Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Dicionário Filosófico
ABRAÃO
Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos, tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael; que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido. O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade, produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas – que estes chamavam terra da promissão.
Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra
Reza o Gênesis que tinha Abraão setenta e cinco anos ao emigrar do país de Harã, após a morte de seu pai Tareu o oleiro. O mesmo Gênesis, porém, diz que Tareu, tendo gerado Abraão aos setenta anos, viveu até a idade de duzentos e cinco anos, e que Abraão só saiu de Harã depois da morte do pai. Portanto é claro, segundo o próprio Gênesis, que Abraão contava cento e trinta e cinco anos quando deixou a Mesopotâmia. Saiu de um pais idólatra para outro país idólatra: Siquêm, na Palestina. Por que? Por que deixou as férteis margens do Eufrates por terras tão remotas, estéreis e pedregosas? A língua caldaica devia ser muito diferente da língua de Siquêm. Não se tratava de lugar de comércio. Siquêm dista da Caldéia mais de cem léguas. É preciso transpor desertos para lá chegar. Mas Deus queria que Abraão realizasse essa viagem. Queria mostrar-lhe a terra que séculos depois haviam de habitar seus pósteros. Custa ao espírito humano compreender os motivos de tal peregrinação.
Mal arriba ao montanhoso rincão de Siquêm, obriga-o a fome a abandoná-lo. Vai para o Egito em companhia de sua mulher, à procura de com que viver. Duzentas léguas medeiam de Siquêm e Menfis. Será natural ir buscar trigo tão longe? Num país de que nem se sabe a língua? Estranhas viagens empreendidas à idade de quase cento e quarenta anos.
Traz a Menfis sua mulher Sara. Sara era extremamente jovem em comparação com ele, pois não contava mais que sessenta e cinco anos. Como fosse muito bonita, Abraão resolveu tirar proveito de sua beleza. “Façamos de conta que você é minha irmã,” – disse-lhe – “a fim de que me acolham com benevolência”. “Façamos de conta que é minha filha” – devia dizer. O rei enamora-se da jovem Sara e presenteia o pretenso irmão com muitas ovelhas, bois, burros, mulas, camelos e servos. O que prova – que já então era o Egito um reino poderoso e civilizado – por conseguinte antigo – e que se recompensavam magnificamente os irmãos que vinham oferecer as irmãs aos reis de Menfis.
Tinha a jovem Sara noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu que Abraão, que então tinha cento e sessenta, lhe daria um filho.
Abraão, que gostava de vigiar, tomou o caminho do hórrido deserto de Cades, acompanhado da mulher grávida, sempre jovem e bonita. Como acontecera com o rei egípcio, enamorou-se também de Sara um rei do deserto – O pai dos crentes pregou a mesma mentira que no Egito: fez passar a esposa por irmã. O que mais uma vez lhe valeu ovelhas, bois e servos. Pode-se dizer que, graças a sua mulher, Abraão se tornou riquíssimo.
Os comentaristas escreveram um número prodigioso de volumes para justificar o procedimento de Abraão e conciliar a cronologia. Cumpre-me, pois, a eles remeter o leitor. São todos espíritos finos e sutis, excelentes metafísicos, senhores sem preconceito e profundamente avessos à pedanteria.
ALMA
Seria maravilhoso ver a própria alma. Conhece-te a ti mesmo (1) é excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática. Quem mais pode conhecer a própria essência?
Alma chamamos ao que anima. É tudo o que dela sabemos: a inteligência humana tem limites. Três quartos do gênero humano não vão alêm, nem se preocupam com o ser pensante. O outro quarto indaga. Ninguém obteve nem obterá resposta.
Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas, e dizes espírito.
Mas que entendes tu por estas palavras? Aquela flor vegeta. Existirá porém um ser material – vegetação? Aquele corpo impele outro. Porém encerra ele em si um ente distinto – força? Aquele cão traz-te uma perdiz. Existirá porém um ser chamado instinto? Não te ririas de um raciocinador (teria sido preceptor de Alexandre) que te dissesse Todos os animais vivem; logo, encerram uma forma substancial – a vida?
Se uma tulipa pudesse falar e dissesse: Minha vegetação e eu somos dois seres juntos formando um só, não te ririas da tulipa?
Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo. Que andas com os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo. Que pensas com a cabeça.
Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te luzes suficientes para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma alma?
Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram: Forçoso é haver em nós algo que produza o pensamento; esse algo deve ser extremamente sutil: sopro, fogo, éter, substrato, um tênue simulacro, uma enteléquia, um número, uma harmonia. Finalmente, segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do outro. São átomos que pensam em nós, disse Epicuro depois de Demócrito. Mas, meu amigo, como pensa o átomo? Confessa que nem o imaginas.
Aceita-se seja a alma um ser imaterial. Mas vós não concebeis o que seja esse ente imaterial.
— Não, – respondem os sábios – porém conhecemos sua natureza: pensar.
— Como o sabeis?
— Porque ela pensa.
— Oh sábios! Muito receio que sejais tão ignorantes quanto Epicuro. A natureza de uma pedra é cair porque ela cai. Pergunto-vos: que a faz cair?
— Sabemos que uma pedra não tem alma.
— De acordo.
— Sabemos que uma negação, uma afirmação não são divisíveis, não são partes da matéria.
— Da mesma opinião. Mas a matéria, que aliás desconhecemos, tem qualidades não materiais, não divisíveis. Possui gravitação para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação não é formada de partes, não é divisível. A força motriz dos corpos não é ente composto de partes. A vegetação dos corpos organizados, sua vida, seu instinto, não são seres à parte, seres divisíveis. Não podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis cindir em duas uma sensação, uma negação, uma afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido da indivisibilidade do pensamento absolutamente nada prova.
Que chamais então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós mesmos, sem revelação, não podeis admitir em vós senão um poder de vós desconhecido de sentir, de pensar.
Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o mesmo que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria. Debalde vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem! Eles não caminhariam.
Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam para os órgãos uma alma animal. Para o pensamento uma alma mais tênue, mais sutil: um nous.
Mas eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa a alma animal. Ordena a alma pensante às mães que apreendam: as mãos apreendem. Porém não pode ordenar ao coração que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo isso se faz independentemente dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em maus lençóis e feitas péssimas donas de casa.
Claro que a primeira alma não existe. Não passa do movimento dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão não é capaz de provar a existência da outra também. Não podes concebê-la senão pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages. Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus conferiu-te a faculdade de pensar como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te nas idades assinaladas pela sua providência que tens uma alma imaterial e imortal, dela não terias prova alguma.
Relanceemos os interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas.
Um diz que a alma humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do todo infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não, diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados, intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto; então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno, volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que o corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o dono.
Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas as coisas. Que sua essência difere de sua potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa. Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial quanto às operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas mil páginas dessa força e dessa clareza. É o pai da escola.
Não é menor o número de sistemas forjados sobre a maneira de sentir da alma depois de desertar do corpo por meio de que sente. Como ouvirá sem ouvidos. Como olfatará sem nariz. Como tocará sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos doze ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá. Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze anos e que cretino tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das idéias interrompido na puberdade. Por que milagre uma alma que haja perdido uma perna na Europa e um braço na América reencontrará essa perna e esse braço. (Que, tendo se transformado em legumes, terão virado sangue de algum outro animal).
Singular é não haver nas leis do povo de Deus palavra sequer a respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo, nem no Levítico nem no Deuteronômio.
Em passo algum – e sobre isto não paira a menor dúvida – Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida. Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu nem os ameaça com inferno. Tudo é temporal.
Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio: “Se depois de terdes filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país e reduzidos a número ínfimo entre as nações.
“Eu sou um deus cioso que pune a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
“Honrai pai e mãe para que vivais longo tempo.
“Nunca vos faltará o que comer.
“Se seguirdes deuses estrangeiros sereis destruídos...
“Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono. Tereis frumento, óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que comais e vos farteis.
“Gravai estas palavras em vossos corações, em vossas mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos dias se multipliquem.
“Fazei o que vos ordeno sem tirar nem pôr.
“Se se erguer um profeta e vos predisser causas prodigiosas; se a predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos! Sigamos deuses estrangeiros...- matai-o incontinenti. E que todo o povo vos acompanhe.
“Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai a todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade de ninguém.
“Não comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao.
“Não comais animais que ruminem e que não tenham a unha fendida, como o camelo, a lebre, o porco espinho, etc.
“Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos vossos animais...
“Se não observardes todos os mandamentos e todas as cerimônias, amaldiçoados sereis na cidade como no campo... Padecereis fome, pobreza. Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis ronha, rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas.
“O estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não lhe emprestareis a onzena... Por não servirdes ao Senhor.
“E comereis o fruto do vosso ventre. A carne dos vossos – filhos, etc.”.
É manifesto nada haver em todas essas promessas e ameaças que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da alma. Nem uma palavra sobre vida futura.
Muitos comentadores ilustres foram de parecer que Moisés estava perfeitamente avisado destes dois grandes dogmas. Provam-no com palavras de Jacó, que julgando que seu filho fora devorado pelas feras, exclamou em sua dor: “Eu acompanharei meu filho à sepultura, in infernum, ao inferno”. Isto é: eu morrerei, já que meu filho morreu.
Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías. Porque Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos depois.
Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina que eles não estavam em condições de compreender quando no deserto.
Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada pelo estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado os primeiros cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices.
Parece que só depois da fundação de Alexandria os judeus se cindiriam em três seitas: fariseus, saduceus, essênios. Ensina o historiador fariseu José no livro 13 das Antigüidades que os fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que a alma se extinguia com o corpo. Para os essênios – é ainda José quem o afiança – a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma aérea, desciam do fastígio do firmamento violentamente atraídas pelos corpos. Após a morte as almas das pessoas boas iam morar além oceano, num país onde não fazia calor nem frio, não ventava nem chovia. Lugar de todo em todo oposto era o desterro das almas ruins. Tal a teologia dos judeus.
Aquele que devia ensinar todos os homens veio condenar essas três seitas. Sem ele, porém, jamais saberíamos coisa alguma da própria alma. Porque os filósofos nunca souberam nada certo e Moisés, único verdadeiro legislador do mundo antes do nosso, Moisés que falava com Deus face a face e não o via senão pelas costas, deixou os homens em profunda ignorância dessa magna questão. Há apenas mil e setecentos anos que estamos certos da existência e imortalidade da alma.
Cícero não tinha mais que dúvidas. Seus netos aprenderam a verdade com os primeiros galileus que arribaram a Roma.
Mas antes disso, e até depois disso em todo o resto da terra onde não penetraram os apóstolos, cada um devia dizer à própria alma: Que és tu? De onde vens? Que fazes? Para onde vais? Tu és não sei que, que pensa e que sente. Mas ainda que pensasses e sentisses cem bilhões de anos, nada saberias por tuas próprias luzes, sem o auxílio de Deus.
Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.
AMIZADE
Contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis porque um monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas porque os maus não adjungem mais que cúmplices. Os voluptuosos careiam companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos. Cétego era cúmplice de Catilina. Mecenas era cortesão de Otávio. Mas Cícero era amigo de Ático. Que estabelece esse convênio entre duas almas ternas e honestas? As obrigações são mais ou menos intensas consoante a sensibilidade de uma e de outra e o número de serviços prestados, etc.
O entusiasmo da amizade foi mais forte entre gregos e árabes que entre nós. São admiráveis as histórias que teceram esses povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em tudo um pouco secos.
A amizade era objeto de religião e legislação entre os gregos. Os tebanos tinham o regimento dos amantes. Magnífico regimento! Houve quem o tomasse por um regimento de sodomitas. Engano: seria tomar o acessório pelo essencial. A amizade era prescrita na Grécia pela lei e pela religião. Infelizmente tolerava-se a pederastia. Aliás: toleravam-na os costumes. É preciso não imputar à lei abusos vergonhosos. Voltaremos ao assunto.
AMOR
Amor omnibus idem (2). Cumpre recorrermos à imagem. O amor é a estopa da natureza bordada pela imaginação. Quereis ter uma idéia do amor? Vede os pardais do vosso jardim. Vede vossos pombos. Contemplai o touro que levam à novilha. Admirai aquele soberbo cavalo que dois de vossos camaradas conduzem à égua que passiva o espera e arreda a cauda para recebê-lo. Observai como seus olhos chamejam. Ouvi seus relinchos. Admirai aqueles saltos, aquelas curvetas, aquelas orelhas em pé, aquela boca que Se abre com ligeiras convulsões, aquelas narinas aflantes bafejando inflamadamente, aquelas crinas que se empinam e esvoaçam, o movimento imperioso com que se lança sobre o objeto que lhe destinou a natureza.
Mas não os invejeis. Pensai nas vantagens da espécie humana. Que contrabalançam força, beleza, ligeireza, impetuosidade todos os predicados de que a natureza dotou os irracionais.
Há animais que não conhecem o gozo. Carecem desse prazer os peixes escamados. A fêmea lança sobre a vasa milhões de ovas e o macho que as encontra fecunda-as com o sêmen sem preocupar-se com a dona.
A maioria dos animais que se acasalam não experimenta prazer por mais que um único sentido. Satisfeito o apetite está tudo acabado. Nenhum animal senão vós conhece os afagos. Todo o vosso corpo é sensível. Vossos lábios sobre tudo experimentam uma volúpia inexaurível – prazer exclusivo da vossa espécie. Enfim podeis amar em qualquer tempo, enquanto os animais só o podem em épocas determinadas. Se refletirdes nestas preeminências direis com, o conde de Rochester: “O amor, em um país de ateus, faria adorar a Divindade”
Como recebeu o dom de aperfeiçoar tudo o que lhe concedeu a natureza, o homem aperfeiçoou o amor. A higiene, o cuidado com o próprio corpo, tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato. O zelo da própria saúde faz mais sensíveis os órgãos da volúpia.
Todos os outros sentimentos de presto se amalgamam com o amor como metais em fusão com o ouro.
Vêem reforçá-lo a amizade, a estima. São outros elos de união os dotes do corpo e do espírito.
Nam facit ipsa suis interdum famina factis,
morigerisque modis, et mundo corpore cultu,
ut facile insuescat secum vir degere vitam.
(Lucrécio, liv. 4).
Principalmente o amor próprio estreita esses liames. Palmeamo-nos a própria escolha, e as ilusões em chusma são ornamentos dessa obra de que a natureza lançou os alicerces.
Eis o que possuís de superior aos animais. Se, porém, fruís prazeres que eles desconhecem, também quantos sofrimentos padeceis de que eles nem têm idéia! O que há de horrível para vós é haver a natureza em três quartos da terra envenenado os prazeres do amor e as fontes da vida com um mal tremendo, a que só o homem está sujeito e que lhe infecciona os órgãos da geração.
Esta peste não é como tantas outras doenças filhas de nossos excessos. Não foi a dissolução que a introduziu no mundo. As Frinéias, as Laíses, as Floras, as Messalinas não foram vítimas dela. Nasceu em ilhas onde os homens viviam na inocência e de lá propagou pelo mundo antigo.
Se alguma vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria obra, de contradizer o próprio plano, de tramar contra os próprios fins, foi então. Não tínhamos o melhor dos mundos possíveis? Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas desse mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto da melhor forma possível. Quero crer. Mas é difícil.
AMOR PRÓPRIO
Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.
AMOR SOCRÁTICO
Por que motivo um vício que se fosse geral extinguiria o gênero humano, atentado infame à natureza, é contudo tão natural ? Parece o último degrau da corrupção refletida – Entanto manieta de cotio adolescentes que nem sequer tiveram tempo de ser corrompidos. Entra corações tenros que não conhecem nem a ambição, nem a fraude, nem a sede de riqueza. É a juventude cega que, por instinto mal definido, se precipita na depravação apenas dobra a infância.
Bem cedo se manifesta a inclinação recíproca dos sexos. Mas, diga-se o que se disser das mulheres africanas e da Ásia meridional, essa inclinação é geralmente muito mais forte no homem que na mulher. É uma lei que a natureza ditou aos animais. É sempre o macho que ataca a fêmea.
Sentindo essa força que a natureza começa a insuflar-lhes e não encontrando o objeto natural do instinto, atiram-se os jovens machos da nossa espécie sobre o que melhor se lhe semelhe. Não raro, pela frescura da tez, pelo lustre das cores, pela doçura dos olhos, durante dois ou três anos um jovem parece-se a uma rapariga. Se o amamos, é porque a natureza se equivoca. Amamos nele o sexo a que evoca sua beleza. Até que, dissipando-se a semelhança, a natureza se corrige
Citraque juventam
oetatis breve ver et primos carpere flores(3)
Assaz sabido é ser esse equívoco da natureza muito mais comum nos climas suaves que nos gelos do norte. Porque nos climas mais doces o sangue é mais quente e mais freqüente a ocasião. Daí o que não se considera mais que uma fraqueza no jovem Alcibíades ser uma abominação num marinheiro holandês ou num vivandeiro moscovita.
Não posso admitir que, como se pretende, tenham os gregos autorizado semelhante licenciosidade. Cita-se o legislador Sólon por haver dito em dois maus versos:
Algum dia inda amarás
um glabro e belo rapaz.
Mas seria Sólon legislador quando escreveu essa ridícula parelha? Ainda era jovem. E quando o libertino se fez sábio, não iria incluir .tamanha infâmia nas leis da sua república. É como se se acusasse Teodoro de Besis de ter pregado o homossexualismo em sua igreja por haver, na juventude, dedicado versos ao jovem Cândido e dito:
Amplector hunc et illam.
Abusa-se do texto de Plutarco, que, em suas tagarelices no Diálogo do Amor, faz dizer a uma personagem que as mulheres não são dignas do amor verdadeiro. Outra personagem, porém, sustenta devidamente o partido das mulheres.
Certo é, tanto quanto o pode ser a ciência da antigüidade, que o amor socrático não era um amor infame. A palavra amor foi que enganou. O que se chamavam os amantes de um jovem era nem mais nem menos o que são hoje os infantes de companhia dos nossos príncipes, os jovens companheiros de educação de um menino distinto, participando dos mesmos estudos, dos mesmos exercícios militares – instituição guerreira e santa de que se abusou como das festas noturnas e das orgias.
A tropa dos amantes instituída por Laio era um corpo invencível de jovens guerreiros unidos pelo juramento de dar a vida uns pelos outros. Foi o que de mais belo possuiu a disciplina antiga.
Asseveram Sexto Empírico e outros que o homossexualismo tinha guarida nas leis da Pérsia. Que citem o texto da lei. Que mostrem o código dos persas. Mas ainda que o provem eu não acreditarei – Direi que é mentira. Porque não seria possível, não é da natureza humana elaborar uma lei que contradiz e ultraja a natureza. Lei que aniquilaria o gênero humano se fosse literalmente observada. Práticas vergonhosas toleradas pelas leis do país! Sexto Empírico, que duvidava de tudo, devia duvidar dessa jurisprudência. Se vivesse em nossos dias e visse dois ou três jesuítas abusarem de alguns escolares, teria direito de concluir ser tal depravação permitida pelas constituições de Inácio de Loiola?
Era tão comum o amor entre rapazes em Roma que ninguém pensava em puni-lo. Otávio Augusto, esse assassino devasso e poltrão que teve o desplante de exilar Ovídio, achou muito natural que Virgílio cantasse Aleixo e Horácio escrevesse odes a Ligurino. Não obstante, sempre subsistiu a lei Scantínia, preventiva da pederastia. Repô-la em vigor o imperador Filipe, que expulsou de Roma os meninos que se dedicavam ao ofício. Enfim não creio que em tempo algum nação civilizada haja lavrado leis contra os próprios costumes.
ANJO
Enviado em grego. Baldio será acrescentar que os persas tinham peris, os hebreu malakhs, os gregos seus daimones. Mas talvez nos aclare saber que uma das primeiras idéias do homem foi interpor seres intermediários entre a Divindade e nós. São os demônios, os gênios ideados pela antigüidade. O homem sempre criou os deuses à sua imagem. Viam-se os príncipes transmitir suas ordens por mensageiros: então a Divindade também tinha seus correios. Mercúrio, Isis, eram mensageiros, arautos.
Os hebreus – povo conduzido pela própria Divindade – a princípio não deram nomes aos anjos que por fim Deus condescendia em enviar-lhes. Tomaram de empréstimo os nomes que lhes davam os caldeus, quando a nação judaica esteve cativa em Babilônia. Miguel e Gabriel são referidos pela primeira vez por Daniel, escravo entre aqueles povos. O judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo Rafael, que viajou com seu filho para ajudá-lo a reaver certa soma que lhe devia o judeu Gabael.
Não se faz nas leis dos judeus, isto é, o Levítico e o Deuteronômio, a menor menção à existência dos anjos. Muito menos ao seu culto. Tão pouco criam em anjos os saduceus.
Nas histórias judaicas, porém, os anjos são a basto falados. Eram corporais e tinham asas nas costas, como imaginaram os antigos que tivesse Mercúrio nos calcanhares – Às vezes escondiam-nas sob as vestes. Como não teriam corpo se bebiam e comiam? Se os habitantes de Sodoma quiseram cometer o pecado da pederastia com os anjos que foram à casa de Ló?
Segundo Ben Memon, admitia a antiga tradição judaica dez graus, dez ordens de anjos – Primeira: cheios acodesh – puros, santos. Segunda: ofamim – rápidos Terceira: oralim – fortes. Quarta: chasmalim – flamas. Quinta: seraphim – centelhas. Sexta: malakhim – mensageiros, deputados. Sétima: eloim – deuses ou juizes. Oitava: ben eloim – filhos dos deuses. Nona: cherubim – imagens. Décima: ychim – animados.
Não consta nos livros de Moisés a história da queda dos anjos. Seu primeiro testemunho dá-no-lo o profeta Isaías, que, apostrofando o rei, exclama: “Que é feito do exator das tribos? Os pinheiros e cedros regozijam-se com sua queda. Como caíste do céu, ó Helel, estrela da manhã?” (4). Traduziu-se Helel pela palavra latina Lúcifer. Depois, em sentido alegórico, deu-se o nome de Lúcifer ao príncipe dos anjos que atiçaram a guerra no céu. Finalmente o termo, que significa fósforo e aurora, tornou-se nome do diabo.
A religião cristã funda-se na queda dos anjos. Os que se revoltaram foram precipitados das esferas que habitavam ao inferno, no centro da terra, e transmudaram-se em diabos. Um diabo transfigurado em serpente tentou Eva e desgraçou o gênero humano. Jesus veio resgatar os homens e vencer o diabo, que ainda nos tenta. Essa tradição fundamental, contudo, só a refere o livro apócrifo de Enoque. E ainda assim muito outra da tradição aceita.
Não trepida Santo Agostinho (carta centésima nona) em reportar tanto aos anjos bons como aos anjos maus corpos livres e ágeis. Reduziu o papa Gregório II a nove coros, nove hierarquias ou ordens os dez coros de anjos admitidos pelos judeus. São eles: serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, potências, arcanjos e finalmente os anjos, que emprestam o nome às oito outras hierarquias.
Tinham os judeus no templo dois querubins, cada um com duas cabeças – uma de boi e outra de águia – e seis asas. Representamo-los hoje sob a forma de uma cabeça solta com duas asinhas abaixo das orelhas.
Pintamos os anjos e os arcanjos sob a figura de jovens com um par de asas nas costas. Quanto a tronos e dominações, ainda ninguém se lembrou de retratá-los.
Diz Sto. Tomás (questão centésima oitava, artigo 2o.) estarem os tronos tão próximos de Deus quanto os serafins, pois é sobre eles que se acha sentada a Divindade. Scot contou um bilhão de anjos. Tendo o antigo mito dos gênios bons e maus passado do Oriente à Grécia e Roma, consagramo-lo admitindo para cada pessoa um anjo bom e outro mau. Um ajuda-a e o outro molesta-a do nascimento, à morte. Ainda não se estabeleceu, contudo, se esses anjos bons e maus mudam continuamente de posto ou são rendidos por outros. Consulte-se sobre o ponto a Suma de Sto. Tomás.
Outro ponto que tem dado pano a muita controvérsia é o lugar onde se conjuntariam, os anjos – no ar, no vácuo ou nos astros? Não aprouve a Deus pôr-nos a par dessas questões.
ANTROPÓFAGOS
Falamos do amor. É duro passar de pessoas que se beijam a pessoas que se comem. Não resta dúvida terem existido antropófagos. Encontramo-los na América, onde é possível que ainda os haja. Na antigüidade não foram os ciclopes os únicos a se alimentarem às vezes de carne humana. Conta Juvenal que entre os egípcios – esse povo tão sábio, tão famigerado por suas leis, esse povo tão piedoso que adorava crocodilos e cebolas – os tentiritas comeram certa vez um inimigo que lhes caiu nas mãos. Não o diz de outiva: estava no Egito, porto de Têntiro, quando se cometeu o crime quase aos seus olhos. E lembra, ao relatar o caso, os gascões e saguntinos, que outrora se alimentaram de carne dos próprios compatriotas.
Em 1725 trouxeram-se quatro selvagens do Mississipi a Fontainebleau – Tive a honra de falar-lhes. Havia entre eles uma dama do país, a quem perguntei se havia comido gente. Respondeu-me muito singelamente que sim. Fiquei um tanto escandalizado, e ela desculpou-se dizendo ser preferível comer o inimigo, depois de morto, a deixá-lo servir de pasto às feras; que demais o vencedor merecia a preferência. Nós outros, em batalha campal ou não, por fas ou por nefas matamos nossos vizinhos e. pela mais vil recompensa pomos em função o engenho da morte. Aqui é que está o horror. Aqui é que está o crime – Que importa que depois de morto se seja comido por um soldado, por um urubu ou por um cão?
Respeitamos mais os mortos que os vivos. Cumpria respeitar uns e outros. Bem fazem as nações que chamamos civilizadas em não meter no espeto os inimigos vencidos. Porque se fosse permitido comer os vizinhos, começariam a comer-se entre si os próprios compatriotas, o que seria grande desdouro para as virtudes sociais. Mas as nações que hoje são civilizadas não o foram sempre. Todas elas foram muito tempo selvagens. E com o sem número de revoluções de que tem sido palco o mundo, o gênero humano foi ora mais ora menos numeroso. Sucedeu com os homens o que hoje sucede com os elefantes, leões, tigres, cujas espécies minoraram consideravelmente. Quando uma região estava ainda escassamente povoada de seres humanos e as artes eram rudimentares, os homens se dedicavam à caça. O hábito de se alimentarem do que matavam facilmente levou-os a tratar os inimigos como tratavam os cervos e javalis. A superstição fez imolar vítimas humanas. A necessidade as fez comer.
Qual o crime maior: reunir-se religiosamente para cravar em honra da Divindade uma faca no coração de uma menina enfitada, ou comer um bandido morto em legítima defesa?
No entanto há muito mais exemplos de meninas e meninos sacrificados que de meninas e meninos comidos. Quase todas as nações conhecidas sacrificaram crianças. Os judeus imolavam-nas. É o que se chamava o anátema um verdadeiro sacrifício. Ordena-se no capítulo 27 do Levítico não se pouparem as almas viventes prometidas, porém em ponto algum se prescreve que sejam comidas. Isto era outro caso: tratava-se exclusivamente de uma ameaça. Como vimos, disse Moisés aos judeus que caso não observassem as cerimônias, não só teriam ronha, como as mães comeriam os próprios filhos. Positivamente no tempo de Ezequiel os judeus deviam comer carne humana, pois diz esse profeta no capítulo 39 que Deus os faria comer não apenas os cavalos dos seus inimigos, mas ainda os cavaleiros e os outros guerreiros. É positivo. De fato, por que não teriam os judeus sido antropófagos? Seria a última coisa a faltar ao povo de Deus para ser a mais abominável nação da terra.
Li nas anedotas da história da Inglaterra do tempo de Cromwell que uma sebeira de Dublin vendia excelentes candeias feitas com gordura de inglês. Certa vez queixou-se-lhe um de seus fregueses de que as candeias já não eram tão boas como antes. – Ah, – disse ela – é que este mês faltaram ingleses. – Pergunto eu: quem o mais culpado: quem passava os ingleses à faca ou a mulher que fazia velas com sua banha?
APIS
Era o boi Apis adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como boi? É de crer que os fanáticos nele vissem um deus, os cultos mero símbolo e que o vulgo ignorante adorasse o boi. Terá Cambises feito bem, quando conquistou o Egito, em matar esse boi com as próprias mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se podia passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o sacrilégio.
Incensaram-se muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível. Encarrapatou-se-lhes sempre no caráter e no governo um vício radical que os fez um povo de eternos e vis escravos. Que tenham, em épocas imemoriais, conquistado a terra. Na clareira dos tempos históricos, porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram dar-se ao trabalho – assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos, enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a fraqueza. Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há talvez mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro, que adorando um boi nunca constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de religião; segundo, terem inventado a chocadeira artificial.
Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?
APOCALIPSE
Justino o Mártir, que escreveu pelo ano de 170(5) da nossa era, é quem primeiro fala no Apocalipse. Perfilha-o ao apóstolo João o Evangelista. Perguntando-lhe o judeu Trifão se não cria que Jerusalém devesse ser algum dia restaurada, respondeu Justino que sim, como o acreditavam todos os cristãos que pensavam com acerto. “Houve entre nós” – diz – “uma personagem de nome João, um dos doze apóstolos de Jesus, o qual predisse passarão os fiéis mil anos em Jerusalém”.
Foi opinião por muito tempo aceita pelos cristãos a de um reinado de mil anos. Esse período desfrutava de grande crédito entre os gentios. Passados mil anos retomavam os corpos as almas entre os egípcios. O mesmo espaço de tempo, et mille per annos, penavam as almas no purgatório de Virgílio. A nova Jerusalém de mil anos teria doze portas, em memória dos doze apóstolos. A forma seria quadrada. Comprimento, largura e altura seriam de doze mil estádios – quinhentas léguas – de maneira que as casas teriam também quinhentas léguas de alto. Haveria de ser bem desagradável morar no último andar. Mas enfim é o que diz o Apocalipse, capítulo 21.
Se foi Justino o primeiro em atribuir o Apocalipse a S. João, personalidades houve que lhe refugaram o testemunho, atendendo a que no mesmo diálogo com o judeu Trifão diz ele que, consoante o relato dos apóstolos, Jesus Cristo, descendo ao Jordão, ferveu-lhe e inflamou-lhe as águas. O que não consta em nenhum dos escritos dos apóstolos.
O mesmo S. Justino não hesita em citar os oráculos das sibilas. E pretende ter visto restos das celas em que, no tempo de Herodes, foram encerrados no farol de Alexandria os setenta e dois intérpretes. O testemunho de um homem que teve a má fortuna de ver tais celas parece indicar mas é que devia ser metido nelas.
Posteriormente Sto. Ireneu, que também acreditava no reinado de mil anos, diz ter sabido de um velho que o Apocalipse era de autoria de S. João(6). Mas já se reprochou a Sto. Ireneu o haver escrito não deverem existir senão quatro Evangelhos pela só razão de ter o mundo apenas quatro partes, quatro serem os ventos cardeais e não ter Ezequiel visto mais que quatro animais. Chama ele a isso demonstração. Em singularidade, a demonstração do ar. Ireneu não fica atrás da visão do sr. Justino.
Clemente de Alexandria, nas Electa, só se refere a um Apocalipse de S. Pedro, a que se reportava extraordinária monta. Tertuliano, partidário ferrenho do reinado de mil anos, não se contenta em afirmar que S. João predisse a ressurreição e o reinado milenário na cidade de Jerusalém: quer também que esta Jerusalém já se começava a formar no ar; que todos os cristãos da Palestina, e até os pagãos, a tinham visto durante quarenta dias sucessivos às últimas horas da noite. Infelizmente, porém, mal despontava o dia a cidade se esvaecia.
Em seu prefácio sobre o Evangelho de S. João e nas Homilias, cita Orígenes os oráculos do Apocalipse, mas igualmente cita os oráculos das sibilas. Já S. Dinis de Alexandria, que escreveu por meados do século III, diz em um de seus fragmentos conservados por Eusébio (7) que a quase totalidade dos eruditos rejeitava por uma boca o Apocalipse como livro destituído de razão. Que esse livro não o escreveu S. João, e sim um tal Cerinto, que se servira de um grande nome para dar mais peso a suas fantasias
O concílio de Laodicéia (360) não recenseou o Apocalipse entre os livros canônicos. Singular é haver Laodicéia repulsado um tesouro que lhe fora enviado expressamente, e que também o refutasse o bispo de Éfeso, cidade em que se descobrira, enterrado, esse livro de S. João.
Para todos S. João ainda padejava na sepultura, fazendo a terra levantar e baixar continuamente. Entanto esses mesmos senhores certos de que S. João não estava de todo morto, também estavam certos de que ele não escrevera o Apocalipse. Os advogados do reinado de mil anos, não obstante, mantiveram-se irremovíveis em sua opinião. Sulpício Severo (História Sagrada, livro 9) chama insensatos e ímpios aos que não acatavam o Apocalipse. Afinal, depois de muita dúvida, muita oposição de concílio a concílio prevaleceu o parecer de Sulpício Severo. Deslindado o mistério, decidiu a igreja ser o Apocalipse incontestavelmente de S. João. Não há, pois, apelar.
Atribuíram as comunhões religiosas cada qual a si as profecias desse livro. Nele viram os ingleses as revoluções da Grã Bretanha. Os luteranos, as convulsões da Alemanha. Os reformados da França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis. Todos tiveram igualmente razão.
Bossuet e Newton comentaram o Apocalipse. As declamações eloqüentes de um e as sublimes descobertas de outro foram-lhes, todavia, muito mais honrosas que seus comentários.
ATEU, ATEÍSMO
Antigamente, quem quer que tivesse um segredo numa arte corria o risco de passar por bruxo. Toda seita nova era acusada de degolar crianças em seus mistérios. Todo filósofo que se desgarrasse da jíria da escola era criminado de ateísmo pelos fanáticos e espertalhões. E condenado pelos cretinos.
Anaxágoras tem o atrevimento de pretender não ser o sol conduzido por Apolo montado numa quadriga: chamam-lhe ateu e o obrigam a expatriar-se.
Aristóteles é culpado de ateísmo por um sacerdote. Não podendo fazer punir o caluniador, retira-se para Calcis. Mas a morte de Sócrates é o que de mais odioso tem a história da Grécia
Quem primeiro induziu os atenienses a verem um ateu em Sócrates foi Aristófanes, que os comentadores admiram por ter sido grego, esquecendo-lhes que Sócrates também o era.
Esse poeta cômico, que não foi nem cômico nem poeta, não seria admitido entre nós a representar farsas na feira de Saint-Laurent. Parece-me muito mais vil e desprezível do que o despinta Plutarco. Eis o que diz o sábio Plutarco de tal farsista: “A linguagem de Aristófanes denuncia o miserável charlatão que é. São as graçolas mais canalhas e repugnantes. Não chega a agradar o povo e as pessoas de discernimento e pundonor não o toleram. Não há quem suporte sua arrogância, e sua malignidade é intolerável às pessoas de bem” (8).
Aí está – para dizê-lo de passo – o Tabarin que a sra. Dacier tem o ousio de admirar. Eis o homem que de longe confeccionou o veneno com que juizes infames assassinaram o homem mais virtuoso da Grécia.
Curtidores, sapateiros e costureirinhas de Atenas aplaudiram uma comédia em que se representava Sócrates suspenso num cesto proclamando que não existiam deuses e jactando-se de haver roubado uma capa enquanto ensinava filosofia. Um povo cujo mau governo permitia tão infames licenças bem merecia o fim que teve – ser vassalo dos romanos e hoje dos turcos.
Demos um salto à antigüidade. Detenhamo-nos na república romana. Os romanos, muito mais sábios que os gregos, nunca perseguiram filósofos por motivo de opiniões. A mesma isenção não exalça os povos bárbaros que medraram por sobre os destroços do império romano. Desde que o imperador Frederico II questiona com o papa, que o acusam de ateísmo e de ter escrito com seu chanceler de Vinéia o livro Dos Três Impostores.
Manifesta-se o nosso grande chanceler do Hospital contrário às perseguições: é quanto basta para levar a tacha de ateu. Homo doctus, sed verus atheos. Um jesuíta que se acha tão abaixo de Aristófanes quanto Aristófanes o está de Homero, um miserável cujo nome se tornou ridículo entre os próprios fanáticos, em uma palavra, o jesuíta Garasse, em toda gente vê ateístas. É assim que chama a todos aqueles contra quem investe. De ateísta acoima ele Teodoro de Besis. Foi ele quem induziu em erro a respeito de Vanini.
O desgraçado fim de Vanini não nos move a indignação nem a piedade como o de Sócrates porque Vanini não passava de um pedante estrangeiro sem mérito nenhum. Mas a verdade é que não era ateu, como se pensava. Muito pelo contrário
Tratava-se de um pobre padre napolitano, pregador e teólogo de seu mister, polemista apaixonado das qüididades e dos universais, et utrum chimera bombinans in vacuo possit comedere secundas intentiones. Não tinha, porém, a veia do ateísmo. Sua noção de Deus era da mais sã e acatada teologia. “Deus é o princípio e o fim, pai de um e de outro, prescindindo de um e de outro. Eterno sem estar no tempo. Onipresente sem se achar em parte alguma. Não tem passado nem futuro. Está em tudo e fora de tudo, tudo governando, tudo havendo criado – Imutável, infinito, imparticular. Seu poder é sua vontade, etc.”
Vangloriava-se Vanini de renovar este belo conceito de Platão abraçado por Averrois: que Deus criou uma cadeia graduada de seres cujo último anel se ata ao seu trono eterno. Idéia em verdade mais sublime que veraz, mas tão distante do ateísmo quanto o ser do não ser.
Viajou com o fito em dinheiro e polêmicas – infelizmente, porém, a senda da disputa conduz a polo contrário ao da riqueza. Granjeiam-se tantos inimigos irreconciliáveis quantos os sábios ou pedantes com quem se terça a palavra. Nem foi outra a origem da desdita de Vanini – Custaram-lhe seu calor e grosseria na discussão o ódio de não poucos teólogos, um dos quais – Francon ou Franconi, amigo de seus inimigos – o acusou de ateu e de pregar o ateísmo.
Teve esse Francon ou Franconi, esteado por algumas testemunhas, a barbárie de sustentar na acareação o que tivera o descaramento de falsear. Interrogado no banco dos réus acerca do que pensava de Deus, respondeu Vanini adorar com a igreja um Deus em três pessoas. Tomando uma palha do chão: “Basta isto” – disse “para provar que existe um criador”. Pronunciou então magnífico discurso sobre a vegetação e o movimento e sobre a necessidade de um Ser Supremo, sem o qual não existiria nem movimento nem vegetação.
O presidente Grammont, que então se achava em Tolosa, transcreve esse discurso na sua Histoire de France, hoje tão esquecida. Por inconceptível prejuízo pretende o mesmo Grammont que Vanini dissesse tudo isso mais por vaidade ou medo que por persuasão interior
A que arrimar o julgamento temerário e atroz do presidente Grammont? Patente é que a resposta de Vanini o absolvia da criminação de ateísmo. Que sucedeu, porém! Esse caipora abeberara-se também de medicina. Encontraram em sua casa um sapo que ele conservava vivo em um vaso com água: foi a conta para ser tachado de feiticeiro. Disseram que o sapo era o seu deus. Emprestaram sentido ímpio a diversos passos de seus livros – o que é facílimo e muito comum – tomando objeções por respostas, interpretando com malícia uma ou outra frase equívoca, envenenando expressões inocentes. Por fim a facção que o perseguia extorquiu dos juizes a sentença que o condenou à morte.
Para justificar tal crime, havia-se mister fazer pesarem sobre esse infeliz as calúnias mais medonhas. O menor e muito menor Mersenne levou a demência a ponto de imprimir que Vanini partira de Nápoles com doze apóstolos para converter o mundo ao ateísmo. Santa ingenuidade. Como poderia ter um pobre padre doze homens a seu dispor? Como poderia convencer doze napolitanos a viajarem dispendiosamente para propagar aos quatro ventos uma doutrina abominável e revoltante – com risco de vida? Seria um rei bastante poderoso para pagar doze pregadores de ateísmo? Ninguém, antes de Mersenne, aventurara semelhante absurdo. Depois dele, porém, toda gente se pôs a estribilhá-lo, com ele envenenando jornais e dicionários históricos – E o mundo, que gosta do extraordinário, aceitou à carga cerrada essa fábula.
O próprio Bayle, nas suas Pensées Diverses, fala de Vanini como de um ateu – Serve-se desse exemplo para estribar seu paradoxo de poder subsistir uma sociedade de ateus; afirma que Vanini era um homem de costumes rigorosamente regrados, e ter sido o mártir de sua opinião filosófica. Engana-se tanto num ponto como noutro. Depreende-se dos Dialogues de Vanini, escritos à imitação de Erasmo, ter ele tido uma amante de nome Isabelle. Era livre no escrever como no viver. Porém não ateu.
Um século após sua morte o sábio La Croze e aquele que adotou o nome de Philalèthe (9) empreenderam justificá-lo. Mas como ninguém se interessa pela memória de um infeliz napolitano, que para agravo de seus pecados era péssimo escritor, passaram quase despercebidas essas apologias.
O jesuíta Hardouin, mais culto que Garasse e não menos temerário, denuncia como ateus no livro Athei Detecti os Descartes, Arnauld, Pascal, Nicole e Malebranche. Que, porém, felizmente não tiveram a mesma sorte que Vanini.
Mas voltemos à questão de moral aventada por Bayle: se seria possível uma sociedade de ateus. Sublinhemos à primeira ser grande a contradição em torno do problema. Os que mais indignadamente se levantaram contra a opinião de Bayle, os que com maior carga de injúrias lhe desmentiram a possibilidade de uma sociedade de ateus, com o mesmo aferro sustentaram mais tarde ser o ateísmo a religião do governo da China.
Positivamente enganaram-se no que respeita ao governo chinês. Se houvessem lido os éditos desse vasto país teriam visto não serem outra coisa senão sermões, sermões repletos de referências ao Ser Supremo, guia, vingador e premiador.
Não se enganaram menos quanto à impossibilidade de uma sociedade atéia. E não sei como pôde o sr. Bayle esquecer um exemplo conclusivo que talvez valesse a vitória a sua causa.
Por que impossível uma sociedade atéia? Porque sem um freio os homens não poderiam viver em harmonia? Por nada poderem as leis contra os crimes secretos? Por ser preciso um Deus vingador que puna, neste ou em outro mundo, os malfeitores escapos à justiça humana!
Ilusão. Os judeus, muito embora não ensinassem as leis de Moisés nenhuma vida por vir, não ameaçassem castigos depois da morte, não ensinassem aos primeiros judeus a imortalidade da alma, os judeus, longe de ser ateus, longe de contar subtrair-se à vingança divina, foram os mais religiosos dos homens. Não somente criam na existência de um Deus eterno, como o acreditavam constantemente em sua presença. Temiam ser castigados na pessoa de si mesmos, da mulher, dos filhos, na posteridade, até a quarta geração. E esse freio era poderosíssimo.
Entre os gentios, porém, muitas seitas houve desempeçadas de quaisquer ferropéias. Os cépticos duvidavam de tudo – De tudo inopinavam os acadêmicos. Estavam persuadidos os epicuristas de que a divindade não metia a colher torta nos negócios dos homens, e em verdade não admitiam deuses de espécie alguma. Abrigavam a convicção de não ser a alma de natureza substancial, mas rasamente uma faculdade que nasce e morre com o corpo. Não tinham, por conseguinte, outras rédeas além da moral e da honra. Verdadeiros ateus eram os senadores e cavaleiros romanos. Para quem não os temem e deles nada esperam os deuses não existem – Era pois o senado romano um congresso de ateus contemporâneos de César e Cícero.
Na oração pró Cluêncio diz o grande orador ao senado reunido: “Que mal lhe pode trazer a morte? Nós impugnamos todas as fábulas ineptas dos infernos. Que então lhe tirou a morte? Nada mais que a sensação da dor”.
Querendo salvar a vida de seu amigo Catilina perante o mesmo Cícero, não lhe objeta César que condenar à morte não é punir, que a morte não é nada, senão apenas o fim dos sofrimentos, momento mais feliz do que fatal? E não reconheceram Cícero e todo o senado a justeza de tais razões? Não há negá-lo. Vencedores e legisladores do mundo conhecido formavam uma sociedade de homens destemerosos dos deuses – verdadeiros ateus, portanto.
Pondera Bayle a seguir se não é a idolatria mais perigosa que o ateísmo, se crime maior não será nutrir sobre a divindade conceitos indignos que dela descrer. E opina com Plutarco ser preferível não ter de Deus concepção nenhuma a te-la má – Em que pese a Plutarco, porém, inegável é ter sido infinitamente preferível para os gregos temer Ceres, Netuno, Júpiter, a não temer coisa alguma. Irrecusavelmente é necessária a santidade dos juramentos, e antes fiar-se em quem creia que um falso juramento será punido do que em quem pense poder jurar falso impunemente. Não há dúvida ser preferível, em uma cidade policiada, ter uma religião ainda que má a não ter nenhuma.
Parece-me que Bayle devia antes examinar qual o mais nocivo, se o fanatismo, se o ateísmo. O fanatismo é certamente mil vezes mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária. O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça. Suponhamos com o autor do Commentarium Rerum Gallicarum fosse ateu o chanceler do Hospital. Não elaborou ele senão leis sábias, não aconselhou senão moderação e concórdia: os fanáticos cometeram as mortandades de São Bartolomeu. Havia-se Hobbes por ateu: entanto viveu tranqüila e inocentemente. Os fanáticos de seu tempo ensanguentaram a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Spinoza, sobre ser ateu, ensinava o ateísmo: parece contudo não ter sido ele quem participou do assassínio jurídico de Barneveldt, quem fez em traçalhos os irmãos de Witt e os comeu à grelha.
O mais das vezes são os ateus sábios audazes e tresmalhados que raciocinam mal e que, não compreendendo a criação, a origem do mal e outras dificuldades, recorrem à hipótese da eternidade das coisas e da necessidade.
Aos ambiciosos, aos voluptuosos, falta-lhes tempo para raciocinar e abraçar maus sistemas. Têm mais que fazer que comparar Lucrécio com Sócrates –
É o que sucede conosco.
O mesmo não se dava com o senado romano, composto na quase totalidade de ateus que ateus eram teórica e praticamente. Isto é: que não acreditavam nem na Providência nem na vida futura. Era uma congregação de filósofos, de voluptuosos e ambiciosos, todos nocentissimos e que perderam a república.
Não me agradaria o depender de um príncipe ateu cujo interesse fosse mandar-me pilar num morteiro. Não quereria, se fosse soberano, ter de tratar com cortesãos ateus cujo interesse fosse envenenar-me: ser-me-ia necessário estar tomando ao acaso contravenenos todos os dias. É pois absolutamente imprescindível aos príncipes e aos povos o estar profundamente gravada nos espíritos a idéia de um Ser Supremo, criador, condutor, remunerador e vingador.
Há povos ateus, assevera Bayle em suas Pensées sur les Comètes. Os cafres, hotentotes, tupinambás e muitas outras pequenas nações não têm Deus. É possível. Mas isso não quer dizer que neguem Deus não o negam nem o afirmam, porque nunca ouviram falar em tal. Dizei-lhes que Deus existe, e cre-lo-ão facilmente. Dizei-lhes que tudo se faz pela natureza das coisas, e cre-lo-âo da mesma forma – Pretender que sejam ateus é o mesmo que pretender que sejam anticartesistas: não são nem contra nem a favor de Descartes. São verdadeiras crianças. Uma criança não é atéia nem teista: não é nada.
Que concluir de tudo isso? Que o ateísmo é um monstro perniciosíssimo para os que governam, e igualmente para os estadistas em disposição, ainda que cidadãos inocentes, pois podem um dia ou outro ser elevados à boléia do poder. Que, se não é tão funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal à virtude. Ajuntemos principalmente que hoje em dia há menos ateus que nunca, depois que os filósofos reconheceram não haver nenhum ser vegetante sem germe, nenhum germe sem desígnio etc., e que o trigo não nasce da podridão.
Geômetras não filosóficos enjeitaram as causas finais, porém os verdadeiros filósofos as admitem. E, como disse um autor conhecido, o catequista anuncia Deus às crianças e Newton o demonstra aos sábios.
BATISMO
Palavra grega que quer dizer imersão.
Como sempre se guiam pelos sentidos, facilmente imaginaram os homens que quem lavasse o corpo também lavava a alma. Havia nos subterrâneos dos templos egípcios grandes cubas para os sacerdotes e iniciados. Desde tempos imemoriais que os hindus se purificaram nas águas do Ganges, e ainda hoje essa cerimônia está muito em voga. Da Índia passou à Judéia. Era costume entre os hebreus batizar todos os estrangeiros que abraçassem a lei judaica e não quisessem submeter-se à circuncisão. Sobre tudo batizavam-se as mulheres, que não faziam essa operação, salvo na Etiópia, onde a circuncisão era de lei. Tratava-se de uma regeneração. Criam os hebreus, como os egípcios, que o batismo dava alma nova. Consultem-se sobre o assunto Epifânio, Memonide e la Gemara.
João batizou-se no rio Jordão. Ali também ele batizou Jesus, que, conquanto nunca haja batizado ninguém, condescendeu todavia em consagrar essa cerimônia
Em si, todos os sinais são indiferentes. Confere Deus sua graça ao sinal que lhe aprouver escolher. Bem cedo tornou-se o batismo em primeiro rito e chancela da religião cristã. Contudo, embora fossem circuncidados, não se sabe ao certo se receberam o batismo os quinze primeiros bispos de Jerusalém
Muito se abusou desse sacramento nos primeiros séculos do cristianismo. Nada era mais comum que aguardar a agonia para receber o batismo. É assaz ilustrativo o exemplo do imperador Constantino. Eis como raciocinava: O batismo de tudo expurga; portanto posso matar minha mulher, meus filhos, todos os meus parentes; depois batizo-me e irei para o céu – O que efetivamente levou a prática. O exemplo era perigosíssimo. Paulatinamente foi se abolindo o vezo de esperar a morte para tomar o banho sagrado.
Sempre conservaram os gregos o batismo por imersão. Pelo fim do século VIII os latinos, havendo estendido sua religião às Gálias e à Germânia, receosos de que a imersão pudesse matar as crianças nos países frios, substituíram-na por simples aspersão, o que lhes custou numerosos anátemas de parte da igreja grega.
Perguntou-se a S. Cipriano se estavam realmente batizadas as pessoas que, em vez de tomarem o banho, eram apenas borrifadas. Respondeu ele (septuagésima sexta carta) que “achavam muitas igrejas não serem cristãs tais pessoas; quanto a ele, era de parecer que sim, bem que sua graça fosse infinitamente menor que a das imersas três vezes conforme o uso”.
Entre os cristãos, desde que um indivíduo recebia a imersão estava iniciado. Antes do batismo era simples catecúmeno. Para iniciar-se era de mister apresentar cauções, responsáveis, – a que se dava um nome correspondente a padrinho – a fim de que a igreja se certificasse da fidelidade dos novos cristãos e não fossem divulgados os mistérios. Essa a razão por que nos primeiros séculos fossem os gentios geralmente tão mal instruídos dos mistérios cristãos quanto o eram os cristãos dos mistérios de Isis e de Eleusina.
Assim se expressava Cirilo de Alexandria em seu escrito contra o imperador Juliano: “Falaria do batismo se não temesse que minhas palavras chegassem aos não iniciados”.
Data do século II o costume de batizar crianças. Era natural desejassem os cristãos que seus filhos, que sem esse sacramento seriam condenados às penas eternas, dele fossem apercebidos. Concluiu-se enfim ser necessário ministrá-lo ao fim dos oito primeiros dias de vida por ser essa entre os judeus a idade da circuncisão. Ainda conserva o costume a igreja grega, conquanto no século III o uso a tenha levado a subministrar o batismo à morte.
Quem morria na primeira semana de existência estava condenado, asseveravam os padres da igreja mais rigorosos. No século V, porém, ideou Pedro Crisólogo o limbo, espécie de inferno suavizado, e propriamente lindes do inferno, extramuros infernais, para onde iriam as criancinhas finadas sem batismo, e onde estariam os patriarcas antes da descensão de Jesus Cristo aos infernos. De sorte que desde então prevaleceu a opinião de que Cristo desceu ao limbo e não ao inferno.
Perguntou-se se, nos desertos da Arábia, poderia um cristão ser batizado com areia: respondeu-se que não. Se se poderia batizar com água impura: estabeleceu-se ser conveniente água munda, mas que em última instância servia água barrenta. É fácil ver que toda essa disciplina foi ditada pela prudência dos primeiros pastores.
BELO, BELEZA
Perguntai a um sapo que é a beleza, o supremo belo, o to kalon. Responder-vos-á ser a sapa com os dois olhos exagerados e redondos encaixados na cabeça minúscula, a boca larga e chata, o ventre amarelo, o dorso pardo. Interrogai um negro da Guiné O belo para ele é – uma pele negra e oleosa, olhos cravados, nariz esborrachado. Indagai ao diabo. Dir-vos-á que o belo é um par de cornos, quatro garras e cauda. Inquiri os filósofos. Responder-vos-ão com aranzéis. Falta-lhes algo de conforme ao arquétipo do belo em essência, o to kalon.
Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em companhia de um filósofo.
— Como é belo! – dizia ele.
— Que viu o sr. de belo?
— O autor atingiu seu fim.
No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito.
— O purgante atingiu seu fim – disse-lhe eu. – Eis um belo purgante.
Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo.
Realizamos uma viagem à Inglaterra. Lá se representava a mesma peça, impecavelmente traduzida. Fez bocejarem todos os espectadores.
— Oh! – exclamou o filósofo – o to kalon não é o mesmo para os ingleses e os franceses.
Após muita reflexão concluiu ser o belo extremamente relativo, como o que é decente no Japão é indecente em Roma, o que é moda em Paris não o é em Pequim.
BEM (SUPREMO)
Muito discutiu a antigüidade em torno do supremo bem. Que é o supremo bem? Seria o mesmo que perguntar que é o supremo azul, o supremo acepipe, o supremo andar, o ler supremo, etc.
Cada um põe a felicidade onde pode, e quanto pode ao seu gosto.
Quid dem? quid non dem? Renuis tu quod jubet alter...
Castor gaudet equis; ovo prognatus eodem pugnis...(10).
Sumo bem é o bem que vos deleita a ponto de polarizar-nos toda a sensibilidade, assim como mal supremo é aquele que vos torna completamente insensível. Eis os dois pólos da natureza humana. Esses dois momentos são curtos.
Não existem deleites extremos nem extremos tormentos capazes de durar a vida inteira. Supremo bem e supremo mal são quimeras.
Conhecemos a bela fábula de Crântor, que fez comparecer aos jogos olímpicos a Fortuna, a Volúpia, a Saúde e a Virtude.
Fortuna: – O sumo bem sou eu, pois comigo tudo se obtém.
Volúpia: – Meu é o pomo, porquanto não se aspira à riqueza senão para ter-me a mim.
Saúde: – Sem mim não há volúpia e a riqueza seria inútil.
Virtude: – Acima da riqueza, da volúpia e da saúde estou eu, que embora com ouro, prazeres e saúde pode haver infelicidade, se não há virtude.
Teve o pomo a Virtude.
A fábula é engenhosa, mas não solve o problema absurdo do supremo bem. Virtude não é bem, senão dever. Pertence a plano superior. Nada tem que ver com as sensações dolorosas ou agradáveis. Com cálculos e gota, sem arrimo, sem amigos, privado do necessário, perseguido, agrilhoado por um tirano voluptuoso aboletado no fausto, o homem virtuoso é infelicíssimo, e o perseguidor insolente que acaricia uma nova amante em seu leito de púrpura, felicíssimo. Podeis dizer ser preferível o sábio perseguido ao perseguidor impertinente. Podeis dizer amar a um e detestar ao outro. Mas esquece-vos que le sage dans les fers enrage. Se não concordar o sábio, engana-vos: é um charlatão.
BEM (TUDO ESTÁ)
Armou-se grande estardalhaço nas escolas e até entre as pessoas que raciocinam quando, parafraseando Platão, lançou Leibnitz seu edifício do melhor dos mundos possíveis, dizendo que tudo corria às mil maravilhas (11). Afirmou ele no norte da Alemanha que Deus não poderia fazer mais que um único mundo. Platão pelo menos concedera-lhe a liberdade de fazer cinco, pela razão de cinco serem os corpos sólidos regulares: tetraedro ou pirâmide trifacial de base igual às faces, cubo, hexaedro, dodecaedro, icosaedro. Mas como o nosso mundo não tem a forma de nenhum dos seus cinco sólidos, devia conceder a Deus uma sexta forma.
Deixemos em paz o divino Platão. Leibnitz, que certamente era melhor geômetra e mais profundo metafísico que ele. prestou ao gênero humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar contentíssimos e ter sido impossível a Deus fazer por nós mais do que fez. Que necessariamente Deus escolhera entre todos os partidos sem contradita o melhor.
— E o pecado original? – perguntavam-lhe.
— Foi o que podia ser – explicavam Leibnitz e seus amigos. Mas praceiramente escrevia ele entrar o pecado original necessariamente no melhor dos mundos.
Ora essa! Ser expulso de um lugar de delícias onde se viveria eternamente se não se tivesse comido uma maçã! Como! Chafurdado na miséria, pôr no mundo filhos miseráveis que tudo hão de sofrer, que tudo farão sofrer aos outros! Que! Padecer todas as doenças, sofrer todos os martírios, morrer na dor, e como refrigério ser assado na eternidade dos séculos! Seria esse o melhor quinhão que tinha Deus para nos dar? Nada tem de bom para nós. E em que poderia tê-lo para Deus?
Compreendia Leibnitz nada ter que responder. Escreveu também maçudos livros, mas calou o ponto.
Negar a existência do mal, pode negá-la rindo um Luculo refestelado na opulência, após lauto jantar libado em companhia dos amigos e da amante no salão de Apolo. Mas que ponha a cabeça à janela. Verá o que é o mundo.
Repugna-me citar. É empresa de ordinário espinhosa: negligencia-se o que precede e o que segue a citação, e se expõe a querelas. Cumpre-me, todavia, citar Lactâncio, padre da igreja, que em seu capítulo 13, Da Cólera de Deus, põe estas palavras na boca de Epicuro: “Ou Deus quer abolir o mal do mundo e não pode; ou pode e não quer; ou nem pode nem quer; ou enfim quer e pode. Se quer e não pode é impotente, o que contradiz a natureza divina; se pode e não quer, é mau, o que não é menos contrário à sua natureza; se não quer nem pode, é a um tempo mau e impotente; se quer e pode (a única conjuntura que convêm a Deus) qual então a origem do mal sobre a terra?”
O argumento é instante. Lactâncio respondeu muito mal, dizendo que Deus quer o mal porém nos deu a sabedoria, com que podemos alcançar o bem. A resposta é fraquíssima. Supõe que Deus não podia dar a sabedoria senão de par com o mal. Demais nós possuímos uma sabedoria agradável!
A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar o fundo. Daí tantos filósofos e legisladores antigos se socorrerem de dois princípios, um do bem e outro do mal. Tifão era o princípio do mal entre os egípcios, Arimã entre os persas. Adotaram essa teologia, como se sabe, os maniqueus. Como porém anteriormente nunca falaram nem em um nem em outro desses princípios, convêm não lhes dar ouvidos.
Entre os absurdos de que regurgita o mundo, não é dos menores este, que pode entrar no rol dos nossos males: imaginar dois seres todo poderosos duelando-se para ver quem dá mais de si ao mundo, e acordando um convênio como os dois médicos de Molière Passe-me o emético que lhe farei a sangria.
Rasteando os platonistas, pretendeu Basilídio no primeiro século da igreja que Deus acometera a tarefa de forjar o nosso mundo aos últimos de seus anjos, os quais não sendo lá muito peritos desalinhavaram as coisas como aí estão. Refuta tal fábula teológica esta objeção irretorquível: não é de Deus onipotente e onisciente confiar a construção de um mundo a arquitetos inaptos.
Sentindo a objeção, preveniu-a Simão asseverando que em virtude do péssimo desempenho da incumbência Deus condenou aos infernos o anjo que presidia à oficina celeste. Por mais esturricado que esteja, contudo, a condenação desse anjo não nos cala o sofrimento.
Não responde melhor à objeção a aventura de Pandora dos gregos. Inegavelmente a história da boceta que encerra todos os males e em cujo fundo jaz a esperança é uma bela alegoria. Mas essa tal Pandora, tê-la Vulcano tão somente para fazer pique a Prometeu, que havia feito um homem de barro.
Os hindus não foram mais engenhosos: tendo criado o homem, Deus lhe deu uma droga que lhe asseguraria permanente saúde; o homem carregou seu asno dessa droga, o asno ficou com sede, a serpente ensinou-lhe uma fonte: enquanto o asno bebia a serpente pilhou a droga.
Imaginaram os sírios que, tendo o homem e a mulher sido criados no quarto céu, quiseram comer de uma torta em vez de ambrósia, seu manjar natural. A ambrósia exalava-se pelos poros. Comendo a torta, porém, era preciso ir à secreta. O homem e a mulher pediram a um anjo lhes indicasse onde ficava tal repartição do Paraíso. – Estão vendo – disse-lhes o anjo – aquele planetinha insignificante, a uns sessenta milhões de léguas daqui? Pois é lá. – Para lá se foram, e lá os deixaram. Desde então o mundo é o que é.
É o caso de perguntar aos sírios por que Deus permitiu que o homem comesse da torta e que temos nós que ver com o pato.
Para nos forrarmos ao tédio, saltemos do quarto céu ao Sr. Bolingbroke. Este homem, incontestavelmente genial, deu ao célebre Pope seu plano de tudo está bem, que de fato lá vem palavra por palavra nas obras póstumas de Bolingbroke, e que anteriormente inserira Shaftesbury em seus Característicos. Leia-se o capítulo deste livro dedicado aos moralistas. Lá se encontrará:
“Há muito que responder a essas lamúrias sobre defeitos da natureza. Como saiu tão impotente e falha das mãos de um ser perfeito? Mas eu nego que a natureza seja imperfeita... Sua beleza resulta das contrariedades. De perpétuo combate nasce a concórdia universal... É preciso que cada ser seja imolado a outros: os vegetais aos animais, os animais à terra... Demais não será por amor de miserável verme que as leis do poder central e da gravitação, de que decorrem o peso e o movimento dos corpos celestes, serão perturbadas. Miserável verme que, por muito bem protegido que esteja por essas leis, longe não está o dia em que por elas mesmas será reduzido a pó de traque”.
Bolingbroke, Shaftesbury e Pope – lapidário dos primeiros – não solvem a questão melhor que os outros. Seu tudo está bem não diz senão que o todo é regido por leis imutáveis. Quem não sabe disso? Para ninguém é novidade saber, depois dos netos, que as moscas foram feitas para ser comidas pelas aranhas, as aranhas pelas andorinhas, as andorinhas pelas pegas, as pegas pelas águias, as águias para ser mortas pelos homens, os homens para matar-se uns aos outros, ser comidos pelos vermes e em seguida pelo diabo.
Eis aí ordem nítida e constante entre os animais de todas as espécies. Em tudo existe ordem. Quando se forma um cálculo em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável. Pouco a pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins, passam pelas uréteres, caem na bexiga e ali se depositam em virtude de excelente atração newtoniana; forma-se a concreção, que cresce, e eu sofro dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente ordenado que esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a arte inventada por Tubalcain enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu, agarra o cálculo com suas tenazes: por um mecanismo necessário, a pedra se desfaz sob seus esforços. E pelo mesmo mecanismo necessário entrego a alma ao diabo em meio de tormentos medonhos. Tudo isso está bem. Tudo isso é conseqüência evidente dos inalteráveis princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós, já o sabia
Se fôssemos insensíveis, nada haveria que dizer a esta física. Não se trata disso, porém Pergunto-vos se não existem males sensíveis, e de onde provêem. “Não existem males” – decreta Pope em sua quarta epístola acerca do tudo está bem. “Ou, se os há particulares, compõem o bem geral”.
Singular bem geral, constituído de cálculos, gota, de todos os crimes, de todos os sofrimentos, da morte e da condenação.
A queda do homem é o emplasto que aplicamos a todas essas doenças particulares do corpo e do espírito, que vós chamais saúde geral. Mas Shaftesbury e Bolingbroke escarnecem do pecado original. Pope não se digna mencioná-lo. É evidente que tal sistema solapa a religião cristã nos alicerces, e não explica coisa alguma.
No entanto foi há pouco aprovado por muitos teólogos, que de bom grado admitem os contrários. Assim sendo, a ninguém é preciso invejar o consolo de raciocinar como melhor puder sobre o dilúvio de males que nos assoberba. Justo é conceder aos doentes sem esperança que comam o que quiserem. Chegou-se até a pretender ser esse sistema consolador. “Deus” – leciona Pope – vê com os mesmos olhos morrer o herói e o pardal, precipitar-se na ruína um átomo ou mil planetas, formar-se um mundo ou uma bolha de sabão”.
Deliciosa consolação! Não sentis grande lenitivo com o decreto do sr. Shaftesbury, que diz, Deus não vai modificar suas leis eternas por um miserável verme como o homem? Convenha-se contudo ter esse verme direito de lamentar-se humildemente e lamentando-se diligenciar compreender por que tais leis eternas não foram feitas para bem de todos.
O sistema do tudo está bem apresenta o autor da natureza como um déspota poderoso e mau, pouco se incomodando que seus caprichos custem a vida a milhares de seres humanos, enquanto os restantes arrastam seus dias na penúria e na dor.
Longe de consolar, a teoria do melhor dos mundos possível é desesperadora. O problema do bem e do mal permanece um caos inextricável para todos aqueles que perquirem de boa fé. Para os polemistas, é um motivo de chiste: são forçados brincando com os próprios grilhões. Para o povo não pensante, é o caso de peixes transportados de um rio para um reservatório; não alimentam a menor idéia que estão ali para ser comidos na quaresma.
Nada sabemos do porquê do nosso destino. Cumpre subpor ao fim de quase todos os capítulos da metafísica as duas letras dos juizes romanos, quando não entendiam uma causa: N. L., non liquet, – não é claro.
Parte 1 ABRAÃO - ALMA - AMIZADE - AMOR - AMOR PRÓPRIO - AMOR SOCRÁTICO - ANJO - ANTROPÓFAGOS - APIS - APOCALIPSE - ATEU, ATEÍSMO - BATISMO - BELO, BELEZA - BEM (SUPREMO) - BEM (TUDO ESTÁ)
Parte 2 CADEIA DOS ACONTECIMENTOS - CARÁTER - CATECISMO CHINÊS - CATECISMO DO JAPONÊS (20) - CATECISMO DO PÁROCO - CERTO, CERTEZA - CÉU DOS ANTIGOS (O) - CHINA (DA) - CIRCUNCISÃO - CONVULSÕES - CORPO – CRISTIANISMO - CRÍTICA
Parte 3 DESTINO - DEUS - ESCALA DOS SERES - ESTADOS, GOVERNOS - EZEQUIEL (DE) - FÁBULAS - FALSIDADE DAS VIRTUDES HUMANAS - FANATISMO - FIM, CAUSAS FINAIS - FRAUDE - FRONTEIRAS DO ESPÍRITO HUMANO - GLÓRIA - GRAÇA - GUERRA - HISTÓRIA DOS REIS JUDEUS E PARALIPÔMENOS
Parte 4 ÍDOLO, IDÓLATRA, IDOLATRIA - IGUALDADE - INFERNO - INUNDAÇÃO - IRRACIONAIS - JEFTÉ - JOSÉ - LEIS (DAS) - LEIS CIVIS E ECLESIÁSTICAS - LIBERDADE (DA) - LOUCURA - LUXO
Parte 5 MATÉRIA - MAU - MESSIAS - METAMORFOSE, METEMPSICOSE - MILAGRES - MOISÉS - PÁTRIA - PEDRO - PRECONCEITOS - RELIGIÃO - RESSURREIÇÃO - SALOMÃO - SENSAÇÃO - SONHOS - SUPERSTIÇÃO - TIRANIA - TOLERÂNCIA - VIRTUDE
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