhe compare, Copperfield. Não é douta, nem jurídica...

Percebendo que ele hesitava levemente, compreendendo que, na sua bondade, temia haver‑me melindrado com as suas palavras, apressei‑me a aprová‑lo com ardor, o que visivelmente o aliviou e lhe deu grande prazer.

‑ É que também ‑ continuou ele ‑ a nossa sociedade doméstica nada tem de jurídico. Nem sequer a presença de Sophy é regulamentar neste casarão todo dedicado à vida forense. Mas não temos outro domicílio. Embarcámos numa casca‑de‑noz e estamos prontos a viver com privações. Sophy sabe sair de dificuldades. Queres saber, naturalmente, onde arrumamos estas pequenas. Pois nem eu próprio faço ideia!

‑ E são muitas?

‑ Há a mais velha, a Beldade ‑ explicou‑me Traddles em tom confidencial. ‑ Chama‑se Caroline. Sarah também está cá, aquela que eu te disse que sofria da espinha. Mas vai melhor. E depois as duas mais novas, de cuja educação Sophy se encarregou. Finalmente, Louisa.

‑ Realmente! ‑ exclamei.

‑ Pois é verdade. E o apartamento compõe‑se apenas de três divisões. No entanto, Sophy acomoda‑as o melhor possível. Três ali ‑ e Traddles indicou uma das portas ‑ e duas acolá.

Não pude coibir‑me de circunvagar a vista como que a descobrir o que ficava para o casal Traddles. O meu amigo compreendeu e disse:

‑ Estamos resolvidos a viver com dureza, como já te informei, e na semana passada improvisámos uma cama no chão, nesta saleta. Mas há ainda uma água‑furtada, bastante aproveitável, que Sophy forrou, com grande espanto meu. É aí que presentemente dormimos. É um lindo acampamento de ciganos. E que bela vista se desfruta!

‑ Eis‑te, pois, casado e bem casado, meu caro Traddles. Não imaginas quanto me regozijo.

‑ Obrigado, Copperfield ‑ respondeu, apertando de novo a minha mão. ‑ Sou tão feliz quanto é possível ser. Aí tens velhos conhecimentos: o invólucro para vasos de flores, com o seu suporte... e a mesa de tampo de mármore. Todos os outros móveis são simples e práticos, como vês. Quanto a baixela, nem possuímos uma colher de chá. É claro que tomamos chá, mas servimo‑nos de colheres de estanho.

‑ Quando o dinheiro aparecer será mais apreciado.

‑ É o que nós dizemos. Olha, caro Copperfield ‑ ajuntou confidencialmente ‑ a minha defesa de Jipes no processo contra Wigzell deu‑me certa nomeada. Fui depois a Devonshire e tive uma conversa séria com o reverendo Horace. Insisti no facto de que Sophy, que, afianço‑te, é a rapariga mais amorosa do mundo...

‑ Não duvido!

‑ E fazes bem. Mas creio que me afasto do assunto. Estava a falar do reverendo Horace...

‑ Dizias‑me teres insistido no facto de...

‑ Exactamente. No facto de Sophy estar minha noiva há tanto tempo e ela, com licença dos pais, estar disposta a... aceitar o chá mexido com colheres de estanho. Propus então ao reverendo Horace... que é excelente pastor, Copperfield, acredita, e até já devia ser bispo, ou pelo menos ganhar bastante para viver sem privações... Pois eu disse‑lhe que podíamos casar mesmo assim, logo que ultrapassasse as duzentas e cinquenta libras por ano... Que daí a meses conseguiria mobilar o nosso apartamento com esta simplicidade que vês... Tomei a liberdade de acrescentar que tínhamos esperado tempo suficiente, e que a necessidade da Sophy na casa paterna não devia prolongar‑se ao ponto de os pais se oporem ao matrimónio... Não te parece?

‑ Naturalmente.

‑ Ainda bem que és da minha opinião, Copperfield, pois, sem acusar de nenhum modo o reverendo Horace, acho que os pais, irmãos e quejandos são deveras egoístas em certos casos. Enfim, declarei que o meu maior desejo era ser útil à família, e que, se eu prosperasse e alguma coisa lhe acontecesse... refiro‑me ao reverendo Horace...

‑ Percebo.

‑ A ele ou à senhora Crewler... eu não teria maior prazer do que servir de pai às raparigas. O sacerdote respondeu‑me de forma lisongeira para mim e comprometeu‑se a conseguir o acordo da senhora Crewler. Esta, porém, fê‑lo passar um mau bocado. A coisa atacou‑lhe as pernas, subiu‑lhe ao coração e atingiu‑lhe a cabeça.

‑ O quê? ‑ perguntei.

‑ O desgosto ‑ replicou gravemente Traddles. ‑ Como já te disse, é uma mulher superior, mas perdeu o uso dos membros locomotores. Desta vez, sentiu também no coração e na cabeça.

Em suma, todo o organismo foi invadido de maneira inquietante. Salvaram‑na, entretanto, à custa de cuidados afectuosos e constantes. E nós casámo‑nos há perto de seis semanas. Não fazes ideia de como eu me sentia culpado! Via toda a família chorar e desmaiar para cada lado. A senhora Crewler não quis ver‑me antes da nossa partida (não me perdoava tê‑la privado da filha), mas é boa pessoa e conformou‑se. Até me escreveu uma carta catita, recebi‑a esta manhã...

‑ Em resumo, caro Traddles, tens a felicidade que há muito merecias.

‑ Vê‑se que és meu amigo, Copperfield. Na verdade, estou numa situação invejável. Trabalho a valer e estudo bem os meus processos. Levanto‑me às cinco horas todas as manhãs, e isso nada me custa. Escondo as cunhadas durante o dia e, à noite, entretenho‑me com elas. Garanto‑te que é com pena que as verei partir na terça‑feira, que é a véspera do recomeço das aulas. Mas aqui as tens em carne e osso... Caroline, Sarah, Louisa, Margaret e Lucy!

Dir‑se‑ia um verdadeiro ramo de rosas, tão frescas e sãs eram todas, todas bonitas, em especial a mais velha. Mas no rosto puro de Sophy notava‑se algo de amorável, alegre e sério ao mesmo tempo. Em meu parecer, Traddles havia escolhido bem. Sentámo‑nos todos de roda do fogão, enquanto o moço tosco, que perdera o fôlego (agora bem o via) a colocar os autos em cima da mesa, se encarregava de os tirar outra vez, substituindo‑os por xícaras de chá. Feito isto, retirou‑se por aquela noite, fechando com estrondo a porta do patamar. A mulher de Traddles, com os seus olhos de dona de casa recente a brilharem de satisfação, preparou o chá e sentou‑se tranquilamente diante do fogão para aí fazer as torradas.

Ela tinha visto Agnes ‑ foi‑me dizendo ‑ porque Tom a levara ao Kent em viagem de núpcias; e vira igualmente a minha tia. Ambas iam bem e só tinham falado de mim. Tom, pensava Sophy, não me esquecera um só instante durante a minha ausência. Reportava‑se ao marido em tudo quanto contava. Tom era evidentemente o ídolo da sua vida, nada o faria cair do seu pedestal. Acontecesse o que acontecesse, tinha nele uma fé cega.

Agradou‑me muito a deferência que os dois testemunharam à Beldade. Não seria decerto justo, mas era delicioso e deveras significativo. Se faziam falta a Traddles as colheres de prata isso sucedia quando o rapaz oferecia chá à Beldade; se a meiga Sophy fosse capaz de experimentar algum sentimento de orgulho, teria sido ao pensar que era irmã da Beldade. Notei nesta leves sinais de uma natureza caprichosa e em excesso adulada, mas Traddles e a mulher consideravam‑nos sem dúvida mais um ornamento natural de Caroline. Fosse a Beldade a abelha‑mestra e eles as obreiras, e essa convicção não estaria menos firmada.

Todavia extasiava‑me o esquecimento em que ambos se conservavam de si mesmos. A vaidade que essas raparigas lhes inspiravam, forçando‑os a curvarem‑se aos seus caprichos, não seria a menor prova do seu próprio valor. Pelo menos doze vezes em cada hora daquele serão, Traddles foi tratado por «querido» e solicitado para trazer qualquer coisa, ou levar, ou procurar, e isto da parte de todas as irmãs, sucessivamente. Também não podia dispensar Sophy. O carrapito de uma estava a cair? Logo pedia a Sophy que a tornasse a pentear. Outra esquecera‑se de uma melodia, e apenas Sophy seria capaz de a cantarolar sem desafinação. Uma terceira precisava de se recordar do nome de certa aldeia do Devonshire: Sophy era a única a conhecê‑lo. Alguém em casa tinha de escrever uma carta, e só contava com Sophy para o ajudar, antes do primeiro almoço do dia seguinte. Ou então era qualquer malha que havia caído no trabalho de uma das irmãs: Sophy estava pronta a remediar o percalço. Elas eram donas e senhoras naquele lar, e Sophy (como Tom) vivia às suas ordens. Pensei de quantas criaturas podia Sophy ter‑se ocupado já na sua vida. Mas a sua especialidade consistia em saber todas as canções que jamais foram entoadas em inglês, para embalar meninos, e ela cantava‑as por encomenda, umas atrás das outras, com a sua voz clara. Eu sentia‑me verdadeiramente fascinado. E, apesar destas exigências, as manas eram cheias de ternura e respeito por Sophy e o marido. Quando me despedi, Traddles saiu para me acompanhar até ao café: jamais vi cabelos mais eriçados nem cabeça de homem receber tamanha chuva de beijos.

De um modo geral, foi uma cena que me ficou na memória por muito tempo, depois de me haver despedido de Traddles e regressado à estalagem. Recordava‑a sempre com prazer, mais do que se tivesse visto um milhar de rosas desabrochadas nesse último andar do velho prédio sem graça da Gray's Inn. A presença dessas raparigas do Devonshire no meio da aridez dos autos e de outra papelada forense, à hora familiar do chá, das torradas e das canções infantis, nessa atmosfera sombria de ombreiras poeirentas e de areia de secar tinta, de processos e seus apensos, de leis e regulamentos, de recibos, custas e memoriais, parecia‑me coisa tão deliciosamente fantástica como um sonho em que eu visse o harém do sultão transportado para uma sala de audiências. Achei que a minha descrença no êxito de Traddles já não tinha razão de ser, e comecei a acreditar que ele seguiria a sua carreira apesar do pessimismo de todos os criados de café.

Sentado no estabelecimento, ao canto do fogão, para mais à vontade evocar a vida do meu amigo, contemplei os carvões incandescentes, cujas mudanças de forma e cor despertaram em mim a recordação das vicissitudes que tinham ocorrido na minha existência. Havia três anos que deixara a Inglaterra. Podia agora virar‑me para o passado, com tristeza mas sem amargura, e enfrentar o porvir com coragem. Não se tratava de possuir um lar, no verdadeiro sentido do termo. Aquela a quem me seria possível inspirar um amor mais compassivo transformara‑se, por minha culpa, numa irmã. Casar‑se‑ia, outro teria direito à sua ternura, e ela nunca saberia o sentimento que crescera tão forte no meu peito. Era justo que eu expiasse uma paixão inconsiderada. Colhia o que semeara.

Estava prestes a inquirir de mim mesmo: «O coração aceitará isso? Suportarei com firmeza? Guardarei no seu lar o lugar que ela tão calmamente guardou no meu?», quando os olhos se me detiveram de repente num rosto que eu julguei, de começo, saído das chamas, tão misturado andava com as minhas saudades.

O doutor Chillip, simpático velhote que me fora útil no primeiro capítulo desta história, achava‑se na penumbra do café, entretido a ler o jornal. Mais idoso, continuava, porém, amável e pacífico, e de certo quase igual ao que fora no dia em que aguardou a minha vinda ao mundo, na sala da nossa casa.

Chillip deixara Blunderstone havia cerca de seis a sete anos, e eu não o tornara a ver desde então. Lia muito sossegado a gazeta, com a cabeça um pouco à banda e um copo de xerez aquecido ao alcance da mão. Era tão conciliador nas suas maneiras que parecia pedir desculpa ao jornal pela liberdade que tomava de o ler.

Aproximei‑me e disse‑lhe:

‑ Senhor doutor Chillip, como vai?

Mostrou‑se perturbado por ver um desconhecido interpelá‑lo e respondeu com a costumada lentidão:

‑ Muito bem, obrigado. É muito amável. E o senhor?

‑ Não me conhece? ‑ perguntei.

Abanou a cabeça, examinando‑me, sorridente, e replicou:

‑ A sua cara não me é estranha. Mas sinto‑me incapaz de ligar o nome à pessoa.

‑ Contudo, soube o meu nome antes de eu próprio o saber...

‑ Palavra? Teria eu a honra de assistir ao...

‑ Com certeza.

‑ Meu Deus! Mas depois disso mudou muito...

‑ É provável.

‑ Em todo o caso, não leve a mal se eu indagar, enfim, como se chama.

Quando me nomeei, a sua comoção não foi postiça. Apertou a minha mão com fervor, o que representava grande esforço da sua parte, pois tinha uns dedos moles e manifestava contrariedade se lhe agarravam com força a dextra. Desta vez, aliás, apressou‑se a escondê‑la na algibeira, logo que a pôde desembaraçar, e pareceu aliviado por a ter em lugar seguro.

‑ Com que então é o senhor Copperfield? ‑ disse inclinando a cabeça para me observar. ‑ É claro que acabaria por o reconhecer, depois de o examinar atentamente. Parece‑se extraordinariamente com o seu defunto pai.

‑ Não tive a felicidade de o conhecer ‑ repliquei.

‑ Sim, é verdade. Foi uma pena. Pois não ignoramos a sua reputação, senhor Copperf ield ‑ acrescentou meneando outra vez a cabeça, devagar. ‑ Deve ter fatigado muito o cérebro. É uma ocupação demasiado absorvente.

‑ E agora onde vive, senhor doutor? ‑ perguntei, sentando‑me a seu lado.

‑ Fixei‑me a algumas milhas de Bury St. Edmunds. Minha mulher herdou do pai uma pequena propriedade nas imediações, consegui certa clientela e posso dizer que prospero. A minha filha tem crescido muito. O tempo passa...

Ao fazer esta reflexão, o médico levou aos lábios, maquinalmente, o copo que já estava vazio. Propus‑lhe tomar outro na minha companhia.

‑ Embora não esteja acostumado a beber tanto, o que não quero é privar‑me da sua conversa ‑ retorquiu ele com a mesma lentidão. ‑ Ainda me parece que foi ontem que o tratei do sarampo. Curou‑se lindamente.

Agradeci‑lhe as palavras e pedi ao criado que trouxesse mais xerez aquecido.

‑ Isto é uma loucura ‑ continuou ‑ mas não posso recusar em semelhante ocasião. Não tem filhos, senhor Copperfield?

Fiz um sinal de negação.

‑ Soube há pouco tempo que lhe morrera uma pessoa de família. Disse‑mo a irmã do seu padrasto, que é uma senhora muito decidida.

‑ A quem o diz! Mas onde a encontrou, senhor doutor?

‑ Não sabe ‑ respondeu Chillip com um sorriso brando ‑ que o seu padrasto é outra vez meu vizinho?

‑ Não sabia.

‑ Pois é como lhe digo. Casou com uma rapariga da região, muito endinheirada... E todo esse trabalho intelectual não o fatiga, senhor Copperf ield?

Tinha o ar de um pintarroxo extático de admiração diante de mim. Fingi não ter percebido a última pergunta e voltei à vaca‑fria.

‑ Já sabia que o Murdstone tornara a casar. É o médico da família?

‑ Ao certo, não. Chamam‑me só de tempos a tempos. Ele e a irmã só fazem o que querem.

Respondi com um olhar tão expressivo que o doutor, com a ajuda do vinho, se atreveu a oscilar a cabeça três vezes afirmativamente e a exclamar em tom melancólico:

‑ Não esquecemos o passado, senhor Copperf ield!

‑ Com que então os Murdstones não mudaram, conservam‑se na mesma?

‑ Os médicos só devem preocupar‑se com a sua profissão. Todavia aqueles dois irmãos são tão pouco indulgentes no que respeita à vida alheia, que...

Abanou outra vez a cabeça, sorveu um gole de vinho e declarou compadecido:

‑ Era uma pessoa encantadora, antes de casar.

‑ A segunda senhora Murdstone?

‑ É verdade. Depois perdeu a alegria, tornou‑se quase neurasténica, segundo afirma a minha mulher. As mulheres são muito observadoras ‑ ajuntou timidamente.

‑ Há‑de ter sido submetida ao jugo do marido e da cunhada. Lamento‑a muito.

‑ No começo produziram‑se disputas violentas. Agora não passa da sombra do que foi, coitada. Não quero ser indiscreto, mas sempre lhe digo que a presença da solteirona em sua casa a tornou quase idiota.

Declarei que acreditava plenamente.

‑ E não hesito em acrescentar (isto aqui entre nós) ‑ prosseguiu Chillip, mais animado com nova absorção de xerez ‑ que a mãe dela morreu de desgosto e que a própria se imbecilizou à força de tirania, desgostos e tormentos. Era, como disse, uma senhora alegre antes do casamento, mas a austeridade e o rigor daquela gente aniquilaram‑na de todo. São mais carcereiros do que marido e cunhada. Assim mo dizia a minha mulher, ainda na outra semana. E eu afianço‑lhe que as mulheres são boas observadoras, senhor Copperfield. A minha, em particular, é tremenda nesse aspecto.

‑ Murdstone professa ainda... esta palavra é deslocada... estranhas opiniões religiosas?

‑ Antecipa‑se, senhor Copperfield ‑ disse o médico (o estimulante desusado que ele se permitia nessa altura avermelhava‑lhe as pálpebras)‑a uma das reflexões mais notáveis da minha mulher. Esta ‑ explicou ele no seu tom mais lento e plácido ‑ assombrou‑me literalmente ao contar que o senhor Murdstone entronizou o seu próprio retrato e diz que é a sua divindade! Fiquei estarrecido quando ouvi tal coisa. As mulheres são realmente grandes observadoras...

‑ É a intuição ‑ sugeri, com grande aprazimento do meu interlocutor.

‑ Ainda bem que vejo confirmado o meu ponto de vista, é raro eu arriscar‑me a dar um parecer que não seja de natureza clínica. O senhor Murdstone faz de vez em quando alocuções em público... e diz‑se... diz a minha mulher... que quanto mais tirânico se torna mais feroz é a sua doutrina.

‑ Creio que a senhora Chillip tem absoluta razão.

‑ Ela chega a supor ‑ continuou o mais timorato dos homens perante o referido estímulo ‑ que para tais homens a religião é só uma forma de expressar a sua maldade e arrogância. E quer saber? ‑ acrescentou Chillip, baixando levemente a cabeça ‑ eu sou obrigado a alegar que não encontro no Novo Testamento nada que justifique o ensinamento dos irmãos Murdstones.

‑ Eu também nada encontrei nesse sentido.

‑ O caso é que os detestam, e como eles votam deliberadamente à perdição todos os que não são concordantes, é incrível a quantidade de almas perdidas que temos nestas paragens. Mas, como diz minha mulher, ficam castigados porque se acham constrangidos a alimentar‑se das suas próprias entranhas, que nada devem ter de apetitosas. Agora, senhor Copperfield, voltando ao seu labor intelectual, se mo permite: está certo de que não fatiga em demasia o cérebro?

Não tive dificuldade ‑ atendendo à influência das libações no próprio cérebro de Chillip ‑ em desviar a conversa para os seus assuntos pessoais e acerca disto ele discorreu com loquacidade durante meia hora, contando‑me, entre outras coisas, que estava nessa noite na Gray's Inn para testemunhar, perante uma comissão adrede nomeada, a alienação mental de um indivíduo que dera provas de loucura após ter bebido em excesso.

‑ Asseguro‑lhe, senhor Copperfield, que receio muito estas ocasiões. Detesto ser forçado a isto ou aquilo. Bem sabe como levei certo tempo a recompor‑me do procedimento daquela pessoa tão autoritária, no dia do seu nascimento, meu amigo.

Disse‑lhe que devia encontrar‑me com minha tia ‑ a tal pessoa autoritária ‑ no dia seguinte de manhã, e que ela era mulher excelente, um coração de ouro, como concluiria se a conhecesse melhor. A simples ideia de tal eventualidade pareceu aterrá‑lo. Retorquiu‑me com um sorriso amarelo: «Será possível, senhor Copperfield?» e logo pediu uma vela e se retirou para o seu quarto, como para estar em segurança. Não titubeava, mas creio bem que o coração devia bater mais duas ou três pulsações por minuto ‑ como naquela noite famosa em que a senhora Trotwood o atingira com a touca.

Fatigadíssimo, fui também deitar‑me. Era meia‑noite. Passei todo o dia seguinte na diligência de Dover e fiz por fim irrupção, são e salvo, na sala da tia Betsey, onde a topei preparada para tomar chá (com óculos encavalitados no nariz) e onde ela, o senhor Dick e a velha Peggotty (agora ali governanta) me receberam de braços abertos, chorando de alegria. Quando principiámos a falar calmamente, a tia riu bastante do meu encontro com o doutor Chillip e da terrível recordação que ele conservava a seu respeito. Betsey e Peggotty tinham muito que dizer do segundo marido da minha pobre mãe e da irmã dele, cujo apelido de família [6] já lhes causava tanto horror.

 

AGNES

Quando ficámos sós, eu e minha tia, continuámos a conversar pela noite adiante. Recebêramos cartas dos emigrantes e todas respiravam felicidade e optimismo. Micawber havia realmente reembolsado a credora com pequenas quantias, por conta das «obrigações pecuniárias» que tinham sido tratadas de «homem para homem». Janet voltara ao serviço da senhora Trotwood no seu regresso a Dover, e acabara por renunciar ao seu projecto de celibato, desposando um taberneiro próspero. A tia Betsey ratificara aquela deliberação, auxiliando em tudo a noiva e dignando‑se assistir à cerimónia nupcial. Como de costume, o senhor Dick veio a talho de foice e a tia informou‑me que ele passava o tempo a copiar tudo o que lhe caía debaixo da vista: com esse simulacro de ocupação mantinha o rei Carlos I a uma distância respeitável. Betsey confessou‑me que uma das maiores alegrias da sua vida era vê‑lo livre e feliz, pois bem poderia estar a essas horas internado num manicómio. Concluiu com a declaração de que só ela conhecia o valor do senhor Dick.

‑ E agora, Trot, quando pensas voltar a Cantuária? ‑ perguntou a tia, dando‑me uma palmadinha na mão, quando nos instalámos, como noutro tempo, ao canto do lume.

‑ Tenciono alugar um cavalo para lá ir, amanhã de manhã ‑ respondi. ‑ A não ser que a tia queira ir também.

‑ Não ‑ replicou com a brusquidão costumada. ‑ Não penso deslocar‑me.

‑ Então irei a cavalo ‑ declarei, acrescentando que podia ter ido directamente, se não fosse ela, que me fizera deter em Dover. Betsey ficou satisfeita com a resposta, mas observou:

‑ Cala‑te, Trot. Eu podia esperar.

E outra vez me deu uma pancadinha na mão, enquanto eu contemplava melancolicamente o lume.

Melancolicamente, sim, porque a ideia de reencontrar Agnes ressuscitava‑me os remorsos que tanto me haviam perseguido ‑ embora ao presente mais atenuados pela ideia de que eles me ensinariam o que eu não soubera compreender.

Recaímos no silêncio por alguns minutos. Quando alcei a vista, percebi que Betsey me espiava atentamente. Talvez houvesse adivinhado o curso dos meus pensamentos, pois eram na verdade fáceis de seguir.

‑ Encontrarás o pai dela muito mais encanecido ‑ disse por fim a tia ‑ porém melhor noutros aspectos. E não o verás agora medir todas as paixões por uma única bitola, as paixões, as alegrias, as dores humanas. Crê‑me que tudo isto encolhe muito antes de ser medido por aquela forma.

‑ Certamente, minha tia.

‑ Achá‑la‑ás, a ela, tão bondosa, bonita, séria e desinteressada como sempre foi. Não te cansarás de a admirar, Trot. Não tenho palavras suficientes com que a louve.

Ah, como eu andara extraviado!, pensei.

‑ Agnes ‑ inquiri de súbito ‑ terá algum...?

‑ Algum quê?

‑ Pretendente!

‑ Uma data deles! ‑ exclamou Betsey com ar ofendido. ‑ Podia ter‑se casado vinte vezes, desde que tu partiste.

‑ Acredito ‑ redargui. ‑ Mas haverá um pretendente que seja digno da sua mão? Só assim é que ela poderia casar.

A tia meditou um bocado, com o queixo apoiado à mão; depois, erguendo para mim os olhos, devagar, participou:

‑ Desconfio que tem uma afeição...

‑ Valiosa?

‑ Trot, nada mais sei ‑ respondeu gravemente. ‑ Nem tenho o direito de falar disto. Agnes nunca me fez confidências, é só uma suspeita minha.

Olhava‑me com tanta ansiedade e atenção (até a vi tremer) que tive, mais do que nunca, a impressão de que me adivinhava os pensamentos. Por isso apelei para todas as resoluções que tomara no decurso dos últimos dias e noites de luta interior e comecei:

‑ Se é assim, Agnes mo dirá quando for altura. Uma irmã a quem confessei tantas coisas não hesitará em confiar por seu turno em mim.

E tão lentamente como poisara em mim o seu olhar, minha tia o desviou; pensativa, diante da vista colocou a mão, pôs‑me a outra sobre o ombro, e nós ficámos ambos a reviver o passado, sem dizer palavra, até ao momento em que nos separámos por aquela noite.

Parti cedo, a cavalo, para os lugares em que haviam decorrido os meus anos de colegial. Não posso dizer que fosse inteiramente seguro de obter uma vitória, mas a perspectiva de tornar a ver Agnes tornava‑me na realidade feliz.

Fiz depressa aquele trajecto familiar e cheguei a essas ruas tranquilas em que cada pavimento me falava da minha infância. Dirigi‑me a pé para a velha residência, mas não tive coragem de entrar logo, de forma que lá voltei um pouco mais tarde. De passagem, olhei pela janelinha baixa da torre, onde primeiramente Uriah e depois Micawber se haviam instalado. Vi uma saleta: a secretária desaparecera. Foi, todavia, a única mudança que notei. A pacífica mansão apresentava‑se asseada e perfeita como na primeira vez que eu lá entrara. Pedi à criada ‑ nova no serviço e que me veio abrir a porta ‑ dissesse à senhora Wickfield que um senhor desejava falar‑lhe da parte de certo amigo actualmente no estrangeiro, e ela, aconselhando‑me a tomar cuidado nos degraus (que eu tão bem conhecia!), convidou‑me a subir pela escada vetusta e solene até à sala de visitas, onde nada se tinha alterado. Os livros que eu e Agnes havíamos lido juntos estavam nas prateleiras, e a carteira em que passara tantas noites a estudar as lições conservava‑se sempre no mesmo ângulo do quarto. As modificações que Uriah introduzira já tinham sido remediadas. As coisas voltaram ao que eram nos bons tempos de outrora.

Aproximei‑me de uma janela para observar as casas do outro lado da rua, essas que contemplara tanta vez em tardes chuvosas, ao mesmo tempo que formulava toda a espécie de suposições acerca das pessoas que apareciam às janelas, seguindo‑as com o olhar quando vinham para o exterior: mulheres que faziam estalar os chapins, debaixo da chuva que caía em linhas oblíquas ou desabava na rua através das goteiras, inundando‑a.

E o que eu sentia então ao ver os vagabundos que cruzavam a cidade, trôpegos, por essas tardes cinzentas, com um saco pendurado na extremidade do bordão, esse mesmo sentimento experimentei‑o de novo, com toda a intensidade, acompanhado ainda do odor da terra húmida e do sopro de todos os ventos que me fustigaram durante a dolorosa viagem de algum dia.

Ao ruído da porta que se abria na parede forrada de papel, estremeci de repente e voltei‑me. O belo rosto sereno encontrou‑se com o meu a meio caminho. Agnes parou e levou a mão ao peito. Eu cingi‑a nos braços.

‑ Agnes, minha querida! Fiz‑lhe uma surpresa.

‑ O que me dá imenso prazer, Trot!

‑ Querida Agnes, que felicidade tornar a vê‑la!

Apertava‑a ao coração e assim ficámos uns instantes, silenciosos. Depois sentámo‑nos lado a lado, e ela voltou para mim o rosto angélico, com aquele olhar de boas‑vindas por que eu ansiara, dia e noite, durante anos.

Tão fiel, tão bela, tão bondosa! Devia‑lhe tanto reconhecimento! Amava‑a de tal forma que nem podia exprimir o que sentia. Procurei agradecer‑lhe, contar‑lhe (como fizera nas minhas cartas) o que era a sua influência sobre mim. Mas foi em vão. O meu amor e a minha alegria eram mudos.

Com a sua serenidade habitual, acalmou a minha agitação, desviou‑me os pensamentos para o momento em que nos separámos, falou‑me de Emily (que fora visitar clandestinamente, várias vezes) e referiu‑se também com doçura à minha defunta Dora. Com o instinto infalível do seu nobre coração, pôs a vibrar as cordas da minha saudade, e tão harmoniosamente que nenhuma rangeu. Pude escutar‑lhe a música triste e longínqua sem que nada do que ela evocava me ferisse. Como não poderia deixar de

ser assim, se, fundido em tudo isso, se achava a sua adorada alma, ela, o anjo da minha vida!

‑ E você, Agnes? ‑ disse‑lhe enfim. ‑ Fale‑me de si. Ainda não me contou quase nada do que fez durante todos estes meses!

‑ Que lhe haveria de contar? ‑ respondeu‑me com o seu sorriso radioso. ‑ O meu pai vai bem. Estamos aqui sossegados, com a nossa ansiedade tranquilizada, o nosso lar reencontrado. Pronto, meu caro Trot, já sabe tudo.

‑ Tudo, Agnes? ‑ perguntei.

Ela fitou‑me e, no seu olhar, divisei um ar de espanto.

‑ Não há mais nada, minha irmã?

As faces, que lhe tinham empalidecido, retomaram a cor, e em seguida voltaram a empalidecer. De novo sorriu, melancólica e resignada, ao que supus, e então abanou a cabeça.

Tencionava encaminhá‑la para o assunto a que a tia Betsey aludira. Por mais penoso que me fosse ouvir a confidência, eu devia disciplinar o coração e cumprir as minhas obrigações para com ela. Vi‑a, porém, constrangida, e não insisti.

‑ Tem muito trabalho, Agnes?

‑ Com as lições? ‑ indagou, recuperando a serenidade. ‑ Sim, senhora. É trabalho absorvente, não é?

‑ Decerto, mas tão agradável que nem é justo classificar de trabalho.

‑ Nada do que é bom se nos torna difícil ‑ sentenciei. Agnes ficou pálida, depois corou, e, quando baixou a cabeça,

tornei a ver‑lhe o sorriso triste.

‑ Demora‑se para falar com o papá, não é verdade? ‑ sugeriu em tom jovial. ‑ Passa o dia connosco? Talvez queira dormir na sua antiga cama... Chamamos‑lhe sempre o seu quarto, não sabia?

Expliquei‑lhe que não podia ficar, porque prometera à tia voltar nessa mesma noite. Mas o dia passava‑o com eles, e com muito prazer.

‑ Vou estar uns momentos prisioneira ‑ disse ela. ‑ Entretanto, aqui tem os seus velhos livros, Trot, e as músicas também.

‑ E até as velhas flores ‑ observei, circunvagando a vista pela sala. ‑ Pelo menos iguais às de outrora.

‑ Tive muito gosto em conservar tudo assim... como no tempo da sua infância. Éramos então felicíssimos!

‑ Se éramos!

‑ E a mais pequena coisa que me lembrasse o meu irmão ‑ acrescentou com um olhar cintilante ‑ dava‑me tanta alegria! Mesmo isto ‑ e mostrou‑me o chaveiro, que sempre usara ‑ parecia tilintar com o som de outro tempo.

Tornou a sorrir e saiu pela mesma porta por onde entrara. Eu devia guardar com desvelos egoístas essa afeição fraternal. Tamanho tesouro era tudo quanto me restava. Se um dia abalasse os alicerces sagrados da confiança e do hábito, sobre que esse tesouro repousava, perdê‑lo‑ia para sempre.

Pus esta consideração à frente de outras. Quanto mais amasse Agnes, mais devia lembrar‑me desse perigo.

Deambulei pelas ruas da cidade; ao ver mais uma vez o meu antigo adversário, o rapaz do talho ‑ agora guarda‑florestal, como depreendi da insígnia que ele pendurava na loja ‑, fui visitar o local onde havíamos combatido, e recordei‑me da senhora Larkins, a mais velha do rancho de manas, a senhora Shepherd, e ainda todos os meus amores, simpatias e antipatias desse tempo. Do passado, só Agnes parecia sobreviver: como um astro, ela brilhava sempre mais clara no meu firmamento.

Quando regressei, o doutor Wickfield já voltara do jardim, onde passava em geral as manhãs. Achei‑o tal qual a tia mo descrevera. Sentámo‑nos para jantar, com meia dúzia de meninas. Wickfield dir‑se‑ia apenas a sombra do belo homem cujo retrato se ostentava na parede.

Reinava ali de novo a tranquilidade, naquela sala pacífica de que a minha memória jamais se separara. Acabada a refeição, como o dono da casa já não tomava vinho, e a mim não apetecia prová‑lo, subimos ao outro andar, e, na sala de visitas, Agnes e as suas alunas cantaram, brincaram e trabalharam. As pequenas retiraram‑se depois do chá, e nós três sozinhos principiámos a conversar acerca dos tempos idos.

‑ A minha vida passada ‑ disse o doutor, meneando a cabeça branca ‑ só me deixou recordações amargas e tristes remorsos, mas, ainda que pudesse, não queria abolir esse passado.

Não duvidei, vendo a seu lado o rosto da filha.

‑ Porque ‑ continuou ‑ aboliria ao mesmo tempo anos de paciência, dedicação, fidelidade e amor filial, coisas que jamais esquecerei.

‑ Compreendo‑o ‑ retorqui. ‑ Esse passado inspira‑me, e, sempre me inspirou, a maior veneração.

‑ Mas ninguém sabe, excepto você, tudo quanto ela fez, tudo quanto suportou, todas as lutas que teve de sustentar. Querida Agnes!

A rapariga pusera‑lhe a mão no braço para lhe suplicar que se calasse. Ficara tremendamente pálida.

‑ Está bem, está bem ‑ disse ele suspirando.

Percebi que ocultava uma provação sofrida pela filha (ou ainda por sofrer) e que se relacionava com as suspeitas da minha tia.

‑ Nunca lhe falei da mãe dela, Trotwood. Alguém o fez por mim?

‑ Não, senhor doutor.

‑ Ah, é pouca coisa, se bem que eu padecesse muito. Casou comigo contra vontade paterna e ele renegou‑a. Ela pediu que lhe perdoasse antes do nascimento de Agnes. Mas era um homem duro e a mãe já tinha morrido há muito tempo. Repeliu‑a. Deste modo lhe destroçou o coração.

Agnes apoiou‑se no ombro do pai e passou‑lhe um braço de roda do pescoço.

‑ Como era pessoa terna e fraca, essa recusa aniquilou‑a. Sei muito bem quanta ternura se albergava naquele peito! Quem o poderia saber melhor do que eu? Amava‑me a valer, porém não se sentia feliz. Sofrera sempre em segredo esse desgosto. E isto, com outros dissabores, causou‑lhe a enfermidade de que morreu. Deixou‑me só com Agnes, então de dois anos de idade, e eu fiquei com os cabelos encanecidos que você sempre conheceu.

Dizendo isto, beijou a face de Agnes.

‑ O meu amor à querida filha tornou‑se então mórbido. Mas eu estava doente de espírito. Não falemos mais disto. Não quero falar mais de mim, Trotwood, mas dela e da mãe. Se eu lhe der a chave do meu próprio enigma, depressa o decifrará, tenho a certeza. Não preciso dizer‑lhe como é Agnes. Sempre nela achei vestígios da história da mãe; digo‑lhe isto hoje, quando nos voltámos a reunir após tão grandes mudanças. E pronto.

A cabeça curvada do pai, o rosto angélico e a dedicação da filha acentuavam o patético da narração. Se me faltasse alguma coisa para marcar de forma especial aquela reunião, aí a encontrava sem dúvida.

Agnes afastou‑se para ir pé ante pé ao piano tocar‑nos algumas das velhas melodias que tanto apreciáramos outrora naquela mesma sala.

‑ Pensa partir outra vez? ‑ perguntou ela, vendo‑me ali junto do piano.

‑ Que julga a minha irmã?

‑ Julgo que não.

‑ Então não partirei, Agnes.

‑ Já que me pede opinião, Trot ‑ disse‑me Agnes com doçura ‑ direi que o não deve fazer. A sua reputação, o seu êxito crescente aumentam‑lhe o poder de praticar o bem. E se eu puder dispensar o meu irmão, o que é provável é que o país o não possa ‑ concluiu, de olhos fitos nos meus.

‑ Foi você que me tornou no que sou, Agnes. Não o sabia?

‑ Eu, Trot?

- Sim, querida Agnes ‑ confirmei, inclinando‑me para ela. ‑

Queria dizer isto esta manhã, quando nos encontrámos: é uma coisa que não me larga o pensamento, desde a morte de Dora. Lembra‑se de quando veio ter comigo à nossa saleta, de mão erguida para o céu?

- Oh, Trot! ‑ exclamou, com os olhos marejados de lágrimas. ‑ Ela era tão gentil, tão nova, tão confiante! Não posso esquecê‑la.

‑ Pensei muitas vezes, depois, que você sempre fora para mim o que foi nessa ocasião. Sempre me indicou o céu, sempre me conduziu para algo de melhor, sempre me incitou a coisas grandes.

Agnes abanou tristemente a cabeça e eu vi‑lhe, através do pranto, o sorriso meigo e melancólico.

‑ Sou‑lhe imensamente grato, Agnes. Nem há nome para o afecto que lhe consagro. Queria que soubesse, embora sem achar modo de me exprimir, que toda a vida me deixarei guiar por si, como o fiz no meio das trevas do passado. Aconteça o que acontecer, seja qual for o laço que você forme na sua vida, e a mudança que se produza na existência de nós dois, sempre me voltarei para si e a amarei, como agora e como noutro tempo. Será constantemente o meu consolo e o meu recurso, como tem sido até agora. E, até à morte, querida irmã, vê‑la‑ei de contínuo diante de mim, mostrando‑me o céu.

Pôs a mão sobre a minha e disse‑me que, apesar de não merecer os meus encómios, tinha gosto em ouvi‑los e se orgulhava da minha pessoa. Em seguida continuou a tocar em surdina, sem nunca me desfitar.

‑ Sabe, Agnes? Parece‑me estranhamente que as suas palavras se ligam ao sentimento que me inspirou na primeira vez que a vi, e que sempre experimentava quando a seu lado, no tempo em que era um colegial ainda tosco.

‑ Não ignorava que eu era órfã de mãe e, naturalmente, compadecia‑se de mim...

‑ Não, Agnes, não era isso. Sabia haver algo de indizivelmente brando e terno em todo o seu ser, qualquer coisa que, noutra criatura, poderia tomar‑se por tristeza mas que, em si, não o era.

Agnes prosseguiu a música, olhando‑me sem cessar.

‑ Troçará, decerto, de todas estas imaginações pueris...

‑ Não, Trot!

‑ Ou rirá se eu lhe disser o que sinto? Fará chacota do meu sonho?

‑ De modo nenhum.

No rosto passou‑lhe uma sombra de desânimo, que se desfez logo no momento em que eu estremeci ao notá‑la. Agnes continuou tocando e olhando para mim com o seu sorriso calmo.

Ao regressar, no meio da noite solitária, com o vento bailando‑me ao redor como uma memória inquieta, pensei de novo nessa sombra fugidia e receei que Agnes não fosse feliz. Eu também não o era, mas até pusera resolutamente um selo no passado; e, lembrando‑me dela e da sua mão erguida, esperava que no mistério da vida futura eu pudesse amá‑la com um amor desconhecido na terra e falar‑lhe do combate que o meu coração havia travado quando a amava neste mundo.

 

MOSTRAM‑ME DOIS PENITENTES INTERESSANTES

Instalei‑me por algum tempo ‑ pelo menos até que o meu livro se completasse, o que exigia vários meses ‑ na casa da minha tia, em Dover. E ali, diante da janela donde vira o mar prateado de luar na noite da minha chegada, prossegui descansadamente o meu trabalho.

Neste relato, só falo dos meus romances quando eles interferem com a minha vida. Não entro em pormenores quanto a aspirações, alegrias, ansiedades e triunfos da minha arte. Já disse que lhe consagrava todo o ardor do meu entusiasmo e todas as energias da minha alma. Se esses livros têm algum valor, aí se lhes achará o resto; de outro modo, haveria escrito inutilmente e aquele resto não teria interesse para ninguém.

De tempos a tempos ia a Londres, quer para me perder no bulício da vida, quer para consultar Traddles acerca de um assunto. Traddles administrara‑me muito judiciosamente os bens durante a minha ausência e eu desfrutava de uma situação material próspera. A notoriedade começava a proporcionar‑me numerosas cartas de pessoas que até aí me eram completamente estranhas ‑ em geral a propósito de nada, o que tornava a resposta muito difícil ‑ e eu combinara com Traddles colocar um letreiro com o meu nome na porta. Assim, o dedicado carteiro da área descarregava lá os maços de cartas que me eram dirigidas, e eu de vez em quando ia examiná‑las, como um ministro... sem vencimentos.

Nessa correspondência insinuava‑se de tempos a tempos a proposta amável de um desses numerosos parasitas que estão sempre à coca nos Doctor's Commons: oferecia‑se para actuar em meu nome (se eu me dignasse dar os últimos passos para ser nomeado solicitador) e pagar‑me uma percentagem sobre os ganhos obtidos. Declinei sempre estas propostas. Sem isso, já havia tantos impostores e tanta corrupção naquele departamento judicial!

As cunhadas de Traddles já lá não estavam quando o meu nome começou a figurar na porta do advogado, e até o paquete dir‑se‑ia nunca ter ouvido falar de Sophy, que vivia encerrada no quartinho do lado do pátio, por onde, ao deixar a costura, ela mergulhava o olhar numa nesga de quintal negro de fuligem e dotado de uma bomba. Mas aí a encontraríamos sempre, activa na faina doméstica, cantarolando baladas do Devonshire quando não ouvia passos estranhos na escada.

De início admirei‑me por ver Sophy a escrever num caderno que ela tratava logo de esconder na gaveta, quando eu aparecia.

Este mistério, porém, acabou por me ser desvendado. Certo dia Traddles (que voltava do tribunal sob uma chuvinha fria) tirou da secretária um papel e perguntou o que eu pensava daquela caligrafia.

‑ Não, não, Tom! ‑ interveio a mulher, que estava a aquecer‑Lhe as pantufas diante do fogão.

‑ Por que não, minha querida? ‑ volveu Traddles, entusiasmado. ‑ Que te parece, hem, Copperfield?

‑ É muito regular e nítida. Não me lembro de ter visto nenhuma assim tão exacta.

‑ Nada de letra feminina, pois não?

‑ Feminina? Máscula é que ela é!

Traddles desatou a rir de satisfação e informou‑me de que era a letra de Sophy. Esta tinha‑lhe observado que em breve necessitaria de um escrevente e que ela podia ocupar esse lugar. Estudara aquela caligrafia numa norma e seria capaz de copiar não sei quantas páginas por hora. Sophy mostrava‑se confusa por ouvir aqueles elogios e declarou que, se o Tom fosse nomeado juiz [7], já não teria necessidade de explicar isto a ninguém. Mas o marido declarou que, sucedesse o que sucedesse, orgulhar‑se‑ia sempre daquela prenda de mulher.

Depois de ela sair, muito risonha, eu comentei:

‑ Que esposa excelente e encantadora tu tens, meu caro Traddles!

‑ Prezado Copperfield ‑ retorquiu ele ‑ é sem excepção a rapariga mais adorável deste mundo. E se soubesses a forma como se encarrega deste apartamento, a sua exactidão, os seus conhecimentos domésticos, a ordem, o bom humor!

‑ Tens boas razões para a louvar ‑ repliquei. ‑ És um felizardo! Creio que dão um ao outro a maior dose possível de felicidade.

‑ Seja como for, acredito que somos felizes. Vejo‑a levantar‑se de madrugada, nestas manhãs de Inverno, e ocupar‑se dos preparativos para o dia; ir à praça antes que cheguem os empregados do cartório e não se preocupar nunca com o tempo. Faz‑me deliciosos primeiros almoços, utilizando as coisas mais simples. E também pudins, e tortas. Anda sempre tão bem arranjada e tão garrida! Está comigo ao serão até altas horas da noite. Sempre bem disposta, sempre pronta a animar‑se! Quando penso que procede assim por minha causa, mal posso crer, Copperfield!

Até as pantufas, que ela lhe aquecera, o fizeram enternecer‑se. Estendeu beatificamente os pés para o lume e continuou:

‑ Há dias em que eu realmente tenho dificuldade de acreditar nesta ventura. Sem falar dos nossos prazeres mais simples... ah, não são dispendiosos, mas tão agradáveis! Quando ficamos aqui à tarde, fechamos a porta e puxamos os reposteiros, que são obra sua. Onde estaríamos melhor? Se o tempo está bonito, vamos dar uma voltinha. As ruas fervilham de distracções. Admiramos os escaparates das lojas, que cintilam de jóias, e eu mostro‑lhe serpentes de olhos de brilhantes, enroladas em estojos de cetim branco, coisa que eu lhe daria se tivesse dinheiro. Sophy aponta‑me para relógios de ouro em bocetas adornadas de pedras preciosas, com todos os aperfeiçoamentos da arte, objectos que ela me ofereceria se dispusesse de meios. Escolhemos mentalmente os pratos, os talheres de peixe, as facas da manteiga e as pinças dos torrões de açúcar, utensílios que adquiríríamos se ambos dispuséssemos daquilo com que se compram. Em seguida vamo‑nos embora, tão satisfeitos como se trouxéssemos a mercadoria. Quando deambulamos pelos largos e avenidas e vemos uma casa para alugar, acontece pensarmos se ela nos serviria, se eu chegasse a ser juiz. E então contamos as divisões: tal quarto para nós, tais outros para as irmãs, e assim por diante. Concluímos que está ou não a calhar, conforme os casos. Às vezes vamos ao teatro com bilhetes mais baratos, de plateia, e saímos encantados com a peça. De caminho para o lar, não raramente compramos qualquer coisa numa salsicharia ou uma lagosta na marisqueira, e ceamos ainda a conversar acerca do espectáculo a que assistimos. Bem vês, Copperfield, se eu fosse ministro da Justiça, não poderíamos fazer melhor.

E eu pensei:

«Farás sempre algo de bom e agradável, sejas o que fores, meu caro Traddles!»

E em voz alta disse:

‑ A propósito, suponho que já não desenhas esqueletos...

‑ Para ser franco ‑ respondeu‑me rindo e corando ao mesmo tempo ‑ não o posso negar de forma peremptória. Outro dia, estando numa das últimas filas do tribunal de King's Bench, com uma pena na mão, ocorreu‑me a ideia de verificar se não perdera esse talento. E bem me parece que deixei lá, no tampo da carteira, o esboço de um esqueleto de peruca.

Rimos ambos com vontade, e Traddles, mirando o lume com um sorriso, concluiu cheio de indulgência:

‑ Coitado do Creakle!

‑ Tenho uma carta desse velho patife ‑ declarei, pouco disposto a perdoar‑lhe as chibatadas que ele dava no Traddles e vendo como este se inclinava para a compaixão.

‑ O Creakle do colégio? Não me digas!

‑ Entre as pessoas que se sentem atraídas para a minha glória e riqueza incipiente, e que se julgam haver sido sempre muito dedicadas à minha pessoa, figura esse tal Creakle. Agora já não é professor, está aposentado. Tornou‑se director de uma cadeia no Middlesex.

Contrariamente à minha previsão, Tradles não exteriorizou a menor surpresa.

‑ Como pensas que ele arranjou isso? ‑ inquiri.

‑ Não é fácil responder‑te, Copperfield. Se calhar votou em alguém, ou emprestou dinheiro a alguém, ou comprou qualquer coisa a alguém e obrigou alguém, ou especulou por alguém que conhece alguém que lhe conseguiu o cargo através do deputado do círculo.

‑ Seja como for, ei‑lo carcereiro! ‑ exclamei. ‑ Escreveu‑me dizendo que gostaria de me mostrar o único verdadeiro sistema de disciplina nas prisões, o método infalível para criar penitentes sinceros e conversões duradoiras. Enfim, o sistema celular. Que te parece?

‑ O seu sistema? ‑ perguntou gravemente o meu amigo.

‑ Não, o convite. Devo aceitar? Queres ir comigo?

‑ Se for da tua vontade...

‑ Então vou‑lhe escrever. Lembras‑te (para não falar do que nos sucedia) como esse Creakle pôs o filho no olho da rua? E que inferno de vida passava a mulher e a filha?

‑ Se me lembro!

‑ Pois leste a carta e verás como é o mais terno dos homens para com os presos réus confessos de todos os crimes possíveis e imagináveis, sem que todavia essa ternura pareça estender‑se a qualquer outra categoria de indivíduos.

Traddles encolheu os ombros, sem dar sinais de admiração. Aliás não esperava que ele estivesse admirado, porque eu também o não estava, para não desmentir a minha prática de semelhantes contra‑sensos. Fixámos a data da nossa visita e eu enderecei nesse sentido uma carta ao Creakle, naquela mesma noite. No dia previsto (creio que era o seguinte, mas isso pouco importa), eu e Traddles apresentámo‑nos na cadeia onde o director remava como senhor absoluto. Era um edifício enorme, de construção dispendiosa. Não pude coibir‑me de pensar, atravessando o portão, no alarido que se levantaria no país se houvesse alguém suficientemente louco para propor que se despendesse metade do dinheiro que a prisão devia ter custado na fundação de uma escola técnica ou de um asilo para velhos achacados. Num escritório que se julgaria situado no rés‑do‑chão da Torre de Babel (tão maciça era a edificação), fomos recebidos pelo nosso antigo professor, que estava num grupo de dois ou três magistrados e alguns visitantes. Acolheu‑me como quem tivesse outrora formado o meu espírito e me houvesse sempre ternamente estimado. Quando lhe apresentei Traddles, ele insinuou da mesma forma, ainda que com menos ardor, que fora sempre o seu guia espiritual, seu conselheiro e nosso amigo. Creakle envelhecera muito, e a velhice não o favorecia. A cara parecia mais rubicunda, os olhos continuavam pequeninos e talvez mais encovados.

Os cabelos ralos, brancos e oleosos, de que me lembrava ainda, já não existiam por assim dizer, e as veias grossas da testa calva continuavam a ser desagradáveis à vista.

Ao escutar a conversa daqueles senhores, poder‑se‑ia concluir que não havia mais nada neste mundo vil senão o supremo conforto dos presos, por mais custoso que fosse, e que nada existia na terra além das prisões. Em seguida iniciámos a visita. Era justamente a hora do jantar, e nós fomos em primeiro lugar à espaçosa cozinha, onde se preparava o jantar de cada recluso para o enviar separadamente à respectiva cela, com a regularidade e a precisão de um relógio. Murmurei ao ouvido de Traddles que ninguém decerto ainda notara o contraste surpreendente entre essas refeições copiosas e cuidadas e os jantares, não falo dos indigentes, mas dos soldados, dos marinheiros, dos operários, de todos os que trabalham honradamente. Mas soube então que o «sistema» exigia boa alimentação; para pôr ponto final no dito sistema, digamos sem demora que ele resolvia todas as dúvidas e todas as anomalias. Ninguém parecia suspeitar que se pudesse tomar em consideração outro sistema qualquer além deste.

Enquanto atravessávamos corredores magníficos, perguntei ao senhor Creakle e aos seus amigos quais eram as vantagens principais deste método universal e dominante. Por um lado, elucidaram‑me, seria o isolamento completo dos encarcerados, de forma que nenhum dos ali internados soubesse fosse o que fosse do seu vizinho, e, por outro lado, o restabelecimento naqueles espíritos de uma mentalidade sã, que os levasse a uma constrição sincera, a um arrependimento genuíno.

Com isto, trataram de nos proporcionar a visita dos reclusos nas suas celas: lá nos levaram através desses mesmos corredores, para onde elas davam, explicando‑nos como os detidos iam à capela, etc.; achei todavia que estes sabiam alguma coisa da vida recíproca e que tinham encontrado meio de comunicar entre si. À hora em que escrevo, creio que isto é facto provado, mas nessa altura considerar‑se‑ia um insulto ao sistema insinuar tal suspeita, e eu apliquei‑me a verificar os sintomas da verdadeira contrição.

Senti, porém, novas apreensões. No cárcere, a moda era a penitência, tão tirânica como a que reinava cá fora quanto ao corte de coletes e casacos nas lojas dos alfaiates. Escutei uma porção de confissões, mais ou menos semelhantes no fundo e também (o que me levou a desconfiar) na forma. Vi muitas raposas desfazendo de vinhas inteiras com cachos inacessíveis; mas poucas a quem eu deixasse ao alcance das uvas. Notei também que os homens que professavam maior arrependimento tinham a certeza de suscitar interesse. O amor‑próprio, a vaidade, a falta de distracção e o hábito da mentira (que muitos possuíam em alto grau, como mostrava o seu cadastro) induziam‑nos a essas declarações, em que pareciam deleitar‑se.

Entretanto, ouvi tantas vezes falar, no decorrer das nossas idas e vindas, de um tal número 27 (que era o favorito e parecia ser de facto um prisioneiro modelo), que resolvi sustar o meu juízo até que o tivesse conhecido. Também o 28, conforme percebi, era astro particularmente brilhante mas, para sua infelicidade, o esplendor do 27 fazia empalidecer‑lhe a glória. Realmente, tanto me mataram o bicho do ouvido com os louvores do 27, os seus discursos sensatos, as belas cartas que escrevia constantemente à mãe (como se ela estivesse no caminho da perdição) que fervia de impaciência por o ver.

Tive de reprimir esta impaciência, pois deixaram o 27 para um efeito espectacular. Finalmente chegámos à porta da sua cela. O senhor Creakle, olhando por um orifício, anunciou‑nos, com a mais profunda admiração, que o preso lia um hinário.

Houve logo uma tal profusão de cabeças em busca do buraquinho que este ficou literalmente obstruído. Todos queriam ver o homem na sua ocupação seráfica. Para obviar a este inconveniente e nos permitir uma conversa com o recluso, o director deu ordem para se abrir a porta e convidou o 27 a vir ao corredor. Assim fizeram. Qual não foi, porém, o meu assombro e o do Traddles ao reconhecermos nesse 27 o arrependido Uriah Heep em pessoa! Também ele nos reconheceu imediatamente e, ao sair da cela, disse‑nos com uma das suas antigas contorções:

‑ Como está, senhor Copperf ield? Passou bem, senhor doutor Traddles?

Estas saudações causaram espanto nos circunstantes. Tive a impressão de que pasmaram de o ver tão humilde, pois confessava assim que não lhe desconhecíamos a história.

‑ E então ‑ disse Creakle, com certa compunção ‑ como vai hoje o nosso 27?

‑ Num estado de grande humildade ‑ respondeu Uriah.

‑ Como de costume ‑ retorquiu o director. Alguém indagou com profunda ansiedade:

‑ Não lhe falta nada? Sente‑se bem?

‑ Sim, senhor, e agradeço reconhecido. Melhor do que me sentia anteriormente. Agora compreendo os meus desvarios. Por isso encontro aqui consolação.

Muitos daqueles senhores mostraram‑se impressionados, e um terceiro curioso inquiriu deste modo, colocando‑se na primeira fila:

‑ Que tal acha a carne de vaca?

‑ Obrigado pelo seu interesse, mas sempre digo que, ontem, estava razoavelmente rija. A minha obrigação é, todavia, ser paciente. Cometi erros, meus senhores ‑ acrescentou com um sorriso humilde ‑ e devo sofrer as consequências sem me queixar.

Um murmúrio de satisfação sublinhou o ar conformado do 27. Contudo houve certa indignação contra o ecónomo que dera origem àquela reclamação, e o director tomou logo nota. Uma vez acalmado, o 27 continuou de pé no meio de todos, como se se considerasse o objecto mais precioso duma colecção magnífica. A fim de que os visitantes ficassem ainda mais edificados, deram ordem para sair ao corredor o 28.

Eu estava já tão estupefacto que não me surpreendi demasiadamente ao ver surgir Littimer, antigo criado de Steerforth, mergulhado na leitura de uma obra de devoção.

‑ 28! ‑ exclamou um cavalheiro de óculos, que ainda não havia falado ‑ você queixou‑se do cacau, na semana passada. Como tem ele sido depois disso?

‑ Muito obrigado ‑ replicou Littimer ‑ ao presente já o preparam melhor. Se me permitem, no entanto, uma observação, direi que não acho o leite com que o fazem suficientemente puro. Sei, contudo, que o leite é muitas vezes falsificado em Londres e que este produto raras vezes se encontra em toda a sua pureza.

Pareceu‑me que o cavalheiro dos óculos fazia valorizar o 28 em detrimento do 27 (o predilecto do senhor Creakle), porque cada um deles porfiava em evidenciar o seu favorito.

‑ E como se sente? ‑ perguntou ainda o mesmo visitante, dirigindo‑se a Littimer.

‑ Obrigado pela sua atenção, eu actualmente compreendo os meus erros. Sinto‑me tão perturbado quando penso nos pecados dos meus velhos companheiros! Mas espero que lhes sejam perdoados.

‑ E você, considera‑se realmente feliz? ‑ insistiu o inquiridor, com um movimento de cabeça para o animar.

‑ Agradeço‑lhe muito. Considero‑me, de facto, perfeitamente feliz.

‑ Tem necessidade, neste momento, de dizer mais alguma coisa? Não receie.

‑ Se não me engano ‑ respondeu o preso, sem levantar os olhos ‑ vejo aqui alguém que me conheceu outrora. Talvez convenha a essa pessoa saber que eu atribuo os meus erros passados à vida negligente que levei ao serviço de gente moça e às fraquezas a que cedi por sua influência. Espero que esse senhor compreenda a minha advertência e não se ofenda com a liberdade que tomo. É para seu bem. Não ignoro as minhas culpas passadas; espero que ele se arrependa de todas as depravações e de todos os pecados em que participou.

Reparei que vários dos presentes se comportavam cheios de deferência, como se se encontrassem num templo.

‑ Isso faz‑lhe honra, 28. Outra coisa não esperava de si. Não tem mais nada a acrescentar?

‑ Há uma rapariga que resvalou para vida dissoluta ‑ retorquiu Littimer, erguendo de leve as sobrancelhas, mas sem mover os olhos ‑ e que eu tentei salvar, sem o conseguir. Peço a este senhor, se lhe for possível, que informe essa criatura de que lhe perdoo o comportamento que teve comigo e que a convido a arrepender‑se, se é que o mesmo senhor se digna de aceitar esta comissão.

‑ Não duvido, 28, de que o cavalheiro de quem fala não esteja impressionado, como nós todos, com o que você acaba de exprimir tão bem. Não o retenho mais.

‑ Muito obrigado. Desejo a todos felicidades e espero que os senhores e suas famílias compreendam também os seus pecados e se emendem.

Assim se retirou o 28, depois de haver trocado com Uriah um olhar que deixava supor que (por qualquer meio de comunicação) eles não se desconheciam inteiramente. Tornaram a fechar a porta da cela, no meio de murmúrios lisonjeiros, pois se tratava de um preso excelente e de um caso edificante.

‑ E agora, 27 ‑ recomeçou o senhor Creakle, ocupando‑se novamente do seu predilecto, já que o campo ficara livre com a saída do 28 ‑ acha que se pode fazer alguma coisa por si? Nesse caso, diga‑o!

‑ Gostaria de pedir muito humildemente ‑ replicou Uriah Heep, com um tique nervoso que lhe fazia oscilar a cabeça ‑ autorização para escrever mais uma vez à minha mãe.

‑ Ser‑lhe‑á naturalmente concedida ‑ informou o director.

‑ Muito obrigado. Estou inquieto por causa dela. Receio que corra qualquer perigo.

Alguém perguntou estouvadamente que perigo seria. Mas um «caluda!» escandalizado obrigou‑o a meter a viola no saco.

‑ Perigo quanto à salvação ‑ explicou Uriah, virando‑se com uma contorção para o lado donde viera a voz. ‑ Queria que a minha mãe chegasse ao mesmo estado que eu. Nunca me sentiria como hoje se não tivesse vindo para aqui. Seria bom para toda a gente ser presa e conduzida cá.

Esta declaração causou imenso prazer, maior, suponho, que tudo o que fora dito até aqui.

‑ Antes de vir para aqui ‑ continuou Uriah, lançando‑nos um olhar furtivo como se quisesse aniquilar o mundo externo de que fazíamos parte ‑ eu entregava‑me ao pecado, mas agora tomei consciência dos meus erros. Há muitos pecados na terra. Há muitos pecados no coração da minha mãe. Por toda a parte só pecado! Salvo aqui.

‑ Está completamente transformado? ‑ perguntou o senhor Creakle.

‑ Se estou! ‑ redarguiu esse penitente cheio de optimismo.

‑ Não voltaria a pecar se saísse daqui? ‑ perguntou alguém.

‑ Meu Deus, nunca!

‑ Muito bem ‑ confirmou Creakle ‑ isto é bastante animador. Você, 27, falou com o senhor Copperfield. Quer dizer‑lhe mais alguma coisa?

‑ Senhor Copperfield, conheceu‑me antes de vir para cá e salvar a minha alma ‑ começou Uriah Heep, lançando‑me um olhar mau, como eu nunca lhe vira. ‑ No meio dos meus desvarios, eu era humilde com os orgulhosos e manso com os violentos. O senhor mesmo foi violento comigo, um dia, porque me deu uma bofetada. Há‑de lembrar‑se...

Comiseração geral. Houve olhares indignados na minha direcção.

‑ Mas eu perdoo‑lhe, senhor Copperfield ‑ prosseguiu Uriah, saboreando o seu perdão. ‑ Perdoo a toda a gente. De nada me serviria querer mal fosse a quem fosse. Perdoo‑lhe sem ideia preconcebida e espero que o senhor saiba dominar‑se para o futuro. Espero que o doutor W. se arrependa e a filha também, e toda essa súcia de pecadores. O senhor teve desgostos e penso que isso lhe há‑de ter feito bem; mas seria melhor ter vindo para aqui, assim como o doutor W. e a filha. O mais que posso desejar‑lhe, senhor Copperfield, e aos outros senhores que me escutam, é serem todos presos e conduzidos para esta casa. Quando penso nos meus erros passados e na minha felicidade presente, fico persuadido que isto é o que mais convém a todos nós. Lastimo os que ainda não foram internados nesta cadeia!

Dizendo isto, escapuliu‑se para a cela, no meio de um sussurro de aprovação, e nós sentimo‑nos aliviados, eu e Traddles, por o ver desaparecer atrás das grades.

Entretanto eu pensava o que teria levado aqueles dois homens ao cárcere, pois que ninguém fizera alusão a isso. Dirigi‑me nesse sentido a um dos guardas, o qual achei, por certos indícios fisionómicos, estar apto a tirar‑me de dúvidas.

‑ Sabe em que consiste o último «erro» do 27?

Respondeu‑me que era um caso relacionado com a vida bancária.

‑ Alguma fraude em prejuízo do Banco de Inglaterra?

‑ Nem mais ‑ confirmou. ‑ Foi preso por gatunice e falsificação, juntamente com outros. Ele é que esboçou o plano. Maquinação de grande envergadura. Foram condenados a deportação. Este 27 é o mais esperto do bando e esteve quase a escapar à justiça. O Banco, no entanto, conseguiu apanhá‑lo, mas com dificuldade.

‑ E conhece o delito do 28?

‑ Esse ‑ replicou o meu informador, falando sempre em voz baixa e virando‑se para todos os lados, com medo de que o ouvissem dar‑me estes esclarecimentos confidenciais ‑ estava empregado e roubou ao patrão coisa como duzentas e cinquenta libras em dinheiro e objectos valiosos, na véspera do dia em que devia embarcar para o continente. Esse caso tem seu quê de impressionante, pois o homem foi surpreendido por uma anã.

‑ Uma...?

‑ Sim, senhor, uma mulherzinha muito pequena, cujo nome esqueci.

‑ Será Mowcher, por acaso?

‑ Justamente. Escapara às buscas e ia fugir para a. América, disfarçado com peruca e suíças loiras, quando a anã, que se encontrava em Southampton, o descobriu na rua. Reconheceu‑o e agarrou‑se a ele como um demónio.

‑ Excelente senhora Mowcher! ‑ exclamei.

‑ Se a visse, como eu vi, em cima de uma cadeira, a servir de testemunha! Ele tinha‑a tratado mal, mas a mulherzinha não o largou sem o ver engaiolado. Segurava‑o com tanta força que os polícias tiveram de trazer os dois. Também, por isso, recebeu felicitações do Tribunal e aclamações da multidão.

Tínhamos visto tudo o que havia para ver. Seria inútil demonstrar a um homem como Creakle que o 27 e o 28 continuavam como eram ‑ os mais consumados hipócritas deitados a este mundo. Em suma, toda esta história deixou‑nos uma impressão penosa. Abandonámos, pois, os dois malvados a si mesmos e ao sistema prisional de que gozavam e retirámo‑nos meditando no caso.

‑ Talvez seja proveitoso ‑ disse eu a Traddles ‑ quando cavalgamos uma montada perigosa, fazê‑la correr a toda a brida. Rebentamo‑la mais depressa.

‑ Parece‑me que sim ‑ respondeu Traddles.

 

DIVISO UMA LUZ NO MEU CAMINHO

Dois meses após o meu regresso do estrangeiro, era Natal. Frequentemente me encontrava com Agnes.

Fossem quais fossem os incitamentos do público e a satisfação que eles me proporcionavam, eu apreciava muito mais uma simples palavra de louvor da boca da minha amiga.

Pelo menos uma vez por semana, se não mais, ia a cavalo até Cantuária e aí passava a noite. Voltava, em geral, antes de amanhecer, pois aquela antiga sensação de mal‑estar perseguia‑me sempre (sobretudo depois de deixar Agnes) e assim evitava as insónias ou pesadelos nocturnos. Passava deste modo a maior parte das tristes noites invernosas em jornadas deste género, agitando pelo caminho pensamentos que me tinham ocupado o espírito durante a longa ausência no continente.

Ou, melhor dizendo, escutaria eu o eco desses mesmos pensamentos? Eles falavam‑me de longe. Afastara‑os de mim, e aceitara a inevitabilidade da minha situação. Quando lia a Agnes trechos do que escrevera, quando via a sua expressão atenta ou comovida até ao riso ou às lágrimas, e lhe escutava a voz meiga, interessada nos acontecimentos imaginários do mundo irreal em que eu vivia, pensava no que podia ter sido o meu destino, mas punha logo de parte a ideia, lembrando‑me também do que teria sido a minha vida com Dora, se ela ainda existisse.

Era ‑ tenho motivos de sobra para me lembrar ‑ um dia de Inverno frio e agreste. Nevara durante horas e o chão estava coberto de uma camada pouco profunda mas em parte gelada. Da minha janela via soprar sobre o mar o vento violento do norte. Imaginei‑me nos campos de neve das montanhas suíças, então inacessíveis a pés humanos, e pensava o que seria mais isolado, se essas regiões solitárias se o oceano deserto.

‑ Sais hoje a cavalo, Trot? ‑ perguntou‑me Betsey, enfiando a cabeça pela porta do meu quarto.

‑ Sim, tia, vou a Cantuária. Está um dia óptimo para se cavalgar.

‑ Espero que o teu cavalo seja da mesma opinião ‑ disse ela ‑ mas neste momento pende a cabeça e as orelhas, ali à porta. Há‑de supor que a estrebaria lhe conviria mais.

Devo explicar aqui que a senhora Trotwood consentia ao meu cavalo o acesso do terreno interdito, continuando, porém, a ser muito severa com os jumentos.

‑ Não tardará a espertar ‑ repliquei.

‑ Em todo o caso, o passeio fará bem ao dono ‑ observou ela, relanceando os linguados dispersos na minha mesa. ‑ Ah, filho, quantas horas passas aqui! Não calculava, quando lia livros, que fosse tão grande trabalho escrevê‑los!

‑ Não deixa também de ser grande trabalho o de os ler. E quanto a escrevê‑los, tem também os seus encantos, minha tia!

‑ Bem vejo. A ambição, o amor dos elogios, a solidariedade, e tantas outras coisas, hem? Pois então monta e parte.

‑ Teve mais alguma informação acerca desse «afecto da Agnes»? ‑ indaguei com a maior calma, de pé à sua frente, depois de Betsey me haver dado uma pancadinha no ombro e se ter sentado numa cadeira.

Fitou‑me por momentos, antes de responder:

‑ Creio que sim, Trot.

‑ Confirmou a sua impressão?

‑ Creio que sim, Trot.

Olhava‑me tão fixamente, com uma espécie de hesitação, piedade e afectuosa incerteza que eu apelei para todas as minhas energias a fim de lhe mostrar expressão jovial.

‑ E o que é mais, Trot, é que...

‑ Hem?

‑ Creio que Agnes se vai casar.

‑ Deus a abençoe! ‑ repliquei alegremente.

‑ Que Deus a abençoe ‑ repetiu Betsey ‑ e igualmente ao seu marido.

Fiz‑me eco desse voto, despedi‑me e desci com ligeireza a escada, saltei para o cavalo e parti. Tinha mais do que nunca razões para fazer o que havia resolvido.

Recordo‑me tão bem de todos os pormenores dessa jornada de Inverno: os pequeninos caramelos que o vento arrancava à vegetação, para me lançar à cara, o bater seco das ferraduras da minha montada no solo endurecido, a neve saltando à minha frente, a parelha fumegante de uma carroça de palha que se detivera para resfolgar no alto da encosta e sacudir harmoniosamente as campainhas, o declive e as ondulações brancas dos médáos, perfilando‑se contra o céu sombrio, como se fossem desenhados numa imensa ardósia...

Encontrei Agnes sozinha. As alunas estavam em férias. Lia defronte do lume e, ao ver‑me entrar, descansou o livro. Depois de me acolher com a cordialidade costumada, pegou no cesto da costura, antes de se sentar no poial duma das janelas.

Sentei‑me a seu lado, num tamborete, e falámos do meu livro, de quando o terminaria e do que fizera depois da minha última visita. Agnes, muito alegre, predisse rindo‑se que eu em breve seria célebre de mais para que se conversasse comigo com aquela familiaridade. E concluiu:

‑ Já vê que eu aproveito o mais possível a situação presente, se é que não representa já bastante atrevimento...

Quando lhe contemplava o belo rosto atento ao trabalho, Agnes alçou os meigos olhos claros e viu que eu a observava.

‑ Hoje parecia muito absorto ‑ disse ela.

‑ Precisa que lhe diga porquê? ‑ ripostei. ‑ Vim por causa disso.

Poisou o trabalho, como fazia sempre que discutíamos assuntos sérios, e olhou‑me sem pestanejar:

‑ Querida Agnes, duvida da minha fidelidade?

‑ Não ‑ declarou com certo espanto.

‑ Crê que eu já não seja o mesmo que era outrora?

‑ Isso não.

‑ Lembra‑se de que tentei dizer‑lhe, no meu regresso, quanto lhe estava grato e lhe era afeiçoado?

‑ Lembro‑me muito bem ‑ volveu brandamente.

‑ Você tem um segredo. Confesse‑o, Agnes.

Ela baixou a vista e começou a tremer.

‑ Eu não podia deixar de adivinhar, ainda que me tivessem dito. Soube por outros lábios que não os seus, Agnes, o que é esquisito, que existe outro homem a quem concedeu o tesouro do seu amor. Não me oculte o que lhe respeita de tão perto. Se tem confiança em mim, como afirma e como eu sei, permita‑me que seja seu amigo e irmão, e isto antes de tudo mais!

Com um olhar suplicante e quase de censura, a rapariga deixou o vão da janela e, atravessando o compartimento a toda a pressa, como se não soubesse para onde ir, tapou o rosto com as mãos e desatou em soluços que cortavam o coração.

Todavia essas lágrimas caíam‑lhe na alma como uma promessa de felicidade. Sem razão aparente, associavam‑se‑me no espírito ao sorriso meigo e triste de que tão bem me recordava. Estremeci mais de esperança que de receio ou de dor.

‑ Agnes, querida irmã, que lhe fiz?

‑ Deixe‑me ir, Trot. Não me sinto bem... não estou em mim... Falar‑lhe‑ei mais tarde, noutra ocasião... Escrever‑lhe‑ei. Mas agora não me fale. Não, não!

Tratei de me lembrar do que ela me dissera, depois da minha viagem, acerca daquele afecto que não exigia retribuição. Pressenti uma imensidade de coisas que devia explorar imediatamente.

‑ Agnes, não posso vê‑la nesse estado e pensar que sou eu a causa. Minha querida, mais querida do que tudo no mundo, se é infeliz, deixe‑me partilhar da sua infelicidade. Caso precise de conselho, permita que eu procure dar‑lho. Se o seu coração está triste, deixe que o alegre. Para quem pensa que eu vivo agora? Apenas para si!

‑ Oh, tenha dó de mim. Não me sinto bem. Mais tarde! Foi tudo o que pude apurar.

Seria um desvaire egoísta que me impelia, ou antes uma luz de esperança que me mostrava uma solução que eu não ousava contemplar?

‑ Devo acrescentar mais qualquer palavra, Agnes. Não posso deixá‑la assim. Por amor de Deus, não consintamos que entre nós se crie um mal‑entendido, depois de tantos anos que nos trouxeram e roubaram tantas coisas! Hei‑de exprimir‑me com clareza. Se ainda crê que eu podia invejar a ventura que concedesse a outrem, que não a deixaria escolher alguém da sua preferência, que não suportaria ser testemunha da sua alegria, expulse tais ideias, porque não mereço que assim me julgue. Não foi em vão que sofri. Não foi em vão que me aconselhou. No sentimento que lhe consagro não há sombra de egoísmo.

Agnes sossegou e voltou para mim as faces pálidas. Em seguida falou em voz baixa, sufocada de vez em quando pela comoção.

‑ É forçoso dizer‑lhe, em nome da sua amizade tão pura, que está enganado, Trot. Não posso acrescentar mais. Se às vezes tive necessidade de auxílio e conselhos, no decurso destes anos, você sempre mos deu. Se algumas vezes fui infeliz, a minha tristeza dissipou‑se. Se jamais senti um peso no peito, ele foi‑me retirado. Se há em mim um segredo, esse não é novo... E não é... o que você supõe. Não o posso revelar. Pertence‑me há muito tempo e devo conservá‑lo.

‑ Agnes! Espere um instante!

Ia sair, mas retive‑a. Passei‑lhe o braço de roda da cintura. «No decurso destes anos»... «O segredo não é novo»... Pensamentos e esperanças desconhecidas turbilhonavam‑me no cérebro. A minha vida mudava de aspecto.

‑ Querida Agnes! Você, que eu respeito tanto, você que eu amo tão fervorosamente! Quando cheguei, julgava que não havia nada que pudesse arrancar‑me esta confissão! Supunha que poderia guardá‑la no fundo da minha alma a vida inteira, até que fôssemos ambos velhos. Mas, Agnes, se posso alimentar esta esperança nascente de a tratar um dia por um nome mais caro que o de irmã, por um nome tão diverso...

As lágrimas dela deslizavam, mas não eram as mesmas de ainda há pouco. Espelhavam a minha esperança.

‑ Agnes ‑ disse eu ‑ minha guia e meu amparo, em todos os tempos! Se tivesse pensado um pouco mais em si e um pouco menos em mim, quando crescíamos lado a lado, creio que o meu coração frívolo não teria nunca errado por longe. Mas você valia muito mais do que eu, era tão necessária a todas as minhas esperanças e decepções infantis, que a minha confiança e a minha fé se me tornaram como uma segunda natureza e me fizeram esquecer por momentos o meu primeiro e mais forte instinto, que era de a amar como a amo agora.

Ela chorava sempre, porém de alegria e não de tristeza. E eu conservava‑a apertada nos braços, como jamais ela estivera e como jamais eu pensara tê‑la.

‑ Quando eu amava Dora, ‑e ternamente, como você sabe, Agnes...

‑ Sim, sim ‑ murmurou gravemente. ‑ E isso consola‑me.

‑ Quando eu a amava ‑ continuei ‑ mesmo então o meu amor teria sido incompleto sem o seu apoio. Mas a sua solidariedade veio coroar aquele amor. E, quando perdi Dora, que seria de mim sem a minha querida Agnes?

Continuei a cingi‑la nos braços, mais perto do coração. A mão dela, trémula, descansava‑me no ombro, e os seus olhos meigos brilhavam através das lágrimas, mergulhando nos meus.

‑ Parti, querida Agnes, amando‑a. Estive longe de si, amando‑a. Voltei, amando‑a.

Em seguida tratei de lhe contar as minhas lutas e a sua conclusão. Procurei pôr a minha alma a nu diante dela. Esforcei‑me por lhe mostrar como julgava ter atingido melhor compreensão de mim mesmo e sua; como me abandonara às consequências desta compreensão; e como viera ali, nesse dia, para ser fiel aos meus sentimentos. Se Agnes me tinha bastante amor (disse‑lhe) para me aceitar como marido, devia‑o decerto não aos meus méritos próprios mas à sinceridade da minha estima, aos sofrimentos por que passara e que haviam amadurecido este amor, levando‑me enfim a revelar‑lho. E, ó Agnes, mesmo através dos teus olhos puros, era a alma da minha esposa‑criança que me olhava nesse momento para me decidir a esta resolução e me lembrar por teu intermédio a terna saudade do Botão de Rosa murcho antes de desabrochar!

- sinto‑me feliz, Trot, e o meu coração transborda, mas há uma coisa que é necessário te diga.

‑ Que é, meu amor?

Colocou as mãos suaves nos meus ombros e olhou‑me tranquilamente.

‑ Não sabes o que é?

‑ Não me atrevo a perguntar. Di‑lo tu, querida Agnes.

‑ Amei‑te constantemente.

Grande era a nossa felicidade. Não chorávamos pelas provações sofridas (ela sobretudo), mas pela certeza de que nunca mais nos separaríamos.

De tarde, fomos passear ao campo. A atmosfera sossegada parecia corresponder à nossa calma interior. As primeiras estrelas começaram a cintilar quando ainda estávamos fora. Erguendo os olhos para elas, louvámos o Criador por nos haver conduzido a essa serenidade sublime.

Ficámos juntos no vão da janela, ao luar. Agnes contemplava pacificamente o céu, e eu seguia o seu olhar.

Julguei então ver abrir‑se diante de mim uma extensa via, sobre a qual avançava a custo um pobre garoto andrajoso, exausto e abandonado, que vinha conquistar o coração que eu sentia nesse momento bater de encontro ao meu.

Aproximava‑se a hora do jantar, no dia seguinte, quando fomos participar à tia Betsey a nossa deliberação. A velha Peggotty informou‑me de que ela estava no meu gabinete, pois fazia gala em tê‑lo sempre na melhor ordem, pronto para me receber. Encontrámo‑la sentada defronte do lume, de óculos na ponta do nariz.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou, perscrutando a obscuridade. ‑ Quem me trazes aí?

‑ Agnes ‑ declarei.

Como tínhamos ajustado não dizer nada de começo, a tia Betsey ficou um pouco desconcertada. Deitara‑me um olhar de esperança quando eu dissera «Agnes», mas, vendo o meu ar habitual, tirou os óculos e esfregou o nariz, o que era sinal de desespero. Todavia recebeu a visita com muita cordialidade, e daí a pouco encaminhávamo‑nos para a casa de jantar.

Durante a refeição, a tia pôs e repôs várias vezes os óculos para me lançar novos olhares, mas acabou por se sentir descoroçoada. O senhor Dick, que conhecia o significado da manobra, pareceu cheio de consternação.

‑ A propósito ‑ disse eu depois do jantar ‑ falei a Agnes daquilo que me aconselhou...

‑ Então, Trot ‑ retorquiu Betsey, corando ‑ fizeste mal e faltaste à tua promessa.

‑ Não está zangada, pois não? Estou certo de que não ficará quando souber que Agnes não tem nenhuma afeição que se deva lamentar.

‑ Que tolice!

Como dava a aparência de contrariedade, achei preferível pôr‑Lhe cobro à inquietação. Cingi Agnes pela cintura, para a conduzir por trás da poltrona da tia, e ambos nos inclinámos para ela. A tia, depois de dar palmas e encaixando os óculos no nariz, passou imediatamente a uma crise de nervos... pela primeira e última vez da sua vida.

A Peggotty compareceu. Logo que a tia se recompôs, saltou ao pescoço da velha criada e apertou‑a com toda a força nos braços. Após o que, fez o mesmo ao senhor Dick ‑ muito honrado mas algo surpreendido. Por fim explicou‑lhe a razão das suas demonstrações. E nós impámos de satisfação.

Não pude descobrir se a tia, na sua conversa anterior comigo, proferira uma mentira piedosa e se realmente se enganara quanto aos meus sentimentos. Uma coisa era certa, disse ela: dera‑me a entender que Agnes se ia casar. E, afinal, mal sabia a que ponto falava verdade!

Casámo‑nos duas semanas depois. Os únicos convidados para a cerimónia foram Traddles e Sophy, o doutor Strong e a mulher. Deixámo‑los radiantes de alegria.

Amparei nos braços aquela que era a fonte de todas as minhas mais nobres aspirações, o próprio centro do meu coração, a mulher que eu amava com um amor imarcessível.

‑ Adorado marido! ‑ murmurou Agnes. ‑ Agora que te posso dar este nome, resta‑me uma coisa a acrescentar.

‑ Di‑la, meu amor.

‑ Isto vem da noite em que Dora morreu. Ela tinha‑me pedido...

‑ Continua.

‑ Adivinhas o que era?

Julguei que sim e apertei‑a mais contra o peito.

‑ Disse‑me que tinha um pedido para me fazer e uma missão para confiar.

‑ E era...

‑ Que ninguém mais, senão eu, ocupasse o lugar vazio.

E Agnes poisou a cabeça no meu coração e chorou. Eu chorei com ela, apesar de toda

 

UMA VISITA

O que pretendia memorar está quase no fim, mas há ainda um incidente importante, em que muitas vezes penso deleitado e sem o qual ficaria embaraçado um dos fios da trama que teci.

A minha glória e o meu bem‑estar iam crescendo, a felicidade conjugal era perfeita, e eu estava casado havia já dez anos venturosos. Certa tarde de Primavera, eu e Agnes achávamo‑nos sentados à lareira quando nos anunciaram a visita de um desconhecido. Tinham‑lhe perguntado se se tratava de negócios e ele respondera negativamente. Desejava apenas ter o gosto de me falar, e vinha de longe. Era velho, acrescentou a criada, e pelo aspecto parecia um fazendeiro.

Esta notícia soou como misteriosa às crianças, tanto mais que sugeria o começo de uma das suas histórias favoritas, em que entrava uma velha fada maldosa envolta numa capa e com cara de poucos amigos. A comoção foi grande. Um dos meus filhos escondeu a cabeça nos joelhos da mãe, para fugir a qualquer perigo, e a pequena Agnes (a nossa primogénita), deixando a boneca em cima de uma cadeira, para a substituir, ocultou‑se atrás do reposteiro, donde assistiria à cena enfiando através dele a cabeça encaracolada.

‑ Manda‑o entrar ‑ ordenei.

Vimos daí a pouco aparecer ‑ para se deter na sombra do limiar ‑ um velho robusto de cabelo grisalho. A pequena Agnes, atraída pelo olhar do forasteiro, correra ao seu encontro, convidando‑o a entrar. Eu ainda não conseguira ver‑lhe bem o rosto quando minha mulher se levantou de repente e gritou com voz agitada e alegre:

‑ É o senhor Peggotty!

Era ele, de facto. Velho agora, mas ainda ágil e vigoroso. Passada a nossa primeira impressão, sentou‑se diante do lume, com os meus filhos nos joelhos, e o reflexo das brasas na cara. Na verdade, devia ser o velhote mais robusto e mais belo que eu vira até então.

‑ Menino Davy ‑ disse ele (e como me pareceu familiar este tratamento, e o tom da sua voz!). ‑ Menino Davy, é para mim um momento de felicidade este em que o torno a ver, com a sua esposa e os seus meninos!

‑ Um momento feliz para nós todos ‑ repliquei.

‑ Não era mais alto, menino Davy, do que a mais pequena destas crianças na primeira vez que o vi. E Emily seria do mesmo tamanho, assim como o nosso malogrado Ham.

‑ O tempo, a mim, mudou mais do que a si, senhor Peggotty. Mas estes garotos não se vão deitar? O senhor está aqui na única casa de Inglaterra que o pode abrigar. Diga‑me onde deixou a bagagem, para que a mande buscar, e depois, diante de um copo de grogue de Yarmouth, contar‑me‑á tudo o que se passou durante estes dez anos.

‑ Veio só? ‑ perguntou Agnes.

‑ Sim, senhora, vim só.

Instalámo‑lo na nossa casa e pusemo‑lo à vontade. Ouvindo‑lhe aquela voz familiar podia crer que ele ainda prosseguia as suas viagens em cata da sobrinha adorada.

‑ Tive de atravessar muita água ‑ principiou Daniel ‑ por espaço de umas quatro semanas. Mas a água, sobretudo a salgada, já me conhece bem. Além disso, havia os amigos que eu desejava ver, e cá me têm.

‑ Volta para tão longe, sem uma demora grande? ‑ perguntou Agnes.

‑ Sim, senhora, prometi à Emily, antes de a deixar. Bem vê, os anos não me remoçam, e, se eu não viesse agora, jamais tornaria a fazer esta viagem. Sempre tive esta ideia de vir visitar o menino Davy e a sua senhora, e gozar da sua felicidade, antes de ser demasiadamente velho.

Olhava‑nos sempre, como se não se fartasse do espectáculo. Agnes afastou‑lhe, rindo, as madeixas grisalhas da testa, para que ele nos visse melhor.

‑ E agora ‑ disse‑lhe eu ‑ conte‑nos como é que as coisas se têm passado.

‑ Posso contar em duas palavras, menino Davy. As coisas têm andado menos mal. Tudo correu bem. Trabalhámos como devíamos, tanto mais que, a princípio, a vida foi dura. No entanto fomos prosperando. Com a criação das ovelhas e do gado graúdo, e mais isto e aquilo, conseguimos manter‑nos tão à vontade quanto era de desejar. Fomos realmente abençoados ‑ acrescentou Peggotty, inclinando a cabeça com respeito. ‑ É claro que levou tempo. Mas tinha de ser.

‑ E Emily? ‑ perguntámos em uníssono.

‑ Oh! Quando a senhora a deixou... e devo dizer que nunca a ouvi nas suas orações da noite, através do tabique que nos separava, na selva, nunca a ouvi rezar sem escutar também o seu nome proferido com fervor. Tínhamos perdido de vista o menino Davy, naquele belo pôr de sol, e Emily estava tão abatida, de começo, que se soubesse logo o que o menino delicadamente nos ocultou, creio que ela não resistiria... Mas havia a bordo desgraçados que adoeceram e Emily ocupou‑se a tratá‑los. Além disso, havia crianças que nos acompanhavam e ela tomou‑as ao seu cuidado. Entreteve‑se, espalhou o bem à sua volta e isso ajudou‑a muito.

‑ Quando é que ela soube?

‑ Não lhe disse nada durante um ano. Vivíamos então num lugar solitário, mas no meio de árvores magníficas e de roseiras que trepavam até ao topo da nossa cabana. Certo dia em que eu trabalhava no campo, apareceu um viajante cá de Norfolk ou de Suffolk (já não sei bem) e, naturalmente, convidámo‑lo a entrar, demos‑lhe de comer e de beber e, enfim, recebemo‑lo muito bem. Toda a colónia procede sempre assim. Trazia um jornal velho e um relato impresso da tempestade. Foi assim que ela soube. Percebi‑o, quando nessa tarde voltei para casa.

Baixou a voz, ao pronunciar estas palavras, e eu notei‑lhe no rosto a expressão grave de que me recordava tão bem.

‑ Afligiu‑se muito?

‑ Sim, senhor, e por bastante tempo ‑ respondeu Daniel, meneando a cabeça ‑ se é que o efeito não perdura ainda. Penso, todavia, que a solidão lhe fez bem. Tinha muito trabalho com a criação das aves, e isso também favoreceu a resignação. Quem sabe se o menino Davy ainda a reconheceria se a tornasse a ver?

‑ Emily mudou dessa forma?

‑ Não sei. Vejo‑a todos os dias, de maneira que não posso dizer. Mas, às vezes, parece‑me que sim. Está magra, um pouco fatigada. Olhos azuis meigos e tristes, rosto delicado, linda cabeça, um tanto curvada, voz e gestos calmos, quase tímidos... Eis a nossa Emily!.

Sem falarmos, víamo‑lo contemplar o lume.

‑ Uns crêem que a sua afeição se dirigia a quem não era merecedor; outros pensam que o casamento foi frustrado pela morte. Ninguém sabe a verdade. Emily podia‑se ter casado quantas vezes quisesse. Mas, como ela dizia, «tio, isto acabou!» Sempre alegre comigo, reservada com os demais, disposta a uma caminhada para ensinar uma rapariga na véspera do casamento (fê‑lo muitas vezes, mas nunca comparecia às cerimónias), terna e afectuosa com o tio, paciente, querida de novos e velhos, procurada por todos os que tinham dificuldades. Eis a nossa Emily!

Passou a mão pela cara, e em seguida, com um suspiro meio sufocado, ergueu a vista.

‑ Martha continua lá?

‑ Martha casou‑se, menino Davy, no segundo ano da sua estada na Austrália. Um moço de lavoura, que passava pela nossa residência para ir ao mercado com os produtos da herdade (viagem de mais de quinhentas milhas, ida e volta), quis tomá‑la por mulher (as mulheres ali são raras) e instalou‑se por sua conta no mato. A mim ela pediu que contasse a sua história ao rapaz, o que fiz. Casaram‑se e vivem a quatrocentas milhas de qualquer povoado.

‑ E a senhora Gummidge?

Ferira uma corda chocarreira, porque Peggotty soltou uma gargalhada e esfregou as pernas de alto a baixo, como fazia quando estava contente, no velho barco‑residência.

‑ Imaginem! Pois houve quem a pedisse em casamento, também, a ela!

Eu nunca vira Agnes rir com tanta vontade. Essa súbita jovialidade do antigo pescador parecera‑lhe tão deliciosa que não podia conter‑se, e quanto mais ria mais me fazia rir a mim e mais aumentava a jovialidade de Peggotty, que não cessava de esfregar as pernas.

‑ E que respondeu a senhora Gummidge? ‑ inquiri, quando me foi possível retomar a seriedade.

‑ Acredite se puder! A senhora Gummidge, em vez de dizer «Muito obrigada estou‑lhe reconhecidíssima, no entanto na minha idade já não convém mudar de estado», ou coisa parecida, agarrou numa selha que tinha à mão e enfiou‑a pela cabeça do pretendente. E eu tive de acudir aos gritos de socorro que o homem soltava.

Daniel tornou a dar uma gargalhada e eu e Agnes imitámo‑lo.

‑ Mas devo acrescentar para a defender, coitada ‑ continuou, depois de haver enxugado a cara com o lenço, porque rira até às lágrimas ‑ que ela cumpriu tudo quanto nos prometera, e até mais. É mulher muito serviçal, fiel e útil, menino Davy. Nunca a ouvi queixar‑se de estar só e abandonada, mesmo quando chegámos à colónia, onde tudo era novo para nós. Desde que saiu de Inglaterra nunca mais lamuriou a respeito do seu defunto.

‑ E agora... os últimos são os primeiros... fale‑nos do senhor Micawber. Pagou tudo o que ficara aqui a dever (até a letra de Traddles, como deves recordar‑te, Agnes) e por conseguinte podemos deduzir que tem prosperado. Quais são as últimas novidades a seu respeito?

Com um sorriso, Peggotty levou a mão à algibeira e tirou um macete chato, donde extraiu com muito cuidado uma espécie de jornal.

‑ Deve saber, menino Davy, que ao presente já deixámos a selva, porque somos ricos, e fomos instalar‑nos em Port Middlebay Harbour, que é o que lá se chama uma cidade.

‑ O senhor Micawber esteve consigo no interior?

‑ Sim, senhor, e com que entusiasmo pôs mãos à obra! Vi‑lhe a cabeça calva suar em bica, ao sol, a ponto de julgar que se derretia. Presentemente é juiz de paz.

‑ Juiz de paz! ‑ repeti.

Daniel mostrou‑me um artigo da tal gazeta ‑ era o Port Middlebay Times ‑ e eu li em voz alta o que se segue:

 

«O banquete oferecido ao nosso distinto camarada e concidadão senhor Wilkins Micawber, juiz de paz do bairro de Port Middlebay, verificou‑se ontem no salão do hotel, que estava repleto de gente. Crê‑se que seriam nada menos de quarenta e sete comensais, sem falar dos que se acomodaram no corredor e patamar. Toda a sociedade de Port Middlebay porfiou em prestar homenagem a um homem tão justamente estimado, tão vastamente dotado e tão universalmente popular. Presidiu o doutor Mell (do colégio colonial de Salem House, Port Middlebay), que tinha à direita o nosso ilustre convidado. Depois de levantada a mesa e ouvido o Non Nobis (magnificamente cantado, em que sobressaiu a bela voz do talentoso amador Wilkins Micawber Júnior), fizeram‑se com entusiasmo os brindes tradicionais de lealdade e patriotismo. O doutor Mell, num discurso que transbordava, de comoção, bebeu em seguida à saúde do nosso «distinto hóspede, ornamento da nossa cidade! Possa ele», acrescentou, «jamais a deixar, a não ser para melhoria da sua situação, e possa o seu êxito, entre nós ser de tal ordem que torne impossível semelhante melhoria!» Não é fácil descrever as aclamações que acolheram este brinde. Elevavam‑se e desciam, para subir de novo, como as ondas do oceano. Por fim estabeleceu‑se silêncio e o senhor Wilkins Micawber levantou‑se para agradecer. Longe de nós a ideia, na imperfeição relativa dos recursos actuais da nossa imprensa, tentar seguir o nosso ilustre concidadão através dos períodos harmoniosos do seu discurso elegante e floreado. Que nos baste dizer que era uma obra‑prima de eloquência, e que os passos em que ele evocou mais particularmente a origem do seu êxito e pôs de sobreaviso os jovens contra o perigo de contrair obrigações pecuniárias de que não pudessem desquitar‑se fizeram aflorar lágrimas aos olhos dos mais intrépidos. Os outros brindes foram à saúde do doutor Mell, da senhora Micawber (que saudou graciosamente da porta lateral, onde uma galáxia de beldades subiu às cadeiras para contemplar e ao mesmo tempo adornar essa cena agradável), da senhora Ridger Begs (em solteira, Micawber), da senhora Mell, de Wilkins Micawber Júnior (que deliciou a assistência declarando com humor que se sentia incapaz de agradecer com um discurso, mas que, se quisessem, o faria com uma canção}, da família da senhora Micawber (bastante conhecida na sua pátria, como todos sabem), etc., etc., etc. A cerimónia terminou, as mesas desapareceram como por encanto, e o espaço assim conquistado permitiu se iniciasse o baile. Entre os adoradores de Terpsicore, que se divertiram até ao momento em que Febo deu o sinal de partida, notou‑se em especial Wilkins Micawber Júnior assim como a encantadora menina Helena, quarta filha do doutor Mell.»

Eu olhava para o nome do doutor Mell, contente por saber que se encontrava numa situação muito melhor do que o antigo senhor Mell, ex‑prefeito do colégio da minha meninice, quando Peggotty me indicou outra coluna do jornal. O meu nome saltou à vista e eu li o seguinte:

 

«Ao Sr. David Copperfield, eminente escritor

Caro senhor

«Decorreram anos sem que eu tivesse oportunidade de rever com os meus próprios olhos essas feições familiares hoje a grande parte do mundo civilizado.

«Mais, prezado senhor, ainda que privado (pela força de circunstâncias independentes da minha vontade) da companhia do amigo e camarada de juventude, não o deixei de seguir na sua resplandecente carreira. Não me recuso ao prazer, «embora entre nós os mares bramem escumantes» (Burns), de tomar parte no festim intelectual que nos preparou.

«Não posso, pois, deixar de aproveitar esta ocasião, em que tenho portador, para lhe agradecer publicamente (em meu nome e, é justo acrescentar, no da totalidade da população de Port Middlebay) o prazer de que lhe somos todos devedores.

«Continue, caro senhor! Não é aqui desconhecido, nem sequer mal conhecido! Se bem que «afastados», não estamos «inimistosos», nem «melancólicos», nem (ouso ajuntar) «retardatários».

«Prossiga, caro senhor, o seu voo de águia. Os habitantes de Port Middlebay podem ao menos esperar segui‑lo com os olhos, com alegria, interesse e proveito!

«E entre os olhos que desta parte do globo se erguem para si, encontrará sempre, enquanto houver vida e luz, os de Wilkins Micawber, magistrado.»

 

Percebi, observando o resto do jornal, que Micawber era um dos seus colaboradores mais estimados e diligentes. Havia nesse mesmo número outra carta dele acerca de uma ponte. Havia também o anúncio da reimpressão próxima, num bonito volume, de uma colecção de cartas do mesmo autor «consideràvelmente revista e aumentada»; e, por fim, se não me engano, o artigo de fundo igualmente subscrito por Micawber.

Falámos ainda durante vário tempo de Micawber, nos serões em que Peggotty passou connosco. Daniel esteve em nossa casa durante a sua permanência em Londres (cerca de um mês) e a irmã dele e a minha tia vieram de Dover visitá‑lo. Quando nos deixou, eu e Agnes fomos despedir‑nos ao navio, e foi o último adeus que trocámos neste mundo.

Antes, porém, de partir, acompanhou‑me a Yarmouth para conhecer a inscrição que eu mandara pôr no cemitério, em memória de Ham. Enquanto, a seu pedido, copiei o texto, Daniel abaixou‑se e apanhou na sepultura um pouco de erva e um pouco de terra.

‑ É para Emily ‑ disse‑me, guardando tudo no seio ‑ Prometi‑lhe, menino Davy.

 

ÚLTIMA RETROSPECTIVA

Cheguei ao final da minha história. Olho mais uma vez para trás ‑ a última ‑ antes de terminar estas páginas.

Acompanho Agnes na estrada da vida. Rodeiam‑nos os nossos filhos e os nossos amigos. Oiço de caminho o murmúrio de numerosas vozes que não me são indiferentes.

Que rostos se me evidenciam nesta turba movediça? Ei‑los todos virados para mim, quando faço esta pergunta aos meus pensamentos.

Cá está a minha tia, com as suas lentes mais fortes. É agora uma velha de mais de oitenta anos, mas ainda erecta e capaz de percorrer sem descanso as suas seis milhas em pleno Inverno.

Sempre junto dela vejo a Peggotty, a minha antiga criada. Também usa óculos e, à noite, para coser, aproxima‑se do candeeiro, porém jamais esquece o coto de vela, a fita métrica e a caixa da costura, cuja tampa apresenta o desenho da catedral de São Paulo.

As faces e os braços da Peggotty, tão rijos e corados na minha infância (o que me levava a pensar por que é que os pássaros os não preferiam às maçãs), estão agora enrugados, e os olhos, que sombreavam parte da cara, mostram‑se indecisos, sem terem perdido inteiramente o brilho, mas o dedo rugoso, que outrora me fazia recordar uma lima, esse não mudou nada ‑ e quando vejo o meu filho mais novo agarrá‑lo para se segurar nos seus passos hesitantes entre ela e a tia, lembro‑me da nossa saleta, onde aprendi a andar. A antiga decepção da minha tia já foi compensada. É agora madrinha de uma verdadeira Betsey Trotwood, bem viva, e Dora (a secundogénita) diz que ela a enche de mimos.

Lobrigo algo de volumoso na algibeira da Peggotty: é o Livro dos Crocodilos, já muito dilacerado, com as páginas recosidas, mas a velha criada mostra‑o aos pequenos como uma relíquia preciosa. Julgo ver o meu próprio rosto de criança sair das histórias de crocodilos para se colocar à minha frente e lembrar‑me o meu antigo conhecimento com Brooks de Sheffield.

Durante as férias, surge entre o grupo dos meus filhos um velho que faz papagaios gigantescos de papel e os contempla no seu voo com indizível satisfação. Aproxima‑se de mim, enlevado, e segreda‑me com um piscar de olhos e meneios de cabeça:

‑ Trot, há‑de gostar de saber que vou acabar o memorial, quando não tiver nada entre mãos. A sua tia é a mulher mais extraordinária do mundo!

Mas quem é aquela senhora idosa, curvada, que se apoia a uma bengala e cujo rosto deixa adivinhar certos vestígios de beleza e de orgulho a contas com uma irritação senil e lacrimosa? Está no jardim e, a seu lado, avulta uma mulher magra, morena e fanada, com uma cicatriz branca no lábio. Que dizem elas?

‑ Rosa, esqueci‑me do nome deste senhor. Rosa inclina‑se e grita‑lhe:

‑ Copperfield!

‑ Muito prazer em vê‑lo, senhor Copperfield. É com desgosto que verifico que está de luto. Espero que o tempo o console.

A sua companheira, impaciente, repreende‑a, diz‑lhe que não estou de luto, pede‑lhe que olhe outra vez para mim, procura despertar‑lhe a memória.

‑ Viu o meu filho, senhor Copperfield? ‑ pergunta a senhora idosa. ‑ Reconciliaram‑se?

Depois, fitando‑me, leva a mão à testa e começa a gemer. De repente exclama com voz arrepiante:

‑ Rosa, chega aqui. Ele morreu!

Rosa, ajoelhada aos pés da dama, ora lhe ralha ora a acaricia. Tão depressa lhe diz com veemência «Eu amava‑o mais que a senhora!», tão depressa a tranquiliza para a adormecer no peito como uma criança doente.

É assim que eu as deixo, é assim que as torno a encontrar, é assim que elas passam o tempo, ano após ano.

Que navio é este que regressa da índia e quem é esta inglesa casada com um velho ricaço escocês de orelhas grandes, que resmunga sem cessar? É realmente Julia Mills?

Sim, é Julia Mills, bela e impertinente, acompanhada de um preto que lhe apresenta cartas e bilhetes de visita numa bandeja, e de uma mulher de tom acobreado, trajada de linho e toucada de um lenço de cor viva; esta traz‑lhe o almoço ao quarto de vestir. Mas Julia já não escreve o seu diário, questiona sem fim com o ricaço escocês, que é uma espécie de urso branco de pêlo sujo. Nada em dinheiro. Nem pensa noutra coisa, nem fala de mais nada. Preferia‑a quando se preocupava com o deserto do Sara.

Quem sabe se ela agora está nesse deserto? Embora Julia possua uma casa soberba e viva em grande sociedade, dando todos os dias jantares sumptuosos, não vejo junto dela nada que viceje, nada que possa dar flor e fruto. O que Julia chama «a sociedade», eu conheço. Nela figura, entre outros, Jack Maldon, instalado na sua sinecurazinha, rindo-se de quem lha deu e referindo‑se ao doutor Strong como alguém «fora de moda». Mas quando a «sociedade» é a designação proferida por essas senhoras e cavalheiros sem estofo, quando a sua educação consiste na indiferença que professam por tudo que pode servir a humanidade, ou prejudicá‑la, eu suponho, Julia, que estás perdida nesse Sara famoso e que devias fazer tudo para sair de lá.

E aqui temos o doutor, sempre nosso bom amigo, trabalhando no seu Dicionário (mais ou menos na letra D) e vivendo feliz no seu lar, em companhia da mulher. E eis também o Veterano, presentemente com muito menos meios e muito pouco da influência de que dispunha outrora.

Chego em seguida a casa do meu bom amigo Traddles, que trabalha no seu escritório do Temple; parece muito ocupado, e os cabelos (nos pontos da cabeça em que não é calvo) estão mais do que nunca revoltos sob a fricção constante da peruca de advogado. A mesa cobre‑se de rimas de autos, e eu digo, lançando um olhar circular à sala:

‑ Se Sophy fosse o teu escrevente, Traddles, teria bastante que fazer!

‑ É como dizes, Copperfield. Foram belos tempos, assim como no tribunal de Holborn. Como vão longe!

‑ Quando ela te vaticinava que serias juiz? Mas não era um boato insistente.

‑ Em todo o caso, se vier a ser um dia...

‑ Ora, bem sabes que virás a ser.

‑ Pois então, Copperfield, quando o for, contarei a história como sempre a contei.

Saímos de braço dado. Vou jantar a casa do Traddles. É o dia de anos de Sophy, e, de caminho, ele fala‑me da sorte que teve.

‑ Pude realmente fazer, caro Copperfield, tudo o que ambicionava. O reverendo Horace obteve o curato de quatrocentas e cinquenta libras anuais; os meus dois filhos vão receber educação aprimorada e tornar‑se estudantes sérios e bons rapazes. As minhas cunhadas, três casaram, e bem, três outras vivem connosco, e as três restantes dirigem a casa do pai desde a morte da minha sogra. São todas felizes.

‑ Salvo... ‑ observei.

‑ Salvo a Beldade. Foi uma tristeza ter casado com esse aventureiro. Mas era brilhante e romântico! Tinha‑a fascinado. Enfim, agora que se encontra em segurança, livre dele, a nossa obrigação é restituir‑lhe a alegria.

A casa de Traddles é uma dessas (ou, pelo menos, podia ser) que eles se entretinham a dividir e mobilar em imaginação durante os seus passeios à tarde. É grande, mas ainda assim tem processos no quarto de vestir, lado a lado com sapatos. Ele e a mulher ocupam a água‑furtada para deixar espaço livre à Beldade e às irmãs. Nunca há ali um compartimento disponível, porque acontece estarem, por uma razão ou outra, mais algumas das irmãs. Eis um grupo que desce a escada de tropel, quando entramos, e que deixa Traddles sem fôlego com tantos beijos e abraços. Como é o aniversário de Sophy, as raparigas estão quase todas, solteiras e casadas, com os respectivos maridos, o irmão de um dos maridos, o primo de outro, e a irmã de um terceiro, que se me afigura ser noiva do primo. Traddles, sempre o mesmo, simples e natural, senta‑se como um patriarca no extremo da mesa enorme, e Sophy, radiante, contempla‑o da outra extremidade, através de um espaço em que o esplendor não provém certamente das colheres de estanho...

E agora, que terminei a minha tarefa, reprimo o desejo que me toma de me demorar nestas evocações. Todos estes rostos empalidecem. Mas há um que me ilumina como uma luz celeste, graças à qual tudo mais se torna visível, e que brilha acima dos outros. E este permanece.

Volto a cabeça e vejo‑o, na sua bela serenidade, junto de mim. A candeia baixa, porque escrevi muito pela noite adiante; mas a querida presença (sem a qual eu já não seria nada) não me deixou um momento.

Ó Agnes! Ó minha alma! Possa o teu rosto estar ainda a meu lado quando eu acabar de vez os meus dias, e possa eu, na hora em que a realidade me fugir como estas sombras que presentemente me cercam, encontrar‑te sempre à minha beira, de mão erguida para o Céu!



 

[1] Deo Valente, querendo Deus.

[2] Alusão a versos escoceses de Robert Burns.

[3] O autor joga com a palavra «Heep», que soa como «Heap» (pilha, montão), tal se dissesse «monte de infâmia», etc.

[4] Versos do poeta escocês Robert Burns.

[5] Adriaen van Ostade, pintor holandês (1610‑84), especializado em cenas de tabernas, entre fumo e bebidas.

[6] Murdstone, palavra que começa pelas mesmas letras de Murderer (assassino).

[7] Em Inglaterra podem ser nomeados juízes vultos eminentes do foro.

 

                                                                                            Charles Dickens

 

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