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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GUARANI 4 / José de Alencar
O GUARANI 4 / José de Alencar

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GUARANI

 

QUARTA PARTE - A CATÁSTROFE

 

I ARREPENDIMENTO

 Quando Loredano afastou-se de João Feio que o acabava de ameaçar, chamou quatro companheiros em que mais confiava, e retirou-se com eles para a despensa.

 

Fechou a porta a fim de interceptar a comunicação com os aventureiros e poder tranqüilamente tratar o negocio que tinha em mente.

 

Nesse curto instante havia feito uma modificação no seu plano da véspera: as palavras de ameaça há pouco proferidas lhe revelaram que o descontentamento começava a lavrar. Ora, o italiano não era homem que recuasse diante de um obstáculo e deixasse roubarem-lhe a esperança, que nutria desde tanto tempo.

 

Resolveu fazer as coisas rapidamente e executar naquele mesmo dia o seu intento: seis homens fortes e destemidos bastavam para levar ao cabo a empresa que projetara.

 

Tendo fechado a porta, guiou os quatro aventureiros à sala que tocava com o oratório e onde Martim Vaz continuava a sua obra de demolição, minando a parede que os separava da família.

 

— Amigos, disse o italiano, estamos numa posição desesperada; não temos força para resistir aos selvagens, e mais dia menos dia havemos de sucumbir.

 

Os aventureiros abaixaram a cabeça e não responderam; sabiam que aquela era a triste verdade.

 

— A morte que nos espera é horrível; serviremos de pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana; nossos corpos sem sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais!...

 

A expressão do horror se pintou na fisionomia daqueles homens, que sentiram um calafrio percorrer-lhes os membros e penetrar até à medula dos ossos.

 

Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz sobre esses rostos decompostos:

 

— Tenho porém um meio de salvar-vos.

 

— Qual? perguntaram todos a uma voz.

 

— Esperai. Posso salvar-vos; mas isto não quer dizer que esteja disposto a fazê-lo.

 

— Por que razão?

 

— Por quê?... Porque todo o serviço tem o seu preço.

 

— Que exigis então? disse Martim Vaz.

 

— Exijo que me acompanheis, que me obedeçais cegamente, suceda o que suceder.

 

— Podeis ficar descansado, disse um dos aventureiros; eu respondo pelos meus companheiros.

 

— Sim! exclamaram os outros.

 

— Bem! Sabeis o que vamos fazer, já, neste momento?

 

— Não; mas vós nos direis.

 

— Escutai! Vamos acabar de demolir esta parede e atirá-la dentro; entrar nesta sala, e matar tudo quanto encontrarmos, menos uma pessoa.

 

— E essa pessoa...

 

— É a filha de D. Antônio de Mariz, Cecília. Se algum de vós deseja a outra, pode tomá-la; eu vo-la dou.

 

— E depois disso feito?

 

— Tomamos conta da casa; reunimos os nossos companheiros e atacamos os Aimorés.

 

— Mas isto não nos salvará, retrucou um dos aventureiros; há pouco dissestes que não temos força para resistir-lhes.

 

— Decerto! acudiu Loredano; não lhes resistiremos, mas nos salvaremos.

 

— Como? disseram os aventureiros desconfiados.

 

O italiano sorriu.

 

— Quando disse que atacaremos o inimigo, não falei claro; queria dizer que os outros o atacarão.

 

— Não vos entendo ainda; falai mais claro.

 

— Ai vai pois. Dividiremos os nossos homens em duas bandas; nós e mais alguns pertenceremos a uma que ficará sob a minha obediência.

 

— Até aqui vamos bem.

 

— Isto feito uma das bandas sairá da casa para fazer uma sortida enquanto os outros atacarão os selvagens do alto do rochedo, é um estratagema já velho e que deveis conhecer: meter o inimigo entre dois fogos.

 

— Adiante; continuai.

 

— Como a expedição de sair é a mais perigosa e arriscada, tomo-a sobre mim; vós me acompanhais e marchamos. Somente em lugar de marchar sobre o inimigo, marchamos sobre o mais próximo povoado.

 

— Oh! exclamaram os aventureiros.

 

— Sob pretexto de que os selvagens podem cortar-nos a entrada da casa por alguns dias, levamos provisão de viveres. Caminhamos sem parar, sem olhar atrás; e prometo-vos que nos salvaremos.

 

— Uma traição! gritou um dos aventureiros. Entregarmos nossos companheiros nas mãos dos inimigos!

 

— Que quereis? A morte de uns é necessária para a vida dos outros; este mundo é assim e não seremos nós que o havemos de emendar; andemos com ele.

 

— Nunca! Não faremos isso! É uma vilania!

 

— Bom, respondeu Loredano friamente, fazei o o que vos aprouver. Ficai; quando vos arrependerdes será tarde.

 

— Mas ouvi...

 

— Não; não conteis já comigo. Julguei que falava a homens a quem valesse salvar a vida; vejo que me enganei. Adeus.

 

— Se não fora uma traição...

 

— Que falais em traição!... replicou o italiano com arrogância. Dizei-me, credes vós que algum escapará daqui na posição em que nos achamos? Morreremos todos. Pois se assim é, mais vale que se salvem alguns.

 

Os aventureiros pareceram abalados por este argumento.

 

— Eles mesmos, continuou Loredano, a menos de serem egoístas, não terão o direito de se queixarem; e morrerão com a satisfação de que sua morte foi útil aos seus companheiros, e não estéril como deve ser se ficarmos todos de braços cruzados.

 

— Vá feito; tendes razões a que não se resiste. Contai conosco, acudiu um aventureiro.

 

— Contudo levarei sempre um remorso, disse outro.

 

— Faremos dizer uma missa por sua alma.

 

— Bem lembrado! respondeu o italiano.

 

Os aventureiros foram ajudar o seu companheiro na demolição surda da parede, e Loredano ficou só, retirado a um canto.

 

Por algum tempo acompanhou com a vista o trabalho dos cincos homens; depois tirou um largo cinto de escamas de aço que apertava o seu gibão.

 

Na parte interior desse cinto havia uma estreita abertura pela qual ele sacou um pergaminho dobrado ao comprido: era o famoso roteiro das minas de prata.

 

Revendo esse papel, todo o seu passado debuxou-se na sua memória, não para deixar-lhe o remorso, mas para excitá-lo a prosseguir em busca desse tesouro que lhe pertencia, e do qual não podia gozar.

 

Foi tirado da sua distração por um dos aventureiros, que se achegara para ele despercebido, e depois de olhar por muito tempo o papel, dirigiu-lhe a palavra:

 

— Não podemos derrubar a parede.

 

— Por quê? perguntou Loredano erguendo-se. Está segura?

 

— Não é isso, basta um empurrão; mas o oratório?

 

— Que tem o oratório?

 

— Que tem? Os santos, as sagradas imagens bentas não são coisas que se atire ao chão! Se tão danada tentação nos tomasse, pediríamos a Deus que nos livrasse dela.

 

Loredano desesperado dessa nova resistência, cuja força ele conhecia, passeava pela sala de uma ponta à outra.

 

— Estúpidos! murmurava ele. Basta um fragmento de madeira um pouco de argila para fazê-los recuar! E dizem que são homens! Animais sem inteligência, que nem sequer têm o instinto da conservação!...

 

Alguns momentos decorreram; os aventureiros parados esperavam a resolução do seu chefe.

 

— Tendes medo de tocar nos santos, disse Loredano avançando para eles; pois bem, serei eu que deitarei a parede abaixo. Continuai, e avisai-me quando for tempo.

 

Enquanto isto se passava, o resto dos aventureiros que ficara no alpendre ouvia a narração de João Feio, que lhes comunicava as revelações de mestre Nunes.

 

Quando eles souberam que Loredano era um frade que abjurara dos seus votos, ergueram-se furiosos, e quiseram procurá-lo e espedaçá-lo.

 

— Que ides fazer? gritou o aventureiro. Não é assim que ele deve acabar; a sua morte há de ser uma punição, uma terrível punição. Deixai-me arranjar isto.

 

— Para que mais demora? respondeu Vasco Afonso.

 

— Prometo-vos que não haverá demora; hoje mesmo será condenado; amanhã receberá o castigo de seus crimes.

 

— E por que não hoje?

 

— Deixemos-lhe o tempo de arrepender-se: é preciso que antes de morrer sinta o remorso do que praticou.

 

Os aventureiros decidiram por fim seguir este conselho, e esperaram que Loredano aparecesse para se apoderarem dele e o condenarem sumariamente.

 

Passou-se um bom espaço de tempo, e nada do italiano sair; era quase meio-dia.

 

Os aventureiros estavam desesperados de sede; a sua provisão de água e de vinho, já bastante diminuída depois do sitio dos selvagens, achava-se na despensa, cuja porta Loredano fechara por dentro.

 

Felizmente descobriram no quarto do italiano algumas garrafas de vinho, que beberam no meio de risadas e chacotas, fazendo brindes ao frade que iam dentro em pouco condenar à pena de morte.

 

No meio da hilaridade algumas palavras revelavam o arrependimento que começava a se apoderar deles; falavam de ir pedir perdão ao fidalgo, de se reunir de novo a ele, e ajudá-lo a bater o inimigo.

 

Se não fosse a vergonha da má ação que tinham praticado, correriam a lançar-se aos joelhos de D. Antônio de Mariz imediatamente; mas resolveram fazê-lo quando o principal autor da revolta tivesse recebido o castigo do seu crime.

 

Seria esse o seu primeiro titulo ao perdão que iam suplicar; seria mais a prova da sinceridade do seu arrependimento.

 

 II O SACRIFÍCIO

 Peri compreendera o gesto da índia; não fez porém o menor movimento para segui-la.

 

Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu.

 

Por sua vez a menina também compreendeu a expressão daquele sorriso e a resolução firme e inabalável que se lia na fronte serena do prisioneiro.

 

Insistiu por algum tempo, mas debalde. Peri tinha atirado para longe o arco e as flechas, e recostando-se ao tronco da árvore, conservava-se calmo e impassível.

 

De repente o índio estremeceu.

 

Cecília aparecera no alto da esplanada e lhe acenara; sua mãozinha alva e delicada agitando-se no ar parecia dizer-lhe que esperasse; Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil de sua senhora apesar da distancia, brilhar um raio de felicidade.

 

Quando com os olhos fitos naquela graciosa visão ele esforçava-se por adivinhar a causa de tão súbita alegria, a índia soltou um segundo grito selvagem, um grito terrível.

 

Tinha pela direção do olhar do prisioneiro visto Cecília sobre a esplanada; tinha percebido o gesto da menina, e compreendera vagamente a razão por que Peri recusara a liberdade e o seu amor. Precipitou-se sobre o arco que estava atirado ao chão; mas apesar da rapidez desse movimento, quando ela estendia a mão, já Peri tinha posto o pé sobre a arma.

 

A selvagem, com os olhos ardentes, os lábios entreabertos, trêmula de ciúme e de vingança, leventou sobre o peito do índio a faca de pedra com que lhe cortara os laços há pouco; mas a arma caiu-lhe da mão, e vacilando apoiou-se no seio que ameaçara.

 

Peri tomou-a nos braços, deitou-a sobre a relva e sentou-se de novo junto ao tronco da árvore, tranqüilo a respeito de Cecília, que desapareceu da esplanada e estava fora de perigo.

 

Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas e o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol.

 

O ar estrugiu com os sons roucos da inúbia e do maracá; ao mesmo tempo um canto selvagem, o canto guerreiro dos Aimorés, misturou-se com a harmonia sinistra daqueles instrumentos ásperos e retumbantes.

 

A índia deitada junto da árvore sobressaltou-se, e erguendo-se rapidamente, acenou ao prisioneiro mostrando-lhe a floresta e suplicando-lhe que fugisse. Peri sorriu como da primeira vez; tomando a mão da menina a fez sentar perto dele, e tirou do pescoço a cruz de ouro que Cecília lhe havia dado.

 

Então começou entre ele e a selvagem uma conversa por acenos de que seria difícil dar uma idéia.

 

Peri dizia à menina que lhe dava aquela cruz como lembrança, mas que só depois que ele morresse é que devia tirá-la do pescoço. A selvagem entendeu ou julgou entender o que Peri procurava exprimir simbolicamente, e beijou-lhe as mãos em sinal de reconhecimento.

 

O prisioneiro obrigou-a a atar de novo os laços que o ligavam, e que ela no seu generoso impulso de dar-lhe a liberdade havia desfeito.

 

Nesse momento quatro guerreiros Aimorés dirigiam-se à árvore em que se achava Peri; e segurando as pontas da corda o conduziram ao campo, onde tudo estava já preparado para o sacrifício.

 

O índio ergueu-se e caminhou com o passo firme e a fronte alta diante dos quatro inimigos, que não perceberam o olhar rápido que nessa ocasião ele lançou às pontas de sua túnica de algodão, torcidas em dois nós pequenos.

 

O campo cortado em elipse no meio das árvores estava cercado por cento e tantos guerreiros armados em guerra e cobertos de ornatos de penas.

 

No fundo as velhas pintadas de listras negras e amarelas, de aspecto hórrido, preparavam um grande brasido, lavavam a laje que devia servir de mesa, e afiavam as suas facas de ossos e lascas de pedra.

 

As moças grupadas de um lado guardavam os vasos cheios de vinho e bebidas fermentadas, que ofereciam aos guerreiros quando estes passavam diante delas entoando o canto de guerra dos Aimorés.

 

A menina que fora incumbida de servir ao prisioneiro, e o acompanhara ao lugar do sacrifício, conservava-se a alguma distancia e olhava tristemente todos esses preparativos; pela primeira vez seu instinto natural parecia revelar-lhe a atrocidade desse costume tradicional de seus pais, a que ela tantas vezes assistira com prazer.

 

Agora que ia representar como heroína no drama terrível, e como esposa do prisioneiro devia acompanhá-lo até o momento supremo, insultando-lhe a dor e a desgraça, o seu coração confrangia-se porque realmente amava Peri, tanto quanto era possível a uma natureza como a sua amar.

 

Chegados ao campo, os selvagens que conduziam o prisioneiro passaram as pontas da corda ao tronco de duas árvores, e esticando o laço o obrigaram a ficar imóvel no meio do terreiro. Os guerreiros desfilaram em roda entoando o canto da vingança; as inúbias retroaram de novo; os gritos confundiram-se com o som dos maracás, e tudo isso formou um concerto horrível.

 

À medida que se animavam, a cadência apressava-se: de modo que a marcha triunfal dos guerreiros se tornava uma dança macabra, uma corrida veloz, uma valsa fantástica, em que todos esses vultos horrendos, cobertos de penas que brilhavam à luz do sol, passavam como espíritos satânicos envoltos na chama eterna.

 

A cada volta que fazia esse sabbat um dos guerreiros destacava-se do circulo, e adiantando-se para o prisioneiro o desafiava ao combate, e conjurava-o a que desse provas de sua coragem, de sua força e de seu valor.

 

Peri, sereno e altivo, recebia com um soberbo desdém a ameaça e o insulto, e sentia um certo orgulho pensando que no meio de todos aqueles guerreiros fortes e armados, ele, o prisioneiro, o inimigo que ia ser sacrificado, era o verdadeiro, o único vencedor.

 

Talvez pareça isso incompreensível; mas o fato é que Peri o pensava, e que só o segredo que ele guardava no fundo de sua alma podia explicar a razão desse pensamento e a tranqüilidade com que esperava o suplício.

 

A dança continuava no meio dos cantos, dos alaridos e das constantes libações, quando de repente tudo emudeceu, e o mais profundo silêncio reinou no campo dos Aimorés.

 

Todos os olhos se voltaram para uma cortina de folhas que ocultava uma espécie de cabana selvagem, construída a um lado do campo em face do prisioneiro.

 

Os guerreiros se afastaram, as folhas se abriram, e entre aquelas franjas de verdura assomou o vulto gigantesco do velho cacique. Duas peles de tapir ligadas sobre os ombros cobriam seu corpo como uma túnica; um grande cocar de penas escarlates ondeava sobre a sua cabeça e realçava-lhe a grande estatura.

 

Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e oleosa, e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes do tucano; no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavam como dois fogos vulcânicos no seio das trevas. Trazia na mão esquerda a tangapema coberta de plumas resplandecentes, e amarrada ao punho direito uma espécie de buzina formada de um osso enorme da canela de algum inimigo morto em combate.

 

Chegando à entrada do campo o velho selvagem levou à boca o seu instrumento bárbaro, e tirou dele um som estrondoso: os Aimorés saudaram com gritos de alegria e de entusiasmo o aparecimento do vencedor.

 

Ao cacique cabia a honra de ser o algoz da vitima, o matador do prisioneiro; seu braço devia consumar a grande obra da vingança, esse sentimento que constituía para aqueles povos fanáticos a verdadeira glória.

 

Apenas cessaram as aclamações com que foi acolhida a entrada do vencedor, um dos guerreiros que o acompanhavam adiantou-se e fincou na extrema do campo uma estaca destinada a receber a cabeça do inimigo, logo que ela fosse decepada do corpo.

 

Ao mesmo tempo a jovem índia que servia de esposa ao prisioneiro, tirou o tacape que pendia do ombro de seu pai, e caminhando para Peri desligou-lhe os braços e ofereceu-lhe a arma, fitando nele um olhar triste, ardente e cheio de amarga exprobração.

 

Nesse olhar dizia-lhe que se tivesse aceitado o amor que lhe oferecera, e com o amor a vida e a liberdade, ela não seria obrigada pelo costume tradicional de sua nação a escarnecer assim da sua morte.

 

Com efeito esse oferecimento que os selvagens faziam ao prisioneiro, de uma arma para se defender, era uma ironia cruel: ligado pelo laço que o prendia, imóvel pela tensão da corda, de que lhe servia vibrar o tacape no ar, se não podia atingir os inimigos?

 

Peri aceitou a arma que a menina lhe trazia; calcando-a aos pés cruzou os braços e esperou o cacique que avançava lentamente, terrível e ameaçador.

 

Chegando em face do prisioneiro, a fisionomia do velho esclareceu-se com um sorriso feroz, reflexo dessa embriaguez do sangue, que dilata as narinas do jaguar prestes a saltar sobre a presa.

 

— Sou teu matador! disse em guarani.

 

Peri não se admirou ouvindo a sua bela língua adulterada pelos sons roucos e guturais que saiam dos lábios do selvagem.

 

— Peri não te teme!

 

— És goitacá?

 

— Sou teu inimigo!

 

— Defende-te!

 

O índio sorriu:

 

— Tu não mereces.

 

Os olhos do velho fuzilaram de raiva: a mão cerrou o punho da tangapema; mas ele reprimiu logo o assomo da cólera.

 

A esposa do prisioneiro atravessou o campo e ofereceu ao vencedor um grande vaso de barro vidrado cheio de vinho de ananás ainda espumante.

 

O selvagem virou de um trago a bebida aromática, e endireitando o seu alto talhe, lançou ao prisioneiro um olhar soberbo:

 

— Guerreiro goitacá, tu és forte e valente; tua nação é temida na guerra. A nação Aimoré é forte entre as mais fortes, valente entre as mais valentes. Tu vais morrer.

 

O coro dos selvagens respondeu a esta espécie de canto guerreiro, que preludiava o tremendo sacrifício.

 

O velho continuou:

 

— Guerreiro goitacá, tu és prisioneiro; tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos de sua tribo; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança Tu vais morrer.

 

Os gritos dos selvagens responderam de novo: e o canto se prolongou por muito tempo lembrando os feitos gloriosos da nação Aimoré e as ações de valor de seu chefe.

 

Enquanto o velho falava, Peri o escutava com a mesma calma e impassibilidade; nem um dos músculos do seu rosto traia a menor emoção; seu olhar límpido e sereno ora fitava-se no rosto do cacique, ora volvia-se pelo campo examinando os preparativos do sacrifício.

 

Apenas quem o observasse veria que de braços cruzados como estava, uma das mãos desfazia imperceptivelmente um dos nós que havia na ponta de seu saio de algodão.

 

Quando o velho acabou de falar, encarou o prisioneiro, e recuando dois passos elevou lentamente a pesada clava que empunhava na mão esquerda. Os Aimorés ansiosos esperavam; as velhas com as suas navalhas de pedra estremeciam de impaciência; as jovens índias sorriam, enquanto a noiva do prisioneiro voltava o rosto para não ver o espetáculo horrível que ia apresentar-se.

 

Nesse momento Peri levando as duas mãos aos olhos cobriu o rosto, e curvando a cabeça ficou algum tempo nessa posição sem fazer um movimento que revelasse a menor perturbação.

 

O velho sorriu.

 

— Tens medo!

 

Ouvindo estas palavras, Peri ergueu a cabeça com ar senhoril. Uma expressão de júbilo e serenidade irradiava no seu rosto; dir-se-ia o êxtase dos mártires da religião que na última hora, através do túmulo, entrevêem a felicidade suprema.

 

A alma nobre do índio prestes a deixar a terra parecia exalar já do seu invólucro; e pousando nos seus lábios, nos seus olhos, na sua fronte, esperava o momento de lançar-se no espaço para ir se abrigar no seio do Criador.

 

Erguendo a cabeça, fitou os olhos no céu, como se a morte que ia cair sobre ele fosse uma visão encantadora que descesse das nuvens sorrindo-lhe. Era que nesse último sonho da existência via a linda imagem de Cecília, feliz, alegre e contente; via sua senhora salva.

 

— Fere!... disse Peri ao velho cacique.

 

Os instrumentos retumbaram de novo; os gritos e os cantos se confundiram com aqueles sons roucos, e reboaram pela floresta como o trovão rolando pelas nuvens.

 

A tangapema coberta de plumas girou no ar cintilando aos raios do sol que feriam as cores brilhantes.

 

No meio desse turbilhão ouviu-se um estrondo, uma ânsia de agonizante e o baque de um corpo: tudo isto confusamente, sem que no primeiro instante se pudesse perceber o que havia passado.

 

III SORTIDA

 O estrondo que se ouviu, fora causado por um tiro que partiu dentre as árvores.

 

O velho Aimoré vacilou; seu braço que vibrava o tacape com uma força hercúlea, caiu inerte; o corpo abateu-se como o ipê da floresta cortada pelo raio.

 

A morte tinha sido quase instantânea; apenas um estertor de agonia ressoou no seu peito largo e ainda há pouco vigoroso; caíra já cadáver.

 

Enquanto os selvagens permaneciam estáticos diante do que se passava, Álvaro com a espada na mão e a clavina ainda fumegante precipitava-se no meio do campo. De dois talhos rápidos cortou os laços de Peri; e com as evoluções de sua espada conteve os selvagens, que voltando a si calam sobre ele bramindo de furor.

 

Imediatamente ouviu-se uma descarga de arcabuzes; dez homens destemidos tendo à sua frente Aires Gomes saltaram por sua vez com a arma em punho, e começaram a talhar de alto a baixo a grandes golpes de espada.

 

Não pareciam homens, e sim dez demônios, dez máquinas de guerra vomitando a morte de todos os lados; enquanto a sua mão direita imprimia à lamina da espada mil voltas, que eram outros tantos golpes terríveis, a esquerda jogava a adaga com destreza e segurança admiráveis.

 

O escudeiro e seus homens tinham feito um semicírculo em roda de Álvaro e de Peri e apresentavam uma barreira de ferro e fogo às ondas de inimigos que bramiam, recuavam, e lançavam-se de novo quebrando-se de encontro a esse dique.

 

No curto instante que mediou entre a morte do cacique e o ataque dos aventureiros, Peri de braços cruzados olhava impassível para tudo o que se passava em torno dele. Compreendia então o gesto que sua senhora há pouco lhe fizera do alto da esplanada, e o raio de esperança e de alegria que ele julgara ver brilhar no seu semblante.

 

Com efeito no primeiro momento de aflição Cecília se lançara para ver o índio, chamá-lo ainda, e suplicar-lhe mesmo que não expusesse a sua vida inutilmente.

 

Não tendo mais visto Peri, a menina sentiu um desespero cruel; voltou-se para seu pai e com as faces orvalhadas de lágrimas, com o seio anelante, com a voz cheia de angústia, pediu-lhe que salvasse Peri.

 

D. Antônio de Mariz antes que sua filha lhe fizesse esse pedido, já tinha se lembrado de chamar os seus companheiros fiéis, e seguido por eles correr contra o inimigo, e livrar o índio da morte certa e inevitável que procurava.

 

Mas o fidalgo era um homem de uma lealdade e de uma generosidade a toda a prova; sabia que aquela empresa era de um risco imenso, e não queria obrigar os seus companheiros a partilhar um sacrifício que ele só, faria de bom grado à amizade que votava a Peri.

 

Os aventureiros que se haviam dedicado com tanta constância à salvação de sua família, não tinham as mesmas razões para se arriscarem por causa de um homem que não pertencia à sua religião, e que não tinha com eles o menor laço de comunidade.

 

D. Antônio de Mariz perplexo, irresoluto entre a amizade e o seu escrúpulo generoso, não soube o que responder a sua filha; procurou consolá-la, aflito por não poder satisfazer imediatamente a sua vontade.

 

Álvaro, que contemplava esta cena pungente a alguma distancia, no meio dos aventureiros fiéis e dedicados que tinha sob suas ordens tomou repentinamente uma resolução.

 

Seu coração partia-se vendo Cecília sofrer; e embora amasse Isabel, a sua alma nobre sentia ainda pela mulher a quem votara os seus primeiros sonhos, uma afeição pura, respeitosa, uma espécie de culto.

 

Era uma coisa singular na vida dessa menina; todas as paixões, todos os sentimentos que a envolviam sofriam a influência de sua inocência, e iam a pouco e pouco depurando-se e tomando um quer que seja de ideal, um cunho de adoração.

 

O mesmo amor ardente e sensual de Loredano, quando se tinha visto em face dela, adormecida na sua casta isenção, emudecera e hesitara um momento se devia manchar a santidade do seu pudor.

 

Álvaro trocou com os aventureiros algumas palavras; e dirigiu-se para o grupo que formavam D. Antônio de Mariz e sua filha.

 

— Consolai-vos, D. Cecília, disse o moço, e esperai!

 

A menina fitou nele os olhos azuis cheios de reconhecimento; aquela palavra era ao menos uma esperança.

 

— Que contais fazer? perguntou D. Antônio ao cavalheiro.

 

— Tirar Peri das mãos do inimigo!

 

— Vós!... exclamou Cecília.

 

— Sim, D. Cecília, disse o moço; aqueles homens dedicados vendo a vossa aflição sentiram-se comovidos e desejam poupar-vos uma justa mágoa.

 

Álvaro atribuía a generosa iniciativa aos seus companheiros, quando eles não tinham feito senão aceitá-la com entusiasmo.

 

Quanto a D. Antônio de Mariz sentira uma intima satisfação ouvindo as palavras do moço: seus escrúpulos cessavam desde que seus homens espontaneamente se ofereciam para realizar aquela difícil empresa.

 

— Me cedereis uma parte dos nossos homens; quatro ou cinco me bastam, continuou o moço, dirigindo-se ao fidalgo; ficareis com o resto para defender-vos no caso de algum ataque imprevisto.

 

— Não, respondeu D. Antônio; levai-os todos, já que se prestam a essa tão nobre ação, que não me animava a exigir de sua coragem. Para defender a minha família, basto eu, apesar de velho.

 

— Desculpai-me, Sr. D. Antônio, replicou Álvaro; mas é uma imprudência a que me oponho; pensai que a dois passos de vós existem homens perdidos, que nada respeitam e que espiam o momento de fazer-vos mal.

 

— Sabeis se prezo e estimo este tesouro cuja guarda me foi confiada por Deus. Julgais que haja neste mundo alguma coisa que me faça expô-lo a um novo perigo? Acreditai-me: D. Antônio de Mariz, só, defenderá sua família, enquanto vós salvareis um bom e nobre amigo.

 

— Confiais demasiado em vossas forças!...

 

— Confio em Deus, e no poder que ele colocou em minha mão: poder terrível que quando chegar o momento fulminará todos os nossos inimigos com a rapidez do raio.

 

A voz do velho fidalgo pronunciando estas palavras tinha-se revestido de uma solenidade imponente; o seu rosto iluminou-se com uma expressão de heroísmo e de majestade que realçou a beleza severa do seu busto venerável.

 

Álvaro olhou com uma admiração respeitosa o velho cavalheiro enquanto Cecília, pálida e palpitante das emoções que sentira, esperava com ansiedade a decisão que iam tomar.

 

O moço não insistiu e sujeitou-se à vontade de D. Antônio de Mariz:

 

— Obedeço-vos; iremos todos e voltaremos mais pronto.

 

O fidalgo apertou-lhe a mão:

 

— Salvai-o!

 

— Oh! sim, exclamou Cecília, salvai-o, Sr. Álvaro.

 

— Juro-vos, D. Cecília, que só a vontade do céu fará que eu não cumpra a vossa ordem.

 

A menina não achou uma palavra para agradecer essa generosa promessa; toda a sua alma partiu-se num sorriso divino.

 

Álvaro inclinou-se diante dela; foi juntar-se aos aventureiros; e deu-lhes ordem de se prepararem para partir. Quando o moço entrou na sala então deserta para tomar as suas armas, Isabel, que já sabia do seu projeto, correu a ele pálida e assustada.

 

— Ides bater-vos? disse ela com a voz trêmula.

 

— Em que isso vos admira? Não nos batemos todos os dias com o inimigo

 

— De longe!... Defendidos pela posição! Mas agora é diferente!

 

— Não vos assusteis, Isabel! Daqui a uma hora estarei de volta.

 

O moço passou a clavina a tiracolo e quis sair.

 

Isabel tomou-lhe as mãos com um movimento arrebatado; seus olhos cintilavam com um fogo estranho; suas faces estavam incendiadas de vivo rubor.

 

O moço procurou tirar as mãos daquela pressão ardente e apaixonada: — Isabel, disse ele com uma doce exprobração; quereis que falte à minha palavra, que recue diante de um perigo?

 

— Não! Nunca eu vos pediria semelhante coisa. Era preciso que não vos conhecesse, e que não... vos amasse!...

 

— Mas então deixai-me partir.

 

— Tenho uma graça a suplicar-vos.

 

— De mim?... Neste momento?

 

— Sim! Neste momento!... Apesar do que me dizíeis há pouco, apesar do vosso heroísmo, sei que caminhais a uma morte certa, inevitável.

 

A voz de Isabel tornou-se balbuciante:

 

— Quem sabe... se nos veremos mais neste mundo?!

 

— Isabel!... disse o moço querendo fugir para evitar a comoção que se apoderava dele.

 

— Prometestes fazer-me a graça que vos pedi.

 

— Qual?

 

— Antes de partir, antes de me dizer adeus para sempre...

 

A moça fitou no cavalheiro um olhar que fascinava.

 

— Falai!... Falai!...

 

— Antes de nos separarmos, eu vos suplico, deixai-me uma lembrança vossa!... Mas uma lembrança que fique dentro de minha alma!

 

E a menina caiu de joelhos aos pés de Álvaro, ocultando seu rosto que o pudor revoltado em luta com a paixão cobria de um brilhante carmim.

 

Álvaro ergueu-a confusa e vergonhosa do que tinha feito, e chegando seus lábios ao ouvido proferiu, ou antes, murmurou uma frase.

 

O semblante de Isabel expandiu-se; uma auréola de ventura cingiu a sua fronte; seu seio dilatou-se e respirou com a embriaguez do coração feliz.

 

— Eu te amo!

 

Era a frase que Álvaro deixara cair na sua alma, e que a enchia toda como um eflúvio celeste, como um canto divino que ressoava nos seus ouvidos e fazia palpitar todas as suas fibras.

 

Quando ela saiu deste êxtase, o moço tinha saído da sala, e unia-se aos seus companheiros prontos a marchar.

 

Foi nessa ocasião que Cecília, chegando imprudentemente à paliçada, fez a Peri um aceno que lhe dizia esperasse.

 

A pequena coluna partiu comandada por Álvaro e por Aires Gomes, que depois de três dias não deixava o seu posto dentro do gabinete do fidalgo.

 

Quando os bravos combatentes desapareceram na floresta, D. Antônio de Mariz recolheu-se com sua família para a sala, e sentando-se na sua poltrona esperou tranqüilamente. Não mostrava o menor temor de ser atacado pelos aventureiros revoltados, que estavam a alguns passos de distancia apenas, e que não deixariam de aproveitar um ensejo tão favorável.

 

D. Antônio tinha a este respeito uma completa segurança; tendo fechado as portas e examinado a escorva de suas pistolas, recomendou silêncio a fim de que nenhum rumor lhe escapasse.

 

Vigilante e atento, o fidalgo refletia ao mesmo tempo sobre o fato que se acabava de passar, e que o tinha profundamente impressionado.

 

Conhecia Peri e não podia compreender como o índio, sempre tão inteligente e tão perspicaz, se deixara levar por uma louca esperança a ponto de ir ele só atacar os selvagens.

 

A extrema dedicação do índio por sua senhora, o desespero da posição em que se achavam, podia explicar essa alucinação, se o fidalgo não soubesse quanto Peri tinha a calma, a força e o sangue-frio que tornam o homem superior a todos os perigos. O resultado de suas reflexões foi que havia no procedimento de Peri alguma coisa que não estava clara e que devia explicar-se mais tarde.

 

Ao passo que ele se entregava a esses pensamentos, Álvaro tinha feito uma volta, e favorecido pela festa dos selvagens se aproximara sem ser percebido.

 

Quando avistou Peri a algumas braças de distancia, o velho cacique levantava a tangapema sobre a sua cabeça.

 

O moço levou a clavina ao rosto; e a bala sibilando foi atravessar o crânio do selvagem.

 

 IV REVELAÇÃO

 Apenas Álvaro, com a chegada dos seus companheiros, viu-se livre dos inimigos que o atacavam, voltou a Peri, que assistia imóvel a toda esta cena.

 

— Vinde! disse o moço com autoridade.

 

— Não! respondeu o índio friamente.

 

— Tua senhora te chama!

 

Peri abaixou a cabeça com uma profunda tristeza.

 

— Dize à senhora que Peri deve morrer; que vai morrer por ela. E tu parte, porque senão seria tarde.

 

Álvaro olhou a fisionomia inteligente do índio para ver se descobria nela algum sinal de perturbação de espírito; porque o moço não compreendia, nem podia compreender a causa dessa obstinação insensata.

 

O rosto de Peri, calmo e sereno, não lhe deixou ver senão uma resolução firme, inabalável, tanto mais profunda quanto se mostrava sob uma aparência de sossego e tranqüilidade.

 

— Assim, tu não obedeces à tua senhora?

 

Peri custou a arrancar a palavra dos lábios.

 

— A ninguém.

 

Quando pronunciava esta palavra, um grito fraco soou ao lado dele; voltando-se viu a índia que lhe haviam destinado por esposa caindo atravessada por uma flecha. O tiro fora destinado a Peri por um dos selvagens; e a menina lançando-se para cobrir o corpo daquele que amara uma hora, recebera a seta no peito.

 

Seus olhos negros, desmaiados pelas sombras da morte, volveram a Peri um último olhar; e cerrando tornaram a abrir-se já sem vida e sem brilho. Peri sentiu um movimento de piedade e simpatia vendo essa vitima de sua dedicação, que como ele sacrificava sem hesitar a sua existência para salvar aquele a quem amava.

 

Álvaro nem se apercebeu do que acabava de passar; lançando um olhar para seus homens que batiam-se valentemente com os Aimorés fez um aceno a Aires Gomes.

 

— Escuta, Peri; tu sabes se costumo cumprir a minha palavra; jurei a Cecília levar-te; e ou tu me acompanhas, ou morreremos todos neste lagar.

 

— Faze o que quiseres! Peri não sairá daqui.

 

— Vês estes homens?... são os únicos defensores que restam à tua senhora; se todos eles morrem, bem sabes que é impossível que ela se salve.

 

Peri estremeceu. Ficou um momento pensativo; depois sem dar tempo a que o seguissem, lançou-se entre as árvores.

 

D. Antônio de Mariz e sua família, tendo ouvido os tiros de arcabuzes, esperavam com ansiedade o resultado da expedição.

 

Dez minutos haviam decorrido na maior impaciência, quando sentiram tocar na porta e ouviram a voz de Peri; Cecília correu, e o índio ajoelhou-se a seus pés pedindo-lhe perdão.

 

O fidalgo, livre do pesar de perder um amigo, assumira a sua costumada severidade, como sempre que se tratava de uma falta grave.

 

— Cometeste uma grande imprudência, disse ele ao índio; fizeste sofrer teus amigos; expuseste a vida daqueles que te amam; não precisas de outra punição além desta.

 

— Peri ia salvar-te!

 

— Entregando-te nas mãos do inimigo?

 

— Sim!

 

— Fazendo-te matar por eles?

 

— Matar e...

 

— Mas qual era o resultado dessa loucura?

 

O índio calou-se.

 

— É preciso explicares-te, para que não julguemos que o amigo inteligente e dedicado de outrora tornou-se um louco e um rebelde.

 

A palavra era dura; e o tom em que foi dita ainda agravava mais a repreensão severa que ela encerrava.

 

Peri sentiu uma lágrima umedecer-lhe as pálpebras:

 

— Obrigas Peri a dizer tudo!

 

— Deves fazê-lo, se desejas reabilitar-te na estima que te votava, e que sinto perder.

 

— Peri vai falar.

 

Álvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto da esplanada os seus companheiros já livres de perigo, e quites por algumas feridas que não eram felizmente muito graves.

 

Cecília apertou as mãos do moço com reconhecimento; Isabel enviou-lhe num olhar toda a sua alma.

 

As pessoas presentes se gruparam ao redor da poltrona de D. Antônio, em face do qual Peri de pé com a cabeça baixa, confuso e envergonhado como um criminoso, ia justificar-se.

 

Dir-se-ia que confessava uma ação indigna e vil; ninguém adivinhava que sublime heroísmo, que concepção gigantesca havia neste ato, que todos condenavam como uma loucura.

 

Ele começou:

 

"Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para não tornar a erguê-lo, chamou Peri e disse:

 

‘Filho de Ararê, teu pai vai morrer; lembra-te que tua carne é a minha carne; e o teu sangue e o meu sangue. Teu corpo não deve servir ao banquete do inimigo.’

 

"Ararê disse, e tirou suas contas de frutos que deu a seu filho: estavam cheias de veneno; tinham nelas a morte.

 

"Quando Peri fosse prisioneiro, bastava quebrar um fruto, e ria do vencedor que não se animaria a tocar no seu corpo.

 

"Peri viu que a senhora sofria, e olhou as suas contas; teve uma idéia; a herança de Ararê podia salvar a todos.

 

"Se tu deixasses fazer o que queria, quando a noite viesse não acharia um inimigo vivo; os brancos e os índios não te ofenderiam mais."

 

Toda a família ouvia esta narração com uma surpresa extraordinária; compreendiam dela que havia em tudo isto uma arma terrível— o veneno; mas não podiam saber os meios de que o índio se servira ou pretendia servir-se para usar desse agente de destruição.

 

— Acaba! disse D. Antônio; por que modo contavas então destruir o inimigo?

 

— Peri envenenou a água que os brancos bebem, e o seu corpo, que devia servir ao banquete dos Aimorés!

 

Um grito de horror acolheu essas palavras ditas pelo índio em um tom simples e natural.

 

O plano que Peri combinara para salvar seus amigos acabava de revelar-se em toda a sua abnegação sublime e com o cortejo de cenas terríveis e monstruosas que deviam acompanhar a sua realização.

 

Confiado nesse veneno que os índios conheciam com o nome de curare, e cuja fabricação era um segredo de algumas tribos, Peri com a sua inteligência e dedicação descobrira um meio de vencer ele só aos inimigos, apesar do seu número e da sua força.

 

Sabia a violência e o efeito pronto daquela arma que seu pai lhe confiara na hora da morte; sabia que bastava uma pequena parcela desse pó sutil para destruir em algumas horas a organização a mais forte e a mais robusta. O índio resolveu pois usar deste poder que na sua mão heróica ia tornar-se um instrumento de salvação e o agente de um sacrifício tremendo feito à amizade.

 

Dois frutos bastaram; um serviu para envenenar a água e as bebidas dos aventureiros revoltados; e o outro acompanhou-o até o momento do suplício, em que passou de suas mãos aos seus lábios.

 

Quando o cacique vendo-o cobrir o rosto perguntou-lhe se tinha medo, Peri acabava de envenenar o seu corpo, que devia daí a algumas horas ser um germe de morte para todos esses guerreiros bravos e fortes.

 

O que porém dava a esse plano um cunho de grandeza e de admiração, não era somente o heroísmo do sacrifício; era a beleza horrível da concepção, era o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos, que os submetera à sua vontade, fazendo-os suceder-se naturalmente e caminhar para um desfecho necessário e infalível.

 

Porque, é preciso notar, a menos de um fato extraordinário, desses que a previdência humana não pode prevenir, Peri quando saiu da casa tinha a certeza de que as coisas se passariam como de fato se passaram.

 

Atacando os Aimorés a sua intenção era excitá-los à vingança; precisava mostrar-se forte, valente, destemido, para merecer que os selvagens o tratassem como um inimigo digno de seu ódio. Com a sua destreza e com a precaução que tomara tornando o seu corpo impenetrável, contava evitar a morte antes de poder realizar o seu projeto; quando mesmo caísse ferido, tinha tempo de passar o veneno aos lábios.

 

A sua previsão porém não o iludiu; tendo conseguido o que desejava, tendo excitado a raiva dos Aimorés, quebrou a sua arma e suplicou a vida ao inimigo; foi de todo o sacrifício o que mais lhe custou.

 

Mas assim era preciso; a vida de Cecília o exigia; a morte que o havia respeitado até então podia surpreendê-lo; e Peri queria ser feito prisioneiro, como foi, e contava ser.

 

O costume dos selvagens, de não matar na guerra o inimigo e de cativá-lo para servir ao festim da vingança, era para Peri uma garantia e uma condição favorável à execução do seu projeto.

 

Quanto à peripécia final, que a intervenção de Álvaro obstara, não fora esse incidente imprevisto, que seria igualmente infalível.

 

Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro, toda a tribo devia tomar parte no festim: as mulheres moças tocavam apenas na carne do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado, adubado pelo prazer da vingança; e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevam no sangue de suas vítimas.

 

Peri contava pois com toda a segurança que dentro de algumas horas o corpo envenenado da vitima levaria a morte às entranhas de seus algozes, e que ele só destruiria toda uma tribo, grande, forte, poderosa, apenas com o auxilio dessa arma silenciosa.

 

Pode-se agora compreender qual tinha sido o seu desespero vendo esse plano inutilizado; depois de ter desobedecido à sua senhora, depois de haver tudo realizado, quando só faltava o desfecho, quando o golpe que ia salvar a todos caia, mudar-se de repente a face das coisas e ver destruída a sua obra, filha de tanta meditação!

 

Ainda assim quis resistir, quis ficar, esperando que os Aimorés continuariam o sacrifício; mas conheceu que a resolução de Álvaro era inabalável como a sua; que ia ser a causa da morte de todos os defensores fiéis de D. Antônio, sem ter já a certeza de sua salvação.

 

No primeiro momento que sucedeu à confissão de Peri, todos os atores desta cena, pálidos, tomados de espanto e de terror, com os olhos cravados no índio, duvidavam ainda do que tinham ouvido; o espírito horrorizado não formulava uma idéia; os lábios trêmulos não achavam uma palavra.

 

D. Antônio foi o primeiro que recobrou a calma; no meio da admiração que lhe causava aquela ação heróica, e das emoções produzidas por essa idéia ao mesmo tempo sublime e horrível, uma circunstância o tinha sobretudo impressionado.

 

Os aventureiros iam ser vitimas de envenenamento; e por maior que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens pela sua traição, a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio.

 

Ele os puniria a todos com a morte ou com o desprezo, essa outra morte moral; mas o castigo na sua opinião elevava a morte à altura de um exemplo; enquanto que a vingança a fazia descer ao nível do assassinato.

 

— Vai, Aires Gomes, gritou D. Antônio ao seu escudeiro; corre e previne a esses desgraçados, se ainda é tempo!

 

 V O PAIOL

 Cecília ouvindo a voz de seu pai, estremeceu como se acordasse de um sonho.

 

Atravessou o aposento com passo vacilante, e chegando-se a Peri, fitou nele os seus lindos olhos azuis com uma expressão indefinível.

 

Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração imensa que lhe causava a ação heróica do índio; a dor profunda que sentia pela sua perda; e uma exprobração doce por não ter ele ouvido as suas súplicas.

 

O índio nem se animava a levantar os olhos para sua senhora; não tendo realizado o seu desejo, considerava agora tudo quanto fizera como uma loucura.

 

Sentia-se criminoso; e de toda a sua ação heróica e sublime para os outros, só lhe restava o pesar de ter ofendido Cecília, e de lhe haver causado inutilmente um desgosto.

 

— Peri, disse a menina com desespero, por que não fizeste o que tua senhora te pedia?...

 

O índio não sabia o que responder; temia ter perdido a afeição de Cecília, e essa idéia martirizava os últimos momentos que lhe restavam a viver.

 

— Cecília não te disse, continuou a menina soluçando, que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida?

 

— Peri já te pediu que perdoasses! murmurou o índio.

 

— Oh! Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a tua senhora!... Mas ela te perdoa.

 

— Ah!... exclamou Peri, cuja fisionomia iluminou-se.

 

— Sim!... Cecília te perdoa tudo que sofreu, e tudo que vai sofrer! Mas será por pouco tempo...

 

A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação; conhecia que não havia mais esperança de salvação, e esta idéia quase a consolava.

 

Não pôde acabar porém; a palavra ficou-lhe presa aos lábios, trêmula, convulsa: seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento de terror e de espanto.

 

A fisionomia do índio se tinha decomposto; seus traços nobres alterados por contrações violentas, o rosto encovado, os lábios roxos, os dentes que se entrechocavam, os cabelos eriçados davam-lhe um aspecto medonho.

 

— O veneno!... gritaram os espectadores dessa cena horrorizados.

 

Cecília fez um esforço extraordinário, e lançando-se para o índio, procurou reanimá-lo.

 

— Peri!... Peri!... balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo.

 

— Peri vai te deixar para sempre, senhora.

 

— Não!... Não!... exclamou a menina fora de si. Não quero que tu nos deixes!... Oh! tu és mau, muito mau!... Se estimasses tua senhora, não a abandonarias assim!...

 

As lágrimas orvalhavam as faces da menina, que no seu desespero não sabia o que dizia. Eram palavras entrecortadas, sem sentido; mas que revelavam a sua angústia.

 

— Tu queres que Peri viva, senhora? disse o índio com a voz comovida.

 

— Sim!... respondeu a menina suplicante. Quero que tu vivas!

 

— Peri viverá!

 

O índio fez um esforço supremo, e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos, dirigiu-se à porta e desapareceu.

 

Todas as pessoas presentes o acompanharam com os olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo.

 

A última palavra que ele proferira tinha um momento restituído a esperança a D. Antônio de Mariz; mas quase logo a dúvida apoderou-se do seu espírito; julgou que o índio se iludia.

 

Cecília porém tinha mais do que uma esperança; tinha quase uma certeza de que Peri não se enganara: a promessa de seu amigo lhe inspirava uma confiança profunda. Nunca Peri lhe havia dito uma coisa que se não realizasse; o que parecia impossível aos outros, tornava-se fácil para sua vontade firme e inabalável, para o poder sobre-humano, de que a força e a inteligência o revestia.

 

Quando D. Antônio de Mariz e sua família se recolheram tristemente impressionados, Álvaro, de pé na porta do gabinete, fez um gesto de espanto ao fidalgo, e apontou-lhe para o oratório.

 

A parede do fundo, prestes a tombar, oscilava sobre a sua base como uma árvore balançada pelo vento.

 

D. Antônio sorriu; e ordenando à sua família que entrasse no gabinete, tirou a pistola da cinta, armou-a e esperou na porta ao lado de Álvaro.

 

No mesmo instante ouviu-se um grande estrondo, e no meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruínas, seis homens precipitaram-se na sala.

 

Loredano foi o primeiro; apenas tocou o chão, ergueu-se com extraordinária rapidez, e seguido pelos seus companheiros caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a família.

 

Recuaram, porém, lívidos e trêmulos, horrorizados diante da cena muda e terrível que se apresentava aos seus olhos espantados.

 

No meio do aposento via-se um desses grandes vasos de barro vidrado, feitos pelos índios, e que continha pelo menos uma arroba de pólvora. De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia perder-se no fundo do paiol, onde se achavam enterradas todas as munições de guerra do fidalgo.

 

Duas pistolas, a de D. Antônio de Mariz e a de Álvaro esperavam um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca ao vulcão. D. Lauriana, Cecília e Isabel de joelhos, oravam julgando a cada momento ver confundirem-se no turbilhão todos os espectadores dessa cena.

 

Era esta a arma terrível de que falara há pouco D. Antônio, quando dizia à Álvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar todos os seus inimigos. O moço compreendeu então a razão por que o fidalgo o tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Peri, julgando-se bastante forte para defender, ele só, a sua família

 

Quanto aos aventureiros, lembraram-se do juramento solene de D. Antônio de Mariz; o fidalgo os tinha a todos fechados na sua mão, e bastava apertar essa mão para esmagá-los como um torrão de argila. Lançando um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quiseram fugir, mas não tiveram animo de dar um passo e ficaram como pregados ao solo.

 

Ouviu-se então um rumor de vozes da parte de fora, e Aires Gomes seguido pelos aventureiros apresentou-se à porta da sala.

 

Loredano conheceu que desta vez estava irremediavelmente perdido, e assentou de vender caro a sua vida; mas a desgraça pesava sobre ele. Dois dos seus companheiros caíram a seus pés estorcendo-se em convulsões horríveis, e soltando gritos que metiam dó e compaixão.

 

A princípio ninguém compreendeu a causa dessa morte súbita e violenta; mas a lembraça do veneno de Peri acudiu logo à memória de alguns e explicou tudo.

 

Os aventureiros que chegavam guiados por Aires Gomes apoderaram-se de Loredano e foram ajoelhar-se confusos e envergonhados aos pés de D. Antônio de Mariz, pedindo-lhe o perdão de sua falta.

 

O fidalgo tinha assistido a todos esses acontecimentos que se sucediam tão rapidamente, sem deixar a sua primeira posição; dir-se-ia que sobre essas paixões humanas que se debatiam a seus pés ele plainava como um gênio, prestes a vibrar o raio celeste.

 

— A vossa falta é daquelas que não se perdoam, disse D. Antônio; mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer todas as ofensas. Levantai-vos e preparemo-nos todos para morrer como cristãos.

 

Os aventureiros ergueram-se, e arrastando Loredano para fora da sala, retiraram-se para o alpendre, com a consciência aliviada de um grande peso.

 

A família pôde então, depois de tantas emoções, gozar um pouco de sossego e repouso; apesar da posição desesperada em que se achavam, a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre de esperança.

 

Só D. Antônio de Mariz não se iludia, e desde aquela manhã tinha conhecido que, quando os Aimorés não o vencessem pelas armas, o venceriam pela fome. Todos os viveres estavam consumidos, e só uma sortida vigorosa podia salvar a família desse martírio que a ameaçava, martírio muito mais cruel do que uma morte violenta.

 

O fidalgo resolveu esgotar os últimos recursos antes de confessar-se vencido; queria morrer com a consciência tranqüila de haver cumprido o seu dever e de haver feito o que fosse humanamente possível. Chamou Álvaro e entreteve-se com o moço durante algum tempo em voz baixa; concertavam um meio de realizar essa idéia, de que dependia toda a esperança de salvação.

 

Ao mesmo tempo que isto se passava, os aventureiros reunidos em conselho, julgavam a Frei Ângelo di Luca, e o condenavam por um voto unânime.

 

Proferida a sentença apresentaram-se diversas opiniões sobre o suplício que devia ser infligido ao culpado; cada um lembrava o gênero de morte o mais cruel; porém a opinião geral adotou a fogueira como o castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges.

 

Fincaram no meio do terreiro um alto poste e o cercaram com uma grande pilha de madeira e outros combustíveis; depois sobre essa pira ligaram o frade, que sofria todos os insultos e todas as injúrias sem proferir uma palavra.

 

Uma espécie de atonia se apoderara do italiano desde o momento em que os aventureiros o haviam arrastado da sala de D. Antônio de Mariz; ele tinha a consciência do seu crime e a certeza de sua condenação.

 

Entretanto na ocasião em que o atavam à fogueira, um incidente despertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela idéia da morte, e pela convicção de que não podia escapar a ela.

 

Um dos aventureiros, um dos cinco cúmplices da última conspiração, chegou-se a Loredano, e tirando-lhe a cinta que prendia o seu gibão, mostrou-a aos seus companheiros. O italiano vendo-se separado do seu tesouro sentiu uma dor muito mais forte do que a que ia sofrer na fogueira; para ele não havia suplício, não havia martírio que igualasse a este.

 

O que o consolava na sua última hora era a idéia de que esse segredo que possuía, e do qual não pudera utilizar-se, ia morrer com ele, e ficaria perdido para todos; que ninguém gozaria do tesouro que lhe escapava.

 

Por isso apenas o aventureiro tirou-lhe a cinta onde guardava o roteiro; soltou um rugido de cólera e de raiva impotente; seus olhos injetaram-se de sangue, e seus membros crispando-se feriram-se contra as cordas que os ligavam ao poste.

 

Era horrível de ver nesse momento; seu aspecto tinha a expressão brutal e feroz de um hidrófobo; seus lábios espumavam, silvando como a serpente; e seus dentes ameaçavam de longe os seus algozes como as presas do jaguar.

 

Os aventureiros riram-se do desespero do frade por ver roubarem-lhe o seu precioso tesouro, e divertiram-se em aumentar-lhe o suplício, prometendo que apenas livres dos Aimorés fariam uma expedição às minas de prata.

 

A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou a cinta ao corpo, e disse-lhe sorrindo:

 

— Bem sabeis o provérbio: "O bocado não é para quem o faz".

 

 VI TRÉGUA

 Eram oito horas da noite.

 

Os aventureiros, sentados no terreiro em roda de um pequeno fogo, esperavam tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados à magra ceia.

 

A penaria tinha sucedido à abundância de outrora; privados da caça, sua alimentação ordinária, estavam reduzidos a simples vegetais. Os seus vinhos e as bebidas fermentadas de que faziam largas libações, tinham sido envenenados por Peri; e foram pois obrigados a deitá-los fora muito felizes ainda por não terem sido vitimas deles.

 

Loredano fechando a porta da despensa é que os tinha salvado; apenas dois dos aventureiros que o haviam acompanhado tinham tocado nessas bebidas, e por isso poucas horas depois caíram mortos, como vimos, na ocasião em que iam atacar D. Antônio de Mariz.

 

Não eram porém essas cenas de lato e a situação critica em que se achavam, que infundiam nesses homens sempre alegres e tão galhofeiros aquela tristeza que não lhes era habitual. Morrer com as armas na mão, batendo-se contra o inimigo, era para eles uma coisa natural, uma idéia a que a sua vida de aventuras e de perigos os tinha afeito.

 

O que realmente os entristecia, era não terem uma boa ceia, e um canjirão de vinho diante de si; era o seu estômago que se contraia por falta de alimento, e que tirava-lhes toda a disposição de rir e de folgar.

 

A chama avermelhada da fogueira às vezes oscilava ao sopro do vento, e estendendo-se pelo terreiro ia iluminar a alguma distância com o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pira de lenha.

 

Os aventureiros tinham resolvido demorar o suplício e dar tempo a que o frade se arrepende-se dos seus crimes e se decidisse a morrer como cristão, humilde e penitente; por isso deixaram-lhe a noite para refletir.

 

Talvez entrasse também nessa resolução um requinte de maldade e de vingança; julgando o italiano a verdadeira causa da posição em que estavam colocados, os seus companheiros o odiavam e queriam prolongar o seu sofrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito.

 

Assim, de vez em quando algum deles se erguia, e chegando-se ao frade, exprobrava-lhe a sua perversidade e cobria-o de impropérios e de injúrias. Loredano estorcia-se de raiva, mas não proferia uma palavra, porque os seus algozes o tinham ameaçado de cortar-lhe a língua.

 

Aires Gomes veio chamar os aventureiros da parte de D. Antônio de Mariz; todos se apressaram em obedecer, e pouco depois entraram na sala onde estava toda a família.

 

Tratava-se de uma sortida com o fim de procurar víveres que pudessem alimentar os habitantes da casa, até que D. Diogo tivesse tempo de chegar com o socorro que tinha ido procurar. D. Antônio de Mariz reservava dez homens para defender-se; os outros partiriam com Álvaro; se fossem felizes, havia ainda uma esperança de salvação; de fossem malsucedidos, uns e outros, os que fossem e os que ficassem morreriam como cristãos e portugueses.

 

Imediatamente a expedição preparou-se, a favorecida pelo silêncio da noite partiu e interno-se pela floresta; devia afastar-se sem ser percebida pelos Aimorés, e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla provisão de alimentos.

 

Durante a primeira hora que sucedeu à partida, todos os que ficaram, com o ouvido atento escutaram, temendo ouvir a cada momento o estrondo de tiros que anunciasse um combate entre os aventureiros e os índios. Tudo conservou-se em silêncio; e uma esperança, bem que vaga e tênue, veio pousar nesses corações quebrados por tantos sofrimentos e tantas angústias.

 

A noite passou-se tranqüilamente; nada indicava que a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrível como os Aimorés.

 

D. Antônio admirava-se que os selvagens, depois do ataque da manhã, se conservassem tranqüilos no seu campo, e não tivessem investido a habitação uma só vez. Passou-lhe pelo espírito a idéia de que se tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principais guerreiros; mas ele conhecia de há muito o espírito vingativo e a tenacidade dessa raça para admitir semelhante suposição.

 

Cecília recostou-se num sofá, e alquebrada de fadiga conseguiu adormecer apesar das idéias tristes e das inquietações que a agitavam. Isabel, com o coração cerrado por um terrível pressentimento, lembrava-se de Álvaro, e acompanhava-o de longe na sua perigosa expedição, misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor.

 

Assim passou-se esta noite; a primeira, depois de três dias, em que a família de D. Antônio de Mariz pôde gozar alguns momentos de sossego.

 

De vez em quando o fidalgo chegando à janela via ao longe, perto do rio, brilharem os fogos do campo dos Aimorés; mas uma calma profunda reinava em toda aquela planície. Nem mesmo se ouvia o eco enfraquecido de uma dessas cantigas monótonas com que os selvagens costumam à noite acompanhar o embalançar de sua rede de palha; apenas o sussurrar do vento nas folhas, a queda da água sobre as pedras, e o grito do oitibó.

 

Contemplando a solidão, o fidalgo insensivelmente voltava a essa esperança que há pouco sorrira, e que o seu espírito tinha repelido como uma simples ilusão. Tudo com efeito parecia indicar que os selvagens haviam abandonado o seu campo, deixando nele apenas os fogos que haviam servido para esclarecer os seus preparativos de partida.

 

Para quem conhecia, como D. Antônio, os costumes desses povos bárbaros, para quem sabia quanto era ativa, agitada, ruidosa esta existência nômada, o silêncio em que estava sepultada a margem do rio era um sinal certo de que os Aimorés já ali não estavam. Contudo o fidalgo, demasiadamente prudente para se fiar em aparências, recomendara aos seus homens que redobrassem de vigilância para evitar alguma surpresa.

 

Talvez que aquele sossego e aquela serenidade fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludiam as grandes tempestades, e durante as quais os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem nessa luta espantosa que tem por campo de batalha o espaço e o infinito.

 

As horas correram silenciosamente; a viuvinha cantou pela primeira vez; e a luz branca da alvorada veio empalidecer as sombras da noite.

 

Pouco e pouco o dia foi rompendo; o arrebol da manhã desenhou-se no horizonte, tingindo as nuvens com todas as cores do prisma. O primeiro raio do sol, desprendendo-se daqueles vapores tênues e diáfanos, deslizou pelo azul do céu, e foi brincar no cabeço dos montes.

 

O astro assomou, e torrentes de luz inundaram toda a floresta, que nadava num mar de ouro marchetado de brilhantes, que cintilavam em cada uma das gotas do orvalho suspensas às folhas das árvores.

 

Os habitantes da casa, despertando, admiravam esse espetáculo magnífico do nascer do dia, que depois de tantas tribulações e de tantas angústias, lhes parecia completamente novo.

 

Uma noite de quietação e sossego os tinha como que restituído à vida; nunca esses campos verdes, esse rio puro e límpido, essas árvores florescentes, esses horizontes descortinados se haviam mostrado a seus olhos tão belos, tão risonhos como agora.

 

É que o prazer e o sofrimento não passam de um contraste; em lata perpétua e continua, eles se acrisolam um no outro, e se deparam: não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça.

 

Cecília, com a frescura da manhã, tinha-se expandido como uma flor do campo; suas faces coloriram-se de novo, como se um raio do sol, beijando-as lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado; os olhos brilharam; e os lábios entreabrindo-se para aspirarem o ar puro e embalsamado da manhã, arquearam-se graciosamente quase sorrindo.

 

A esperança, esse anjo invisível, essa doce amiga dos que sofrem, tinha vindo pousar no seu coração, e murmurava-lhe ao ouvido palavras confusas, cantos misteriosos, que ela não compreendia, mas que a consolavam e vertiam em sua alma um bálsamo suave.

 

Sentia-se em todas as pessoas de casa um quer que seja, uma animação, um começo de bem-estar que revelava uma grande transformação operada na situação da véspera; era mais do que a esperança, menos do que a seguridade.

 

Só Isabel não partilhava essa impressão geral; como sua prima, ela também viera contemplar o raiar do dia; mas fora para interrogar a natureza, e perguntar ao sol, à luz, ao céu, se as lúgubres imagens que tinham passado e repassado na sua longa vigília, eram uma realidade ou uma visão.

 

E uma coisa singular! Esse sol tão brilhante, essa luz esplêndida, esse céu azul, que aos outros reanimara, e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento, pareceu-lhe ao contrário uma amarga ironia.

 

Comparou a cena radiante que se apresentava aos seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma; enquanto a natureza sorria, o seu coração chorava. No meio dessa festa esplêndida do nascer do dia, a sua dor, só, isolada, não achava uma simpatia, e repelida pela criação voltava a recalcar-se em seu seio. A moça recostou a cabeça sobre o ombro de sua prima, e escondeu ai o rosto para não perturbar a doce serenidade que se expandia no semblante de Cecília.

 

Entretanto D. Antônio tinha tratado de averiguar se as suas suspeitas da véspera eram reais; certificou-se de que os selvagens haviam abandonado o campo. Aires Gomes, acompanhado de mestre Nunes, chegou mesmo a sair da casa e aproximar-se com todas as cautelas do lugar onde na véspera os Aimorés festejavam o sacrifício de Peri.

 

Tudo estava deserto; não se viam mais no campo os vasos de barro, as peças de caça suspensas aos galhos da árvore, e as redes grosseiras que indicavam a alta de uma horda selvagem. Não havia já dúvidas, os Aimorés tinham partido desde a véspera à noite, depois de enterrarem os seus mortos.

 

O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo, que recebeu-a menos favoravelmente do que se devia supor; ignorava a causa e o fim dessa partida repentina, e desconfiava dela.

 

Não há que admirar nisto; D. Antônio era um homem prudente e avisado; a sua experiência de quarenta anos o tinha tornado suspeitoso; por coisa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrar-se.

 

 VII PELEJA

 Quando a família de D. Antônio de Mariz gozava dos primeiros momentos de tranqüilidade que sucediam a tantas aflições, soou um grito na escada de pedra.

 

Cecília levantou-se estremecendo de alegria e felicidade; tinha reconhecido a voz de Peri.

 

No momento em que ia correr ao encontro do seu amigo, mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça, e Peri chegava à porta da sala.

 

D. Antônio de Mariz, sua mulher e sua filha ficaram mudos de espanto e terror; Isabel caiu fulminada, como se a vida lhe faltasse de repente.

 

Peri trazia nos seus ombros o corpo inanimado de Álvaro; e no rosto uma expressão de tristeza profunda. Atravessando a sala, depôs sobre o sofá o seu fardo precioso, e olhando o rosto lívido daquele que fora seu amigo, enxugou uma lágrima que lhe corria pela face.

 

Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silêncio solene que envolvia aquela cena lúgubre; os aventureiros que haviam acompanhado Peri quando passara no meio deles correndo, pararam na porta, tomados de compaixão e respeito por aquela desgraça.

 

Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri salvo; seus olhos, apesar dos sofrimentos passados, ainda tinham lágrimas para chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar. Quanto a D. Antônio de Mariz, sua dor era de um pai que havia perdido um filho; era a dor muda e concentrada que abala as organizações fortes, sem contudo abatê-las.

 

Depois dessa primeira comoção produzida pela chegada de Peri, o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a narração breve dos acontecimentos, cuja peripécia tinha diante dos olhos.

 

Eis o que havia passado.

 

Partindo na véspera, no momento em que começava a sentir os primeiros efeitos do veneno terrível que tomara, Peri ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecília. Ia procurar a vida em um contraveneno infalível, cuja existência só era conhecida pelos velhos pajés da tribo, e pelas mulheres que os auxiliavam nas suas preparações medicinais.

 

Sua mãe, quando ele partira para a primeira guerra, lhe tinha revelado esse segredo que devia salvá-lo de uma morte certa no caso de ser ferido por alguma seta ervada.

 

Vendo o desespero de sua senhora, o índio sentiu-se com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a ganhar-lhe o corpo, e ir ao fundo da floresta e procurar essa erva poderosa que devia restituir-lhe a saúde, o vigor e a existência.

 

Contudo, quando atravessava a mata parecia-lhe às vezes que já era tarde, que não chegaria a tempo: então tinha medo de morrer longe de sua senhora, sem poder volver para ela o seu último olhar. Arrependia-se quase de ter partido de casa e não deixar-se ficar aos pés de Cecília até exalar o seu último suspiro; mas lembrava-se que a menina o esperava, lembrava-se que ela ainda precisava de sua vida e criava novas forças.

 

Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da floresta, e aí, na sombra e no silêncio passou-se entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário, nem um rumor revelara o que ai se passou.

 

Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte, as folhas se abriram, e Peri exausto de forças, vacilante, emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade. saiu do seu retiro.

 

Mal se podia suster, e para caminhar era obrigado a sustentar-se aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem: assim adiantou-se pela floresta, e colheu alguns frutos, que lhe restabeleceram um tanto as forças.

 

Chegando à beira do rio, Peri já sentiu o vigor que voltava, e o calor que começava a animar-lhe o corpo entorpecido; atirou-se à água e mergulhou. Quando voltou à margem, era outro homem; uma reação se havia operado; seus membros tinham adquirido a elasticidade natural; o sangue girava livremente nas veias.

 

Então tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno.

 

O sol tinha raiado havia horas; Peri, acabada a sua refeição, caminhava pensativo, quando ouviu uma descarga de armas de fogo, cujo estrondo reboou pelo âmbito da floresta.

 

Lançou-se na direção dos tiros, e a pouca distancia, num claro da mata, decobriu um espetáculo grandioso.

 

Álvaro e os seus nove companheiros divididos em duas colunas de cinco homens, com as costas apoiadas às costas uns dos outros, estavam cercados por mais de cem Aimorés que se precipitavam sobre eles com um furor selvagem.

 

Mas as ondas dessa torrente de bárbaros que soltavam bramidos espantosos, iam quebrar-se contra essa pequena coluna, que não parecia de homens, mas de aço; as espadas jogavam com tanta velocidade que a tornavam impenetrável; no raio de uma braça o inimigo que se adiantava caia morto.

 

Havia uma hora que durava esse combate, começado com armas de fogo; mas os Aimorés atacavam com tanta fúria, que breve tinham chegado a luta corpo a corpo e à arma branca.

 

No momento em que Peri assomava à margem da clareira, um incidente veio modificar a face do combate.

 

O aventureiro que dava as costas a Álvaro, levado pelo ardor da peleja, adiantou-se alguns passos para ferir um inimigo; os selvagens o envolveram, deixando a coluna interrompida e Álvaro sem defesa.

 

Entretanto o valente cavalheiro continuava a fazer prodígios de valor e de coragem; cada volta que descrevia sua espada era um inimigo de menos, uma vida que se extinguia a seus pés num rio de sangue. Os selvagens redobravam de furor contra ele, e cada vez o seu braço ágil movia-se com mais segurança e mais certeza, fazendo jogar como um raio a lamina de aço que mal se via brilhar nas suas rápidas evoluções.

 

Desde porém que os Aimorés viram o moço sem defesa pelas costas, e exposto aos seus golpes, concentraram-se nesse ponto; um deles adiantando-se, ergueu com as duas mãos a pesada tangapema e atirou-a ao alto da cabeça de Álvaro.

 

O moço caiu; mas na sua queda a espada descreveu ainda um semi-círculo e abateu o inimigo que o tinha ferido à traição; a dor violenta dera a esse último golpe uma força sobrenatural.

 

Quando os índios iam precipitar-se sobre o cavalheiro, Peri saltou no meio deles, e agarrando a espingarda que estava a seus pés, fez dela uma arma terrível uma clava formidável, cujo poder em breve sentiram os Aimorés. Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos, o índio tomou Álvaro nos seus ombros, e abrindo caminho com a sua arma temível, lançou-se pela floresta e desapareceu.

 

Alguns o seguiram; mas Peri voltou-se e fê-los arrepender-se de sua ousadia; livrando-se do peso que levava, carregou a espingarda com as munições que Álvaro trazia e mandou uma bala àquele que o perseguia mais de perto; os outros, que já o conheciam pelo combate da véspera, retrocederam.

 

A idéia de Peri era salvar Álvaro, não só pela amizade que lhe tinha, como por causa de Cecília, que ele supunha amar o cavalheiro; vendo porém que o corpo continuava inanimado, acreditou que Álvaro estava morto.

 

Apesar disto não desistiu do seu propósito; morto ou vivo devia levá-lo àqueles que o amavam, ou para o restituírem à vida, ou para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida.

 

Quando Peri acabou a sua narração, o fidalgo comovido chegou-se à beira do sofá, e apertando a mão gelada e fria do cavalheiro, disse:

 

— Até logo, bravo e valente amigo; até logo! A nossa separação é de poucos instantes; breve nos reuniremos na mansão dos justos onde deveis estar, e onde espero que Deus me concederá a graça de entrar.

 

Cecília deu à memória do moço as ultimas lágrimas; e ajoelhando aos pés do moribundo com sua mãe, dirigiu ao céu uma prece ardente.

 

D. Lauriana tinha esgotado todos os recursos dessa medicina doméstica que no interior das casas substituía a falta dos homens profissionais, muito raros naquela época, e sobretudo longe das cidades; o moço não deu porém o menor sinal de vida.

 

D. Antônio de Mariz, que compreendera perfeitamente o que devia esperar da pretendida retirada dos Aimorés, mandou que os seus homens se preparassem para a defesa, não que tivesse a menor esperança, mas porque desejava resistir ate o último momento.

 

Peri, depois de ter respondido a todas as perguntas de Cecília a respeito do modo por que se havia salvado do veneno, saiu da sala e percorreu a esplanada, observando os arredores. O índio, infatigável sempre que se tratava de sua senhora, apenas acabava de uma empresa gigantesca, como a que o tinha levado ao campo dos Aimorés, cuidava já em combinar outro projeto para salvar Cecília.

 

Depois do seu exame estratégico, entrou no quarto que havia abandonado na antevéspera, e no qual encontrou ainda as suas armas, do mesmo modo que as tinha deixado.

 

Lembrou-se do pedido que fizera a Álvaro, da contradição do destino que lhe restituía a vida a ele, um homem três vezes morto, e roubava-a ao cavalheiro a quem ele havia deixado são e salvo.

 

 VIII NOIVA

 Uma hora depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, Peri, recostado à janela do quarto que tinha pertencido a sua senhora, olhava com uma grande atenção para uma árvore que se elevava a algumas braças de distancia.

 

Seu olhar parecia estudar as curvas dos galhos retorcidos, medindo-lhes a distancia, a altura e o tamanho, como se disso dependesse a solução de uma grande dificuldade com que lutava o seu espírito. No momento em que estava todo entregue a esse exame minucioso, o índio sentiu uma mão tímida e delicada tocar-lhe de leve no ombro.

 

Voltou-se: era Isabel que estava junto dele, e que se havia aproximado como uma sombra, sem fazer o menor rumor. Uma palidez mortal cobria as feições da moça, que apenas sala do seu desmaio; mas o rosto tinha uma calma ou antes uma imobilidade que assustava.

 

Voltando a si, Isabel correu um olhar pelo aposento, como para certificar-se de que não era um sonho o que havia passado.

 

A sala estava deserta; D. Antônio de Mariz tinha saído para dar as suas ordens; sua mulher, ajoelhada no oratório sobre um montão de ruínas, rezava ao pé de uma cruz que ficara junto ao altar. No fundo do aposento, sobre o sofá, destacava-se o vulto imóvel do cavalheiro, aos pés do qual ardia uma vela de cera, lançando pálidos clarões.

 

Cecília é que estava perto dele, e apertava no seio a sua cabeça desfalecida, procurando reanimá-lo.

 

Quando o olhar de Isabel caiu sobre o corpo de seu amante, ela ergueu-se como impelida por uma força sobrenatural, atravessou rapidamente a sala, e foi por sua vez ajoelhar-se em face desse leito mortuário. Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava, era para embeber-se na contemplação desse rosto lívido e gelado, desses lábios frios, desses olhos extintos, que ela amava apesar da morte.

 

Cecília respeitou a dor de sua prima, e por um instinto de delicadeza que só possuem as mulheres, compreendeu que o amor, mesmo em face de um cadáver, tem o seu pudor e a sua castidade; saiu para deixar que Isabel chorasse livremente.

 

Passado algum tempo depois da saída de Cecília, a moça ergueu-se, percorreu automaticamente a casa, e vendo Peri de longe aproximou-se dele e tocou-lhe no ombro.

 

O índio e a moça se odiavam desde o primeiro dia em que se tinham visto; em Isabel era o ódio de uma raça que a rebaixava a seus próprios olhos; em Peri era essa repugnância natural que sente o homem por aqueles em quem reconhece um inimigo.

 

Por isso Peri, vendo Isabel junto dele, ficou extremamente admirado, sobretudo quando reparou no gesto suplicante que a moça lhe dirigia, como se esperasse dele uma graça.

 

— Peri!...

 

O índio sentiu-se comovido ao aspecto daquele sofrimento, e pela primeira vez na sua vida dirigiu a palavra a Isabel.

 

— Precisas de Peri? disse ele.

 

— Vinha pedir-te um serviço. Não mo negarás, sim? balbuciou a moça.

 

— Fala! se for coisa que Peri possa fazer, ele não te negará.

 

— Prometes então? exclamou Isabel cujos olhos brilharam com uma expressão de alegria.

 

— Sim, Peri te promete.

 

— Vem!

 

Dizendo essa palavra, a mova fez um gesto ao índio e dirigiu-se acompanhada por ele à sala que ainda estava deserta como tinha deixado. Parou junto do sofá, e apontando para o corpo inanimado de seu amante, acenou a Peri que o tomasse nos seus braços.

 

O índio obedeceu, e acompanhou Isabel até um gabinete retirado a um lado da casa; ai deitou o seu fardo sobre um leito, cujas cortinas a moça entreabriu, corando como uma noiva.

 

Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o quarto em que habitara e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu amor; porque o leito, que recebia seu amante, era o seu leito de virgem casta e pura; porque ela era realmente uma noiva do túmulo.

 

Peri, tendo satisfeito o desejo da moça, retirou-se e voltou ao seu trabalho, que ele prosseguia com uma constância infatigável.

 

Apenas ficou só, Isabel sorriu; mas o seu sorriso tinha um quer que seja do êxtase da dor, da voluptuosidade do sofrimento, que faz sorrir na sua última hora os mártires e os desgraçados.

 

Tirou do seio a redoma de vidro onde guardava os cabelos de sua mãe e fitou nela um olhar ardente; mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinível. Tinha mudado de resolução; o segredo que encerrava essa jóia, o pó sutil que empenava a face interior do cristal, a morte que sua mãe lhe confiara não a satisfazia; era muito rápida, quase instantânea.

 

Saiu então furtivamente e acendeu uma vela de cera, que havia sobre a cômoda ao lado de um crucifixo de marfim; depois fechou a porta, cerrou as janelas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia penetrar. O gabinete ficou às escuras; apenas em torno do círio que ardia, uma auréola pálida se destacava no meio das trevas e iluminava a imagem do Cristo.

 

A moça ajoelhou e fez uma oração breve: pedia a Deus uma última graça: pedia a eternidade e a ventura do seu amor, que tinha passado tão rápido pela terra.

 

Acabando a prece, tomou a luz, deitou-a na cabeceira do leito, afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com enlevo.

 

Álvaro parecia adormecido apenas; sua bela fisionomia não tinha a menor alteração; a morte, imprimindo nos seus traços a descor da cera e do mármore, havia unicamente imobilizado a expressão e feito do gentil cavalheiro uma bela estátua.

 

Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação para chegar-se de novo à cômoda, onde se viam algumas conchas de mariscos tintas de nácar que se apanham nas nossas praias, e uma cesta de palha matizada.

 

Esta cesta continha todas as resinas aromáticas, todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra; o anime da aroeira, as pérolas do benjoim, as lágrimas cristalizadas da embaíba, e gotas do bálsamo, esse sândalo do Brasil.

 

A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes, e acendeu algumas bagas de benjoim; o óleo de que estavam impregnadas alimentando a chama, comunicou-a às outras resinas.

 

Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes embriagadores se elevaram da caçoula em grossas espirais e encheram o gabinete de nuvens transparentes que oscilavam à luz pálida do círio.

 

Isabel sentada à beira do leito, com as mãos do seu amante nas suas e com os olhos embebidos naquela imagem querida, balbuciava frases entrecortadas, confidências intimas, sons inarticulados, que são a linguagem verdadeira do coração.

 

Às vezes sonhava que Álvaro ainda vivia, que lhe murmurava ao ouvido a confissão do seu amor; e ela falava-lhe como se seu amante a ouvisse, contava-lhe os segredos de sua paixão, vertia toda a sua alma nas palavras que caiam dos lábios. Sua mão delicada afastava os cabelos do moço, descobria sua fronte, animava a sua face gelada, e rogava aqueles lábios frios e mudos como pedindo-lhe um sorriso.

 

— Por que não me falas? murmurava ela docemente; não conheces tua Isabel?... Dize outra vez que me amas! Dize sempre essa palavra, para que minha alma não duvide da felicidade! Eu te suplico!...

 

E com o ouvido atento, com os lábios entreabertos, o seio palpitante, ela esperava o som dessa voz querida e o eco dessa primeira e última palavra de seu triste amor.

 

Mas o silêncio só lhe respondia; seu peito aspirava apenas as ondas dos perfumes inebriantes, que faziam circular nas suas veias uma chama ardente.

 

O aposento apresentava então um aspecto fantástico: no fundo escuro desenhava-se um circulo esclarecido, envolto por uma névoa espessa.

 

Nessa esfera luminosa como no meio de uma visão, surgiam Álvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante, a quem continuava a falar, como se ele a escutasse. A menina começava a sentir a respiração faltar-lhe; seu seio opresso sufocava-a; e entretanto uma voluptuosidade inexprimível a embriagava; um gozo imensa havia nessa asfixia de perfumes que se condensavam e rarefaziam no ar.

 

Louca, perdida, alucinada, ela ergueu-se, seu seio dilatou-se, e sua boca, entreabrindo-se, colou-se aos lábios frios e gelados de seu amante; era o seu primeiro e último beijo; o seu beijo de noiva.

 

Foi uma agonia lenta, um pesadelo horrível em que a dor lutava com o gozo, em que as sensações tinham um requinte de prazer e de sofrimento ao mesmo tempo; em que a morte, torturando o corpo, vertia na alma eflúvios celestes.

 

De repente pareceu a Isabel que os lábios de Álvaro se agitavam, que um tênue suspiro se exalava de seu peito, ainda há pouco insensível como o mármore.

 

Julgou que se iludia, mas não; Álvaro: estava vivo, realmente vivo, suas mãos apertavam as dela convulsamente; seus olhos, brilhando com um fogo estranho, se tinham fitado no rosto da moça; um sopro reanimou seus lábios, que exalaram uma palavra quase imperceptível:

 

— Isabel!...

 

A moça soltou um grito débil de alegria, de espanto, de medo; entre as idéias confusas que se agitavam na sua cabeça desvairada, lembrou-se com horror que era ela quem matava seu amante, quem o ia sacrificar por causa de um engano fatal. Fazendo um esforço extraordinário, conseguiu erguer a cabeça e ia precipitar-se para a janela, abri-la e dar entrada ao ar livre; sabia que a sua morte era inevitável; mas salvaria Álvaro.

 

No momento, porém, em que se levantava, sentiu as mãos do moço que apertavam as suas, e a obrigavam a reclinar-se sobre o leito; seus olhos encontraram de novo os olhos de seu amante.

 

Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heróico sacrifício; deixou cair a cabeça desfalecida, e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo, em que essas duas almas irmãs, confundindo-se numa só, voaram ao céu, e foram abrigar-se no seio do Criador.

 

As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original, impossível de descrever.

 

Por volta de duas horas da tarde, a porta do gabinete, impelida por um choque violento, abriu-se; e um turbilhão de fumo lançou-se por essa aberta, e quase sufocou as pessoas que ai estavam.

 

Eram Cecília e Peri.

 

A menina inquieta pela longa ausência de sua prima, soube de Peri que ela estava no seu quarto; mas o índio ocultou parte da verdade, e não disse onde deitara o corpo de Álvaro.

 

Duas vezes Cecília viera até à porta, escutara e nada ouvira; por fim resolveu-se a bater, a falar a Isabel, e não teve a menor resposta. Chamou Peri e contou-lhe o que se passava; o índio, tomado de um pressentimento meteu o ombro à porta e abriu-a.

 

Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do aposento, Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos.

 

A menina recuou, e respeitando esse mistério de um amor profundo, fez um gesto a Peri e retirou-se.

 

O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua senhora.

 

— Ela morreu feliz! disse Peri.

 

Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis, e corou.

 

 IX O CASTIGO

 O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estender-se sobre o verde-negro da floresta. D. Antônio de Mariz, apoiado ao umbral da porta, junto de sua mulher, passava o braço pela cintura de Cecília. O sol a esconder-se iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro majestoso que lhe servia de baixo-relevo.

 

O fidalgo, Cecília e sua mãe, com os olhos no horizonte, recebiam esse último raio de despedida, e mandavam o adeus extremo à luz do dia, as montanhas que os cercavam, as árvores, aos campos, ao rio, a toda a natureza.

 

Para eles esse sol era a imagem de sua vida; o ocaso era a sua hora derradeira: e as sombras da eternidade se estendiam já como as sombras da noite.

 

Os Aimorés tinham voltado, depois do combate em que os aventureiros venderam caro a sua vida; e cada vez mais sequiosos de vingança, esperavam que anoitecesse para assaltar a casa. Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento, tinham tratado de destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos.

 

Isto era fácil: além da escada de pedra, o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados; e só a árvore, que lançava os galhos sobre a cabana de Peri, oferecia um ponto de comunicação praticável para quem tivesse a agilidade e a força do índio.

 

Os selvagens, que não queriam que lhes escapasse um só inimigo, e ainda menos que esse fosse Peri, abateram a árvore, e cortaram assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo, no momento do ataque.

 

Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do óleo, Peri estremeceu, e saltando sobre a sua clavina, ia despedaçar a cabeça do selvagem; mas sorriu-se, e encostou tranqüilamente a arma à parede. Sem inquietar-se com a destruição que faziam os Aimorés, continuou no seu trabalho interrompido, e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana.

 

Ele tinha o seu plano: e para realizá-lo, começara por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecília; depois rachou uma das árvores, e durante toda a manhã ocupou-se em torcer essa longa corda, a que dava uma extraordinária importância.

 

Quando Peri terminava a sua obra, ouviu o baque da árvore que tombava sobre o rochedo; chegou-se de novo à janela, e seu rosto exprimiu uma satisfação imensa. O óleo, cortado pela raiz, deitara-se sobre o precipício, elevando a uma grande altura os seus galhos seculares, mais frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta.

 

Os Aimorés, tranqüilos por esse lado, continuaram nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas da noite.

 

Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra, Peri dirigiu-se à sala.

 

Aires Gomes, sempre infatigável, guardava a porta do gabinete; D. Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar; e Cecília, sentada sobre seus joelhos, recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava.

 

— Bebe, minha Cecília, dizia o fidalgo; é um cordial que te fará muito bem.

 

— De que serve, meu pai? Por uma hora, se tanto nos resta viver, não vale a pena! respondia a menina, sorrindo tristemente.

 

— Tu te enganas! Ainda não estamos de todo perdidos.

 

— Tendes alguma esperança? perguntou ela incrédula.

 

— Sim, tenho uma esperança, e esta não me iludirá! respondeu D. Antônio, com um acento profundo.

 

— Qual? Dizei-me!

 

— És curiosa? replicou o fidalgo sorrindo. Pois só te direi se fizeres o que te peço.

 

— Quereis que beta essa taça?

 

— Sim

 

Cecília tomou a taça das mãos de seu pai, e depois de beber, volveu para ele o seu olhar interrogador.

 

— A esperança que eu tenho, minha filha, é que nenhum inimigo passara nunca do limiar daquela porta; podes crer na palavra de teu pai e dormir tranqüila. Deus vela sobre nos.

 

Beijando a fronte pura da menina, ele ergueu-se, tomou-a nos seus braços, e recostando-a sobre a poltrona em que estivera sentado, saiu do gabinete e foi examinar o que se passava fora da casa.

 

Peri, que tinha assistido a esse diálogo entre o pai e a filha, estava ocupado em procurar no gabinete vários objetos de que tinha necessidade aparentemente:

 

Logo que achou quanto desejava, o índio encaminhou-se para a porta.

 

— Onde vais? disse Cecília, que tinha acompanhado todos os seus movimentos.

 

— Peri volta, senhora.

 

— E por que nos deixa?

 

— Porque é preciso.

 

— Ao menos volta logo. Não devemos morrer todos juntos, da mesma morte?

 

O índio estremeceu.

 

— Não; Peri morrerá; mas tu hás de viver, senhora.

 

— Para que viver, depois de ter perdido todos os seus amigos?...

 

Cecília, que há alguns momentos sentia a cabeça vacilar, os olhos cerrarem-se e um sono invencível apoderar-se dela, deixou-se cair sobre o espaldar da cadeira.

 

— Não!... Antes morrer como Isabel! murmurou a menina já entorpecida pelo sono.

 

Um meigo sorriso veio adejar nos seus lábios entreabertos, por onde se escapava a respiração doce, branda e igual.

 

Peri a princípio assustou se com esse sono repentino que não lhe parecia natural e com a palidez súbita de que se cobriram as feições de Cecília.

 

Seus olhos caíram sobre a taça que estava em cima da mesa; deitou nos lábios algumas gotas do liquido que tinham ficado no fundo e tomou-lhes o sabor: não podia conhecer o que continha; mas satisfez-se em não achar o que receara.

 

Repeliu a idéia que lhe assaltara o espírito, e lembrou-se que D. Antônio sorria no momento em que pedia à sua filha para beber, e que a sua mão não tremera apresentando-lhe a taça. Tranqüilo a este respeito, o índio, que não tinha tempo a perder, ganhou a esplanada, correu para o quarto que ocupava, e desapareceu.

 

A noite já estava fechada, e uma escuridão profunda envolvia a casa e os arredores. Durante esse tempo nenhum acontecimento extraordinário viera modificar a posição desesperada em que se achava a família a calma sinistra, que precede a grandes tempestades, plainava sobre a cabeça dessas vitimas que contavam, não as horas, mas os instantes de vida que lhes restavam.

 

D. Antônio passeava ao longo da sala, com a mesma serenidade de seus dias tranqüilos e plácidos de outrora; de vez em quando o fidalgo parava na porta do gabinete, lançava um olhar sobre sua mulher que orava e sua filha adormecida; depois continuava o passeio interrompido.

 

Os aventureiros grupados junto à porta seguiam com os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala, ou se destacava cheio de vigor e de colorido na esfera luminosa que cingia a lâmpada de prata suspensa ao teto.

 

Mudos, resignados, nenhum desses homens deixava escapar uma queixa, um suspiro que fosse; o exemplo de seu chefe reanimava neles essa coragem heróica do soldado que morre por uma causa santa.

 

Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma língua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.

 

O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível descrever a raiva, a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício.

 

Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os principais personagens desta história, e onde se vão passar as cenas talvez mais importantes do drama.

 

A calma profunda que reinava nessa solidão não tinha sido perturbada; tudo estava em silêncio: e as trevas espessas da noite não deixavam perceber os objetos a alguns passos de distancia.

 

De repente listras de fogo atravessaram o ar, e se abateram sobre o edifício; eram as setas inflamadas dos selvagens que anunciavam o começo do ataque; durante alguns minutos foi como uma chuva de fogo, uma cascata de chamas que caiu sobre a casa.

 

Os aventureiros estremeceram; D. Antônio sorriu.

 

— É chegado o momento, meus amigos. Temos uma hora de vida; preparai-vos para morrer como cristãos e portugueses. Abri as portas para que possamos ver o céu.

 

O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida, porque, tendo destruído o resto da escada de pedra, os selvagens não podiam subir ao rochedo senão escalando-o; e por maior que fosse a sua habilidade, não era possível que consumissem nisso menos tempo.

 

Quando os aventureiros abriram as portas, um vulto resvalou na sombra, e entrou na sala.

 

Era Peri.

 

 X CRISTÃO

 O índio dirigiu-se rapidamente a D. Antônio de Mariz.

 

— Peri quer salvar a senhora.

 

O fidalgo abanou a cabeça em sinal de dúvida.

 

— Escuta! replicou o índio.

 

Aproximando os lábios do ouvido de D. Antônio, falou-lhe por algum tempo em voz baixa, e num tom rápido e decisivo.

 

— Tudo está preparado: parte, desce o rio; quando a lua estender o seu arco chegarás à tribo dos Goitacás. A mãe de Peri te conhece: cem guerreiros te acompanharão à grande taba dos brancos.

 

D. Antônio de Mariz ouviu em profundo silêncio as palavras do índio; e quando ele terminou, apertou-lhe a mão com reconhecimento.

 

— Não, Peri: o que me propões é impossível. D. Antônio de Mariz não pode abandonar a sua casa, a sua família e os seus amigos no momento do perigo, ainda mesmo para salvar aquilo que ele mais ama neste mundo. Um fidalgo português não pode fugir diante do inimigo, qualquer que ele seja: morre vingando a sua morte.

 

Peri fez um gesto de desespero.

 

— Assim tu não queres salvar a senhora?

 

— Não posso, respondeu o cavalheiro; o meu dever manda que fique e partilhe a sorte de meus companheiros.

 

O índio no seu fanatismo não compreendia que houvesse uma razão capaz de sacrificar a vida de Cecília, que para ele era sagrada.

 

— Peri pensou que tu amasses a senhora! disse ele fora de si.

 

D. Antônio olhou-o com uma expressão de dignidade e nobreza.

 

— Perdôo-te a ofensa que me fizeste, amigo; porque é ainda uma prova de tua grande dedicação. Mas acredita-me; se fosse preciso que eu me votasse só ao sacrifício bárbaro dos selvagens para salvar minha filha, eu o faria sorrindo.

 

— E por que recusas o que Peri te pede?

 

— Por quê?... Porque o que tu pedes não é um sacrifício, é uma vergonha; é uma traição. Tu abandonarias tua mulher, teus companheiros, para salvar-te do inimigo, Peri?...

 

O índio abaixou a cabeça com abatimento.

 

— Demais, essa empresa demanda forças com que um velho como eu já não pode contar. Havia duas pessoas que a poderiam realizar.

 

— Quem? perguntou Peri com um raio de esperança.

 

— Uma era meu filho, que a esta hora está bem longe daqui; a outra deixou-nos esta manhã e nos espera; era Álvaro.

 

— Peri fez pela senhora o que podia; tu não queres salvá-la; Peri vai morrer a seus pés.

 

— Morrer? disse o fidalgo. Quando tens a liberdade e a vida à tua disposição? E julgas que consentirei nisto?... Nunca! Vai, Peri; conserva a lembrança de teus amigos; a nossa alma te acompanhará na terra. Adeus. Parte: o tempo urge.

 

O índio ergueu a cabeça com um gesto soberbo de indignação.

 

— Peri arriscou bastantes vezes a sua vida por ti, para ter o direito de morrer contigo; tu não podes abandonar teus companheiros; o escravo não pode abandonar sua senhora.

 

— És injusto, amigo: exprimi um desejo, não quis irrogar-te uma injúria. Se exiges uma parte do sacrifício, esta te pertence, e tu és digno dela: fica.

 

Um grito dos selvagens retroou nos ares.

 

D. Antônio, fazendo um gesto aos aventureiros, encaminhou-se para o gabinete.

 

Cecília, adormecida sobre a cadeira de espaldar, sorria, como se algum sonho alegre a embalasse no seu sono tranqüilo; o rosto um pouco pálido, moldurado pelas tranças louras de seus cabelos, tinha a expressão suave da inocência feliz.

 

O fidalgo, contemplando sua filha, sentiu uma dor pungente e quase arrependeu-se de não ter aceitado o oferecimento de Peri, e de não tentar ao menos esse último esforço para defender aquela vida que apenas começava a expandir-se.

 

Mas podia ele mentir ao seu passado e faltar ao dever imperioso que o obrigava a morrer no seu posto? Podia trair na sua última hora àqueles que haviam partilhado a sua sorte?

 

Tal era o sentimento de honra naqueles antigos cavalheiros, que D. Antônio nem um momento admitiu a idéia de fugir para salvar sua filha; se houvesse outro meio, decerto o receberia como um favor do céu; mas aquele era impossível.

 

Enquanto o espírito do fidalgo se debatia nessa luta cruel, Peri, de pé, junto de Cecília, parecia querer ainda protegê-la contra a morte inevitável que a ameaçava. Dir-se-ia que o índio esperava algum socorro imprevisto, algum milagre que salvasse sua senhora; e que aguardava o momento de fazer por ela tudo quanto fosse possível ao homem.

 

D. Antônio, vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem, tornou-se ainda mais pensativo; quando, passado esse momento de reflexão, ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam com um raio de esperança.

 

Atravessou o espaço que o separava de sua filha, e, tomando a mão de Peri, disse-lhe com uma voz profunda e solene:

 

— Se tu fosses cristão, Peri!...

 

O índio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.

 

— Por quê?... perguntou ele.

 

— Por quê?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria a salvação de minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à minha irmã.

 

O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do intimo da alma.

 

— Peri quer ser cristão! exclamou ele.

 

D. Antônio lançou-lhe um olhar úmido de reconhecimento.

 

— A nossa religião permite, disse o fidalgo, que na hora extrema todo o homem possa dar o batismo. Nós estamos com o pé sobre o túmulo. Ajoelha, Peri!

 

O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça.

 

— Sê cristão! Dou-te o meu nome.

 

Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora.

 

— Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e defenderes minha filha. Conheço a tua alma nobre, conheço o teu heroísmo e a tua sublime dedicação por Cecília, Mas quero que me faças um outro juramento.

 

— Qual? Peri está pronto para tudo.

 

— Juras que, se não puderes salvar minha filha, ela não cairá nas mãos do inimigo?

 

— Peri te jura que ele levará a senhora à tua irmã; e que se o Senhor do céu não deixar que Peri cumpra a sua promessa, nenhum inimigo tocará em tua filha; ainda que para isso seja preciso queimar uma floresta inteira.

 

— Bem; estou tranqüilo. Ponho minha Cecília, sob tua guarda; e morro satisfeito. Podes partir.

 

— Manda fechar todas as portas.

 

Os aventureiros obedeceram a ordem do fidalgo; todas as portas se fecharam; o índio empregava este meio para ganhar tempo.

 

Os gritos e bramidos dos selvagens, que continuavam com algumas interrupções, foram se aproximando da casa; conhecia-se que escalavam o rochedo nesse momento.

 

Alguns minutos se passaram numa ansiedade cruel. D. Antônio de Mariz depositou um último beijo na fronte de sua filha; D. Lauriana apertou ao seio a cabeça adormecida da menina e envolveu-a numa manta de seda.

 

Peri, com o ouvido atento, o olhar fito na porta, esperava. Ligeiramente apoiado sobre o espaldar da cadeira, as vezes estremecia de impaciência e batia com o pé sobre o pavimento da sala.

 

De repente, um grande clamor soou em torno da casa; as chamas lamberam com as suas línguas de fogo as frestas das portas e janelas; o edifício tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se lançava furiosa no meio do incêndio.

 

Peri, apenas ouviu o primeiro grito, reclinou sobre a cadeira e tomou Cecília nos braços; quando o estrondo soou na porta larga do salão, o índio já tinha desaparecido.

 

Apesar da escuridão profunda que reinava em todo o interior da casa, Peri não hesitou um momento; caminhou direito ao quarto onde habitara sua senhora e subiu à janela.

 

Uma das palmeiras da cabana estendia-se por cima do precipício e apoiava-se a trinta palmos de distancia sobre um dos galhos da árvore que os Aimorés tinham abatido durante o dia para tirarem aos habitantes da casa a menor esperança de fuga.

 

Peri, apertando Cecília nos braços, firmou o pé sobre essa ponte frágil, cuja face convexa tinha quando muito algumas polegadas de largura.

 

Quem lançasse os olhos nesse momento para aquela banda da esplanada veria ao pálido clarão do incêndio deslizar-se lentamente por cima do precipício um vulto hirto, como um dos fantasmas que, segundo a crença popular, atravessavam à meia-noite as velhas ameias de algum castelo em ruínas.

 

A palmeira oscilava, e Peri, embalando se sobre o abismo, adiantava-se vagarosamente para a encosta oposta. Os gritos dos selvagens repercutiam nos ares de envolta com o estrépito dos tacapes que abalavam as portas da sala e as paredes do edifício.

 

Sem se inquietar com a cena tumultuosa que deixava após si, o índio ganhou a encosta oposta, e segurando com uma mão nos galhos da árvore, conseguiu tocar a terra sem o menor acidente.

 

Então, fazendo uma volta para não aproximar-se do campo dos Aimorés, dirigiu-se à margem do rio; ai estava escondida entre as folhas a pequena canoa que servia outrora para os habitantes da casa atravessarem o Paquequer.

 

Durante a ausência de uma hora que Peri tinha feito, quando deixara Cecília adormecida, ele havia tudo preparado para essa empresa arriscada que devia salvar sua senhora.

 

Graças à sua atividade espantosa, armou com o auxilio da corda a ponte pênsil sobre o precipício, correu ao rio, amarrou a canoa no lugar que lhe pareceu mais propicio, e em duas viagens levou a esse barquinho, que ia servir de morada a Cecília durante alguns dias, tudo quanto a menina podia carecer.

 

Eram roupas, uma colcha de damasco com que se poderia arranjar um leito, alguns alimentos que restavam na casa; lembrou-se até que D. Antônio devia ter necessidade de dinheiro logo que chegasse ao Rio de Janeiro, porque Peri contava que o fidalgo não duvidaria salvar sua filha.

 

Chegando à beira do rio, o índio deitou sua senhora no fundo da canoa, como uma menina no seu berço, envolveu-a na manta de seda para abrigá-la do orvalho da noite, e tomando o remo, fez a canoa saltar como um peixe sobre as águas.

 

A algumas braças de distancia, por entre uma aberta da floresta, Peri viu sobre o rochedo a casa iluminada pelas chamas do incêndio, que começava a lavrar com alguma intensidade.

 

De repente uma cena fantástica, terrível passou diante de seus olhos, como uma dessas visões rápidas que brilham e se apagam de repente no delírio da imaginação.

 

A frente da casa estava às escuras; o fogo ganhara as outras faces do edifício e o vento o lançava para o fundo. Peri do primeiro olhar tinha visto os vultos dos Aimorés a se moverem nas sombras e a figura horrível e medonha de Loredano, erguendo-se como um espectro no meio das chamas que o devoravam.

 

De repente a fachada do edifício tombou sobre a esplanada, esmagando na sua queda um grande número de selvagens.

 

Foi então que o quadro fantástico se desenhou aos olhos de Peri.

 

A sala era um mar de fogo; os vultos que se moviam nessa esfera luminosa pareciam nadar em vagas de chamas.

 

No fundo destacava o vulto majestoso de D. Antônio de Mariz de pé no meio do gabinete, elevando com a mão esquerda uma imagem do Cristo e com a direita abaixando a pistola para a cava escura onde dormia o vulcão.

 

Sua mulher abraçava os seus joelhos calma e resignada; Aires Gomes e os poucos aventureiros que restavam, imóveis e ajoelhados a seus pés, formavam o baixo-relevo dessa estátua digna de um grande cinzel.

 

Sobre o montão de ruínas formado pela parede que desmoronara, desenhavam-se as figuras sinistras dos selvagens, semelhantes a espíritos diabólicos dançando nas chamas infernais.

 

Tudo isso, Peri viu de um só relance de olhos, como um painel vivo iluminado um momento pelo clarão instantâneo do relâmpago.

 

Um estampido horrível reboou por toda aquela solidão: a terra tremeu, e as águas do rio se encapelaram como batidas pelo tufão. As trevas envolveram o rochedo há pouco esclarecido pelas chamas, e tudo entrou de novo no silêncio profundo da noite.

 

Um soluço partiu o peito de Peri, talvez a única testemunha dessa grande catástrofe.

 

Dominando a sua dor, o índio vergou sobre o remo, e a canoa voou pela face lisa e polida do Paquequer.

 

 XI EPÍLOGO

 Quando o sol, erguendo-se no horizonte, iluminou os campos, um montão de ruínas cobria as margens do Paquequer.

 

Grandes lascas de rochedos, talhadas de um golpe e semeadas pelo campo, pareciam ter saltado do malho gigantesco de Novos Ciclopes.

 

A eminência sobre a qual estava situada a casa tinha desaparecido, e no seu lugar via-se apenas uma larga fenda semelhante à cratera de algum vulcão subterrâneo.

 

As árvores arrancadas dos seus alvéolos, a terra revolta, a cinza enegrecida que cobria a floresta, anunciavam que por ai tinham passado algum desses cataclismas que deixam após si a morte e a destruição.

 

Aqui e ali entre os cômoros das ruínas aparecia alguma índia, resto da tribo dos Aimorés, que tinha ficado para chorar a morte dos seus, e levar às outras tribos a noticia dessa tremenda vingança.

 

Quem plainasse nesse momento sobre aquela solidão, e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abriam em torno, se a vista pudesse devassar a distancia de muitas léguas, veria ao longe, na larga esteira do Paraíba, passar rapidamente uma forma vaga e indecisa.

 

Era a canoa de Peri, que impelida pelo remo e pela viração da manhã corria com uma velocidade espantosa, semelhando uma sombra a fugir das primeiras claridades do dia.

 

Toda a noite o índio tinha remado sem descansar um momento; não ignorava que D. Antônio de Mariz na sua terrível vingança havia exterminado a tribo dos Aimorés, mas desejava apartar-se do teatro da catástrofe, e aproximar-se dos seus campos nativos.

 

Não era o sentimento da pátria, sempre tão poderoso no coração do homem; não era o desejo de ver sua cabana reclinada à beira do rio e abraçar sua mãe e seus irmãos, que dominava sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor.

 

Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo; era o sentimento de orgulho que se apoderava dele, pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os obstáculos, e realizar a missão de que se havia encarregado.

 

Quando o sol, no meio de sua carreira, lançava torrentes de luz sobre esse vasto deserto, Peri sentiu que era tempo de abrigar Cecília dos raios abrasadores, e fez a canoa abicar à beira do rio na sombra de uma ramagem de árvores.

 

A menina envolta na sua manta de seda, com a cabeça apoiada sobre a proa do barquinho, dormia ainda o mesmo sono tranqüilo da véspera; as cores tinham voltado, e sob a alvura transparente de sua pele brilhavam esses tons cor-de-rosa, esse colorido suave, que só a natureza, artista sublime, sabe criar.

 

Peri tomou a canoa nos seus braços, como se fora um berço mimoso, e deitou-a sobre a relva que cobria a margem do rio; depois sentou-se ao lado, e com os olhos fitos em Cecília, esperou que ela saísse desse sono prolongado que começava a inquietá-lo.

 

Tremia lembrando-se da dor que sua senhora ia sentir quando soubesse a desgraça de que ele fora testemunha na véspera; e não se achava com forças de responder ao primeiro olhar de surpresa que a menina lançaria em torno de si, logo que despertasse no meio do deserto.

 

Enquanto durou o sono, Peri, com o braço apoiado à borda da canoa e o corpo reclinado sobre o rosto da menina, esperando com ansiedade o momento que ele desejava e temia ao mesmo tempo, velava sobre Cecília, com um cuidado e uma solicitude admirável.

 

A mãe, a mais extremosa não se desvelaria tanto por seu filho, como esse amigo dedicado por sua senhora; uma réstia de sol que, enfiando-se pelas folhas, vinha brincar no rosto da menina, um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto, um inseto que saltava na relva, tudo ele afastava para não perturbar o seu repouso.

 

Cada minuto que passava era uma nova inquietação para ele; porém era também um instante mais de sossego e de tranqüilidade que a menina gozava, antes de saber a desgraça que pesava sobre ela, e que a privara de sua família.

 

Um longo suspiro elevou o seio de Cecília; seus lindos olhos azuis se abriram e cerraram, deslumbrados pela claridade do dia; ela passou a mão delicada pelas pálpebras rosadas, como para afugentar o sono, e seu olhar límpido e suave foi pousar no rosto de Peri. Soltou um gritozinho de prazer, e sentando-se com vivacidade, lançou um olhar de surpresa e admiração em torno da espécie de pavilhão de folhagem que a cercava; parecia interrogar as árvores, o rio, o céu; mas tudo emudecia.

 

Peri não se animava a pronunciar uma palavra; via o que se passava na alma de sua senhora, e não tinha a coragem de dizer a primeira letra do enigma que ela não tardaria a compreender.

 

Por fim, a menina, baixando a vista para ver onde estava, descobriu a canoa, e lançando um volver rápido para o vasto leito do Paraíba que se espreguiçava indolentemente pela floresta, ficou branca como a cambraia do seu roupão.

 

Voltou-se para o índio com os olhos extremamente dilatados, os lábios trêmulos, a respiração presa, o seio ofegante, e suplicando com as mãozinhas juntas:

 

— Meu pai!... meu pai!... exclamou soluçando.

 

O selvagem deixou cair a cabeça sobre o peito e escondeu o rosto nas mãos.

 

— Morto!... Minha mãe também morta!... Todos mortos!...

 

Vencida pela dor, a menina apertou convulsamente o seio que lhe estalava com os soluços, e reclinando-se como o cálice delicado de uma flor que a noite enchera de orvalho, desfez-se em lágrimas.

 

— Peri só podia salvar a ti, senhora! murmurou o índio tristemente.

 

Cecília ergueu a cabeça altiva.

 

— Por que não me deixaste morrer com os meus?... exclamou ela numa exaltação febril. Pedi-te eu que me salvasses? Precisava de teus serviços?...

 

Seu rosto tomou uma expressão de energia extraordinária.

 

— Tu vais me levar ao lugar onde descansa o corpo de meu pai. É ai que deve estar sua filha... Depois partirás!... Não careço de ti.

 

Peri estremeceu.

 

— Escuta, senhora... balbuciou ele em tom submisso.

 

A menina lançou-lhe um olhar tão imperioso, tão soberano, que o índio emudeceu, e voltando o rosto escondeu as lágrimas que lhe molhavam as faces.

 

Cecília caminhou até a beira do rio e com os olhos estendidos pelo horizonte, que ela supunha ocultar o lugar em que habitara, ajoelhou e fez uma oração longa e ardente.

 

Quando ergueu-se, estava mais calma: a dor tinha-se repassado do consolo sublime da religião, dessa doçura e suavidade que infiltra no coração a esperança de uma vida celeste, que reuna aqueles que se amaram na terra.

 

Ela pôde então refletir sobre o que se tinha passado na véspera: e procurou lembrar-se das circunstâncias que haviam precedido à morte de sua família. Todas as suas recordações, porém, chegavam unicamente até o momento em que, já meio adormecida, falava a Peri, e dizia essa palavra ingênua e inocente que lhe escapara do intimo da alma:

 

— Antes morrer como Isabel!

 

Lembrando-se dessa palavra corou; e vendo-se só no deserto com Peri, sentiu uma inquietação vaga e indefinida, um sentimento de temor e de receio, cuja causa não sabia explicar.

 

Seria essa desconfiança súbita proveniente da cólera que ela sentira, porque o índio salvara a sua vida, e a arrancara da desgraça que tinha destruído toda a sua família?

 

Não; não era essa a causa; ao contrário, Cecília conhecia que fora injusta para com seu amigo que tinha talvez feito impossíveis por ela; e a não ser o receio instintivo que se aponderara involuntariamente de sua alma, já o teria chamado para pedir-lhe perdão daquelas palavras duras e cruéis.

 

A menina ergueu os olhos tímidos e encontrou o olhar triste e súplice de Peri: não pôde resistir; esqueceu os seus receios, e um tênue sorriso fugiu-lhe pelos lábios.

 

— Peri!...

 

O índio estremeceu, mas desta vez de alegria e de contentamento; veio cair aos pés de sua senhora, que ele encontrava de novo boa como sempre tinha sido.

 

— Perdoa a Peri, senhora!

 

— És tu que me deves perdoar, porque te fiz sofrer; não é verdade? Mas bem sabes!... Não podia abandonar meu pobre pai!

 

— Foi ele que mandou a Peri que te salvasse! disse o índio.

 

— Como?... exclamou a menina. Conta-me, meu amigo.

 

O índio fez a narração da cena da noite antecedente desde que Cecília tinha adormecido até o momento em que a casa saltara com a explosão, restando dela apenas um montão de ruínas.

 

Contou que ele tinha preparado tudo para que D. Antônio de Mariz fugisse, salvando Cecília; mas que o fidalgo recusara, dizendo que a sua lealdade e a sua honra mandavam que morresse no seu posto.

 

— Meu nobre pai! murmurou a menina enxugando as lágrimas.

 

Houve um instante de silêncio, depois do qual Peri concluiu a sua narração, e referiu como D. Antônio de Mariz o tinha batizado, e lhe havia confiado a salvação de sua filha.

 

— Tu és cristão, Peri?... exclamou a menina, cujos olhos brilharam com uma alegria inefável.

 

— Sim; teu pai disse: "Peri, tu és cristão; dou-te o meu nome!"

 

— Obrigado, meu Deus, disse a menina juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu.

 

Depois envergonhada desse movimento espontâneo, escondeu o rosto: o rubor que cobriu as suas faces tingiu de uns longes cor-de-rosa as linhas puras do colo acetinado.

 

Peri ergueu-se e foi colher alguns frutos delicados que serviram de refeição à sua senhora.

 

O sol tinha quebrado a sua força, era tempo de continuar a viagem e aproveitar a frescura da tarde para vencer a distancia que os separava do campo dos goitacás.

 

O índio chegou-se trêmulo para a menina:

 

— Que queres tu que Peri faça, senhora?

 

— Não sei, respondeu Cecília indecisa.

 

— Não queres que Peri te leve à taba dos brancos?

 

— É a vontade de meu pai?... deves cumpri-la.

 

— Peri prometeu a D. Antônio levar-te à sua irmã.

 

O índio fez a canoa boiar sobre as águas do rio, e quando tomou a menina nos seus braços para deitá-la no barquinho, ela sentiu pela primeira vez na sua vida que o coração de Peri palpitava sobre o seu seio.

 

A tarde estava soberba; os raios do sol no ocaso, filtrando por entre as folhas das árvores, douravam as flores alvas que cresciam pela beira do rio.

 

As rolas começavam a soltar os seus arrulhos no fundo da floresta; e a brisa, que passava ainda tépida das exalações da terra, vinha impregnada de aromas silvestres.

 

A canoa resvalou pela flor da água como uma garça ligeira levada pela correnteza do rio.

 

Peri remava sentado na proa.

 

Cecília, deitada no fundo, meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado, engolfava-se nos seus pensamentos, e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas, e a frescura do ar e das águas.

 

Quando os seus olhos encontravam os de Peri, os longos cílios desciam ocultando um momento o seu olhar doce e triste.

 

A noite estava serena.

 

A canoa, vogando sobre as águas do rio, abria essas flores de espuma, que brilham um momento à luz das estrelas, e se desfazem como o sorriso da mulher.

 

A brisa tinha escasseado; e a natureza adormecida respirava a calma tépida e perfumada das noites americanas, tão cheias de enlevo e encanto.

 

A viagem fora silenciosa: essas duas criaturas abandonadas no meio do deserto, sós em face da natureza, emudeciam, como se temessem despertar o eco profundo da solidão.

 

Cecília repassava na memória toda a sua vida inocente e tranqüila, cujo fio dourado tinha-se rompido de uma maneira tão cruel; mas era sobretudo o último ano dessa existência, desde o dia do aparecimento imprevisto de Peri, que se desenhava na sua imaginação.

 

Por que interrogava ela assim os dias que tinha vivido no remanso da felicidade? Por que o seu espírito voltava ao passado, e procurava ligar todos esses fatos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros anos dera tão pouco apreço?

 

Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia; sua alma inocente e ignorante tinha-se iluminado com uma súbita revelação; novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento.

 

Volvendo ao passado admirava-se de sua existência, como os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo; não se reconhecia na imagem do que fora outrora, na menina isenta e travessa.

 

Toda a sua vida estava mudada: a desgraça tinha operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher.

 

Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança; as cores tinham tons harmoniosos, o ar perfumes inebriantes, a luz reflexos aveludados, que seus sentidos não conheciam.

 

Uma flor, que antes era para ela apenas uma bela forma, parecia-lhe agora uma criatura que sentia e palpitava; a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras, murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis, notas místicas que ressoavam no seu coração.

 

Peri, julgando sua senhora adormecida, remava docemente para não perturbar o seu repouso; a fadiga começava a vencê-lo; apesar de sua coragem indomável e de sua vontade poderosa, as forças estavam exaustas.

 

Apenas vencedor da luta terrível que travara com o veneno, tinha começado a empresa quase impossível da salvação de sua senhora; havia três dias que seus olhos não se cerravam, que seu espírito não repousava um instante.

 

Tudo quanto a natureza permitia à inteligência e ao poder do homem, ele tinha feito; e contudo não era a fadiga do corpo que o vencia, eram sim as emoções violentas por que passara durante esse tempo.

 

O que ele tinha sentido quando plainava sobre o abismo, e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso, de uma oscilação da haste frágil que lhe servia de ponte pênsil, ninguém compreenderia.

 

O que sofreu quando Cecília no seu desespero pela morte de seu pai o acusava por tê-la salvado, e lhe dava ordem de levá-la ao lugar onde repousavam as cinzas do velho fidalgo, é impossível de descrever.

 

Foram horas de martírio, de sofrimento horrível, em que sua alma sucumbiria, se não achasse na sua vontade inflexível e na sua dedicação sublime um conforto para a dor, e um estimulo para triunfar de todos os obstáculos.

 

Eram essas emoções que o venciam, e ainda depois de vencidas; ele conheceu que seus músculos de aço, escravos submissos que obedeciam ao seu menor desejo, se distendiam como a corda do arco depois do combate. Lembrou-se que sua senhora precisava dele e que devia aproveitar esses momentos em que ela repousava para pedir ao sono novo vigor e novas forças.

 

Ganhou o meio do rio, e escolhendo um lugar onde não chegava nem um galho das árvores que cresciam nas ribanceiras,- amarrou a canoa nos nenúfares que boiavam à tona da água.

 

Tudo estava quieto; a terra ficava a uma distancia de muitas braças; portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão prateado, debaixo da abobada azul do céu; as ondinhas a embalariam no seu berço, as estrelas vigiariam o seu sono.

 

Livre de inquietação, Peri encostou a cabeça na borda da canoa; um momento depois suas pálpebras entorpecidas cerraram-se a pouco e pouco; seu último olhar, esse olhar vago e incerto que adeja na pupila já meio adormecida, viu desenhar-se na sombra uma forma alva e graciosa que se reclinava docemente para ele.

 

Não era um sonho, essa linda visão. Cecília sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações; sentou-se, e debruçando-se um pouco viu que seu amigo dormia, e acusou-se por não ter há mais tempo exigido dele esse instante de repouso.

 

O primeiro sentimento que se apoderou da menina, vendo-se só, foi o terror solene e respeitoso que infunde a solidão no meio do deserto, nas horas. monas da noite.

 

O silêncio parece falar; as sombras se povoam de seres invisíveis; os objetos, na sua imobilidade, como que oscilam pelo espaço.

 

É ao mesmo tempo o nada com o seu vácuo profundo, imenso, infinito; e o caos com a sua confusão, as suas trevas, as suas formas incriadas; a alma sente que falta-lhe a vida ou a luz em torno.

 

Cecília recebeu essa impressão com um temor religioso; mas não se deixou dominar pelo susto; a desgraça a habituara ao perigo; e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta, que mesmo dormindo parecia-lhe que Peri velava sobre ela.

 

Contemplando essa cabeça adormecida, a menina admirou-se da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza.

 

Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar, não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os olhos da alma.

 

Peri, que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado, aparecia-lhe de repente como um herói; no seio de sua família estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o.

 

Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o selvagem precisava do deserto para revelar-se em todo o esplendor de sua beleza primitiva.

 

No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia e marcava o lagar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.

 

Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem.

 

As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as árvores seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza.

 

Que efusão de reconhecimento e de admiração não havia no olhar de Cecília! Era nesse momento que ela compreendia toda a abnegação do culto santo e respeitoso que o índio lhe votava!

 

As horas correram silenciosamente nessa muda contemplação; a aragem fresca que anuncia o despontar do dia bafejou o rosto da menina; e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do horizonte.

 

Sobre o relevo que formava o perfil escuro da floresta, nas sombras da noite, luziu límpida e brilhante a estrela-d’alva; as águas do rio arfaram docemente; e os leques das palmeiras se agitaram rumorejando.

 

A menina lembrou-se do seu despertar tão plácido de outrora, de suas manhãs tão descuidosas, de sua prece alegre e risonha em que agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ela e sua família.

 

Uma lágrima pendeu nos cílios dourados e caiu sobre a face de Peri; abrindo os olhos e vendo ainda a mesma doce visão que o adormecera, o índio julgou que o sonho continuava.

 

Cecília sorriu-lhe; e passou a mãozinha pelas pálpebras ainda meio cerradas de seu amigo:

 

— Dorme, disse ela, dorme; Ceci vela.

 

A música dessas palavras despertou completamente o selvagem.

 

— Não! balbuciou ele envergonhado de ter cedido à fadiga. Peri sente-se forte.

 

— Mas tu deves ter necessidade de repouso! Há tão pouco tempo que adormeceste!

 

— O dia vai raiar; Peri deve velar sobre sua senhora.

 

— E por que tua senhora não velará também sobre ti? Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!

 

O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina:

 

— Peri não entende o que tu dizes. A rolinha quando atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte; e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme, que vai buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha, senhora.

 

Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo.

 

— E tu? perguntou ela confusa e trêmula de emoção.

 

— Peri... é teu escravo, respondeu o índio naturalmente.

 

A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:

 

— A rolinha não tem escravo.

 

Os olhos de Peri brilharam; uma exclamação partiu de seus lábios:

 

— Teu...

 

Cecília com o seio palpitante, as faces vermelhas, os olhos úmidos, levou a mãozinha aos lábios de Peri, e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado.

 

— Tu és meu irmão! disse ela com um sorriso divino.

 

Peri olhou o céu como para fazê-lo confidente de sua felicidade.

 

A claridade da alvorada estendia-se sobre a floresta e os campos como um véu finíssimo; a estrela da manhã cintilava em todo o seu fulgor.

 

Cecília ajoelhou-se.

 

— Salve, rainha!...

 

O índio contemplava-a com uma expressão de ventura inefável.

 

— Tu és cristão, Peri! disse ela lançando-lhe um olhar suplicante.

 

Seu amigo compreendeu-a, e ajoelhando, juntou as mãos como ela. — Tu repetirás todas as minhas palavras; e faze por não esquecê-las. Sim?

 

— Elas vêm de teus lábios, senhora.

 

— Senhora, não! irmã!

 

Daí a pouco os murmúrios das águas confundiam-se com os acenos maviosos da voz de Cecília que recitava o hino cristão repassado de tanta unção e poesia.

 

A palavra de Peri repetia como um eco a frase sagrada.

 

Terminada a prece cristã, talvez a primeira que tinha ouvido aquelas árvores seculares, a viagem continuou.

 

Logo que o sol chegou ao zênite, Peri procurou como na véspera um abrigo para passar as horas de calma.

 

A canoa pojou num pequeno seio do rio; Cecília saltou em terra; e seu companheiro escolheu uma sombra onde ela repousasse.

 

— Espere aqui; Peri já volta.

 

— Onde vais? perguntou a menina inquieta.

 

— Ver frutos para ti.

 

— Não tenho fome.

 

— Tu os guardarás.

 

— Pois bem; eu te acompanho.

 

— Não; Peri não consente.

 

— E por quê? Não me queres junto de ti?

 

— Olha tuas roupas; olha teu pé, senhora; os espinhos do cardo te ofenderiam.

 

Com efeito Cecília estava vestida com um ligeiro roupão de cambraia; e seu pezinho que descansava sobre a relva, calçava um borzeguim de seda.

 

— Então me deixas só? disse a menina entristecendo.

 

O índio ficou um momento indeciso; mas de repente sua fisionomia expandiu-se.

 

Cortou a haste de um íris que se balançava ao sopro da aragem, e apresentou a flor à menina.

 

— Escuta, disse ele. Os velhos da tribo ouviram de seus pais, que a alma do homem quando sai do corpo, se esconde numa flor, e fica ali até que a are do céu vem buscá-la e a leva li, bem longe. É por isso que tu vês o guanumbi, saltando de flor em flor, beijando uma, beijando outra, e depois batendo as asas e fugindo.

 

Cecília, habituada à linguagem poética do selvagem, esperava a última palavra que devia fazê-la compreender o seu pensamento.

 

O índio continuou:

 

— Peri não leva a sua alma no corpo, deixa-a nesta flor. Tu não ficas só.

 

A menina sorriu, e tomando a flor escondeu-a no seio.

 

— Ela me acompanhará. Vai, meu irmão, e volta logo.

 

— Peri não se afastará; se tu o chamares, ele ouvirá.

 

— E me responderás, sim?... para que eu te sinta perto de mim...

 

O índio, antes de partir, circulou a alguma distancia o lugar onde se achava Cecília, de uma corda de pequenas fogueiras feitas de louro, de canela, urataí e outras árvores aromáticas.

 

Desta maneira tornava aquele retiro impenetrável; o rio de um lado, e do outro as chamas que afugentariam os animais daninhos, e sobretudo os répteis; o fumo odorífero que se escapava das fogueiras afastaria até mesmo os insetos. Peri não sofreria que uma vespa e uma mosca sequer ofendesse a cútis de sua senhora, e sugasse uma gota desse sangue precioso; por isso tomara todas essas precauções.

 

Cecília devia pois ficar tranqüila como se estivesse em um palácio; e de fato era um palácio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa, as folhas de dossel, as grinaldas em flores de cortinas, os sabiás de orquestra, as águas de espelho, e os raios do sol de arabescos dourados.

 

A menina viu de longe o desvelo com que seu amigo tratava de sua segurança, e acompanhou-o com o olhar até o momento em que ele desapareceu no mais espesso da mata.

 

Foi então que ela sentiu a soledade estender-se em torno e envolvê-la; insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flor que Peri lhe tinha dado.

 

Apesar de sua fé cristã, não pôde vencer essa inocente superstição do coração: pareceu-lhe, olhando o íris, que já não estava só e que a alma de Peri a acompanhava.

 

Qual é o seio de dezesseis anos que não abriga uma dessas ilusões encantadoras, nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor? Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer, e não vê numa borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança?

 

Como a humanidade na infância, o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia; mitologia mais graciosa e mais poética do que as criações da Grécia; o amor é o seu Olimpo povoado de deusas ou deuses de uma beleza celeste e imortal.

 

Cecília amava; a gentil e inocente menina procurava iludir-se a si mesma, atribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma afeição fraternal, e ocultando, sob o doce nome de irmão, um outro mais doce que titilava nos seus lábios, mas que seus lábios não ousavam pronunciar.

 

Mesmo só, de vez em quando um pensamento que passava no seu espírito, incendia-lhe as faces de rubor, fazia palpitar-lhe o seio e pender molemente a cabeça, como a haste da planta delicada quando o calor do sol fecunda a florescência.

 

Em que pensava ela, com os olhos fitos no íris, que o seu hálito bafejava, com as pálpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre os joelhos?

 

Pensava no passado que não voltaria; no presente que devia escoar-se rapidamente; e no futuro que lhe aparecia vago, incerto e confuso.

 

Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão de sangue, cujo destino ignorava, e um irmão de alma, em que tinha concentrado todas as afeições que perdera.

 

Um sentimento de tristeza profunda anuviava o seu semblante, lembrando-se de seu pai, de sua mãe, de Isabel, de Álvaro, de todos que amava e que formavam o universo para ela; então o que a consolava era a esperança de que os dois únicos corações que lhe restavam, não a abandonariam nunca.

 

E isto a fazia feliz; não desejava mais nada; não pedia a Deus mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e enchendo o futuro com as recordações do passado.

 

A sombra das árvores já beijava as águas do rio, e Peri ainda não tinha voltado; Cecília assustou-se, e, temendo que lhe tivesse sucedido alguma coisa, chamou por ele.

 

O índio respondeu longe, e pouco depois apareceu entre as árvores; o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado, a julgar pelos objetos que trazia.

 

— Como tardaste!... disse-lhe Cecília erguendo-se e indo ao seu encontro.

 

— Tu estavas sossegada; Peri aproveitou para não te deixar amanhã.

 

— Amanhã só?

 

— Sim, porque depois chegaremos.

 

— Aonde? perguntou a menina com vivacidade.

 

Aos campos dos goitacás, à cabana de Peri, onde tu mandarás a todos os guerreiros da tribo.

 

— E depois, como iremos ao Rio de Janeiro?

 

— Não te inquietes; os goitacás têm igaras grandes como aquela árvore que toca às nuvens; quando eles atiram o remo, elas voam sobre as águas como a atiati de asas brancas. Antes que a lua, que vai nascer, tenha desaparecido, Peri te deixará com a irmã de teu pai.

 

— Deixará!... exclamou a menina, empalidecendo. Tu queres me abandonar?

 

— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente; não pode viver na taba dos brancos.

 

— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és tu cristão como Ceci?

 

— Sim; porque era preciso ser cristão para te salvar; mas Peri morrerá selvagem como Ararê.

 

— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás comigo e não me deixarás nunca!

 

— Vê, senhora: a flor que Peri te deu já marchou porque saiu de sua planta; e a flor estava no teu seio. Peri na taba dos brancos, ainda mesmo junto de ti, será como esta flor; tu terás vergonha de olhar para ele.

 

— Peri!... exclamou a menina ofendida.

 

— Tu és boa; mas todas as que têm a tua cor, não têm o teu coração. Li o selvagem seria um escravo dos escravos; e quem nasceu o primeiro, pode ser teu escravo; mas é senhor dos campos, e manda aos mais fortes.

 

Cecília, admirando o reflexo de nobre orgulho que brilhava na fronte do índio, sentiu que não podia combater a sua resolução ditada por um sentimento elevado. Reconheceu que havia no fundo de suas palavras uma grande verdade, que o seu instinto adivinhava: ela tinha a prova na revolução que se operara no seu espírito, vendo Peri no meio do deserto, livre, grande, majestoso como um rei.

 

Qual não seria pois a conseqüência dessa outra transição, muito mais brusca? Numa cidade, no meio da civilização, o que seria um selvagem, senão um cativo, tratado por todos com desprezo?

 

No íntimo de sua alma quase que aprovava a resolução de Peri; mas não podia afazer-se à idéia de perder seu amigo, seu companheiro, a única afeição que talvez ainda lhe restava no mundo.

 

Durante esse tempo, o índio preparava a simples refeição que lhes oferecia a natureza. Deitou sobre uma folha larga os frutos que tinha colhido: eram os araçás, os jambos corados, os ingás de polpa macia, os cocos de várias espécies.

 

A outra folha continha favos de uma pequena abelha, que fabricara a sua colmeia no tronco de uma catuíba, de sorte que o mel puro e claro tinha perfumes deliciosos; dir-se-ia mel de flores.

 

O índio tornou côncava uma palma larga e encheu-a com o suco do ananás, cuja fragrância é como a essência do sabor: era o vinho que devia servir ao banquete frugal.

 

Numa segunda palma, também côncava, apanhou a água cristalina da corrente que murmurava a alguns passos; devia servir para Cecília lavar as mãos depois da refeição.

 

Quando acabou esses preparativos que ele fazia com uma satisfação inexprimível, Peri sentou-se junto da menina e começou a trabalhar num arco de que precisava. O arco era a sua arma favorita, e sem ele, embora possuísse a clavina e as munições que por precaução deitara na canoa para servirem a D. Antônio de Mariz, não tinha tranqüilidade de espírito e confiança plena na sua agilidade. Reparando, porém, que sua senhora não tocava nos alimentos, ergueu a cabeça e viu o rosto da menina banhado de lágrimas, que calam em pérolas sobre os frutos e os rociavam como gotas de orvalho.

 

Não era preciso adivinhar para conhecer a causa dessas lágrimas.

 

— Não chora, senhora, disse o índio aflito; Peri te falou o que sentia; manda, e Peri fará a tua vontade.

 

Cecília olhou-o com uma expressão de melancolia que partia a alma.

 

— Queres que Peri fique contigo? Ele ficará; todos serão seus inimigos; todos o tratarão mal; desejara defender-te e não poderá; quererá servir-te e não o deixarão; mas Peri ficará.

 

— Não, respondeu Cecília; não exijo de ti esse último sacrifício. Deves viver onde nasceste, Peri.

 

— Mas tu vais ainda chorar!

 

— Vê, disse a menina enxugando as lágrimas; estou contente.

 

— Agora toma uma fruta.

 

— Sim; juntaremos juntos, como jantavas outrora no meio das matas com tua irmã.

 

— Peri nunca teve irmã.

 

— Mas tens agora, respondeu ela sorrindo.

 

E como uma filha das florestas, uma verdadeira americana, a gentil menina fez a sua refeição, partilhando-a com seu companheiro, e acompanhando-a dos gestos inocentes e faceiros que só ela sabia ter.

 

Peri admirava-se da mudança brusca que se tinha operado em sua senhora, e no fundo do seu coração sentia um aperto, pensando que ela se consolara bem depressa com a lembrança da separação.

 

Mas ele não era egoísta, e preferia a alegria de sua senhora a seu prazer; porque vivia antes da vida dela do que da sua própria.

 

Depois da refeição, Peri voltou ao seu trabalho.

 

Cecília, que desde o primeiro dia sentia-se abatida e lânguida, tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons dias.

 

O rosto mimoso conservava ainda a sombra melancólica que lhe deixaram impressas as cenas tristes de que fora testemunha, e sobretudo a última desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãe.

 

Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma expressão angélica, e tal mansuetude e suavidade, que dava novo encanto à sua beleza ideal.

 

Deixando seu companheiro distraído com a sua obra, chegou à beira do rio e sentou-se junto de uma moita de uvaias, à qual estava amarrada a canoa.

 

Peri viu-a afastar-se, e sempre seguindo-a com os olhos, continuou a preparar a vergôntea que devia servir-lhe de arco, e as canas selvagens, as quais o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira.

 

A menina, com a face apoiada na mão e os olhos postos na correnteza do rio, cismava; às vezes as pálpebras cerravam-se; os lábios se agitavam imperceptivelmente; nesses momentos parecia que conversava com algum espírito invisível.

 

Outras vezes, um doce sorriso despontava nos seus lábios e desfazia-se logo, como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a esconder-se no fundo do coração, donde se tinha escapado.

 

Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha, que às vezes tomava a sua cabecinha loura, à qual só faltava o diadema; a fisionomia mostrou uma expressão de energia, que lembrava o caráter de D. Antônio de Mariz.

 

Tinha tomado uma resolução; uma resolução firme, inabalável, que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdara de seu pai, e dormia no fundo de sua alma, para só revelar-se nas ocasiões extremas.

 

Levantou os olhos ao céu, e pediu a Deus um perdão para uma falta, e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa ação que ia praticar; sua oração foi breve, mas ardente e cheia de fervor.

 

Enquanto isso se passava, Peri, vendo que as sombras da terra já se deitavam sobre o leito do Paraíba, conheceu que era tempo de partir, e preparou-se para continuar a viagem.

 

No momento em que levantava-se, Cecília correu para ele, e colocou-se em face, de modo a lhe ocultar a vista do rio.

 

— Tu sabes? disse ela sorrindo; tenho uma coisa a pedir-te.

 

Esta só palavra bastava para que Peri não visse mais nada senão os olhos e os lábios de sua senhora, que iam dizer-lhe o que ela desejava.

 

— Quero que apanhes muito algodão para mim e me tragas uma pele bonita. Sim?

 

— Para quê? perguntou o índio admirado.

 

— Do algodão fiarei um vestido; da pele tu cobrirás os meus pés.

 

Peri, cada vez mais admirado, ouvia sua senhora sem compreendê-la:

 

— Assim, disse a menina sorrindo, tu me deixarás acompanhar-te, os espinhos não me farão mal.

 

O espanto do índio tinha-o tornado imóvel; mas de repente soltou um grito, e quis precipitar-se para o rio.

 

A mãozinha de Cecília apoiando-se no seu peito, reteve-o.

 

— Espera!

 

— Olha! respondeu o índio inquieto apontando para o rio.

 

A canoa, desprendida do tronco a que estava amarrada, resvalava à discrição das águas, e, girando sobre si, desaparecia levada pela correnteza.

 

Cecília depois de olhar se voltou sorrindo:

 

— Fui eu que soltei!

 

— Tu, senhora! Por quê?

 

— Porque não precisamos mais dela.

 

Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis, disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável.

 

— Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.

 

Era essa idéia que ela há pouco acariciava no seu espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.

 

Não foi sem algum esforço que ela conseguiu dominar os primeiros temores que a assaltaram, quando encarou em face essa existência longe da sociedade, na solidão, no isolamento.

 

Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?

 

A cidade lhe aparecia apenas como um recordação da primeira infância, como um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos, e nunca mais ali voltara.

 

O campo, esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes; a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas auras; o botão desatara aos raios desse sol esplêndido.

 

Toda a sua vida, todos os seus belos dias, todos os seus prazeres infantis viviam ali, falavam naqueles ecos da solidão, naqueles murmúrios confusos, naquele silêncio mesmo.

 

Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade; era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus gostos prendiam-se mais as pompas singelas da natureza, do que às festas e às galas da arte e da civilização.

 

Decidiu ficar.

 

A única felicidade que ainda podia gozar neste mundo, depois da perda de sua família, era viver com os dois entes que a amavam; essa felicidade não era possível; devia escolher entre um deles.

 

Ai o seu coração foi impelido pela força invencível que o arrastava; mas depois, envergonhando-se de ter cedido tão depressa, procurou desculpar-se a si mesma.

 

Disse então que entre seus dois irmãos era justo que acompanhasse antes aquele que só vivia para ela, que não tinha um pensamento, um cuidado, um desejo que não fosse inspirado por ela.

 

D. Diogo era um fidalgo, herdeiro do nome de seu pai; tinha um futuro diante de si, tinha uma missão a cumprir no mundo; ele escolheria uma companheira para suavizar-lhe a existência.

 

Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado, seu presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia pois que hesitar.

 

Depois, Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria: queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã; queria dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do trono celeste do Criador.

 

É impossível descrever o que se passou no espírito do selvagem ouvindo as palavras de Cecília: sua inteligência inculta, mas brilhante, capaz de elevar-se aos mais altos pensamentos, não podia compreender aquela idéia; duvidou do que escutava.

 

— Cecília fica no deserto?... balbuciou ele.

 

— Sim! respondeu a menina tomando-lhe as mãos: Cecília fica contigo e não te deixará. Tu és rei destas florestas, destes campos, destas montanhas; tua irmã te acompanhará.

 

— Sempre?...

 

— Sempre... Viveremos juntos como ontem, como hoje, como amanhã. Tu cuidas?... Eu também sou filha desta terra; também me criei no seio desta natureza. Amo este belo pais!...

 

— Mas, senhora, tu não vês que tuas mãos foram feitas para as flores e não para os espinhos; teus pés para brincar e não para andar; teu corpo para a sombra e não para o sol e a chuva?

 

— Oh! Eu sou forte! exclamou a menina erguendo a cabeça com altivez. Junto de ti não tenho medo. Quando eu estiver cansada, tu me levarás nos teus braços. A rolinha não se apóia sobre a asa de seu companheiro?

 

Era preciso ver a gentileza e a garridice com que ela dizia todas essas frases graciosas, que borbulhavam dos seus lábios! A irradiação do seu olhar, a animação do seu rosto e a travessura de seu gesto fascinavam.

 

Peri ficou extático diante da perspectiva dessa felicidade imensa, com a qual nunca sonhara; mas jurou de novo em sua alma que cumpriria a promessa feita a D. Antônio.

 

A tarde descaia; e era preciso tratar de prover aos meios de passar a noite em terra, o que seria muito mais perigoso; não para ele a quem bastava o galho de uma árvore; mas para Cecília.

 

Seguindo pela margem para escolher o lugar mais favorável, Peri soltou uma palavra de surpresa vendo a canoa que se tinha embaraçado numa dessas ilhas flutuantes feitas pelas parasitas do rio que bóiam sobre as águas.

 

Era o melhor leito que podia ter a menina no meio do deserto; puxou a canoa, alcatifou o fundo com as folhas macias das palmeiras, e, tomando Cecília nos braços, deitou-a no seu berço.

 

A menina não consentiu que Peri remasse; a canoa deslizou docemente pelo leito do rio, apenas impelida pela correnteza.

 

Cecília brincava; debruçava-se sobre as águas para colher uma flor de passagem, para perseguir um peixe que beijava a face lisa das ondas, para ter o prazer de molhar as mãos nessa água cristalina, para rever a sua imagem nesse espelho vacilante.

 

Quando tinha brincado bastante, voltava-se para seu amigo e falava-lhe com o gazeio argentino, mimoso chilrear dos lábios travessos de uma linda menina, onde as coisas mais ligeiras e mais frívolas revestem encantos e graça suprema.

 

Peri estava distraído; seu olhar fitava-se no horizonte com uma atenção extraordinária; a inquietação que se desenhava no seu semblante era o indício de algum perigo, embora ainda remoto:

 

Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos, que se destacava num fundo de púrpura e rosicler, amontoavam-se grossas nuvens escuras e pesadas, que, feridas pelos raios do ocaso, lançavam reflexos acobreados.

 

Daí a pouco a serrania desapareceu envolta nesse manto cor de bronze, que se elevava como as colunas e abóbadas de estalactites que se encontram nas grutas das nossas montanhas. O azul puro e risonho que cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura, que ia enegrecendo gradualmente à medida que a noite caia.

 

Peri voltou-se.

 

— Tu queres ir para terra, senhora?

 

— Não; estou tão bem aqui! Não foste tu que me trouxeste?

 

— Sim; mas...

 

— O quê?

 

— Nada; podes dormir sem receio!

 

Ele tinha se lembrado que entre dois perigos o melhor era preferir o mais remoto; aquele que ainda estava longe e talvez não viesse.

 

Por isso resolveu não dizer nada a Cecília, e conservar-se atento e vigilante para salvá-la, se o que ele temia se realizasse.

 

Peri havia lutado com o tigre, com os homens, com uma tribo de selvagens, com o veneno; e tinha vencido. Era chegada a ocasião de lutar com os elementos: com a mesma confiança calma e impassível, esperou pronto a aceitar o combate.

 

Anoiteceu.

 

O horizonte, sempre negro e fechado, se iluminava às vezes com um lampejo fosforescente; um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas, como o seio de uma vela enfunada pelo vento.

 

Entretanto, ao redor tudo estava quieto; as estrelas recamavam o azul do céu; a viração aninhava-se nas folhas das árvores: os murmúrios doces da solidão cantavam o hino da noite.

 

Cecília adormeceu no seu berço, murmurando uma prece.

 

Era alta noite; sombras espessas cobriam as margens do Paraíba.

 

De repente um rumor surdo e abafado, como de um tremor subterrâneo, propagando-se por aquela solidão, quebrou o silêncio profundo do ermo.

 

Peri estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta.

 

O espelho das águas, liso e polido como um cristal, refletia a claridade das estrelas, que já desmaiavam com a aproximação do dia; tudo estava imóvel e quedo.

 

O índio curvou-se sobre a borda da canoa, e de novo aplicou o ouvido; pela superfície do rio rolava um som estrepitoso: semelhante ao quebrar-se da catadupa precipitando-se do alto dos rochedos.

 

Cecília dormia tranqüilamente; sua respiração ligeira ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao sopro tênue da aragem.

 

Peri lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio. Quebrou o laço que prendia a canoa e impeliu-a para a terra com toda a força do remo, que fendeu a água rapidamente.

 

À beira do rio elevava-se uma bela palmeira, cujo alto tronco era coroado pela grande cúpula verde, formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas. Os cipós e as parasitas, engrazando-se pelos ramos das árvores vizinhas, desciam até o chão, formando grinaldas e cortinas de folhagem, que se prendiam às hastes da palmeira.

 

Tocando a margem, Peri saltou em terra, tomou Cecília meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela mata virgem que se elevava diante dele.

 

Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um gemido profundo e cavernoso.

 

Ao longe o cristal da corrente achamalotou-se; as águas frisaram-se; e um lençol de espuma estendeu-se sobre essa face lisa e polida, semelhante a uma vaga do mar desenrolando-se pela areia da praia.

 

Logo todo o leito do rio cobriu-se com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa, rumorejando como um manto de seda.

 

Então no fundo da floresta troou um estampido horrível, que veio reboando pelo espaço; dir-se-ia o trovão correndo nas quebradas da serrania.

 

Era tarde.

 

Não havia tempo para fugir; a água tinha soltado o seu primeiro bramido, e, erguendo o colo, precipitava-se furiosa, invencível, devorando o espaço como algum monstro do deserto.

 

Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo: em vez de ganhar a mata, suspendeu-se a um dos cipós, e, galgando o cimo da palmeira, ai abrigou-se com Cecília.

 

A menina, despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava, interrogou seu amigo.

 

— A água!... respondeu ele, apontando para o horizonte.

 

Com efeito, uma montanha branca, fosforescente, assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirou-se sobre o leito do rio, mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas.

 

A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o embate hercúleo.

 

Depois, outra montanha, e outra, e outra, se elevaram no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutaram corpo a corpo, esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem.

 

Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha, fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens.

 

Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nascera com o mundo.

 

As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano.

 

O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam, o estampido da torrente, os trôos do embate desses rochedos movediços, que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam um concerto horrível, digno do drama majestoso que se representava no grande cenário.

 

As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto, onde um dos elementos reinava como soberano.

 

Cecília, apoiada ao ombro de seu amigo, assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso; Peri sentia o seu corpinho estremecer; mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa, um só grito de susto.

 

Em face desses transes solenes, desses grandes cataclismas da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, aniquila-se tanto, que se esquece da existência; o receio é substituído pelo pavor, pelo respeito, pela emoção que emudece e paralisa.

 

O sol, dissipando as trevas da noite, assomou no oriente; seu aspecto majestoso iluminou o deserto; as ondas de sua luz brilhante derramaram-se em cascatas sobre um lago imenso, sem horizontes.

 

Tudo era água e céu.

 

A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea.

 

A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho das águas.

 

A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos.

 

A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente; as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso, onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma só era a sua vida.

 

Cecília esperava o seu último momento com a sublime resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria feliz; Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios.

 

— Podemos morrer, meu amigo! disse ela com uma expressão sublime. Peri estremeceu; ainda nessa hora suprema seu espírito revoltava-se contra aquela idéia, e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal.

 

— Não! exclamou ele. Tu não podes morrer.

 

A menina sorriu docemente.

 

— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água sobe, sobe...

 

— Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a todos os teus inimigos.

 

— Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Peri. Mas é Deus... É o seu poder infinito!

 

— Tu não sabes? disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente, o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento.

 

E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento.

 

Falou com um tom solene:

 

"Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.

 

"Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.

 

"Quando todos subiram aos montes ele disse:

 

‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água.’

 

"Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.

 

"Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; ai esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.

 

"A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a montanha desapareceu.

 

"A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.

 

"A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.

 

"Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.

 

"Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.

 

"Desceu com a sua companheira, e povoou a terra."

 

Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento.

 

Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras, como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes, e vinha embeber-se no seu coração, que se abria para recebê-la.

 

A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia das roupas de Cecília.

 

A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:

 

— Meu Deus!... Peri!...

 

Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.

 

Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.

 

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.

 

Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade.

 

Houve um momento de respouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível:

 

Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.

 

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.

 

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:

 

— Tu viverás!...

 

Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.

 

— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!...

 

O anjo espanejava-se para remontar ao berço.

 

— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!

 

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.

 

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.

 

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

 

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...

E sumiu-se no horizonte.

 

                                                                                             José de Alencar

 

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Carlos Cunha       Arte & Produção Visual

 

 

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