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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DELÍRIO / G. H. Ephron
DELÍRIO / G. H. Ephron

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

D E L Í R I O

 

Especialista em comportamento, o psicólogo forense dr. Peter Zak testemunha regularmente em julgamentos, expondo os resultados de sua avaliação da sanidade mental dos réus.

Desta vez o advogado Chip Ferguson, amigo de Zak, solicita sua presença na cena de um crime: seu cliente Nick Babikian acaba de encontrar a mulher brutalmente esfaqueada e flutuando na piscina da casa. Chip quer que Zak avalie o estado mental de Nick - um homem brilhante mas paranóico, que estava trabalhando em casa quando a esposa foi assassinada, tornando-se, assim, o principal suspeito. Nick jura que é inocente, mas não tem nenhuma prova além de sua declaração de que a esposa o estava traindo e de que, sem sombra de dúvida, foi o amante dela quem cometeu o crime.        

A medida que participa da investigação, Zak se identifica cada vez mais com Nick. No passado, seu diagnóstico no tribunal sobre a condição psíquica de um réu levou o criminoso a buscar vingança assassinando a esposa de Zak.

Quando sua casa é misteriosamente invadida e uma peça de cerâmica que pertencera a sua esposa lhe é remetida pelo correio, Zak se convence de que o assassino de sua mulher, um homem, que supostamente devia estar cumprindo, pena na prisão, está, de alguma forma, atormentando sua vida, pessoal e profissional.

Cabe a Zak, agora, separar realidade de fantasia, definir os limites entre sua própria sanidade mental e a contagiosa paranóia de Nick para destrinchar a intrincada teia que ameaça engolfá-lo…

 

 

Acordei ávido por uma melancia. Minha boca aguava para dar uma mordida numa suculenta fatia. Abri os olhos. Estava deitado de bruços e meu braço pendia na beirada da cama. Por um instante, não sabia onde me encontrava. Os números verdes que cintilavam num relógio digital marcavam duas horas da manhã. Mas os números de meu relógio não eram verdes. Luzes e sombras dançavam sobre o papel de parede florido. Com certeza, não era meu quarto.

O cheiro de melancia ainda pairava no ar, agora superado pelo intoxicante odor de almíscar, como um queijo brie. Respirei fundo, senti uma deliciosa languidez, enquanto os fortes aromas que penetravam em minhas narinas atingiam meu cérebro.

Fechei os olhos e saboreei a torrente de memória. Estava na casa de Annie. Meu carro estava na mecânica — uma correia quebrada bastou para eu chamar o guincho. Annie fora me buscar no trabalho para jantarmos em sua casa. E ainda não havíamos comido. Quase setecentos gramas de filé ainda jaziam sobre o balcão da cozinha, ao lado de um punhado de aspargos, pão francês e uma garrafa de Ridge Zin.

O odor adocicado vinha de Annie. O cheiro de queijo brie vinha de nós dois. Não deixamos louça suja, mas somente uma trilha de roupas espalhadas da cozinha até a porta do quarto de Annie. Perguntei-me se a perícia conseguiria recolher todas as impressões digitais nas paredes e no carpete, já que haveria muitas, percorrendo nosso lento trajeto até a cama.

Levamos quase um ano para... enfim, essa é outra história. Minha mulher, Kate, teria ficado horrorizada com a demora. Ela não gostaria de me ver enterrado a seu lado no jazigo. Mas eu não estava pronto, não estava preparado, e continuei despreparado por algum tempo. Sempre dizia a meus pacientes:

— Escute seus sentimentos. Ouça-os e faça aquilo que estiver pronto para fazer. O ciclo da dor tem seu próprio ritmo.

Depois de tanto tempo, perguntei-me seriamente se tudo isso ainda funcionava. Sim, funcionava, e muito bem.

Rolei para o lado. Annie estava acordada, observando-me. Uma auréola de cachos avermelhados, semi-iluminada por um par de velas sobre o criado-mudo, rodeava o rosto dela. A luz dourada acariciava os quadris, a curva da cintura e percorria o ombro nu. O sorriso de Annie irradiava contentamento.

— Acordou? — ela perguntou.

Estendi a mão e rocei gentilmente a face macia, o nariz, os lábios. Ela sugou meus dedos. Continuei a descer, passei pela protuberância do seio e tracei uma linha ao redor do mamilo. Annie suspirou e arqueou as costas. Puxei-a para mim, deslizei as mãos pelas costas dela e apertei sua nádega.

— Pelo jeito, está bem acordado — ela disse.

Era verdade. Eu sorri. Após uma espera tão longa, acabara acumulando libido.

Enquanto tomava Annie nos braços, a lembrança do corpo de Kate veio a mim. Mais delicada, menor. Kate era miudinha. Lembrei-me de como a envolvia em meu braço quando caminhávamos, do cuidado que eu tinha quando me deitava sobre ela. Eu precisava descobrir o que lhe dava prazer, persuadi-la. Kate gostava que eu estivesse no controle. Annie era o oposto. Alta como eu, vigorosa e tão ávida pelo ato amoroso quanto eu. Não havia dúvidas quanto ao que ela queria, e eu me deliciava por fazê-la regozijar. O prazer de dar e se fundir. Eu queria mais, e mais.

Nossos lábios se encontraram, e o que começou como um beijo preguiçoso tornou-se fogoso e urgente. Deitei-me sobre Annie e pressionei meu corpo contra o dela. Sob a pele macia, os músculos estavam tensos e firmes; pude senti-la erguendo-se para me receber. Ela passou as pernas ao redor de minha cintura.

Eu queria tocar e provar cada centímetro daquele corpo. Lembrei-me de que eram apenas duas horas da manhã. A noite ainda era uma criança. Não precisava ter pressa.

Eu me deliciava no ventre sedoso quando um ruído agudo ecoou pelo quarto, como se um grilo tentasse saltar de um bolso.

— Droga — dissemos juntos. Era meu bip ou o de Annie?

O som parou. Annie me abraçou e resmungou. Mergulhei o rosto entre seus seios e fingi que não houvera interrupção. Trinta segundos depois, o bip soou de novo, como eu previra. Não havia esperança. Mesmo sendo final de semana, eu estava de plantão — sempre estava de plantão — e não me chamariam a menos que alguma coisa, ou alguém, da unidade neuropsiquiátrica estivesse fora de controle.

Rolei para um lado da cama, e Annie rolou para o outro. Cambaleei pela trilha de roupas, tentando lembrar onde havia largado minha calça. Encontrei-a no corredor e peguei o bip. Quando apertei o botão, o som, parou. O número de telefone no visor não era do instituto. Quem mais me chamaria àquela hora?

Meu estômago se contraiu. Por favor, Deus, não minha mãe... Ela morava na casa contígua à minha e parecia em perfeito estado de saúde quando eu a vira no início da noite.

Precipitei-me pelo corredor. Onde eu havia deixado meu casaco? O celular estava no bolso.

Na cozinha, tropecei numa das botas de Annie.

— Droga! — exclamei e comecei a mancar. O casaco estava pendurado numa cadeira. Peguei meu celular e digitei os números. Enquanto mancava de volta para o quarto, chutei a bota de Annie.

Ao primeiro toque, uma pessoa atendeu.

— Ferguson.

De repente, foi como se alguém tivesse acendido a luz e os contornos dos objetos do quarto passassem de obscuros a nítidos. Chip Ferguson era ex-defensor público, agora com escritório particular. Eu o ajudara a esclarecer vários casos como especialista forense, sempre que Chip precisava de um neuropsicólogo que pudesse explicar aos jurados por que a memória de uma testemunha podia falhar ou como a dependência química de uma garota podia alterar sua capacidade de discernimento. Não trabalhávamos juntos naquele momento, mas eu sabia que ele só ligaria no meio da noite se a vida de uma pessoa dependesse disso.

— Chip — eu sussurrei para Annie, que estava deitada na cama, nua e linda entre os lençóis. Tudo que faltava eram pétalas de rosa... e tempo.

Annie ergueu as sobrancelhas, surpresa. Não seria de estranhar que Chip a chamasse no meio da madrugada. Ela fizera várias investigações pára ele na época em que estavam na defesa pública. Agora ambos haviam se juntado para trabalhar no setor privado. Portanto, o fato de Chip me procurar era estranho.

— É Peter — eu disse —, e é bom que seja importante. Annie saiu da cama e desapareceu no banheiro.

— Peter, lamento acordá-lo, mas preciso de sua ajuda — Chip disse.

Eu queria gritar: As duas da manhã?

— Alguém que conheço há anos acaba de telefonar. Nick Babikian. Ele me pareceu muito nervoso e pouco coerente. Pediu-me que fosse vê-lo.

— O que isso tem a ver comigo?

— Estou preocupado com ele — Chip confessou. — Éramos colegas no clube de xadrez da escola.

— Clube de xadrez? — Era uma associação estranha para mim. Tentei imaginar Chip como um jovem jogador de xadrez. Não foi fácil visualizar aquele homem convencional, usando terno e gravata, jogando xadrez.

— Na verdade, eu o conheci no segundo ano. Acho que fui seu único amigo na escola. Ele não faz amizades facilmente. É um sujeito esquisito. Intenso. Dono do próprio negócio; ganhou rios de dinheiro inventando jogos de computador. Ele mora numa zona privilegiada de Weston com a mulher e a mãe, que tem mal de Alzheimer. Eu já o ajudei profissionalmente. Não sei qual é o problema agora, mas ele está perturbado. Mal consegue articular as palavras.

— Acha que ele está tendo um colapso?

— Peter, sei quando algo vai além de minha compreensão, e este é um desses casos. Pensei em sugerir que telefonasse para um serviço de auxílio psicológico ou que fosse ao pronto-socorro, mas ele nunca confiou em estranhos. Não sei o que Nick pode fazer, e estou certo de que não quero tomar uma atitude errada. Você lida com pessoas em crise o tempo todo.

Eu já sabia o que estava por vir. Pensei outra vez na melancia e nas pétalas de rosas. O som da torneira aberta no banheiro me trouxe ao presente. A noite havia terminado.

— Poderia encontrar-me lá? — Chip pediu.

— Claro — eu concordei, embora relutante.

— É em Weston. Saindo da Rota 117... — Encontrei papel e lápis no criado-mudo. Chip passou o endereço com detalhes. Eu conhecia a região. Era abarrotada de mansões ocultas entre as colinas. — Número 238.

Chip continuou a falar. Annie saiu do banheiro. Tudo em relação a ela era longo. Os membros. O pescoço. E as curvas maravilhosas. Sob a penumbra, os ombros, os seios, o ventre e as pernas eram luminosos, maculados apenas por uma bolha vermelha na lateral da coxa. Aproximei-me e toquei o sinal levemente.

— Eu me queimei — ela murmurou com um sorriso. Abaixei-me e beijei a queimadura. Eu poderia continuar o trajeto facilmente.

— ...agora mesmo — Chip dizia. Ele se deteve. — Peter, está me ouvindo?

— Desculpe-me. Eu me distraí por um minuto. O que disse?

— Estou indo para lá agora mesmo. Quanto tempo você acha que vai levar?

Então eu me lembrei. Estava sem carro. Cobri o telefone com a mão.

— Pode me levar a Weston? — perguntei num sussurro.

Annie assentiu. Pela expressão dela, percebi que já esperava por isso. Desapareceu novamente no banheiro. Um segundo depois, o chuveiro foi ligado.

— Talvez meia hora, um pouco mais — eu disse a Chip. Depois de desligar, eu me sentei. Pelo menos não haveria trânsito àquela hora. Vinte minutos para chegar, uma hora no máximo para determinar a ajuda de que Nick Babikian necessitaria, vinte minutos para voltar, e ainda restariam algumas horas para que eu e Annie continuássemos de onde havíamos parado.

Estava na cozinha, vestindo a calça, quando o telefone de Annie tocou. Quem estaria ligando no meio da madrugada? Dois toques. Três. Annie ainda estava no chuveiro. Escutei um grito abafado e depois ouvi:

— ...atenda! Peguei o telefone. Alguém estava ofegante.

— Annie? — A voz do homem era cortante. — É Annie, a rainha da chupada? — Ele riu. — Estou querendo me divertir, Annie. Aqui diz "Ligue para Annie". — Ao fundo, eu ouvia música e vozes. — Alô? Annie?

Eu queria entrar no fio do telefone e estrangular o sujeito.

— Quem é você e do que está falando? — esbravejei.

— O quê?

— Vá se ferrar! — gritei.

— Ei, calma, cara. Não se ofenda!

— Se ligar de novo, vou arrancar sua cabeça!

— Agora você me assustou, seu babaca — o homem disse, zombando de mim, e desligou.

Coloquei o telefone no gancho. Meu estômago se contraiu de novo. Não conseguia suportar a idéia de alguém babando em Annie.

Ela apareceu na cozinha, fechando o zíper da calça. Tentei manter a calma.

— Você acabou de receber um telefonema obsceno.

— Por que atendeu?

— Você me pediu para atender.

— Eu disse não atenda!

— Não foi o que eu escutei.

— Sei — Annie disse, abotoando a blusa de algodão. — Ando recebendo trotes ultimamente.

— Ultimamente? — Naquele momento, meu estômago foi parar na garganta. — Desde quando?

— Faz uma semana. Talvez mais. — Annie evitava olhar para mim. — Parece que alguém andou divulgando meu nome e telefone em bares.

— Você avisou a polícia? — perguntei.

— A polícia? Está brincando? — Annie me encarou. Seu olhar suavizou. — Peter, não banque o protetor. Já sou adulta.

Annie ajeitou a boneca que se achava sobre uma cadeira ao lado da porta da cozinha. A boneca era um contra-senso em relação ao "sei me cuidar" de Annie, tanto quanto o papel de parede florido.

— Um imbecil ligou para você. Não gosto disso.

— Eu também não. Tenho tirado o telefone do gancho durante a noite. Acho que hoje me distraí por sua causa.

Annie me beijou lenta e demoradamente. Ela cheirava a sabonete, e seus cabelos ainda estavam úmidos. Nós nos entreolhamos.

— E não quero esperar mais um ano para a próxima vez — ela acrescentou.

— Consegue esperar duas horas?

— Não sei.

— Então, somos dois — eu disse, fitando os olhos acinzentados. — É melhor acostumar-se com meu protecionismo. E o que faço quando gosto de alguém.

— Isso me irrita.

— Que pena. — Olhei para o relógio. — Precisamos ir.

 

Aquela hora, sem carros nas ruas e com um ou outro mendigo dormindo na frente de uma loja, a zona leste de Somerville parecia um cenário montado num palco de teatro. Os prédios de apartamentos à espera que as luzes se acendessem e os atores entrassem em cena. O único movimento era o de dois cães vira-latas que vasculhavam uma lata de lixo.

Annie dirigia seu jipe habilmente, desviando dos buracos no asfalto. Contei-lhe o que Chip havia me dito ao telefone. Ela já ouvira aquele nome. Nick Babikian.

— Nós o ajudamos seis meses atrás — Annie disse. — Logo depois que abrimos o escritório. Ele tinha um funcionário problemático. Furto e vandalismo. E se não me falha a memória, houve também ameaça de bomba. Foi um de nossos primeiros casos. No entanto, não tivemos muita papelada.

Eu sorri. Agora que não estavam mais na área da defensoria pública, Annie e Chip tinham de pagar contas. Precisavam ser muito mais ecumênicos em relação aos casos que aceitavam.

— Como ele é? — perguntei, preparando-me para conhecê-lo.

— Nunca o vi. Só sei que ele paga as contas em dia. Annie parou num sinal vermelho e esperou. Ela apertava o acelerador e tamborilava com os dedos no volante, impaciente. Fiquei aliviado por não estar dirigindo. Eu teria avançado o sinal vermelho, para alegria do policial que observava de dentro da viatura parada na esquina.

A luz verde acendeu e Annie prosseguiu, passando por várias oficinas e lojas. Estávamos próximos de uma loja de conveniência e senti o aroma de café. Tentei suprimir um gemido, depois ponderei. Valia a pena perder dois minutos para nos mantermos alertas na próxima hora. Não era preciso refletir.

— Annie... — comecei.

— Tudo bem — ela murmurou e estacionou o carro. Um minuto depois, estávamos de novo a caminho e eu queimava minha língua com um delicioso café fumegante. Continuamos em direção a East Cambridge, onde os restaurantes variavam da cozinha portuguesa à italiana, e descemos até Central Square. Um pequeno desvio de dois quarteirões seria o suficiente para estar em minha casa. Contudo, rumamos para a entrada do Pike. Não podíamos ver o rio, mas eu sabia que ele estava lá. Era quase possível sentir o odor. Naquela noite o luar estaria refletido nas águas plácidas.

— Então, quando poderei ensiná-la a remar? — perguntei.

Annie tinha acabado de tomar um gole de café. Ela engasgou com o líquido.

— E nisso que tenho de me meter?

— E somente uma parte daquilo em que você se meteu — eu disse, e apertei-lhe a coxa. — Além do mais, você prometeu: se eu tentasse patinar, você aprenderia a remar.

— Você não gostou de patinar.

— Gostei — protestei. — Mas não o suficiente para repetir a experiência. Foi preciso uma semana para meus pés se recuperarem.

Eu imaginava que meus tornozelos ficariam doloridos, mas a sola dos pés parecia marcada por ferro em brasa.

— Vamos ver. Talvez.

— Nada de talvez.

Annie virou na 128. Pegamos um desvio e nos dirigimos à rodovia que nos levaria a Weston. Gradualmente, a paisagem passou de industrial para residencial de alta classe. Em Weston, as casas que bordejavam o asfalto eram uma miscelânea de relíquias vitorianas, casarões e mansões com colunas na fachada.

Viramos e seguimos por uma estrada mais estreita. As casas ali eram modernas, discretamente localizadas na encosta da colina. Annie reduziu a velocidade para que eu pudesse ver o número das casas. Ela parou no final da rua, que a partir daquele ponto se estreitava para dentro de um bosque.

— Por que não me deixa aqui? — sugeri.

No mesmo instante Chip apareceu. Ele parou diante de nós.

— Droga — eu murmurei. Por que aquele detalhe não me ocorrera antes? Qualquer idiota que nos visse perceberia que Annie e eu havíamos passado a noite juntos. E Chip estava longe de ser idiota. — Tudo bem para você? — perguntei, segurando a mão de Annie.

Chip saiu do carro e aproximou-se, protegendo os olhos dos faróis do jipe.

— Annie? — ele reconheceu o veículo.

— Se isso fosse um problema para mim, eu teria pedido para você chamar um táxi — Annie respondeu e abriu a janela. Ela sorriu para Chip. — O carro de Peter está na oficina.

Saí do automóvel. Chip olhou para o jipe e depois para mim. Ele sorriu, e eu pude ler seu pensamento: Já estava mais do que na hora!

— Não quer nos acompanhar, Annie, para ver de que se trata? — ele pediu. — Francamente, não sei o que há, mas tenho um péssimo pressentimento.

Annie assentiu.

Caminhamos sobre os pedriscos e passamos pelos portões de segurança. Atravessamos um trecho entre as árvores e, quando emergirmos das sombras, uma residência térrea surgiu diante de nós. Sob o telhado plano, as janelas davam para a rua e a casa era rodeada por árvores e arbustos. Havia uma garagem para dois carros numa das laterais. Parecia que todas as luzes do lugar estavam acesas.

Chip tocou a campainha. Esperamos. Um sopro de brisa moveu as folhas. Nenhum som se ouvia dentro da casa. Chip tocou de novo e bateu na porta.

— Talvez ele tenha ido dormir — Chip comentou. Então, o olho mágico da porta escureceu. Alguém nos observava.

— Nick, sou eu, Chip!

A porta se abriu com uma corrente limitando a abertura.

— Quem são essas pessoas? — perguntou uma voz de homem.

— Eu lhe disse que viria com um colega de trabalho.

— Estou vendo duas pessoas, Chip — a voz disse, antes de fechar a porta.

Chip tocou a campainha e gritou:

— Nick, seu babaca! Estamos aqui para ajudá-lo! Trabalho com eles. Confio neles. Você também pode confiar.

— Não vou deixá-los entrar — ele falou de trás da porta. ;;   — Abra, seu idiota! — Chip exclamou, exasperado.

A porta foi aberta, dessa vez sem a corrente. Nick Babikian nos observou à soleira. Sua constituição física era comum. Ele usava camisa pólo branca e calça jeans. Os olhos escuros brilhavam sob a aba do boné azul.

— Pedi para você vir. Não sei quem são essas pessoas e...

— Sr. Babikian — eu disse, interrompendo-o. — Meu nome é Peter Zak. Sou psicólogo, e conheço Chip há anos. Trabalho com ele e Annie Squires, que está aqui a meu lado. Posso garantir que Chip deve se importar muito com o senhor porque ele teve a coragem de nos arrastar até aqui no meio da noite.

Os olhos de Nick estavam ocultos sob o boné. Eu não podia ver sua expressão para saber se causara algum efeito nele. Continuei:

— Estamos aqui para ajudar. Não diremos nem faremos nada que o senhor não queira.

Nick abriu a boca e fechou-a em seguida. Ele fez menção de virar-se, porém hesitou. Parecia um brinquedo cuja pilha começava a acabar. Olhou para Chip.  

— Pode confiar neles, Nick. É sério.                  

Os ombros de Nick tombaram. Então, ele baixou a cabeça e escancarou a porta. Arrastando os pés como um sonâmbulo, acompanhou-nos até uma ampla sala de estar. O lugar era imaculadamente limpo: piso de mármore branco, paredes brancas, cadeiras cromadas estofadas de couro preto e mesas de vidro e cromo.

Parei e esquadrinhei a sala. Havia máscaras penduradas nas paredes e uma figura horrorosa de borracha, cuja expressão risonha estava enfeitada com penas pretas e vermelhas. Ao lado desta, um rosto humano distorcido com um dos olhos parcialmente fechado observava de soslaio. Uma máscara de diabo com chifres brancos e língua vermelha sorria. Aquelas máscaras eram sensuais e grotescas ao mesmo tempo.

Havia outras, enfeitadas com penas de pássaros. Numa delas, o crânio negro de um pássaro e o bico formavam o nariz; penas pretas e coloridas moldavam a parte superior de um rosto. Essa me lembrou uma das pranchas de Rorschach.

Esquadrinhei a sala novamente. Apesar das expressões, as máscaras pareciam sem emoção. E apesar dos olhos vazados, eu tive a sufocante sensação de que estava sendo observado.

Já havia chegado a uma conclusão óbvia. Nick Babikian era paranóico. Máscaras eram uma estranha decoração para um homem desconfiado, que suspeitava de tudo e de todos.

Annie e Chip tinham seguido Nick à cozinha, e juntei-me a eles. Nós três nos sentamos. Havia pratos sujos sobre a mesa, os resquícios de uma refeição de ovos mexidos e torradas. Um jantar tardio ou um desjejum antecipado? Meu estômago roncou e o cheiro de bacon frito despertou meu apetite. Annie e eu não havíamos jantado. Nick recolheu os pratos sujos.

— Não se incomode — Chip disse. — Conte-nos o que aconteceu.

Nick não respondeu. Fitou os próprios pés. Os sapatos estavam manchados de pontos avermelhados. Olhei para Annie e percebi que ela também havia notado.

— Sua mãe está bem? — Chip perguntou. — Ela está em casa?

— Ela teve fome — Nick contou. — Eu preparei o café da manhã. — Ele apontou para a louça. — É assim com o Alzheimer.

— Onde ela está?

— Eu a levei... — Nick olhou ao redor, como se as palavras pudessem aparecer no ar. — Eu a levei a Oakvale House.

Eu conhecia o local. Era uma casa de repouso. Nós havíamos passado em frente à instituição a caminho da casa de Nick.

— Quando? — Chip indagou.

— Eles não queriam interná-la, mas eu tinha de deixá-la lá.

— Quando? — Chip perguntou, mais alto dessa vez.

— Acabei de chegar.

Eu podia imaginar a cena. Oakvale era um lugar agradável e bem administrado, mas não estava equipado para receber portadores do mal de Alzheimer. Além do mais, era estranho deixar uma pessoa idosa na porta de uma casa de repouso no meio da noite, tanto quanto deixar um bebê na porta de uma igreja.

— Não há ninguém aqui para cuidar dela, agora — Nick acrescentou.

— E sua mulher? — Chip perguntou. — Onde está Lisa?

— Ela está... — A voz de Nick falhou. — Oh, Deus, ela está morta! Ele a matou.

Nós três, em uníssono, soltamos uma exclamação abafada.

— O que quer dizer com ele a matou? — Chip indagou em tom severo.

— Eu estava trabalhando. Sempre trabalho até tarde. No porão. Quando subi, havia sangue por toda parte. Minha mãe acordou. Ela apareceu e começou a gritar sem parar.

Chip pôs-se de pé.

— Onde está Lisa? Tem certeza de que está morta? Nick fitou o vazio com expressão de fadiga.

— Está morta, sim. Está lá fora. — Ele apontou para os fundos da casa com um dedo trêmulo.

Nós o seguimos através da sala de estar para um jardim-de-inverno. O aposento estava frio, com as portas de vidro escancaradas para o jardim dos fundos. Eu mal registrei o sofá de couro e as poltronas que davam um toque de suavidade à decoração do cômodo, tampouco prestei atenção às máscaras nas paredes. Junto à mesa de centro havia uma grande mancha de sangue batido, no piso de madeira. Uma trilha vermelha atravessava o aposento, até a porta de vidro. Havia pegadas vermelhas por todos os lados.

— Não toquem em nada — Annie avisou. — É a cena do crime.

Com cautela, Nick Babikian aproximou-se da porta. Ele apertou um interruptor e as luzes do jardim se acenderam, iluminando a piscina. Nick gemeu, como se alguém o tivesse esmurrado no estômago. De onde eu me encontrava, mesmo através da fina bruma que flutuava sobre a piscina, vi uma mulher boiando de bruços junto à borda. Os longos cabelos loiros flutuavam soltos ao redor dela na água tingida de rosa.

Senti uma súbita onda de náusea; apoiei-me no encosto de uma poltrona e me concentrei na respiração a fim de manter o equilíbrio e evitar que as paredes parecessem girar.

Annie esgueirou-se ao longo da parede, evitando a área ensangüentada. Ela saiu e caminhou até a piscina. O corpo boiava inerte na superfície, a cabeça batendo no ladrilho azul. As costas, as nádegas e as pernas nuas estavam pálidos e perfeitas.

Nick Babikian parecia em estado de choque. O que, em nome de Deus, havia acontecido ali?

Annie abaixou-se, esticou o braço e tocou o pescoço da mulher. Então levantou-se e meneou a cabeça para nós. Ela retornou, tão cuidadosa quanto antes. Estava assustada e séria.

— Devemos voltar à cozinha — ela propôs. — Para não atrapalhar os investigadores.

— Investigadores? — Nick perguntou, voltando a si.

— Nick, temos de chamar a polícia — Chip informou.

— Polícia? De jeito nenhum! Não em minha casa. — De repente, ele parecia muito desperto e lúcido.

Chip tocou-o no ombro. Aproximou o rosto e falou devagar e com firmeza.

— Você me ligou porque sua mulher está morta. Sabia que eu poderia aconselhá-lo. E minha opinião como advogado é de que temos de chamar a polícia. E é melhor que você esteja aqui quando eles chegarem.

A expressão de Nick esmoreceu. Ele olhou para a piscina.

— Certo — murmurou. — Odeio isso, mas tudo bem. — Ele voltou à cozinha e nós o acompanhamos. Nick se jogou numa cadeira. — Liguem.

Havia um telefone na parede da cozinha. Annie tirou o receptor do gancho e discou. Calma, ela forneceu as informações necessárias. Em seguida caminhou para perto de mim e segurou minha mão. Eu a apertei, lembrando-me de como eu nunca mais queria perder alguém, como havia perdido Kate, como havia perdido minha amiga Channing Temple.

Nick estava encostado na mesa, fitando o vazio. Parecia quase em transe. Nas horas que se seguiram à morte de Kate, eu mal conseguira falar. Sabia que aquela inércia é uma reação normal quando o mundo de uma pessoa vira de pernas para o ar.

Inclinei-me diante de Nick. Fitei seus olhos, e vi meu próprio reflexo. De certa forma, percebi que aquela era uma oportunidade que eu nunca tivera antes. Poucas horas depois de um assassinato, eu conversava com alguém que provavelmente seria o principal suspeito do crime, e ainda testemunhava a cena em primeira mão. Em geral, eu só era chamado às vésperas do julgamento. Os relatórios e depoimentos que eu examinava eram sempre desatualizados e sem vida; as fotos da cena do crime eram tiradas por um policial que escolhia aleatoriamente o que incluir ou não na imagem.

Minha primeira pergunta era: Nick estava conectado ao presente?

— Você sabe onde está? — indaguei-lhe, sabendo muito bem que a pergunta soava vazia.

— Estou em minha casa, doutor. — A sombra de um sorriso passou pelo rosto de Nick. — Hoje é sábado. — Ele verificou o relógio. — Domingo, para ser mais preciso. E minha mulher... — A voz falhou. — Minha mulher está morta na piscina. — Nick lutou para recobrar o controle. — Ele a matou.

— Ele, quem? — eu quis saber.

Nick desviou o olhar. Parecia não ter escutado a pergunta.

— Ele, quem? — repeti mais alto.

— Quem? — Nick olhou para os dois lados. — Ele... está sempre aqui, observando.

— Ele está aqui agora? — perguntei.

— Agora? — Nick fez menção de levantar-se, como se a possibilidade lhe tivesse ocorrido. Olhou para Chip, para Annie e depois para mim. Então se agarrou à beirada da mesa. — Não sei.

Um arrepio percorreu minha espinha. Medo e ansiedade tão potentes podiam ser contagiosos.

Luzes começaram a piscar entre as árvores. Nick aproximou-se da janela e olhou para fora. As veias de seu pescoço saltaram enquanto ele observava as viaturas. Ele me encarou rapidamente.

Chip levantou-se e ajeitou o paletó.

— Eu o aconselho a não dizer nada enquanto a polícia estiver aqui — ele disse a Nick.

— Eles não pensarão que cometi o crime? — Nick perguntou-lhe.

— Não se preocupe com o que pensam — Chip acalmou-o. — Quando declaram "tudo que disser poderá ser usado contra você", estão falando a sério. Não confie em ninguém.

— Não confio em ninguém — ele repetiu, como se estivesse decorando uma lição.

Ao observar Nick sentar-se à mesa da cozinha e apoiar a cabeça entre as mãos, continuei a refletir. Um homem encontra a esposa assassinada. Ele prepara o café da manhã, lava a panela antes de fazer a mala da mãe e levá-la à casa de repouso. Então, ele tem a presença de espírito de telefonar para um amigo que, por acaso, é advogado... Parecia uma estranha ordem de prioridades.

 

Annie foi até a garagem para receber a polícia. Momentos depois, quatro homens uniformizados e dois policiais à paisana entraram na cozinha. Chip conversou com um dos oficiais sem uniforme que parecia ser o encarregado. Era um homem corpulento de cabelos negros e devia ter uns 35 anos.

Chip apontou para a piscina. O policial virou o rosto, olhou naquela direção e ficou pálido. Ele estremeceu, e sua expressão tornou-se dura ao virar-se para encarar Nick. De certa forma, achei um consolo saber que um detetive acostumado a lidar com mortes violentas ainda podia ser afetado por um crime hediondo.

Então o olhar do oficial dirigiu-se a mim.

— O que diabos está acontecendo aqui? — Ele encarou Chip. — Como advogado, você deve saber que... — o policial explodiu.

— Não sabíamos que se tratava de um assassinato até chegarmos aqui — Chip explicou. — Nós ligamos para vocês logo em seguida.

— Tomara que vocês não tenham...

— Não toquei em nada — eu disse.

— Está tudo bem, Al — Annie interveio. — Assim que vimos o que havia acontecido, ficamos na cozinha.

— Certo.

Foram as palavras de Annie que acalmaram o policial, não as minhas. Ela tinha notoriedade como investigadora de uma família de policiais, embora trabalhasse para advogados. Ele se voltou para Nick. — Sr. Babikian...

Nick o fitou.

— Sou o detetive Albert Boley. Nós nos conhecemos quando um ladrão invadiu seu escritório. E também na ocasião de uma ameaça de bomba.

Nick estreitou os olhos. Ele não apertou a mão que o policial lhe oferecia. Boley levou a mão ao bolso.

— Eu não... Sim, lembro-me de você.

Eu esperava que Boley dissesse algo, mas ele permaneceu calado, observando, esperando, como se aguardasse alguma reação de Nick. Por fim, disse:

— Lamento muito, senhor. Pode me dizer o que aconteceu?

Nick abriu a boca e fechou-a. Olhou para Chip.

— Meu advogado aconselhou-me a não dizer nada — murmurou.

Boley suspirou e meneou a cabeça.

— Se é assim que deseja... — Ele se recompôs. — Preciso que todos vocês fiquem fora do caminho. Entendido? — Boley voltou-se para um dos policiais que chegara com ele. — Não os deixe sair daqui. Tomaremos o depoimento de todos. Terão de ir à delegacia para recolhermos as impressões digitais. — Ele olhou para nós. — E ninguém sai daqui até eu mandar. — Dito isso, retirou-se.

O policial anotou nossos nomes num bloco. Depois, nós quatro nos sentamos ao redor da mesa e esperamos. A geladeira vibrou e desligou. Um relógio em formato de gato, pendurado na parede, mexia o rabo, que marcava os segundos, para frente e para trás. Eram quase quatro horas e o céu continuava escuro.

Outros policiais apareceram. Continuamos onde estávamos, enquanto os investigadores percorriam a casa e o quintal dos fundos. A maneira meticulosa com que trabalhavam em cada superfície, coletando provas e guardando-as em sacos plásticos, era impressionante. Com tantos policiais ao redor, observando cada movimento, não ousei continuar minha conversa com Nick.

Sentindo-me inquieto, levantei-me e me encostei no balcão. Aquele espaço não se assemelhava à bagunça de minha cozinha. A louça elegante era visível através das portas de vidro dos armários. Os únicos sinais de desordem eram os pratos sujos sobre a mesa e a panela, provavelmente a que ele usara para fazer os ovos, no escorredor sobre a pia.

Outros contrastes me chamaram a atenção. O granito preto do balcão não combinava com as cortinas azuis e brancas. Uma meia dúzia de anjinhos de cerâmica, todos posicionados ao redor de um aglomerado de latas decoradas com cogumelos e elfos, encontrava-se num canto do balcão vazio. Na imensa geladeira cromada, várias fotos de bebês recém-nascidos estavam posicionadas uma ao lado da outra. Um nome e data tinham sido escritos em cada borda branca das fotos.

Acima da galeria improvisada, havia uma foto de Nick com uma mulher loira, de seus trinta anos. Ele estava de smoking, e ela usava um vestido azul longo. A mulher olhava para Nick, e ele fitava a câmara sem expressão. Pensei na vítima que agora flutuava, morta, na piscina de sua própria casa, sem dúvida a mesma mulher que pendurara aquelas cortinas e cuidadosamente dispusera as fotos na porta da geladeira.

Uma das portas da cozinha dava para a lavanderia. Roupas limpas estavam dobradas ao lado da secadora. Um cheiro forte de sabão e alvejante pairava no ar. Havia um calendário pendurado na porta. A fotografia do mês de maio era de filhotes de cocker spaniel, sentados num campo de narcisos.

Aproximei-me do calendário. Havia anotações em cada dia da semana. Segunda, lavanderia. Terça, supermercado. Os únicos itens que não estavam óbvios eram os das terças às sete e os das sextas às quatro. A mesma caligrafia havia escrito: dr. T. Duas consultas por semana com um médico?

Conforme as horas passavam, Nick parecia oscilar entre a consciência e a inconsciência. Permanecia sentado por uma hora à mesa da cozinha, encolhido na cadeira e com os olhos semicerrados sob o boné. Somente quando fechava os punhos, ele dava sinal de que, às vezes, estava atento ao que ocorria na casa.

Da janela, observei os investigadores trabalhando nos fundos. O perímetro da cena do crime fora demarcado com uma fita amarela. O detetive Boley dava todas as coordenadas. Ele parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, distribuindo ordens e agindo como se não houvesse um corpo boiando na piscina.

Eram quase dez horas da manhã quando o oficial terminou de remover os fragmentos da superfície da piscina para guardá-los num saco plástico. Estremeci. Entre folhas e galhos havia pedaços de tecido humano. Queria desviar o olhar, mas não consegui.

Eu já havia testemunhado duas cenas de assassinato; contudo, em cada uma delas, a perda fora muito pessoal. Encontrei Kate com a garganta cortada no ateliê de cerâmica em nossa casa. Encontrei minha amiga Channing Temple em seu escritório, morta pelo que parecia ser um tiro na cabeça. Em ambas as vezes, senti uma emoção primitiva, minha visão tornou-se obstruída pela raiva e pela dor. Somente em retrospectiva eu consegui enxergar as coisas por um prisma racional.

Aquela cena era diferente — a mulher assassinada era esposa de outro homem, amiga de outras pessoas. Apesar do horror e da profunda tristeza que eu sentia diante da morte, outra parte de meu cérebro estava fascinada com a possibilidade de colocar aquele crime em terceira pessoa. Eu me via como um motorista que diminuía a velocidade do carro só para espiar os paramédicos resgatando um desconhecido que sofrerá um acidente grave.

Observei o mergulhador entrar na piscina, submergir e emergir instantes depois segurando um atiçador de brasas de lareira. Ele entregou o instrumento ao policial que se encontrava na beira da piscina. Nesse ínterim, outro oficial puxou o corpo até a beirada com o auxílio de um gancho.

Nick estava a meu lado, observando e agarrando-se ao balcão. Um dos policiais entrou e pediu-lhe que saísse para identificar o corpo. Ele obedeceu.

Quando Nick chegou à beira da piscina, eles tiraram a vítima da água e a deitaram no chão. Nick estremeceu e desviou o olhar. Metade do rosto de Lisa Babikian estava coberto por uma máscara, uma maquiagem branca semelhante à de um palhaço. Os intestinos, que minutos atrás boiavam na água, estavam caídos ao lado do corpo. Ela fora cortada entre o esterno e o abdome, como uma carcaça de carne. Fechei os olhos.

Nick voltou para dentro de casa. Ao entrar, seu rosto estava molhado de lágrimas. Do lado de fora, o detetive Boley ajoelhou-se ao lado do corpo. Talvez fosse o reflexo da água azulada em seu rosto que o fazia parecer demasiadamente pálido. Um dos paramédicos começou a dizer alguma coisa, mas Boley ergueu a mão para silenciá-lo. Baixou a cabeça por alguns minutos e logo em seguida estremeceu, como se tentasse se livrar da tensão. Cambaleou um pouco ao se levantar, mas logo retomou o prumo, enquanto os outros homens inseriam o corpo num imenso saco preto.

 

Era quase meio-dia quando nos deixaram sair com a promessa de que Annie e eu passaríamos na delegacia para fornecer impressões digitais e amostras de cabelo. Eu estava exausto. A idéia de retornar com Annie ao ponto em que paramos havia desaparecido. Pelo menos era domingo, e eu não tinha de ir ao Pearce.

Precisava de um bom banho e de uma refeição, mas, acima de tudo, precisava dormir. Perguntei-me quanto tempo levaria para a imagem do corpo dilacerado da mulher sair de meu pensamento.

Chip nos acompanhou até a porta da garagem. Deu um passo à frente, ficando invisível para Nick, que ainda estava sentado à mesa da cozinha. Chip baixou o tom de voz para me dizer que havia conversado com o detetive Boley.

— Eles acham que a causa da morte está relacionada a um trauma craniano. Há um ferimento côncavo na cabeça dela.

— O atiçador de brasas? — sussurrei.

— Provavelmente.

Trauma craniano? Se um golpe na cabeça a matara, por que estripá-la e depois afogá-la? Eu já podia imaginar as manchetes dos jornais: "Assassinato Triplo". Haveria entrevistas com os chamados especialistas em psicologia criminal. Eles diriam ao ávido repórter que esse tipo de violência não era tão raro entre assassinos que atacavam uma pessoa simplesmente pelo prazer de matar. Que esse tipo de crueldade era mais freqüente em crimes passionais. Em seguida, diriam que a violência havia sido de cunho íntimo — estrangulamento ou facadas em vez de arma de fogo ou envenenamento — característico de uma pessoa obcecada pelo terror de ser abandonada.

Chip aproximou a mão da boca.

— E encontraram roupas sujas de sangue no cesto do banheiro. São de Nick. Parece que ele tomou banho e trocou de roupa antes de levar a mãe para Oakvale.

Virei-me de costas para a cozinha e disse:

— Se Nick não matou a esposa, como conseguiu sujar toda a roupa de sangue?

— Não faço a menor idéia. — A voz de Chip soou fatigada. — Espero que ele possa nos explicar. — Chip voltou a olhar Nick. Babikian achava-se à mesa, observando-nos sob a aba do boné. Então levantou-se e abriu a geladeira.

— Estranho — Annie sussurrou. — Por que será que ele não trocou os sapatos?

— Sapatos? — Chip perguntou.

Nick pegou um copo no armário e abriu a torneira da pia.

— Os sapatos parecem sujos de sangue — eu disse. — Não acha que uma pessoa determinada a encobrir seu envolvimento num assassinato não trocaria também os sapatos?

— Ele não foi muito esperto, uma vez que deixou os trajes ensangüentados no cesto de roupa do banheiro — Chip observou, depois acrescentou que Nick seria detido. Ele pediria fiança, claro, mas duvidava que algum juiz o liberasse.

— O promotor público pedirá a um psicólogo do Estado que o entreviste — Chip informou. — Já disse a Nick para não falar com ninguém a menos que eu permita. Espero que você tenha tempo para examiná-lo o mais rápido possível.

— Ei, calma lá! — exclamei mais alto do que pretendia.

Haveria crimes tão hediondos que nem mesmo a alegação de insanidade mental para atenuar as circunstâncias tinha relevância? E desde quando eu passara de amigo de um amigo a membro da equipe de defesa? Eu tinha mais o que fazer com meu tempo do que defender um homem que havia retalhado a esposa.

— Não sei se vai querer minha ajuda nesse caso. Há vários profissionais que, por um preço justo, farão o que você pedir, inclusive testemunhar no tribunal.

Chip arregalou os olhos.

— Peter...

Percebi que minhas palavras soaram ofensivas demais.

— Se pareceu que eu questionava sua ética, desculpe-me. Mas você não pode deduzir que vou colaborar prontamente. E não creio que desejará meu auxílio, Chip. Sou muito parcial em se tratando de homens que assassinam as mulheres e que tipo de penalidade devem sofrer. Você pode até dizer que é um ponto cego.

— Peter, não sabemos quem é o assassino. E, além do mais, você sempre os avalia do jeito que os vê. Não será diferente dessa vez.

— Você pode não gostar do que tenho a dizer.

— Faça sua pesquisa. Eu decidirei como usá-la.

Chip olhou para a cozinha. Nick voltara a sentar-se à mesa, a aba do boné ocultando-lhe o rosto. Aquele seria diferente dos outros casos de assassinato em que corroborei para a defesa do acusado? Provavelmente, não. Mas, dada aquela realidade, eu me vi forçado a enfrentar meus impulsos competentes. Tinha de admitir que o caso me repelia e fascinava ao mesmo tempo.

Chip apressou-se.

— Pode fazer a avaliação preliminar agora? Tão logo ele seja acusado e esteja sob custódia?

Eu assenti.

Chip voltou à casa, e Annie e eu caminhamos até o jipe. Abracei-a tanto para me assegurar de que ela estava lá quanto para mostrar-lhe que ela era importante para mim.

Quando nos aproximamos da calçada, vi os vizinhos reunidos em pequenos grupos na rua. Eles olharam para nós, curiosos. Havia também jornalistas de emissoras de televisão. Uma loira com um penteado perfeito sorria para a câmara e lia as anotações que escondera na mão. A matéria estaria nas primeiras páginas dos jornais. Muitas pessoas leriam o relato e ficariam chocadas com a barbaridade do crime. Deduziriam que o marido era o culpado. Uma conclusão muito comum num caso como aquele.

Abri a porta do jipe e peguei o copo de café frio que deixara sobre o painel. Tirei a tampa de plástico e despejei o líquido no chão.

— Ei, você! — alguém gritou. Quando olhei para cima, um flash ofuscou minha visão.

Annie e eu entramos rapidamente no carro.

— Babaca — ela murmurou. — Cretino. Nem sequer pediu permissão. — Pegou a chave e tentou inseri-la na ignição. — Droga. Estúpido, idiota!

Toquei a mão dela.

— É a chave de casa.

— Chave de casa? — Annie me encarou. Em seguida olhou para a chave que não encaixava na ignição. — E mesmo.

Ela trocou as chaves, deu partida e acelerou. Estava claro que Annie não era imune a mortes violentas.

Ela manobrou o veículo e rumamos para casa.

Quando atravessamos a via principal, pensei na residência dos Babikian. Evidência física não era minha especialidade. Eu observava comportamento e estado mental, não rastros de sangue pelo chão. Mas o que mais me espantara foram os contrastes. O forte aroma de sabão na lavanderia em oposição ao leve cheiro ácido que exalava da piscina. As paredes brancas, móveis de vidro e cromo da sala com as ameaçadoras máscaras em contraste com a cozinha aconchegante com calendário de cachorrinhos e fotos de bebês. Mesas completamente vazias — nenhuma correspondência, nenhum jornal, revista ou livro. Nada estava fora do lugar. Tudo na mais perfeita ordem, nenhum sinal de caos. E, em contraposição a tudo isso, um crime hediondo: uma mulher agredida na cabeça, estripada e afogada — quando apenas um desses métodos teria sido suficiente para matá-la.

Eu sabia que alguém o havia mencionado, mas, naquele momento, não conseguia me lembrar do nome da mulher. De repente, tal detalhe me pareceu muito importante.

 

— Lisa — Nick Babikian mal conseguiu pronunciar o nome da mulher.

Ele se inclinou sobre a mesa desgastada da sala de avaliação da penitenciária Middlesex County. Horas depois de eu ter saído da residência, Nick fora detido. Estava preso havia dois dias.

Sob a implacável luz fluorescente, sua pele tornava-se esverdeada demais em contraste com o uniforme alaranjado do presídio. Fora isso, ele parecia o mesmo. Ainda tenso, ainda desconfiado, Nick me fitava sob os cílios longos e uma mecha dos cabelos negros. O ar vibrava por causa da ansiedade.

— Ela tinha 26 anos quando nos conhecemos — ele disse.

Nove palavras. Era a resposta mais prolixa que Nick me oferecia em uma hora, desde que eu iniciara a avaliação. Pela vigésima vez, naquele cubículo etéreo e sem janelas, Nick olhou ao redor. Virou-se e examinou a parede e o piso atrás de si. Então, voltou à mesma posição. Conforme se movia, as correntes das algemas nos tornozelos arrastavam no assoalho.

Eu havia começado, como sempre fazia ao avaliar alguém, explicando a ele que estava ali para auxiliar a equipe a preparar o argumento de defesa. Lembrei novamente o relacionamento sigiloso entre o psicólogo forense e o prisioneiro. Meu tempo era limitado e meus objetivos específicos: encontrar as provas que o absolveriam. Em geral, os acusados viam-se motivados a me fornecer o que acreditavam que eu queria, fato este que causava alguns problemas.

Mas Nick parecia alheio ao roteiro. Comecei com um teste mental, esperando estimulá-lo a responder a perguntas relativamente inócuas. Mesmo assim houve resistência. O jeito com que cruzava os braços e evitava me fitar nos olhos enquanto dava respostas curtas compusera a clara mensagem de que ele não confiava em ninguém. Eu precisava que Nick baixasse as defesas o suficiente para que a conversa fluísse naturalmente antes de abordarmos diretamente o assunto do crime.

Como eu esperava, Nick sabia exatamente onde estava e por quê. Não parecia um suicida. Também admitiu que não se sentia seguro. Sob as circunstâncias, isso seria considerado normal. Não relatou alucinações nem delírios.

Comecei a explorar o relacionamento dele com a esposa.

— Você era feliz no casamento?

— Eu amava minha mulher — Nick disse. Encarou a fórmica marrom da mesa. — Tivemos problemas como lodo casal.

— Algum problema específico?

— Como o quê, por exemplo?

— Disse que tinham problemas.

— Você sabe como é. Todo mundo tem problemas.

— Claro. Sei que todos têm problemas. De que tipo eram os seus? — As respostas precisavam ser retiradas a fórceps.

— Nós consultamos uma pessoa algumas vezes — ele respondeu, esquivando-se da pergunta.

— Um terapeuta de casais? — perguntei, e Nick assentiu. — Sobre o que conversavam?

Nick engoliu em seco e fitou o vazio.

— Tenho de falar sobre isso? Por que não pergunta para ele?

— Posso? Eu gostaria muito — afirmei.

Não me espantaria se ele recuasse naquele momento, mas Nick não o fez.

— Dr. Richard Teitlebaum. Ele mora em Newton. — O nome me soou vagamente familiar. Imaginei se não seria o tal dr. T. que vi no calendário da cozinha.

Selecionei uma folha em branco de meu bloco e redigi um parágrafo autorizando-me a conversar com o dr. Teitlebaum e vice-versa. Virei o bloco na direção de Nick e entreguei-lhe a caneta.

— O que é isso?

— Ele precisará ver que você deu permissão para conversarmos.

Nick leu o que eu havia escrito, virou a página e inspecionou a folha. Então olhou-me desconfiado e traçou uma linha diagonal no verso da folha — assegurando-se, eu presumi, de que ninguém acrescentaria nada ao texto. Depois disso, assinou.

— Você nunca consultou um profissional? — perguntei.

— Sozinho? — Nick meneou a cabeça. — Fui ver Teitlebaum porque era importante para Lisa.

— E você costumava tentar agradar sua esposa? Nick cutucou a ponta da fórmica até que um pequeno pedaço se soltou.

— Eu amava minha mulher.

A sala ficou abafada. Tirei meu casaco e o pendurei no encosto da cadeira. O olhar de Nick deteve-se em meu cinto. Ele se levantou, derrubando a cadeira.

— O que é isso? Está gravando a conversa! —t ele apontou para o bip que o policial me dera.                

— Espere um minuto! — Tirei o aparelho da cintura. — Isto é para chamar os guardas, nada mais. Eles sempre dão um desses às visitas dos prisioneiros.

Eu lhe entreguei o bip. No primeiro momento, Nick deu um pulo para trás, como se o objeto pudesse explodir. Depois, cautelosamente, ele o pegou e examinou. Aparentemente satisfeito, devolveu-o a mim. Em seguida voltou a sentar-se.

— Há câmaras de segurança que possuem esse formato e tamanho. Suas lentes são tão pequenas quanto as de um olho mágico. Eu as instalei por toda a minha casa. — Foi o pensamento mais coerente e longo que obtive dele. — O que não entendo é por que a polícia não assistiu aos vídeos e prendeu o assassino.

Lembrei-me do interior da casa. Onde teria escondido as câmaras?

Ele pareceu ler meus pensamentos.

— Você não viu as câmaras? — Nick sorriu. — E como poderia? Elas estão nas máscaras.

Agora eu entendia por que um paranóico penduraria máscaras na parede. Com as câmaras escondidas atrás do buraco dos olhos, ele se sentia o observador, não o observado. A vigilância pessoal poderia representar um arsenal de lentes pequeninas.

— Talvez a polícia não saiba...

— Eles sabem — Nick disse secamente. — Boley sabe. Meu escritório foi assaltado seis meses atrás. Ele pegou o ladrão porque o indivíduo apareceu no vídeo.

— Boley?

— Aquele detetive. Há algo nele... — Nick meneou a cabeça.

— O quê?

— Não sei. O jeito como ele olhou para mim. Senti que o homem sabia que alguma coisa que não queria revelar.

Nick teria atribuído motivos escusos a qualquer policial que investigasse o caso, mas havia mesmo algo estranho em Boley. Era um detetive do setor de homicídios que lidava com mortes violentas todos os dias. Eu não esperava que ele ficasse tão perturbado com aquele crime.

— Por que você não mencionou as câmaras quando foi detido?

Por um instante Nick pareceu espantado, como se tivesse esquecido que fora preso.

— Contou a Chip?

— Eu... — ele começou. — Honestamente, não me lembro.

— Passarei a informação — prontifiquei-me e fiz uma anotação.

Não era de surpreender. Em momentos de crise, as pessoas tinham lapsos de memória acerca das coisas mais básicas. Quando levamos meu pai ao hospital, depois de seu último infarto, minha mãe não conseguia se lembrar de nosso número de telefone nem do nome do plano de saúde. Mas fora capaz de listar a meia dúzia de substâncias às quais meu pai era alérgico.

— Quando estou avaliando alguém, tento obter o quadro mais completo possível — comentei. — Talvez possa falar um pouco de você. Como foi sua infância?

A maioria das pessoas aproveitava a oportunidade e realmente falava sobre si mesma. Perguntas abrangentes como aquela eram sempre um estímulo. Eu nunca sabia exatamente por onde o assunto enveredaria.

Nick piscou devagar, como se tentasse ler nas entrelinhas para descobrir uma intenção oculta.

— Às vezes, o passado nos ajuda a entender o presente — eu disse em tom casual, na tentativa de assegurá-lo. — Como você era quando criança?          

Ele fitou a mesa e depois o chão.

— Escute — eu disse, aproximando-me. — Se quer que eu o ajude, terá, no mínimo, de responder às minhas perguntas, mesmo que não entenda por que eu as faço.

Pela primeira vez, Nick me olhou diretamente. Percebi que ele pesava os pós e os contras.

— Cresci em Watertown — ele começou. — Morava com meus pais e meus avós. Tínhamos uma padaria na rua Mt. Auburn.

Eu conhecia a região. Era famosa pelo comércio do Oriente Médio e pelas padarias especializadas em pizzas lamejun e baklava.

— Meus avós trabalhavam na padaria. Meus pais trabalhavam na padaria. Eu voltava para casa e trabalhava na padaria. Era tudo o que eu fazia... ia à escola e trabalhava na padaria.

Senti-me encorajado. Nick estava se abrindo, sem mais vender cada palavra a peso de ouro. Esperei, imaginando que ele continuaria. Mas ele parou de falar.

— Quer dizer que não brincava com outros meninos?

— Eu não tinha tempo para outros meninos. E minha mãe... na verdade, minha avó ficava paranóica cada vez que me perdia de vista. Do minuto em que as aulas acabavam até eu chegar à padaria, ela ficava na porta, esperando por mim. — Ele ergueu o dedo em riste, endireitou as costas e, com sotaque carregado, murmurou: — Coisas terríveis podem acontecer lá fora!

— Pelo jeito, ela era muito protetora.

— E tinha motivos — Nick alegou. — Já ouviu falar do Holocausto?

— É claro... — comecei.

— Não. Estou me referindo ao Holocausto armênio. — O olhar de Nick me desafiava a confessar que eu era ignorante no assunto.

— Não tanto quanto eu deveria — confessei, por fim, nas entrelinhas.

— Pelo menos, você admite. Todos vivem cheios de dedos por causa dos judeus e constroem memoriais. Sabe o que Hitler disse antes de invadir a Polônia, quando convencia seu alto comando de que era certo matar os judeus? "Quem hoje em dia se lembra do genocídio armênio?". Isso foi em 1939, quase quinze anos depois de os turcos aniquilarem três milhões de pessoas.

Com uma risada amarga, ele prosseguiu:

— Mas não importa. Hoje os turcos são nossos aliados. O mundo preferiu desenvolver uma amnésia seletiva. Claro que os americanos nem sequer ligam. Não sabem a diferença entre um tcheco e um eslovaco, o que dirá entre um armênio e um azeri. Dos judeus, eles sabem. — Nick encarou-me. — Mas não dos armênios. — Ele fitou as mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Minha avó lembrava.

— Ela foi uma sobrevivente? — perguntei.

— Acho que se pode dizer que sim — Nick concordou.

— Ela passou por tudo. Mas nunca superou o passado. Suas lembranças eram tão vividas quanto... — A voz dele falhou.

— Ela me contou histórias a respeito de como sobreviveu.

— Que tipo de histórias?

— Ela as recitava para mim. Como se escondiam. Como os vizinhos os denunciaram. Como os turcos invadiram sua casa. — O olhar de Nick tornou-se distante. — Como levaram a mãe dela...                            

Houve uma estática repentina no sistema de som da penitenciária. Nick se moveu.

— Ela perdeu o pai, a mãe, a irmã e dois irmãos. Depois, tios, tias e primos. Mas guardava as lembranças.

— Você soube de tudo isso quando era garoto?

— Meus pais não costumavam falar no assunto. Nem durante o jantar. Nem na igreja. Era como se nunca tivesse acontecido. Como se todos aqueles parentes e pessoas nunca tivessem existido. Mas minha avó me contava tudo quando ficávamos sozinhos. Sempre.

Permanecemos em silêncio por alguns momentos. Imaginei que Nick recordava as histórias que a avó não pudera deixar de relatar inúmeras vezes como um legado para o neto. Tal detalhe começava a explicar a paranóia de Nick, a desconfiança em relação às autoridades e às pessoas em geral. Arquivei a informação e prossegui.

— Fale-me do colégio — pedi.

— Estudei no Colégio BC — ele disse. Eu devo ter ficado surpreso porque Nick acrescentou: — Bolsa de estudos. Fies não sabiam o que fazer comigo, um garoto ortodoxo num ninho católico.

— Como assim?

— Foi quando percebi que minha avó estava certa. Eles eram loucos para me pegar. Eu vivia apanhando. Aquele garoto... — Nick meneou a cabeça. — Cretino. — Ele me encarou. — Seu amigo Chip era meu único amigo. O único garoto que não era turco. Chip brigou com os outros meninos quando eles me bateram. Nunca esquecerei.

— E a universidade?

— Harvard.

Nick me contou que os anos em Harvard foram melhores. Os outros alunos o ignoravam em sua distância silenciosa. Do xadrez, ele pulou para jogos de computadores — primeiro jogando-os, depois criando-os. Conseguiu um emprego de programador em uma das maiores empresas de tecnologia do país. Mais tarde, alugou uma sala e iniciou a Cyclops Productions, e então mudou-se quando o negócio começou a prosperar.

Mostrando-se animado pela primeira vez, Nick falou-me do Running Scared, o primeiro jogo que inventara e que fora um grande sucesso. Ele pegou o bloco de papel, rascunhou algumas linhas e então sombreou o desenho. Ele virou a folha em minha direção.

A figura assemelhava-se a um elfo pequeno, com braços e pernas musculosos. Olhos gigantescos brilhavam sob o capuz.

— Fale-me desse personagem — pedi, enquanto examinava o desenho. A criatura lembrava Nick quando o vi pela primeira vez com os olhos especulativos sob a aba do boné.

— Ele é o vidente. Ele observa — Nick disse. — Os jogadores têm de aprender quando confiar nele. As vezes, ele os confunde. Mas, em outros momentos, ele tem a chave.

Fiz uma anotação para mim mesmo a fim de descobrir mais acerca dos jogos de Nick. Verifiquei o relógio. Restavam-me vinte minutos apenas. Nick se abrira gradualmente, oferecendo respostas menos defensivas. Era agora ou nunca.

— Preciso lhe fazer algumas perguntas a respeito de sua esposa.

Nick ficou tenso e se encolheu, como se eu houvesse tocado num ponto sensível. Eu sabia que tais perguntas podiam ser uma espécie de tortura. Eu odiava quando pessoas bem-intencionadas me perguntavam sobre Kate. Mas aquela situação era diferente. Fazia parte de meu trabalho perguntar.              

— Sua mulher trabalhava?

— Na maior parte do tempo, ela ficava em casa. Cuidava de minha mãe. Ela tem Alzheimer. — A voz soava monótona e o corpo estava imóvel.

— Sua mulher não se importava de cuidar da sogra? Nick deu de ombros.

— Ela é enfermeira — disse, como se isso explicasse tudo.

Voltávamos às respostas curtas.

— Sei — murmurei, fazendo anotações. — Onde ela trabalhava como enfermeira?

— Em Brigham, na maternidade. — O maxilar de Nick tornou-se rígido. — Mas Lisa não queria.

— Queria o quê?

— Filhos. Fizemos esse acordo quando nos casamos. — Ele pestanejou e desviou o olhar a fim de conter as lágrimas.

Fiquei surpreso com aquele fragmento de emoção, uma intimidade que eu não havia pedido.

— Você estava trabalhando no sábado à noite?

— Sim. Como faço todas as noites, em meu escritório no porão. Sou mais produtivo à noite. Devia ser uma hora da manhã quando subi. — Nick parou e fitou o espaço entre nós, como se reproduzisse a cena em sua mente. — Fui até a sala para ver se a porta dos fundos estava trancada.

— O que aconteceu?

— As luzes estavam apagadas.

— Sim, e depois?

— Eu não teria notado nada se não tivesse tropeçado em algo. Eu caí, e o chão estava... — Nick fechou os olhos — úmido. — Ele esfregou a palma das mãos na calça. — Grudento. Levantei e acendi a luz. A primeira coisa que vi foi sangue em minhas mãos, na parede e no interruptor de luz. Havia um abajur caído no chão. Foi nele que eu havia tropeçado. — Ele apressou a história, resumindo-a. — A única coisa que sei é que eu estava lá fora, lavando minhas mãos na água da piscina. Lisa estava boiando na outra extremidade. Eu sabia que ela estava morta.

Ele parou, como se tivesse chegado à beira de um precipício. Pensei em suas palavras. A única coisa que sei... Perguntei-me se ele não teria esbarrado em algum distúrbio associativo temporário. Na cozinha, Nick parecera permear o estado consciente.

— Lembra-se de ter saído da casa? — perguntei, a fim de explorar a questão.

— Não. Lembro-me de acender a luz. O que recordo em seguida é que estava lá fora.

— O que aconteceu depois disso?

— Minha mãe. Ela estava no deque, chorando. Então começou a balbuciar. Depois passou a gritar como uma louca. "Os turcos! Os demônios estão vindo!", ela berrava. Exatamente o que minha avó costumava dizer o tempo todo.

— Você não chamou a polícia?

— Eu pretendia. Mas minha mãe gritava demais e... eu precisava encontrar um lugar seguro para ela. Sem demora. — Nick fez uma pausa breve. — Ela tinha de comer. Só Deus sabia quando ela iria comer de novo.

— Então, você preparou ovos mexidos? Nick assentiu.

— E, enquanto lavava as mãos, percebi que havia sangue em minha camisa e na calça. Coloquei o vídeo favorito de minha mãe e fui tomar banho. Só conseguia pensar em levar minha mãe para um local seguro.

O relato mostrava um homem confuso, distraído. Em choque. Tudo isso explicava por que a panela fora lavada e os pratos e os talheres, não. Também começava a explicar o banho e por que ele trocara de roupa e não os sapatos.

Eu ouvira casos em que o assassino entrara em estado de transe depois do crime. Em Los Angeles, um homem matara a mulher e os filhos e depois tomara o ônibus para São Francisco. Fora apanhado pela polícia de São Francisco ria estação rodoviária, ainda usando as roupas ensangüentadas. Imaginei que algo semelhante pudesse acontecer a um homem ao encontrar o corpo estripado da mulher.

— É possível que sua mãe tenha testemunhado o assassinato? — perguntei.

Nick engoliu em seco.

— Oh, Deus — murmurou. — Não tinha pensado nisso. Achei difícil de acreditar. Com Alzheimer em estado avançado, mesmo que a sra. Babikian fosse capaz de se expressar, seria impossível interpretar os pensamentos distorcidos ou desvendar qualquer lembrança que tivesse dos eventos reais. Não havia como prever o que ela poderia dizer, se e quando a polícia a interrogasse.

— A polícia provavelmente vai conversar com ela — eu avisei. — Talvez já o tenha feito.

— A polícia? Não chegarão perto dela — Nick afirmou. — Minha mãe odeia policiais. Sempre os odiou. Qualquer pessoa que use uniforme. — Sua expressão tornou-se preocupada. — Ficará muito perturbada, se eles tentarem.

Não vi nenhuma maneira de tranqüilizá-lo. A mãe era uma testemunha em potencial, e a polícia teria de cumprir sua obrigação.

— Ainda não discuti isso com Chip, mas acho que seria Lima boa idéia se eu falasse com ela — sugeri. — E de seu interesse saber o que ela diz.

— Não quero que você a perturbe — ele alegou.

— Vou tentar. Mas sua mãe pode ter visto ou ouvido algo. Ou achar que viu ou ouviu.

Nick me olhou, aflito.

— Você acha que estou tentando me safar.

A porta da sala se abriu, e o policial entrou. Eu o observei algemar as mãos de Nick. Não, pensei. Alguém que estivesse tentando se safar de um crime não deixaria a camisa ensangüentada no cesto de roupa suja e não calçaria os sapatos manchados de sangue depois do banho. Por outro lado, se fosse inocente e tão paranóico quanto Nick parecia ser, por que deduziria que o assassino não se encontrava mais na casa?

 

Naquela noite, fui encontrar Chip e Annie no Inman Lounge. O bar havia sido reformado recentemente, como muitos estabelecimentos daquela vizinhança. Mas o cheiro de cerveja azeda voltava a impregnar o lugar.

Chip me esperava sentado a uma mesa nos fundos. Sentei-me e pedi uma Bass. Ele me entregou o jornal. O assassinato era manchete de primeira página, com as fotos de Nick e Lisa na época do colégio. Lisa fora uma linda adolescente de longos cabelos loiros e sorriso tímido. Eu não teria reconhecido Nick. Ele usava terno e gravata na foto e os cabelos estavam lisos. Não sorria para a câmara, nem parecia taciturno, e tinha um bigode ralo.

Dei uma passada de olhos na reportagem. Até eu fiquei chocado com os detalhes. A mídia realmente adora casos escabrosos. Notei que não havia nenhuma menção à máscara branca que Lisa Babikian usava quando fora retirada da piscina. Perguntei-me se a informação teria sido deliberadamente suprimida.

Fui à página onde a reportagem prosseguia. Havia uma foto minha e de Annie perto do jipe e uma legenda ao lado indicando a equipe de defesa. Estremeci ao ler a frase: "O psicólogo forense Peter Zak revive a trágica morte da esposa". Larguei o jornal, pensando, não pela primeira vez, se os jornalistas tinham noção do efeito que suas palavras causavam. E para quê? Para instigar o apetite sanguinário do público.

Minha cerveja chegou. Annie emergiu dos fundos do bar, parou e conversou com o barman. Mostrou-lhe um pedaço de papel, e ele meneou a cabeça.

— Droga! — exclamou ao aproximar-se da mesa. — Isto — ela jogou o papel rosa na mesa — estava no banheiro dos homens.

Chip e eu olhamos para ela e perguntamos em coro:

— No banheiro dos homens?

— Ando tendo um pequeno problema — Annie disse com certa tensão na voz. — Trotes. Alguém distribuiu esses papéis em bares, principalmente nos banheiros masculinos.

O panfleto era um convite a qualquer um que quisesse se divertir. Havia uma clara descrição sobre o que significava divertir-se e o número do telefone de Annie. O pior de tudo era a foto de Annie, parecendo uma prostituta, com óculos escuros, jaqueta de couro e calça jeans.

Aquilo explicava o telefonema que eu atendera na casa dela.

Annie olhou o papel.

— Droga. Também encontrei esse panfleto ridículo nos banheiros masculinos de dois bares em Central Square.

— Pelo jeito, você deixou algum cara muito furioso — Chip comentou. — Já falou com a polícia?

— Foi o que sugeri a ela — eu disse. — Annie, talvez você deva falar com alguém a respeito disso.

— Ora, é só um inconveniente. — Annie dobrou o papel e guardou-o no bolso.

Chip e eu nos entreolhamos.

— Parece-me muito mais do que um simples inconveniente — Chip disse.

— Não se preocupem — Annie retrucou. Ela notou minha expressão e percebeu que não se livraria do problema tão facilmente. — Tudo bem. Se isso deixa vocês dois mais felizes, falarei com Mac.

Por que ela simplesmente não telefonava para o serviço de emergência da polícia? Meses antes, Annie e o sargento-detetive Joseph MacRae tinham namorado. Eu não sabia ao certo se ele ainda era um rival ou um velho amigo.

— Eu ficarei feliz — Chip manifestou-se. — Há todos os tipos de lunáticos por aí. Pelo menos, este está se delatando antes de cometer qualquer delito mais grave.

Annie sentou-se e tomou um gole de cerveja.

— Um de nós poderia ir com você — propus.

Annie desviou o olhar. Vulnerabilidade. Como ela própria teria dito, a atitude paternalista a fazia ranger os dentes. Chip suspirou.

— Peter, como foi o encontro com Nick Babikian? Relatei a ambos as duas horas que havia passado com Nick, resumindo sua versão do assassinato.

— Suas ações fazem sentido, embora sejam estranhas — comentei. — Basta um choque traumático para o mundo virar de cabeça para baixo. Não é raro a pessoa traumatizada lixar-se em alguma tarefa rotineira como dar de comer ao cachorro ou regar as plantas só para certificar-se de que está no controle da situação.

Lembrei que minha mãe passara dias aspirando a casa depois que meu pai falecera. Isso sem mencionar minha mania de trabalhar dentro do carro sempre que eu acordava às quatro da manhã e perdia o sono porque sabia que o assassino de minha mulher assombrava meus sonhos.

Continuei:

— No caso de Nick, ele se ateve a preparar o desjejum da mãe e levá-la a um local seguro. Ele diz que não se lembra de ter saído.

— Não se lembra? — Chip indagou.

— Parece muito conveniente — Annie concluiu. — Estou certa de que o promotor público mostrará ao júri que Nick estava tão lúcido que teve a sensatez de chamar o advogado.

— Não é comum uma pessoa com personalidade paranóica ter esse tipo de discernimento — observei. — Seria mais provável o oposto, que ele fosse hipervigilante e focado. Na minha opinião, ele tem a sensação de que num momento estava no jardim-de-inverno e no instante seguinte na piscina. Na realidade, ele se concentrou em outras coisas para adiar a realidade. Nick me autorizou a conversar com o psiquiatra que ele e a mulher consultavam — acrescentei.

— Eles faziam terapia de casal? — Annie perguntou, incrédula. — Nick não me parece desse tipo.

Concordei. Nick dissera que concordara em fazer o tratamento por Lisa. Imaginei que incentivo ou ameaça seria capaz de arrastar um paranóico a fazer terapia de casal.

— Nick lhe contou sobre as câmaras de segurança que ele espalhou pela casa? — perguntei a Chip.

— Câmaras de segurança? — Chip mostrou-se mais irritado que surpreso. — Eu sabia que ele tinha um sistema como esse na empresa, mas não fazia idéia... — Ficou claro que Chip não queria ter descoberto tal detalhe por mim.

— Ele diz que a casa estava repleta de câmaras. E há uma sala no porão onde os computadores armazenam os dados. Contou-me que instalou um sistema semelhante na empresa e que a polícia sabia disso. Ele lhes forneceu um vídeo que os ajudou a pegar um ladrão.

— Verei o que posso descobrir — Annie prontificou-se. — Tenho quase certeza de que não encontraram um sistema de segurança.

— Mais uma coisa. A mãe dele — lembrei. — Nick me deu permissão para falar com ela.

— Eu a internei na Fazenda Westbrook — Chip informou. Eu conhecia o lugar. Era uma das melhores casas de repouso para idosos, e havia lá uma unidade especial para portadores de Alzheimer.

— Teve sorte de encontrar vaga tão rapidamente — comentei.

— E impressionante como as portas se abrem quando você enfia a mão no bolso. O que achou de Nick até agora?

Chip perguntou.

Terminei minha cerveja e pensei na vida isolada que Nick Babikian vivia. Resumia-se a trabalho e família, inseridos num mundo habitado por estranhos sinistros.

— Ele acredita que todos querem pegá-lo.

— Paranóico. — Chip pareceu satisfeito. Ao menos aquela poderia ser uma linha de defesa.

Havia muitos diagnósticos que envolviam a paranóia. Personalidade paranóica. Ou tendências paranóicas. Se Chip pretendia alegar que Nick não matara a esposa, um desses diagnósticos tornaria suas ações plausíveis para o júri. Porem, se tencionava alegar que Nick matara a esposa, mas sob circunstâncias atenuantes, o diagnóstico de delírios paranóicos seria mais adequado, e a fixação de Nick no Holocausto armênio era promissora.

E não seria esse o cerne do problema de Nick? O mundo não lhe era hostil e todas as suas ações baseavam-se no delírio de que era um "armênio" num mundo de "turcos"? Ou então, ele simplesmente usava o conto como uma metáfora: "Sim, o mundo é cruel e você tem de se cuidar". Àquela altura, eu não sabia responder.

Só sabia que Nick tinha um pé na paranóia e era muito inteligente. Uma combinação que podia ser letal.

Annie e eu fomos à cantina, comemos um gorduroso sanduíche e saboreamos uma porção de batatas fritas. Relutantes, nos separamos. Ambos tínhamos de trabalhar no dia seguinte.

Já passava das onze horas quando cheguei em casa. Destranquei a porta e apaguei a luz do pórtico. Nesse instante, minha mãe abriu a porta ao lado.

— Petey? É você? — Eu odiava ser chamado assim. Ela vasculhou a escuridão.

— É o entregador de pizza.

Ela acendeu a luz de seu pórtico e olhou ao redor, temendo encontrar uma pizza incendiaria entre as sombras. Minha mãe segurava um bastão de beisebol, o qual mantinha no porta guarda-chuva. Fiz boas tacadas com ele nas finais de Prospect Park quando eu tinha onze anos.

— Estou brincando — eu disse.

— Não brinque.

Minha mãe usava o penhoar rosa. Mechas brancas escapavam do lenço que ela amarrara nos cabelos e prendera com um nó na testa. Ela baixou o bastão.

— Se eu quisesse rir, estaria assistindo a Jonny Carson.

— Jonny se aposentou.

— Meu filho — ela murmurou para alguém invisível — pensa que eu nasci ontem. — Então, após uma pausa, acrescentou: — Teve uma noite agradável?

Eu sabia que não era essa pergunta que a fizera ir até a porta; fazia anos que a sra. Pearl deixara de me esperar acordada.

— Você viu o jornal? — perguntei.

Mesmo antes de Kate ser assassinada pelo homem que ajudei a defender, minha mãe não se animara com a idéia de eu trabalhar nesse ramo.

— Mitzvah, schmitzvah — ela dissera, quando tentei explicar por que eu considerava meu trabalho importante. A maioria das pessoas acusadas de crimes estava no lugar errado na hora errada e raramente obtinha a defesa adequada.

— Seria gentil de sua parte me contar o que anda fazendo para eu não ter notícias de meu filho por Minnie Sadowsky.

Não gostei do rumo daquela conversa. Minnie Sadowsky era uma amiga de minha mãe, cujo filho neurocirurgião dera-lhe o mais almejado dos desejos: netos.

— Está sozinho? — ela perguntou, esquadrinhando o terraço.

— Não há nada debaixo desta manga. — Ergui o braço.

— O eterno palhaço! — Ela começou a fechar a porta e parou. — Que tipo de homem corta a própria mulher daquele jeito? — perguntou, apreensiva.

— Não temos certeza de que tenha sido ele — argumentei.

— Tome cuidado — ela aconselhou e fechou a porta. Entrei. O Boston Globe estava no balcão da cozinha, onde o deixara sem ler. Localizei os artigos acerca do assassinato que eu espiara no bar. Reli a reportagem. Em seguida ative-me a outro, cujo título era: "Para Lisa Babikian, o Sonho Transformou-se em Morte".

Era um daqueles textos que transformavam a vítima em santa. Havia entrevistas com a família de Lisa, amigos de infância, vizinhos e colegas do hospital. "Ela era tão graciosa; tinha um jeito engraçado de ver as coisas", declarava uma enfermeira que trabalhara com ela.

Até no histórico do casamento, após um período de namoro em que Nick envolvera Lisa por completo, uma das damas de honra alegava que notara algo estranho. "Ela estava linda. Mas, quando a abracei, foi como se não houvesse ninguém naquele corpo." Era interessante como os amigos se tornavam perspicazes depois do fato consumado.

Eles relatavam que Lisa ficara mais reclusa após o casamento. Deixara de arrumar os cabelos e fazer as unhas, e deixara de usar roupas da moda. Uma amiga chocara-se com a mensagem gravada na secretária eletrônica. Era a voz de Nick: "No momento não posso atender...". Era como se ele fosse o único morador da casa, a mulher interpretara.

O artigo também informava que Nick tinha contas bancárias, o carro e outros bens somente em seu nome. Uma declaração da mãe de Lisa finalizava o artigo. "Espero que ela seja lembrada como a pessoa linda que era tanto por dentro quanto por fora."

Deixei o jornal de lado, tirei os óculos e esfreguei a região entre os olhos. Os jornais conseguiam reduzir a mais horrenda das tragédias a clichês.

Eu estava exausto, mas não queria dormir. A garrafa de vinho sobre o balcão estava praticamente vazia. Desci até o porão e peguei outra. Tirei a poeira e abri o vinho. Um Ravenswood Zin, o favorito de Kate.

Servi-me de um copo e, pegando o jornal, fui para a sala de estar. Sentei-me em minha poltrona reclinável. Sem dúvida, os irmãos Stickley, que popularizaram as poltronas ajustáveis, eram altos. Aquela era uma das poucas cadeiras no universo que se adequava perfeitamente a mim. Minha mãe não se sentava nela, pois seus pés ficavam balançando no ar.

Examinei o copo de vinho, inalei e tomei um gole. Fechei os olhos. Os aromas de groselha, couro e terra invadiram meu cérebro.

Eu gostaria que Annie tivesse vindo comigo para que ambos mandássemos às favas o trabalho. Poderia ligar para ela, mas já era muito tarde. Meses atrás, quando me sentia sozinho em casa durante a noite, eu saía e trabalhava em meu velho BMW. Ocupava minha mente. Mas eu já tinha desamassado toda a lataria, pintado e polido as manchas.

Kate e eu costumávamos ficar acordados até tarde. Ela ficava deitada no sofá, lendo e com as pernas cobertas com a manta de crochê. Nem a manta de crochê existia mais. Eu levara à lavanderia e esquecera de buscá-la.

Peguei o copo e me levantei. Subi dois lances e abri a porta do ateliê de Kate. O espaçoso cômodo com janelas nas tres paredes estava escuro. Mas era possível ver as fileiras de potes nas prateleiras que emolduravam as janelas. Coloquei o copo sobre o banco de Kate e percorri todo o perímetro do aposento. Só pelo tato eu sabia distinguir quais eram as de Kate e quais haviam sido feitos pelos mestres da Arts-and-Crafts que havíamos colecionado. Os de Kate eram lisos, como vidro polido, decorados com desenhos. Fiquei contente por Annie também ter gostado deles. Na primeira vez em que a levei ao ateliê, ela acariciara os potes, como se soubesse que a textura era tão importante quanto o visual.

Uma peça de cerâmica encontrava-se no peitoril da janela. Eu a removi de lá e coloquei-a na prateleira. Havia esquecido que estava ali. A mãe de Kate guardara aquela peça durante anos. Sobre ela havia a impressão da mão de Kate, quando ela estivera no jardim-de-infância. Tateei o desenho, tracei cada um dos dedos. Mesmo naquela época, a mão de Kate já era forte, os dedos curtos. Lembrei-me de quão calosas eram as palmas das mãos dela. Eu ainda sentia a aspereza da pele quando ela acariciava meu peito, como se tivesse sido naquele mesmo dia.

Peguei meu vinho e sentei-me no banco que Kate costumava deixar num canto do ateliê e que eu removera para o centro. Tomei um gole e me recostei. Annie tornava-se cada vez mais uma parte de minha vida. Mas me acalmava, me mantinha no eixo, saber que Kate ainda estava ali.

 

Telefonei para o dr. Teitlebaum na manhã seguinte e deixei um recado. Ele me ligou um minuto depois. Mostrou-se surpreso ao saber que Nick autorizara uma conversa entre nós. O homem parecia apavorado. E quem não estaria, se descobrisse, lendo o jornal pela manhã, que um paciente matara o outro? O médico queria me encontrar na mesma hora. Eu lhe disse que tinha o dia cheio de consultas e reuniões.

Somente após as seis da tarde consegui sair do Pearce e me dirigir ao consultório do dr. Teitlebaum. O bairro dos psiquiatras, também conhecido como West Newton Hill, fica a vinte minutos de Cambridge. Mesmo assim, parecia ser outro planeta. Os quarteirões eram repletos de mansões vitorianas, separadas apenas por cercas vivas. As varandas da frente, com móveis e balanços de vime alegremente estofados, ofereciam aconchego a amigos e vizinhos, mas avisos de segurança transmitiam uma mensagem igualmente explícita: Mantenha Distância.

A casa do dr. Teitlebaum era amarela, rodeada por uma varanda. Estacionei o carro numa vaga demarcada, atrás de um Volvo prateado que se achava na garagem.

Havia luzes na frente e na lateral da casa, onde se localizava a entrada do consultório. Duas mudas de azaléias estavam encostadas na parede da casa, ao lado de um rastelo e uma pá. A terra ao lado da entrada havia sido remexida. Dois teixos longos já tinham sido plantados em ambas as extremidades. Pulei sobre a terra amontoada no pavimento.

Um par de botas de borracha encontrava-se diante da porta. Fiquei impressionado. Nem todos os proprietários daquele bairro cuidavam do próprio jardim. Nunca plantei nada em minha vida, tampouco o quis fazer. Era Kate quem gostava de jardinagem e precisava me subornar para eu afofar a terra no outono.

A porta se abriu antes que eu tocasse a campainha. Quando estendi a mão para apertar a dele, Teitlebaum me puxou para dentro e fechou a porta.

— Desculpe — ele disse, espiando pela janela. — Pensei que haveria repórteres acampados lá fora.

— Mas seu nome não foi mencionado na mídia.

— E só uma questão de tempo — ele afirmou, com certo amargor. — Pode ter certeza.

Eu não sabia o que esperara encontrar — talvez um homem calvo, rotundo e de uns cinqüenta anos. Teitlebaum não possuía nenhuma dessas características. Era alto e esguio, devia ter por volta de quarenta anos. Estava pálido e cansado, como se tivesse dormido pouco, e no queixo a barba começava a crescer. Ele exalava o cheiro salgado de suor e meias usadas. Aprendi a reconhecer tais odores como sinais distintivos de ansiedade.

Diante do suéter de casimira e dos sapatos de couro eu esperava mãos macias e bem-tratadas. Mas a mão que apertei era calosa e áspera, e o braço esticado me mantinha a distância.

A despeito das circunstâncias, fizemos a dança do "você conhece fulano e beltrano". Teitlebaum conhecia alguns de meus colegas do Pearce — ele estudara na Brown Medical School e fizera residência no Pearce, antes de mudar-se para Rhode Island. E, certa vez, fora à minha casa com amigos em comum para uma festa de Ano Novo que Kate e eu havíamos feito oito anos atrás.

Teitlebaum me levou ao consultório, onde esperei alguns minutos enquanto ele tirava no aparelho de fax uma cópia da autorização assinada por Nick. Era um aposento confortável, decorado com fotos de iatismo e um diva com uma manta oriental para proteger os pés e um protetor descartável na outra extremidade, onde se apoiava a cabeça. Uma estante de mogno cobria uma parede inteira. Nas prateleiras estavam dispostos todos os clássicos, de Freud a Kohut. A programação para o próximo encontro da Associação Americana de Psiquiatria, que se daria em Washington, estava sobre a mesa. O evento ofereceria ao médico uma boa desculpa para sair da cidade até que a atenção da mídia diminuísse.

Ele colocou a cópia da autorização dentro de um envelope ofício que já se encontrava sobre a mesa, devolveu-me o original e instalou-se numa confortável poltrona de couro, então empurrou o banco de repousar os pés e inclinou-se, apoiando os braços nos joelhos. Os olhos de Teitlebaum brilhavam, e tive a impressão de que ele entrelaçara os dedos para evitar o tremor nas mãos.

— O que, em nome de Deus, aconteceu? — perguntou. Sentei-me na cadeira de couro diante dele.

— Se você leu os jornais, tomou conhecimento de quase tudo. — Teitlebaum assentiu para mim. — Ficou surpreso?

Ele esperou uns segundos antes de responder. Seu rosto tornou-se sombrio.

— Não é preciso ser psiquiatra para saber que maridos matam esposas.

Uma vez ouvi uma colega apresentar um trabalho sobre esse tópico. Os números eram tão impressionantes que jamais os esqueci. Ela relatara que setenta por cento das mulheres assassinadas nos Estados Unidos a cada ano morrem nas mãos de um ex-companheiro ou de um parceiro atual. Os insignificantes cinco por cento dos homens eram assassinados por esposas, ex-esposas ou namoradas. Teitlebaum prosseguiu:

— Ninguém pode prever quem passará dos limites. — Ele mordeu o lábio. — Já me enganei antes.

Aquela era uma das facetas mais difíceis de se trabalhar com indivíduos mentalmente comprometidos. Qualquer profissional que alegasse saber quando uma pessoa poderia ter um surto enfurecido faria papel de idiota.

— A polícia chegou a contatá-lo? — perguntei.

— Ainda não. Tenho certeza de que em breve estarão batendo à minha porta. Eles adoram isso.

A intensidade em seu tom de voz sugeria que ele sabia disso por experiência própria. As repostas eram agressivas, como se algo turbulento em sua cabeça brigasse por atenção.

— Você estava tratando de Nick e Lisa Babikian? — perguntei.

— Eu sabia que devia ter falado deles com alguém. Esperei ouvir uma explicação. Ele engoliu em seco.

— Mudei-me para cá há pouco mais de um ano. — Estranhei tal mudança, mas não tive oportunidade de questioná-lo quando ele prosseguiu: — Foi difícil abandonar a clínica que levei anos para construir. — Uma veia pulsava em sua testa. — Devo admitir que eu precisava do negócio. Então os dois apareceram, sem nenhuma indicação, e deram um nome falso, o qual acabaram esquecendo até o final da sessão. Pensei comigo mesmo: "Não é grave".

Teitlebaum riu.

— O sr. Babikian me pagou em dinheiro. Não é significativo? Ele olhou sob a mesa, tateou os livros. Verificou o espelho na parede, imaginando que haveria uma sala oculta atrás do espelho. Somente na terceira sessão eu descobri seus nomes verdadeiros. E foi por causa de um lapso. Ela deixou escapar.

— Quando começaram a consultá-lo?

— No último outono. — Teitlebaum pegou uma pasta e verificou algumas anotações. — Dia quatro de outubro. Lisa, a sra. Babikian, havia deixado o trabalho para cuidar da sogra. Ela estava tendo dificuldades para se ajustar. Irritava-se constantemente. Ele é um homem controlador, mas isso não parecia incomodá-la desde que tivesse a liberdade de trabalhar e conviver com as amigas. A demissão deixou-a muito aborrecida. Quanto mais infeliz Lisa se tornava, mais retraído ele ficava. Passava horas trabalhando. Também estavam tendo problemas na intimidade. Nick se sentia mal ao fazer sexo com a mulher, sabendo que a mãe morava na casa. E ela estava sempre lá. Ele mostrou-se efetivamente impotente. Só conseguiam ter relações quando ambos usavam máscaras. Isso a apavorava.

Teitlebaum deu pouca importância a essa informação, que representava mais uma peça para explicar por que, paranóico do jeito que era, Nick vivia rodeado de máscaras. Uma vez que as máscaras tornaram-se o entrelaço do ato sexual, tê-las às paredes mostrava-lhe que estava no controle.

Imaginei quantas pessoas saberiam dessa excentricidade particular da vida conjugal de Lisa e Nick Babikian. O assassino, por sua vez, sabia que uma máscara no rosto de Lisa implicaria Nick.

— Em geral, esse é um sinal de estresse e desorganizarão — Teitlebaum continuou. — É a ritualização do que deveria ser um ato prazeroso. Ele cria um fetiche ao inserir equipamentos com o objetivo de se envolver no ato.

A expressão de Teitlebaum ficou neutro. A linguagem psiquiátrica era um meio eficiente de diluir a emoção. Folheou os papéis, parando para ler algumas anotações.

— Ele estava tendo um colapso? — indaguei.

— O casamento estava em colapso.

— Sentiu que eles faziam algum progresso? Ele pensou a respeito.

— Um pouco. Ele aceitou inscrever a mãe num centro terapêutico por algumas manhãs para que Lisa pudesse trabalhar. Ela pretendia ajudá-lo na empresa, enquanto procurava uma colocação no hospital. Foi um começo.

— Mas você não estava tão otimista.

— Não — ele concordou. — Nick Babikian tinha uma necessidade sufocante de estar no controle. Ficou claro para mim que ele representava o aspecto patológico do casal. Lisa Babikian, por outro lado, era complacente e flexível. Claro que ele se casou com ela por causa disso.

— Patologia?

— Sob a fachada controlada, o homem borbulhava. Pensei que sua paranóia beirasse o delírio. Ele acreditava que podia controlar tudo em sua vida, e, na maior parte do tempo, podia mesmo. A demência da mãe o atormentava. E a infelicidade da esposa aumentou o sentimento de que a vida fugia ao controle. Claro que, quanto mais infeliz ela ficava, mais ele encurtava as rédeas, mais ela se entristecia... Você conhece o ciclo.

— Ele alguma vez manifestou essa raiva? — Utilizei o jargão psicanalítico. Poderia simplesmente ter dito: ele chegou a bater na esposa?

— Não que eu saiba.

Eu devia ficar surpreso. Homens que matam suas mulheres em geral mostram sinais de que poderão chegar a tanto. Hematomas e ossos quebrados, somados a um estado depressivo, unem-se para o ato final.

— Isso não me surpreenderia. Ele não confiava nela. A certa altura, acusou-a de ter um caso comigo. — Teitlebaum olhou as anotações. — Nenhum abuso físico. — Ele resmungou e meneou a cabeça. — É o que fico dizendo a mim mesmo. Talvez tenha sido por isso que aceitei analisá-los. Ele me assustava, e muito. Claro que recomendei terapia individual. E medicação. Eu queria acalmá-lo, ajudá-lo a controlar a ansiedade. Ele recusou tudo. Tinha mais medo de perder o controle do que de perder a esposa.

— Você notou algum episódio recente de perda de memória no sr. Babikian?

Teitlebaum pareceu cético.

— Parece haver um período de tempo na noite do crime do qual ele não se lembra — expliquei.

— Ele está tentando convencê-lo de que possui algum tipo de distúrbio associativo de identidade?

Pelo tom de voz, pude perceber que ele considerava a possibilidade improvável. Concordei. Personalidade múltipla esteve na moda nos anos setenta, mas, na realidade, era algo extremamente raro.

Teitlebaum coçou o queixo.

— Por outro lado, se isso aconteceu, é bem possível que ele não admitisse perder nenhum tipo de controle.

— Por quanto tempo ele se consultou com você? — perguntei.

— Foram meia dúzia de sessões. — Teitlebaum folheou as anotações. — Não, sete sessões. Depois, simplesmente pararam.

A quantidade de papéis dentro da pasta não parecia representar rascunhos de apenas sete sessões. Esperei. Ele me olhava em silêncio.

— Lisa Babikian continuou a consultá-lo em sessões individuais?

As sobrancelhas de Teitlebaum ergueram-se sutilmente.

— O calendário da cozinha dela — expliquei. — Ela marcou consultas com o dr. T em dias específicos da semana.

Ele olhou as anotações. Ambos sabíamos que Teitlebaum caminhava na corda bamba. Com a autorização de Nick, Teitlebaum tinha a liberdade de me contar o que viera à tona na terapia de casal. Mas tal permissão não se estendia ao tratamento individual de Lisa. O sigilo profissional entre médico e paciente sobrevivia à morte.

— Ela me consultou por alguns meses, depois que pararam a terapia de casal. Quis vir sozinha.

— Você se surpreendeu? Ele não respondeu.

— Escute, eu dirijo a unidade neuropsiquiátrica do Pearce — contei-lhe. — Estou ciente do estresse emocional que os cuidados de uma pessoa com demência pode causar tanto a um relacionamento quanto a um indivíduo.

Teitlebaum pareceu entrar num acordo com a própria consciência.

— Não. Não me surpreendi. Ela começara a somatizar. Dores de cabeça, calafrios, insônia. O marido havia se tornado ainda mais distante, retraído. Quanto mais aborrecida Lisa ficava, mais ele apertava as amarras.

— A única coisa que me surpreendeu foi que ele a deixou vir. — Teitlebaum fitou-me nos olhos. — Fiquei ainda mais surpreso por ter assinado uma autorização para conversarmos. O sr. Babikian não confiava em mim. — Ele fechou os olhos e esfregou a nuca. — Porém, trata-se de um homem precavido.

Teitlebaum continuou a massagear a nuca. Tive a impressão de que se debatia sobre o que fazer.

— Vou lhe mostrar uma coisa. — Ele colocou a pasta na mesa, puxou uma das gavetas e remexeu-a. Se o conteúdo da escrivaninha de um homem era o reflexo de sua consciência, então Teitlebaum possuía uma mente muito organizada. Caixinhas de plástico contendo clipes e a calculadora encontravam-se devidamente dispostas na gaveta ao lado do talão de cheques e de uma pilha de disquetes.

— Onde está? — ele murmurou. — Sei que a guardei por aqui. — Teitlebaum abriu outra gaveta, inseriu a mão nos fundos e tateou. Então puxou um objeto retangular e preto e entregou-o a mim. Tratava-se de uma pequena caixa de metal, mais pesada do que parecia. Uma pequena placa estava parafusada num dos lados, e no centro havia um orifício. Tudo se achava acoplado a um suporte de metal.

As palavras de Nick surgiram em minha mente. Hoje em dia há câmaras de segurança que possuem esse formato e tamanho.

— Uma câmara de segurança? — perguntei.

— Como descobriu?

— Foi um palpite. Onde a encontrou?

Teitlebaum fez uma pausa. Perguntei-me se ele estava prestes a cruzar aquela linha invisível outra vez.

— Quando Lisa me ligou, estava quase histérica. Tinha havido um arrombamento na empresa, e ela descobriu que o marido instalara câmaras como essa por todos os lugares. Ela não sabia de nada.

Teitlebaum continuou:

— Na verdade, foi ela quem avistou esta câmara. Estava ali — ele indicou o topo da estante — e ali deve ter permanecido por um bom tempo.

Fitei o local na estante onde Nick Babikian escondera a pequena caixa preta, ao lado do vaso ou entre os livros. Senti um décimo da profunda sensação de invasão que Teitlebaum devia ter sentido ao perceber que estava sendo observado. A privacidade do consultório é quase sagrada, e aquela fora deliberada e sistematicamente profanada.

— Havia umas doze pilhas amarradas e conectadas a essa caixa por um fio. Pelo jeito, ele tem dispositivos como esse espalhados pela empresa e conectados ao sistema elétrico. Por isso Lisa se descontrolou. Ela descobriu que o marido podia vigiá-la no trabalho e em qualquer lugar. Com essas câmaras de segurança, Nick Babikian foi longe demais. No início Lisa ficou assustada; depois, com raiva. E da raiva ela angariou forças.

Teitlebaum pegou a câmara e guardou-a na gaveta.

— A sra. Babikian também sabia que ele havia instalado câmaras pela casa? — perguntei.

Ele não pareceu se surpreender.

— É realmente doentio. Mas não preciso lhe dizer isso.

— Notou alguma mudança em Lisa Babikian antes do assassinato?

— As mudanças foram todas positivas — Teitlebaum afirmou, entrelaçando as mãos. — Quando eu os via juntos, Lisa mostrava-se pálida, inerte. Usava roupas largas. Era o tipo de pessoa através da qual você podia olhar, como se fosse oca. Ao longo dos últimos dois meses, ela se tornou menos transparente. Passou a usar tons de rosa e azul. Começou a cuidar de si mesma, maquiando-se. Soltava os cabelos. Talvez até tenha engordado um pouco. Claro que tudo isso era um reflexo do que aconteceu internamente. Ao se casar com Nick, Lisa fechou-se para a vida. Mas estava a ponto de se libertar. Eu a estimulei, claro. Ela tentava desvincular a própria identidade da dele, para se reconhecer como pessoa. Foi heróico. Ele ter feito isso com ela justamente... — A voz de Teitlebaum falhou. — Justamente quando... — Ele estremeceu e recostou-se. — Eu devia tê-la protegido. Fui um idiota. Foi pura arrogância de minha parte. Eu queria salvá-la. Ela pediu minha ajuda e eu fracassei.

Eu queria salvá-la. Aquelas palavras me espantaram. Continham mais emoção do que qualquer tipo de contra-transferência que eu esperaria de um relacionamento que durara seis meses, mesmo atendendo-a duas vezes por semana. Isso me fez pensar. Havia sido extremamente fácil para Teitlebaum ultrapassar o limite do sigilo profissional. Por que não concretizar a fantasia íntima também? Ou estaria a paranóia de Nick Babikian me influenciando?

A despeito da simpatia que eu sentia por Teitlebaum, pela sinceridade aparente e angústia devido ao crime, eu me contive. No fundo, queria perguntar se ele tivera mesmo um caso com Lisa Babikian.

— Você acha que ela pretendia se separar do marido? — indaguei, diplomático.

— Ela não disse isso — Teitlebaum respondeu, desviando o olhar. Pareceu-me uma evasiva.

— Você acha que ela estava tendo um caso? — perguntei, pressionando.

A expressão de Teitlebaum mostrou-me que eu havia passado dos limites.

— Não posso responder — ele disse e fechou-se. Aquela linha de questionamento chegara ao fim, mas por quê?

Afinal, ele já havia violado o código de ética.

— Ela gostava de enfermagem? — perguntei, entrando num assunto mais seguro.

A resposta surgiu prontamente.

— Adorava. A primeira vez em que a vi empolgada com algo foi quando conversamos a respeito de partos.

Lembrei-me das fotos dos recém-nascidos na porta da geladeira de Lisa Babikian.

— Mas nunca tiveram filhos.

— Porque ele não quis.

— Nick diz que Lisa também não queria filhos. Teitlebaum me encarou como quem dissesse: E você engoliu essa?

— Ela acatou a decisão. Tal qual acatava qualquer coisa que ele quisesse. Tinha medo de discutir, de se expressar.

— Acha que Nick Babikian seria capaz de matar a esposa? — perguntei.

O rosto de Teitlebaum se contraiu.

— Deus me ajude. — Ele fitou os punhos fechados. — A progressiva preocupação do sr. Babikian com o paradeiro da mulher, a falha de associação entre a realidade e o imaginário... Nunca admiti para mim mesmo, mas eu sabia.

 

O dia amanheceu maravilhoso. Era um dia típico da Nova Inglaterra, variando entre o frio seco do inverno e o calor vaporoso do verão.

Contudo, o gramado do Instituto de Psiquiatria Pearce estava maltratado. Pela alameda de pavimento arenoso, viam-se os prédios de tijolos, alguns espigões de estilo holandês, outros ornados de floreio francês e aqueles que ainda mostravam a mesmice vitoriana. Mesmo no século passado, o projeto devia ter sido aprovado pelo comitê. As tulipas vermelhas e amarelas da Unidade de Neuropsiquiatria eram um sinal de que os meses de melancolia haviam terminado.

Entrei e apressei-me pelo corredor a fim de chegar à sala de conferências. Não havia ninguém. Portanto, eu tinha tempo para tomar um café e verificar minha correspondência.

Meu colega e melhor amigo, dr. Kwan Liu, bloqueava a entrada da sala minúscula, atrás da enfermaria. Gloria Alspag, a enfermeira que realmente administrava o lugar, estava lendo um recorte de jornal pendurado no quadro de avisos da sala. Eu devia ter esperado por isso. Alguém, provavelmente Kwan, havia separado o artigo com minha foto para expor aos curiosos.

Enquanto lia, Gloria tirava as folhas secas de Audrey, uma azaléia que ela cultivava desde a semente. A planta havia ultrapassado o quadro de avisos e aproximava-se da janela.                                                            Gloria tinha uma aparência comum — não era alta, usava óculos, tinha os cabelos curtos e bem-arrumados. Mas possuía a persistência de um cão terrier e o poder de um pit bull.

— Bom dia — eu disse.

— Bela foto — Kwan comentou. Era o perfume da colônia dele que competia com o aroma do café na sala. Gloria não costumava usar perfume. — Gostei especialmente das roupas amarrotadas, como se tivesse acabado de sair da cama.

A aparência mal-ajambrada era um sacrilégio para Kwan. Ele tinha o compromisso religioso de aparar os cabelos a cada duas semanas e o corte de seus ternos e calças era impecável.

— Você parece um pouco desanimado — Gloria comentou, avaliando a foto. — Provavelmente não teve tempo para um café. Não, espere. — Ela apontou para o copo de plástico que eu segurava na fotografia. — E o nosso Peter!

— Deixem-me em paz — pedi. — E com licença. Ainda não consumi minha quota matinal.

Gloria me olhou com atenção e afastou-se para eu passar.

— Tem certeza de que está pronto para isso?

Servi-me de café e mantive a cabeça baixa. Devia sentir-me grato. Gloria estava preocupada com o fato de eu me envolver em outro assassinato. Mas senti uma ponta de irritação. Já tinha uma mãe para cumprir esse papel. Não precisava que os amigos também agissem assim.

Verifiquei o relógio.

— Não está na hora de irmos?

Enquanto caminhávamos pelo corredor, perguntei a

Kwan:  

— Já ouviu falar de um psiquiatra chamado Richard Teitlebaum?

— Não que me lembre. Por quê?

— Trata-se do caso em que estou trabalhando. Ele era o terapeuta da vítima. Estou curioso para saber se o homem tem algum tipo de reputação. Diz ter feito residência aqui uns oito anos atrás. Depois mudou-se para Rhode Island e voltou para Boston há cerca de um ano.

— Richard Teitlebaum — Kwan repetiu o nome, pensativo.

— Parece que ele é bem relacionado. — Mencionei alguns médicos do Pearce que Teitlebaum dissera conhecer.

— Vou me informar — Kwan ofereceu-se.

Ao chegarmos à sala de conferências, os outros já estavam à nossa espera. Nossa assistente social, o fisioterapeuta e o assistente da chefia encontravam-se à mesa. Um jovem doutorando em psiquiatria, Roger Burnaby, achava-se a vontade na sala, fazendo anotações. Ele olhou para cima e inclinou a cabeça em cumprimento quando entramos, Então ajeitou a cadeira e sentou-se corretamente.

A sala estreita mas de pé-direito alto, com sua gloriosa lareira inativa de mármore, estava melhor que antes. Os buracos nas paredes haviam sido tapados e a pintura rosa fora substituída pela cor branca. Fazia pouco mais de um mês desde que o chefe do departamento financeiro do hospital preferira pedir demissão a enfrentar uma investigação relacionada a suas ligações com as empresas farmacêuticas, O lugar tornara-se mais acolhedor após a saída dele. Mas uma coisa não tinha mudado. Com ou sem primavera, o sistema de aquecimento funcionava a todo vapor.

Kwan resolveu abrir a janela. Ele a forçou, porém a janela não se moveu. Pelo jeito, estava emperrada.

— Com licença, Schwarzenegger — eu disse.

Consegui causar alguns ruídos na estrutura de madeira sem nenhum resultado, a não ser uma dor aguda na região lombar.

— Homens — Gloria resmungou, ao avaliar o problema. Ela, sistematicamente, deu socos ao longo da moldura e, sem esforço, ergueu a vidraça.

— Creio que esta janela requer cérebro e beleza — Kwan comentou.

— Elegância — Gloria o corrigiu. — Sempre funciona melhor do que a força bruta. — A mensagem foi clara para todos nós: as mulheres eram mais fortes que os homens. Não discordei.

Voltamos nossa atenção à lousa branca e à lista de dezoito pacientes que tínhamos na unidade. Havia apenas uma nova admissão. Elizabeth Smetz.

Kwan iniciou a discussão.

— Ela acredita ser a Virgem Maria e estar aqui para dar à luz o Messias.

Gloria tomou a palavra.

— Ela estava construindo uma manjedoura na garagem e brigou com o marido porque o senhorio não lhes ofereceu mais espaço. O sr. Smetz ficou desesperado. Levou-a ao pronto-socorro do Carney. Eles a encaminharam para nós.

Peguei o prontuário e o abri.

— Setenta e cinco anos. — Esquadrinhei o relatório de admissão. — Nenhum histórico psiquiátrico — disse, notando que ela nunca tivera nenhuma doença mental.

— Senilidade precoce? — Kwan perguntou.                

— Não creio. — Eu lhe entreguei o prontuário.

Kwan folheou os documentos.

— Estranho... O surto foi repentino. O médico do hospital administrou um antipsicótico, Zyprexa. Essa medicação pode modificar o quadro. Modificou? — ele perguntou a Gloria.

— Não. Ela está enlouquecendo a equipe. Pergunta o tempo todo onde está a manjedoura. Não obedece nem coopera.

Roger, o doutorando, manifestou-se:

— Nós pedimos alguns exames de laboratório.

— Um quebra-cabeça intrigante — Kwan disse.

Após a reunião fomos ver a sra. Smetz, enquanto passávamos visita. Era uma senhora roliça de pele alva. Os cabelos estavam pintados de vermelho. Nós a encontramos caminhando pelo quarto e murmurando consigo mesma.

— Sra. Smetz? — chamei-a quando entramos no cômodo. — Sou o dr...

Ela parou de repente.

— Até que enfim! — exclamou e bateu palmas. — Os homens sábios estão aqui. E um deles é uma mulher! — Ela sorriu para Gloria. — Que maravilha!

Continuei:

— Estamos aqui para saber como vai a senhora. — Ela sorriu para mim. — Posso lhe fazer algumas perguntas?

— Mas são vocês que têm as respostas — a sra. Smetz disse.

— Mesmo o mais sábio dos homens sempre tem o que aprender. Onde a senhora está? — perguntei.

— No hospital. — A resposta correta foi inesperada.

— E sabe por quê?

— O senhorio não quis nos dar mais espaço. Então tivemos de vir para cá. Meu marido... — Ela olhou ao redor, um tanto confusa. — Oh, sim, ele foi buscar um suco de maçã para mim. — Ela baixou a voz. — Não diga nada a José — ela tocou o ventre — sobre isso.

Um senhor de aparência fatigada, usando camiseta azul e jaqueta, entrou no quarto, segurando um copo de papel. Ele exalava o odor de tabaco.

— José! — a sra. Smetz exclamou.

Ele entregou o copo à mulher e olhou para nós.

— Bill — disse. — Meu nome é Bill Smetz. Estamos casados há cinqüenta e três anos e de repente ela não se lembra mais do meu nome. — Bill deu uma risada. — Acha que é Maria, a mãe de Jesus.

Ele tentava amenizar a situação, mas nos encarou como se pedisse uma explicação, algo que fizesse sentido.

Expliquei que estávamos ali para examinar sua esposa e que ele poderia ficar, se quisesse. Bill se sentou. Convidei o doutorando a iniciar.

Roger começou com uma conversa informal para colocá-la à vontade. Foi um bom início. Um exame mental não precisava assemelhar-se a um interrogatório. Em seguida, ele perguntou à sra. Smetz se ela sabia em que dia estávamos.

— O mês é maio e o dia é... — ela pensou um pouco — onze. — Bastante bom. Na verdade, era doze de maio. Em seguida, disse o ano correto.

Roger pediu-lhe para repetir números. Ela o fez sem nenhum problema. Depois, palavras e frases. Mais uma vez, nenhuma dificuldade. Ela era capaz de soletrar as palavras de trás para frente. E lembrou-se dos três itens após cinco minutos. Atenção, concentração, memória imediata e global pareciam perfeitas.

— Sente-se segura aqui? — Roger perguntou.

A sra. Smetz olhou o marido, ansiosa.

— Não — respondeu. — O senhorio não gosta de nós e os soldados estão nos procurando.

— Sra. Smetz... — Roger começou.

— Pode me chamar de Maria.

— Maria? — O jovem doutorando olhou para mim. A sra. Smetz esfregou a testa.

— A senhora está no hospital. Somos médicos e enfermeiras que a ajudarão a melhorar.

A informação não abalou a expressão de serenidade.

— Claro, meu caro. Mas, sabe de uma coisa — ela confidenciou —, estar grávida é perfeitamente normal.

Quando saímos do quarto, Roger comentou:

— Parece tão lúcida... Sabe se localizar no tempo e no espaço. Mas, de repente, ela sai do ar. Seria possível modificar esse comportamento ou reeducá-la?

— Você poderia tentar — sugeri.

— Até segunda ordem — Kwan acrescentou —, ela é delirante.

— Grosso modo — eu disse —, os delírios são imunes à realidade. Poderíamos mostrar a ela sua certidão de nascimento para provar que não se chama Maria. E ela até acharia graça. Mas saberia como explicar. Qualquer argumento lógico não surte nenhum efeito, porque a lógica delirante faz sentido para ela. E, acima de tudo, a verdade do delírio é sentida, não é apenas cerebral. Por isso ele é tão poderoso.

— Não é a mesma coisa que alucinação, então? — Roger perguntou.

— Não — Kwan respondeu. — Na alucinação, é sempre possível apelar para o "eu" observador de uma pessoa. Em essência, você consegue, às vezes, tirá-la da alucinação.

— No delírio, não há o "eu" observador — completei. — Veja, por exemplo, uma pessoa que sofra de anorexia nervosa. Nenhuma lógica pode convencê-la de que ela já está em pele e osso. O mesmo acontece com o paranóico. Não é possível tirar-lhe o medo, apontando a irracionalidade do sentimento.

Construir uma manjedoura era relativamente inofensivo. O que nos preocupava era o comportamento destrutivo que poderia emergir de uma mente delirante. As pessoas anoréxicas podiam chegar à morte pela teimosia em não comer. E os paranóicos podiam tornar-se eremitas, alimentando o medo e a raiva até explodir, como o Unabomber.

— Mas por que isso está acontecendo à sra. Smetz — Kwan indagou —, e por que agora? Não há casos de distúrbio mental na família. Nenhum sintoma anterior. O exame neurológico não apresentou nenhum derrame. De repente, ela acorda como Maria, a mãe de Cristo. Por enquanto, tudo que podemos fazer é mantê-la sob observação e continuar com a mesma medicação.

Naquela tarde, Annie enviou-me uma mensagem pelo bip, enquanto eu atendia um paciente.

— Por que é tão difícil mostrar a lógica das coisas aos homens? — ela perguntou, quando lhe telefonei mais tarde.

— Refere-se a mim? Sou fácil.

— Sei que é — Annie disse. — Estou falando de Al Boley, o detetive que está cuidando do caso Babikian. Não entendi nada. Contei a ele que há um sistema de segurança na casa, e ele se fez de desentendido. Disse que já têm todas as provas de que precisam. Lembrei-o de que não é trabalho da polícia encontrar provas para incriminar o suspeito mais óbvio, mas sim encontrar todas as evidências que possam existir.

— Tenho certeza de que foi muito persuasiva.

— Eu disse que talvez... só talvez... o vídeo do sistema de segurança poderia esclarecer as lacunas do caso.

— E?

— Ele não quis ouvir. Disse-me que sabe quem a matou.

— Mas ele voltou à casa?

— Voltou. Encontrou as câmaras. Achou o escritório no porão. E viu que todo o sistema de segurança está conectado a um computador.

— Por que Boley ficou surpreso? Nick me contou que sofreu um assalto e que, pelos vídeos, a polícia conseguiu identificar o sujeito.

— O equipamento é de alta tecnologia. Algum tipo de mídia eletrônica. E o assalto foi na Cyclops Productions. Boley alega que, sem a planta da casa, ninguém saberia que há um porão ali. Por isso eles não vasculharam o escritório de Nick. Só há um problema.

— Que problema?                                                  

— Os dados desapareceram.

— Desapareceram?

— Exatamente. O disco rígido do computador foi removido.

— O que Chip disse?    

— Merda.

Eu não poderia ter me expressado melhor.

— É possível que Nick tenha tirado o disco rígido?

— Estou certa de que é isso que a promotoria vai argumentar — Annie concluiu. — Se lhe serve de consolo, Chip disse que Nick ficou perplexo ao saber do desaparecimento do disco rígido. Precisou de algum tempo para se recuperar do susto.

Houve uma pausa. Então, Annie verbalizou o que eu estava pensando:

— Isso estreita a investigação. Se não foi Nick, então alguém mais conhece o sistema de segurança da casa. Você conseguiu falar com o terapeuta?

Annie podia deixar qualquer um atordoado com aquela mania de mudar de assunto. Ou talvez houvesse alguma conexão entre os pensamentos.

— Conversamos ontem à noite. Ele estava ciente do sistema de segurança. Diz que Nick tentou grampear seu consultório. Mostrou-me uma câmara minúscula. Foi Lisa Babikian quem a encontrou.

— O que você achou dele?

O que achei do dr. Richard Teitlebaum...

— Eu senti pena dele. Parece arrasado. Talvez por perder uma paciente dessa maneira. Ou talvez por perder mais do que simplesmente uma paciente.

 

Havia duas mensagens na secretária eletrônica quando cheguei em casa naquela noite. Annie telefonara para dizer que trabalharia até tarde e que, portanto, falaria comigo no dia seguinte. Escutei a mensagem dela uma segunda vez a fim de ouvir sua voz.

Chip também ligara para avisar que Nick Babikian havia sido chamado a juízo. Eles o transferiram para o Hospital Bridgewater para avaliação. Ele instruíra Nick a continuar recusando-se a falar com o psiquiatra do Estado até que eu terminasse meu trabalho.

Em seu estilo peculiar, Chip deduziu que eu faria uma avaliação completa do paciente. Em meu estilo nada peculiar, nem sequer pensei duas vezes. Eu estava mais que curioso. Seria Nick Babikian um psicopata ou teria consciência? Haveria ele abandonado a necessidade de controle, mesmo durante uma crise, e entrado num estado dissociativo? Eu não devia subestimá-lo. Afinal, ele grampeara o consultório do próprio psiquiatra, provavelmente depois de invadi-lo sem deixar vestígios.

Entre pacientes, reuniões, minhas tarefas regulares na unidade e a promessa de visitar parentes em Brooklyn com minha mãe, só consegui tempo para ir a Bridgewater na terça-feira seguinte.

Naquela manhã, peguei minha maleta com rodinhas. Nela guardei o material de que precisaria para fazer os testes. Os de QI e de memória eram os clássicos. Então, selecionei o Teste de Apercepção Temática — TAT. Havia cerca de quarenta cartelas, cada qual representando uma cena que induzia a um tema diferente. As imagens nas cartelas compunham-se de personagens sombreados.

Verifiquei os desenhos rapidamente. A imagem de uma menina no campo seria um começo neutro. Juntei outras cartelas que achei interessantes para o teste e prendi-as com um clipe.

O céu estava nublado quando saí do Pearce. Eu dirigia pela 128 quando a chuva começou a cair. Diminuí a velocidade.

Ao sair da rodovia, a chuva já havia parado e o céu clareava. Uma pequena placa indicava a saída para o hospital judiciário. Então, após percorrer quase um quilômetro numa estrada de terra, adentrei um enorme pátio asfaltado. Os frios pavilhões de concreto eram rodeados por uma cerca de aço com fios de alta-tensão. Dirigi-me para o pavilhão térreo que abrigava o hospital psiquiátrico do conglomerado, estacionei o carro e peguei a maleta no porta-malas.

Qualquer um que me visse teria pensado que eu pretendia me registrar num hotel. Mas aquela era o último lugar onde eu gostaria de passar uma temporada. Quando ali estive pela última vez, fora para entrevistar Stuart Jackson, um homem acusado de atirar na cabeça da ex-esposa e matar o namorado dela. Lembrei-me de como fora difícil sair do carro. Eu havia permanecido algum tempo no estacionamento, revivendo a entrevista que fizera com Ralston Bridges, o homem que se vingaria de mim pelo meu diagnóstico de insanidade mental matando minha mulher.

Naquele dia puxei a alça da maleta e atravessei o estacionamento. Olhei as janelas gradeadas que marcavam a fachada do hospital. Eu sabia que atrás daquelas grades os internos deviam estar me observando. Imaginei Bridges — cujos cabelos loiros, olhos azuis e feições angelicais poderiam convencer um júri de que não era um assassino — me observando. Disse a mim mesmo que Bridges encontrava-se trancafiado no presídio de segurança máxima de Cedar Junction, a quinze quilômetros dali. Porém, ainda assim eu queria dar meia-volta e rumar para casa. Sob a luminosidade do sol, eu me sentia o centro de um alvo.

Será que nunca mais seria fácil e automático, tal qual costumava ser, dirigir-me àquele lugar, sair do carro naturalmente e caminhar até o hospital, pensando apenas no presente?

Apertei a campainha do portão e fitei a câmara do circuito interno de tevê.

— Dr. Peter Zak. Estou aqui para avaliar Nick Babikian.

O portão deslizou silenciosamente e eu entrei no pequeno compartimento de arame. Em seguida, o portão atrás de mim se fechou e trancou. Esperei, sabendo que estava sendo revistado através do sistema de segurança interno.

Ao ouvir o clique na porta de aço à minha frente, empurrei-a e adentrei uma sala cujas paredes estavam pintadas de amarelo. Meia dúzia de cadeiras e telefones públicos numa parede eram tudo o que havia no recinto. Na parede maior havia uma janela com vidro fume. Dois vultos moviam-se do outro lado. Eles podiam me ver, mas eu não podia vê-los. Aquele tipo de vidraça sempre dava a mesma mensagem ao visitante: "Estamos no controle e você não está".

Eu me aproximei da janela e sacudi minha carta de autorização e meu documento de identidade. Uma gaveta de metal abriu-se abaixo da janela. Coloquei os documentos nela e a gaveta se fechou.

Minutos depois, um oficial corpulento, cujo quepe parecia menor que sua cabeça, abriu a porta ao lado da janela e me conduziu para uma sala, em que também havia uma janela de vidro fume, na parede que dividia o aposento da sala de segurança adjacente.

Eu conhecia a rotina. Coloquei a maleta sobre a mesa do canto, afastei-me e relaxei. O procedimento poderia demorar, dependendo do humor do guarda naquele dia. O oficial de plantão tirou tudo que havia na maleta e examinou cada folha de papel. Quando pegou as cartelas do TAT, deu uma olhada nas figuras e me encarou como se eu fosse uma espécie de pervertido. Então removeu o clipe, examinando-o como se fosse uma arma secreta.

— Você poderá pegar isso quando sair — ele informou.

Juntei os materiais de teste e fechei a maleta. O guarda acenou para o colega pelo vidro. Um zumbido grave ecoou quando a porta seguinte foi destrancada. O guarda empurrou-a e me conduziu para o o vestíbulo, onde o único objeto existente era um detector de metais. Tirei tudo que poderia acioná-lo, inclusive meu paletó e sapatos, e passei por ele. O mecanismo não soou nenhum alarme.

Eu me arrumei. Uma forma moveu-se atrás do vidro fume enquanto o guarda no banco de controle destrancava outra porta. Eu o segui pelo corredor até uma sala de exames. Perguntei-me de quem fora a idéia de pintar tudo ali de cor-de-laranja e amarelo.

A sala era mobiliada por uma mesa e um par de cadeiras. Abri a maleta e comecei a arrumar os testes na ordem em que planejava aplicá-los. Pelo menos eu sabia que aquela sala não estava grampeada. A privacidade era um direito do prisioneiro, e teriam de enfrentar um pesado processo caso a violassem.

Pensei ter escutado a porta se abrir atrás de mim. Virei-me e vi de relance alguém espiando pela janela da porta. Tive a impressão de ter visto cabelos loiros e um rosto angelical. Não era possível! Senti um calafrio.

Abri a porta, mas o corredor estava deserto.

Voltei ao trabalho, tentando ignorar a tensão que crescia em meu peito. Eu estava pronto quando a porta se abriu. Era Nick, acompanhado de um guarda.

Nick observou, cauteloso, as paredes e o teto antes de se sentar numa das cadeiras. Então seu olhar fixou-se sobre o material que eu dispusera na mesa. O guarda retirou as algemas.

— Mais testes? — Nick perguntou. Assenti. Ele me olhou com certa admiração. — Andei lendo a seu respeito. Você é o psiquiatra cuja esposa foi assassinada, não é?

A caneta que eu segurava caiu no chão. Peguei-a vagarosamente, ganhando tempo para responder. Talvez ele pensasse que o assassinato de minha mulher formasse uma espécie de elo entre nós.

— Sou psicólogo — corrigi.

— Eu sei. Como disse, andei lendo a seu respeito. Tentei manter a expressão neutra. Peguei o material para o teste de QI e sentei-me diante dele.

— Aposto que você já entrevistou um monte de gente aqui — Nick comentou.

Espantou-me ver como a atitude de Nick em relação a mim havia mudado. Ele parecia mais relaxado, até mesmo confiante. Perguntei-me por quê.

— Você é o primeiro depois de um bom tempo — eu disse.

— Sei. — Houve uma pausa. — Já conversou com Teitlebaum?

— Ontem à noite. Ele me pareceu um bom homem — comentei casualmente.

— Minha mulher certamente pensava assim — Nick murmurou com certa ironia.

— Ele pareceu transtornado por causa da morte de sua mulher.

— Mais do que você esperava? — Nick indagou. Todos nós teríamos, um dia, de lidar com a perda de pacientes. Suicídio. Doença. Felizmente, assassinatos eram raros. Eu ficaria muito perturbado se Lisa Babikian fosse minha paciente.

— Você fala como se o dr. Teitlebaum tivesse mais que uma relação profissional com Lisa.

— O que você achou, doutor? — ele perguntou, desafiando-me.

Deixei passar. Eu estava ali para fazer uma avaliação, não para jogar.

O teste de QI foi rápido. O QI verbal de Nick ultrapassou os 135 pontos; o desempenho mostrou uma pontuação mais alta. Então apliquei o teste de memória. Às vezes, pacientes com distúrbio associativo tinham dificuldade para lembrar.

Mostrei-lhe uma carteia com oito círculos amarelos dispostos aleatoriamente. Indiquei dois deles e pedi-lhe que apontasse os mesmos na mesma ordem. Depois, três, quatro e assim por diante. Tratava-se de um teste difícil e a maioria das pessoas acertava até cinco círculos. Nick conseguiu atingir a seqüência de oito. Em seguida, mostrei-lhe uma carteia semelhante com oito pontos vermelhos. Indiquei os pontos novamente, e pedi-lhe que me apontasse os mesmos pontos na ordem inversa. Em geral, as pessoas acertavam até três ou quatro. Nick chegou à seqüência de sete e cometeu apenas um erro na de oito.

Então peguei o TAT, selecionando as cartelas que eu havia separado antes de o guarda misturá-las e confiscar o clipe.

— Vou lhe mostrar alguns desenhos — eu disse a Nick.

— Quero que você crie uma história baseada nesses desenhos. A história tem de incluir o que ocorre na imagem, o desenlace e o que acontecerá no futuro. Também quero que me diga o que as pessoas nos desenhos estão sentindo.

Começamos com uma carteia neutra — a menina usando um uniforme escolar, em pé num campo de trigo. Nick saiu-se também com uma interpretação neutra.

— Há uma menina voltando da escola. A família quer que ela trabalhe na fazenda, mas ela tem sonhos. Talvez deseje ser uma bailarina.

— O que acontece a ela?                                          

Nick fitou o cartão e sorriu.                  

— Ela conhece um rapaz na escola, casa-se com ele e ambos vão para a fazenda e vivem felizes para sempre.

Seria essa a versão fantasiosa de Nick para a vida da esposa? Anotei a resposta e mostrei-lhe a carteia seguinte — o desenho de uma mulher diante de uma porta aberta e de costas para o observador. Um objeto semelhante a um rifle achava-se na parede, na extremidade da imagem.

Nick cruzou os braços e fitou a figura. Essa não seria fácil.

— Uma história.

— O que você acha que está acontecendo no desenho?

—Talvez ela esteja triste. Às vezes, coisas ruins podem acontecer. — Ele umedeceu os lábios. — Ela está escondendo alguma coisa. Eles virão para levá-la embora. Não sei o que é. Acho que ela roubou alguma coisa.

— Quem vai levá-la embora?                  

Ele me fitou, desconfiado.                                      

— Diga você.

— A história é sua. A mulher está se escondendo de quem?

— Não sei. Da polícia. — Ele empurrou a cartela em minha direção.

Não era o tipo de história que a maioria das pessoas contava. Aquela cartela representava depressão. A curta história de Nick expressava uma conseqüência. Não fiquei surpreso. Também reparei que ele nada dissera sobre a arma. As pessoas em geral faziam algum comentário a respeito. Algumas nem sequer reparavam no rifle, mas não era o tipo de detalhe que Nick perderia, em minha opinião. Eu não sabia se a omissão fora deliberada ou se era em função de sua patologia. Nos testes de personalidade, é levado em conta também o que a pessoa não diz, além do que ela diz.

A cartela seguinte era a imagem de um homem fazendo menção de pegar um saco numa mesa. O homem olhava sobre o ombro para os braços de alguém que tentava agarrá-lo por trás. Alguns pacientes diziam que o homem recebia ajuda para pegar um saco de guloseimas. Outros alegavam que alguém tentava roubar-lhe o quinhão. Eu tinha certeza de que caminho Nick tomaria.

— Esse cara está assustado — Nick contou. — Sabe que eles estão por perto. Estão pegando as coisas dele.

— Eles?                                                                    

Nick pensou por um momento.

— Agiotas. Ele deve muito dinheiro e sabe que vão pegá-lo. Ele está quase sorrindo. Sente-se aliviado porque eles finalmente chegaram.

Era estranho pensar que uma pessoa ficasse aliviada ao ser pega pelos agiotas. Quando fiz menção de aprofundar mais a história, notei um movimento na janela da porta — uma sombra colou-se ao vidro e desapareceu em seguida. Senti uma descarga de adrenalina ao levantar e abrir a porta. O vidro ainda estava embaçado.

Saí para o corredor. Estava deserto.                      

— Havia alguém aqui, espiando pelo vidro.

Nick levantou-se e caminhou até a porta. Olhou para os dois lados do corredor.

— Deve ter sido alguém que estava passando.

— Era alguém olhando pelo vidro — insisti. — Veja, o vidro ainda está embaçado da respiração...

Claro que o vapor já havia secado. Nick me olhou, pensativo.

— Isso faz parte do teste?

— Teste? — repeti, confuso. Então eu me lembrei: ser paranóico, por definição, significa ser egocêntrico. Qualquer coisa que acontecesse, Nick deduziria que tal fato teria a ver com ele. — Deixe para lá — eu disse e fechei a porta.

— Talvez você devesse me dizer o que pensa a respeito dessa imagem — Nick sugeriu quando nos sentamos. Fiquei espantado. Nunca imaginei que ele pudesse ter senso de humor. Ele se inclinou para frente e acrescentou: — Não se sente de costas para a porta, se isso o deixa nervoso. — Ele não parecia estar brincando. — Sempre me sento de frente para as portas.

Embora tivesse aceitado a sugestão e arrumado a cadeira de forma a trabalhar com Nick e vigiar a porta ao mesmo tempo, disse a mim mesmo que tudo aquilo era loucura.

Fiz algumas anotações em meu bloco e mostrei a carteia seguinte a Nick. Era o desenho de dois homens segurando um lampião sobre a figura de outro homem deitado sob um lençol branco e com o peito nu. Um dos que estavam em pé segurava uma faca. Um jovem usando um macacão encontrava-se no fundo da imagem.

Nick ficou pálido e empurrou a carteia.

— Você deve estar brincando! — ele disse. — O que diabos posso dizer disso?

Coloquei a carteia diante dele.

— Cabe a você decidir. Sei que não é fácil.

— Está me manipulando.

De certa forma, ele tinha razão. Era isso que os testes de personalidade faziam. Eram como velcro. Se a pessoa se identificava com a imagem da carteia, ela se mostraria perturbada e a resposta transmitiria tal fato, consciente ou inconscientemente .

— Tente. Estamos quase acabando. Só mais um desenho depois desse.

Ele olhou a imagem.

— O garoto... — Nick mordeu os lábios. — É só um menino. Talvez ele tenha lido um livro ou visto um filme. E está lembrando uma cena violenta do filme. Alguém foi esfaqueado. Ele não quer lembrar, mas não consegue evitar.

Nick pareceu aliviado quando retirei a carteia.

Entreguei-lhe a última. Era de um homem barbado olhando por uma janela, a sala escura atrás dele. Os braços do homem estavam apoiados no peitoril da janela, os punhos cerrados.

— Ele está planejando. Observando — Nick disse. — Ele gosta de ficar na janela porque, enquanto estiver vigiando, nada de ruim pode acontecer.

Houve um ruído na porta. Olhei para cima, e dessa vez não tive dúvida. Alguém colara o rosto no vidro, espremendo o nariz e sorrindo tal qual uma máscara de Halloween.

Levantei-me, derrubando a cadeira. Quando cheguei ao corredor, vi o vulto de um homem loiro passando pela porta na extremidade do corredor. Corri, atravessei a tal porta e entrei em outro corredor. Quando fiz a curva, trombei num guarda que vinha na direção oposta.

— Você o viu? — perguntei.

— Quem?                                            

— Ralston Bridges. — O guarda me olhou, confuso. — Estatura mediana. Loiro. Ele estava aqui. Deve ter passado por você.

O guarda estreitou os olhos.

— Ninguém passa por mim sem ser notado. Entendeu?

— Não estou insinuando nada. Eu o vi.

— Não sei o que o senhor viu ou pensou que viu. Só sei que está causando confusão. Não podemos permitir...

— Há um assassino à solta neste pavilhão!

— Temos muitos assassinos aqui. E para isso que serve este lugar. — O guarda aproximou o rosto do meu. — O Hospital Bridgewater é para criminosos insanos.

— Mas eu o vi. Ele estava do lado de fora...

— Basta, senhor — o guarda me interrompeu. Colocou a mão pesada em meu ombro e apertou o músculo. — Creio que seja hora de o senhor ir embora.

Cretino condescendente! Tentei passar por ele, mas o guarda agarrou meu braço, pressionou-o em minhas costas e me empurrou pelo corredor.

— Já lhe disse, senhor. E hora de partir.

Quando chegamos à sala de exames, ele me fez entrar.

— Arrume suas coisas. Já terminou.

— Não terminei. Tenho outro teste para aplicar. — Plantei os pés no chão e cruzei os braços. Ignorei a dor no ombro e notei que Nick assistia ao drama, perplexo. — Quero falar com o capitão encarregado.

O guarda pegou a caneta sobre a mesa e escreveu em meu bloco de anotações.

— Esse é o nome dele. É preciso ligar e marcar uma hora.

— Tenho a permissão do tribunal para avaliar o sr. Babikian — tentei. — Essa aplicação de testes é vital para sua defesa. E, quanto mais eu me demorar, mais tempo se passará antes que o sr. Babikian concorde em conversar com um psiquiatra do Estado.

O guarda encarou-me, calmo.

— Nesse caso, espero que o sr. Babikian goste daqui, porque sua temporada será longa. — O guarda levou as mãos à cintura. — Não me importa quem o senhor é e quantos diplomas tem. Está perturbando a rotina e desobedecendo a minhas instruções. Portanto, terá de voltar outro dia, senhor.

Furioso, comecei a recolher o material e guardá-lo na maleta. Outro guarda apareceu para levar Nick à cela. Quando passou por mim, Nick sussurrou:          

— Eu também vi.      

 

Naquela noite, fui encontrar Annie no Johnny D. Como ainda era cedo, não havia muito movimento no bar, somente aquela meia dúzia de freqüentadores assíduos. Annie estava encostada no balcão com um grupo de homens. O único que reconheci foi o sargento-detetive Joseph MacRae. Mac achava-se sentado ao lado de Annie.

Não me sentia completamente à vontade com aquele sujeito. Após trabalharmos em equipes adversárias algumas vezes, eu desenvolvera uma espécie de respeito rancoroso, o qual eu imaginava ser mútuo. A bem da verdade, eu não gostava de vê-lo perto de Annie.

Mac me avistou antes de Annie. Os cabelos ruivos estavam tão curtos que se tornava difícil afirmar que eram avermelhados. Ele se levantou e me estendeu a mão. O cumprimento foi apenas uma obrigação polida de ambas as partes.

Annie virou-se. Ela sorriu e me abraçou de leve. Imaginei se Mac acreditava que eu e Annie fossemos "apenas amigos".

Annie apresentou-me aos outros homens, também detetives.

Mac iniciou a conversa.

— Annie estava nos dizendo... — Ele se inclinou para trás e espirrou, tapando o nariz com a mesma mão que eu apertara. — Desculpe. É a friagem. Ela disse que anda recebendo trotes por causa de anúncios sugestivos deixados em banheiros masculinos. — Mac espirrou de novo.

— Você acha que ela corre algum perigo? — perguntei.

— Ei, ela está aqui! — Annie manifestou-se. — Pareço em perigo? Só quero descobrir quem está por trás dessa coisa toda.

— Vamos alertar o resto do pessoal — Mac prometeu. — Para ver se alguém o pega em flagrante por aí.

— Eu agradeceria, Mac — Annie disse.

— Fique atenta — um dos colegas de Mac aconselhou-a.

— Obrigada, gente. Avisem-me se souberem de alguma coisa.

Mac observou Annie afastar-se e sentar-se a uma mesa de canto. Após pegar duas cervejas com o barman, dirigi-me até ela.

— Reunião das terças à noite — Annie contou-me, indicando os policiais que agora cumprimentavam um colega.

— Ei, cara, como vai? — um deles perguntou.

— Há quanto tempo!

Reconheci quem se juntava ao grupo. Era o detetive Boley, que estava encarregado da investigação do assassinato de Lisa Babikian.

Annie continuou:

— Os rapazes vêm aqui há anos, uma vez por semana. Tomam cerveja e depois vão à casa de um deles para uma noitada de pôquer. E proibida a entrada de mulheres. — Ela sorriu. — Do contrário, nenhum deles ganharia nada.

Permanecemos imersos num silêncio amigável. Depois de tomar metade da cerveja, minhas costas começaram a doer. Devia ser o estresse de minha visita a Bridgewater.

— Acha que paranóia é contagioso? — perguntei a ela. Annie olhou para a porta do bar quando um casal entrou.

— Você é o especialista. Mas quer minha opinião de leiga? Sim, acho que é. E fome também. — Ela me fitou e apertou minha coxa sob a mesa. — Luxúria também. Muito contagioso.

— Está com fome? — indaguei.

— Não — Annie exalou o ar devagar, enquanto seu pé acariciava minha perna. Seus lábios se entreabriram, e ela os umedeceu com a língua. Eu observava, fascinado.

Então, naquele instante, MacRae espirrou e assoou o nariz.

— Por que pergunta? — Annie quis saber. — Acha que contraiu alguma coisa?

— Espero que não. Mas nesta manhã, enquanto eu entrevistava Nick Babikian no Bridgewater, pensei ter visto Ralston Bridges.

Annie arregalou os olhos. Ela chefiara a investigação quando Chip defendera Bridges da acusação de assassinar uma mulher que cometera o erro fatal de desdenhar os avanços de Bridges.

— Que dispensada perigosa! — Fora o comentário de Annie na época.

Contei-lhe sobre o rosto que vi colado ao vidro da porta da sala, sorrindo para mim. E também falei do guarda que me achara louco.

— Ele me disse: "Já terminou, senhor". Odeio o tom que eles usam para dizer "senhor". É tão educado! — ironizei. — O cretino me pôs para fora.

Eu bufava de indignação. Annie tapou os lábios com a mão.

— Ele me disse para mandar minhas queixas por escrito — acrescentei. — Mal tive tempo de recolher os testes.

Agora Annie ria.

— Ainda bem que você acha engraçado — comentei, incapaz de admitir que tudo começava a parecer divertido, mesmo para mim. — Eles nem sequer devolveram meu clipe!

Annie parou de tentar se controlar.

— Quantas pessoas — ela perguntou, entre gargalhadas — já foram expulsas de um manicômio judiciário? Você devia estar bancando o maluco.

Tive de sorrir.

— Admita, Peter. O que você viveu parece um tanto paranóico. Por outro lado... — O olhar de Annie tornou-se sério. Ela refletiu por alguns instantes. — Não — disse, descartando a possibilidade.

— Babikian também o viu.

— Estou certa de que ele é um referencial excelente — Annie ironizou.

— Tem razão. Só me falta virar hipocondríaco para confirmar minhas dores fantasmas.

— Ou desenvolver uma anorexia para justificar seu desejo de emagrecer. Ou uma psicopatia... — Annie deteve-se. Não era tão engraçado. Ralston Bridges era um psicopata perigoso.

— Bridges pode ter conseguido uma transferência de Cedar Junction — sugeri. — Bridgewater é o lugar ideal para criminosos em surto.

— Mas por que ele estava vagando pelos corredores? Os prisioneiros não ficam confinados em celas? — Annie perguntou.

— Depende do grau de periculosidade. Prisioneiros considerados inofensivos possuem certa liberdade de ir e vir.

— E eles os deixam perambular pelos corredores sem escolta?

— Deixam.

— Pena que ninguém tenha pedido minha opinião — Annie comentou. — Eu o considero um bandido muito perigoso.

— Eu também. Como ele sabia que eu estaria no hospital?

Annie pensou por um minuto.

— Foi divulgado nos jornais. Bridges deve ter lido o artigo a respeito da equipe de defesa. E quando Babikian foi enviado a Bridgewater para avaliação, ele somou dois mais dois.

— E eu pensei que você iria me consolar, dizendo que tudo era fruto de minha imaginação.

Annie olhou sobre meu ombro. MacRae aproximou-se da mesa.

— Desculpe pela interrupção. — Ele se dirigiu a mim. — Há alguém aqui que quer conversar com você.

MacRae fez um gesto na direção do grupo de amigos. Boley olhava para mim. Ele pegou sua cerveja e mudou-se para o canto do balcão, afastando-se do grupo. Fui até ele.

— Como vai, detetive Boley?

— Al — ele sugeriu, estendendo a mão. Olhei a mão estendida.

— E assunto oficial? — perguntei.

— Extra-oficial. Não se preocupe. Apertei a mão dele e esperei.

Boley parecia incerto quanto ao que dizer. Por fim, comentou:

— MacRae me disse que você é gente boa.

— Agradeço pelo voto de confiança. — Virei-me em direção à mesa. Annie e MacRae agora conversavam lado a lado. — Vocês são parceiros de pôquer?

Foi um comentário infeliz de minha parte, mas pude sentir que o radar de Boley estava ligado.


— Nós nos reunimos há anos. Algumas cervejas e carteado para aliviar o estresse.

A despeito do tom causai, Boley apertava a asa da caneca de cerveja com certa força. Segui meus instintos.

— Por mais experiência que se tenha no mundo do crime, nunca se está preparado para um caso como esse.

Os olhos de Boley se arregalaram. Então ele me mediu da cabeça aos pés.

— É raro ver um crime tão hediondo quanto esse. Posso lhe garantir. — Parecia muito justo, pensei. Policiais também eram pessoas.

— Conversou com o dr. Teitlebaum? — ele perguntou. Não era segredo. Confirmei com um gesto de cabeça.

— Eu só queria lembrá-lo de que, se descobrir algo que a polícia deva saber, qualquer evidência que nos tenha escapado... você sabe. — Ele sorriu para mim, concluindo que eu deduziria facilmente o resto da frase.

— Eu entrarei em contato com vocês, claro — assegurei. — Mas estou somente analisando o estado mental do sr. Babikian. Não é o mesmo que investigar um rastro de sangue.

Boley tirou um cartão de visita do bolso.

— Nunca se sabe. Se descobrir alguma coisa, quero ser o primeiro a saber. Preciso ter certeza de que pegamos o verdadeiro responsável pelo assassinato.

— Sem dúvida — concordei e guardei o cartão em minha carteira.

— Ainda bem que tivemos a chance de conversar. — Boley voltou ao grupo de amigos.

Retornei à mesa, onde Annie e MacRae ainda conversavam.

— O que ele queria? — Annie perguntou.            

— Nada de mais. Pediu-me para avisá-lo se eu descobrir qualquer evidência de que ele deva saber. Quer ter certeza de que pegaram o homem certo.

Annie e MacRae trocaram olhares.

— O que foi? — perguntei.

— Nada — MacRae murmurou e encarou Annie, como se a proibisse de contradizê-lo. Ele se levantou. — Annie me falou de Ralston Bridges — disse em tom solidário. — Quer que eu descubra se ele foi transferido para Bridgewater?

A última coisa que eu queria era dever um favor a MacRae.

— Obrigado, mas não é necessário — declinei, deixando meu ego sobrepujar o bom senso.

— Peter... — Annie começou.

— Não será incômodo. Bastam alguns telefonemas — MacRae garantiu.

— Esqueça — reafirmei.

MacRae ergueu as mãos para se defender de minhas palavras, que soaram mais duras do que eu pretendia.

— Como quiser. Só ofereci meus préstimos — ele justificou e voltou para o grupo de amigos.

— O que foi isso? — Annie perguntou.

— Ele é um sujeito legal. Só não o quero se metendo em meus assuntos — eu disse, sem olhar para Annie.

— Em seus assuntos? Refere-se a mim?

— Também.

Annie me fitou com ar compadecido.

— Mac e eu tivemos um passado — argumentou, lembrando-me de que ela e Mac haviam crescido juntos, pela proximidade das famílias. O pai de Mac fora policial, e os tios de Annie também. — Agora somos apenas amigos.

Eu sabia disso, mas me senti melhor ao ouvi-la confirmar. Mudando de assunto, eu observei:

— Quando lhes contei o que Boley queria, vocês dois pareceram surpresos.

Annie deu de ombros.

— Achei estranho. Mac também achou, mas é leal demais para expor a própria opinião sobre um colega. Boley gosta de acumular pontos para si mesmo. Quanto mais rápido, melhor. Dizem que, às vezes, é rápido demais. Por isso chegou a tenente em poucos anos. Agora ele quer ser capitão. Esse é o tipo de caso que pode consagrar um oficial.

— Sendo assim, por que pedir a você que o ajude com a investigação? Não é do feitio de Boley, já que ele tem várias provas para trancafiar Babikian. Por que convidar mais suspeitos para a festa? Isso sem mencionar a discussão que tivemos a respeito de ele voltar ou não à casa dos Babikian a fim de verificar o sistema de segurança. Afinal, para que buscar evidências que possam contradizer sua conclusão preliminar?

Annie observou o balcão do bar.

— Talvez ele esteja desenvolvendo alguma ética profissional. Ou uma consciência.

Uma jovem morena, usando jeans e camiseta justa, agora fazia parte do grupo. Estavam rindo, e Boley a abraçou pela cintura. Então, sua mão deslizou até as nádegas da mulher. Ela o agarrou pelo pulso e o enfrentou. Não pude escutar o que disseram, mas Boley ergueu os braços, parecendo desculpar-se. A jovem deu um passo na direção dele, e Boley baixou as mãos para proteger a parte mais sensível de seu corpo. MacRae intercedeu.

— Não seria má idéia, caso ele aprendesse a ter um pouco de educação — Annie acrescentou.

Quando voltei para casa, as luzes da frente estavam apagadas. Isso em geral significava que minha mãe saíra à tarde e ainda não voltara.

Abri a porta e acendi as luzes externas para ela. Notei um pacote ao lado da soleira. Tinha o tamanho e a forma de uma caixa de sapatos.

Nesse instante, minha mãe chegou. Estava acompanhada do fiel amigo, o sr. Kuppel. Era um pouco mais alto que ela, e corpulento, e usava um boné.

— Olá — cumprimentei-os.

Os olhos de minha mãe focaram o pacote, como se este fosse uma bomba.                                                    

— Isto chegou para mim — comentei.            

— Jogue fora — ela disse.

Olhei o pacote. Estava endereçado a mim. A caixa fora embrulhada com papel pardo e amarrada com um barbante. Peguei-a. Era pesada, e o conteúdo moveu-se quando a virei. Sacudi o pacote.

— Pelo jeito, o objeto aqui dentro está quebrado.

— Preferia que o pacote cantasse? — minha mãe perguntou. — Jogue isso fora! Não precisamos disso. — A voz dela soou estridente.

O sr. Kuppel aproximou-se dela, tocando-lhe o ombro para ampará-la.

— Pearl, não fique nervosa — ele tentou acalmá-la. Minha mãe não se apavorava à toa. Quando meu irmão, anos atrás, chegara em casa com o dedo mindinho pendurado só por um fio, ela nem sequer pestanejou. Envolveu a mão ensangüentada numa toalha e correu para pegar um táxi.

— Tente não sujar a camisa nova de sangue — ela dissera a caminho do pronto-socorro.

— Querem me contar o que está acontecendo? — pedi ao sr. Kuppel e a minha mãe. Ele a fitava, e ela mantinha-se em silêncio.

— Você recebeu um pacote igual a este?

— Um não é o suficiente? — minha mãe perguntou.

— Alguém mandou um pacote para sua mãe — o sr. Kuppel confessou.                                                    

Esperei para ouvir os detalhes.

— Havia pedras dentro da caixa — ela contou. — E uma foto da lápide de seu pai com o desenho de uma suástica.

— O quê? — Fiquei horrorizado só de pensar que o túmulo de meu pai pudesse ter sido obliterado e estremeci ao imaginar a agonia de minha mãe.

— Telefonei para o cemitério. Eles já tinham limpado a lápide. Queimei a fotografia, é claro. E as pedras, eu levei de volta para o cemitério.

Meu pai fora enterrado do lado esquerdo de um jazigo duplo. O lado direito seria, um dia, ocupado por minha mãe. Era essa a posição que ambos haviam ocupado na cama durante anos. Fazia cinco anos que ele falecera. Na última vez em que eu visitara o túmulo, colocara uma pedra junto às outras, ao pé da lápide. Tratava-se de um costume judaico.

— Quando foi isso?

— Outro dia — minha mãe respondeu, reticente, e sinalizando que não queria falar a respeito.

Por isso minha frágil tentativa humorística da outra noite a aborrecera.

— Esse pacote pode ser legítimo — comentei.      

— E eu serei a Miss América.

Fitei o pacote e, em seguida, o rosto apavorado de minha mãe. Eu não entendia muito do assunto, mas a sacudida que eu dera na caixa teria acionado a coisa, caso se tratasse de uma bomba.

— Façamos o seguinte. Vou abrir o pacote lá dentro. Se for algo terrível, chamarei a polícia. De qualquer forma, temos de descobrir quem está fazendo isso.

— Devia jogar esse pacote fora — minha mãe insistiu. — Só pode ser lixo.

— Por que alguém me mandaria lixo?

— Por que alguém me mandaria pedras? Refleti que ela teria sido uma excelente advogada.

— Boa noite — eu me despedi. — Vou cuidar disso.

— Ele vai cuidar disso — minha mãe murmurou. — Por que não joga essa porcaria fora? — Ela vasculhou o bolso, à procura da chave. — Teimoso como o irmão.

Entrei em casa e coloquei o pacote no balcão da cozinha. Servi-me de uma taça de vinho e ponderei acerca do que fazer.

O endereço estava em letras de forma. "DR. PETER ZAK." Não havia carimbo do correio, mas um punhado de selos com imagens de bandeiras. Cheirei o papel. Nenhum odor estranho. O nó do barbante fora feito de forma tradicional.

Seria fácil abri-lo. Ou eu deveria chamar a polícia e deixar que eles fizessem o serviço? Sacudi a caixa outra vez. O ruído não me pareceu perigoso.

Fui ao armário do corredor e peguei meu par de luvas no bolso do sobretudo. Levei o pacote até a varanda dos fundos e acendi a luz. Depositei-o no chão e calcei as luvas. Então desamarrei o barbante e retirei o papel. Era mesmo uma caixa de sapatos.

Cauteloso, ergui a tampa bem devagar. Nada pulou para fora. Nenhum boneco. Nenhum pó branco. Então abri a caixa completamente. Era o que parecia. Pedaços de cerâmica. Levei a caixa de volta à cozinha e dispus alguns pedaços sobre a mesa. Eram cinzentos e tinham desenhos de linhas profundas na superfície.

Senti um aperto terrível no peito. Assemelhavam-se às peças que Kate costumava fazer. Despejei o resto dos cacos sobre a mesa e consegui encaixar alguns. Reconheci a peça. Era um dos últimos trabalhos de Kate, um pote sobre o qual ela entalhara a figura de uma mulher com seios fartos e uma barriga protuberante. Era um dos meus favoritos.

Uma fúria cega cresceu dentro de mim. Joguei todas as peças no chão. Urrei de ódio. Como alguém ousava... De repente parei. Como diabos alguém conseguira pegar aquele pote que estava no ateliê de Kate?

Precipitei-me pela escada. A porta do ateliê estava semi-aberta. O interior achava-se escuro. Fechei os olhos. Por favor, Deus, não tire as lembranças de mim.

Empurrei a porta. A claridade de uma lua quase cheia penetrava pelas janelas. As sombras das peças ao longo das janelas confirmaram que não tinham sido destruídas. Encontrei o interruptor e acendi a luz. A coleção de cerâmica estava lá. Todas as peças, exceto uma. Olhei o espaço vazio na prateleira.

Como ele conseguira? Examinei a porta e as janelas. Eu me sentia violado, repentinamente inseguro em minha própria casa. Como o cretino soubera o que procurar e o que poderia causar a ferida mais profunda?

Telefonei para Annie, e ela veio na mesma hora. Por volta da meia-noite, a polícia já havia chegado. Eles vasculharam a casa toda. O intruso arrombara a janela no porão. Eu não fazia idéia de quando isso acontecera. Não me aventurava naquele canto do porão com freqüência. E quando estiver a no ateliê de Kate pela última vez não acendera a luz.

Pedi que eles revistassem a casa de minha mãe também, só por garantia. Ela não protestou.

— Na próxima vez em que um pacote suspeito chegar — o policial nos aconselhou —, não toquem nele. Coloquem-no dentro de um saco plástico.

Eu não tinha certeza de como colocar o pacote no plástico sem tocá-lo, mas entendi o recado. Para minha mãe, ele acrescentou:

— E não jogue nada fora! Ligue para nós imediatamente. Depois que eles saíram, Annie e eu nos sentamos à mesa da cozinha para tomar um café.

— Pelo jeito, você também irritou alguém.

— Ralston Bridges — eu disse, convencido de que fora obra dele.

— Por que tem tanta certeza? Você trabalhou em vários casos, Peter. Como saber quem guarda rancores? Por que presumir que foi Bridges? Ele não é um mágico.

Concordei. Uma coisa era ser transferido para Bridgewater para observação, outra era invadir minha casa.

— Não precisa ter sido ele — argumentei. — Qualquer pessoa de fora da prisão que o conheça pode ter feito isso.

— Um cúmplice? — Annie mostrou-se cética.

Meu café estava sem açúcar, mas eu o mexi assim mesmo. Peguei um pedaço de cerâmica que havia atirado no chão e depositei-o sobre a folha de jornal. Pressionei meu dedo no caco até senti-lo cortar a pele.

Annie postou-se atrás de mim e massageou meus ombros. Ela deslizou as mãos ao longo de minha coluna.

— Você está cheio de nós — comentou, enquanto trabalhava na musculatura dorsal.

Tentei relaxar e sentir o toque gentil. Não eram apenas os músculos que estavam retesados. Meu estômago parecia comprimido.

— Que tal um banho quente para ajudá-lo a relaxar? — Annie sugeriu.

Levantei-me e tomei-a nos braços. O sorriso de Annie não ocultava a preocupação.

— Só se você me fizer companhia.

— Gostei da idéia. — Annie colou-se a mim, sentindo minha ereção. — Você já está mais relaxado.

— Somente algumas partes de mim.

Segui Annie até o quarto. Enquanto eu tirava a roupa, ela ligava o chuveiro. Esquadrinhei o cômodo, procurando algum vestígio do intruso.

— Estou pronta! — Annie avisou.

O banheiro estava repleto de vapor. Juntei-me a Annie sob o chuveiro. Peguei o sabonete e ensaboei as costas dela. A pele era macia e suave. Abracei-a por trás e deslizei o sabonete sobre os seios, a barriga e entre as coxas. Annie se virou e nos beijamos longa e profundamente.

Eu queria me perder no som da água batendo na banheira de porcelana, na sensação de calor. Queria encher meus pulmões de vapor e me abandonar nos braços de Annie, quando ela pegou o sabonete e começou a acariciar meu corpo inteiro.

Depois de nos secarmos, largamos as toalhas no chão do banheiro. Foi um começo promissor. Mas, na cama, minha mente não desligou. Eu só conseguia pensar em quão devastador teria sido caso o invasor houvesse quebrado todas as peças de Kate. Ou ferido minha mãe. E se haveria uma câmara minúscula escondida no topo de minha estante.

Por fim, Annie rolou para o lado, deitou a cabeça em meu braço e começou a acariciar meu peito. Beijei-lhe a testa e abracei-a, imaginando se eu identificaria o cúmplice de Ralston Bridges caso o encontrasse num beco escuro. Reconhecer um adversário que possuía um rosto era uma coisa. Mas um cúmplice era outra completamente diferente. Podia ser qualquer pessoa.

 

Na manhã seguinte, sentia-me como se tivesse sido partido em pedaços, tal qual a peça de cerâmica. Dormi muito mal e sonhei que não era capaz de chegar em casa a tempo de salvar Kate. Os sentimentos de desespero e impotência que me assombraram naqueles dois anos sombrios após sua morte emergiram com força total. Não ser capaz de desempenhar meu papel com Annie só fez a situação piorar.

— Ora, Peter, sua casa foi invadida, o pote de Kate foi despedaçado e alguém saqueou o túmulo de seu pai — Annie listou, durante o café. — Eu ficaria preocupada se você conseguisse esquecer tudo isso e bancar o Casanova.

Era isso que eu esperava ouvir?

Annie então abriu as páginas amarelas e percorreu os olhos pelas empresas de segurança. Ela marcou aquelas das quais já ouvira falar. Annie era assim. Não passava mais que cinco minutos em mórbida reflexão. Era prática e objetiva.

Telefonei para uma das empresas. Farejando uma venda fácil, eles enviaram um vendedor no mesmo dia. Assinei o contrato de um sistema de alarme para ambos os lados da casa e paguei um adicional para que o aparato fosse instalado naquela semana.

Em seguida verifiquei minhas mensagens. Não havia nada que não pudesse esperar. Por volta das onze, eu já estava a caminho da Fazenda Westbrook, a casa de repouso onde a mãe de Nick Babikian fora internada. Era mais um daqueles raros dias perfeitos de primavera, mas quando adentrei um nevoeiro, meu estômago se contraiu.

A instituição era uma construção moderna de dois pavimentes, localizada no topo de uma colina. Quando estacionei o carro, já havia convencido a mim mesmo de que o que acontecera fora um simples contratempo e que minha casa se tornaria uma fortaleza com o novo sistema de segurança.

As portas de vidro se abriam para um acolhedor saguão de recepção, decorado com sofás e poltronas confortáveis. A maioria dos assentos estava ocupada por senhoras e algumas delas cochilavam. Um homem empurrava um anda-dor em minha direção. Segurei a porta para ele. O local possuía um leve odor de mofo, tal qual o apartamento de minha tia Gertie quando ela não estava cozinhando. Era o cheiro da terceira idade.

Quando me aproximei da recepção, uma mulher comentou:

— Quem é ele?                                          

Outra disse:                                                              

— Ele é bonitão.

Uma terceira acrescentou:

— Quem será a felizarda?

Acenei para elas. Elas riram e corresponderam ao cumprimento. Assinei o livro de visitas e peguei o elevador para a Unidade de Alzheimer, no segundo andar.

As diferenças entre Westbrook e as casas de repouso padrão eram sutis. A luz ambiente era mais clara e natural. A música de fundo — clássicos suaves alternando com bandas dos anos trinta e quarenta — acalmava os pacientes. Como o mal de Alzheimer distorce a interpretação do cérebro do que os olhos vêem, e cores e desenhos podem confundir ainda mais o paciente, o piso de linóleo era liso e opaco.

Reconheci a enfermeira de meia-idade e cabelos quase grisalhos que se achava ocupada atrás do balcão em frente ao elevador. Dottie Grebow havia trabalhado no Pearce durante anos. Ela fora enfermeira-chefe da Unidade de Reintegração, uma ala que se desintegrara durante a gestão do antigo diretor, Arnold Destler. Quando os lucros não eram satisfatórios, Destler sistematicamente reduzia o orçamento do setor e reduzia cada vez mais a equipe, até que os poucos remanescentes não conseguiram mais suportar a carga e pediram demissão.

— Peter! — Ela me recebeu com um sorriso.

—Há quanto tempo não nos vemos. — Eu abracei Dottie. Os pacientes sentados ao redor me observavam como se eu fosse uma atração de circo.

— Ouvi dizer que deram uma prensa em Destler. Pena que não pude ir à festa de despedida — Dottie disse, com um sorriso irônico.

— Creio que todos nós perdemos a festa. Mas Gloria comemorou, dançando fandango, quando a imprensa anunciou a demissão do homem.

Dottie riu.

— Eu queria ter visto isso. — Então ela ficou séria. — O que o traz aqui?

— Vocês têm uma residente chamada sra. Babikian? — Dottie expressou preocupação no olhar. — Como ela está? — perguntei.

— Melhor.

— Você estava aqui quando ela foi internada?

— Não. Mas fiquei sabendo de tudo. Acho que o filho tentou deixá-la no Oakvale. Eles a encaminharam para nós. Quando cheguei naquela manhã, ela ainda estava sendo acomodada. Tínhamos acabado de acalmá-la, e então ela teve outra crise. Estava agitada demais, gritando. Levamos um bom tempo para conseguir controlar sua ansiedade. Cada vez que via um homem de uniforme, a pobre mulher enlouquecia. Tivemos de disfarçar a equipe de manutenção para que conseguissem acomodá-la no quarto.

Dottie pegou um prontuário e fez menção de me entregá-lo. No mínimo, ela deduziu que eu seria o profissional responsável pela sra. Babikian e que, portanto, estaria autorizado a ver os registros.

— Dottie, vim aqui porque estou trabalhando para o advogado de defesa de Nick Babikian. A mãe dele estava na casa na noite em que a nora foi assassinada. Tenho a permissão de Nick para conversar com ela, e o filho é o guardião legal da sra. Babikian.

— Peter, ela não está em condições...

— Eu sei. Mas a polícia vai entrevistá-la, com ou sem condições. Ela pode ter visto alguma coisa.

— Levamos dois dias para acalmá-la — Dottie argumentou.

— Tentarei não estragar o trabalho de vocês.

Dottie me olhou com respeito. Depois fitou o prontuário, mas não o entregou a mim. Então abriu a pasta, verificou os dados rapidamente e fechou-a.

— Ela tem setenta anos. Ministramos uma pequena dose de Risperdal para tranqüilizá-la e abrandar os delírios, e outro calmante para ajudá-la a dormir. É desconfiada, tende a se isolar. Faz as refeições sozinha e recusa-se a sair do quarto. Tem de ser coagida a tomar a medicação. Está sempre resmungando. E seu relógio biológico está desregulado. — Dottie sorriu. — Ela quer tomar o desjejum às três da manhã.

— E o que vocês fazem?

— Nós lhe damos uma tigela de cereais, é claro — Dottie respondeu, guardando o prontuário —, tal qual você nos ensinou a fazer quando dava aquelas palestras.

— Parece um desafio.

— Felizmente, ela criou certa empatia com uma das enfermeiras.

— Talvez eu deva falar com ela antes de ver a sra. Babikian.

— Sim. Na verdade, eu gostaria que ela o acompanhasse.

— Fiquei grato, embora soubesse que o cuidado de Dottie era para com a paciente. — Ela está vindo.

A enfermeira em questão era uma mulher jovem e forte, de cabelos loiros presos por uma fivela na altura da nuca. O crachá pregado ao uniforme indicava que seu nome era Carole.

— Carole, este é o dr. Peter Zak. Ele veio ver a sra. Babikian — Dottie informou-lhe.

Estendi minha mão. Ela a apertou com firmeza.

— E parente dela? — Carole pareceu animada.

— A sra. Babikian não me conhece.

Carole respirou fundo. Ela receava que eu atrapalhasse todo o trabalho que tivera para estabilizar a paciente.

— Está tudo bem — Dottie garantiu. — Ele trabalha com pacientes como os nossos todos os dias.

Carole mediu-me da cabeça aos pés.

— Por que não tira o paletó e a gravata e os deixa aqui?

— Fiz o que ela havia sugerido. — E dobre as mangas da camisa. A sra. Babikian tem aversão a qualquer um que pareça oficial.

Carole me conduziu pelo corredor. No meio da passagem havia uma senhora dormindo numa cadeira de rodas, com o jornal de cabeça para baixo no colo. Carole gentilmente empurrou a cadeira para o lado.

Passamos por vários dormitórios simples e duplos. Em cada uma das portas, via-se um envelope de plástico contendo a foto do ocupante do quarto e um cartão amarelo com o nome do paciente. Algumas portas estavam abertas. As paredes eram pintadas em tons pastel, e notei um toque pessoal junto dos leitos institucionais — uma cadeira de balanço aqui, uma cômoda vitoriana ali, porta-retratos.

Todo o lugar organizava-se à base de códigos. A porta dos banheiros era pintada de vermelho e com o desenho de um vaso sanitário. As salas de atividades haviam sido pintadas com cores primárias para distingui-las dos outros espaços e ajudar os pacientes a permanecer alertas.

Paramos em frente ao quarto da sra. Babikian. A foto de uma Polaroid pendurada na porta mostrava um rosto assustado.

— Como ela está? — perguntei.

— Está se adaptando. Sou a única pessoa em quem ela confia, embora todos os funcionários daqui sejam como eu.

— Eu sei.

A Fazenda Westbrook também era conhecida pela eficiência e pelo tratamento atencioso dos funcionários. Claro que se tratava de uma instituição particular e os pacientes pagavam bem pelos cuidados que recebiam.

— E melhor você entrar primeiro — sugeri.

Carole abriu a porta. O cômodo não tinha nenhum toque pessoal, somente a mobília institucional. A sra. Babikian se virou quando Carole entrou. Ela estivera olhando pela janela. O vestido verde pendia dos ombros estreitos, e a pele pálida caía flácida ao redor do pescoço. Os cabelos eram cacheados, finos e salpicados de fios brancos. Ela parecia ter mais de setenta anos. Os olhos escuros fixaram-se em nós.

— Quero ir para casa — ela disse a Carole.        

A sra. Babikian pegou uma bolsa preta já surrada e um roupão azul no pé da cama, agarrou-os de encontro ao peito e começou a marchar em direção à porta. Quando me viu, ela se deteve. Abriu a boca, a princípio sem emitir som algum, depois soltou um grito que pareceu vir do estômago. Rapidamente, o grito transformou-se numa palavra estranha.

— Menin, menin... — Ela repetia o som constantemente, sem tirar os olhos de mim.

— Está tudo bem, sra. Babikian — Carole assegurou, colocando-se entre nós. O som abrandou-se. — Este é o dr. Zak. Ele veio conversar com a senhora.

— Sou amigo de Nick — eu disse.

Como uma torneira que se fecha, o gemido parou. A sra. Babikian aproximou-se de mim, a cabeça inclinada para o lado, os olhos brilhantes.

— Tenho de ir para casa. Mamãe está na padaria, e Nick deve estar chegando da escola. Ele vai querer leite com biscoitos. — Ela passou por mim, parou na soleira da porta e espiou para os dois lados, como se fosse atravessar uma rua. — Onde está Nick?

— Acabei de ver Nick — eu disse, entrando na fantasia. A sra. Babikian virou-se e me encarou. — Ele ainda não chegou em casa. Mas está a caminho. Eu o vi na loja de doces, comprando chiclete.

A sra. Babikian sorriu.

— Ele sabe que não pode mascar chiclete. Ficará cheio de cáries.

— Chiclete sem açúcar — eu garanti.

Os braços da sra. Babikian relaxaram, e a bolsa e o roupão caíram no chão. Eu os recolhi e coloquei-os numa cadeira, notando ao me abaixar que na barra do vestido havia uma mancha amarronzada. Imaginei se seria do sangue de Lisa Babikian e a equipe eficiente de Westbrook a teria lavado.

— Por que não se senta? — Carole guiou a sra. Babikian para uma cadeira.

— Posso lhe trazer alguma coisa? — ofereci. — Está com sede?

A sra. Babikian passou a língua sobre os lábios secos.

— Suco seria ótimo.

Carole fitou-me quando fiz menção de sair.

— Suco em lata. Fechado. E traga um canudo. Retornei com uma lata de suco de tomate e o ofereci à

sra. Babikian. Ela olhou para Carole antes de aceitá-lo. Cuidadosa, limpou o topo da lata com a barra do vestido e depois puxou o anel para abri-la. Carole inseriu o canudo na abertura. A sra. Babikian tomou um longo gole. Então suspirou.

Puxei uma cadeira para perto dela.

— A senhora dormiu bem?

Ela assentiu e tomou outro gole. Em seguida deixou a lata no chão.

— Quero dormir em minha cama — anunciou.

— Eu posso lhe trazer algo de casa. Gostaria que eu fizesse isso? — perguntei.

Ela pensou por um instante.                                

—Nick?

— Quando foi a última vez que viu Nick?

— Esta manhã. Eu o mandei àquela escola onde ele sempre apanha. — Linhas de ansiedade marcaram sua testa. — Ele tinha de trabalhar na padaria, mas ainda não chegou. Preciso voltar para casa. Espero que Nick não tenha se metido em outra briga. — Ela começou a se levantar e, sem querer, chutou a lata de suco, que emborcou, formando uma poça no chão.

— E antes desta manhã? — perguntei. — Viu Nick e Lisa?

Carole pegou algumas toalhas de papel e, abaixando-se ao lado da sra. Babikian, começou a limpar o assoalho.

— Lisa? — A sra. Babikian arregalou os olhos. Virou-se para Carole. — Mas Lisa está aqui. —- Ela pousou a mão magra sobre a cabeça da enfermeira e sorriu. Então o semblante tornou-se sombrio. — Mas Lisa não deveria estar aqui. Ela...

A sra. Babikian olhou a toalha de papel que Carole segurava, encharcada de suco de tomate. Levantou-se, levou as mãos ao peito e começou a gritar.

— Lisa! Lisa! — Ela berrava sem parar, enquanto fitava o líquido vermelho na toalha.

Um servente surgiu à porta, e os gritos da sra. Babikian se intensificaram. Agora as palavras eram um balbucio indecifrável, misturado a outros sons — talvez outro idioma — enquanto ela sacudia a cabeça o tempo todo. Peguei as toalhas de papel das mãos de Carole e joguei-as no lixo.

Quando voltei, a sra. Babikian segurava o braço de Carole.

— Minha família veio de Erzurum — ela falou apressada, como se tentasse fazer Carole entender.

Carole sorriu para ela.

— Os turcos entraram na casa — a sra. Babikian prosseguiu, acalmando-se. As marcas do rosto se suavizaram e uma década pareceu evaporar. — Soldados de olhos vazios. Eles usavam máscaras. Levaram minha mãe. Amarraram todos com cordas. Estava nevando.

Ela sorriu, como se contasse uma história a uma criança.

— As mães. Elas não podiam levar seus bebês. Então, elas os abandonaram. Eles choravam e engatinhavam pela rua suja. — Ela soltou Carole. — Elas andaram e andaram. O rio Eufrates estava vermelho de sangue. Roupas flutuavam na água. Cadáveres. Muitos. O rio estava vermelho com o sangue armênio. — A voz da sra. Babikian soou rouca. — Minha mãe bebeu. O que ela podia fazer? Ela tinha de matar a sede.

Carole indicou a porta, pedindo-me que saísse.

Parei no corredor e escutei. Mal conseguia ouvir a voz da sra. Babikian que agora entoava baixinho.

— Elas andaram por dias e dias...

Então ouvi a voz tranqüilizadora de Carole. E por fim o silêncio.

— Casa — a sra. Babikian murmurou, de repente, acrescentando em seguida: — Onde está Nick?

 

Annie me encontrou em frente ao Clube de Remo no sábado à tarde. O gramado e a calçada entre a Memorial Drive e o rio estavam apinhados de gente. Patinadores e ciclistas costuravam entre corredores e casais com crianças. Annie conversava com uma dupla de patinadores. Com calças de lycra preta, capacetes prateados e joelheiras, os dois pareciam ter saído do filme Mad Max.

Annie acenou ao me ver. A dupla despediu-se dela e saiu patinando.

— Olá! — eu disse. Tentei parecer relaxado, mas o resíduo de nosso último encontro ainda me perturbava.

— Olá. — Annie sorriu.

Eu a abracei e, conforme a ansiedade diminuía, senti a tensão dissipar-se em minhas costas e ombros. Inspirei e me deixei envolver pela docilidade de Annie. Resisti à tentação de acariciar-lhe a curva dos quadris.

Annie virou-se para olhar o rio. O dia estava lindo. Veleiros e barcos a motor navegavam pela superfície plácida.

— Ainda bem que vamos usar o tanque — comentei. — Do contrário, seríamos perturbados a cada cinco minutos. É preciso tranqüilidade para remar.

— O que eu preciso para remar — ela disse, agora mirando os patinadores — é de terra firme. O dia está perfeito para patinar.

Para mim, o prazer de remar só podia ser superado por um bom vinho ou sorvete de baunilha. Eu sonhava em remar com Annie ao entardecer, deslizando suavemente sobre o rio, nossos corpos em perfeita sincronia. Eu tinha certeza de que ela amaria o esporte assim que o experimentasse.

— Mudou de idéia? — perguntei.

— Moi? Não mesmo. — Annie olhou de soslaio para o abrigo de barcos. Construído na década de sessenta, parecia um engradado que alguém deixara na margem do rio. — Mas você sabe que não gosto de barcos.

Sim, eu sabia.

— Não vamos ficar num barco. E a profundidade do tanque tem menos de um metro e meio — argumentei, para persuadi-la.

Annie não pareceu impressionada.

— Depois de tantas experiências desagradáveis que você já teve em barcos, fico surpresa em saber que ainda gosta de remar.

Da última vez em que nós dois estivemos juntos num barco, acabei destruindo meu bote, e MacRae e eu entramos numa competição ridícula. Ele conseguiu chegar até o fim do rio Charles e eu finalizei a corrida com a cara no gramado. Diria que empatamos.

— Aquele era o velho clube da UB. Já foi demolido. — Com sua fundação centenária, o velho Clube de Remo da Universidade de Boston fora considerado um prédio condenado.

Puxei Annie pela rampa e entramos. O clube estava quase vazio. Duas jovens, provavelmente remadoras universitárias, exercitavam-se com pesos. Um homem de cabelos grisalhos suava a cântaros na aparelhagem de remo artificial. Aquele exercício requeria pouca habilidade mas muita força e resistência. Eu mesmo não conseguia praticá-lo. Ficava zonzo só de atingir a marca dos quatro minutos. Eu preferia remar no rio sob uma chuva fria a me exercitar naquela máquina de tortura.

O homem diminuiu o ritmo e parou. Então verificou o relógio e mediu a pulsação. Sua camiseta estava encharcada de suor. Imaginei se ele competia na olimpíada de remo, que acontecia todos os invernos, quando mais de mil remadores do mundo inteiro afluíam a Rockwell Cage.

Desci a escada para buscar os remos. As portas maciças, que ficavam abertas para o rio em qualquer dia da semana, estavam fechadas. Quando voltei, Annie olhava a longa e estreita raia do tanque. As paredes externas espelhavam o meio percurso. E acima delas estendiam-se janelas horizontais.

O tanque propriamente dito era dividido por um muro de concreto. Oito assentos de fíberglass deslizavam em trilhos instalados no alto do muro, com um par de forquilhas de cada lado.

— Que cheiro — Annie comentou.

Eu já havia me acostumado com o odor da água parada misturado ao de suor.

— Vai acabar gostando — eu disse a ela.

— É disso que tenho medo.

Annie aproximou-se da extremidade do tanque e espiou. Era o mesmo movimento que minha mãe fazia ao examinar algum alimento esverdeado dentro da geladeira.

— Você não vai cair na água — garanti.

— O que eu ia dizer... — Annie começou.

— Está se esquivando. Annie sorriu.

— Talvez. Mas você vai querer ouvir o que tenho a dizer. — Ela ficou séria. — Obtive o resultado da autópsia.

Encostei os remos na parede.

—Lisa Babikian morreu devido ao traumatismo craniano. Múltiplas escoriações. Depois de matá-la, o assassino a cortou e jogou-a na piscina. Não foi possível precisar a hora da morte. A água da piscina era aquecida.

Nenhuma novidade até agora. Aguardei.

— Ela estava grávida.

— Meu Deus... — Meneei a cabeça. Teitlebaum dissera que Lisa parecia radiante, que havia ganhado peso. — Quantos meses?

— Não sabem ao certo. Entre sete e doze semanas, talvez.

— Por que não podem ser mais precisos?

— Não havia feto. Nem útero. O assassino arrancou quase tudo.

Apoiei-me na parede. Senti urna tremenda opressão no peito ao pensar na jovem que sangrara na piscina e na frágil vida que lhe fora arrancada.

— Desculpe, Peter. Eu não queria me expressar tão cruamente. Está se sentindo bem?

Assenti, incapaz de falar.

— Nick me disse que Lisa não queria filhos — comentei, por fim.

— As mulheres, em geral, mudam de idéia facilmente em relação a esse tema — Annie observou.

Teitlebaum dissera que a vida sexual do casal não andava bem. Em que grau, perguntei-me, e havia quanto tempo? Poderia Nick ser o pai do bebê? E se fosse? Tal fato tornaria mais difícil assassinar a esposa?

— Como foi a conversa com a mãe dele? Proveitosa? — Annie perguntou.

— Não muito. O quadro de demência é evidente. É difícil atribuir ações a certos pensamentos. Mas a sra. Babikian parece ter estabelecido uma ligação com a nora. Ela ficou muito perturbada quando a enfermeira limpou o suco de tomate que havia derramado no chão. E acho que a barra do vestido dela está manchada de sangue. Porém, já sabemos que ela viu alguma coisa. Como testemunha, no entanto, ela é inútil para ambos os lados.

— Espero que me diga que Nick Babikian não matou a mulher — Annie confessou. — Não estou animada com a possibilidade de trabalhar para um homem que fez tudo isso com a esposa.

Os resultados dos testes, mais minhas observações, em geral eram esclarecedores. Contudo, nesse caso, eu não tinha certeza de nada. Estaria ainda coletando dados ou a vigilância de Nick refletia-se em mim? Eu até desconfiava da empatia que sentia pelo sujeito. Eu correspondia a um sentimento genuíno ou à minha própria contratransferência, já que eu também perdera minha esposa assassinada?

— Honestamente, não sei. Ele é esperto, Annie. Muito esperto. Os testes confirmam, mais ou menos, o que suspeitávamos desde o início por causa das máscaras e das câmaras espalhadas pela casa. Paranóia. O problema é que os paranóicos são muitos difíceis de testar porque estão sempre desconfiados e atentos a tudo. Só deixam escapar o que querem. Não sinto que estou obtendo um quadro completo. Eu gostaria de conversar com alguém que conheça Nick, que tenha interagido com ele no dia-a-dia.

— Chip o conhece há um bom tempo, não?

— Não creio que ele e Chip fossem tão amigos assim — concluí. — Alguém que tenha trabalhado com Nick seria ideal. A pessoa acabaria baixando as defesas.

— Tentei falar com alguns funcionários da empresa — Annie contou. — Não disseram nada.

— Devem estar com medo de perder o emprego.

— E o ex-funcionário que invadiu o escritório de Nick? — Annie sugeriu. — Ele trabalhou na empresa durante anos. Será fácil obter informações dele. Deve estar furioso com Nick.

— Parece perfeito, se ele estiver disposto a falar comigo.

— Vou perguntar.

— Chip já revelou a Nick o resultado da autópsia?

— Ainda não.

— Eu gostaria de estar presente nessa hora. Estou curioso para saber como ele reagirá.

— Vou avisar Chip. — Quando se concentrava, Annie franzia as sobrancelhas. — O que mais... — Ela arregalou os olhos. — Que tal dar uma olhada nos jogos que ele criou?

Claro. Muitas pessoas imprimiam a própria personalidade no trabalho. As pinturas de Edvard Munch e as obras de Sylvia Plath eram marcadas pelo distúrbio obsessivo e pela alienação. Talvez a narrativa e as imagens visuais nos jogos trouxessem alguma luz ao caso de Nick.

— Você é brilhante — disse a Annie, abraçando-a.

— E você é lindo de morrer — ela retrucou. Annie equilibrou-se no muro que dividia o tanque.

— Céus, como fede! Não podemos acabar logo com isso?

— Sente-se no terceiro assento — pedi.

Ela se acomodou. Peguei um par de remos, fui para o lado oposto do tanque e o atravessei para encontrá-la.

— Coloque os pés aqui — eu disse, indicando a posição exata do remador. — Vou prendê-los.

Deixei os remos no tanque e prendi os pés de Annie com a faixa de velcro. Resisti ao desejo de acariciar os tornozelos e deslizar minhas mãos sobre a calça de lycra que se colava às coxas como uma segunda pele.

— Nenhuma corrente? Nem cadeados?

— Pare de reclamar. Pelo menos, não preciso ensiná-la a cair, como você teve de fazer comigo.

Posicionei os remos e orientei Annie quanto às manobras, o movimento das pernas e o deslize do assento. Em seguida, o movimento do tronco, somado ao arco dos braços em sincronia com o corpo para completar a remada.

— Não é tão ruim — Annie admitiu.          

— Tem certeza de que nunca remou?              

— Já lhe disse. Passeei de bote quando era pequena, o que não foi nada comparado a isso.                  

— Você disse que odeia barcos.                  

— Um bote não é um barco. E eu estava numa lagoa rasa de peixes.

Abri os portões da extremidade do tanque. A corrente estável do rio agitou a água parada, oferecendo certo desafio ao esporte.

Voltei e observei Annie remar. Ela levava jeito.

— É um exercício excelente, em especial para as pernas e os peitorais. Não que haja algo errado com seu corpo.

Coloquei as mãos em cada uma das coxas de Annie. Nunca imaginara que o tanque fosse um local apropriado para uma fantasia sexual, mas a mente sempre criava possibilidades interessantes.

Mais tarde, nos sentamos num banco à beira do rio e admiramos o pôr-do-sol.

— Que lindo... — Annie apontou para o colorido do céu atrás da Torre Hancock.

— Recebeu mais telefonemas? — perguntei. Ela não respondeu.

— Droga. Os trotes continuam, não?

— Vou pegá-lo. Cada policial da cidade está vasculhando os bares daqui até Arlington. — Annie segurou minha mão.

— A propósito, por que não deixou Mac descobrir informações a respeito de Ralston Bridges? Se ele estava em Bridgewater...

— E daí? — eu a interrompi. — Eu poderia enlouquecer com essa história. É hora de seguir em frente.

Olhei ao redor. Um carro buzinou atrás de nós na Memorial Drive no mesmo instante em que um motociclista acelerava sua moto. Havia tantas árvores ao longo do rio, tantos lugares onde pessoas poderiam observar sem ser vistas. Era tão fácil quanto ajustar a cor da televisão, passando do benigno ao maligno.

— Se eu me deixar envolver por isso, estarei fazendo exatamente o que ele quer.

 

Encontrei Chip em Bridgewater no domingo pela manhã. Tão logo entramos, ele conversou com o policial, que felizmente não me reconheceu. Fomos à sala de avaliação. Posicionei a cadeira de forma a poder ficar de olho na porta.

Quando Nick chegou e nos viu juntos, ele hesitou, mas não perguntou por que estávamos lá.

Antes de se sentar, perguntou a mim:

— Como está minha mãe? Eu liguei para a instituição, mas não há telefone no quarto dela.

— Sua mãe está muito bem instalada — garanti. — A Fazenda Westbrook é o que há de melhor. E ela criou um bom vínculo com uma das enfermeiras.

Ele se sentou diante de nós. Com os olhos, esquadrinhou a sala. Pelo jeito, o período passado na cadeia parecia ter causado um efeito paliativo. Seus movimentos estavam mais fluidos e a agitação havia diminuído.

— Ela comentou alguma coisa... a respeito do que aconteceu?

— Ela queria encontrar você para lhe dar leite com biscoitos.

Nick riu.

— Essa é minha mãe.

— E perguntou sobre Lisa. Tive a impressão de que ela sabia que algo aconteceu à nora.

Os olhos de Nick brilharam, mas ele nada disse. Parecia despender grande esforço para se manter equilibrado. Lembrei-me de que, inocente ou culpado, ele não gostaria que a mãe revivesse o que podia ter testemunhado.

— Considerando a dificuldade dos pacientes de Alzheimer em se adaptar a novos ambientes, eu diria que ela está se saindo bem. E não é raro se fixarem no passado. As lembranças mais antigas ainda estão lá. Em geral, eles não se atem a novas lembranças, a menos que seja algo carregado de emoção.

— Você acha que ela... — Nick começou.

— Ela ficou muito transtornada quando o suco de tomate caiu no chão. Isso sugere que ela se lembra de alguma coisa. E a barra do vestido parecia manchada de sangue.

Nick desviou o olhar.

— Então, eles estão cuidando bem dela.

— Penso que sim.

— Estão cuidando bem de você? — Chip perguntou. Nick deu de ombros.

— Os guardas ficam me vigiando através das câmaras.

Ele fitou um canto do teto, depois o outro. Perguntei-me do que Nick estaria falando. Não era permitido filmar os prisioneiros em suas celas. Contudo, nada mais me parecia bizarro.

Nick piscou algumas vezes e endireitou o corpo, como se de repente lembrasse onde estava, quem éramos e que estávamos com ele.

— O que é isso?

— O resultado da autópsia — Chip respondeu.

Nick empinou os ombros, como um lutador protegendo sua vulnerabilidade.

— Sua mulher morreu por causa de vários golpes na cabeça — Chip relatou. Eu observava a reação de Nick. Até agora, nada. — Em seguida foi eviscerada. O assassino extraiu o bebê que ela gerava.

Os olhos de Nick arregalaram, e o rosto tornou-se pálido.

— Ela estava grávida?

— Você não sabia?

Ele fitou as próprias mãos que estavam sobre a mesa.

— Encontrem o pai — disse, cerrando os dentes. — Ele é o assassino.

— Tem certeza de que o bebê não era seu? — Chip indagou.

— Eu nunca quis filhos. — As palavras de Nick reverberaram pelas paredes. — Nunca quis filhos. Fiz vasectomia.

— Ainda assim, pode acontecer — Chip argumentou.

— Não... posso... ter... filhos — Nick insistiu, soltando faíscas pelos olhos. — Encontrem o pai! — disse, olhando para mim.

Eu esperava administrar mais dois testes, mas, dado o estado de Nick, achei melhor não arriscar. Porém, ele pareceu recuperar o equilíbrio à medida que Chip apresentava-lhe a papelada legal que precisava ser preenchida. Depois que Chip saiu, Nick parecia bem mais calmo.

Peguei as cartelas para a seqüência do teste.

— Vou lhe mostrar algumas imagens — eu disse, expondo a primeira série de cinco desenhos.

— Tenho de dar uma ordem às imagens — Nick deduziu.

— Exato. Depois vou tirá-las, e você me dirá que história elas contam. Já fez esse teste?

— Não, mas é fácil ver como funciona. É óbvio demais.

— Ótimo.

Não contei a Nick que o teste era excelente para identificar a paranóia. As pessoas tendiam a montar a seqüência baseadas em pequenos detalhes e sem se apoiar num amplo entendimento da natureza humana. Para completar, o teste exigia concentração e atenção constantes. Era possível observar lapsos e lacunas no espaço consciente.

Nick olhou o vidro da porta. Não pude me conter. Virei-me para ver se Bridges estava lá. Quando me voltei, Nick me olhava quase sorrindo.

— Não se preocupe. Ele não está mais aqui.

Não gostei nem um pouco. Nick bancava o complacente, certo de que sabia exatamente o que eu passava. Devia ser eu a dar as cartas e, em vez disso, estava sendo manipulado.

— Fui procurá-lo — Nick contou. — Cretino assustador. Sabe o que ele disse?

Não respondi, mas Nick continuou.

— Ele riu. Disse que você não seria muito útil para mim porque estaria preocupado demais com as entregas especiais.

— Entregas especiais. — Repeti as palavras devagar. Bridges tinha de se gabar. Precisava me mostrar quão inteligente era.

— Francamente, depois de conhecer aquele maluco, fiquei aliviado quando o transferiram. — Nick estremeceu. — Há algo apavorante naquele olhar morto e sorriso maníaco. — Eu nunca vira o sorriso de Ralston Bridges. — Ele parece um personagem de filme de terror. Ainda bem que minha avó não o conheceu. O homem confirmaria todos os pesadelos que ela teve.

Houve uma pausa. Nick clareou a voz.

— Foi ele quem matou sua mulher, não foi? — O tom soou gentil, tal qual um dedo tocando um curativo.

Não neguei.

Nick prosseguiu.    

— Pelo jeito, ele queria que você soubesse quem era o responsável pelas entregas.

Olhei para a porta novamente, pensando ter ouvido um ruído.

— Ele se foi, é verdade — Nick garantiu. — Eles o levaram para Cedar Junction ontem.

— Ele mencionou algo mais? — perguntei.

— Eu não estava muito animado com a conversa. Nunca se sabe o que pode irritar um cara como ele.

Um comentário muito perspicaz.

— O que ele mandou para você? — Nick perguntou.

— Algo que pertencia a mim.

— Deve ser alguma coisa de que você gosta muito. Não respondi.

— Aquele filho da mãe sabe enfiar a lâmina e torcer. Eu espalhei as cartelas do teste e peguei a caneta.

— Você conseguiu um bom sistema de segurança? — Nick perguntou. Não respondi. — Sou especialista, você sabe.

— Nós deveríamos nos concentrar no teste — eu disse.

— Que empresa você contratou? Eu o encarei.

— Eu posso lhe dizer se é boa ou não. Algumas delas são apenas embustes.

Muito contrafeito, eu me vi dizendo a ele o nome da empresa que havia chamado.

— Firma idônea — Nick garantiu. — Eles instalaram um alarme? — Assenti. — Cartão de acesso? — Assenti de novo. — Sensores? Todos os pontos estão segurados?

O instalador percorrera a casa, centímetro por centímetro, identificando cada possível ponto de acesso, incluindo a janela pela qual o intruso entrara.

— Instalou sensores de movimento no interior? — Nick perguntou.

Minha mãe não ficara nem um pouco feliz com isso. Ela murmurara algo sobre ter de viver sob um rádio transmissor.

— Parece que você se garantiu com o básico. Contudo, é possível burlar esse sistema? Sim, facilmente.

Nick parecia extremamente confiante. Era assustador. Qualquer um que quisesse invadir sua vida precisava apenas de genialidade e persistência.

— E quanto às câmaras? — ele perguntou.      

— Não acha um tanto exagerado?

— Acredita que não receberá mais entregas especiais? Vai querer saber quem entra em sua casa quando você está ausente. Câmaras infravermelhas podem filmar no escuro.

Embora contrariado, eu escutava. Rascunhava lembretes na folha protocolar do teste. Nick continuou a me dar especificações detalhadas do que eu precisava, em sua opinião.

— A empresa pode monitorar sua casa e avisá-lo no instante em que houver uma intrusão. Também podem conectar o sistema à Internet. As imagens são transmitidas a você onde quer que esteja. É possível vincular o alarme ao seu celular. Você usa um bip, não? Eles podem alertá-lo pelo bip também. E chamarão a polícia.

— Que talvez chegará a tempo.

— Ao menos você saberá quem é o lunático. Poderá até reconhecê-lo, se o vir na rua. Aposto que aquele cretino maluco tem cúmplices à solta para ajudá-lo.

Parei de escrever.

— Se quer segurança, precisa ter olhos em todos os lugares — Nick alegou, apontando a sala. — Olhos em cada canto.

Nick me forneceu o nome de uma empresa especializada em sistemas de segurança e anotou o número do telefone no cabeçalho do protocolo. Ele o sabia de cor.

— Diga-lhes que eu os indiquei a você. É a única empresa que conheço que se aproxima de meu nível de cautela. Talvez, se você tivesse instalado um sistema de segurança anos atrás, sua mulher ainda estivesse viva.

Senti minhas faces corarem. O pior era que eu havia pensado o mesmo. Após uma onda de assaltos no bairro, conversamos a respeito de um sistema de alarme na casa. Kate resistira à idéia. Ela não queria viver, dissera, numa fortaleza armada. Além do mais, nossas posses de maior valor eram as cerâmicas, e um ladrão comum não saberia reconhecer uma bela obra de argila. Eu deveria ter insistido. Não eram os potes o bem mais precioso em minha vida.

Focalizei minha atenção nas cartelas de teste. Um alarme teria feito diferença? Não vá por esse caminho, disse a mim mesmo.

Olhei para Nick, suprimindo a vontade de socar aquele rosto satisfeito.

— Você tem um sistema de segurança em sua casa, não? Como não notou que alguém a estava invadindo?

Os olhos dele brilharam.

— Essa é a questão — Nick observou. — Agora você está começando a entender. Tem de ser alguém que sabe muito a meu respeito e conhece meu sistema de segurança.

— Não há monitores em seu escritório do porão, mostrando quem entra e sai da casa? Não podia ter visto o que acontecia a sua mulher?

— Eu estava trabalhando. Além disso, aconteceu no meio da noite. Eu não precisava vigiar porque sabia que ambas estavam dormindo.

Seriam a mãe e a esposa as ameaças que Nick monitorava?, perguntei-me.

 

Jeff Gratzenberg era o funcionário que fora preso em janeiro, ao invadir a Cyclops Productions, a empresa de Babikian. Por não ter antecedentes criminais, ele fora libertado sob fiança. Naquela noite, eu o encontrei numa lanchonete em Brighton. Cheguei primeiro e me sentei.

Ele concordara prontamente em conversar comigo. Ficou furioso porque fora preso, mas satisfeito com o infortúnio de Nick. Estava ávido para fazer qualquer coisa que pudesse ajudar a trancafiar o filho da mãe. Eu não sabia ao certo para que lado trabalhava. Resolvi, portanto, ser o mais neutro possível e refletir acerca das informações que ele me fornecesse.

A lanchonete exalava aromas deliciosos de café e bacon frito. Um cozinheiro, com um pano de prato amarrado à cintura, transpirava diante da chapa, virando hambúrgueres e derretendo fatias de queijo. Verifiquei o cardápio enquanto esperava Gratzenberg aparecer. Certas características do estabelecimento mostravam que o local havia parado no tempo.

A garçonete era uma moça morena, muito parecida com uma garota que eu havia namorado na faculdade, uma impressão que se desvaneceu no instante em que ela se inclinou sobre o balcão e gritou para o cozinheiro:

— Oba! Oba!

Ao menos, o café que ela me trouxe era fresco. Um jovem de cabelos pretos, usando uma camiseta sob uma camisa desabotoada, entrou na lanchonete. Era assim que Gratzenberg me avisara que estaria vestido. Acenei para ele.

— Dr. Zak? — Jeff indagou ao se aproximar da mesa.

— Sou eu.

Levantei-me e estendi a mão. Os dedos dele eram frios e moles, como se não houvesse ossos sob a carne.

Ele se sentou. Não devia ter mais que 25 anos; o rosto era arredondado e as sobrancelhas, negras e grossas. Os cabelos haviam sido cortados à escovinha. A pele parecia pálida e macerada. Tipicamente, um programador de sistemas preferia trabalhar durante a noite e dormir o dia todo.

— Peça o que você quiser — eu ofereci.

A garçonete colocou uma xícara diante dele e serviu-lhe café.

— Obrigado, Vicky. Pode me trazer cheeseburguer e batatas fritas? — ele pediu.

— Claro. — A garçonete piscou para Jeff. Ele parecia ser um cliente da casa.

— Só café para mim — eu disse. A garçonete afastou-se, rebolando.

Jeff me contou que tivera de mudar-se com a mãe, após a prisão.

— Foi humilhante. Achei que eu estaria acabado. Mesmo quando a economia vai mal, há bilhões de empregos para pessoas como eu. Mas agora nenhuma empresa quer me contratar por causa de minha ficha criminal. Aquele cretino armou para mim. — Ele acrescentou creme e muito açúcar ao café e depois mexeu com a colher. Tomou um gole, torceu os lábios e colocou mais açúcar. — O que ele disse a meu respeito é mentira.

— Pensei que estivesse tudo gravado em vídeo.

— Eu trabalhava lá! Ele me filmava entrando e saindo da empresa todos os dias da semana. Eu trabalhava até tarde. Às vezes, varava a noite. Não é difícil alterar a data de uma gravação em vídeo.

Eu devo ter parecido perplexo porque Jeff foi logo explicando:

— E nos arquivos de vigilância. Não é algo impossível de se alterar. Requer tempo e paciência, mas é viável. E Nick Babikian é muito paciente.

— Então, ele armou para você?

— Sim.

— Por que não despedi-lo, se ele queria se livrar de você?

— Despedir-me? Uma morte limpa? — Jeff sorriu, amargo. — Nick não faria isso. Ele prefere vingança. Não queira entrar para a lista negra do cara; senão estará ferrado.

— Por que ele estava tão furioso com você?

— Inveja profissional? — Jeff sugeriu e riu. — Não.

A garçonete trouxe os pedidos. Jeff passou catchup no sanduíche e deu uma mordida. Então, tirou alguns guardanapos de papel do recipiente e limpou os lábios.

— Por quanto tempo trabalhou para ele?

Jeff terminou de mastigar, engoliu e disse:  

— Quatro anos.

— É um bom tempo.

— É. No começo, ele gostava de meu trabalho. Gostava mesmo. Nick é um gênio. Seus games são incríveis. E ele sempre está um passo à frente do concorrente.

Jeff deu outra mordida no sanduíche.

— Era legal trabalhar nos jogos. Sentia que planejávamos uma guerra. Tudo tinha de ser sigiloso. Nick construiu sua fama surpreendendo o concorrente. Sempre aparecia com uma idéia melhor do que a lançada no mercado. Acho que é justo dizer que todos o odeiam. Admiram o que ele pode fazer, mas não o suportam.

— Você gostava de trabalhar na empresa?

— Eu cresci com jogos de computador. Conseguir um emprego na Cyclops foi a realização de um sonho. Imagine, ter a chance de trabalhar com o cara que escreveu o manual do atirador em primeira pessoa.

— Atirador o quê?

— Atirador em primeira pessoa. — Ele deixou o sanduíche no prato. — Doom? Quake?

Jeff ergueu as sobrancelhas, como se aqueles nomes devessem ser familiares para mim. Eu não entendia nada de jogos de computador. Ele me fitou, pasmo.

— São tipos de jogos em que o jogador tem a perspectiva do atirador. É o mesmo que olhar através dos olhos dele. Grande conceito. Eu era viciado nesses jogos.

— Há muitos jogos de... atirador em primeira pessoa por aí?

Jeff colocou o último pedaço do cheeseburguer na boca e pegou uma batata frita.

— Claro. Mas Nick elevou os jogos a outro nível de programação. Terror em três dimensões. Atuação furtiva. Running Scared foi revolucionário. Ele o faz mover-se o tempo todo. — Jeff mexeu-se para frente e para trás. — E o único jeito de sobreviver. Você pode jogar de várias maneiras. Os jogos de Nick não envelhecem. Consigo jogar quatro horas seguidas, sem cansar, e conheço todos os truques.

— Você tem uma cópia desse jogo?

— Claro. Está em meu computador.

Os jogos com os quais brinquei, Pong e Pac-Man, seriam o mesmo que assistir a um filme mudo para aquele rapaz.

— Você poderia levar-me para um passeio virtual? Sei que são necessários anos para ficar realmente bom nisso.

— Sem problema. E tenho a versão beta do novo... — Ele se deteve.

— Você estava trabalhando num novo lançamento? Jeff assentiu, grato por eu respeitar o sigilo.

— Quando Babikian parou de gostar de seu trabalho? -   Pela primeira vez, ele pareceu incomodado.

— Na época em que a mulher dele começou a trabalhar na empresa. Novembro, talvez. — Ele olhou ao redor. — Pergunte a qualquer um. Foi quando muitas coisas mudaram.

— Que coisas?

— Ele passou a controlar todos os movimentos. Era preciso assinar um livro de controle para entrar e sair da empresa. Assim Nick sabia onde as pessoas estavam o tempo todo. Guardava a chave do banheiro no bolso e nós precisávamos pedir-lhe para ir ao toalete. Era degradante. E a geladeira? Também a trancava.

Jeff meneou a cabeça.

— Você acredita que Nick remexia no lixo? Ele me confrontou, certa vez, por causa de umas anotações a respeito de um personagem que eu criava, as quais joguei no lixo. Que gafe — Jeff comentou. — Nick pensou que as anotações eram sobre ele. Eu devia ter percebido que o lugar estava grampeado.

— E essas mudanças aconteceram na época em que a esposa foi trabalhar na empresa?

— No dia em que Lisa começou, ele ficou louco. Não queria que ninguém conversasse com ela. Era como se Nick tivesse um sexto sentido aguçado. Você dizia qualquer bobagem, e o homem se materializava em sua frente.

— Você conversava com Lisa?

— Claro. Por que não? Ela era legal. — Jeff se calou por alguns segundos. — Solitária.

— Vocês eram amigos?                                    

— Acho que sim.

— Vocês se encontravam a sós?

— Quando? Ela só freqüentava dois lugares. Trabalho e casa. E eu nunca ia à casa do cara.

— Nunca?

— Bem... — Jeff empurrou o prato. — Fui até lá uma vez. Para levar uma coisa que Lisa havia esquecido no escritório. — Ele fitou o prato. — Na verdade foi um pouco antes de a merda ser jogada no ventilador.

— Sabia que a casa de Babikian também estava grampeada? Ele instalou câmaras de segurança em todos os cantos.

Jeff não pareceu espantado.

— Pelo jeito, não foi somente o escritório. O homem é um maníaco.

— Então, Lisa começou a trabalhar e Nick começou a perseguir você?

— De repente, meu trabalho ficou uma porcaria. Pensei que eu seria despedido. Fiquei muito surpreso quando a polícia apareceu.

— Não conseguiu provar que as fitas estavam adulteradas?

— Não foi só isso que ele aprontou. A polícia encontrou um e-mail em meu computador. Eu supostamente oferecia a versão beta a um competidor por um preço absurdo.

— Acha que Nick também plantou essa mensagem? Jeff me encarou. Um sorriso surgiu em seu rosto. Então ele começou a rir.

— Estou parecendo tão paranóico quanto Nick. E o que acontece quando se convive muito com ele. — O olhar tornou-se sério. — Tenho certeza de que ele plantou o e-mail. Deve ter sido fácil. — Jeff pegou uma batata e remexeu os pingos de ketchup no prato. — O fato é que não fiz nada. Não é assim que lido com meus problemas.

 

— Você está estranho — Gloria comentou quando cheguei ao Pearce a tempo de comparecer à reunião da manhã.

— Estranho, como?

— Primeiro, você não correu para tomar sua xícara de café.

Era verdade. Mas eu não precisava de um estímulo a mais para acordar.

— E segundo... — Ela me observou com atenção. — Segundo, você está relaxado demais para uma manhã de segunda-feira.

— O que posso dizer? Tive um ótimo final de semana. O fim de semana fora realmente adorável. Annie e eu

passamos a noite de sábado na casa dela, e o dia de domingo na minha. Naquela segunda-feira, eu me sentia extremamente relaxado.

— Ele teve um bom final de semana — Gloria contou a Kwan, quando este chegou.

— E mesmo? — Kwan pareceu interessado. — Não é de minha conta, mas...

— Isso. Não é de sua conta — falei.

— Meu caro Peter, sabe que estou sempre pensando em seu bem-estar. E só pedir e receberá. A propósito, andei sondando a respeito daquele psiquiatra, o dr. Teitlebaum. Ele fez mesmo sua residência aqui há dez anos. E muito respeitado. — Kwan parou um instante, mostrando que tinha algo mais a dizer. — Ele saiu de Rhode Island logo após testemunhar num caso de assassinato.

— Sério? — exclamei, surpreso.

— O caso Ely.                                                                                   Embora houvesse acontecido na pequena cidade de Rhode Island, a história saturara a mídia de Boston dois ou   três verões atrás, quando o crime ocorrera e, em seguida, o julgamento. Cada cidadão consciente da Nova Inglaterra conhecia os detalhes mais sórdidos. Um homem espancara a esposa, depois a cortara e espetara seu coração numa estaca que ele fincara no fundo do quintal. O marido fora preso numa sorveteria, enquanto a filha dormia dentro do carro.

Não me lembrava do julgamento, mas recordava do argumento que havia convencido o júri de que Ely não era um doente mental: a constatação do promotor de que a confusão da cena do crime tinha sido elaborada por um assassino diabólico que sabia exatamente o que estava fazendo a fim de, posteriormente, alegar insanidade mental. O estado mental era um fator crítico numa alegação de insanidade. Os advogados de Ely tentaram argumentar que ele não pudera "formular a intenção" — um termo sofisticado para dizer que o réu não era responsável por seus atos. O júri não acreditou. Ely, portanto, cumpria a sentença de prisão perpétua.

Teria Teitlebaum testemunhado para a defesa ou para a              promotoria?, pensei. Por que ele não mencionara que já tinha feito um trabalho forense?

Estava prestes a perguntar a Kwan como havia descoberto tudo isso quando um grito ecoou no corredor.                      

— Pare! — um homem berrou. — Você não pode pegar                 isso!

Gloria foi a primeira a correr. Passamos pela sala de tevê, onde uma mulher numa cadeira de rodas olhava para a tela, alheia à confusão. Vários pacientes saíram dos quartos. Uma figura coberta por um lençol correu até nós. Logo atrás vinha uma paciente, a sra. Brownmiller, usando um roupão de flanela.

— Obrigue-a a devolver — a sra. Brownmiller exigiu. Fiquei surpreso. A sra. Brownmiller era uma pessoa extremamente tímida que recaía em períodos de depressão, associados a um ferimento na cabeça que ela sofrerá havia mais de dez anos. Ela estendeu a mão fina e trêmula. Outro paciente juntou-se a nós.                                

— São minhas — o sr. Higgins disse, indignado. Sob o lençol, a sra. Smetz olhou para nós, ruborizada.

— Vocês de novo! — ela exclamou, radiante. — Viram?

A sra. Smetz mostrou o que segurava nas mãos. Havia vários caules, alguns de cravos, outros de azaléias, e um punhado de musgo seco. Notei também alguns pedaços de plantas artificiais, as quais enfeitavam a sala de música. A sra. Smetz derrubou algumas folhas.

— Oh, Deus... É Audrey — Gloria murmurou. Ela abaixou-se para recolher os restos mortais da azaléia.

A sra. Smetz pousou a mão sobre a cabeça de Gloria e disse:

— Deus a abençoe, criança. Não demorará muito agora. Seguimos a sra. Smetz até o quarto. No armário, ela já havia acumulado uma pilha de flores mortas, que se assemelhavam a uma salada mista. Ela acrescentou o que tinha acabado de conseguir.

Enquanto a sra. Smetz me explicava os detalhes envolvidos na construção de uma manjedoura, Gloria selecionou algumas plantas, possivelmente para devolvê-las aos respectivos donos.

O sr. Smetz bufou atrás do jornal. No mínimo, o homem chegara ao limite da paciência.

Gloria voltou.

— Isso tem acontecido há alguns dias — relatou. — E ela adquiriu algum tipo de alergia. Acho até que essas plantas estão fazendo as erupções piorarem. — Gloria retirou o lençol da sra. Smetz. — Estão vendo? — Ela mostrou um dos braços da sra. Smetz. A pele estava coberta de brotoejas.

— Parece sintoma de urticária — Kwan avaliou.

— A pele dela começou a empipocar há umas duas semanas — o sr. Smetz contou.

— Eu estava construindo a manjedoura — explicou a sra. Smetz.

— Não estava. Ela remexia na terra do jardim e deve ter esbarrado numa urtiga — o sr. Smetz replicou, jogando o jornal na cama. — Não percebi na hora. Mas a reação piorou e espalhou-se pelas pernas e braços. Pensei que tivéssemos...

— Ela está tomando alguma medicação para essa alergia? — Kwan perguntou.

O sr. Smetz pescou no bolso um pequeno recipiente de plástico, que continha pílulas minúsculas.

— Estou dando isto para ela. Foi o que tomei quando, certa vez, esbarrei numa urtiga.

Kwan pegou o remédio e leu o rótulo. Então ergueu a medicação, triunfante.

— Prednisona!

— Lógico — eu disse. Peguei o remédio. A data de validade havia vencido, mas a química ainda era potente.

— Por que não nos informou disso quando sua esposa foi internada? — Gloria perguntou, em tom acusador.

— Não pensei... Não parecia... — o sr. Smetz balbuciou. — É só uma alergia! Fiz algo errado?

— O senhor devia ter nos contado — Kwan explicou, colocando a mão no ombro dele. — Prednisona é um esteróide. E, é claro, o senhor tem razão. E o tratamento padrão para uma alergia severa como a de sua esposa. Sessenta miligramas é uma dose suficiente para um paciente comum. Mas o metabolismo muda com o passar dos anos. Nunca se sabe o que a substância pode fazer a uma pessoa com a idade da sra. Smetz. Quando ela começou a tomar o remédio?

— No início do mês. Há duas semanas.

— E ela começou a falar da manjedoura uns dias depois disso? — Kwan perguntou.

O sr. Smetz assentiu.

— Acho que uma semana depois.

— Parece uma psicose por prednisona — Kwan fez o prognóstico. — A droga está causando o delírio. Um exame de laboratório comum não teria identificado a intoxicação. Temos de tirar o remédio de forma gradativa. Nesse ínterim, continuaremos a ministrar o Zyprexa. Dê outra coisa para aliviar a coceira. Sua esposa voltará ao normal em poucas semanas.

— Quer dizer que Elizabeth não está louca? — o sr. Smetz perguntou.

— Não creio — Kwan respondeu. — Ela está tendo uma reação à droga. Posso ficar com isso? — Kwan mostrou o vidro de remédio, e o sr. Smetz encarou-o, chocado.

As pílulas não eram maiores do que um grãozinho miúdo. Pude ver por que o sr. Smetz não achara importante mencionar o fato.

Quando voltei à minha sala, verifiquei as mensagens.

A primeira era longa e lenta, e fora deixada por uma mulher que eu não conhecia. Kelly alguma coisa. Eu rabiscava num papel, enquanto ouvia.

— Sou jornalista do Globe — ela dizia. — Estou escrevendo um artigo sobre obsessões e comportamentos compulsivos e repetitivos que as pessoas utilizam para neutralizá-las.

Pelo modo como a mulher utilizava as palavras era fácil deduzir que ela consultara ao menos um profissional da saúde mental.

— Eu soube que o senhor administra uma das unidades do Pearce...

Levantei-me e espiei pela janela quando a jornalista repetiu seu nome e disse o número de telefone. Eu recebia ligações como aquela o tempo todo, desde que o Globe publicara um artigo dizendo que eu era um especialista em memória. Na época eu ficara lisonjeado. Porém, cada vez que eu concedia uma entrevista, era vítima da versão deturpada que aparecia no jornal. Além disso, já havia tido minha quota de notoriedade para o resto da vida. Apaguei a mensagem.

O recado seguinte era de Annie. Ela tinha novidades a respeito do caso Babikian e queria me encontrar mais tarde. Para mim não seria fácil, uma vez que eu tinha vários pacientes para atender, uma reunião com o comitê no fim da tarde e papelada de duas semanas que eu precisava colocar em dia. Telefonei para ela e deixei a mensagem que eu a encontraria às nove da noite para jantar no Stavros.

Quatro comprimidos de Advil com uma boa quantidade de café não resolveram a dor de cabeça que começara naquele fim de tarde, quando o céu tornou-se cinza e a temperatura caiu bruscamente em cerca de uma hora. Quando enfim terminei e saí para pegar o carro, o vento sacudia os galhos das árvores e eu podia ouvir os trovões a distância. Assim que entrei na rodovia principal, começou a chover. Forte. O limpador de pára-brisa de meu velho BMW lutava para cumprir sua parte.

O que deveria ser um percurso de cinco minutos levou trinta. Pelo menos, havia vagas na rua. Estacionei e tateei o chão do carro, esperando encontrar um guarda-chuva esquecido. Não tive sorte. Permaneci sentado no carro por alguns minutos. Talvez a chuva abrandasse e eu pudesse atravessá-la. Contudo, a tempestade piorou.

Um flash de luz iluminou o pára-brisa, seguido, segundos depois, de um trovão que fez o carro estremecer.

Eu estava a apenas meio quarteirão do restaurante. Que diabos, pensei, preparando-me para abrir a porta. O pára-brisa iluminou-se de novo. Esperei o trovão. Mal pude escutar a sirene sob a chuvarada. Um veículo preto, com uma lanterna azul piscando, passou velozmente, jogando um jato de água sobre meu carro. O carro preto parou em fila dupla diante do Stavros e dois homens desceram.

Abri a porta do carro e saí no exato instante em que um veículo lançava outro jato de água em minha direção. Praguejei e bati a porta do carro, sem me preocupar em trancá-lo. Nem sequer me importei com as poças de água sobre as quais eu pisava na calçada.

Quando entrei no Stavros, Jimmy não estava em seu lugar habitual, trabalhando na grelha. Não havia ninguém lá, aliás. Procurei por Annie. Embora o restaurante estivesse quase cheio, ninguém comia. Todos olhavam para a porta dos toaletes, onde uma dúzia ou mais de curiosos se agrupava.

— E a polícia — o homem a minha frente comentou quando ele e outro homem abriram caminho entre a multidão até o toalete masculino. Eu os segui.

A voz pertencia ao sargento-detetive MacRae.

— Levante-se devagar. Se obedecer, não sairá machucado — ele ordenou, com a mão na arma.

— Vocês demoraram muito para chegar.

Era Annie. Ela tinha o joelho sobre as costas de um rapaz deitado no chão. Ele usava uma capa de chuva amarela, o tipo de acessório que minha mãe insistia em me fazer vestir antes de ir à escola, para meu desespero. Annie segurava o braço do garoto. Uma mochila verde estava jogada no chão, com o conteúdo espalhado pelo assoalho sujo.

Annie afastou-se, e o rapaz se levantou com as mãos para cima.

— Tentei explicar a ela. É um trabalho — ele resmungou, afastando a franja que lhe tapava os olhos. — Meus óculos. — O garoto se abaixou a fim de procurá-los. Um par de óculos encontrava-se atrás de uma lixeira branca. Eu os entreguei a ele.

O garoto os colocou no rosto. Devia ter uns dezoito anos, usava calça jeans e uma camiseta da universidade. Os tênis haviam sido brancos um dia, mas agora beiravam a cor cinza. Havia um projeto de barba tentando crescer no rosto dele.

— Meu Palm! — ele exclamou e parou para pegar um computador de bolso. Apertou uma tecla e após um instante a máquina emitiu um bip. — Graças a Deus — ele murmurou, dramático.

Guardou o aparelho no bolso com toda a reverência e olhou para nós, assustado.

— Não fiz nada. Juro — ele alegou e começou a recolher os panfletos que se espalharam pelo chão.

Eram fotocópias em papel rosa. Annie arrancou-os da mão do garoto e rasgou-os. Ele olhou os que ainda tinha nas mãos, avaliando a imagem da mulher numa jaqueta de couro e calça jeans.

— O que há com você? — Ele olhou para Annie, depois para o papel e novamente para Annie. — Cacete...

Annie o fitou. Ela parecia desapontada. Havia-o agarrado, mas agora parecia querer libertá-lo. MacRae pegou o garoto pelo braço.

— Vamos dar uma volta para falarmos desse seu trabalho?

O parceiro de MacRae pegou a mochila verde. Annie pegou sua bolsa de couro, que havia caído no chão do banheiro.

— O show acabou, pessoal — MacRae avisou, enquanto caminhava entre as mesas.

Jimmy aproximou-se com o avental amarrado na cintura.

— Peter? O que está havendo?

Eu saboreava o moussaka e a torta de espinafre do Stavros desde meus dias de estagiário no Pearce. Contei a Jimmy a respeito dos panfletos que eram afixados nos toaletes masculinos. Chocado, ele se ocupou de Annie, que lhe garantiu estar bem.

MacRae conduzia o garoto para fora.

— Espere — Annie pediu. MacRae deteve-se. — Quero ouvir o que ele tem a dizer.

— Sentem-se — Jimmy sugeriu. — O café é por conta da casa.

Nós cinco fomos a uma mesa no canto do restaurante. O garoto olhou para a mesa, sem saber o que fazer. Era um rapaz magricela que usava roupas largas. Minha mãe teria feito questão de oferecer-lhe uma boa refeição.

— Sente-se — MacRae ordenou ao jovem. — Seu nome? — ele perguntou, depois que nos sentamos e Jimmy trouxe café para todos.

— Aaron Spatola. — Ele parecia mortificado de medo e vergonha.

— Muito bem, sr. Spatola, tem documento de identidade? — MacRae prosseguiu.

O rapaz tirou a carteira do bolso, abriu-a e pegou a identidade. Pude ver que se tratava de uma carteirinha de estudante. Lembrei-me da época em que eu viajara por uma região remota da Louisiana. Um guarda rodoviário me parou por excesso de velocidade. Então, mostrei-lhe minha carteirinha de Harvard, na tentativa de impressioná-lo. Ele ficara tão impressionado que me levara à delegacia local a fim de exibir aos colegas o que havia conseguido pegar. Passei aquela noite numa cela.

MacRae também não se mostrou impressionado.

— O que você estava fazendo no toalete masculino? — ele interrogou.

— Nada — Aaron respondeu. — Não estava fazendo nada.

— Eu o peguei com esses anúncios — Annie disse.

— É um trabalho.

— Que trabalho é esse? — MacRae insistiu.

— Um trabalho pago, ora.    

— Quem está pagando?

— Não sei.                                                      

— Não sabe?

— Nunca encontrei o cara. Nem sei se é homem ou mulher. — Aáron olhou para nós. — Consegui o trabalho pela Web. Vocês conhecem a Internet? — perguntou. — www.bos-jobs.com. Esse site anuncia trabalhos estranhos na região de Boston. Nesse site, por exemplo, você consegue alguém que o espere na entrada do estádio com um ingresso para o jogo na mão. — Ele notou que éramos a audiência errada. — Bem, o cara queria que alguém espalhasse panfletos nos toaletes masculinos. Ele tinha uma lista de lugares. Dinheiro fácil.

— Que cara? — Annie praticamente gritou.

— Não sei quem ele é. Só sei que tem um endereço eletrônico e que me paga pela Internet. Estou trabalhando para ele há semanas.                                              

— Semanas — Annie gemeu.

— Em que lugares? — perguntei.

— Está na mochila.                            

Aaron indicou o parceiro de MacRae, que segurava a mochila. O policial entregou-a ao jovem, que vasculhou no interior até encontrar um pedaço de papel.

Annie arrancou a lista das mãos dele.

— Meu Deus — ela disse e entregou o papel a mim. A lista continha cada um dos bares de Cambridge, Brigton, Somerville e Allston.

— Como conseguiu os panfletos? — MacRae perguntou.

— Ele me enviou o arquivo por e-mail. Eu imprimi.

— Pode provar... — MacRae começou.

— Claro — Aaron adiantou-se. — Tenho todos os e-mails dele. E salvei o arquivo que ele me mandou.

MacRae olhou para Annie, perplexo.

— Quer que o prendamos?

— Não. Peguem o e-mail e deixem-no ir. Mas se eu o pegar...

— Não se preocupe, dona — Aaron disse. — Não preciso tanto desse dinheiro.

Quando estava de saída, ele acrescentou:

— O problema é que, se eu não fizer, ele achará outra pessoa. A grana é mesmo boa.

Depois que Aaron foi-se com MacRae e o parceiro, Annie extravasou.

— Dona? Dona!

— Na próxima vez, traga sua moto para mostrar quem realmente é.

— E fácil para você fazer piada — ela argumentou. — Ele não o chamou de "tio".

— Dona — sussurrei, zombeteiro. — Oh, dona! Annie riu.

— É sério, Peter. Nunca ninguém falou assim comigo. E você viu a lista dele? — Ela baixou a cabeça e gemeu. — Como vou dar um fim nisso?

— Talvez possamos rastrear o e-mail.

— Certo. Você ainda acredita em Papai Noel? Qualquer um pode criar um e-mail no hotmail ou no yahoo.

— Mas ele teve de transferir o dinheiro para pagar Aaron, não? De alguma conta a transferência foi feita.

— Bem pensado. — Annie apontou o dedo em minha direção. — Está atrasado.

— Lamento. Me atrasei no trabalho e começou a chover. — Minhas meias encharcadas começavam a incomodar e a calça se colava às minhas pernas. — Um dilúvio, na verdade. Então, que novidades tem para me contar?

Nesse instante, Jimmy apareceu com um prato de suas famosas azeitonas, duas cervejas e uma cesta de pão pita quente. Foi a melhor coisa que vi o dia todo. Pedimos folhas de uva recheadas e kebab. Annie pegou um envelope dentro da bolsa.

— Eles analisaram as impressões digitais e o sangue da cena do crime. O sangue pertence a Lisa Babikian. As digitais são dela, de Nick e da mãe dele. Nada de amigos ou faxineira.

Não me surpreendi. Uma pessoa tão desconfiada quanto Nick não receberia muitos amigos. E tampouco deixaria uma faxineira circular pela casa em sua ausência.

Annie continuou:

— As pegadas de sangue são interessantes. São dos sapatos de Nick, dos chinelos da mãe dele e dos pés descalços de Lisa. E veja isso. — Ela tirou do envelope uma cópia da fotografia de uma pegada. — Boley me deu essa.

Os traços da sola pareciam familiares.

— O que é? — perguntei.

— Sola de galocha — Annie respondeu. — Provavelmente de borracha.

— Galochas?                                            

— Você não é do tipo aventureiro? São botas de borracha, com cano curto ou longo, em geral utilizadas para pescar, andar na terra ou...

— Para jardinagem? — arrisquei.

— Sim, de fato. Acharam grãos de terra misturados ao sangue. E a terra não é de Weston.

— Eles têm como saber isso?              

— Pelo jeito, sim.

Examinei a cópia da pegada. Lembrei-me das botas de borracha que vira ao lado da porta do consultório de Teitlebaum. A terra do jardim havia sido remexida. Os arbustos esperavam para ser plantados.

Seria mera coincidência? Kwan dissera que Teitlebaum havia testemunhado no caso Ely em Rhode Island. Existiam várias semelhanças entre os dois assassinatos. Um marido controlador, uma mulher submissa. Um crime repugnante. Mutilação. O estranho comportamento do marido após o crime. E um psiquiatra envolvido em ambos os casos.

— Vai me dizer em que está pensando? — Annie indagou.

— Muitas pessoas possuem botas como essas, certo?

— Esse é o problema. Em minha adolescência, elas praticamente faziam parte do uniforme da escola. São passadas de irmão a irmão, como uma herança. Até minha mãe tinha um par de galochas. Essas são grandes. Provavelmente de um homem.

— De Nick?

— Ele não tem galochas.                                    

— Quando fui ver o dr. Teitlebaum, havia um par de botas de borracha do lado de fora da casa. E hoje fiquei sabendo que ele testemunhou no caso Ely que ocorreu em Rhode Island.

— Droga. Por que eu não pensei nisso? — Annie perguntou. — É o tipo de coisa em que eu deveria ter pensado. Droga. — Annie refletiu por um momento. — Você tem de informar a polícia agora mesmo. Eles mandarão alguém na casa do psiquiatra para pegar as botas, ver se a sola combina com as pegadas e compará-las aos vestígios de sangue.

Peguei o cartão de Boley em minha carteira. E eu tivera quase certeza de que não tropeçaria em nenhuma outra evidência. Liguei para ele e deixei um recado. Boley me telefonou minutos depois, e lhe contei o que sabia. Ele pareceu irritado.

 

A caminho de casa, recordei o encontro que tivera com Teitlebaum. Desde o início, o relacionamento pessoal e intenso entre ele e Lisa Babikian não me soara bem. Teitlebaum liberara muito facilmente informações a respeito da terapia do casal, e também revelara dados relacionados ao tratamento individual de Lisa, os quais ele não tinha permissão de fornecer. Agora Teitlebaum possuía um par de galochas, cujas solas podiam combinar com as pegadas de sangue encontradas na cena do crime, e ele desempenhara um papel semelhante em outro caso de assassinato.

Imaginei se a polícia já estaria na casa de Teitlebaum àquela hora. As pegadas seriam mesmo dele? Haveria sangue misturado à terra grudada nas galochas? Seria ele autuado pela morte de Lisa Babikian?

Entrei em minha rua, sentindo-me exausto e almejando um banho quente e cama. Prometi a mim mesmo que na manhã seguinte eu iria a uma biblioteca pública a fim de pesquisar detalhes a respeito do caso Ely. Teitlebaum teria sido uma das testemunhas?

Saí de meus devaneios ao avistar luzes de emergência perto de minha casa. Os pneus do BMW cantaram quando acelerei. Disse a mim mesmo que devia ser outro acidente de carro. Tais acidentes aconteciam sempre porque a rua era estreita demais e os veículos estacionavam em ambos os lados. Tão logo me aproximei o bastante para ver que a viatura estava diante de minha casa, meu coração disparou e meu estômago se contraiu. Por favor, que não seja outra entrega especial, a qual não tive tempo de interceptar!

Parei em fila dupla, saí do carro e corri. Minha mãe estava no pórtico, de roupão e gesticulando para dois policiais uniformizados. Em sincronia com as luzes das viaturas, escutava-se um som agudo semelhante a uma sirene. Levei alguns momentos para perceber que era nosso novo alarme que fazia aquele estardalhaço.

— Este é meu filho — minha mãe disse a um dos policiais. O lenço que ela havia amarrado nos cabelos começava a escorregar. — Ele sabe o que fazer para parar esse... desculpem-me pela expressão... esse barulho do cacete!

Fiquei boquiaberto. Jamais ouvira minha mãe usar aquela palavra.

A porta de minha casa estava aberta. Entrei, digitei o código e o alarme silenciou.

— Alarme novo? — perguntou um dos policiais, exibindo um sorriso simpático.

— Acabei de mandar instalar — expliquei.

— Às vezes, precisa de ajustes. Uma cortina esvoaçando pode acioná-lo.

— Não tenho cortinas.

— Podemos entrar e verificar outra vez — ele se prontificou. — Já fizemos uma vistoria e não encontramos nada.

— Não, obrigado — eu disse.

— Peter... — Minha mãe me encarou com certa seriedade.

— Por favor, seria ótimo se fizessem outra vistoria na casa.

Uma van branca da empresa de segurança estacionou em fila dupla atrás de meu carro. Um rapaz usando jeans e camiseta trotou pela calçada.

— Está tudo sob controle?

— Provavelmente foi alarme falso — supus.

— Que alarido! — minha mãe comentou. — Eu estava em casa, cuidando de minha vida, quando essa coisa disparou. Acha que eu consegui lembrar o código com essa barulheira toda? Nem sequer recordava meu próprio nome.

— A porta de minha casa estava aberta? — perguntei.

— Estava... — ela olhou a porta da frente — fechada. — Minha mãe tateou o bolso e dele tirou uma chave. — Usei minha cópia.

— A porta estava trancada e você a destrancou? — perguntei gentilmente.

Ela fechou os olhos e pensou por alguns segundos.

— Trancada, destrancada... quem saberia dizer? — admitiu. — Eu me distraí. Enquanto eu tentava abrir a porta, meu telefone tocou.

— A ligação devia ser nossa — o rapaz da empresa de segurança disse. — É o procedimento padrão. Se um alarme dispara, ligamos para o proprietário. Se ninguém atende, telefonamos para o segundo número, em geral um vizinho. O telefone deve ser o da senhora.

Os policiais voltaram.

— Parece que está tudo bem — o segundo oficial, um rapazola sardento, disse.

Desde quando os policiais eram tão jovens?, pensei.

— Você tem cachorro? — o representante da empresa de alarmes perguntou.

— Não.

— Nenhum animal de estimação? Meneei a cabeça.

— Nenhum roedor pela casa no momento?

— No momento, não.

— Janelas fechadas ou abertas?

— Fechadas? — Olhei para os policiais. O sardento assentiu, confirmando.

O rapaz da empresa cocou a cabeça.

— Talvez tenha havido um arrombamento —: sugeri. Minha mãe agarrou meu braço.

— Se assim foi, o elemento escapou — o jovem oficial deduziu.

— É possível que o sistema de alarme esteja sensível demais — o rapaz encarregado da empresa sugeriu. — Vamos ajustá-lo.

Depois que todos saíram, abracei minha mãe. Nós revisamos o código mais uma vez — o dela era idêntico ao meu.

— Talvez eu deva tatuar o código em meu pulso — ela zombou. — Esse é o tipo de situação que me faz sentir velha. Velha e incompetente. — Tentei abraçá-la de novo, mas ela me repudiou. — Mas não digna de pena.

Minha mãe voltou a seus afazeres, e eu entrei em casa. A polícia deixara a luz de todos os cômodos acesa. Estava aliviado por não terem encontrado nada, contudo quis checar por mim mesmo.

Entrei primeiro no ateliê de Kate. Tudo parecia estar como eu deixara. Apaguei as luzes e desci ao segundo andar. Verifiquei meu escritório, o banheiro, meu quarto. Abri os armários e até puxei a colcha da cama, mantendo certa distância. Não encontrei nenhuma cabeça de cavalo se esvaindo em sangue.

Por fim, desci ao porão. Não havia nenhum sinal de arrombamento. Levei uma garrafa de vinho tinto à cozinha. A descarga de adrenalina que me impulsionara havia diluído. Eu queria relaxar completamente.

Aproximei-me da gaveta onde guardo o saca-rolhas. Não estava lá. Vasculhei o balcão. Também não estava lá. Comecei a abrir as gavetas. Eu o encontrei junto com os talheres de prata.

Abri a garrafa e me servi. Encostei-me no balcão e mexi o vinho no copo. Havia migalhas sobre o balcão. Tentei me lembrar quando fora que eu deixara bolachas ou biscoitos ali e não consegui. Devia fazer um bom tempo que eu não limpava aquele balcão.

Peguei o jornal, selecionei o caderno de esportes e fui para a sala. Sentei-me em minha poltrona reclinável, acomodei-me e quase derrubei o vinho. Levantei-me de um pulo, jogando o jornal no chão. A regulagem da poltrona havia sido alterada.

O que Nick dissera? É possível burlar esse sistema? Sim, facilmente. Ele tinha razão em uma coisa. Se eu tivesse uma câmara de segurança, eu agora saberia quem invadira minha casa.

Abri a maleta e achei o protocolo do teste que havia utilizado com Nick. No canto da folha estava escrito o número de telefone da Segurança Argos. Liguei e deixei uma mensagem, pedindo que me telefonassem pela manhã.

Então percorri a casa novamente, inspecionando cada canto, cada armário, do teto ao piso. Abaixei as persianas de todas as janelas e acendi as luzes externas. Naquela noite, quase não preguei os olhos.

Na manhã seguinte percorri a casa outra vez e ergui todas as persianas. Fui ver minha mãe. Ela parecia tão cansada quanto eu.

— Não se esqueça de me telefonar em qualquer eventualidade — eu a lembrei. !

— Claro. Mais números — ela se queixou.      

Eu teria aceitado a torrada que minha mãe me oferecia não fosse o representante da nova empresa de segurança ter chegado.

— Então, foi Nick Babikian quem nos recomendou — disse o homem de boa aparência e porte militar. Ele estendeu a mão. — Bill McCutcheon.

Bill usava uma camisa de colarinho branco com os dizeres "Segurança Argos" e o desenho de um pavão logo abaixo. Argos. O nome me fazia lembrar da fase em que eu estudara mitologia grega durante minha adolescência. Argos fora um gigante de cem olhos que vigiara a amante de Zeus. A ciumenta mulher de Zeus, que matara Argos, retirara os cem olhos e os dera ao pavão. Era o logotipo perfeito para uma empresa de segurança.

— Peter Zak. — Cumprimentei-o.

— Nick é um de nossos melhores clientes.

— Ele tem um equipamento impressionante — comentei. — Foram vocês que instalaram?

— Nós ajudamos. — Bill olhou ao redor, como se alguém pudesse estar nos escutando. — Um pouco. Ele, na verdade, comprou nossas peças e montou tudo sozinho. O homem é um profissional.

Disso eu não tinha dúvidas.

— Direi a ele que você lhe deu um voto de confiança.

— Obrigado, mas... pode me fazer um favor? Não diga nada. Ele gosta de privacidade. Como eu disse, é um ótimo cliente.

— Claro. Sem problema.

Bill verificou meu sistema e o declarou "inadequado". Sugeriu algumas maneiras de aprimorá-lo. Então, falou das câmaras de vídeo, que podiam ser instaladas na frente e nos fundos da casa.

— Podemos conectá-las ao seu sistema de tevê a cabo. Se a campainha tocar enquanto estiver assistindo a um programa, a imagem da pessoa à porta surgirá no monitor. Você nem sequer precisa tirar os olhos da televisão.

Pelo jeito, era mais uma facilidade para evitar esforço físico.

— Parece interessante, mas não acho necessário — declinei.

— Internet em alta velocidade? Podemos conectar a monitoria ao seu computador.

— Não, obrigado.

Ele pareceu desanimado. Então rascunhou o orçamento para um sistema simples cujas imagens seriam monitoradas na empresa. Quase engasguei ao ver o preço. Bill lembrou-me de que o valor incluía as câmaras, a fiação, um ano de serviço e o arquivo das informações em CD. A garantia era de seis meses.

Enquanto assinava um cheque, perguntava-me por que estava fazendo aquilo — seguindo o conselho de um paranóico delirante. Eu só esperava não estar me tornando um paranóico também.

Não, garanti a mim mesmo. O delirante tem certeza de ameaças que não existem. As ameaças que me assombravam eram reais. Eu tinha em mãos a cerâmica quebrada de Kate para provar. Não estava sendo paranóico, apenas precavido. Sentia-me ameaçado e estava me protegendo. De repente, caí em mim. Aquilo não era o tipo de racionalização que um paranóico elaboraria?

Eu esperava ir à biblioteca naquela manhã para pesquisar o caso Ely e Teitlebaum. Porém, quando a van da Segurança Argos partiu, eu estava em cima da hora para minha primeira consulta no Pearce.

 

Jeff Gratzenberg oferecera-se para me mostrar o videogame com o qual Nick Babikian revolucionara o mercado. Marcamos de nos encontrar na tarde do dia seguinte.

Depois do trabalho, passei em casa primeiro. Não havia nenhuma viatura na rua. Nenhum alarme disparando. Detive-me no pórtico, pensando se seria possível ver as câmaras de segurança uma vez que estivessem instaladas. Bill, da Argos, prometera instalá-las de forma a ser praticamente imperceptíveis.

Por que nunca me ocorrera que aquele sistema de segurança era uma faca de dois gumes? Claro, eu podia monitorar as visitas. Mas até que ponto alguém poderia sintonizar as imagens no interior de minha casa que eram transmitidas à Argos? Poderia Ralston Bridges de alguma maneira vigiar minhas idas e vindas? Teria eu aprimorado minha segurança ou obtivera outro instrumento para agravar meu tormento?

Foi então que percebi; se Nick era tão paranóico quanto minha avaliação mostrava, por que ele confiaria em mim? E, se ele não confiava em mim, por que estava sendo tão prestativo em relação ao sistema de segurança de minha casa?

Tentei me livrar de tantas perguntas. Esse era o problema da paranóia — era tal qual o símbolo da serpente engolindo o próprio rabo.

Gratzenberg morava com a mãe numa rua sem saída em Mass Pike. A casa precisava de sérias reformas. A pintura branca e turquesa estava descascando, e uma das calhas havia se soltado. Alguns arbustos cresciam diante da entrada.

Toquei a campainha. Gratzenberg atendeu a porta. O rosto pálido cintilava sob a penumbra do hall. Ele gritou:

— E para mim, mãe!

Uma mulher baixa, usando um vestido simples e chinelos, emergiu dos fundos da casa. Era possível escutar o som da televisão.

— Jeffrey? — ela chamou-o, chorosa. A residência cheirava a biscoitos recém-assados e lustra-móveis.

— E para mim, mãe — ele repetiu. A mulher retirou-se.

— Entre — Gratzenberg convidou-me.

Atravessamos a cozinha e descemos um lance de escada, em direção a um cômodo. Uma lâmpada fluorescente piscava no teto, acima de um sofá marrom que se achava disposto sobre um carpete verde. Um abajur de lâmpada laranja iluminava apenas um canto do aposento. O lugar exalava cheiro de mofo e tênis velhos.

— Não repare na aparência da casa — Jeff disse. — Mas era morar aqui ou viver na rua. Quer beber alguma coisa?

Ele se dirigiu ao bar nos fundos do cômodo, abriu uma geladeira e listou:

— Suco? Gatorade? Cerveja? Água?

— Uma cerveja, obrigado — pedi.

A garrafa soltou uma pequena rajada de ar quando Jeff tirou a tampa. A pele alva de Gratzenberg contrastava com a camiseta preta que exibia os dizeres:

 

                         ALGUÉM ARMOU UMA BOMBA PARA NÓS!

  

— E de um game japonês — Jeff explicou ao notar meu olhar. — ZeroWing. Um atirador 2-D? — Eu ainda continuava sem saber do que ele falava. — O jogo já estava ultrapassado antes de ser lançado. Mas a trilha sonora era ótima. Pena que as camisetas não renderam nenhum dinheiro. — Jeff olhou os dizeres. — Tenho um punhado delas.

Ele se sentou num banco e colocou a cerveja ao lado de um computador com caixas acústicas enormes.

— Então, você é um psicólogo forense? Do tipo que depõe no tribunal?

Peguei um de meus cartões e o entreguei a Jeff.

— Quando alguém é acusado de um crime grave, sou requisitado para avaliar o estado mental da pessoa. Preciso verificar se ela distingue a diferença entre certo e errado. Se tem noção das conseqüências de seu ato. Se há algum distúrbio cerebral. Coisas desse tipo. E, sim, com freqüência tenho de depor em tribunais.

— Você então avaliou o Bico?

— Nick Babikian?

Jeff assentiu.                                                              

— Nunca o chame por esse apelido. Ele fica furioso. — Jeff olhou meu cartão. — Instituto de Psiquiatria Pearce. Um amigo meu foi internado no Pearce. Ele é dependente de drogas.

— Temos um programa excelente para reabilitação. Ele colocou o cartão sobre o balcão do bar.

— Quer ver o Running Scared? Tem de lembrar que o jogo foi lançado seis anos atrás. Na época, ninguém tinha visto algo semelhante. Agora existem todos os tipos de clones, versões múltiplas e MOD.

Eu esperava que o fato de eu não saber que linguagem era aquela não importasse. Acomodei-me no outro banco e apoiei minha perna no bar para ficar em frente ao computador.

— Muito obrigado por me mostrar o jogo, Jeff.

— Tomara que eu ajude a dar àquele cretino o que ele merece — Jeff comentou. Então moveu o mouse e a tela ganhou vida.

Havia um desenho com o mesmo rosto que Nick rascunhara para mim. O elfo espiava de soslaio na tela negra, chamuscada de cinza e branco. Sobre o rosto pulsavam as palavras RUNNING SCARED em vermelho flamejante.

Jeff ligou o som e uma música eletrônica reverberou pelo cômodo, fazendo o balcão do bar estremecer.

Os longos dedos de Jeff pousaram no teclado tal qual um pianista pronto para iniciar um concerto de Chopin. Ele clicou o mouse e o jogo ficou em silêncio quando a palavra CARREGANDO... apareceu na tela. Então, alguns menus surgiram e Jeff clicou mais vezes. Uma faca de lâmina curva apareceu, girou e parou, apontada para nós. Em seguida, uma granada de mão emergiu.

— Essa granada é tudo que você terá para se proteger no começo — ele explicou.

Os dedos de Jeff dançavam sobre as teclas, enquanto a faca flutuava para a esquerda, para a direita e formava um círculo. Então, o rosto do elfo ressurgiu.                      

— Bem-vindo à Terra-2 — disse uma voz sonora.

— Em geral, eu pulo essa parte — Jeff comentou.

A voz começou a explicar que estávamos num planeta onde os sobreviventes da última guerra na Terra haviam se refugiado. Novamente os humanos estavam sitiados, mas dessa vez por invasores alienígenas.

Então, o rosto do elfo foi substituído pelo interior de uma caverna, paredes e passagens iluminadas por tochas. Jeff fez alguma coisa com o mouse ou com o teclado — ele se movia tão rapidamente que eu não conseguia acompanhá-lo — e a faca reapareceu. Seguimos em frente por uma série de túneis escuros e escadas estreitas até chegar num desvio. Depois continuamos por outro túnel, repleto de estalagmites.

— Escutou esse barulho? — Jeff perguntou.

Eu não havia reparado antes, mas ouvi um ruído constante, como passos num chão cimentado.

— São nossos passos? — perguntei.

— Não. São do cara que está nos seguindo. Não precisamos nos preocupar. Ainda.

Uma criatura vermelha, munida de garras, surgiu atrás de uma rocha. Parecia um cruzamento entre um escorpião e um polvo. Com um golpe de faca, Jeff cortou um braço. Sangue verde espirrou da ferida. Então houve uma espécie de explosão. Tudo o que sobrou de um segundo alienígena foi uma poça verde com alguns pingos avermelhados — o resultado de uma granada, deduzi.

Uma figura humana emergiu atrás da rocha; era uma mulher de roupas pretas com as mãos amarradas. Jeff clicou sobre ela e as amarras se soltaram. Alguns números sugiram no canto do monitor.

— O que foi aquilo? — perguntei.

— Nossa pontuação. Detonei dois alienígenas e libertei uma refém. Agora recebo um gerador quântico.

Detonar? Gerador quântico? Jeff continuou a jogar e agora possuía uma nova arma que se assemelhava a uma metralhadora com um gatilho vermelho. O som dos passos ficou mais alto.

— Esse é um dos primeiros games em que o objetivo não é detonar tudo que aparece — ele explicou. — Você tem de ficar atento com os reféns. Se detonar um deles, você morre... Bosta.

Um alienígena surgiu da parte superior do monitor. Jeff atirou nele, mas errou. Um buraco enfumaçado apareceu na parede da rocha, ao lado da criatura.

— Essa é uma arma legal. Ela abre um vórtice que suga tudo que estiver por perto. Mas tem de tomar cuidado para não se deixar sugar.

Jeff atirou de novo. Dessa vez houve uma explosão e o alienígena reduziu-se a uma chama que se apagou com um sopro. Era estranho observar Jeff, que, em princípio, parecera ser uma pessoa passiva, tão completamente seguro de si e agressivo no contexto do jogo.

Os alienígenas se dispersaram, e Jeff libertou mais dois reféns. Então, esfaqueou um dos reféns.

— Pensei que matar um refém representasse a morte do jogador.

— Ele não era um refém. Veja.

A figura negra caída no chão transformou-se em outro alienígena.

— Como você descobriu?

— Experiência. Quando se joga há muito tempo, acaba-se aprendendo a distinguir o que é falso e o que é verdadeiro.

Ele clicou num redemoinho de fumaça. A caverna se dissolveu e os passos cessaram, substituídos pelo som de água corrente e sinos. Havíamos emergido numa câmara mortuária com uma queda d'água no fundo. Eu sabia que era efeito de minha imaginação, mas senti a temperatura baixar.

Dois círculos amarelos cintilavam num canto. Nós nos aproximamos e a figura do elfo surgiu das sombras. Ele estendeu os braços. As órbitas amarelas eram os olhos dele.

— Ele está oferecendo duas, escolhas — Jeff explicou. — Uma armadura ou uma máscara de gás. E está nos mostrando um mapa para o próximo níyel.

O leve traçado de um labirinto flutuava no ar.

— Então, qual é a escolha certa?

— Isso é o mais legal neste jogo. Não existe uma escolha certa. Ele muda, dependendo do que você escolhe.

— Como se ganha esse jogo?

— Há duas maneiras de ganhar. Matando todos os alienígenas ou salvando todos os reféns antes que você acabe morto.

Era o desenlace de um romance.

— A maioria dos jogadores não chega tão longe — Jeff comentou, ao escolher a máscara de gás.

No momento seguinte, estávamos voando por outra caverna. O nível seguinte era mais sombrio. O som dos passos nos seguindo tornou-se mais acentuado.

Durante os vinte minutos seguintes, observei, fascinado. Para sair da caverna escura, Jeff teve de aniquilar um bando de alienígenas que acendiam uma fogueira na boca da caverna. Sem a máscara de gás, ele explicou, nós morreríamos asfixiados. Da caverna, ele atravessou uma floresta infestada de novos alienígenas que pareciam macacos e chegou a um castelo parcialmente destruído, com fortificações e sob um céu rosado. Os reféns estavam nas celas do calabouço. Eles esticavam os braços entre as barras, implorando para ser salvos quando passamos em alta velocidade. Na beira de um precipício, cadáveres boiavam num rio vermelho.

Enquanto observava Jeff jogar, pude sentir a claustrofobia de lugares confinados e o alívio ao sair em local aberto. Quase senti o odor da caverna fria e úmida. Escutar aqueles passos, que aumentavam cada vez mais, criava o clima de tensão. Com o nível constante de adrenalina, era fácil entender como os jogadores se entretinham por horas a fio.

Aquela altura, Jeff perdera o gerador quântico e a máscara de gás, e adquirira outra metralhadora, mais granadas e uma lanterna. Ele fez uma pausa no jogo e me mostrou quais as teclas que controlavam as armas e como o mouse direcionava os movimentos no espaço. Em seguida passou-me os controles e reativou o jogo.

Trinta segundos depois, mirei a arma num alienígena, atirei e a imagem desapareceu por uns instantes.

— Nada de mais — Jeff garantiu. — Ninguém dura muito na primeira tentativa.

O jogo voltou à tela, mostrando um corpo caído no chão, sangrando. No piso da caverna jazia uma arma, uma lanterna e várias granadas.

— Esse sou eu? — perguntei.                          

— Sim. Você se matou.

— E mesmo?

— Você atirou numa parede de tijolos e a bala ricocheteou e o matou.

O som dos passos aumentou, diminuiu e depois parou. Uma figura obscura surgiu e inclinou-se sobre o corpo. Era o elfo. Ele recolheu as armas do chão.

— Babaca... — ecoou uma voz, e uma gargalhada tenebrosa ressoou pelas paredes da caverna.

Naquela noite, deitado na cama, imagens do jogo resvalavam minha mente. Eu tinha a sensação física de empreender vôos rasantes. Paredes de pedra e tochas passavam por mim. Senti o estômago se contrair por causa das sensações. A vertigem de olhar de um precipício para corpos mortos no rio vermelho parecia real.

Lembrei da história que a sra. Babikian havia contado sobre os cadáveres boiando num rio de sangue. A mãe dela — avó de Nick — contara as mesmas histórias à filha. Essas mensagens constantes haviam formado o caráter de Nick e o convenceram a não confiar em ninguém. O fato de usar tais imagens no jogo teria espantado as assombrações?, perguntei-me.

Tentei me desligar do jogo e pensar em outra coisa. Mas quando fechava os olhos, escutava aquela voz... Babaca... Em minha mente era a voz de Nick. Ele zombava dos jogadores que perdiam. Havia criado um jogo em que a única maneira de ganhar seria mantendo-se vigilante ao extremo e acreditando que o mundo o perseguia.

Enquanto lutava para conciliar o sono, veio-me à lembrança o comentário de Jeff Gratzenberg: Quando se joga há muito tempo, acaba-se aprendendo a distinguir entre o falso e o verdadeiro.

 

Na noite seguinte, depois de pegar meu copo de vinho e o jornal para me acomodar na poltrona, a campainha tocou, seguida de uma firme batida na porta. Sem dúvida, não era minha mãe.

Acendi a luz do pórtico e espiei pelo painel de vidro ao lado da porta. Era Richard Teitlebaum. Suas roupas estavam amarrotadas, como se tivesse dormido com elas.

Abri a porta. Teitlebaum vigiava as duas direções da rua. Havia um carro estacionado em frente à minha casa com os faróis acesos.

Ele me encarou com olhos arregalados.

— Cheguei do congresso de psiquiatria e encontrei a polícia em minha casa. Eles têm um mandado de busca.

Senti uma ponta de culpa.

— Entre — convidei-o. — Tenha calma. Depois que Teitlebaum entrou, fechei a porta.

— Você está trabalhando nesse caso, não está? — Ele não me deu a chance de explicar que eu não trabalhava para a polícia. — O que estão procurando? O que diabos...

— Galochas — eu disse. — Há pegadas na cena do crime...

— Todo mundo teve ou tem um par de galochas — ele explodiu. Então, parou. — Eles acham que fui eu? Que matei minha própria paciente? É loucura! — Houve uma pausa. — E como sabem que tenho um par de galochas? Agora eu me arrependia de ter aberto a porta.

— Quando fui conversar com você em sua casa, notei um par de galochas ao lado da porta do consultório. Tive de relatar o que vi.

— Ao lado da porta do consultório? — Teitlebaum piscou, aturdido. — Você contou a eles?

— Eu precisei contar quando fiquei sabendo que encontraram pegadas de galochas na cena do crime.

Teitlebaum encostou-se à porta.

— Ele armou para mim. Aquele filho da mãe...

— Vamos com calma — eu disse, segurando o braço de Teitlebaum. — Acho que uma bebida lhe fará bem.

Levei-o à cozinha. Richard jogou-se numa cadeira. Vasculhei o armário e achei uma garrafa de uísque. Despejei um pouco num copo. Ele tomou o uísque de um só gole e bateu o copo na mesa. Então, fechou os olhos por um momento. Quando os abriu novamente, a cor azulada da íris parecia cinzenta.

— Guardo aquelas galochas na área de serviço — Teitlebaum contou, desalentado. — Sempre as deixo lá depois de trabalhar no jardim. — Ele se deteve. — Meu Deus... minhas luvas também desapareceram. E...

— E o quê?

Teitlebaum engoliu em seco.

— E quando terminei de plantar os arbustos, minha pá não estava no lugar onde sempre a deixo. Estava caída no chão.

— Quem armou para você? — perguntei.

— Quem? — Richard me encarou como se eu tivesse o QI de uma ameba. — Nick Babikian. E agora a polícia está atrás de mim.

— Eles só querem ter certeza de que não sairá da cidade antes de verificarem se as pegadas combinam com a sola de suas galochas.

— E você acha que não vão combinar? — ele perguntou. — Paranóico, extremamente ciumento, inteligente... O que eu esperava? Que ele apontasse uma arma para mim? Por que não lhes disse que minha agenda estava lotada? Ou os encaminhei para algum colega?

Teitlebaum respirou fundo.

— A quem estou enganando? Eu teria aceitado Charles Manson como cliente. Desde que me mudei para cá, não há uma fila de clientes à minha porta.

— E só um palpite — arrisquei —, mas eu diria que você percebeu que Lisa Babikian precisava de ajuda.

Richard apoiou os braços na mesa.

— Fico dizendo a mim mesmo que não havia nenhum histórico de abuso físico. A violência física é sempre o primeiro sinal. Agora ela está morta e o canalha esquematizou o crime de tal forma que me tornei o principal suspeito. Ele armou a cilada perfeita.

Eu queria perguntar-lhe por que não contava tudo aquilo à polícia. Haveria uma explicação, certamente. Mas a campainha tocou.

Teitlebaum levantou-se.

— Viu? — Ele fitou a porta da cozinha, a do porão e a dos fundos. — Eu lhe disse que era apenas uma questão de tempo.

— Espere aqui — pedi, tocando-lhe o ombro. Ele se afastou.

— A culpa é sua. Se não tivesse contado...

A campainha soou outra vez.                          

— Espere — eu disse e precipitei-me à porta.

Quando olhei pelo vidro, não vi ninguém. Mas, pela sombra, deduzi que havia pelo menos uma pessoa na soleira. Uma viatura estava parada na rua.

A campainha tocou pela terceira vez.

— Abra. É a polícia — avisou a voz de um homem.

— Mostre-se — pedi.

Dois policiais apareceram. Ambos tinham o rosto oculto pela aba do quepe. Um deles mostrou o distintivo. Abri a porta.

— Estamos procurando o dr. Richard Teitlebaum — um dos policiais informou. — Ele precisa prestar depoimento.

— Ele está aqui — eu disse, levando-os à cozinha. Mas quando chegamos lá, não havia ninguém.

Um dos oficiais correu até o porão, o outro saiu pelos fundos.

— Ele está aqui fora! — o homem gritou.

Mesmo no escuro, pude ver Teitlebaum tentando pular a cerca do vizinho.

— Pare! Polícia! — o oficial gritou.

Ele agarrou o tornozelo de Richard. Teitlebaum chutou-o e o policial praguejou, mas continuou a segurá-lo. O outro oficial, de arma em punho, correu até o colega.

Encurralado, Teitlebaum desceu da cerca e virou-se, pálido.

Um dos policiais explicou as vantagens de acompanhá-los sem protestar. Eles queriam apenas fazer-lhe algumas perguntas.

Teitlebaum me olhou.

— Ligue para seu advogado — aconselhei. — Não diga nada sem a presença de um advogado.

Eu não sabia se ele tinha me ouvido nem se conseguiria assimilar o que eu dizia.

— Você tem um advogado? — perguntei, enquanto os policiais o levavam embora.

Nenhuma resposta. Os homens o conduziram à rua.

:— Quer que eu arranje um para você? — ofereci.

Os ombros de Teitlebaum cederam. Ele parecia estar desistindo de tudo.

Um dos policiais ajudou-o a entrar na viatura e fechou a porta. Teitlebaum encostou o rosto no vidro.

— Arranje um advogado! — gritei quando o carro partiu. Voltei para casa. A luz do pórtico estava acesa, e a porta ainda escancarada. Fui à casa de minha mãe e bati.

— Mãe? — chamei para que ela soubesse quem era. A porta se abriu imediatamente.

— Recebeu visitas? — Ela adorava declarar o óbvio.

— Está tudo bem com você?

— Está. Por que não estaria? Ouvi gritos. Vi uma pessoa trepando a cerca do vizinho. A polícia apareceu. Faz parte de seu trabalho lidar com criminosos, não? — Ela torceu o nariz. — Por que eu não estaria bem?

— Ele não é um criminoso. É psiquiatra — expliquei. Minha mãe ergueu as sobrancelhas. O que mais ela esperaria?

— Seu amigo?

A pergunta me pegou. Eu sentia certa simpatia por Richard. Um psiquiatra mata um paciente? Seria o mesmo que um homem morder seu cachorro. Acontecia... em raríssimas ocasiões. Mas, tal qual Teitlebaum havia sugerido, o mais comum seria o marido matar a esposa.

— Talvez. Mais ou menos — admiti.

— E você não foi com ele?

Minha mãe era capaz de reorganizar minhas prioridades em questão de segundos. Ela tinha razão. Richard Teitlebaum precisava de ajuda. Mais do que isso, ele tinha de conseguir um advogado. Contudo, isso significava que o homem teria de lutar, e pelo jeito parecia não lhe restar mais nenhum instinto de sobrevivência. Sem um advogado, os policiais iriam massacrá-lo. Eu fizera o que tinha de fazer. Ainda assim, se ele fora vítima de uma armadilha, eu sem dúvida havia auxiliado na farsa.

— Na verdade, acho que vou até a delegacia. Eu só queria saber se você estava bem.

— Estou bem — ela respondeu. — Não estou sozinha.

— Não?

— Por que esse fato sempre o surpreende? — minha mãe perguntou e fechou a porta.

Tranquei a casa e entrei no carro. Então dei-me conta de que não fazia a menor idéia de onde ele estava. Mas logo em seguida lembrei-me de que eu ainda tinha o cartão de Boley. Peguei-o na carteira. Ele trabalhava na unidade de homicídios no segundo andar da Middlesex County Courthouse. Esperava que Teitlebaum tivesse sido levado para lá.

Percorri a Memorial Drive em alta velocidade, atento ao espelho retrovisor e rezando para que meu anjo da guarda estivesse alerta. Realizei o trajeto em tempo recorde e estacionei na rua. Mesmo àquela hora da noite, havia muita gente à minha frente, apresentando a identidade e passando pelo detector de metais.

A unidade de homicídios localizava-se no segundo andar, à direita do elevador. A lanchonete, agora fechada, achava-se à esquerda, e nos andares inferiores ficavam as celas.

A bandeira americana e a do Estado eram as únicas cores no pequeno balcão de recepção. Atrás dele, uma mulher — sargento — falava ao telefone. Ela tinha cabelos pretos, altura mediana, ombros largos e não usava nenhum anel nem aliança. Ela me olhou, inclinou a cabeça e continuou a conversa. Então, aproximou-se do microfone e rosnou algumas instruções, escutou um pouco de estática e rosnou outra vez.

Não me lembrava de ter visto policiais femininas na casa de Babikian. Outro oficial apareceu e murmurou algo para ela. Também não o reconheci; não sabia dizer se ele estivera na casa de Babikian duas semanas atrás ou na minha, uma hora antes. Eu seria uma péssima testemunha ocular.

Por fim, ela se virou para mim.

— Pois não, senhor? — Ela me olhava sem expressão, tal qual os policiais faziam ao preencher uma multa de trânsito.

— O dr. Richard Teitlebaum foi trazido para cá?

— O senhor é?

— Sou... — Se eu fosse advogado, conseguiria obter acesso a ele — colega dele. Ele chamou um advogado?

Ela me olhou como se dissesse: Como vou saber?    

Nesse instante, Boley apareceu.                              

— Detetive Boley! — chamei.

Ele parou. Ao me reconhecer seu semblante tornou-se irritado.                                                              

—O que está fazendo aqui?                                                

—Eles pegaram Téitlebaum.          

— Sim, obrigado pela pista. — Boley íéz menção de sair.

— Ele estava em minha casa.  

— E daí?

— Ele está muito perturbado.

Eu sabia que parecia um maluco. Primeiro, entregara o sujeito. Agora me preocupava com o bem-estar do homem.

Boley me olhou sem o menor interesse. Pelo jeito, tal qual afirmara Annie, Al Boley trocaria Nick por Téitlebaum para finalizar o caso o mais rápido possível.

— Em minha opinião profissional, ele está em choque. Não é capaz de pensar racionalmente. — Fiz uma pausa para que Boley assimilasse a informação. — Se Teitlebaum não chamou um advogado, ele não poderá prestar depoimento. Qualquer coisa que ele disser agora não poderá ser usada no tribunal.

Uma expressão de raiva passou pelo rosto de Boley. Ele olhou em direção a uma porta, provavelmente o local onde detinham Teitlebaum.

— Tenho certeza de que o dr. Teitlebaum é grato por sua preocupação.

De repente, um policial carregando uma caixa aproximou-se. Boley puxou-o para um canto, e eles conversaram em voz baixa.

— Descobriram alguma coisa? — perguntei, quando Boley voltou-se para mim.

— Sapatos — ele disse, sem expressão. — Exatamente o que você nos contou.

— Ele deveria solicitar a presença de um advogado.

— Você já disse isso. — Boley virou-se e saiu marchando. Se o estado de Teitlebaum não tivesse melhorado nos

últimos trinta minutos, então, indubitavelmente, ele conseguiria saciar a fome selvagem dos investigadores. De qualquer maneira, não havia muito que eu pudesse fazer, a não ser conseguir-lhe um advogado.

Fui para o corredor, peguei o celular e liguei para Chip. Sim, ele poderia recomendar um advogado. Mas Teitlebaum teria de mandar chamá-lo. Nenhum advogado se apresentaria sem saber que haveria um cliente para representar e que fosse bom pagador. De graça, Teitlebaum só conseguiria um defensor público. E, nesse caso, ele também teria de solicitar.

Desliguei, desanimado, e olhei ao redor. A policial da recepção olhou para mim com certo desagrado. Voltei ao corredor e sentei-me num banco.

E se Richard e Lisa tivessem tido um relacionamento? E se ele a tivesse matado? Sendo psiquiatra, ele saberia como criar uma cena do crime que apontasse Nick Babikian como suspeito. Porém, depois de tantos cuidados e planejamentos, por que usar galochas? E por que razão ele teria deixado as botas do lado de fora da casa?

Imaginei o que Annie diria. Quando conhecera Stuart Jackson, um inocente acusado de matar a ex-esposa e o namorado dela, Annie comentara:

— Se ele é o assassino, eu sou o coelhinho da Páscoa. Contemplei o que parecia não ter saída. Ao menos, eu poderia ficar por perto a fim de dar uma carona a Richard, caso a polícia o liberasse.

Já passava de meia-noite quando Teitlebaum apareceu no corredor. Ele parecia completamente exaurido.

— Posso levá-lo até seu carro? — ofereci.

— Meu carro?

— Você o deixou em minha casa. Ele assentiu.

— O que está fazendo aqui?

Tive vontade de contar-lhe o que minha mãe dissera, mas desisti.

— Achei que você precisaria de um amigo. Richard pareceu surpreso.

—Muito obrigado.

Caminhamos até meu carro.

— Você não deveria ter falado com a polícia sem a presença de um advogado. Eu trabalho com um advogado criminal. Telefonei para ele. Chip pode indicar-lhe um de seus colegas.

Teitlebaum não respondeu. Entramos no carro.

— Eles encontraram traços de sangue em minhas botas — relatou sem emoção.

A rua estava deserta. Dei partida no motor e arranquei. Um veículo surgiu atrás de mim.

— Pegaram minhas impressões digitais — Richard disse.

— Fizeram muitas perguntas?

— Sim. Queriam saber onde eu estava na noite do crime, qual era minha relação com Lisa Babikian... coisas do gênero.

— E você respondeu?

— Sim. Que estava em casa, dormindo, que era o terapeuta dela.

Liguei o pisca e virei na First Street. Passamos pelo shopping center às escuras. O veículo continuava a me seguir. Na Memorial Drive, fiquei na pista da direita e reduzi a velocidade. Alguns carros me ultrapassaram, mas o tal veículo continuou atrás de mim. Eu não tinha dúvidas de que Boley mandara nos seguir.

Richard recostou a cabeça e fechou os olhos.

— Já perdeu algum paciente? — perguntou.

— Todos nós já perdemos — eu disse. Lembrei-me, então, do paciente que eu havia "perdido" quando ainda estava na faculdade. Eu o vira pela primeira vez quando a polícia o pescara no rio Charles. Ele havia tomado LSD e se deitara para ler um livro. Tomado por algum tipo de alucinação, o jovem se despira, caminhara até a rua e tentara enterrar o livro no asfalto. Ao ver que não conseguiria, fora até o rio para jogar o livro na água, mas se esquecera de soltá-lo das mãos.

Por mais que eu tivesse tentado, não consegui ajudá-lo. Quando disse aos pais que o rapaz devia ser esquizofrênico, eles o levaram para casa. Alguns meses depois, eu soube que ele se jogara de um viaduto.

— Algumas pessoas pensam que só porque somos pagos para ouvir, nós não nos importamos — Teitlebaum comentou. — Com Lisa acreditei que eu poderia fazer a diferença. Ela era tão parecida com... — Ele se calou.

— Com quem?  

Ele ignorou a pergunta.

— Eu estraguei tudo. Disse a mim mesmo que havia ganhado uma segunda chance. Dessa vez, eu conseguiria trabalhar direito. — A voz de Teitlebaum soou raivosa. — Idiota! Não acredito que isso esteja acontecendo!

A raiva representava um bom prognóstico após uma crise de desespero.

— Todos nós temos nossos fantasmas — comentei. Quando entramos na Mass Avenue e passamos pela Central Square, percebi que o carro que nos seguia desaparecera.

— É o que sempre digo a meus pacientes — Teitlebaum contou. — Não se pode fugir dos problemas. Eles têm um jeito de reaparecer com cara nova.

Ao estacionar diante de minha casa, notei que outro automóvel parava a um quarteirão de distância.

— Acho que estamos sendo seguidos — eu disse a Teitlebaum. Ele se virou para olhar. — Umas doze casas atrás.

— Oh, meu Deus — ele gemeu e encolheu-se no banco, deixando-se dominar pelo desespero outra vez. Por fim, abriu a porta.

— Parece que você está desistindo — eu observei.

— Você não faria o mesmo, em meu lugar?

— Só sei de uma coisa. Eu não falaria com a polícia sem um advogado. — Eu começava a parecer um disco riscado.

— Se eles não conseguiram provas para incriminar Nick Babikian, irão atrás do primeiro suspeito que aparecer.

Às vezes, um pouco de paranóia podia ajudar.

Meu comentário pareceu despertá-lo.

— Ligue para Chip, pelo menos. — Peguei um cartão e anotei o número de telefone de Chip. — Diga-lhe que fui eu quem o indicou a você. E não se esqueça, se eles o acusarem e você for inocente, o assassino de Lisa escapará ileso.

A primeira coisa que fiz na manhã seguinte foi pesquisar na biblioteca qual fora a participação de Teitlebaum no caso Ely.

A biblioteca localizava-se numa praça atrás da Harvard Square. A fachada era ricamente decorada com arcos de tijolos e torres repletas de janelas. Passei pela suntuosa entrada, ávido para obter respostas. A biblioteca tinha acabado de abrir.

Depois de preencher meus dados no balcão, segui pelo longo corredor em direção à sala dos computadores. O brilhante arquiteto que destruíra e reformara o interior — que agora se assemelhava a uma caixa de papelão — merecia arder no inferno.

No computador, acessei o acervo de jornais e procurei cruzar informações sobre "Ely" e "Teitlebaum". Consegui seis resultados. O primeiro me mostrou o que eu queria saber. Era uma reportagem de primeira página sobre o julgamento. "A defesa alega que Ely está mentalmente doente e, portanto, não é responsável pela morte da esposa, segundo o testemunho do psiquiatra Richard Teitlebaum".

Li rapidamente os parágrafos. Depois reli para ter certeza de que havia entendido tudo. Teitlebaum não havia sido uma testemunha forense nem para a defesa nem para a promotoria. Ele era o terapeuta de Angela Ely.

Por isso ficara tão perturbado com a morte de Lisa Babikian. Pela segunda vez, parecia que uma paciente sua morrera nas mãos de um marido delirante cujo elo com a realidade havia sido perdido.

Teitlebaum dissera em seu testemunho que Henry Ely lhe telefonara após o crime. Ely lhe parecera confuso e desorientado, alegando que a esposa era uma alienígena que pretendia matá-lo. Ely acreditava que, como os vampiros, os alienígenas alimentavam-se de sangue. Ele contara a Teitlebaum que havia cortado a esposa e fincado uma estaca em seu coração para evitar que ela o perseguisse. Teitlebaum declarara: "Ely estava tomado por um surto psicótico. Sua progressiva preocupação com a saúde e a falha de associação com a realidade foram o prenuncio desse surto".

Falha de associação com a realidade — foram praticamente as mesmas palavras que ele usara para descrever o estado de Nick Babikian.

O julgamento terminara após seis semanas. Ely fora declarado culpado e condenado à prisão perpétua. Um ano depois, Teitlebaum mudara-se para Newton. Seis meses depois, os Babikian apareceram.

Qual era a probabilidade de, em menos de dois anos, um terapeuta ter duas pacientes assassinadas e mutiladas pelo marido?, pensei, enquanto caminhava até minha casa. Como diria "tio Sigmund", eu não acreditava em coincidências.

 

Era bom passar, finalmente, uma semana tranqüila. O novo sistema de segurança cumpria sua função, e Annie me contou que os telefonemas noturnos haviam cessado.

Os pacientes chegavam e partiam da unidade. Eu cobria os plantões de Kwan enquanto ele participava de um congresso de geriatria e farmacologia em Genebra. A sra. Smetz tornava-se cada vez mais racional, mas ainda tinha seus rompantes de Virgem Maria. Seria preciso mais uma semana para que ela se conectasse totalmente à realidade.

Os jornais continuavam publicando matérias a respeito do caso Babikian. Um dos artigos destacava as "pistas" que estavam sendo investigadas. De acordo com "fontes seguras", um "proeminente psiquiatra de Newton" estava sob a mira da polícia.

Na sexta-feira, recebi uma mensagem pelo bip no meio da tarde. Era um número desconhecido. Retornei a ligação.

— Alô? — Era a voz de um homem.

— Aqui é o dr. Peter Zak...

— Eles estão cavando — ele disse. Era Richard Teitlebaum.

— Quem? Onde?

— A polícia. Estão nos fundos. Agora resolveram escavar meu quintal. — Richard baixou o tom de voz. — Tenho medo do que possam encontrar. Deus, estou apavorado!

A voz soou sem vida, um som que alertaria qualquer terapeuta para identificar um paciente profundamente deprimido.

— E você está sozinho? — perguntei.

— Você acha que algum paciente ainda quer vir aqui? — Richard soltou uma gargalhada nervosa. — Eles leram o jornal. Não é difícil chegar a certas conclusões. Todos cancelaram as consultas.

— Não tem nenhum amigo a quem você possa recorrer? Não deve ficar sozinho.                                        

— Acha que eu não sei disso?

— Já contatou um advogado? Não houve resposta.

Eu já estava verificando minha agenda. Tinha um paciente que chegaria a qualquer minuto. Em seguia haveria uma reunião à qual eu poderia faltar. Eu pretendia terminar um artigo, que estava pendente havia duas semanas, para a Revista de Neuropsiquiatria. Isso poderia esperar.

— Meu Deus — ele murmurou longe do telefone.

— O que foi?

— Acho que encontraram alguma coisa.    

Escutei uma batida em minha porta.          

— Não desligue, por favor.

Abri a porta e pedi a Matt Ciampi, um paciente com o qual eu vinha trabalhando havia meses, que esperasse um instante. Verifiquei meu relógio.

— Poderei estar em sua casa por volta das quatro, mas antes tenho de atender um paciente.

Escutei-o respirar.                                            

— Richard — chamei-o.                                  

— Sim?

— Você ligou para Chip Ferguson? Já conversou com um advogado?

— Jesus Cristo, eles estão tirando alguma coisa da terra. Não consigo ver direito...

Matt estava à minha espera. Se fosse qualquer outro paciente, eu teria cancelado a consulta. Mas o mundo de Matt estava bastante fragmentado, e sua vida, desorganizada e caótica. Se eu cancelasse aquela sessão, tal fato poderia abalar a frágil compreensão que ele conseguira conquistar ao dar o primeiro passo para sair de uma grave depressão.

— Richard, você vai ficar bem até eu chegar? Estarei em sua casa às quatro.

— Quatro?

— Talvez antes, se eu puder. Ele desligou.

Rapidamente liguei para Annie e deixei uma mensagem, pedindo-lhe para ir à casa de Teitlebaum assim que pudesse. Então sentei-me e tentei refrear a descarga de adrenalina que corria pelo meu corpo.

Quando me senti melhor, abri a porta.

— Como vai? — perguntei ao convidar Matt para entrar.

— Bem, eu... — Ele se deteve. — Está se sentindo bem?

As pessoas dizem que um cavalo pode sentir a ansiedade do cavaleiro. Alguns pacientes eram assim. Garanti a Matt que estava tudo bem e iniciamos a sessão.

Tão logo ele saiu, liguei para Teitlebaum. O telefone tocou uma vez e a secretária eletrônica atendeu. Deixei um recado, dizendo que estava a caminho. Tranquei meu consultório e precipitei-me pelo corredor. Chamei o elevador, mas ele iria demorar demais. Então resolvi descer pela escada de incêndio. Eu sabia que Richard não podia ficar sozinho.

Embora fossem três e meia da tarde, o trânsito já começava a se complicar. Meu celular tocou enquanto eu tentava me desvencilhar de um engarrafamento. Era Annie.

— Desculpe, mas só peguei seu recado agora. Estou em Manchester.

Ela levaria no mínimo uma hora para chegar à casa de Richard. Disse-lhe que eu estava indo para lá e que ligaria quando chegasse.

Se a ansiedade pudesse levitar um carro, eu já estaria flutuando até West Newton. Enfim, consegui atingir os arredores da residência de Teitlebaum. A casa amarela parecia imaculada e imponente.

A garagem estava fechada, e o Volvo prateado achava-se parado ao lado da casa. Estacionei na rua e corri até a porta do consultório. Toda a área ao redor da casa estava uma baderna. Alguém revolvera toda a terra. Os três arbustos recentemente plantados haviam sido arrancados. Pedaços de fita amarela da polícia encontravam-se misturados à terra.

— Richard! — gritei e bati na porta. Esperei e bati de novo.

Restos de petúnias brancas e rosas estavam jogados na terra pisoteada. Esmurrei a porta.

— Richard! Sou eu, Peter. Deixe-me entrar. Nada.

Espiei pela janela. Pude enxergar o consultório de Teitlebaum. O telefone sobre a mesa estava fora do gancho. Bati no vidro da janela e gritei novamente.

Olhei para o outro lado da rua. O vizinho! A cortina da janela da casa vizinha moveu-se.

— Ei! — chamei.

Atravessei a rua e bati à porta. Uma mulher morena e pálida atendeu. Ela assoprava uma das mãos, cujas unhas estavam pintadas de vermelho. Uma risada rancorosa ecoou da cozinha — o som parecia vir de um programa de televisão.

— Estou procurando o dr. Teitlebaum — falei, apontando a casa de Richard.

— Já conversei com a polícia — ela disse. — Não sei de nada. — Ela assoprou as unhas outra vez. — Ele nunca se mostrou amigável. É do tipo solitário. Muito estranho.

Ela devia pensar que eu era um jornalista. Sempre me impressionei com as coisas horríveis que as pessoas podiam dizer a respeito dos vizinhos num momento de escândalo. Eu a interrompi.

— A senhora o viu sair com a polícia? Ela esquadrinhou a rua.

— Quem é você?

— Um amigo dele.

— Um amigo — ela repetiu, com ar de desdém.

A polícia possuía distintivos para mostrar legitimidade. Eu entreguei-lhe meu cartão. Era tudo que tinha.

— Sou psicólogo. Sabe onde ele está?

— Não tenho certeza. Andei muito ocupada. — Ela mostrou as unhas.— Não reparei.

— Há quanto tempo a polícia se foi?

— Há uma hora, talvez mais. O programa de Ophra ainda não havia começado. — Ela indicou a rua. — Quem vai limpar essa sujeira?

Voltei à casa de Richard e ataquei a porta da frente. Estava trancada. Precipitei-me para os fundos. A porta estava aberta.

Entrei e chamei-o. Havia grãos de terra no piso de cerâmica branca da cozinha. Três xícaras de café achavam-se sobre a mesa. Toquei uma delas. Estava fria. A luz da cafeteira elétrica continuava acesa, aquecendo o resto de café no fundo da jarra.

— Richard! — tentei mais uma vez.

Ele se mostrara perturbado, desesperado, incapaz até de conseguir um advogado. Se fosse meu paciente, eu o teria obrigado a assinar um documento, concordando em não praticar nenhum ato contra si próprio.

Depois de verificar o pavimento térreo, corri escada acima a fim de verificar o andar superior. Entrei nos quartos, abri os armários e o banheiro. A casa estava em ordem e deserta.

Voltei à cozinha e olhei pela janela. A pintura branca da parede da garagem estava descascando. Pelo jeito, Teitlebaum não tivera disposição para restaurá-la.

Precipitei-me até os fundos e tentei erguer a porta da garagem. Estava trancada ou emperrada. Uma janela lateral havia sido quebrada. Peguei um pedaço de pau, tirei os restos de vidro na moldura e passei pela janela.

O interior estava escuro e cheirava a folhas secas e adubo. Esperei que meus olhos se adaptassem à penumbra. A despeito da confusão externa, a garagem achava-se tão em ordem quanto o interior da casa. Reparei em dois colchões encostados à parede e um velho aquecedor relegado a um canto. Caminhei pelo chão de concreto. Malas e caixas com suprimentos de jardinagem estavam organizadas em prateleiras, junto a um cortador de grama e um carrinho de mão. Outras ferramentas encontravam-se penduradas na parede.

Continuei. Nos fundos, havia um armário velho com o número 31 pintado na porta. Era mais alto que eu. Abri a porta. Estava vazio.

Retornei à janela, tentando não rasgar minhas roupas no peitoril. Caminhei devagar, pensando no que eu poderia fazer agora. Encostei-me no Volvo, e foi então que percebi que o veículo estava ligado. Tentei abrir a porta. Trancada. Verifiquei o interior do carro. Vazio.

Era estranho como estava estacionado tão perto da casa. Dei a volta no carro.

— Caramba — murmurei, quando uma onda de medo me envolveu, oprimindo meu peito.

Uma mangueira, com uma das extremidades conectada ao escapamento do carro, estendia-se pelo chão em direção à janela do porão.

Arranquei a mangueira do escapamento e corri até a cozinha. Lá encontrei a porta do porão. Abri-a e acendi a luz. Havia terra nos degraus. Desci o mais depressa que pude.

O porão era uma sala de ginástica, cujo piso fora coberto por um forro de borracha preta. Pude então sentir o forte odor da fumaça do escapamento. Uma das paredes era revestida de cedro e possuía uma porta com uma espécie de postigo de vidro. Parecia uma sauna.

Espiei pelo vidro. Avistei Richard caído no banco mais baixo e encostado à parede. Eu tinha de tirá-lo dali imediatamente.

Respirei fundo, prendi o fôlego, abri a porta e a segurei com uma cadeira. Em seguida, tirei Richard do banco. Agarrei-o pelas axilas e o arrastei pela escada do porão antes de respirar novamente. Eu o puxava, sem pensar nos ferimentos que poderia estar causando à cabeça e às costas de Teitlebaum enquanto percorria os degraus. O rosto dele estava azulado e não avermelhado, conforme eu me lembrava de ter lido sobre os sintomas de envenenamento por monóxido de carbono. Nós dois precisávamos sair do porão. Em espaços confinados, o monóxido de carbono podia rapidamente atingir níveis tóxicos. Em poucos minutos a substância química começaria a matar células cerebrais.

Levei Teitlebaum até a cozinha, bati a porta do porão e abri a porta da rua. Encostei-me no balcão, tentando recuperar o fôlego. Então peguei o telefone. Não havia linha. Senti um arrepio percorrer a espinha. Teria alguém cortado o fio do telefone? De repente me lembrei. Quando espiei para dentro do consultório de Richard, eu vira o aparelho fora do gancho.

Não queria deixá-lo sozinho. Então peguei o celular e liguei para a emergência, pedindo uma ambulância. A atendente perguntou-me se ele ainda tinha pulsação. Pressionei meus dedos no pescoço dele. A pulsação parecia fraca. Eu sabia aplicar primeiros-socorros? Talvez. Ela informou que aguardaria na linha enquanto eu tentava.

Eu aprendera os procedimentos de primeiros-socorros anos atrás, mas nunca os usara.

Deitei Teitlebaum de costas. Naquele dia, ele usava um suéter amarelo sobre uma camisa azul-clara que ainda exalava o aroma de amaciante. Ajoelhei-me ao lado dele e pousei as duas mãos no centro do tórax. Pressionei e soltei. Pressionei. Soltei. Pressionei.

Abri a boca de Teitlebaum a fim de garantir a saída de ar. Pincei seu nariz e comecei a respiração boca a boca. Exalei o ar, observando o peito dele se mover. Repeti a operação mais vezes.

— Respire, droga — murmurei.

Não escutei as sirenes até que a ambulância parou na rua e alguém bateu à porta da frente. Deixei-os entrar e então esperei a equipe de paramédicos tentar ressuscitar Teitlebaum. Perguntei a um deles acerca da cor do rosto.

— Por que ele não estava vermelho?

— Isso é um mito — explicou um dos paramédicos. Somente uma pequena porcentagem de vítimas de intoxicação por monóxido de carbono ficava com o rosto vermelho. O mais comum era ficar cianótico, como Teitlebaum.

Enquanto eu fornecia as informações que sabia a respeito de Teitlebaum, o outro paramédico anunciou:

— Ele está respirando.

Teitlebaum ainda estava inconsciente quando o colocaram na maca, com uma máscara de oxigênio no rosto. Eu esperava tê-lo tirado do porão a tempo. A intoxicação por monóxido de carbono causava um efeito particularmente devastador nos lobos frontais e no sistema límbico. Um psiquiatra que não pudesse controlar suas emoções, que oscilasse entre a euforia e a apatia, teria a mesma dificuldade para conseguir clientes que um profissional acusado de assassinato.

Observei a ambulância partir com a sirene ligada. A vizinha estava à porta de sua casa, transfigurada pelo drama.

Voltei para dentro. A atendente ainda achava-se na linha. Agradeci a ela e desliguei.

A casa silenciosa ainda abarcava a presença de Richard Teitlebaum. Havia imensas fotos de veleiros nas paredes e livros de ficção e literatura nas estantes. O aroma de café espalhava-se pela residência.

Fui à cozinha e desliguei a cafeteira. Eu estava exausto, como se tivesse corrido dois quilômetros numa pista de lama. Despejei o resto do café numa xícara.

Encostei-me no balcão e tomei um gole. Por quanto tempo Richard ficara no porão? Teria feito alguma diferença se eu tivesse ido diretamente à sauna, em vez de percorrer a casa toda primeiro e falar com a vizinha?

Vaguei pelo consultório e me deixei afundar numa poltrona. Era o mesmo lugar em que eu me sentara quando o conhecera. Ainda conseguia visualizá-lo apreensivo e nervoso. Richard estava arrasado naquele dia. Assustado, sofrendo como se houvesse perdido um ente querido. Não é preciso ser psiquiatra para saber que maridos matam esposas. Estaria ele com a razão?

Teitlebaum era um yuppie de Newton Hill com as mãos calejadas. Um profissional calmo que sofria de ansiedade. Tentei imaginá-lo invadindo a residência de Babikian na calada da noite, sabendo que Nick estaria trabalhando no porão e que a única testemunha do crime, a sra. Babikian, não conseguiria relatar o ocorrido. Ele encontraria Lisa...

Era sempre nesse ponto que eu parava. Teitlebaum podia ter ultrapassado algumas fronteiras éticas do relacionamento com a paciente. Mas, em meu coração, eu não conseguia vê-lo como um assassino. E embora ele soubesse que a máscara em Lisa incriminaria Nick, eu não podia imaginá-lo executando aquele ato brutal e desumano. Ele parecia nutrir certo carinho pela jovem que tratara.

A mesa de Teitlebaum estava vazia. Não havia nenhum bilhete suicida que explicasse o motivo pelo qual alguém tiraria a própria vida. Somente duas canecas — uma cheia de canetas e a outra de lápis — jaziam ao lado do telefone.

Coloquei-o no gancho. Quem lamentaria por Richard Teitlebaum? Teria ele parentes em Rhode Island? A estante atrás da mesa abrigava alguns porta-retratos. Parecia um encontro familiar, talvez Richard com os pais, irmão e irmãs, sobrinhas e sobrinhos. Pelo menos, eu poderia ligar para eles e comunicar o acontecido.

Esquadrinhei o consultório à procura de uma agenda. Tentei a gaveta do meio. Havia uma pilha de envelopes, mais canetas e lápis, e uma pequena caixa cheia de selos. Abri a gaveta superior. Lembrei-me de Richard ter aberto aquela gaveta quando conversamos pela primeira vez. A calculadora estava sobre o talão de cheques e ao lado de um pequeno caderno com capa de couro. Peguei-o e fechei a gaveta. O volume continha um calendário e, no final, uma seção de endereços e telefones.

Fui à letra T e encontrei vários Teitlebaum. Telefonei para o primeiro da lista. Michael Teitlebaum era o irmão de Richard. A esposa de Michael, Karen, estava em casa. Contei-lhe o que pude da forma mais delicada possível. Ela pareceu assustada, quase sem fala. Por fim, Karen me agradeceu e disse que avisaria o resto da família. Dei-lhe meu número de telefone.

Em seguida liguei para Chip para que ele e Annie soubessem o que estava acontecendo. Annie foi ao telefone e me bombardeou com perguntas. Ela me fez descrever cada uma de minhas ações. No final, perguntou como eu estava me sentindo.

Ri de cansaço.

— Como estou me sentindo? — Como sempre, eu tentava não sentir nada. — Estou me condenando por não ter chegado mais cedo.

— Talvez ele consiga sobreviver — Annie disse.

— E talvez ele lamente sobreviver. O monóxido de carbono pode causar danos permanentes ao cérebro..)

—Por que não vai ao hospital, Peter? Depois que ele recobrar a consciência, claro. E não fique sozinho. — Ela começava a falar como eu. — Avise-me, se quiser companhia.

Desliguei e abri a gaveta novamente para guardar a agenda. Lembrei-me das anotações no calendário de Lisa Babikian. Se estivesse viva, ela teria uma consulta com Richard naquele dia, sexta-feira, às quatro horas, justamente na hora em que Teitlebaum ficara inconsciente na sauna.

Abri a agenda. O nome de Lisa Babikian estava riscado naquele dia. Todas as outras consultas haviam sido riscadas também. Ser suspeito de um assassinato não apenas prejudicara a prática profissional de Teitlebaum. Na verdade, destruíra-a.

 

A manchete do jornal de sábado era: "Suspeito de Crime Brutal Escapa por Pouco da Morte". Havia uma foto de Richard Teitlebaum. Li a reportagem. Quando a matéria fora impressa, Richard estava no hospital, na unidade de tratamento intensivo. A imprensa desconhecia os detalhes acerca do que a polícia encontrara no jardim da casa do médico, sabia apenas que haviam retirado várias caixas contendo provas.

A vizinha de Richard, Barbara Small, prestara depoimento. Ela o descrevia como um homem "esquisito" e "assustador". "Quando eu o cumprimentava, ele lançava aquele olhar distante e não dizia nada. E havia também aquelas pessoas estranhas entrando e saindo da casa o dia todo".

Com uma vizinha como aquela, quem precisava de inimigos?

A mulher também havia relatado que vira um homem alto e barrigudo espreitando o carro e espalhando terra pela calçada. Barbara Small dizia que tanto podia ter sido antes como depois de Teitlebaum ser retirado do porão.

Barrigudo? Olhei para meu abdome. Eu não era barrigudo, embora não estivesse tão disciplinado quanto a remar todas as manhãs como costumava ser.

Resolvi visitar Richard no hospital. Telefonei para Annie a fim de convidá-la para ir comigo. Combinamos em nos encontrar no saguão do hospital no final daquela manhã. Eu esperava que aquela visita me assegurasse que eu não chegara tarde demais.

O sol só começou a esquentar depois das oito horas. O dia prometia ser quente. Isso às vezes acontecia na Nova Inglaterra e nem sempre era um bom sinal. O calor escaldante podia estorricar botões de magnólia.

Vesti um short e calcei um par de tênis. Peguei minha garrafa de água, o walkman com o CD de Jess Klein e saí para correr ao longo do rio. Fiz um circuito pela ponte Longfellow e voltei pela Mass Avenue até chegar em casa. Embora estivesse fora de forma, resisti à tentação de descansar durante o percurso. Correr sempre oferecia uma folga à mente enquanto o corpo trabalhava.

Voltei encharcado de suor, como se tivesse mergulhado no rio.

Quando saí do chuveiro, o telefone estava tocando. Era o detetive Boley.

— Você poderia vir à delegacia para prestar depoimento? — ele pediu. — E só uma formalidade.

— Sim, posso. Estarei liberado por volta do meio-dia. O que encontrou na casa de Teitlebaum? — perguntei.

Houve uma pausa.

— Darei uma entrevista à imprensa em meia hora. Ligue o rádio e descubra — Boley sugeriu e desligou.

Cretino arrogante. Ele estava adorando ser o centro das atenções.

Dirigi até o hospital com as janelas do carro abertas e o rádio ligado. Pelo menos, as ruas estavam quase desertas. Eu estava estacionando no pátio do hospital quando o noticiário começou. A polícia havia descoberto sangue nas luvas de jardinagem e tecido humano enterrado no quintal de Richard Teitlebaum. Provavelmente, o feto que Lisa Babikian estava gerando.

Desliguei o rádio e saí do carro. Annie me esperava no saguão. Ela vestia calça jeans e uma camiseta preta sob uma camisa branca de algodão.

— Escutou o noticiário? — ela perguntou.

Assenti. Annie usava rabo-de-cavalo e alguns cachos avermelhados caíam sobre a nuca. Foi onde a beijei. A pele macia estava úmida.

— Chip está preparando uma moção para libertar Nick.

Se fosse qualquer outro caso, eu ficaria contente. Libertar o acusado sem um julgamento representava uma vitória. Era bom para o acusado, bom para o Estado, e Chip receberia seus honorários. Mas eu me sentiria bem melhor se soubesse que Teitlebaum receberia um tratamento adequado do sistema de justiça criminal. Pela primeira vez me senti grato pelo hábito de Chip de me poupar de informações que eu não precisava saber.

Subimos as escadas até o segundo andar e percorremos um longo corredor, seguindo as indicações para a UTI.

— Também ouvi que eles acharam uma câmara de segurança na casa de Teitlebaum — Annie comentou.

— Sim, cheguei a ver essa câmara. Estava nâ mesa de Richard. Ele disse que Nick a instalou no consultório para espionar as sessões da mulher.

Annie fez menção de dizer algo, mas se deteve. Estávamos em frente à porta dupla da UTI. Um policial uniformizado estava sentado na entrada. Ele se levantou e perguntou quem iríamos visitar.

— Richard Teitlebaum — respondi. — Somos amigos. Sou o dr. Peter Zak. Esta é Annie Squires.

— Olá, Annie. — O policial sorriu. — Como vão as coisas? — Metade dos policiais da cidade parecia conhecer Annie.

— As coisas vão bem, Eddie. Foi Peter quem encontrou o dr. Teitlebaum e chamou a ambulância. Tudo bem se nós entrarmos para vê-lo?

— Eles só deixam uma pessoa entrar.  

— Certo. Vá você, Peter — ela sugeriu. O policial olhou pelo vidro das portas.

— Ele ainda está inconsciente.

Peguei o interfone no umbral da porta. Uma enfermeira de meia-idade apareceu. Perguntou quem eu queria ver e destravou as portas.

Os leitos da CTI localizavam-se ao lado da enfermaria, em pequenos cubículos. A enfermeira indicou Teitlebaum. Ela meneou a cabeça, desolada.

— Que pena — disse. — Um homem tão jovem. Teitlebaum jazia inerte no leito, um tubo inserido no nariz e o soro no braço. Havia fios saindo das cobertas e outros conectados à cabeça dele. Estavam todos ligados aos monitores que o rodeavam, cada qual compondo o respectivo gráfico sinusoidal.

— Ele recobrou a consciência? — perguntei.

A enfermeira consultou o prontuário ao pé da cama e meneou a cabeça em negativa.

Aproximei-me do leito, puxei uma cadeira e sentei-me. Eu respirava pela boca a fim de não sentir o cheiro do recinto — de álcool desnaturado e gardênias.

— Richard? — chamei.

O monitor ao lado do leito emitia o som de um bip contínuo. Uma máquina, que auxiliava outro paciente, fez um ruído.

— Richard — chamei com um pouco mais de intensidade, tocando o braço dele.

A sola emborrachada do sapato da enfermeira sobre o assoalho asséptico ecoou pelo espaço. Mas Teitlebaum não se moveu.

Senti um novo rompante de raiva. Por que diabos ele não esperara que eu chegasse? Suicídio era a maior estupidez. Deixava tantas perguntas sem respostas, tantas pessoas se recriminavam e culpavam os outros. A polícia assumiria que havia capturado o assassino, e que este atentara contra a própria vida. Caso encerrado. Todos iriam para casa satisfeitos.

Contudo, no fundo eu sabia que aquele caso não estava encerrado. Embora fosse difícil acreditar, Richard havia tratado duas pacientes que foram brutalmente assassinadas. Era muita coincidência. E nada no comportamento de Teitlebaum e em sua reação à morte de Lisa Babikian sugeria que ele a matara.

Pensei nos psicopatas que eu havia encontrado ao longo dos anos, assassinos que tentaram mascarar a própria malevolência.

— A morte daquela mulher foi uma tragédia — Ralston Bridges comentara quando eu o avaliei. — Sabia que ela deixou uma filhinha de cinco anos?

Tal fato causara-lhe tristeza. Ele próprio tinha uma filha. Estivera presente na hora do nascimento. Fora a experiência mais incrível de sua vida, segundo ele. Ao pronunciar tais palavras, uma única lágrima surgira no canto do olho sem emoção.

Conheci apenas outros dois psicopatas de verdade, e ambos possuíam o mesmo olhar mortiço, inexpressivo.

Quando os olhos de Teitlebaum perderam a expressão, fora uma reação de desespero, não de impotência emocional. Eu tinha certeza de que ele gostava verdadeiramente de Lisa Babikian.

Pedi um pedaço de papel à enfermeira e escrevi um bilhete. Caso despertasse, eu queria que Teitlebaum soubesse que eu estivera lá. Deixei o papel sobre a mesa ao lado do leito.

Saí da UTI, e Annie e eu começamos a caminhar pelo corredor. Um homem moreno e muito bem vestido vinha em nossa direção com a graciosidade de um dançarino. Era Naresh Sharma, outro defensor público com quem eu havia trabalhado anos atrás.

— Meu bom amigo Peter! — ele exclamou.

A cuidadosa escolha de palavras — ele sempre as escolhia como alguém que colhesse conchas numa praia — era tudo que restava do sotaque indiano.

— E esta é Annie Squires? Ele e Annie se abraçaram.

— Você parece ótimo — ela comentou.

Como sempre, o advogado alto e distinto se vestia com mais elegância que meu amigo Kwan. Os sapatos estavam engraxados e o terno escuro parecia ter sido feito sob medida,

Naresh e eu apertamos as mãos.

— Como vai? Como está Lakshmi? — perguntei.

Eu nunca esquecera o extraordinário camarão ao curry e o delicioso chutney que a esposa de Naresh, também advogada, havia preparado para comemorar o fim de um processo judicial.

— Ela está ótima. Direi que perguntou dela. — Naresh olhou para a UTI com certa preocupação. — Sua mãe? Ela está passando bem?

— Está bem viva e teimosa, felizmente — garanti. — Vim visitar Richard Teitlebaum.

— Você o conhece? Ele é meu cliente.

— Richard o contratou?

— Sim, há alguns dias. Você sabe que agora estou trabalhando sozinho.

Nós três nos aproximamos do fim do corredor. Baixei meu tom de voz.

— Eu não sabia que ele tinha contratado um advogado. Isso é ótimo. Fui eu quem o encontrou e chamou a polícia. Estou trabalhando com Annie e Chip na defesa de Nick Babikian, o homem que...

Naresh ergueu a mão a fim de mostrar que não precisava de explicações.

— Sei que a situação parece péssima — continuei. — E depois do que encontraram no jardim de Richard, tudo piorou. Mas há algo nessa história que não se encaixa.

— Você não acredita que tenha sido suicídio? — Naresh perguntou.

— Na verdade, a tentativa de suicídio é a única parte que faz sentido. O que não consigo entender é por quê.

— Ele estava muito mal — Annie comentou.

— Isso justifica o suicídio. Mas por que Richard Teitlebaum mataria Lisa Babikian, depois a cortaria e enterraria o feto no próprio jardim?

Houve uma pausa.

— Acho que o bebê era dele — Annie sugeriu.

— Certo — concordei. — Suponhamos que ele e Lisa estão tendo um caso. Ela engravida. Fica histérica. Quer deixar o marido e fugir com o único homem que a entende. Teitlebaum se apavora, mata Lisa e destrói a prova de que a relação era muito maior que a de terapeuta-paciente. Enterra a evidência no próprio quintal porque ele é, afinal, o pai do bebê. Não pode simplesmente jogar o feto no lixo.

— E exatamente isso que o promotor público vai alegar no tribunal — Naresh deduziu.

— Aquele bebê não era de Teitlebaum — eu declarei, surpreso com minha própria convicção. — Quer apostar que um teste de DNA...

— Não faço apostas quando se trata de meus clientes — Naresh me interrompeu.

— Se Richard morrer, ele será condenado pela opinião pública, que se baseará em provas circunstanciais confirmadas pelo ato de suicídio — aleguei. — Mas ele ainda não morreu. Um exame de DNA ao menos mostrará que ele não abusou de sua posição de terapeuta.

Naresh não me pareceu convencido.

— Não sei, Peter. Sempre digo, nunca abra uma porta a menos que esteja cem por cento certo do que vai encontrar do outro lado.

— Eles já recolheram as digitais de Richard, já o interrogaram. Tentei persuadi-lo a chamar um advogado quando o levaram para a delegacia. Mas ele me ignorou. Avisei o detetive encarregado que Richard estava perturbado demais para prestar depoimento.

— Você disse isso a ele?

— Eu fui à delegacia. Eu disse a Boley que o depoimento de Teitlebaum não poderia ser usado no tribunal. Nós dois discutimos... muita gente testemunhou.

— Que interessante — Naresh murmurou.

Pude notar que o nobre advogado elaborava estratégias para evitar que a polícia usasse o depoimento que Teitlebaum prestara em momento de desespero.

Deixamos meu carro no estacionamento do hospital e saímos no jipe de Annie.

— Você tem de admitir que as evidências são muito claras — ela comentou, acelerando para chegar a Middlesex County Courthouse, onde encontraríamos Boley.

Ela tinha razão. Sangue nas galochas. O feto de Lisa Babikian e as luvas ensangüentadas estavam enterrados no jardim. E uma tentativa de suicídio que o fazia parecer culpado.

— Por outro lado — disse eu —, não há nenhuma testemunha. A menos que a sra. Babikian seja levada em consideração nesse caso. Pena que os arquivos de vigilância tenham desaparecido.

— Foi isso que esqueci de lhe contar — Annie disse, fazendo uma curva. — A polícia encontrou o disco rígido do computador de Babikian.

— Onde?

— Na mesa de Teitlebaum.

— Droga.

Senti como se não tivesse chão para pisar. Mais uma peça que implicava Richard na morte de Lisa Babikian.

Mas eu havia estado no consultório de Teitlebaum. Eu o vira vasculhar aquela mesa. Eu mesmo remexera nas gavetas. Poderia ter visto o disco e nem sequer me dado conta?

— Qual é o formato de um disco rígido?

— E mais ou menos deste tamanho. — Annie indicou a forma de um quadrado com as duas mãos. — Estreito. Parece um hardware. Ele contém um disco, tal qual um gravador. Foi esmagado talvez por um martelo. Estão tentando recuperar os dados.

Annie circulou o prédio duas vezes antes de desistir e parar num estacionamento. Ela entrou no pátio, achou uma vaga, desligou o motor, mas não saiu do carro.

— Peter, você acha que, após anos de experiência profissional, acabamos perdendo a capacidade de sentir?

— Acredita que isso esteja acontecendo a você? Annie deu de ombros.

— Talvez. Um pouco. Estou falando de um feto enterrado num jardim como se falasse de uma roupa velha.

— Creio que seu trabalho de investigadora criminal não é tão diferente do que eu faço ao examinar a mente das pessoas. Se você se envolve demais, não consegue cumprir sua função. E preciso manter certo distanciamento. — Segurei a mão dela. — É saudável. Mais que isso, é essencial. Mas essa atitude não a torna insensível. Eu sei disso.

Annie sorriu para mim e abriu a porta do carro. O ar quente nos atingiu como uma baforada.

A temperatura no interior da delegacia estava tão alta quanto na rua. A mesma mulher com quem eu falara na última vez se encontrava na recepção, com um ventilador ligado diante do rosto. Naquela manhã, ela escrevia sobre o painel.

— Peter! — Era Boley. Ele emergiu da área central, mostrando-se simpático e amistoso. — Annie!

— Olá, Al — Annie o cumprimentou. — Pelo jeito, você anda bem ocupado.

Ele sorriu. Parecia leve, sem o peso da tensão nos olhos.

— Obrigado por vir — ele me agradeceu. — Como eu lhe disse, é apenas uma formalidade. Preciso saber como você encontrou Teitlebaum. Seu depoimento vai amarrar as coisas.

— Que coisas, exatamente? — perguntei.

— Acho que pegamos nosso assassino, e ele provavelmente poupará aos contribuintes os custos de um julgamento.

Boley parecia muito seguro de si. Estariam eles ao menos considerando a possibilidade de Teitlebaum ter sido vítima de uma armação?

— Ele ainda não morreu, detetive Boley — eu declarei, tentando impor distância entre nós. — E já considerou o fato de que pode ser inocente?

Boley me desafiou com o olhar.

— Se fosse, como o sangue de Lisa Babikian teria ido parar nas botas dele? E quem mais teria enterrado o feto e as luvas no quintal dele?

— Enterrar as provas do crime no próprio jardim foi uma estratégia brilhante. Isso sem mencionar o par de galochas que ele deixou à vista de todos — ironizei.

Boley estreitou os olhos.

— Não acredita que ele seja culpado porque é seu colega

— acusou-me. — Vocês sempre se unem nessas horas, não?

Perguntei-me se ele ganharia bônus extras se conseguisse apanhar um criminoso com título de doutor. Mas reconheci que havia um fundo de verdade no que Boley dizia. Estaria eu tão certo de que Teitlebaum não era o assassino porque acreditava na boa índole dos profissionais da saúde mental? Descartei o pensamento.

— Qualquer um pode ter escavado o jardim — argumentei. — Não há testemunhas.

Boley afrouxou o nó da gravata. Pude sentir a raiva crescente. As palavras de Nick Babikian resvalaram minha mente: Encontrem o pai. Teitlebaum alegara que não tivera um caso com Lisa Babikian, e eu acreditava nele.

— Você vai pedir um exame de DNA? — pressionei. O rosto de Boley ficou vermelho.

— O quê? — ele explodiu. — Você deve viver num mundo de fantasia. Para que precisamos de um exame de DNA? Ele tentou se matar. Encontramos o disco rígido na escrivaninha do homem. Quem você acha que é culpado?

— Ele me confrontou com os olhos faiscantes de fúria e a testa molhada de suor. — Que diferença o DNA irá fazer?

Ignorei o olhar de Annie pedindo-me para recuar e dei um passo em direção a Boley. Ficamos a poucos centímetros de distância um do outro.

— Se não importasse, por que ele teria arrancado o feto? E quem quer que seja o pai, você vai querer interrogá-lo. Não vai?

Boley pareceu confuso, por mais que tentasse disfarçar.

— Se o pai não é Teitlebaum, nem Nick Babikian, é alguém. Só estou dizendo que é importante descobrir quem é esse homem.

Boley deu um passo para trás e desviou o olhar. Ele esfregou os lábios com as costas da mão. Parecia tentar se recompor.

— Não fazemos exames de DNA a torto e a direito. Custa muito caro. E não há nenhuma relação direta com a investigação. Recursos como esse devem ser usados em casos concretos.

— Este é um caso concreto! — eu me vi gritando. — Você não sabe se existe uma relação. E Richard Teitlebaum pode ser inocente. É mais fácil deixar que ele leve a culpa, não é? Assim sua promoção virá mais depressa.

— O quê? — Boley me encarou. — Como se atreve a... — Ele engoliu em seco. — Pessoas inocentes não tentam se matar. Não é normal.

— De onde tirou isso?

— Eu sei — ele disse, levando as mãos à cintura. — Investigo homicídios todos os dias. Faz parte de meu trabalho saber. E isso não é de sua conta.

Ele limpou o suor do rosto com a mão.

— Eu lhe pedi que viesse até aqui para prestar depoimento acerca de como encontrou Richard Teitlebaum. Você é uma mera testemunha. Nada mais.

— Al, talvez um desses cavalheiros possa tomar o depoimento do dr. Zak — Annie sugeriu.

Boley olhou ao redor, notando a platéia que havíamos atraído. Várias pessoas, policiais e funcionários, observavam. Boley acenou para um deles que se aproximou e me levou a um cubículo.                                  

Dei meu depoimento.

A caminho de casa, eu mal escutava o que Annie dizia.

— É como eu lhe falei. Al sempre opta pelo caminho mais fácil. Tão logo consegue juntar todas as provas, ele parte para o fim do jogo. Recusa-se a considerar qualquer outra hipótese. Se Teitlebaum morrer, melhor ainda. Boley nem precisará testemunhar.

— Tem outra coisa que está me intrigando — eu disse a ela. — O disco rígido que os policiais encontraram na escrivaninha. Richard remexeu naquelas gavetas quando fui conversar com ele depois do crime. Eu mesmo as vasculhei novamente quando o levaram para o hospital.

— Talvez você não tenha reparado na peça. Ela não é tão grande.

— Não vi nenhuma peça de computador esmagada — insisti.

Annie pensou por alguns instantes.

— Está dizendo que alguém plantou essa prova para que a polícia a encontrasse depois que Teitlebaum tentasse se matar?

Seria uma explicação plausível.  

 

A segunda-feira amanheceu chuvosa e bem mais fresca. Passei a maior parte do tempo na unidade. Quando voltei ao meu consultório, verifiquei as mensagens. Naresh Sharma havia telefonado.

— O dr. Teitlebaum recobrou a consciência. Achei que você gostaria de saber — ele informou e deixou o número de seu celular.

Senti um alívio profundo. Se Richard estava consciente, isso era um sinal positivo. Liguei para Naresh.

— Olá, Peter. Depois de conversarmos no hospital, pensei em pedir-lhe um conselho.

— Claro. Você disse que o dr. Teitlebaum está consciente?

— Ele acordou.

— Conseguiu se comunicar?

— Sim. Tive de contar-lhe sobre a tentativa de suicídio. Ele não se lembrava.

Era um sintoma normal. Após o coma, sempre havia algum tipo de amnésia retroativa, o paciente não se lembrava dos acontecimentos que precederam o momento em que se dera a perda de consciência. A recuperação da memória de Richard dependeria da quantidade de monóxido de carbono que ele aspirara e da duração do estado de coma. Quatro dias não eram um período de tempo significativo.

— Posso vê-lo? — perguntei.

— Eu esperava que você sugerisse isso.

— Eles fizeram uma tomografia do cérebro?

— Não faço idéia.

— Bem, seria bom saber. Se não fizeram, você pode solicitar uma, ou melhor ainda, uma ressonância magnética. Eu gostaria de ver o resultado.

Encontrei Naresh no final da tarde no saguão do hospital. Teitlebaum havia sido transferido para um quarto particular. Quando lá chegamos, ele ainda estava sob o efeito de sedativos. Puxei uma cadeira e sentei-me perto dele.

— Richard?

Ele abriu os olhos. Viu Naresh atrás da cadeira e depois olhou para mim.

— Peter? — Reconhecimento. Era um bom sinal. . — Olá! Fico feliz que tenha acordado.

— E, mas tudo me parece um pesadelo. — Richard ume-dèceu os lábios. — Ouvi dizer que você salvou minha vida.

Aquilo também era bom. Ele recebia novas informações e as retinha.

— Sabe onde está? — perguntei.  

Ele sorriu.

— Está me avaliando?                            

Assenti com um movimento de cabeça. Richard ergueu o tronco para se sentar e gemeu.

— Deus, estou todo dolorido! A cabeça... as costas. Parece que alguém me empurrou escada abaixo.

— Acima.                                                                              

— Como?                                                        

— Tive de puxá-lo pela escada para tirá-lo do porão.

— Obrigado. — Ele levou uma mão à nuca e olhou ao redor. — Na verdade, não sei onde estou. O sr. Sharma me disse que estou no Hospital Newton-Wellesley.

A simples declaração foi muito reveladora. Mostrou que ele não perdera a capacidade de raciocínio — não sábio onde estava, mas lembrava-se do que lhe fora dito. Recordava o nome do advogado. Essa reação indicava que suas faculdades mentais básicas pareciam preservadas.

— Lembra-se de Lisa Babikian? Richard ficou imóvel.

— Era minha paciente.

— Você a tratou por quanto tempo?

— Eu já lhe disse isso, Peter.

— Diga-me de novo. Ele respirou fundo.

— Comecei a tratá-la em outubro junto com o marido. E sozinha nos últimos quatro meses — acrescentou.

A memória remota parecia intacta.

— Qual é a última coisa que você lembra antes de acordar aqui?

Ele fechou os olhos e os abriu em seguida.                

— Lembro-me... de conversar com você no telefone.  

— Lembra-se da polícia chegando a sua casa?

— As imagens estão me vindo aos poucos. Eles estavam cavando no jardim.

Outro sinal excelente. As lembranças começavam a emergir.

— Sabe o que a polícia encontrou?

— Agora eu sei — Richard respondeu.

Pensei ter visto um brilho de indignação em seus olhos.

— Tem idéia de como tudo aquilo foi parar em seu jardim?

— Não faço a mínima idéia.

— Estava tendo um caso com Lisa Babikian?

— Pelo amor de Deus, não! — A expressão de ultraje logo se transformou em dor. — Droga... Disso eu me lembraria, Peter.

— Lisa tinha um amante. E acho que você sabe de quem se trata.

Teitlebaum arregalou os olhos.

— Você fala como a polícia. É isso que o detetive... Boley não para de me perguntar.

— O que disse a ele?

— Que não sei de nada. É verdade. Cá entre nós, Peter, se Lisa tivesse me contado por quem achava estar apaixonada, não sei se eu revelaria tal informação a Boley.

— Achava estar apaixonada?

— Lisa Babikian era vulnerável. Deixava-se levar por um mínimo de gentileza. Era fácil tirar vantagem dela. Ela se sentia muito infeliz.

Naresh tocou meu ombro. Ele segurava um envelope. Era a tomografia de Teitlebaum.

— Precisamos ir — Naresh disse. — Uma enfermeira virá colher sangue para o exame de DNA. Mandarei a amostra para um laboratório particular.

Muito bem pensado. Se o resultado fosse o que pensávamos, Richard poderia passar uma rasteira nos rumores e limpar seu nome.

— Eles fizeram sua tomografia cerebral — eu contei a Richard. — Posso dar uma olhada?

— Fique à vontade.

Depois que eu saí, Naresh chamou a enfermeira do laboratório. Fui até o fim do corredor, tirei o filme e segurei-o contra a luz.

O corte de forma oval era o crânio de Teitlebaum. A textura cinza dentro dele era o cérebro. Havia áreas mais claras perto do crânio. Elas indicavam contusões, feridas que haviam sangrado e uma saliência onde a cabeça fora atingida.

Naresh juntou-se a mim.

— Ele sofreu um dano cerebral — expliquei, indicando os pontos escuros da imagem. — Nós os chamamos de lacunae, um termo em latim que significa lacunas. O monóxido de carbono atua como uma traça, comendo a estrutura límbica do cérebro... as áreas subcorticais que equilibram a emoção e a memória. Já vi um quadro pior que esse, e a paciente recuperou quase totalmente a memória.

Imaginei quanto tempo Richard levaria para lembrar-se de como formulara a idéia de se matar. Quanto tempo precisaria para recordar que conectara a mangueira ao escapa-mento, ligara o carro e trancara-se na sauna? Ele se lembraria de ter sentado no banco para esperar o fim?

No dia seguinte, cheguei cedo ao Pearce para passar visita. O correio da manhã entregara um pacote endereçado a mim. O embrulho parecia comum — assemelhava-se a uma caixa de camisa, envolta em papel pardo e fita adesiva. Era pesado e havia uma espécie de enchimento para proteger o conteúdo.

Coloquei-o sobre a mesa. Meu nome de destinatário estava datilografado, bem como o do remetente: S. ZAK, Pittsburgh. Meu irmão. Eu falara com ele ao telefone semanas atrás e ele não mencionara que me enviaria uma remessa pelo correio.

Lembrei-me do que a polícia me aconselhara, caso recebesse outro pacote. Não abra. Ligue para nós imediatamente.

Enquanto eu oscilava entre ignorar o aviso e abrir o pacote ou ligar para a polícia, Kwan apareceu.

— Eu não sabia que era seu aniversário. Por isso está envelhecendo mais rápido que eu.

— Sim — retruquei. Foi preciso um esforço enorme para manter o tom casual. — Só mais alguns aniversários e teremos a mesma idade.

Kwan olhou o pacote com certo interesse, obviamente alheio a qualquer perigo.

— Não vai abrir?

Gloria chegou, usando camisa branca e calça caqui.

— Ele ganhou um presente e não vai abri-lo — Kwan queixou-se.

— É uma lembrança de meu irmão...

— Vamos, Peter! — Kwan exclamou. — Não seja egoísta.

— Kwan, você está entediado — Gloria comentou. Era verdade. Depois que a sra. Smetz receber alta, os pacientes que ficaram não nos traziam grandes emoções.

— Vamos ver o que você ganhou.

Por um momento, fiquei paralisado. O bom senso me dizia que estava sendo ridículo. Era um presente de meu irmão. Um bom senso ainda maior aconselhava que eu não abrisse um pacote inesperado. Principalmente diante de pessoas inocentes.

— Você não me parece bem — Gloria disse.

— Acabei de lembrar que esqueci uma coisa no carro — improvisei. Se eu pretendia bancar o tolo, eu o faria onde ninguém mais corresse risco.

Antes que eles pudessem replicar, peguei o pacote e me retirei. Saí pela porta dos fundos, atravessei o estacionamento e adentrei o jardim atrás do prédio. Coloquei a caixa sobre uma pedra.

Parecia realmente inofensivo. Era compacto, não havia peças soltas. O esquadrão de desarmamento de bombas não inseria objetos suspeitos na água? Talvez valesse a pena tomar a precaução.

Corri de volta à unidade e subi a escadaria. Em minha sala, peguei uma tesoura e guardei-a no bolso. Em seguida esvaziei o balde de papéis e levei-o ao banheiro. Mas ele era grande demais para caber sob a torneira da pia. Então fui até o corredor, onde havia uma torneira, enchi o balde pela metade e desci a escadaria apressado, derramando pingos pelos degraus. Felizmente não encontrei ninguém. Eu não saberia como explicar meu comportamento.

Uma vez do lado de fora, praticamente corri até o local onde deixara o pacote. Quando me aproximei da pedra, depositei o balde no chão e mergulhei o pacote na água. Pequenas bolhas emergiram enquanto o líquido penetrava.

Com a tesoura, cortei a fita adesiva e em seguida tirei o papel. O objeto estava envolto por plástico bolha. Desembrulhei-o.

Era um livro. Eu o tirei da água. Era antigo, encadernado de veludo verde. Letras góticas estavam impressas sobre o tecido: Cabeças e Rostos. Logo abaixo, o subtítulo: Como estudá-los.

Abri o volume. Tratava-se de uma relíquia do século dezenove, um livro sobre frenologia, a pseudociência de como identificar traços de personalidade com base no formato do crânio e do rosto e nas feições de um indivíduo.

As extremidades das folhas estavam abauladas por causa da umidade. Na página de rosto, havia um bilhete: "Peter, achei que gostaria dessa relíquia. Encontrei num sebo. Steve".

Eu me senti mortificado de vergonha. Claro. Steve era um freqüentador inveterado de sebos, brechós e leilões de antiguidades. Droga.

Esvaziei o balde e voltei para a unidade. Entrei, evitando cruzar com Gloria e Kwan. Em minha sala, espalhei folhas de jornal no chão e lá coloquei o livro para secar.

Então desci para passar a visita aos pacientes. A seguir tive uma reunião. E por fim realizei minha boa ação do mês acompanhando um grupo de médicos visitantes num tour pelo hospital.

Estava em meu consultório, saboreando uma salada grega e lendo um periódico médico, quando Kelly, do Globe, ligou novamente. Eu me esquivei quando ela perguntou se eu recebera a mensagem anterior a respeito do artigo que estava escrevendo. Kelly voltou a explicar seu objetivo. Ela parecia meiga e muito jovem.

— O tema da reportagem é justamente a fronteira entre estratégias saudáveis de autodefesa emocional e comportamentos compulsivos. Tenho certeza de que o senhor pode contribuir com sua experiência.

— Lamento, estou sem tempo no momento — expliquei. Devido à insistência da jornalista, acabei anotando seu nome e número de telefone para o caso de eu mudar de idéia. Mal coloquei o fone no gancho, ele tocou de novo. Era Naresh.

— Você tinha razão, Peter. — Escrevi NARESH em meu bloco de notas. — O resultado do exame de DNA chegou. — Escrevi DNA. — Richard Teitlebaum não é o pai.

Fiz um círculo ao redor da sigla e tracei uma linha diagonal sobre ela. Depois coloquei dois pontos de exclamação. Eu não estava surpreso, mas era um alívio ter a confirmação oficial.

Eu sabia que Nick se recusara veementemente a submeter-se ao exame de DNA. Ele sabia que não era o pai e, segundo ele, se as autoridades obtivessem uma amostra do DNA de um cidadão, quem sabia para que fins poderiam usá-lo. Rastrear os movimentos, clonagem experimental... Achei que ele andava assistindo demais ao Arquivo X.

Fui ao banheiro do corredor para lavar as mãos antes de retornar ao trabalho. Precisava parar de pensar no caso Babikian e começar o artigo que eu prometera editar.

Ao voltar, fiquei surpreso por encontrar Nick Babikian à minha espera. Ele me lembrou mais do que nunca do personagem do jogo. Estava sentado numa cadeira, fitando-me sob a aba do boné de beisebol.

Eu não tinha ficado empolgado quando Chip me pedira para terminar a avaliação de Nick.

— Embora esteja em liberdade — Chip dissera —, ele ainda é suspeito. Se for preso de novo, quero estar preparado.

Eu estava adiando esse compromisso. A inesperada visão dele em minha sala foi um forte lembrete de quão incomodado ele me fazia sentir.

— Nós temos hora marcada? — perguntei, tentando manter o tom de voz neutro.

— O que você disse a ela? — Nick perguntou.

— Ela?

— Minha mãe. Fui ao Rancho Brookfield para buscá-la.

— Fazenda Westbrook.

— Que seja.

As palavras soavam indiferentes, mas a linguagem corporal transmitia tensão.

— Por que acha que eu disse alguma coisa a ela?

— Ela não quer voltar comigo para casa. Por que aquilo era problema meu?

— Garanto-lhe que eu não disse nada. Talvez sua mãe goste de viver em Westbrook. As transições são muito difíceis para pessoas como ela.

— Pessoas como ela? O que quer dizer?

— Para pessoas idosas que sofrem do mal de Alzheimer, as mudanças são assustadoras.

— Mas ir para lá é uma mudança. Ir para casa, não.

— Ela não sabe disso. Ela vive o "agora". A mudança é qualquer coisa que seja diferente do agora. Ela se adaptou à equipe, à rotina.

— Como você sabe?

Ele estreitou os olhos. Será que Nick achava que eu estava espionando sua mãe?                        

— É apenas uma suposição. Você sabe que trabalho com muitos pacientes de Alzheimer. — A hipersensibilidade de Nick estava me dando nos nervos. — Se ela está oferecendo resistência...

— Ela tem de voltar para casa! Agora que saí da prisão posso tomar conta dela. Sempre cuidei dela. Você a colocou lá. Agora tem de me ajudar a tirá-la de lá.

— Não a coloquei lá. Você a fez ir para lá. Na verdade, foi você quem a largou numa instituição que não estava equipada para cuidar dela.

Lamentei o que disse no mesmo instante. Aquilo só incentivaria o confronto. E, de certa forma, eu admirava a dedicação de Nick para com a mãe. Poucos filhos fariam o mesmo, na mesma situação.

— O que está dizendo? — Nick rebateu.

— Só estou sugerindo que pense no que é melhor para sua mãe, não no que é melhor para você.

— Eu sei o que é melhor para minha mãe. Eu esperava que você, dentre tantas pessoas, pudesse entender isso.

— Eu nem sequer o conheço — retruquei, exasperado e querendo-o fora de minha sala.

— Você também mora com sua mãe.

— Ela não mora comigo. Ela... — Eu me detive em tempo. Não podia acreditar que estava dando explicações àquele homem. E como ele sabia com quem eu morava? Respirei fundo e tentei me acalmar. — Sua melhor opção é recorrer à equipe de Westbrook. Tenho certeza de que eles são os mais indicados para ajudá-lo a convencer sua mãe a voltar para casa.

— A enfermeira de lá me sugeriu que eu pedisse seu conselho — Nick informou e desviou o olhar. Pedir ajuda era um esforço gigantesco.

— Você podia ter dito isso logo no início.    

— Assim que ela chegar em casa, ficará bem. Já contratei alguém para me ajudar. — Ele me encarou. — Você não gosta muito de mim. As pessoas em geral não gostam de mim.

Nick havia apertado o botão da culpa. Estava funcionando.

— Não faz parte de meu trabalho gostar ou não gostar de você.

— Não lhe tomará muito tempo. E só encontrar-se comigo lá e me ajudar a resolver isso.

Concordei, relutante.

— E mais uma coisa — acrescentei. — Ainda não completamos a bateria de testes, e Chip acha que devemos finalizar, mesmo você estando em liberdade.

— Não sei por que ele... — Nick resmungou. — E perda de tempo, se quer saber. Pode esperar até eu instalar minha mãe em casa? Não conseguirei me concentrar até resolver isso.

Não havia problema, eu disse a ele.

Nick levantou-se e, lentamente, esquadrinhou meu consultório. Observou os livros na estante, meu pôster de Vinhos, a mesa onde deixo revistas e desenhos de pacientes. Naquele instante havia uma mancha de umidade no carpete, ao redor do balde de lixo, onde eu havia socado o papel pardo molhado e o plástico bolha.

Nick reparou no livro que meu irmão me havia mandado, ainda sobre os jornais no chão. Estava começando a secar. Que pena. O volume estava muito bem conservado. Aquele livro, com suas páginas deformadas pela umidade, prometia ser um poderoso lembrete do que acontecia quando eu me deixava dominar pela paranóia.

Então o olhar de Nick fixou-se no bloco de notas sobre minha mesa. Mesmo a certa distância e de cabeça para baixo, ele podia ler o que eu escrevera.

— Resultado do teste de DNA?— ele perguntou, deduzindo tudo.                                                          

— Não ficou sabendo?                                            

— Não. Eles o pegaram?

—   Quem?                                                                                            

— Teitlebaum.                                                      

— O dr. Teitlebaum não é o pai.

— Foi exatamente o que eu... — Nick começara a dizer; mas calou-se ao assimilar minha informação.      

— Não — murmurou e caiu sentado na cadeira, como se alguém lhe tivesse passado uma rasteira. Ele estreitou os olhos. — Quem fez o exame? Alguém contratado por Teitlebaum?

Abri minha boca e fechei-a em seguida. Nada do que eu dissesse convenceria Nick de que o laboratório era confiável.

— Um dia, tenho certeza de que a polícia conseguirá explicar o mistério do disco rígido — Nick prosseguiu. — Descobrirão como meu disco foi parar na escrivaninha do dr. Teitlebaum.

Aquilo era típico de Nick. A imaginação dele viajava, ele fazia um estardalhaço em torno de uma possível falsificação de exames, da suspeita de eu estar fazendo a cabeça da mãe dele e menosprezava uma questão que também me intrigava. O disco rígido. Ao menos, o exame de DNA era algo de que eu tinha certeza.

— Por que eles falsificariam o resultado? — perguntei, embora soubesse ser inútil.

— Ele é médico. Conhece pessoas do ramo.

— Quando um médico é acusado de assassinato, ele é igual a todos os outros cidadãos.

— Então, quem... — Nick estreitou os olhos. Imaginei-o catalogando os suspeitos.

— Quando quer ir buscar sua mãe? — perguntei.

— Telefono para você depois de falar com o pessoal da instituição. — Nick levantou-se. — Talvez amanhã?

— Depois das cinco. Nick me encarou.

— Não é paranóia, se existir mesmo alguém por aí perseguindo você.

Ele saiu sem se despedir ou agradecer. Eu o observei percorrer o corredor, como se estivesse envolvido num debate consigo mesmo. Em geral, eu conseguia ouvir os passos das pessoas depois que elas faziam a curva do corredor. Mas não escutei os passos de Nick. Somente o clingue quando a porta do elevador se abriu e logo em seguida se fechou.

Tranquei a porta da sala. Não queria que pacientes ou colegas me pegassem vasculhando o consultório. Eu até bati no forro no teto a fim de me certificar de que nenhuma câmara havia sido instalada.

Sentei-me em minha cadeira, perturbado. Para todo terapeuta havia pelo menos um tipo de paciente que ele ou ela não deveria tratar. Para mim, o tipo era Nick Babikian. Talvez eu me sentisse menos perseguido se as entregas especiais não existissem, ou se Annie não recebesse trotes de madrugada, ou se minha casa não tivesse sido invadida. Mas havia um fator de realidade que tornava a paranóia de Nick virulenta. Poderia ser definida pelo termo técnico "identificação projetiva", mas o conceito não tornava a sensação menos contagiosa.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Nick me deixou uma mensagem. Surgira um imprevisto. Ele estaria ocupado nos próximos dois dias. Perguntava se eu poderia encontrá-lo no sábado, à uma da tarde, na Fazenda Westbrook. Retornei a ligação confirmando.

No dia seguinte liguei para Dottie Grebow em Westbrook para saber sua opinião.

— E uma pena — ela disse. — Ele gosta muito da mãe, mas a assusta sobremaneira. Talvez seja aquele boné. Ou a expressão sisuda. Tudo que sei é que ele assinou a dispensa, foi buscá-la no quarto e a pobre senhora começou a gritar. Ele ficou furioso conosco. Disse que tínhamos feito algo a ela. Tentei explicar que nossos residentes não costumam agir daquela maneira. Ele tinha de ter paciência.

— Sugeriu que ele me consultasse?

— Eu não. Talvez Carole tenha sugerido. Nós poderíamos ter ajudado a sra. Babikian, se ele tivesse nos advertido. Um pouco de precaução nunca fez mal a ninguém.

Lembrei-me da mãe de Nick. Como ela gritara quando me vira pela primeira vez, e como falara de Nick, que chegaria em casa para tomar leite e comer biscoitos. Com pacientes que perdiam o referencial mental, os antigos hábitos eram um bom ponto de partida.

— Estaremos em Westbrook no sábado, à uma da tarde. Você poderia deixar à mão um pouco de leite e biscoitos? — perguntei a Dottie.

— Sempre temos leite e biscoitos.

 

— Chegou outra encomenda de seu irmão — Gloria me avisou, quando cheguei no trabalho dois dias depois.

Talvez Steve houvesse enviado os dois pacotes ao mesmo tempo e aquele demorara mais para chegar. Dessa vez, era uma caixa quadrada. Estava muito bem embrulhada, como a anterior, com o nome do destinatário e o do remetente datilografados. E parecia leve demais para ser um livro.

Eu a levava para minha sala quando Kwan apareceu.

— Mais um presente? Desde quando ficou tão famoso?

— Ele espiou o remetente. — Outra surpresa de seu irmão? Vamos ver.

Por que não?, pensei comigo. Deixei de lado as outras correspondências e comecei a abrir o pacote. Rasguei o papel pardo. Sob ele havia uma caixa de papelão. Estava fechada com fita adesiva. Gloria me emprestou uma tesoura e cortei a fita.

Ergui as abas da caixa e vi uma perna de boneca e um braço. Que estranho... Tirei as duas peças de plástico e, logo embaixo, encontrei o corpo da boneca cortado ao meio. Dentro da cavidade do peito da boneca estava a cabeça sem os olhos.

— Seu irmão tem um senso de humor estranho — Gloria comentou.

Peguei o papel pardo. Assemelhava-se ao embrulho do pacote que eu recebera antes, mas o carimbo não era de Pittsburgh, era de Cambridge. E datava de outubro. Quando olhei com mais atenção, vi que a tira de postagem do correio parecia ter sido cortada e colada.

— Duvido que seja dele — eu disse.

Gloria pegou a cabeça da boneca. O rosto sem olhos tinha uma aparência sinistra.

— Certa vez, foi uma linda boneca. Eu tive uma idêntica quando menina.

De repente, senti como se o chão tivesse sumido sob meus pés. Lembrei-me da boneca de Annie sentada na cadeira da cozinha, na casa dela.

— Tudo bem? — Gloria perguntou, enquanto guardava a cabeça da boneca na caixa. — Quer que eu jogue isso fora?

Não respondi que estava bem porque não estava. Dirigi-me à minha sala e telefonei para Annie. Contei-lhe o que acontecera. Ela confirmou o que eu suspeitava — a boneca havia desaparecido. Annie disse que me encontraria imediatamente.

Quando ela chegou, pedi-lhe que se sentasse. Então entreguei-lhe a caixa. Annie olhou o conteúdo e lágrimas começaram a rolar por suas faces.

— Filho da mãe... — murmurou, emocionada.

Eu a abracei com força. Permanecemos nessa posição durante algum tempo. Ela pegou um lenço de papel e assoou o nariz.

— Meu pai me deu essa boneca no meu aniversário de cinco anos. Eu a batizei de Jenny. — Annie riu, infeliz. — Muito original. Minha avó fez roupinhas para ela... a que eu mais gostava era um vestido cor-de-rosa enfeitado de fitas. Jenny ficava numa cadeira de balanço em meu quarto. Eu tinha certeza de que, quando saía para ir à escola, ela pulava da cadeira e me espiava partir pela janela. — Annie assoou o nariz novamente. — É tolice, eu sei. E nem sequer gosto de bonecas!

— Quando você acha que...

— Eu não acho, eu sei. Foi há dois dias. Quando cheguei em casa, notei que o trinco da porta estava aberto. Como saí atrasada naquela manhã, imaginei que tivesse esquecido. Nada parecia fora do lugar. Sabe quando há alguma coisa errada, mas você não consegue perceber o que é? Somente agora de manhã, quando você ligou, foi que me dei conta do desaparecimento de Jenny.

— Deve ter sido aquele cretino do Ralston Bridges, zombando de nós da cadeia. Não me admiraria se os panfletos nos bares fossem obra dele também.

— Alguém do lado de fora o está ajudando. Alguém que ele conhece — Annie refletiu. — Um profissional.

— Você devia instalar um sistema de alarme — sugeri.

— Não mesmo. Detesto viver desse jeito, como se estivesse numa zona de guerra. — Agora ela falava como Kate. — É enervante.

A irritação era melhor do que o medo. Era preferível fortalecer-se do que ficar impotente.

— Seja lá quem for que fez isso — Annie disse, categórica —, vamos pegá-lo. Eu vou pegá-lo. Só preciso descobrir como.

Liguei para a polícia e deixei o pacote na delegacia naquela noite. Estava escuro quando estacionei o carro diante de casa. Quando me aproximei do pórtico, senti que passava por um sensor. Clique. A câmara minúscula começou a me filmar. Houve outro clique quando inseri a chave na porta. Apesar de todo o dinheiro gasto, de todo o trabalho de instalação, aquilo só me fazia sentir ainda mais vulnerável.

 

No sábado encontrei Nick no saguão de entrada da Fazenda Westbrook. O comitê de boas-vindas, composto pelas senhoras em seus vestidos floridos, observava-nos do sofá e das cadeiras.

— Visitas! — uma delas disse.

— Meu Louie era assim alto — comentou outra.

— Os jovens de hoje — desdenhou uma terceira — não sabem que é falta de educação usar chapéu em ambientes fechados?

— Será que ele é judeu? — uma delas sugeriu com certa esperança.

Nick tirou o boné de beisebol e guardou-o no bolso. Fomos ao segundo andar. Nick entrou no corredor, marchando em direção ao quarto da mãe.

— Espere um minuto — intercedi. — Você pediu minha ajuda. Então, deixe-me ajudar.

Ele parecia prestes a protestar.

— Vou explicar o que pretendo fazer — eu disse. — Quando estive aqui, sua mãe pensou que eu fosse um menino, e estava esperando você voltar para casa.

— Ela age assim o tempo todo — Nick argumentou.

— É típico das pessoas que sofrem de Alzheimer. Em geral, elas não têm acesso à memória recente, embora as lembranças do passado distante permaneçam nítidas. Como resultado, são suscetíveis a estímulos ambientais no presente que desencadeiem recordações antigas. Eu percebi que, para sua mãe, leite e biscoitos provocam a ansiedade de esperá-lo voltar da escola e, ao mesmo tempo, o alívio de vê-lo chegar são e salvo. Posso usar leite e biscoitos como um estímulo para que sua mãe se torne receptiva à idéia de acompanhá-lo. De certa forma, estarei mentindo para ela.

Mas utilizamos esse tipo de estratégia com pacientes de Alzheimer e obtemos ótimos resultados. E uma mentira inofensiva e útil. Você só precisa voltar a ser o pequeno Nicky e seguir minha deixa. Certo?

— Certo — ele concordou, embora não parecesse convencido.

Encontrei Dottie, que me entregou um copo de leite e um prato de biscoitos que havia deixado reservados. Pedi-lhe que mantivesse os funcionários uniformizados fora do corredor por aproximadamente meia hora. Ela escoltou Nick até a sala de recreação.

Tal qual da última vez, desabotoei o colarinho e dobrei as mangas para parecer o mais casual possível. Munido de leite e biscoitos, dirigi-me ao quarto da sra. Babikian.

Ela estava diante da janela. Usava um vestido simples e folgado e segurava a bolsa contra o peito. Quando me aproximei, escutei:

— Minha mãe era uma menininha quando os turcos invadiram a casa dela. O olhar dos soldados era vazio.

Tratava-se da mesma história que ela recitara quando a vi pela primeira vez, contada com as mesmas palavras. Era mais uma peça do passado que a memória da sra. Babikian invocava diante de leite e biscoitos.

Pigarreei baixinho para não assustá-la. Ela se virou. Os olhos se arregalaram de terror, e pude ouvir o prelúdio de um grito formar-se em seu diafragma. Mostrei-lhe o leite e os biscoitos.

— Onde está Nicky? — perguntei. O medo desapareceu.

— Nicky? — Ela me olhou, sorridente. — Estou esperando por ele a qualquer momento. — O rosto da sra. Babikian se iluminou. — Leite e biscoitos! Nicky adora leite e biscoitos.

— Ele está chegando?

— Não sei. Deveria estar. Ela se voltou para a janela, e eu me aproximei.

— E ele que está ali? — indaguei. Um casal atravessava o estacionamento.

— Veja! — eu disse. — Ele está chegando. Acabou de entrar no prédio.

— Nicky, Nicky! — a sra. Babikian repetia, vendo uma imagem que não existia.

— Ele vai subir — avisei. — Vamos levar leite com biscoitos para ele?

Entreguei o prato a sra. Babikian. Em seguida, segurei-a pelo braço.

— Ele está nos esperando — falei, conduzindo-a até o corredor.

Após aquele início, foi fácil guiá-la em direção à sala com a promessa de que Nicky estaria lá. Ele estava sentado num canto, atrás das folhagens de uma planta.

— Mãe! — Nick levantou-se.

— Nicky! Você chegou! — Ela lhe mostrou os biscoitos, sorrindo. — Como foi na escola?

Nick sorriu e assentiu.

— Bem, mãe. Foi tudo bem.

— E aqueles meninos? Eles mexeram com você de novo?

— Não, mãe. Ela aproximou o prato de biscoitos.

— Coma! Você sempre tem muita fome quando chega da escola. — Nick pegou um biscoito e comeu.

Voltei ao quarto da sra. Babikian e peguei a mala que a equipe havia arrumado em preparação para nossa visita. Quando voltei à sala, era a sra. Babikian quem tomava o leite. Nick pegou um guardanapo e, gentilmente, limpou o queixo da mãe.    

— Vamos para casa, mãe.

A sra. Babikian caminhou alegremente pelo estacionamento. Entrou no carro de Nick sem um murmúrio sequer.

— Está tudo bem agora? — perguntei a Nick.

— Obrigado — ele disse. Gratidão. Aquilo era inédito.

Ao chegar em casa, encontrei um bilhete na porta. Era a caligrafia de minha mãe. "Você tem uma visita. Ela está comigo".

Talvez Annie tivesse descoberto que algo mais estava faltando em sua casa e não quisesse ficar sozinha. Ou alguma outra coisa podia ter ocorrido. Bati à porta de minha mãe. Quando ela atendeu, fui logo entrando na sala. Não havia ninguém.

— Onde está Annie?

— Annie? — ela repetiu. — O que aconteceu a Annie? Está doente? Sofreu algum acidente?— Minha mãe me bombardeava de perguntas, sem conter a ansiedade.

Percebi meu erro e tentei remediar.

— Annie está bem. Saudável e inteira. Não aconteceu nada. Só pensei que ela talvez estivesse aqui.

— Boa tentativa — minha mãe disse. — Falaremos sobre isso mais tarde. A sra. Gratzenberg está na cozinha.

— A sra. Gratzenberg? Por quê? — Era a última pessoa que eu esperava ver.

— Ela telefonou para seu trabalho, mas não gosta de falar com máquinas. Eu a entendo muito bem. E ela não sabia como mandar um recado para você pelo bip. Como eu, fica atordoada com toda essa tecnologia moderna.

Enquanto escutava as reclamações, perguntei-me como a boa senhora descobrira meu endereço. Mais uma vez, minha mãe se antecipou.

— A sra. Gratzenberg encontrou o número de meu telefone na lista. E eu atendi a ligação — ela falou em tom acusador.

Já havíamos tido esse problema antes, alguém saía à minha procura e encontrava minha mãe. Cheguei a tentar dissuadi-la a retirar o número da lista telefônica, mas ela não queria que parentes distantes ou amigos perdessem o contato.

— Você sabe que meu número não está na lista porque não quero que meu trabalho interfira em minha privacidade.

— Eu sei. E também sei como eu ficaria, caso você desaparecesse.

— Caso eu desaparecesse? — De súbito, compreendi. — Jeff Gratzenberg desapareceu?

Minha mãe tocou a ponta do nariz com o dedo. Eu a segui até a cozinha.

A sra. Gratzenberg estava sentada numa cadeira. Havia uma xícara de chá diante dela. Levantou-se ao me ver. Lembrei-me da figura apática que eu avistara quando Jeff me mostrara o jogo. Ela devia ser da altura de minha mãe, mas parecia muito menor. 'Segurava um cartão com a mão trêmula. Eu o peguei. Era meu cartão.

— O senhor conhece meu Jeffrey? — ela perguntou.

— Sim. Estive em sua casa, lembra-se? Jeff me mostrou um software...

— Sim, agora me lembro. Eu o vi por um instante. Jeffrey não voltou para casa. — Ela ergueu as mãos, desesperada.

— Talvez ele esteja na casa de algum amigo.

A sra. Gratzenberg meneou a cabeça.

— Não. Ele me avisaria se fosse passar a noite fora.

— Quando foi a última vez que o viu?

— Anteontem, no meio da tarde. — Ela me encarou. — O senhor ofereceu-lhe um trabalho?

— Não. Por que pergunta?

— Ele estava animado. Tinha recebido uma oferta de emprego. Saiu, dizendo que iria encontrar as pessoas. Fiz o jantar, mas Jeffrey não voltou para casa. Nem naquela noite, nem no dia seguinte. Não é costume dele fazer isso, ele sempre telefona para me avisar.

Agora eu entendia. Ao perceber que o filho estava demorando demais, a sra. Gratzenberg vasculhara as cosias de Jeff no porão, na esperança de descobrir onde ele poderia ter ido. Encontrou meu cartão e veio atrás de mim, imaginando que eu seria o novo patrão de Jeff.

— Ligou para a polícia?

— Sim. Ontem, e hoje novamente. Disseram que meu filho não está desaparecido há tempo suficiente. E um rapaz jovem, não deve ser nada. Mas eu sei que algo aconteceu.

— Pode ajudá-la, Peter? — minha mãe perguntou. — Você trabalha com a polícia. Não pode pedir-lhes que façam alguma coisa?

Peguei o telefone e liguei para o sargento-detetive Joseph MacRae. Os anjos deviam estar do nosso lado, porque ele estava na delegacia. Contei-lhe a história e perguntei se poderia enviar alguém para registrar a ocorrência.

MacRae apontou o óbvio: um rapaz de 25 anos que passou um dia e uma noite fora de casa não era considerado uma pessoa desaparecida. Eu lhe disse que sabia disso e perguntei-lhe se, mesmo assim, poderia mandar o oficial. Ele prometeu tentar. Dez minutos depois, MacRae ligou. Um responsável do departamento de pessoas desaparecidas estaria a caminho da casa da sra. Gratzenberg em breve.

Agradeci, embora odiasse ter de agradecer a MacRae.

— Não foi nada, Peter. Não gaste energia por causa disso — ele retrucou.

Odiei ainda mais.

— Você pode levar Dora para casa? — minha mãe perguntou, depois que transmiti as informações de MacRae.

— E ajudá-la a conversar com a polícia?

Não eram perguntas. Eram, na verdade, ordens.

Uma viatura da polícia já nos esperava quando chegamos. A sra. Gratzenberg olhou a casa dos vizinhos e as do outro lado da rua. Eu podia ler seus pensamentos. O que iriam dizer? Que Jeffrey teve mais problemas com a polícia?

Os policiais se apresentaram, e a sra. Gratzenberg os convidou a entrar. Ela percorreu a sala, ajeitando os tapetinhos de renda que enfeitavam o encosto e os braços do sofá e da poltrona.

Os oficiais se sentaram. Um deles tirou o bloco do bolso. Nenhum dos dois parecia ser nem um dia mais velho que Jeff Gratzenberg.

— A senhora diz que seu filho desapareceu? — o que segurava o bloco perguntou.

Devagar, a sra. Gratzenberg explicou que dois dias atrás ele saíra para ver um emprego. Jeffrey não retornara. Ela descreveu como ele estava vestido — calça jeans e camiseta preta com a estampa de um slogan.

— Ele se vestiu assim para uma entrevista de emprego?

— um dos policiais perguntou.

A sra. Gratzenberg deu de ombros.

— Ele é programador de computadores — eu expliquei.

— Esperam vê-lo vestido assim. Se ele aparecesse de terno e gravata, perderia a credibilidade.

Perguntaram sobre os amigos de Jeff. Namoradas. A sra. Gratzenberg não sabia quase nada.

— A senhora deveria contar-lhes o que aconteceu meses atrás — sugeri. — Quando Jeff foi preso.

— O senhor sabe? — ela me perguntou.

Assenti. Eu gostaria que tal fato não importasse, mas sabia que importava.

A sra. Gratzenberg pareceu cansada.

— Conte a eles, por favor.

A sra. Gratzenberg encostou-se no sofá e fechou os olhos. Seus lábios tremeram quando comecei a relatar aos policiais que Jeff Gratzenberg fora preso por invadir a empresa do patrão e fazer uma ameaça de bomba. Contei-lhes que o patrão era o suspeito do assassinato de Lisa Babikian. Tal fato chamou-lhes a atenção.

Os policiais pediram para ver o quarto de Jeff. A sra. Gratzenberg abriu a porta do porão, e o cheiro de mofo espalhou-se no ar. Ela acendeu a luz, e os oficiais a seguiram pela escada.

O abajur continuava aceso num canto do quarto, e a geladeira ligada. A sra. Gratzenberg puxou uma corda e a luz fluorescente do teto acendeu.

Um dos policiais começou a trabalhar nos painéis do cômodo, tal qual os investigadores haviam feito na casa de Babikian após o assassinato.

O computador de Gratzenberg continuava no mesmo lugar. O monitor estava escuro, mas havia um desenho vermelho, azul e preto no centro. Pequenas estrelas pulavam das imagens que mudavam a cada segundo. As imagens — o interior de uma nave, uma explosão no espaço, e assim por diante — haviam sido extraídas de histórias em quadrinhos.

Movi o mouse. Havia um e-mail na tela.

— Vejam isso — chamei os oficiais.

Eles se aproximaram. A mensagem continha a descrição de um trabalho. Fora enviada por FROD0177@HOTMAIL.COM

Enquanto os policiais verificavam o computador de Jeff, vaguei pelo quarto. Numa estante de plástico, livros de ficção científica estavam muito bem arrumados, junto com escritos de William Gibson e Neil Stevenson. Ele também tinha o que parecia ser a coleção completa das obras de C. J. Cherryh. Seu gosto em literatura não era tão ruim.

Aproximei-me de um canto do quarto, onde dois colchões sobrepostos eram usados como cama. Uma camiseta, uma calça e uma bermuda estavam jogadas sobre os lençóis. Um despertador e um pente jaziam sobre a mesa de cabeceira. Do outro lado da cama, pregado à parede de cimento, havia um painel de cortiça. Cartões-postais e fotografias estavam fixados por tachinhas. Acendi o abajur para poder enxergar melhor.

Havia uma foto de jornal no centro do painel. Era de Lisa Babikian. E, sobre ela, havia uma flor seca. Seria uma homenagem em memória de uma amiga? Ou de um relacionamento mais íntimo?

 

Naquela noite, Annie e eu fomos ao cinema. Lembrei-me de por que sempre evitava esse tipo programa aos sábados — filas quilométricas e pré-adolescentes fazendo guerra de pipocas. Annie queria assistir a um novo filme sobre artes marciais chinesas. Quando, enfim, chegamos à bilheteria, os ingressos estavam esgotados. Decidimos, então, descer a rua e saborear uma deliciosa comida japonesa.

Durante a refeição, contei-lhe o que acontecera com Gratzenberg. Annie molhou um pedaço de sashimi no molho shoyu e colocou-o na boca.

— Acha que Jeff Gratzenberg era o amante de Lisa? — perguntou, depois de mastigar.

— Não sei em que pensar. Ele gostava dela. Nick ficava enciumado cada vez que os dois conversavam. Seria mais que uma amizade? Talvez.

— Se Gratzenberg a matou — Annie refletiu —, não acha que ele teria enterrado o feto no jardim de Nick? Para incriminar o patrão, não Teitlebaum.

Muito bem pensado. Seria uma maneira de Jeff se vingar da cilada que Nick lhe armara.

— Mas isso nos deixa uma pergunta: onde está Gratzenberg? — eu disse.

— Provavelmente com alguma garota. Ou sofreu um acidente de carro. Ou talvez esteja trabalhando setenta e duas horas sem parar. Ouvi dizer que caras como ele conseguem varar o dia e a noite à base de pizza e coca-cola.

Eu esperava que fosse esse o caso. Eu mal o conhecia, mas gostava de Jeff Gratzenberg. Ele merecia uma trégua. Desejei-lhe sorte ao escolher o novo patrão.

Segurei a mão de Annie. Provei seus dedos. Tinham gosto de sal e shoyu. Ela sorriu e me ofereceu um cubo de sashimi. Peguei-o com a boca e ainda ganhei um beijo.

Foi nesse momento que percebi o cansaço de Annie. Havia olheiras sob seus olhos.

— Está tendo insônia? — perguntei.

— Mandei instalar um trinco novo na porta, e ainda assim não me sinto segura. E preciso tranqüilidade para dormir bem.

— Você devia ter telefonado para mim. Eu teria ido...

— Peter, moro sozinha desde que saí do colégio. Sou adulta. Não quero sentir que preciso de alguém para cuidar de mim. Tenho de resolver o problema descobrindo quem está por trás disso. A solução não é mudar o estilo de vida.

— Tem de ser Bridges — afirmei. — Ele se gabou para Nick, dizendo que sabia das "entregas especiais" — argumentei, fazendo o sinal das aspas. — Mas o homem está preso...

— Ele não poderia arquitetar tudo isso sem um contato telefônico com um cúmplice. Ou talvez esteja enviando mensagens pelo computador da biblioteca da prisão. Se conseguirmos suspender o privilégio dele de usar computador e telefone, ele ficará de mãos atadas.

— Gostei da idéia. Mas, tirando o que ele disse a Nick, não temos nenhuma prova de que ele esteja por trás disso tudo.

— Ele poderia pagar um desconhecido para distribuir aqueles panfletos. Mas invadir, roubar e mandar aqueles pacotes... Não sei, Peter. Deve haver alguém mais nessa história. Um cúmplice. — Annie tomou um gole de saque. — Se tivéssemos um jeito de atraí-lo, nós o pegaríamos e o pressionaríamos até ele confessar quem o está ajudando.

— Mas como?

— Você é o psicólogo. O que ele acharia irresistível? O comportamento do passado podia predizer muitas coisas. Ele espalhara panfletos degradantes. Profanara o túmulo de meu pai. Destruíra o pote de Kate. Desmembrara a boneca de Annie. E ainda esfregara nosso nariz nos estragos que fizera.

— Ele usa as pessoas de quem eu gosto como alvo. Descobre seus pontos vulneráveis e... — O comentário de Nick a respeito de Ralston Bridges ressurgiu em minha mente. Aquele filho da mãe sabe enfiar a lâmina e torcer. — Precisamos lhe oferecer um alvo fácil para que ele não possa resistir. Tem de ser alguma coisa de que eu goste muito, que seja preciosa para mim. E então acenar na frente dele.

Nós dois dissemos em uníssono. Meu carro.

— Não sei — reconsiderei na mesma hora. — Tive tanto trabalho para restaurá-lo... — Eu havia passado horas restaurando o BMW 67 até deixá-lo novo, por dentro e por fora.

— Ora, Peter, é perfeito! Você sabe que é. E o carro está na garagem, não dentro de casa. Podemos grampear o lugar inteiro de tal forma que nem um profissional possa perceber. A única questão é, depois de armar a ratoeira, como atraí-lo à isca?

Eu havia trabalhado em meu carro para manter a mente ocupada, em vez de vagar pela casa durante a madrugada, porque a cama tornara-se grande demais sem Kate. Fora um meio de evitar pensamentos obsessivos em relação ao crime. Na verdade, tratava-se de uma variante benéfica do comportamento obsessivo-compulsivo que me servira como distração.

Era isso. Eu já sabia como atrair a atenção de Bridges. Contei a Annie a respeito do telefonema que eu recebera da jornalista do Globe. Eu poderia fazer a entrevista com ela e falar de uma compulsão inofensiva que transformaria uma pessoa num artista, num colecionador ou, como em meu caso, num restaurador de automóveis.

— Talvez eles possam tirar uma foto sua ao lado do carro — Annie sugeriu.

Gemi. Eu abominava a idéia. Mas poderia funcionar. Tinha de funcionar. E seria muito melhor do que se esconder atrás de uma barricada.

Na segunda-feira pela manhã, vasculhei o jornal à procura de alguma notícia acerca do desaparecimento de Gratzenberg. Não havia nada. Após passar as visitas, fui à minha sala e encontrei o papel onde eu anotara o número do telefone de Kelly. Liguei para ela e disse-lhe que havia mudado de idéia.

Infelizmente, ela me informou, o artigo já estava pronto e na gráfica.

Apesar desse entrave, expliquei-lhe que eu poderia falar sobre comportamentos obsessivo-compulsivos como terapeuta, e também como uma pessoa que descobrira um aspecto positivo no distúrbio. Falei de meu carro.

— É um modelo extremamente raro. Um 2000 TC. Existem apenas novecentos exemplares no mundo todo, e o meu é um dos duzentos que foram importados para cá. Talvez seja o único na Nova Inglaterra — acrescentei, arriscando um palpite. — Era uma pilha de sucata quando o comprei. Você até poderia tirar uma foto minha com meu carro — finalizei, colocando uma cereja em cima do bolo.

— Oh, teria sido ótimo — Kelly disse. — Se ao menos o senhor tivesse mudado de idéia há alguns dias...

— É tarde demais mesmo? — insisti.

— Talvez não. Espere um minuto. — Houve um instante de silêncio, antes de uma melodia instrumental entrar na linha. Depois de alguns minutos Kelly retornou, ofegante. — Eles podem segurar a matéria até amanhã. Posso entrevistá-lo hoje à tarde?

— Hoje? — repeti, engolindo o medo. — Claro. Combinamos um encontro depois do expediente de trabalho.

Agora tudo que eu precisava fazer era instalar câmaras de segurança na garagem para pegar o intruso. Lembrei-me do conselho de Nick acerca das câmaras infravermelhas que podiam filmar no escuro e da possibilidade de conectar o alarme a meu bip. Telefonei para a Segurança Argos. Expliquei a Bill o que eu queria, e ele disse que poderia realizar o serviço em dois dias.

Restava-me apenas um detalhe. Liguei para minha mãe e perguntei-lhe se tinha planos para o almoço. Houve um curto silêncio do outro lado da linha.

— Almoço? — ela repetiu, intrigada.

— Sim. Você já almoçou?

— São dez e meia da manhã, Peter. Ainda estou digerindo o desjejum.

— Então, você terá fome por volta do meio-dia ou uma da tarde, certo?

— E por que você quer me levar para almoçar? — minha mãe perguntou. — Não é meu aniversário. Nem o seu.

— Podemos ir ao Carberry's. — Não houve resposta. — Ou ao S&S? — Eu ouvia apenas sua respiração. — Por que não posso levá-la para almoçar? Precisa haver um motivo específico?

Ela suspirou.

— Venha aqui em casa. Vou preparar o almoço e você me contará o que tem receio de dizer ao telefone.

Mais tarde, eu estava sentado na cozinha de minha mãe, enquanto ela fazia uma de suas especialidades: blintzes de queijo. Sobre o fogão, havia um prato de panquecas. Na tigela de metal, ela misturava o que parecia ser uma pasta cremosa de queijo cottage. Jogou uma colherada de manteiga na frigideira.

Uma por uma, ela aqueceu as panquecas, recheou-as com a pasta de queijo e as manteve aquecidas no forno. Não havia ninguém, de Boston a Brooklyn, que preparasse blintzes de queijo como minha mãe.

Quando ela terminou, nós nos sentamos à mesa. Ela colocou três blintzes em meu prato. Depois, mais um. Fiz menção de protestar, mas desisti, prometendo a mim mesmo uma batelada de exercícios extras no Clube de Remo.

Despejei algumas colheradas de sour cream sobre os blintzes e provei. Fechei os olhos, saboreando a massa levíssima, o gosto de gema de ovo, o recheio doce e o toque picante do sour cream. Meu pai costumava degustá-los com uma xícara de chá quente adoçado com uma colher das de chá de geléia de laranja.

— Então — minha mãe disse, quando terminei —, o que você queria me dizer?

Fui direto ao assunto.

— Lembra-se da invasão em minha casa? Dos pacotes que recebemos?

— Claro.

— Bem... — Eu não sabia como explicar a tramóia sem parecer que eu estava ingressando na carreira da criminalidade. — Pedi que a empresa de segurança instalasse um sistema de câmaras na garagem. Para o caso de haver outro arrombamento.

— E por que alguém teria interesse por um carro caindo aos pedaços?

Eu ri.

— Não está caindo aos pedaços! Deve estar funcionando melhor do que no dia em que saiu da fábrica. E hoje ele vale vinte vezes mais.

O semblante de minha mãe indicava claramente que ela não havia engolido nada do que eu dissera. Continuei.

— E também porque o jornal vai publicar uma matéria sobre a restauração que eu fiz no carro.

O olhar de minha mãe tornou-se incrédulo.

— "Meu filho, o mecânico"?

Minnie Sadowsky era difícil de impressionar.

— Na verdade, é um artigo sobre obsessões e os comportamentos compulsivos que as pessoas criam para lidar com o distúrbio. O carro é apenas um exemplo.

— Mas para que publicar no jornal?                  

— Eles me pediram.

Ela não verbalizou, mas percebi que pensava: E se lhe pedirem para se atirar de uma janela?

— Bem, eu só queria preveni-la em relação ao artigo e à garagem, caso você resolva remexer naquelas caixas...

— Aquelas que guardam os cartões-postais do tio Louie? E a coleção de gaitas de seu pai?

— Se for à garagem, o alarme vai acionar. Você não vai ouvir, mas a polícia receberá o sinal e chegará...

— Antes que eu possa tocar uma música na gaita?

— Eu não sabia que você sabia tocar gaita.

— Não sei tocar gaita, Peter.

Ela inclinou o rosto e me observou, pensativa.

— Você quer que ele invada a garagem.

— Não, mãe. Só não quero que você acione o alarme. Ou que fique assustada. Ou aborrecida quando vir o artigo.

Ela cruzou os braços.

— E um plano excelente. Está aprovado. Talvez, depois que nos livrarmos desse bandido, possamos nos livrar também desses alarmes, câmaras e códigos idiotas. E não precisarei mais me preocupar em lembrar onde guardei aquele papel no caso de eu esquecer o código.

Quando eu estava saindo, ela me entregou uma fita de vídeo.

— O sr. Kuppel recomenda.

Era A Conversação, um filme com Gene Hackman ao qual eu assistira quando ainda estava no colégio. Lembrava-me vagamente da história — um homem que fora contratado para gravar a conversa de um casal num parque.

— Já vi esse filme.

Fiz menção de devolvê-lo, mas algo mais me veio à mente. A semelhança de Nick Babikian, o personagem de Gene Hackman no filme era especialista em sistemas de vigilância. E tal qual Nick, ele se tornara paranóico em relação à própria vida.

— Mas pensando bem — emendei —, acho que quero ver de novo.

Kelly Quinlan era uma jovem morena e roliça. Usava óculos, que escorregavam no nariz quando ela ficava animada. E se animou mesmo quando lhe mostrei o carro. Acariciou a pintura polida. Eu abri a porta e convidei-a a sentar-se ao volante. Kelly acomodou-se no banco de couro e fechou os olhos. Então, o fotógrafo tirou uma foto minha com uma flanela na mão, polindo o cromo do veículo.

Entramos em casa. Kelly sentou-se à mesa da cozinha, ligou o gravador e colocou-o sobre a mesa. Falamos a respeito das diferenças entre hábitos saudáveis e doentios, quando um comportamento normal se transformava em obsessivo e como identificar hábitos que se tornaram compulsões. Contei-lhe como trabalhar em meu carro havia me ajudado quando eu precisara de uma distração.

— Há quanto tempo sua esposa foi assassinada? — ela perguntou.

Senti como se alguém tivesse me esmurrado. A resposta era três anos, dois meses e duas semanas. Cerrei os dentes e lembrei que havia organizado tudo aquilo. Seria para um bem maior.

— Três anos. Prefiro não falar de minha vida pessoal. Ela pareceu realmente comovida. Desligou o gravador.

— Lamento. Pensei que a restauração do carro houvesse aplacado sua dor.

— Foi muito difícil — eu disse, sem querer dar maiores explicações. — Não creio que existam palavras para descrever o sofrimento.

— Eu sei — Kelly acatou. — Meu noivo morreu num acidente de avião. Acha que é possível superar a perda?

Ela me fitou, em expectativa. Aquele brilho triste em seus olhos estivera presente o tempo todo?, perguntei-me, surpreso por não haver notado antes. Sorri para ela. Quantas pessoas caminhavam pelo mundo, abrigando dores e perdas sem demonstrar.

— Acho que não — respondi. — Quando se perde alguém que se ama, a dor cria um buraco. Esse buraco nunca deixa de existir dentro de você. Mas depois de algum tempo, você consegue viver sem cair nesse buraco. A vida passa a adquirir certo ritmo, sem que você pense a cada minuto na pessoa que se foi — minha voz elevou-se um pouco, mas não pude evitar.

A entrevista durou quarenta minutos, contudo, parecia ter demorado horas. Kelly me abraçou antes de sair.

Bill, da Segurança Argos, chegou logo depois da partida de Kelly. Ele fez os cálculos e me apresentou um orçamento.

Assim que Bill se foi, fechei a garagem e permaneci no escuro ao lado do carro. Era apenas um automóvel, disse a mim mesmo. Se havia uma coisa da qual eu tinha certeza era que carros podiam ser consertados.

A matéria saiu na primeira página do caderno Ciência e Saúde do jornal. Não tive coragem de lê-lo. Olhei de relance minha foto polindo o carro.

Annie me telefonou naquela manhã. Disse-me que o artigo estava ótimo. A armadilha perfeita.

O telefone começou a tocar antes de eu sair para o trabalho. Deixei a secretária eletrônica acumular mensagens de amigos bem-intencionados que haviam lido a reportagem.

Aluguei um Toyota, esperando que o BMW na garagem se tornasse um alvo irresistível. Embora eu não acreditasse que a isca fosse mordida imediatamente, cada vez que meu bip tocava, eu verificava, aflito, o recado a fim de certificar-me de que não era da empresa de segurança. Gloria percebeu meu nervosismo e sugeriu que eu tomasse Valium.

A medida que a semana avançava e o trabalho no Pearce diminuía, nenhum alarme foi acionado.

 

EU marcara com Nick para ir a meu consultório a fim de terminar os testes. No último minuto ele telefonou avisando que a pessoa que tomava conta de sua mãe estava doente e perguntando se eu poderia ir à casa dele. A idéia não me agradava. Embora não houvesse pressão da parte de Chip, a última coisa que eu queria eram interrupções durante a aplicação dos testes, dando a Nick a chance de fortificar suas defesas psicológicas. Em meu consultório, eu poderia controlar as interrupções.

Os portões de segurança estavam fechados quando embiquei o carro na calçada. Abri o vidro da janela e apertei o botão do interfone. Esperei. O jardim do vizinho estava quase todo florido, e a fragrância de lilases espalhava-se pelo ar. Aquele lugar não parecia ter sido palco de um horrendo assassinato.

Os portões se abriram, e eu passei. A luz do dia, a residência com seus ângulos agudos parecia uma cicatriz na paisagem. Os arbustos diante da porta de entrada haviam sido aparados em forma de cubos e esferas.

Quando estacionei o carro, a porta da garagem se ergueu para revelar Nick camuflado entre as sombras. Saí e caminhei em sua direção. Era uma garagem muito bem cuidada, do tipo que parecia não ser usada para não sujar o imaculado piso de concreto.

Ele me conduziu pela lavanderia. O aroma de sabão em pó continuava no ar, tal qual no dia do crime. A secadora estava ligada, e havia uma pilha de roupas limpas sobre ela. Na cozinha, os balcões achavam-se vazios.

— Café? — ele ofereceu, abrindo a geladeira e tirando uma garrafa de leite.

De calça pregueada e camisa branca, Nick parecia mais um contador do que um técnico em computação.

As fotografias dos bebês haviam sido retiradas da porta da geladeira. O calendário agora mostrava o mês de junho, e a foto era de um gatinho branco espiando de dentro de uma cesta de novelos de lã azuis e rosa. Em cada um dos dias estava anotado um lembrete, como eu vira no mês anterior. Lisa Babikian não esperara que maio fosse seu último mês de vida.

— Como está sua mãe? — perguntei, servindo-me de café.

— Está bem. É como se ela nunca tivesse saído daqui. Peguei a xícara e segui Nick através da sala até o jardim-de-inverno. O piso de madeira brilhava, porém eu recordava os lugares onde o sangue se espalhara. Quando ergui o rosto, Nick fitava o mesmo local. Ele me encarou e imediatamente desviou o olhar.

Nick sentou-se na ponta do sofá de couro. Puxei uma cadeira e depositei minha maleta sobre a mesa de centro. Todas as máscaras naquele recinto eram laqueadas, algumas brancas, outras douradas. Estavam dispostas na parede em grupos. Haveria uma câmara atrás daqueles olhos transmitindo minha imagem ao computador no porão de Nick?

— Mandei desligá-las — ele disse, lendo meus pensamentos.

— Verdade?                                                    

— Não acredita em mim?                                    

Dei de ombros e tomei um gole de café. Que importância teria ele filmar a sessão? Nenhuma, em minha opinião. Peguei as cartelas do teste e um protocolo em branco. Tirei a tampa da caneta.

Nick olhou as pranchas com desagrado.

— Vamos acabar logo com isso — resmungou.

— Você tirou o telefone do gancho? — perguntei. — Eu gostaria de aplicar estes testes sem interrupções.

— Ninguém telefona para mim, exceto vendedores. Se o telefone tocar, a secretária eletrônica atenderá.

O Rorschach era um teste extremamente delicado. Não havia respostas certas ou erradas. Ele revelava a estrutura básica da personalidade inconsciente. Conforme o teste prosseguia, carteia após carteia, as defesas tendiam a tornar-se mais permeáveis, e a personalidade oculta da pessoa se revelava. Com indivíduos mais frágeis, eu teria de administrar testes cognitivos que se aproximavam do Rorschach, começando e terminando com imagens mais estruturadas, com menor carga emocional. Não fiz isso com Nick. Suas defesas não precisavam de suporte. Na verdade, uma boa dose de uísque ajudaria a ultrapassá-las.

Iniciei o procedimento como sempre fazia.

— Quando eu era criança, costumava me deitar na praia e observar as nuvens. O formato delas me lembrava várias coisas. Você já fez isso?

— Você quer que eu olhe esses borrões de tinta e diga o que vejo.

— Certo. Já fez esse teste?

— Não. Mas todo mundo sabe como funciona.

— Ótimo — eu disse, mostrando-lhe a primeira carteia. Nick examinou-a. Virou-a de cabeça para baixo.

— Parece uma garra de caranguejo. Há saliências atrás. E talvez guelras nos lados. Ou pode ser uma máscara de vampiro. — Ele apontou dois pontos brancos. — Os olhos.

— Em seguida, indicou a extremidade inferior da mancha.

— Dentes.

Vampiros. Caranguejo. Era o que a maioria das pessoas via, embora Nick houvesse desviado um pouco ao enxergar uma máscara.

Mostrei-lhe a segunda prancha.

— Dois homens de máscaras vermelhas, dançando — ele disse.

O detalhe das "máscaras vermelhas" era um pouco mais incomum. No entanto, era coerente com outro resultado, bastante freqüente. Ele associara uma cartela com várias partes diferentes a uma idéia global — algo que geralmente se observava em grandes empreendedores.

Várias cartelas depois, Nick deteve-se a olhar fixamente para uma delas, que apresentava uma figura com cores especialmente vivas.

— Isto aqui é fogo — ele disse, apontando para a forma alaranjada e verde na base da figura — e fumaça. — Indicou a área cinza acima da mancha verde.

Ele parou de repente quando o telefone tocou. A secretária eletrônica atendeu ao segundo toque.

— E aqui — continuou, apontando as formas avermelhadas em ambos os lados — são corpos ensangüentados de dois leões que...

A voz metálica de um homem ecoou da cozinha.

— Nick, é Chip Ferguson. Já recebemos o resultado... Nick levantou-se e correu para a cozinha. Pegou o telefone.

— Estou aqui! — ele disse e baixou a voz para que eu não pudesse escutá-lo.

Era isso que eu temia. Agora Nick caminhava pela cozinha. Por um momento, seu tom de voz se alterou.    

— Não pode ser! — Então, ele se aquietou outra vez. Um minuto depois, Nick voltou e sentou-se. Seu rosto estava pálido.

Mostrei-lhe a carteia em que havíamos parado.

— Quer acrescentar algo mais? — perguntei. Ele parecia examinar o desenho, mas nada disse. — Precisa de mais tempo?

Ele me olhou.    

— Você sabia?

— Sabia o quê?

— Que Chip iria me telefonar para falar do resultado do exame de DNA. Por isso quis me ver hoje.

— Do que está falando? Foi você quem me fez vir até aqui.

A lógica não o abalou.

— Poderíamos ter finalizado os testes na semana passada. Você foi à penitenciária para observar minha reação diante do resultado da autópsia. Acha que eu não percebi?

— Não sei do que está falando. — Eu me detive. Processei o que ele dissera. — Você se submeteu a um teste de DNA?

— Não me venha com esse papo. Você sabia.

Achei estranho ele ter concordado em fazer o exame, já que desconfiava tanto dos laboratórios. Estava óbvio que o resultado o surpreendera.

— O bebê era seu?

— Claro que não! — Nick explodiu. Começou a dizer algo, mas parou. Parecia confuso. Então, uma onda de raiva transfigurou seu rosto. — Talvez... — Ele sacudiu a cabeça e falou devagar: — Se não era de Teitlebaum... nem meu... então... de quem era?

— Quer terminar os testes em outro dia? — perguntei, embora eu não quisesse voltar àquela casa, onde pairava no ar a paranóia de Nick misturada aos ecos da morte violenta de Lisa Babikian.

— Só preciso de alguns minutos. — Ele apoiou a cabeça entre as mãos. — Vou ficar bem.

— Não tenha pressa — tentei tranqüilizá-lo, embora soubesse que seria perda de tempo continuar. Mesmo que terminássemos, os resultados não teriam tanta validade após a interrupção e pelo estado em que Nick se encontrava. Retomar o teste não era uma boa opção, mas ele já havia visto quase todas as cartelas. — Vou dar uma volta lá fora — avisei-o.

Talvez um passeio e um pouco de ar fresco ajudassem a melhorar meu humor. Fiquei surpreso por ele não objetar. Então, lembrei: devia haver câmaras também no exterior da casa.

Saí para o jardim dos fundos. Ao lado da piscina, ouvia-se o zumbido de um compressor. Agachei na beirada, próximo ao local onde o corpo de Lisa Babikian flutuara. Perguntei-me se a piscina fora esvaziada e limpa desde então.

A área gramada ao redor da piscina era plana, com alamedas entre os arbustos. A sra. Babikian emergiu de uma delas. Segurava um buquê de lilases. Veio em minha direção, mostrando-me as flores.

— Os lilases têm um perfume tão bom — eu disse. Ela me entregou as flores. Peguei-as, sentindo os dedos frios e duros da pobre mulher. Ela colocou a mão sobre meu ombro e jogou o próprio peso sobre mim. Flexionou os joelhos e abaixou-se ao lado da piscina. Eu a abracei por trás, temendo que ela caísse na água. No entanto, a sra. Babikian parecia equilibrada ao esticar os braços, recolher um pouco de água com as mãos e bebê-la. Em seguida me encarou com os olhos marejados de lágrimas.

— Ela teve de beber. O que mais poderia fazer?      

Lembrei-me da triste história narrada pela sra. Babikian; a mãe fora obrigada a marchar com o exército turco e, devido à sede, tiveram de beber da água do rio vermelho de sangue. Agora a sra. Babikian bebia da piscina que se tornara vermelha com o sangue da nora.

— Claro — concordei. — O que mais ela poderia fazer? Os olhos da sra. Babikian focaram o vazio.

— Minha mãe mal se lembrava do tio, mas recordava bem como os turcos o haviam matado. Queimaram a casa. Ele e os vizinhos fugiram para as cavernas. — A história era contada em tom melancólico. — Os turcos os seguiram. Colocaram uma pilha de madeira na entrada da caverna. Atearam fogo... e esperaram. Quando alguém saía da caverna, eles atiravam. Lá dentro, meu tio-avô, a esposa, o filho de cinco anos e um bebê morreram asfixiados. Nunca foram enterrados.

A avó de Nick submetera tanto a filha quanto o neto a terríveis lembranças. Em Nick, elas encontraram vida nova através dos jogos de computador. Era uma maneira de sentir certo controle sobre a violência que assolara sua família. Agora as imagens retornavam à mente da sra. Babikian com a mesma intensidade da lembrança de esperar Nick voltar da escola.

— Eles tiveram de se esconder. Acharam que era o único jeito de sobreviver — ela sussurrou. — Minha mãe achou um lugar, onde muitos crânios eram empilhados todas as noites. Não havia corpos. Somente crânios.

A sra. Babikian levantou-se, deixando a marca das mãos úmidas no concreto junto à borda da piscina. Caminhou pelo jardim. Eu a segui, sem saber se era seguro deixá-la sozinha. O ambiente caseiro podia ser um lugar perigoso para os pacientes de Alzheimer. Eu já tinha visto pessoas comer as flores que os parentes lhes traziam, e num jardim sempre podia haver plantas venenosas. Mesmo em espaço confinado, era fácil ficar confuso e perdido.

Ela caminhou até os fundos da casa, murmurando consigo mesma. Lá, havia uma porta aberta que dava acesso ao porão. Eu a acompanhei.

Primeiro, passamos por um corredor. A meio caminho, outra porta estava semi-aberta. Pela abertura pude ver que se tratava de um escritório — havia arquivos e estantes.

Fomos até uma porta no fim do corredor, que se abria para uma sala bastante espaçosa. O piso era preto e branco como um tabuleiro de xadrez, as paredes brancas, o teto rebaixado com lâmpadas fluorescentes. Percebei por que a polícia não encontrara o escritório de Babikian. Fechada, a porta parecia dar acesso ao exterior da casa, não a um corredor e a outra sala.

Segui a sra. Babikian, que subia a escada.

— Nicky? — ela chamou ao emergir na cozinha.

— Quer tomar alguma coisa? — ofereci. Ela se assustou ao ouvir minha voz.

— Suco? — perguntei.

Ela assentiu. Encontrei um copo e abri a geladeira. Havia uma garrafa de suco de maçã. Depois de servir o suco, segui a sra. Babikian até os fundos da casa. Seu quarto era espaçoso e ensolarado, e dava para o jardim e a piscina. Ela sentou-se numa poltrona diante da tevê e eu lhe entreguei o suco. Ela bebeu e deixou o copo numa mesa, ligou a televisão e começou a assistir a um episódio de I Love Lucy.

Voltei ao jardim-de-inverno, esperando que Nick tivesse se recomposto para finalizarmos. Ele não estava lá.

— Nick! — chamei.

Esperei. Não houve resposta. Era irritante saber que ele desaparecera sem sequer considerar minha presença.

— Fui à sala de estar. As máscaras nas paredes me encaravam, impassíveis. Havia um espaço vazio entre uma máscara risonha e outra que parecia urrar de raiva. Imaginei que aquele devia ser o lugar da máscara que Lisa Babikian usava quando fora retirada da piscina. Qual delas ocultava a câmara? Aproximei-me da cara diabólica. Teria Nick realmente desligado as câmaras ou estaria naquele momento no porão, me observando?

Voltei ao porão. Entrei no pequeno corredor. Bati na porta. Nenhuma resposta. Girei a maçaneta e abri. Nick estava sentado à escrivaninha, olhando intensamente para um dos monitores numa prateleira. Um deles, é claro, mostrava a sala de estar, deserta. Outro vistoriava a frente da casa. A cerca de cada cinco segundos a imagem era atualizada. Um terceiro monitor estava desligado. O quarto mostrava os fundos da casa, a piscina e o jardim. Ele provavelmente me observara junto com a mãe.

Mas não era para esse monitor que ele olhava. Nick assistia à imagem do último, outro guardião mascarado em sua sala. A gravação devia ter sido captada anteriormente, porque ele acelerava, figuras surgiam e desapareciam, a sala passava de iluminada a escura, e depois ficava iluminada de novo. As imagens me fizeram lembrar daquelas filmagens seqüenciais que se viam nos programas sobre natureza, nos quais uma semente florescia, desabrochava e morria em questão de segundos. A diferença era que, na sala da casa de Nick, o dia nascia, a noite caía, pessoas entravam e saíam, e nada mudava.

Nick congelou a imagem e observou Lisa sentada no sofá da sala. Ela lia uma revista. A palidez de sua pele se confundia com a cor cinza da camiseta e da calça de malha. Os longos cabelos loiros estavam amarrados na nuca.

Então a imagem tremeu e voltou a avançar, exibindo as cenas seguintes captadas pela câmara. Se as imagens se alternavam a cada cinco segundos, Lisa deve ter permanecido ali sentada lendo por cerca de meia hora. Então, ela desapareceu.

Nick avançou mais e congelou novamente a imagem. Dessa vez havia duas pessoas em pé na sala. Jeff Gratzenberg conversava com Lisa. Ele segurava um suéter branco e na imagem seguinte era Lisa quem o tinha nas mãos. A imagem estava turva demais para se distinguir expressões faciais. Houve um abraço rápido. Mais um pouco de conversa e a seguir a sala estava deserta. Nick deu replay.

— Nick — eu disse. Ele se virou.

— O que está fazendo aqui?

— Procurando por você. Lembra-se de que íamos terminar o teste?

Seus olhos já estavam vidrados no monitor, como se houvesse ali uma força magnética.

— Preciso de alguns minutos, está bem? — Ele acelerou o vídeo. — Espere um pouco.

Nick avançou mais alguns dias, pausando aqui e ali. Somente Lisa, a sra. Babikian e Nick apareciam.

Por fim, ele apertou um botão e a gaveta de CD do computador se abriu. Nick retirou o disco do drive e o guardou numa caixa de plástico. Em seguida, aproximou-se de um armário de metal que abrigava um aparelho de som estéreo e caixas de som no topo. Abriu uma das três gavetas, a qual continha vários CDs.

Perguntei-me se a polícia checara os arquivos de segurança daquele armário ou se teriam descartado a possibilidade, imaginando tratar-se de CDs de música.

Nick encontrou um lugar e guardou o CD. Então, pegou outro. Hesitou por um instante. Em vez de abrir a caixa, deixou-a sobre o armário. Com alguns cliques, desligou o programa.

Quantos locais da casa Nick poderia observar daquele esconderijo? Podia mudar de canal e ver o próprio banheiro ou o movimento na cozinha? Conseguiria espionar os funcionários, dali?

— Equipamento impressionante — comentei.

— Muito simples. As câmaras coletam as imagens e as transmitem aqui.

— E você as salva em CD?

Não escutei a resposta de Nick porque meu bip tocou. Tirei-o da cintura e olhei o visor. A princípio, não reconheci o número. Então, lembrei-me... a empresa de segurança. Sábado, meio do dia. O horário que eu menos esperaria para uma invasão de domicílio.

Nick empurrou um aparelho de telefone para mim, larguei o bip e disquei. A atendente da Segurança Argos me informou que o alarme havia sido disparado. Já haviam chamado a polícia.

Desliguei. Queria ligar para minha mãe para saber se ela estava bem, mas preferi não perder tempo. Pelo menos, eu não pegaria nenhum engarrafamento nas ruas. Poderia telefonar do carro assim que chegasse na via expressa.

— Vai terminar o teste? — Nick perguntou.

— Tenho de ir. Alguém está arrombando minha garagem. Nick sorriu. Não tive tempo de pensar no que aquilo

podia significar. Subi a escada de dois em dois degraus, corri até o jardim-de-inverno, recolhi o material do teste, jogando-o na maleta, e precipitei-me para fora. Entrei no carro alugado e dei a partida. Escutei um bip. Num gesto automático levei a mão à cintura, mas o aparelho não estava em meu cinto. Olhei o painel. Um ícone vermelho piscava — o bip me alertava para colocar o cinto de segurança.

Maldição. Por dois segundos, considerei a possibilidade de ir embora sem meu bip. Mas não podia deixar a equipe da unidade e meus pacientes sem um apoio de emergência. Praguejando, saí do carro e corri de volta até a casa.

A porta da frente estava trancada. Toquei a companhia e bati na porta. Esperei. Toquei e bati mais um pouco. Onde diabos ele se metera? E por que não me enxergava num dos monitores? A garagem estava aberta. Entrei. A porta de ligação com a casa não fora trancada.

Apressei-me até o porão. A porta do escritório de Nick estava aberta. Ele ainda olhava um dos monitores. A princípio, pude ver apenas um vulto se movendo num espaço fechado que continha um objeto grande. Um carro. Então, percebi o que era: o interior de minha garagem.

— O que está fazendo? — explodi.

Nick pulou da cadeira. Olhou a tela do monitor e depois me encarou.

— Ei, calma aí! Não é o que parece.

— Não tenho tempo para conversa fiada! — eu disse.

Alcancei os cabos que saíam da estante e puxei-os, pretendendo desligar o equipamento. Com o movimento brusco, os monitores moveram-se para frente.

— Pare! — Nick gritou. Ele subiu na mesa e segurou os aparelhos. — Seu cretino! Eu não estava espionando você.

— Como não?

— Quero dizer, só agora. Você disse que a Argos havia instalado um alarme. Eu queria ver...

Ele conseguia acessar qualquer imagem que a Argos monitorava? As de minha casa? As da casa de minha mãe? Ao tentar proteger meu território, eu o tornara ainda mais vulnerável. Senti-me exposto e invadido.        

— É como os telefones celulares — Nick continuou, descendo da mesa. — Ou ondas curtas. Ou até mesmo um rádio.

Verifiquei o monitor novamente. O homem em minha garagem estava se movendo. Ele ergueu algo parecido com um martelo e o lançou com toda a força. Estremeci. Lá se fora meu pára-brisa. Quando o cara levantou a arma novamente, uma luz retangular apareceu atrás dele — devia ser a porta dos fundos que dava acesso à garagem. Seria a polícia? Não parecia um policial. A sombra na abertura era uma figura miúda.

— Merda — murmurei.

Aquela figura assemelhava-se à minha mãe. E ela segurava o que parecia ser um taco de beisebol.

Peguei meu bip na mesa de Nick. Tinha de ir embora. Nick me seguiu pela escada, protestando.

— Você só precisa saber como pegar o sinal! — Eu atravessava a cozinha, com Nick ainda em meu encalço. — Por que eu espionaria você? Tem de acreditar em mim!

Não respondi. Estávamos na lavanderia quando ele agarrou meu ombro. Parei e olhei para baixo.

— Não encoste em mim! Não preciso droga nenhuma!

Quando me afastei dele, esbarrei na pilha de roupas limpas. Nick mergulhou para segurar as calças, meias e camisetas, e eu quase caí sobre ele ao tentar passar.               .

— Quer sair da minha frente?!

Empurrei-o e saí. Dirigi feito um louco, ignorando as sinalizações. Motoristas de todos os lados buzinavam para mim, enquanto eu ziguezagueava e ultrapassava em linha contínua. Eu percorria Boston, xingando e cometendo infrações. Visualizava a silhueta de minha mãe e o taco de beisebol. Minha própria voz gritava em pensamento. Mais depressa! Chegue logo em casa!

Quando saí da via expressa, liguei para Annie. Contei-lhe o que acontecera e que eu estava a caminho de casa.

— Vou até lá — ela avisou. — Com meu scanner sintonizo o canal da polícia.

Senti um arrepio na nuca. Todo mundo espionava todo mundo? Talvez a paranóia não fosse um distúrbio, afinal... talvez fosse uma sensível adaptação às realidades da vida.

Aproximei-me do pedágio em alta velocidade — eu abominava os motoristas que faziam isso. Quando uma das moedas que joguei no cesto coletor caiu no chão, blasfemei e segui em frente, ignorando a campainha. Felizmente, nenhum policial estava de plantão àquela hora.

Somente quando cheguei a Cambridge, tive calma para refletir acerca do comportamento de Nick. Como ele me perseguira pela escada. Apressara-se para recolher a pilha de roupas, como se estivesse escondendo algo. Os ilusionistas faziam isso. Criavam um circo de atividades para desviar a atenção da platéia de algo que acontecia bem diante de todos. Nick tentara evitar que eu notasse alguma coisa. Mas o quê?

Entrei em minha rua. Annie encontrava-se alguns carros à frente. Eu a segui. Havia duas viaturas diante de minha casa e uma ambulância estava embicada na calçada. Seria uma precaução ou minha mãe estaria ferida? Larguei meu carro em fila dupla e corri.

A porta da garagem estava aberta. Cacos de vidro espalhavam-se pelo chão. Uma dupla de paramédicos inclinava-se sobre alguém que se encontrava deitado no chão, ao lado do carro. Annie juntou-se aos paramédicos.

— Afaste-se — a voz de um homem ordenou.  

Então, escutei:

— Você não vai ficar com isso!    

Era minha mãe. O alívio que senti foi quase um impacto físico, roubando-me momentaneamente o equilíbrio. Minha mãe estava no jardim da frente, digladiando-se com um policial.

— É uma herança de família! — ela argumentava, segurando meu taco de beisebol. A voz soava com a mesma autoridade que ela costumava empregar quando meu irmão e eu usávamos o sofá como cama elástica. — Você não vai levar esse taco!

— E uma prova, sra. Zak — o oficial dizia, puxando o bastão. — Prometo que o devolvo.

— Desculpe, mas não acredito em você, rapaz — ela informou, agarrando o bastão com mais força. Eu observava, boquiaberto. — E quem disse que usei esse instrumento para bater em alguém?

— Ora, o homem deitado na garagem tem um calombo na cabeça. E a senhora está munida de um taco de beisebol.

— E ele está munido de um martelo. Talvez ele próprio tenha se ferido.

— Sra. Zak — o policial implorou. Gentilmente, retirou as mãos dela do bastão —, juro que vou devolvê-lo.

Nesse instante minha mãe me avistou e soltou o taco.

— Não sei se estarei viva para ver.

— O que aconteceu? — perguntei.

Minha mãe começou a responder e parou. Indicou o policial com um gesto de cabeça. Ele percebeu e desapareceu na garagem.

— Escutei uma barulheira. Fui ver o que era.

— Você escutou um ladrão e resolveu confrontá-lo? Com um taco de beisebol?

Ela pareceu, de repente, espantada.

— Não raciocinei. Simplesmente peguei o bastão e fui. — Ela arregalou os olhos. — Acho que você herdou sua ousadia de mim.

Os paramédicos estavam levando um homem alto, usando jeans e uma capa preta, numa maca. Vi que ele tinha os pés calçados com um par de botas grosseiras, marrom-avermelhadas. Então, colocaram-no dentro da ambulância.

— Eu devia estar louca — minha mãe admitiu.

— Fico feliz que esteja bem.

— Ótima, na verdade. — Ela parecia muito satisfeita consigo mesma.

Annie estava ao lado das portas da ambulância. Fui até ela.

— Alguém mordeu a isca — ela murmurou. — Ele está inconsciente. Uma pancada violenta na cabeça. Dizem que vai ficar bem.

— Minha mãe o golpeou com um taco de beisebol, Annie franziu a testa, espantada.

Eu ainda não estava preparado para ver meu carro.

— Quem é ele?

— Não tinha identidade.

— Tem certeza de que ele vai ficar bem? — perguntei. Eu queria que o homem se recuperasse para saber, de uma vez por todas, se Ralston Bridges era ou não responsável pelos arrombamentos e pelas entregas especiais. — Conseguirão interrogá-lo?

— Eles acreditam que sim. — Annie indicou os paramédicos. — E parecem ter muita experiência com pessoas atingidas na cabeça.

— E se a polícia conseguir dele a prova de que Ralston Bridges é o responsável?

— Nessa caso, a festa acaba. Entraremos com uma petição para suspender o privilégio de usar telefone e computador, por um longo tempo.

A idéia soava ótima para mim.                           '

Algumas horas depois, após a saída da polícia, Annie, minha mãe e eu fomos à garagem. Verifiquei os danos do carro sob a fraca luminosidade. A capota apresentava alguns amassados, e nas laterais havia vários riscos e arranhões. O pára-brisa e os vidros estavam danificados. Uma substância estranha fora borrifada no couro dos assentos. O odor fétido assemelhava-se ao de urina de gato.

— Poderia ter sido pior — comentei.

— Você está aceitando tudo isso muito calmamente — Annie observou.

— Eu sabia o que poderia acontecer. O importante é que deu certo. Pegamos o bandido. Os vidros, o capo, os assentos podem ser consertados.

A seguradora cobriria boa parte do estrago. Eu teria de pagar pelo estofamento de couro. Contudo, não estava muito certo quanto ao cheiro. Rezava para que o delinqüente não tivesse injetado o mesmo líquido no radiador.

Minha mãe olhava para um canto da garagem.

— Podemos nos livrar dessas câmaras horríveis? — perguntou. — Elas me deixam paranóica.

— Ligarei para a empresa, pedindo que retirem o equipamento na segunda-feira pela manhã — garanti.

Então olhei para a lente minúscula da câmara. Esperava que ninguém estivesse me observando.

 

Annie passou a noite comigo. Fizemos amor lentamente e sem paranóias. O fato de saber que Bridges estava prestes a ser neutralizado fez com que um peso enorme saísse de minhas costas.

Caí num sono profundo, mas acordei às quatro da manhã. Sonhei que eu era a lente da câmara oculta atrás de uma das máscaras da sala de Babikian. Da parede, eu via Gratzenberg e Lisa conversando. Tal qual a gravação a que eu assistira no escritório de Nick, Jeff entregava um suéter preto a Lisa. Eles se abraçavam.

Pelo jeito, o suéter era a "coisa" que Jeff me contara ter levado à casa de Lisa. Pouco antes de, conforme ele dissera, a merda ser jogada no ventilador e Nick começar a desacreditar do trabalho dele. Pouco antes de ele ser preso.

Sentei-me na cama. Havia alguma coisa no sonho, um detalhe que não batia com o vídeo real, mas que eu não conseguia identificar.

— Está acordado? — Annie perguntou, ainda sonolenta.

— Estou pensando.

— Em quê? — Ela acariciou minhas costas.

Fechei os olhos e apreciei o toque antes de responder.

— Na verdade, eu estava pensando em Jeff Gratzenberg. Contei o sonho a Annie, falei sobre o vídeo a que Nick assistira. E comentei sobre o estranho comportamento de Nick, quando me perseguiu pela escada e amparou a pilha de roupas.

— Parecem informações importantes para a polícia — Annie observou. — O arquivo de CDs e a obsessão de Nick por Gratzenberg, agora que o rapaz desapareceu.

— Não consigo me livrar da sensação de que algum detalhe me escapa.

— Acha que Gratzenberg estava saindo com Lisa Babikian? — Annie perguntou.

— Quando? Nick nunca tirava os olhos da mulher, exceto quando ela comparecia às sessões de terapia. — Lembrei-me da foto de Lisa no quarto de Gratzenberg. — Mas não tenho dúvidas de que Jeff era apaixonado por ela. Nick deve ter imaginado que havia algo mais entre os dois. Uma reação natural em se tratando de sua paranóia.

Eu sabia que minha mãe telefonava à sra. Gratzenberg todos os dias para ter notícias e ajudá-la a não perder a esperança. Porém, com o passar do tempo, tornava-se menos provável que o filho dela estivesse engajado em algum trabalho novo. Desaparecer era o mesmo que entrar em coma — quanto mais tempo se passasse, menores eram as chances de um desfecho feliz.

Na manhã seguinte, liguei para o detetive Boley.

— Achei que vocês gostariam de dar uma olhada nos CDs que Nick guarda num armário de seu escritório. Eu teria imaginado que eram CDs de música se não tivesse visto o que um deles contém.

Houve um silêncio na linha. Então Boley pigarreou, antes de falar.

— CDs — ele disse.

— Deve haver uma centena deles. Babikian provavelmente arquivou todas as imagens que cada câmara da casa filmou. Quem sabe que informações podem existir nesses CDs? Só vi alguns minutos de um deles.

Pude ouvi-lo respirar. Imaginei-o calculando as horas que seriam necessárias para verificar quais CDs eram relevantes. E nenhum deles o ajudaria a condenar Teitlebaum.

— Eu vi uma cena em que Jeff Gratzenberg devolve um suéter a Lisa Babikian.

— Gratzenberg... É aquele rapaz que prendi por arrombamento.

— E que desapareceu há uma semana — completei.

— Você gosta de remexer no fundo do baú, não? Bem, para sua informação, não deixamos passar os CDs.

— Não?

— Não. Nós os verificamos. Não há nada relevante para a investigação.

— Entendo — eu disse, sentindo-me frustrado.

Depois que Boley desligou, permaneci onde estava, fitando o telefone. Não acreditei nele. Não parecia interessado em examinar os dados de segurança, assim como não achara necessário exigir um exame de DNA. Mas Boley fora atrás das galochas e cavara o jardim de Teitlebaum. Seria preguiça seletiva? Ou algo mais?

A semana seguinte começou agitada. Tivemos a internação de seis novos pacientes na unidade — em geral, dois ou três eram admitidos e outros tantos recebiam alta. E Gloria ajudou a aumentar nosso estresse, com seus chiliques por causa do excesso de trabalho.

Meu carro estava de volta à garagem, e eu ainda não tivera tempo de fazer uma lista dos estragos, muito menos de começar a desamassar a lataria. Mandei guinchá-lo para a reposição dos vidros, e pela Internet consegui encontrar peças específicas que seriam necessárias para reparar os danos. Achei também uma oficina que removia os assentos e prometia deixá-los novos em folha.

Na sexta-feira à noite, Annie foi à minha casa. Ela telefonara cedo, anunciando que tinha notícias. Boas notícias. Quando abri a porta, ela segurava uma garrafa de champanhe.

Beijei-a e permanecemos abraçados por um momento. Eu adorava o perfume de Annie.

— O que vamos comemorar? — perguntei. Ela sorriu, misteriosa, e me entregou a garrafa. —- Abra o champanhe, depois eu conto.

Fomos à cozinha. Tirei o arame da rolha. Era uma garrafa de Piper Heidsieck.

— Deve ser algo que realmente merece uma comemoração — comentei, ao puxar a rolha. A princípio ela resistiu, depois começou a escorregar. Por fim, saltou com um estalo.

Escolhi duas taças de champanhe na cristaleira, lavei-as e sequei-as. Então, servi. Annie pegou uma taça e a ergueu.

— Às ordens judiciais! — ela exclamou. Levantei minha taça.

— Bridges?                                                  

— Sim.

— O homem que foi pego na garagem revelou quem era o mandante?

— Não. Ele se recusou a dar nomes. Lembra-se de nosso amigo, o sr. Spatola? A polícia conseguiu rastrear quem o contratou. Foi você quem deu a dica. Siga as pistas da origem do dinheiro.

Não era a vitória que eu havia esperado. Encostei minha taça na de Annie e bebi. Ela prosseguiu:

— Parece que Bridges usou o computador da biblioteca do presídio para fazer o panfleto, e pela Internet contratou alguém para imprimir e distribuir as cópias. Usou o serviço de transferência eletrônica para efetuar o pagamento. Agora Bridges está proibido de chegar perto de um computador.

— Esperemos que sim — eu disse. — É um alívio saber que ele está interditado. Mas eu ficaria mais feliz se tivesse a certeza de que foi o responsável pela violação do túmulo de meu pai. Pela invasão. Pelo carro...

— Por falar nisso, como está o carro?

— Mandei trocar os vidros. E estou providenciando assentos novos. Ainda não comecei a trabalhar na lataria. Quer vê-lo?

Annie acariciou meu queixo.

— Claro.

Saímos da casa. Era fim de tarde, ainda não escurecera, mas as luzes da rua já estavam acesas. No pórtico, Annie esquadrinhou a área entre a porta e o telhado.

— Mandei retirar as câmaras — contei-lhe.                

— Que bom. Aquelas coisas me deixavam nervosa.

— A você e a minha mãe.

Caminhamos até a garagem. As dobradiças rangeram quando ergui a porta de madeira. Acendi a luz. O recinto cheirava a cera de automóveis, cimento e gasolina, sob o odor superficial de urina de gato. O carro parecia em pior estado do que eu me lembrava. Havia buracos em vez de faróis. Annie passou a mão sobre a capo, onde o intruso martelara várias vezes.

— Terei trabalho dobrado no capo — comentei, forçando um tom casual.

— O cheiro parece que vem dos assentos — ela disse, espiando o interior do carro.

— Sim, mas não totalmente. Retirei o carpete e vou mandar substituí-lo. Talvez com o passar dos dias...  

— Pelo jeito, suas noites estarão ocupadas por um bom tempo — Annie concluiu.

— Eu não contaria com isso. — Aproximei-me por trás e abracei-a pela cintura. — Você poderia me ajudar. Nunca quis aprender a restaurar carros?

— Não. Gosto de restauração de carros tanto quanto gosto de remar.

— Pensei que tivesse gostado de remar.

— Não gostei. — Annie olhou para o teto. — Você não mandou retirar todas as câmaras?

Olhei para cima. Bloqueei o excesso de luminosidade com a mão a fim de enxergar melhor. Pensei ter visto duas luzes amarelas, semelhantes aos olhos brilhantes do Elfo, o personagem de Running Scared. Contra todo o meu bom senso, esperei ouvir o som de passos distantes. Que loucura, pensei comigo.

Claro que, quando dei um passo à frente, as luzes desapareceram. Percebi que havia um pequeno objeto preto instalado entre as ripas escuras do telhado.

— A Argos esteve aqui dois dias atrás para remover as câmaras — expliquei. — A da garagem estava ali. — Apontei para o lado oposto do teto, ao lado de um soquete sem lâmpada.

— Poderia haver duas câmaras aqui e eles só tiraram uma?

— Eu...

O serviço fora realizado à luz do dia. Eu os observei o tempo inteiro. Será que tinham deixado passar uma segunda câmara?

— Não gosto disso, Peter. — Annie agarrou meu braço. — Vamos sair daqui.

Havia certa urgência na voz dela. Aceitei a sugestão na hora.

Ao sairmos da garagem, pensei ter escutado um clique. Em seguida, um flash espocou. Somente depois de me jogar sobre Annie e ambos tombarmos no chão, eu registrei o outro som. Uma explosão ensurdecedora. Cobri a cabeça com os braços para me proteger dos fragmentos que caíam. Gemi quando algo pontiagudo atingiu minhas costas. Pedaços de madeira despencaram ao nosso redor.

Foi estranho ficar deitado no chão; era como assistir a um filme mudo. Embora o ar estivesse carregado de fumaça, eu podia ver os carros passando devagar, silenciosamente. Um homem numa bicicleta parou. Ele pegou o celular. Esperava que estivesse ligando para a polícia. Virei-me para olhar os arredores. Era como se o telhado da garagem tivesse sido retirado e pisoteado. A porta estava em pedaços.

Annie tinha se esgueirado de debaixo de mim. Estava se sentando. Seus lábios se moviam, mas eu não ouvia nada. Abri a boca o máximo possível e tapei os ouvidos.

— Alô, alô, alô — repeti. Eu escutava apenas o eco de minha voz. — Você está bem? — perguntei a Annie. Ela fez que sim.

Ao me ajoelhar, senti uma dor aguda nas costas. Mal ouvi minha própria voz praguejar:

— Droga. O que é isso?

Estiquei o braço e toquei o ponto dolorido. Minha mão ficou suja de sangue.

Annie postou-se atrás de mim. Ergueu minha camisa e examinou as costas.

— Parece que você foi atingido por um pedaço de vidro — ela disse em meu ouvido. — Agüente firme.

De repente, senti outra dor mais aguda. Em seguida, vi Annie segurando um fragmento de vidro e observando-o como se fosse uma amostra de laboratório. Ela disse alguma coisa, mas por causa do barulho da explosão e da dor não consegui entender.

Annie recolheu a fralda de minha camisa e pressionou-a contra o ferimento. Em seguida segurou minha mão. Fechei os olhos.

Quando os abri novamente, a mão que segurava a minha tornara-se envelhecida, a pele era fina e manchada. Virei o rosto. Minha mãe estava a meu lado. Ela pressionava a camisa contra a ferida, tal qual Annie fizera. Perguntei-me quanto tempo faria que ela estava lá. Com a outra mão, minha mãe me mantinha imóvel no lugar, enquanto eu virava a cabeça para ver onde estava Annie. De súbito, senti frio. Uma gota de suor escorreu pelo meu rosto.

Uma multidão se aglomerara na calçada. Havia luzes piscando. As pessoas recuaram quando o carro dos bombeiros estacionou, seguido por viaturas da polícia e uma ambulância.

Agora um policial estava agachado a meu lado. Ele me fazia perguntas que eu não conseguia escutar. Minha mãe começou a falar com ele.

Pensei em meu carro, mas não tive coragem de olhar na direção da garagem. Dois paramédicos se aproximaram. Um deles examinou meu ferimento, deitou-me de lado e mediu minha pressão. O outro falava com minha mãe e fazia anotações numa prancheta. Tentei protestar. Não queria ir para o hospital. Ficaria bem, eu queria dizer-lhes. Mas não conseguia formular as palavras nem mover os lábios. Tentei me apoiar nos braços para levantar, mas meus músculos não obedeciam. Um dos paramédicos rasgou minha camisa e começou a limpar o ferimento. Mordi o lábio e contei até cem. Quando cheguei aos sessenta, ele começou a fazer o curativo.

Encharcado de suor e trêmulo de frio, vi a multidão observando a atividade dos bombeiros. Reconheci o dono da loja de conveniência, meu vizinho e a esposa. Havia muitos desconhecidos. E atrás de um deles, avistei um homem baixo de cabelos loiros. Senti uma carga elétrica percorrer meu corpo. Era Ralston Bridges?

Quando uma viatura apareceu, momentaneamente bloqueando minha visão, foi como se o som abafado da sirene viesse de dentro da minha cabeça. Tentei sentar, mas meus músculos ainda não respondiam. Depois que a viatura passou, vi o homem loiro no mesmo lugar. Então percebi que ele tinha uma bicicleta e carregava uma mochila nas costas. Era um rapaz de seus vinte e poucos anos. Um desconhecido.

ALGUÉM ARMOU UMA BOMBA PARA NÓS!

O slogan surgiu em minha mente. Eram os dizeres da camiseta que Jeff Gratzenberg usava quando fui à casa dele. Jeff mencionou que possuía uma coleção de camisetas como aquela. Onde eu vira uma camiseta preta com um slogan desses?

De repente lembrei-me da pilha de roupas limpas na lavanderia de Nick Babikian, que eu havia derrubado. A peça no topo da pilha era uma camiseta preta. Ocorreu-me então que eu nunca vira Nick usar camiseta. Ele sempre usava camisa de colarinho. Por outro lado, as camisetas eram o uniforme de Gratzenberg.

Recordei-me de ter reparado nos dizeres da camiseta. Eu vi apenas parte da frase: NOS PERTENCE. Gratzenberg dissera possuir uma coleção de camisetas, confeccionadas para a publicidade de games antigos.

— ZeroWing — murmurei o nome que surgiu do nada.

Fechei os olhos. Vi Jeffrey Gratzenberg entregando o suéter branco a Lisa. Ou seria preto? Não, o suéter era preto em meu sonho. Era esse o detalhe que tinha me deixado intrigado.

Seria aquela camiseta que Gratzenberg vestira para sua "entrevista de emprego"? Teria ele encontrado o velho inimigo, Nick, em vez de um novo patrão? Por que pegar a camiseta? Um troféu? E por que lavá-la? Talvez para impedir que a polícia identificasse o corpo, caso fosse encontrado.

Se Nick tivesse deixado as roupas cair no chão, eu não teria reparado. Foi o fato de ele se apressar a recolher as peças que chamou minha atenção. Típico do paranóico — acabar realizando seu maior temor.

Um bombeiro estava usando uma ferramenta gigante para abrir um hidrante, o mesmo hidrante que eu xingara por anos porque se localizava em frente à casa, justamente onde eu queria parar o carro. Ele retirou a rosca. Entre as sombras, atrás do bombeiro, avistei uma figura com um boné cobrindo-lhe os olhos. A constituição física lembrou-me a de Nick Babikian.

Tinha de ser Nick quem "nos armara" aquela bomba. Que sabia tudo a respeito de câmaras de segurança. Que plantara a bomba juntamente com uma câmara depois que os técnicos da Argos removeram as deles, para observar e detoná-la quando eu estivesse na garagem. O fato de ele não ter hesitado em apertar o botão comigo e Annie na garagem era uma indicação de quão desesperado estava. Se eu tivesse morrido, todas as suspeitas recairiam em Ralston Bridges.

Mas eu não morrera. E Nick Babikian, que não confiava em nada e em ninguém, passara pela rua para certificar-se. Eu tinha certeza de que era ele. Observando. Eu queria me sentar, clarear aquela névoa que me envolvia. Tentei me mexer, mas um par de mãos fortes me segurou.

Agora os paramédicos me deitavam numa maca. Minha mãe estava perto, o olhar tenso de preocupação. A maca moveu-se em direção a uma das ambulâncias. Eu começava a ouvir vozes com mais clareza.

— Estamos a caminho — disse um dos paramédicos. — Possível hemorragia interna. Choque, perfuração cutânea.

Nick não iria parar agora. Eu tinha de pegá-lo. As portas da ambulância surgiram diante de mim. Aquele era o último lugar onde eu queria estar. Tentei enrijecer os músculos da perna, flexionar os joelhos. O paramédico que me segurava gritou algo para o companheiro e entrou no veículo.

Um estrondo reverberou na rua quando o telhado desabou. Visualizei mentalmente meu carro, agora transformado em sucata. Não significava nada para mim. Era uma posse, um objeto que não importava.

Olhei para o local onde eu vira Nick. Ele havia sumido. Vasculhei a multidão, à procura do boné de beisebol e dos olhos cobertos até que as portas da ambulância se fecharam, bloqueando minha visão.

 

Vinte e um pontos. Pontos na lateral. Pontos no tempo certo. Minha mente devaneava por causa do Demerol, enquanto o médico do pronto-socorro dava o último ponto. Eu mal escutei o ruído da tesoura quando ele cortou a linha. Mas, pelo menos, ouvi alguma coisa. E começava a escutar os sons característicos do pronto-socorro. Parte de minhas costas estava anestesiada pela novocaína que aplicaram. Annie estava comigo.

— Acho que vi Nick no meio da multidão, depois da explosão — falei.

Contei a ela sobre a camiseta com letras brancas que eu vira na lavanderia. NOS PERTENCE foi tudo que pude ver. E supunha que era de Gratzenberg.

Ela se lembrou na mesma hora.

— É o slogan de um game de computador, já ultrapassado. "Toda a sua base nos pertence". Acha que foi ele quem deu sumiço em Gratzenberg?

— Acho, sim. Ele saberia que tipo de anúncio atrairia a atenção de Jeff. Então, quando o garoto apareceu... — Eu olhei pela janela para as torres de transmissão de ondas de rádio que se elevavam a distância.

— O que foi?                                        

— Não sei. Mas não é coisa boa.

— Nick matou Lisa?

— Sim.

— E tentou incriminar Teitlebaum?

— Quanto a isso, não tenho certeza — admiti. Pelo menos, aquela morte eu conseguira evitar.

— Você não é barrigudo — Annie disse.

Annie foi direto ao ponto. Também me incomodara a declaração da vizinha de que um homem "barrigudo" vagara pela casa de Teitlebaum depois que a polícia se foi e antes de eu encontrá-lo quase asfixiado.

Se não era de mim que ela falara, então, de quem fora?

— Nick também não é barrigudo — comentei. Annie me olhou.

— Ele estava preso quando Teitlebaum tentou se matar.

— Talvez não tenha existido nenhum barrigudo. Ou talvez ela tenha pensado que o homem era barrigudo. Os depoimentos das testemunhas oculares são extremamente inexatos. Mas...

— Mas — Annie concordou.

— Até agora, foi pelos motivos mais antigos do mundo: ciúme e vingança. Um paranóico descobre que a esposa está grávida. Sabe que ele não é o pai. Ele a mata e forja a prova para incriminar o rival. Teitlebaum. Percebe que pegou o homem errado. Então vai atrás do segundo candidato. Gratzenberg. Nick acha que todos os homens estavam interessados em Lisa.

— E estavam?

— Alguém estava. Ela engravidou.

— Talvez Gratzenberg seja o pai. Não me parecia plausível.

— Nick achou isso. Annie assentiu.

— Então, ele matou Gratzenberg. E tentou nos matar.

— E o que parece.

Annie saiu por um instante para o corredor. Ela prometera ligar para minha mãe a fim de dar-lhe notícias minhas. Ela voltou parecendo preocupada.

— Ninguém atende — Annie me disse. — Talvez ela ainda esteja falando com os policias. — O relógio na parede indicava mais de meia-noite.

Trinta minutos depois, minha mãe continuava a não atender o telefone. Depois de assinar o último documento do plano de saúde, Annie e eu nos preparamos para ir a Middlesex County Courthouse, onde Boley nos esperava. Peguei meus pertences. Num ato reflexo, verifiquei meu bip. Estava piscando. Não reconheci o número.

Fiz a ligação enquanto Annie dirigia. O telefone tocou uma vez. Duas. Então, alguém atendeu. Houve uma pausa.

— Peter?

Minha audição não estava cem por cento ainda, mas eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Era minha mãe.

— Mãe? Onde você está... — comecei.

— Cale a boca e preste atenção. — Agora era a voz de um homem. Era difícil escutar, especialmente com o ruído do motor do carro. Pedi a Annie que parasse.

Segurei o telefone de forma a nós dois escutarmos.

— É Nick. Sua mãe está comigo. Precisamos conversar.

— Que diabo...

— Eu disse cale a boca e escute! — ele gritou. Em seguida, baixou o tom de voz. — Não chame a polícia. Prometo que, se vier sozinho, a probabilidade de você e aqueles que você ama saírem vivos será considerável. Tal estimativa cairá para zero se você contatar alguém. E sei que não preciso lhe explicar o caminho.

— Onde você está?

— Em casa. E não banque o espertinho. Traga a srta. Squires com você.

— Deixe-me falar com minha mãe — eu disse, mas Nick já desligava.

O celular voou de minha mão quando Annie acelerou e fez a curva, cantando os pneus. Ela entrou a toda velocidade na Memorial Drive. Atravessamos a ponte da Western Avenue e um sinal vermelho. Annie parou um instante só para ter certeza de que ninguém nos seguia e depois continuou.

Relembrei meu primeiro contato com Nick Babikian. A mensagem do bip. Novamente um número desconhecido no visor. Estou preocupado com ele, Chip dissera. Uma declaração incompleta.

Finalmente, chegamos a Pike. Inclinei-me para frente e tentei dominar o medo que parecia fazer um nó crescer em minha garganta. Minha mente fervilhava de perguntas. Teria ele realmente levado minha mãe para ali? Por quê? Eu podia confiar em que ele não a machucaria? Por que precisara seqüestrá-la a fim de conversar comigo? Eu deveria ter chamado a polícia? Seria uma cilada? E se fosse uma emboscada...

Tentei reprimir minha imaginação fértil. Nick devia estar em casa, disse a mim mesmo. E minha mãe também devia estar lá, intacta — isso se o pavor não a matasse. Com todos os meus diplomas e a tão maravilhosa especialidade em comportamento criminal, como não vi que isso estava acontecendo?

— Droga — Annie praguejou. Havia obras na pista e tivemos de reduzir a velocidade para passar. Holofotes gigantescos iluminavam uma escavadeira que depositava sua carga na caçamba de um caminhão. — Com todo esse equipamento, eles não conseguem tapar esse buraco para podermos circular.

Minha mãe sempre reclamava dessas obras quando passávamos pelo centro da cidade, a pé ou de carro. Perguntei-me o que ela estaria fazendo agora. Eu esperava que estivesse rezando para ter forças.

— Sua mãe é muito inteligente — Annie comentou, lendo meus pensamentos. — Ela tem jeito para lidar com as pessoas.

Já passava de uma hora. Por que havia fila no pedágio? Annie desviou e acelerou pela faixa SEM PARAR. O jipe trepidou ao subir a rampa da saída 128. Enfim, o tráfego começava a fluir.

O ar dentro do carro tornava-se mais denso à medida que nos aproximávamos de Weston. Abri a janela. Annie saiu da rampa e acelerou novamente.

Ela soltou uma risada cansada.

— O cara é completamente paranóico. E, de repente, ele acerta. Alguém está dando em cima de sua mulher. Se não tivesse sido tão paranóico, tentando controlar cada movimento da esposa, talvez ela não precisasse procurar um amante.

Esse era o aspecto traiçoeiro da paranóia — o poder de moldar a realidade de acordo com os próprios delírios.

— Se você acreditar que está rodeada de assassinos, acabará realmente rodeada de assassinos — expliquei.

— O que ele vai fazer agora?

Pensei em Nick, em seus olhos constantemente atentos sob a aba do boné. Como o Elfo em Running Scared, sua mente estava sempre antecipando, traçando esquemas, defendendo-se. Ele me surpreendera uma vez. Isso não aconteceria de novo.          

— Ele passará para outro nível. Agora a questão é sobreviver. Ele apenas aparenta estar fora de controle. Deve haver um plano.

Enfim, estávamos na avenida que levava a Weston. Annie virou e começou a subir a colina. A rua estava escura, silenciosa.

— Por que não fazemos o resto a pé? — ela sugeriu, ao parar no fim da rua. — Assim, teremos tempo de ver do que se trata.

Ela estacionou o carro e apagou os faróis. A casa de Nick estava entre as árvores. Caminhamos pela calçada, onde havia grama para abafar o som de nossos passos. Os portões estavam abertos. Uma brisa suave sacudia as folhas. Atravessamos o agrupamento de árvores.

A casa continuava idêntica à primeira noite em que estivemos lá. Inofensiva somente do lado de fora. Os holofotes dos cantos do telhado iluminavam a frente e a alameda de tijolos da casa. As luzes do interior estavam visíveis através das janelas estreitas logo abaixo da linha do telhado.

Paramos sob as sombras. A porta da frente estava aberta. Havia luz no hall de entrada. Tentei localizar as câmaras, mas pareciam muito bem camufladas. Nick nos aguardava. Estaria nos observando do porão? Teria preparado outra explosão? Descartei a possibilidade. Ele estava com minha mãe, e o convite para entrar não era opcional.

— Tem certeza de que não quer que eu me esconda? — Annie perguntou. — Pode dizer que não estávamos juntos.

— Eu...

Eu não suportaria perder Annie, se tudo acabasse mal. Tampouco podia subestimar Nick. Ele sabia que Annie e eu estaríamos juntos. Eu sairia perdendo se tentasse convencê-lo do contrário.

— Não. Vamos entrar juntos.

Respirei fundo, enchendo meus pulmões com o ar fresco da noite. O ferimento nas costas ardeu quando expandi o peito. Lembrei-me de que somente os mortos não sentiam dor.

Saímos das sombras e adentramos a claridade dos holofotes. Se Nick estivesse assistindo, eu queria parecer calmo. Soltei os braços para disfarçar a tensão nos ombros e pescoço. Agora mais próximo, pude ver a câmara de segurança montada atrás da luz da entrada.

Chegamos à porta.

— Nick? — chamei. Eu não tinha a menor intenção de surpreendê-lo. — Mãe? Você está aqui?

Entrei na casa com o coração em disparada. Não houve explosão. Annie me seguia. Tudo que eu podia ouvir era o som de uma televisão em algum lugar da casa. Provavelmente era a tevê da sra. Babikian.

— Olá! — chamei de novo, ao adentrar a sala de estar. Nick estava sentado no sofá. Seus olhos brilhavam como os de um maníaco. Minha mãe encontrava-se ao lado dele, sentada com a coluna ereta e as pernas cruzadas na altura dos tornozelos. Ela me olhou e, de propósito, desviou o olhar para as mãos de Nick. Ele segurava um objeto do tamanho de uma maçã. Havia uma argola de metal no dedo indicador. Meu estômago se contraiu. Embora eu nunca tivesse visto uma, aquilo me parecia uma granada de mão. Olhei para Annie. Ela também encarava o dispositivo.

— Não tenho a intenção de usá-la — Nick declarou. As máscaras me vigiavam atrás dele, penduradas na parede. Eu quase podia ouvir o diabo vermelho zombar de mim atrás daquele sorriso de escárnio, e os rostos das máscaras de carnaval rindo. O odor fétido parecia transpirar das máscaras de penas.

Nick abriu a mão.                            

— É apenas uma segurança.

— Você está bem, mãe? — perguntei.

— Estou, Petey. — A voz soou surpreendentemente forte. Pela primeira vez, não me importei de ela me chamar pelo apelido de infância. Minha mãe olhou para a galeria de máscaras. Em seguida encarou Nick com ar de contrariedade. — Podia ser pior.

— Você chamou a polícia? — Nick perguntou. — Não quero a porra da polícia nesta casa! Não até eu conseguir o que quero.

— O que você quer, afinal? — perguntei. Nick ignorou a pergunta.

— Sentem-se — ele disse.

Annie acomodou-se numa cadeira, e eu me aproximei de outra cadeira.

— Não. Primeiro diminua a luz.

Encontrei o interruptor na parede. Puxei-o até que a sala ficasse a meia-luz. Então, sentei-me.

Nick recostou nas almofadas do sofá, mas eu sabia que ele não estava relaxado. O dedo indicador brincava com o anel da granada. Isso me deixava nervoso.

— Sei que é o fim — Nick disse com a voz rouca. — Pensei que tivesse tudo planejado. Mas não adianta. É melhor me entregar a vê-los atrás de mim como uma matilha de cães. — Ele parecia angariar forças enquanto falava. — E vou me entregar. Mas não posso fazer isso antes de saber que minha mãe será bem cuidada.

Minha mãe o olhou. Aquilo era algo que ela não esperava escutar.

— Tenho muito dinheiro — ele prosseguiu. — E, é claro — Nick cerrou os dentes —, nenhum herdeiro. — Ele me encarou. — Quero que você prometa fazer tudo que estiver a seu alcance para que minha mãe seja bem cuidada.

— Pelo amor de Deus, por que eu?

— Eu... — Nick começou.

— E quanto à mãe de Jeffrey Gratzenberg? — minha mãe perguntou. Nick a encarou como se ela fosse uma das máscaras que, de repente, criara vida. — Dora passa as noites em claro, certa de que a polícia baterá à porta, dizendo que acharam seu filho. Vivo? Morto? Ela precisa saber. Nick engoliu em seco.

— Ele não está vivo.

Minha mãe pareceu sucumbir ao assimilar a notícia.

— Não lhe bastou tirar o sustento do rapaz? Destruir sua reputação? — ela perguntou, exaltada.

— Pensei que ele fosse o pai do bebê de Lisa — Nick argumentou. — Ele negou. Eu precisava ter certeza.

Então eu entendi por que Nick resolvera submeter-se ao exame de DNA. Não era dele o DNA que fora analisado no laboratório. Era de Gratzenberg. Por isso ele ficara tão transtornado quando o resultado dera negativo.

Por isso ele adiara a ida a Westbrook para buscar a mãe. Ele estivera ocupado com Gratzenberg. Atraíra o pobre garoto a uma emboscada com a promessa de um emprego. Matara-o. Escondera o corpo. Teria ele tirado a amostra de DNA antes de matá-lo? Isso nem sequer importava mais.

— Você o matou, mas Jeff não era o pai — eu disse. — Tampouco Teitlebaum é o pai.

— Não fiz nada com Teitlebaum — Nick afirmou. — Ele tentou se matar sozinho.

— E você acha que enterrar, meu Deus, partes de sua mulher no jardim do homem não contribuiu para esse ato de desespero?

— Ele estava apaixonado por Lisa — Nick disse com frieza. — Você nunca os viu juntos. Eu vi.

— Como também a viu com Jeff.

— Você mesmo assistiu ao vídeo. Ele veio aqui, ele a tocou.

— Estava longe de ser um ato sexual. Ele era apenas um garotão. Gostava dela, só isso.          

Não havia nenhum sinal de emoção no rosto de Nick.

— Ele não tinha de gostar dela.

— Nicky? Nicky? — Era a voz da sra. Babikian. Ela apareceu no topo da escada e espiou a sala de estar. — Nicky?

Agarrada à bolsa e usando saia e blusa rosa, parecia pronta para ir às compras. Exceto pelos pés descalços.

— Estou aqui, mãe.

A sra. Babikian desceu. Ela encarou Nick e depois minha mãe, que estava sentada ao lado dele.

— Rose? — ela perguntou.                                    

— Rose morreu há oito anos — Nick informou.

— Nicky está bem aqui — minha mãe disse.

Ela tocou a mão que segurava a granada. Nick escondeu-a sob a almofada do sofá. A sra. Babikian o examinou.

— Você não se parece com meu pequeno Nicky.

— Mãe... — A voz soou exasperada. Um dos aspectos tristes do Alzheimer era que a vítima se lembrava dos entes queridos como estes eram no passado, e não no presente. — Não sou mais criança. Eu cresci.

— Nicky? — Ela se aproximou e tocou-lhe o rosto, depois o colarinho da camisa.

— Sou eu mesmo. Nós a acordamos?              

Ela parecia confusa.                                        

— Quero sair — a sra. Babikian disse a uma das máscaras, a que possuía penas vermelhas e pretas no topo.

— Qual é o nome de sua mãe? — minha mãe perguntou a Nick.

— Nairi.

Minha mãe se levantou e foi até a sra. Babikian, que ainda conversava com a máscara, balbuciando frases fragmentadas e palavras irreconhecíveis.

— Nairi? — Minha mãe segurou-lhe o braço. A sra. Babikian parou de balbuciar e olhou para minha mãe. — Você conheceu Rose?  

Um sorriso iluminou o rosto da sra. Babikian. Ela voltou a olhar a máscara na parede. Depois virou-se para minha mãe. E então olhou a bolsa que segurava.

— Vamos sair?

— Boa idéia. Vamos dar um passeio? — minha mãe sugeriu.

Nick começou a se levantar quando minha mãe guiou a sra. Babikian em direção ao jardim. Ele parecia querer dizer alguma coisa que as impedisse. Mas não o fez. Minha mãe destrancou a porta e saiu, conduzindo a mãe de Nick.

Ele se jogou no sofá e apoiou a cabeça nas mãos.

— Entende por que não posso me entregar, sem antes garantir que ela seja bem cuidada?

Nick pegou um envelope que estava na mesa de centro. Tirou alguns documentos e os espalhou sobre o tampo de vidro.

— Há duas coisas. Uma procuração...            

— Uma procuração para quê? — perguntei.

— Para que você tenha acesso ao dinheiro que reservei para minha mãe.

— Eu? Por que não escolhe outra pessoa... — comecei. Mas eu já sabia a resposta. Era a paranóia mais uma vez.

Ele não conseguia confiar em alguém por tempo suficiente para criar uma amizade sólida. A tão falada amizade com Chip sobrevivera porque nunca tiveram um relacionamento de verdade.

— As enfermeiras da casa de repouso me falaram de você. Contaram sobre o trabalho que você já realizou com portadores de Alzheimer. Você sabe o que minha mãe precisa e sabe onde ela pode conseguir.

— Agora sou o escolhido? Você tenta me explodir em minha garagem, fracassa, e depois resolve que sou o único que pode cuidar de sua mãe?

Ele sorriu.                                            

— Faço planos para todas as eventualidades.

Era o fim do jogo. Nenhum dos jogadores sobrevivera àquele nível. Quando todas as opções terminaram, quando esgotaram-se as munições, a única maneira de vencer seria salvando os reféns.

— E o que mais há no envelope?

— Uma confissão. Vou assinar uma via, e você a outra. — Nick tirou uma caneta do bolso e a ofereceu a mim.

Olhei os papéis sobre a mesa.

— E se não funcionar?

— Há outro final. — Ele enfiou a mão sob a almofada do sofá. — Mas ninguém gosta desse jogo. — Ele passou da calma para a perplexidade. — Merda — disse, jogando as almofadas do sofá no chão. — Onde está...

Todos nós olhamos para fora. Minha mãe caminhava, de braço dado, ao redor da piscina com a sra. Babikian, ambas entretidas numa animada conversa.

Nick correu para fora. Annie e eu também. Ele acendeu as luzes externas. Os holofotes do canto da casa iluminaram as duas senhoras. A água da piscina tornou-se azulada. Lá no fundo, perto do filtro, havia um pequeno objeto escuro. A granada.

Foi a voz da sra. Babikian que rompeu o silêncio.

— Meus pais moravam em Erzurum.

— Mãe, não... — Nick gemeu.

A sra. Babikian fitou o espaço, alheia ao apelo do filho.

— Os turcos invadiram a casa deles. — A voz soava melodiosa. — Os soldados tinham olhos vazios, rostos que pareciam máscaras.

— Oh, Deus — Nick murmurou, encostando na parede da casa. — De novo, não, por favor...

— Eles pegaram minha mãe e a obrigaram a segui-los. Amarraram uns aos outros com cordas. Estava nevando. Minha avó... — A voz falhou e pareceu flutuar sobre a piscina.

— Não! — Nick gritou.

— Minha avó — a sra. Babikian sussurrou. Nick sacudia a cabeça.

— Minha avó... — ela repetiu, dessa vez mais alto. Ele olhou para a mãe. Ela estendeu-lhe as mãos, como se implorasse por uma chance. Nick aproximou-se e segurou-lhe as mãos.

— Minha avó — ele retomou a narrativa — foi levada para o pátio. Eles a arrastaram e a jogaram no chão.

A sra. Babikian escutava e murmurava palavras incompreensíveis.

— Ela estava grávida — Nick prosseguiu. — Os soldados se olharam. Um deles perguntou: "É menino ou menina?". Parecia um jogo de adivinhação.

— Menin, menin... — A sra. Babikian entoou.

Era o mesmo som que eu a tinha ouvido produzir. Menino ou menina?

— Então, um deles cortou a barriga dela — Nick continuou, sem demonstrar horror ao relatar a atrocidade. — E puxou o bebê para fora. Jogou-o contra a parede da igreja e gritou: "É menino!"

A última palavra foi um berro na escuridão. A sra. Babikian olhou para cima, como se visse a palavra espiralando no céu.

— Menino... — Nick sussurrou. Uma lágrima rolou sobre seu rosto. — Era um menino.

A sra. Babikian apenas assentiu.

 

Nick e eu nos sentamos nos degraus dos fundos da casa, à espera da polícia. Concordei em garantir que sua mãe obtivesse os cuidados necessários, e ele assinou a confissão.

— Lisa queria se separar de mim — Nick me contou. — Não me amava mais. — Ele fitou as árvores que rodeavam a propriedade. — Disse que não adiantaria conversarmos. Estava grávida de outro homem. Disse que, se eu a amasse, eu a deixaria ir. — Nick meneou a cabeça. — Eu não podia fazer isso.

Permaneci sentado, olhando para baixo, sem nada dizer. Imaginei por que ele me contava tudo aquilo. Era quase um relato, ao pé da letra, de sua confissão no documento.

— Nós brigamos. Eu estava desesperado. Peguei o atiçador de brasas da lareira. Eu jamais seria capaz de machucar Lisa, mas ela não sabia disso. Ela gritou e tentou arrancar o atiçador de minhas mãos. Foi quando minha mãe entrou. Ela nos viu lutando e gritando.

Nick torcia as mãos sem parar.

— Quando o atiçador tombou no chão e Lisa o pegou, minha mãe deve ter pensado que Lisa iria me atacar. Ela foi para cima de Lisa. Em meio à confusão, Lisa desequilibrou-se e, ao cair, bateu a cabeça no canto da mesa de centro.

— Por que não chamou uma ambulância? — perguntei. — Você poderia ter explicado que foi um acidente.

Nick começou a dizer algo e hesitou.

— Talvez ela não estivesse morta — sugeri.  

— Pensei que estivesse. Eu... não sei.

— Então, você a deixou lá?

— Preparei o desjejum para minha mãe — Nick disse. — Então, fui até Lisa. Peguei o atiçador... — Ele fechou os olhos.

— E a espancou.              

— Uma vez. Duas vezes. — Ele estremeceu. — Eu ouvia aquela voz em minha cabeça. Menino ou menina? Menino ou menina? Carreguei-a até a piscina. Foi lá que a cortei. O bebê era tão pequenino...

Nick juntou as duas mãos, como se o feto pudesse caber dentro delas. Ele me olhou. Achei que estava determinando minha reação.

— Em seguida, tomei um banho e troquei de roupa. Levei minha mãe à casa de repouso que eu via todos os dias a caminho do trabalho. Depois disso, fui à residência de Teitlebaum e enterrei o bebê deles. Ele roubou Lisa de mim. Eu tinha de fazer parecer que ele matara Lisa.

— Então você voltou para casa e ligou para Chip? Ele assentiu.

— E quanto às galochas?

— As galochas? — A princípio, ele pareceu confuso.

— As botas de Teitlebaum.

— Eu... — Nick pigarreou. — Vi as galochas enquanto enterrava o feto. Foi quando tive a idéia. Seria mais uma prova para a polícia encontrar. Levei as botas para casa, falsifiquei as pegadas e as devolvi.

Eu não disse nada. Duas viagens de ida e volta a Newton? Caberia aos especialistas forenses determinar se houvera ou não tempo para tanto. Olhei para o vapor na superfície da piscina. Custava uma pequena fortuna manter a água aquecida em pleno mês de maio, quando quase ninguém na Nova Inglaterra costumava nadar. Teria ele acionado o aquecedor para deliberadamente confundir a hora da morte?

— E por que a máscara? — perguntei.

Uma sombra de satisfação cruzou o rosto de Nick. Era uma pergunta para a qual estava preparado.

— Eu não conseguiria cortá-la. Mas tinha de fazê-lo. Então, cobri seu rosto.

A explicação combinava com o que Teitlebaum dissera a respeito de Nick não conseguir fazer amor com a esposa a menos que ela usasse uma máscara. A incapacidade de ter um contato íntimo com ela sem lhe cobrir o rosto era uma conseqüência de sua patologia. Nunca considerei a mutilação uma forma de intimidade física, mas supunha que poderia ser.

Então fiz a pergunta que vinha me incomodando.

— Por que escolheu Teitlebaum?

— Escolhi? — Nick parece verdadeiramente surpreso. -— Lisa o escolheu.

— É mesmo?

— Ora, você acha que partiria de mim a idéia de consultar um terapeuta? Foi ela quem quis.

Eu não tinha dúvidas de que Lisa desejava fazer terapia. Mas teria ela escolhido um profissional cuja paciente fora assassinada pelo marido? Ou simplesmente o escolhera sem saber de passado de Teitlebaum? Era coincidência demais para meu gosto.

— Mas... — eu me detive.                                  

— O que Nick estava tramando? Ao ensaiar sua história comigo, ele aparava as arestas antes de postar-se diante de um interrogatório real.

Parecia-me muito mais coerente pensar que, quando Lisa anunciara o desejo de fazer terapia, Nick percebera que o casamento estava por um fio. Então começara a planejar o assassinato. Colocara as peças em seus devidos lugares, tão cuidadosamente quanto desenhava seus jogos. Escolhera Teitlebaum justamente por causa da conexão com o caso Ely. E eu tinha quase certeza de que houvera tempo para apenas uma viagem a Newton — apenas para devolver as galochas. Se Nick pegara os botas antes do assassinato, isso sugeria planejamento e não um acidente seguido por um rompimento com a realidade.

Nick pesquisara a vida de Teitlebaum. Encontrou um terapeuta com um ponto fraco que ele podia explorar. Provavelmente uma estratégia que Nick utilizara antes. Encontrar uma fraqueza. Então lembrei-me do que ele dissera quando o vira em Bridgewater. Andei lendo a seu respeito. Você é o terapeuta cuja mulher foi assassinada, não é? Fora assim que Nick descobrira minha fraqueza? Ficara sabendo do assassinato de Kate pela Internet e depois explorara minha vulnerabilidade? Quanto do trabalho que eu imaginava ser de Ralston Bridges fora realizado por Nick Babikian?

Agora Nick queria me fazer acreditar que toda a tragédia começara como um acidente. Mas eu sabia que nada daquilo tinha sido acidental. Cada ação fora muito bem planejada. Não duvidava de que sentar a meu lado para esperar a polícia também havia sido planejado.

Nick me acusara de elaborar um esquema para que eu estivesse na casa dele quando recebesse o resultado do exame de DNA. Mas fora ele quem esquematizara tudo. Queria que eu estivesse lá quando minha garagem fosse invadida, quando meu bip tocasse. Parecia muito conveniente, a menos que tivesse sido premeditado. E, se fora premeditado, isso significava que Nick, e não Bridges, era responsável pela destruição de meu carro. Se ele era o responsável por destruir meu carro, o que dizer das entregas especiais? Ele estivera em minha sala no dia em que recebi o livro de meu irmão. Ele o vira secando no chão. Eu podia imaginá-lo entrando em meu consultório e encontrando-o vazio. Ele verificara cada detalhe. E, sim, Nick vasculhara o balde de papéis, do jeito que fazia com os cestos de seus funcionários a cada noite. Ele vira o papel pardo e o nome do remetente. Seria fácil reproduzir outro pacote semelhante ao de meu irmão, contendo a boneca de Annie.

Ouvimos o ronco de um motor e duas viaturas surgiram das sombras.

— E aqueles pacotes? Todos foram obra sua?

— Nem todos — ele respondeu, fitando os faróis. — Eu tinha de perturbá-lo de alguma maneira. Do contrário, você descobriria tudo antes de eu fazê-lo pagar.

— Quem?

Agora Nick parecia mesmo angustiado. Aquela era a lacuna. Após o detalhado planejamento, ele ainda não sabia quem era o pai do bebê de Lisa.

Depois que a polícia saiu, fui até a cozinha. Era o único lugar da casa onde eu podia sentir o toque de Lisa Babikian. As cortinas azuis e brancas. Uma meia dúzia de anjinhos de cerâmica, todos posicionados ao redor de um aglomerado de latas decoradas com cogumelos e elfos. O relógio em forma de gato, cujo rabo marcava os segundos. O que Nick teria feito com as fotos dos bebês que estavam afixadas na geladeira?, pensei.

Nick ainda via uma saída? Mesmo que se livrasse da acusação de homicídio culposo pela morte da mulher, seria difícil se livrar da acusação pelo assassinato de Gratzenberg. A polícia poderia comparar o DNA que Nick fornecera com uma amostra que a mãe de Gratzenberg poderia fornecer, como um fio de cabelo, e provar que eram o mesmo. Senão, a camiseta e a confissão seriam suficientes para abrir um processo. E pelo bem da sra. Gratzenberg, eu esperava que a polícia encontrasse o corpo de Jeff.

Uma pergunta permanecia: quem era o amante de Lisa? Aproximei-me da porta da lavanderia e examinei o calendário. Os compromissos de Lisa estavam marcados no mês de junho. Segunda-feira, lavanderia. Terça-feira, supermercado.

Quando?, perguntei-me, passando os dedos sobre os dias do mês. Quando Lisa escapulia para encontrar o amante?

As duas sessões com o dr. T pareciam os únicos momentos da semana em que Lisa não estivera sob a vigilância do marido. Por isso, Nick suspeitara de Teitlebaum.

Eu blasfemei comigo mesmo. Havia estado na casa de Richard, tinha verificado a agenda. Mas naquele momento eu não soubera o que procurar. Olhei o telefone. Teitlebaum já teria recebido alta? Provavelmente não.

Tracei a coluna das terças-feiras e depois a coluna das sextas. Se eu estivesse correto, Lisa fizera apenas uma sessão por semana com Teitlebaum. A outra oferecera-lhe o álibi de que necessitara para estar com o amante.

Mas qual delas? Continuei a examinar o calendário, almejando desvendar seus segredos. Voltei para o mês anterior. Em seguida, o outro. Encontrei a semana em janeiro, quando Lisa tivera a primeira consulta individual com Richard. Fora logo depois da invasão da empresa. Após Jeffrey Gratzenberg ser preso por arrombamento. Logo depois de Lisa descobrir que estava sendo espionada.

A primeira consulta fora numa sexta-feira. Não havia sessões às terças naquela semana. Ou na semana seguinte. Somente na última semana de fevereiro as sessões das terças-feiras foram acrescentadas. Terças. De fevereiro em diante.

A campainha tocou. Dirigi-me ao hall da frente. Minha mãe havia atendido a porta. Era a van da Fazenda Westbrook para buscar a sra. Babikian. Minha mãe fizera as malas dela. Após me garantir que estava bem, ela insistira em auxiliar a mãe de Nick.

— As transições — minha mãe dissera — são a parte mais difícil do envelhecimento. — Mais uma vez, percebi quanto conhecimento psicológico ela adquirira intuitivamente.

Depois que o pessoal de Westbrook se foi, mostrei o calendário a Annie e expliquei o que havia deduzido.

— Terças à noite — ela disse. O olhar que demonstrou dizia que Annie descobrira algo que eu não havia percebido.

— O que foi? — perguntei. Annie cerrou os lábios.

— Não vai me contar?

— Preciso ter certeza. Você disse que os arquivos de segurança estão lá embaixo? Vamos dar uma olhada neles.

Fomos ao porão de Nick. O computador estava ligado. Abri a gaveta de CDs.

— O que você acha que essas siglas significam? — perguntei a Annie, indicando os dizeres das etiquetas que separavam os CDs: PF, JP, SE, 01, 02.

— Cada uma das câmaras? — ela palpitou. — Porta da frente. Jardim da piscina.

Apontei a terceira sigla.                  

— Sala de estar. — Vasculhei os CDs. Estavam organizados por datas. Qual deles era ao que Nick assistia quando o encontrei no porão? A imagem mostrara Gratzenberg devolvendo o suéter de Lisa. Tinha de ser antes do arrombamento, antes de ele ser preso. Peguei o que datava do mês de janeiro.

Tirei o CD da caixa, inseri o disco no drive e percorri os arquivos. Estavam numerados em seqüência. Cliquei o primeiro. Uma janela com um painel de controle apareceu, muito semelhante ao videocassete que eu tinha. Cliquei e o vídeo começou.

Era a sala de estar de Nick. Havia uma data no canto da tela. Dia 1 de janeiro. A sala estava escura. Lembrei-me de como Nick usara a barra de ferramentas para avançar a imagem. Tentei. A sala ficou clara. Observei Nick, Lisa e a sra. Babikian movendo-se rapidamente. Houve longos períodos em que ninguém apareceu. Depois a escuridão novamente. Então, a luz. Pessoas entrando e saindo da sala. Lisa sentada com Nick.

Quando o arquivo terminou, abri o seguinte. Mais dias se passaram. Então, Jeff Gratzenberg apareceu.

Diminuí a velocidade da imagem. Era dia 12 de janeiro. Tratava-se da mesma cena que eu vira: Jeff Gratzenberg conversando com Lisa, entregando-lhe um suéter. O abraço rápido. Em seguida, a sala deserta.

Como Nick, passei rapidamente pelo resto das imagens. Então, tirei aquele CD e inseri outro que datava do final de janeiro e início de fevereiro.

Comecei devagar e depois acelerei. Pessoas entravam e saíam da sala, o dia tornava-se noite e vice-versa. Nick. Lisa de roupão. Lisa usando um conjunto de malha azul e carregando uma cesta de roupas. A sra. Babikian e Lisa. Lisa no sofá. Então, percebi algo e voltei a imagem. Uma sombra no assoalho.

Lisa estava sentada no sofá. Uma figura estava em pé, de costas para a câmara, visível apenas no canto da tela. Lisa falava e ouvia. Ela sorriu. Foi a primeira vez que a vi sorrir numa imagem. Ela falou mais um pouco. Na imagem seguinte a sala estava deserta.

No dia seguinte, a figura estava lá outra vez, só que ainda mais longe da câmara e mais perto de Lisa. Parecia um homem de terno. A maior parte de suas costas estava na tela. De acordo com os cliques da câmara, Lisa descrevera uma volta de 360 graus, observando as paredes da sala, uma por uma. De repente a imagem ficou escura e clareou logo em seguida para mostrar Lisa fitando os olhos da máscara. Ela recuou, levando as mãos aos lábios. Mais um clique e a sala ficou vazia.

Repassei a seqüência. Era dia 21 de janeiro.

— Droga — Annie murmurou. — Boley devia saber que a casa estava repleta de câmaras.

Em nenhum momento ele olhara diretamente para a câmara. Sem dúvida, sabia.

— Então foi Boley quem alertou Lisa acerca do sistema de segurança — concluí. — Quanto tempo depois disso ela confrontou Nick?

— Ela confrontou mesmo? — Annie questionou. Hesitei. Eu deduzira que Nick sabia, mas, pensando bem, eu não tivera motivo nenhum para chegar a tal conclusão. Teitlebaum sabia que Lisa estava ciente das câmaras. Talvez Nick não soubesse.

Tirei o CD e peguei outro. Dia 28 de fevereiro. Fora a primeira terça-feira em que, segundo o calendário, Lisa teria sessão. Nesse dia, Lisa não permanecera tempo suficiente na sala. Não havia muito a ver; por volta das seis horas ela trocara de roupa e soltara os cabelos.

— A primeira terça-feira à noite — eu disse.

— Noite do pôquer — disse uma voz atrás de nós. Annie e eu nos viramos. O detetive Boley estava à soleira da porta. Lembrei-me de que os amigos no bar o haviam cumprimentado após um longo tempo de ausência. Fora na primeira terça-feira após o assassinato de Lisa.

— Olá, Al — Annie o cumprimentou.

— Olá, Annie.

— Você sabia que acabaríamos descobrindo.

Boley parecia cansado, pálido. Se alguém o beliscasse, a pele talvez não voltasse à cor rosada. Ele exalava odor de bebida.

— Você era o amante de Lisa Babikian — afirmei, encaixando a última peça.

Boley não negou. Agora seu estranho comportamento fazia sentido. Por isso ficara tão transtornado na cena do crime. Por isso ficara tão abalado ao saber o que acontecera. O fato também explicava por que queria boicotar o exame de DNA. O DNA do feto não combinaria com nenhum dos suspeitos porque ele era o pai. Boley não encontrara o sistema de segurança logo no início porque precisava de tempo para destruir o vídeo, caso houvesse alguma evidência que o ligasse a Lisa. Provavelmente acreditava ter eliminado todos os dados ao massacrar o disco rígido. E quando contei-lhe acerca dos CDs, ele agira como se já soubesse.

— As últimas semanas foram difíceis de agüentar? — perguntei.

— Já tive piores — ele retrucou. Então, fitou a tela do computador. Lá estava a imagem congelada de Lisa Babikian, tal qual estivera em seu primeiro encontro com Boley. — Ele a tratava como uma criança. Comandava todas as vontades de Lisa. Ela nem sequer conseguia pensar sozinha.

— Falsificação de provas — eu disse.

— É verdade. — Boley deu de ombros.

— Para defender seu território? — Annie completou. Boley torceu o nariz.

— Pegou o disco rígido porque receava que ele pudesse mostrar cenas suspeitas entre você e Lisa — relatei. — Então, plantou-o na escrivaninha de Teitlebaum. Não ficou incomodado com o que fez?

— Pensei que ele fosse o assassino — Boley argumentou.

— E agora? — Annie perguntou.

Boley encarou-a.                              

— Caso encerrado.

— E você ganha os méritos por ter prendido mais um assassino?— Annie concluiu.                              

— É meu trabalho. — Boley tentou sorrir.

— Sim, é seu trabalho — Annie retrucou. — E preciso encontrar a menor distância entre dois pontos, custe o que custar. E o mundo está cheio de Lisas, não está? Jovens infelizes implorando pelo que você tem a oferecer.

— Esqueça tudo isso — Boley sugeriu.

— Cedo ou tarde, você vai cometer um erro — afirmei.

— Pegue sua hipocrisia e... — Boley começou.

— Você quase tropeçou dessa vez — eu o interrompi.

— E melhor tomar cuidado com quem você atinge. Todos sabem —Annie disse. Boley olhou para Annie e para mim. — Eles sabem. Seus amigos o estão encobrindo. Cedo ou tarde, você fará algo que eles não poderão fingir que não viram. E mal posso esperar para testemunhar isso.

Boley descartou Annie com um gesto.

— Você não tem nada contra mim.

Ele se virou e saiu. Annie e eu fomos atrás. Observamos quando Boley vagou pela cozinha. Parou em frente à geladeira e examinou a foto de Nick e Lisa; ela olhando para ele, e ele mirando a distância. Era assim que ambos tinham vivido a vida.

Boley voltou-se para a janela. Pegou um anjo de cerâmica do balcão. O objeto parecia deslocado naquela mão pesada. Ele o guardou no bolso.

Depois que Boley saiu, Annie pousou a mão em meu ombro.

— Viu? Você não é barrigudo.

— Acho que o homem que a vizinha descreveu era Boley -— deduzi. — Mas você já sabia disso, não?

 

Uma semana depois, a sra. Babikian já estava instalada na Fazenda Westbrook. Contratei um serviço de apoio geriátrico para monitorá-la. A polícia encontrou o corpo de Jeff Gratzenberg escondido num barril de plástico no depósito da Cyclops Productions. O resultado da autópsia ainda não fora divulgado, mas se cogitava morte por estrangulamento. Richard Teitlebaum estava em casa, recuperando-se. E havia um artigo a respeito do detetive da homicídios, Al Boley, no jornal — o investigador que desvendara o maior número de casos de assassinato na cidade.

Era meio-dia e eu tinha dado uma escapulida do trabalho. Annie concordara em remar comigo, e eu não queria dar-lhe tempo para mudar de idéia. Ela me ajudava a pegar o bote e os remos no Clube de Remo.

— Quero ver Nick Babikian envelhecer atrás das grades — ela desabafou. — Espero que os advogados dele não pensem que terão alguma chance alegando insanidade mental.

Colocamos o bote nos ombros e caminhamos em direção ao deque.

— Distúrbio delirante — comentei. — Uma coisa é você acreditar que é Maria, a mãe de Jesus. Outra é acreditar que o mundo o persegue. Não há dúvidas de que Nick sofre de delírios paranóicos. O júri acreditará que ele não teve controle sobre as próprias ações? Que a paranóia o compeliu a matar? Essa hipótese me parece remota. Principalmente em Massachusetts.

Nós descemos com o bote nos ombros.          

— Fico aliviado por não precisar depor.

Depois de detido, Nick ficara furioso quando Chip se afastara do caso.

— Você andou bem paranóico. Por algum tempo. Annie tinha razão. Eu assistira ao filme que o sr. Kuppel me recomendara, algumas noites atrás. O que me surpreendeu foi como me identifiquei com o personagem paranóico de Gene Hackman, Harry Caul. Como ele, eu nunca soubera se estava trabalhando para os mocinhos, que tentavam se defender de forças malignas, ou se havia sido contratado pelos bandidos, que usavam minhas habilidades para enredar pessoas inocentes. O bem e o mal eram mais ou menos indiscriminados, tinham os mesmos direitos e privilégios no sistema de justiça criminal. E tal qual Harry Caul, acabei conhecendo o lado traiçoeiro da paranóia. Ao fomentar minha ansiedade e paranóia, Nick me enfraquecera como adversário em potencial, uma pessoa a menos que poderia enxergar através da cuidadosa defesa que ele construíra. Eu entendia facilmente a incerteza que levara Harry Caul a desmantelar a própria casa, à procura de dispositivos de vigilância.

Quando devolvi a fita à minha mãe, ela tinha um pacote para mim. Eu, no mínimo, empalideci ao ver o papel pardo.

— Não se preocupe. São as gaitas de seu pai.

— Você as salvou?

— É claro — ela respondeu, como se fosse óbvio. — Mas não me preocupei muito com os cartões-postais de seu tio Louie.

Annie e eu paramos na extremidade da doca. Retiramos o bote dos ombros e o colocamos na água. O céu estava azul e quase não havia vento.

— Promete que não vou cair na água? — Annie perguntou, apreensiva.

O tráfego no rio estava tranqüilo. Somente algumas equipes praticavam. O horário de almoço era o melhor momento do dia para aprender a remar. Logo cedo ou no fim da tarde, o rio virava um caos por causa da quantidade de remadores.

— Só posso prometer que, se você cair, cairei com você.

— Por que não me sinto mais tranqüila com isso?

Annie olhou com certa desconfiança para o líquido opaco que chamávamos de água do rio. Ela segurava o bote, enquanto eu pegava os remos.                              

Descalcei os tênis.

— Segure firme — pedi e entrei no bote.

Ela me observou em silêncio enquanto eu encaixava os remos.

Voltei para a doca.

— Lição número um: como entrar no bote — eu disse. Annie me olhou, desconfiada. — Tire os sapatos e abaixe-se.

Annie fez o que pedi.

— Você está adorando isso, não está?

Eu sorri.                                                              

— Agora agarre os remos, entre e sente-se.

Segurei o bote. Annie entrou facilmente, como se houvesse feito isso a vida toda. Mas, tão logo se sentou, agarrou-se às extremidades quando o bote balançou na água.

— Certo. Encaixe os pés no fundo do bote e prenda-os.

— Como vou olhar para frente? — Annie perguntou ao prender as tiras de velcro.

— Não vai olhar para frente. Você está na popa, encarando a proa.

— Entendi. É como dançar.

— Depois que se acostumar, Ginger, eu a deixarei liderar. Prometo.

Abaixei-me e peguei os remos.

— Mantenha o bote perto da doca. Vou entrar.

— Droga — Annie murmurou, ao ver o bote afundar quando entrei.

Ajeitei meus pés e remei um pouco para nos afastarmos da doca.

Naquele instante, três equipes de oito remadores vieram em nossa direção. Annie gritou e paralisou. As equipes conseguiram desviar de nós, mas a última esbarrou na ponta de nossos remos.

— Desculpem — gritou o timoneiro. — Estão bem?

— Tudo bem — respondi.

— Certo — Annie disse. — Você pode me deixar aqui. Vou a pé.

— Não pode me abandonar agora. Além do mais, foi culpa dele. Estávamos na direção certa.

— E dizem que corrida de carros é perigoso — Annie resmungou.

Ignorei o comentário.

— Lição número dois: como remar.

Iniciei com os mesmos movimentos que ela realizara no tanque. Annie endireitou-se, nivelou as mãos, flexionou os joelhos e deu uma remada. Depois outra. Mantive meus remos sobre a superfície da água a fim de prover estabilidade. Nunca tinha visto alguém pegar o jeito tão rapidamente. Quando o bote começou a se mover, remei junto com ela. Deslizávamos com mais velocidade agora. Eu virava a cabeça a cada duas remadas para ter certeza de que nos movíamos em linha reta.

— Já estamos nos divertindo? — Annie perguntou. — Sinto que estou fazendo todo o trabalho e você só está dando ordens.

— E eu fiquei com o melhor visual. — Observei a curva das costas de Annie, o movimento dos músculos, os ombros brilhantes de suor. A remada dela era igual à minha em duração, quase em força. Era algo que eu soubera de antemão, sem saber que já sabia.

— Não foi tão ruim quanto imaginei — Annie admitiu quando chegamos em minha casa, uma hora depois.

Nenhum de nós havia almoçado. Estávamos na cozinha, desempacotando pão, queijo e salada que havíamos comprado no caminho. Os cabelos de Annie estavam molhados, e ela exalava o perfume do sabonete. Abri uma garrafa de vinho tinto. Annie servia a bebida enquanto eu pegava os pratos.

— Como alguém pode se tornar tão paranóico a ponto de moldar cada experiência? — Annie perguntou, ao tirar a rolha do saca-rolhas.

— Quando um dos membros da família vive uma experiência traumática ao extremo, como aconteceu com a avó de Nick durante o Holocausto armênio, ela pode resultar num tipo de psicose contagiosa. A experiência passa de pai para filho. A empatia serve como vetor para o distúrbio.

— De fato, Herr Doctor — Annie entoou.

— O que significa tudo isso?

Levamos os pratos e os copos à sala de estar. Annie sentou-se na poltrona reclinável e eu no sofá.

— Significa que, de certa forma, ele adquiriu isso da avó. A mãe dele, que não passou pelos horrores, comportava-se como se tivesse vivido tudo isso. Tivemos uma paciente, semanas atrás, que, após algumas doses de prednisona, começou a ter delírios. Para Nick, foi a dieta constante de medo irracional com a qual a avó e a mãe o alimentaram.

E por pouco não sobrara uma overdose para mim, também.

— Se ele odiava os turcos, por que agiu como um deles, matando a esposa e depois cortando-a daquele jeito? — Annie continuou.

— Identificação com o agressor — respondi, usando o termo técnico. — A família dele mal sobreviveu ao extermínio. Nick apanhou durante quase toda a infância. Identificar-se com o agressor é uma maneira de manter um sentido de si mesmo quando se é constantemente agredido física e psicologicamente. Quanto mais estresse você passa, mais adquire as características de seu agressor, de modo a utilizá-las para proteger suas defesas falhas.

— O que estressou Nick foi a moléstia da mãe. Também foi enredado pela mãe, e então o Alzheimer estimulou a paranóia que já estava acorrendo num domínio quase psicótico. As defesas psicóticas distorcem a realidade. Nick projetou os próprios medos no ambiente e os viu voltando para ele.

— Em seguida Nick descobre que Lisa o está abandonando. É uma afronta a seu ego que está muito frágil. Para ele, isso significa que não é um homem. Portanto, quem é a pessoa mais poderosa que conhece? O turco. Sua reação é identificar-se com o agressor de uma vida inteira.

— Então ele se torna seu pior inimigo — Annie concluiu.

— Literalmente.

Annie recostou-se na poltrona. Inclinou-se para frente para ajustar o assento e reclinou-se outra vez. Observei a cena boquiaberto.

— Foi você quem ajustou minha poltrona! Annie me olhou, surpresa.

— Agora é você quem está paranóico. Está vendo isso? — Ela apontou os controles da poltrona. — É aqui que você tem de mexer.

— Já tinha feito isso antes?

— Eu... eu... — Ela caiu na risada. Então percebeu que eu estava sério.

— Acho que sim. Talvez.

De súbito, lembrei-me de que Annie fora à minha casa após a primeira entrega especial. Nós abrimos uma garrafa de vinho. Ela se sentara na poltrona? Eu não tinha certeza. Era assim que funcionava. Algo ruim acontecia, deixando a pessoa vulnerável. Depois ela passava a interpretar pequenas e inesperadas mudanças no ambiente como ameaçadoras.

Corri até a cozinha. A rolha estava no balcão, mas o saca-rolhas não. Annie veio atrás de mim.

— Onde está o saca-rolhas? — perguntei.

— Eu o guardei.

Abri a gaveta onde geralmente o guardo. Não estava lá. Annie foi à gaveta do faqueiro de prata. Ele estava lá.

— E eu pensei... — comecei.                            

— Em que você pensou?        

— Depois da invasão, percebi que a inclinação da poltrona havia sido alterada. E que meu saca-rolhas estava na gaveta errada.

— E imaginou que alguém tinha invadido sua casa outra vez? — Annie perguntou. Assenti. — Mas era somente eu.

Ela voltou saltitante para a sala. Sentou-se na poltrona e a ajustou mais uma vez.

— Bem, acho que de certa forma sua casa está sendo invadida — Annie concluiu, por fim. — Não é hora de se acostumar com isso?

 

                                                                                G. H. Ephron  

 

 

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