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Dicionário Filosófico P - 5 / Voltaire
Dicionário Filosófico P - 5 / Voltaire

 

 

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Dicionário Filosófico

 

MATÉRIA

Os sábios a quem se pergunta o que é a alma, respondem que nada sabem a esse respeito. Se se lhes pergunta o que é a matéria, dão a mesma resposta. É verdade que alguns professores e principalmente alguns escolares conhecem perfeitamente tudo isso: e quando repetem que a matéria é extensa e divisível, julgam haver dito tudo; mas quando são solicitados a responder o que significa essa coisa extensa, ficam embaraçados. “Isso é composto de partes, dizem”. E essas partes de que são compostas? São os elementos dessas partes divisíveis? Então eles emudecem ou falam muito, o que é igualmente suspeito. Esse ente quase desconhecido a que chamamos matéria é eterno? Todos os antigos assim o julgaram. Terá ele, de per si, a força ativa? Vários filósofos o imaginaram. Os que o negam, têm o direito de negá-lo? Não concebeis que a matéria possa ser alguma coisa por si própria. Mas como podeis afirmar que ela não tenha por si mesma as propriedades que lhe são necessárias? Ignorais qual é a sua natureza e lhe recusais formas que estão nessa mesma natureza: porque, afinal, desde que ela é, faz-se absolutamente necessário que tenha uma forma, que seja figurada; e, desde que é necessariamente figurada, será impossível a existência de outras formas ligadas à sua configuração? A matéria existe, não a conheceis senão mediante vossas sensações. Ah! de que servem todas as susceptibilidades do espírito desde que raciocinamos? A geometria nos ensinou grande número de verdades, a metafísica bem poucas. Pesamos a matéria, medimo-la, decompomo-la; e, além dessas operações rudimentares, se quisermos dar um passo sentimos em nós a impotência e adiante de nós um abismo.

Perdoai, por mercê, ao universo inteiro, que se enganou ao julgar que a matéria existisse por si própria. Poderia proceder de forma diversa? Como imaginar que o que é sem sucessão não o foi sempre? Se não fosse necessária a existência da matéria, por que existe ela? E se era preciso que ela fosse, por que não teria sido sempre? Nenhum axioma foi tão universalmente aceito como este: Nada se faz de nada. Com efeito, o contrário é incompreensível. O caos precedeu em todos os povos a disposição que uma mão divina fez no mundo inteiro. A eternidade da matéria jamais ofendeu em povo algum o culto da Divindade. A própria religião jamais procurou impedir que um Deus eterno fosse reconhecido como o senhor de uma matéria eterna. Somos muito felizes, hoje, ao ser informados pela fé que Deus tirou a matéria do nada. Porém, nação alguma foi instruída a respeito desse dogma; os próprios judeus ignoraram-no. O primeiro versículo do Gênesis diz que os deuses Eloim (não Eloi) fizeram o céu e a terra; não dizem que o céu e a terra foram criados do nada.

Fílon, do único tempo em que os judeus tiveram alguma erudição, diz em seu capítulo da criação: “Deus, sendo bom por sua natureza, não insuflou a inveja na substância, na matéria, que por si mesma nada tinha de bom, que não tem de sua natureza senão a inércia, a confusão, a desordem. Dignou-se torná-la boa, de má que era”.

A idéia do caos desemaranhado por um deus encontra-se em todas as teogonias antigas. Hesíodo repetiu o pensamento do Oriente quando disse em sua Teogonia: “O caos foi o primeiro a existir” – Ovídio foi o intérprete de todo o império romano quando disse:

Sic ubi dispositam, quiscuis fuit ille deorum, congeriem secuit... (50).

A matéria é, pois, nas mãos de Deus, como a argila nas do oleiro, se se nos permite o uso dessas débeis imagens para exprimir o poder divino.

A matéria, sendo eterna, devia ter propriedades eternas, como a configuração, a força de inércia, o movimento e a divisibilidade. Mas essa divisibilidade não é senão a resulta do movimento: pois sem movimento nada se divide, nem se separa ou coordena. O caos teria sido um movimento confuso, e a coordenação do universo um movimento regular imprimido a todos os corpos pelo senhor do mundo. Mas como poderia a matéria ter movimento próprio? Da mesma forma que tem, consoante todos os antigos, estensão e impenetrabilidade.

Mas não podemos concebê-la sem extensão, e podemos concebê-la sem movimento. A isto se responde: “É impossível que a matéria não seja permeável; ora, sendo permeável, é preciso que alguma coisa passe continuamente por seus poros; para que passagens, se nelas nada passasse?”

De réplica em réplica, não acabaríamos mais; o sistema da matéria eterna apresenta grandes dificuldades, como todos os sistemas. O da matéria formada do nada não é menos incompreensível. Deve-se admiti-lo sem pretender dar-lhe razão; nem tudo explica a filosofia. Quantas coisas incompreensíveis somos forçados a admitir, mesmo na geometria? Podemos conceber que duas linhas andem paralelamente sem nunca se encontrarem? Responder-nos-ão naturalmente os geômetras: “As propriedades das assintotas vos foram demonstradas; não podeis deixar de admiti-las; mas a criação, não: por que a admitia? Que dificuldade achais em crer, como todos os antigos, na matéria eterna?” Por outro lado dir-vos-á o teólogo: “Se acreditardes que a matéria é eterna, reconhecereis portanto dois princípios, Deus e a matéria; caís agora no erro de Zoroastro e Manés”.

Nada responderemos aos geômetras, porque aquela gente nada conhece além de suas linhas, suas superfícies e seus sólidos. Mas podemos dizer aos teólogos: “Em que sou maniqueu? Eis aqui pedras que um arquiteto não fabricou; ele ergueu uma construção imensa; não admito dois arquitetos; as pedras brutas obedeceram ao poder e ao gênio”.

Felizmente, seja qual for o sistema que abracemos, nenhum prejudica a moral: porque, que importa que a matéria tenha sido feita ou ordenada? Deus é igualmente nosso senhor absoluto. Devemos ser igualmente virtuosos em um caos desemaranhado ou em um caos criado do nada; quase nenhuma dessas questões metafísicas influi na conduta da vida: tais disputas são como as alegres periquitices que temos à mesa: depois de comer cada um esquece o que disse e vai para onde o chamam seu interesse e seu gosto.

MAU

Vivem a gritar-nos que a natureza humana é essencialmente perversa, que o homem nasceu mau e filho do diabo. Nada menos ponderado: porque, meu amigo, tu que me dizes que toda gente nasceu perversa, tu me advertes pois de que nasceste tal, que é preciso que eu desconfie de ti como de uma raposa ou de um crocodilo. – Oh! nada disso! – dizes, – eu me regenerei, não sou nem herege nem infiel, podeis fiar-vos em mim. – Mas o resto do gênero humano, que é ou herege ou o que chamas infiel, não será pois um conjunto de monstros? E todas as vezes que falares a um luterano ou a um turco deverás estar certo de que te roubarão ou assassinarão: pois são filhos do diabo; nasceram ruins; um nada tem de regenerado e o outro é degenerado. Seria muito mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens: Nascestes bons; vede quão afrontoso seria corromper a pureza do vosso ser. Seria de mister proceder com o gênero humano como procedemos com os homens em particular. Se um cônego leva uma vida escandalosa, nós lhe dizemos: “É possível que desonreis a dignidade de cônego?” Faz-se lembrar a um magistrado que ele tem a honra de ser conselheiro do rei e que deve dar o exemplo. Diz-se a um soldado a fim de encorajá-lo: “Recorda que pertences ao regimento de Champagne” Dever-se-ia dizer a todo indivíduo: “Lembra-te de tua dignidade de homem”.

E, com efeito, não obstante a possuirmos, temos sempre necessidade dela: pois que quer dizer esta frase freqüentemente empregada em todos os povos, concentrai-vos em vós mesmo? Se houvésseis nascido filho do diabo, se vossa origem fosse criminosa, se vosso sangue fosse composto de um licor infernal, esta expressão concentrai-vos em vós mesmo significaria: consultai, segui vossa natureza diabólica, sede impostor, assassino, é a lei de vosso pai.

O homem não é ruim de nascimento; torna-se depois, assim como adoece. Alguns médicos se lhe apresentam e dizem: “Nascestes já doente.” Pile está perfeitamente certo de que esses médicos, por mais que façam, não o curarão se sua doença é inerente a sua natureza; esses próprios argumentadores são bem doentes.

Reuni todas as crianças do universo, e não vereis nelas senão inocência, doçura e timidez; se houvessem nascido más, malfeitoras, cruéis, mostrariam algum sinal, tal como as serpentezinhas procuram morder e os tigrinhos arranhar.

Mas a natureza não concedeu ao homem mais armas ofensivas do que aos coelhos e aos pássaros, não lhes pode dar um instinto que os conduza à destruição.

Portanto o homem não é mau de nascimento. Por que então existe tão grande número de infetados por essa peste da ruindade? É que aqueles que os dirigem, sendo colhidos pela doença, comunicam-na ao resto dos homens, como uma mulher atacada do mal que Cristóvão Colombo trouxe da América espalha esse veneno de extremo a outro da Europa. O primeiro ambicioso corrompeu a terra.

Ides dizer-me que esse primeiro monstro desenvolveu o germe do orgulho, da rapina, da fraude, da crueldade, que existe em todos os homens. Sei muito bem que em geral a maioria de nossos irmãos pode adquirir esses defeitos; estará porém toda gente contaminada pela febre pútrida, pelos cálculos renais, apenas por que todos estão expostos?

Existem nações inteiras completamente boas: os filadélfios, os banianos nunca mataram pessoa alguma; os chineses, os povos de Tonquim, de Lao, de Siam, do próprio Japão, durante várias centenas de anos não conheceram a guerra. Apenas de dez em dez anos é possível ver um desses crimes que comovem a natureza humana nas cidades de Roma, Veneza, Paris, Londres, Amsterdã, cidades onde, de feito, a cupidez, mãe de todos os crimes, é extensa.

Se os homens fossem essencialmente maus, se nascessem completamente submetidos a um ser tão malfeitor como infeliz, que para se vingar de seus suplícios lhes inspirasse todos os seus furores, ver-se-iam todas as manhãs maridos assassinados por suas mulheres e pais por seus filhos, como podemos contemplar no alvorecer do dia frangos estrangulados por uma doninha que lhes sugou o sangue.

Se houver um bilhão de homens sobre a terra será muito; isto dá aproximadamente quinhentos milhões de mulheres que costuram, que cozinham, que alimentam seus filhos, que tomam conta da casa ou cabana própria, e que falam um certo mal de suas vizinhas. Não vejo que grande mal essas pobres inocentes fazem sobre a terra. Sobre esse número de habitantes do globo há duzentos milhões de crianças no mínimo, que com toda certeza não saqueiam nem matam, e cerca de outro tanto de velhos e doentes que o não podem fazer. Restarão quando muito cem milhões de jovens robustos e capazes de praticar o crime. Desses cem milhões noventa estão continuamente ocupados em forçar a terra, mercê de um trabalho prodigioso, a fim de que esta lhes dê alimentos e roupas; esses não têm igualmente tempo para fazer o mal.

Nos dez milhões restantes estão compreendidos os ociosos que prezam a boa companhia das mesas, que desejam viver doce e tranqüilamente, os homens de talento ocupados com suas profissões, os magistrados, os padres, visivelmente interessados em levar uma vida pura, ao menos na aparência. Como verdadeiros maus, portanto, apenas restarão alguns políticos, amadores ou profissionais, e alguns milhares de vagabundos que lhes alugam os seus serviços. Ora, impossível seria atuar um milhão de bestas ferozes ao mesmo tempo; e nesse número estão incluídos os assaltantes das estradas reais. Tendes, pois, quando muito, sobre a terra, nos tempos mais borrascosos, um homem sobre mil a quem se pode chamar mau.

Há pois infinitamente menos mal sobre a terra do que se diz e pensa. E é ainda muito, sem dúvida: assistimos a desgraças e crimes horríveis; porém o prazer de se lamentar e exagerar é tão grande que à mínima arranhadela seríeis capaz de bradar que a terra regurgita de sangue. Fostes enganado, todos os homens são perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma injustiça vê o universo coberto de danados, como um jovem voluptuoso ceando com sua dama, ao sair da Ópera, não acredita na existência de infelizes.

MESSIAS

Messiah ou Meshiah em hebreu; Christos ou Eleimmenos em grego; Unctus em latim; Ungido.

Vemos no Velho Testamento que o nome de Messias foi dado a príncipes idólatras ou infiéis. Está dito(51) que Deus enviou um profeta para ungir Jeú, rei de Israel. Anunciou ele a unção sagrada a Hazael, rei de Damasco e Síria, pois esses dois príncipes eram os Messias do Altíssimo para punir a casa de Acabe.

No 45o. de Isaías o nome de Messias é expressamente dado a Ciro. “Assim disse o Eterno a Ciro, seu ungido, seu Messias, de quem tomei a mão direita, a fim de que eu submeta as nações diante dele, etc.”.

Ezequiel, no capítulo 28 de suas revelações, dá o nome de Messias ao rei de Tiro, a quem também chamava Querubim. “Filho do homem, – disse o Eterno ao profeta, – pronuncia em altas vozes uma queixa ao rei de Tiro, e diz-lhe:

“Assim disse o Senhor, o Eterno. Eras o sinete da semelhança de Deus, repleto de sabedoria e perfeito em beleza; foste o jardim do Éden do Senhor, (ou, segundo outras versões) eras todas as delícias do Senhor. Tuas vestes eram de sardônica, de topázio, de jaspe, de crisólita, de ônix, de berilo, de safira, de escarbúnculo, de esmeralda e ouro. O que sabiam fazer teus tambores e tuas flautas esteve contigo; eles foram aprontados no dia de tua criação; foste um Querubim, um Messias”.

Esse nome de Messiah, Christ, era dado aos reis, aos profetas e aos grandes sacerdotes dos hebreus. Lemos no 1o. dos Reis, XII, 5: “O Senhor e seu Messias são testemunhas”, isto é: “O Senhor e o rei que estabeleceu”. E alhures: “Não toqueis em meus ungidos nem façais mal algum a meus profetas”. Davi, animado do espírito de Deus, deu em várias ocasiões a Saul, seu sogro renegado, que o perseguia, o nome e a qualidade de ungido, de Messias do Senhor. “Deus me guarde” – diz freqüentemente – “de levantar a mão sobre o ungido do Senhor, sobre o Messias de Deus!”

Se o nome de Messias, ungido do Senhor, foi dado a reis idólatras, a renegados, foi também mui freqüentemente empregado em nossos antigos oráculos para designar o verdadeiro ungido do Senhor, esse Messias por excelência, o Cristo, filho de Deus, enfim o próprio Deus.

Se compararmos todos os diversos oráculos que se aplicam de ordinário ao Messias, não pode haver ao que parece dificuldade alguma capaz de favorecer os judeus, no sentido de justificar, se o pudessem, sua obstinação. Vários grandes teólogos concordam que, no estado de opressão sob o qual gemia o povo judeu, e depois de todas as promessas que o Eterno lhe fez com tanta freqüência, podia suspirar pela vinda de um Messias vencedor e libertador, e que assim se torna de certa forma escusável o não haver a princípio reconhecido esse libertador na pessoa de Jesus.

Pertencia ao plano da sabedoria eterna que as idéias espirituais do verdadeiro Messias permanecessem desconhecidas pelas multidões cegas; foram-no ao ponto de os doutores judeus tomarem o cuidado de não negar senão os trechos que alegamos deverem ser entendidos como referentes ao Messias. Dizem vários que o Messias já veio na pessoa de Ezequias; é também o pensamento do famoso Hilel. Outros, em grande número, pretendem que a crença da vinda de um Messias não é absolutamente um artigo fundamental de fé, e que esse dogma, não assomando nem no Decálogo nem no Levítico, não passa de uma esperança consoladora.

Vários rabinos dizem não duvidar que, segundo os antigos oráculos, o Messias não tenha vindo nos tempos determinados; mas que ele não envelhece, que ficará sobre esta terra e esperará, para se manifestar, que Israel tenha celebrado como é de mister o sabate.

O famoso rabino Salomão Jarquí ou Rasquí, que viveu no princípio do duodécimo século, diz em suas Talmúdicas que os antigos hebreus acreditaram que o Messias nascera no dia da última destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos; é, como se costuma dizer, chamar o médico depois da morte.

O rabino Quinquí, que também viveu no duodécimo século, anunciou que o Messias, cuja vinda julgava muito próxima, expulsaria da Judéia os cristãos que a possuíam até aquele momento; é verdade que os cristãos perderam a Terra Santa; mas foi Saladino quem os venceu; por pouco que esse conquistador tenha protegido os judeus declarando-se a seu favor, parece que em seu entusiasmo eles o transformaram em seu Messias.

Os autores sacros, e o próprio Nosso Senhor Jesus, comparam freqüentemente o reino do Messias e a eterna beatitude a dias de esponsais, a festins; porém os talmudistas abusaram estranhamente dessas parábolas; segundo eles, o Messias dará a seu povo, reunido na terra de Canaã, uma refeição cujo vinho será o mesmo feito por Adão no Paraíso terrestre, e que se conserva em vastas adegas, guardadas pelos anjos no centro da terra.

Servir-se-á de início o famoso peixe chamado o grande Leviatã, que engole de um só trago um peixe maior do que ele, o qual não deixa de ter trezentas léguas de comprimento; toda a maça das águas está apoiada sobre Leviatã. Deus, a princípio, criou um macho e uma fêmea; mas temendo que eles revolvessem a terra e enchessem o universo de seus semelhantes, Deus matou a fêmea, salgando-a para o festim do Messias.

 

Os rabinos acrescentam que se matará para esse festim o touro de Beemote, que é tão grande que come diariamente o feno de mil montanhas; a fêmea desse touro foi morta no princípio do mundo, para que uma espécie tão prodigiosa não se multiplicasse, o que apenas poderia ser prejudicial às outras criaturas; asseguram porém que o Eterno não a salgou, pois a vaca salgada não é tão boa como o Leviatã. Os judeus acrescentaram ainda tanta fé a todas essas fantasias rabínicas que é freqüente jurarem sobre a parte do boi de Beemote que lhes cabe.

Depois de idéias tão grosseiras sobre a vinda do Messias e sobre o seu reino, será para admirar que os judeus, tanto antigos como modernos, e vários mesmo dos primeiros cristãos, desgraçadamente imbuídos de todas essas loucuras, não tenham podido elevar-se à idéia da natureza divina do ungido do Senhor, nem atribuíram as qualidades de Deus ao Messias? Vede como os judeus se exprimem lá das alturas em sua obra intitulada Juaei Lusitani Quaestiones ad Christianos. “Reconhecer” – dizem – “um homem-Deus é forjar um monstro, um centauro, o composto estranho de duas naturezas que não se poderiam aliar”. Acrescentam que os profetas não ensinam absolutamente que o Messias deve ser homem-Deus, que fazem distinções expressas entre Deus e Davi, que consideram o primeiro, senhor, o segundo, servidor, etc.

Sabe-se muito bem que os judeus, escravos da letra, jamais penetraram como nós o sentido das Escrituras.

Quando o Salvador apareceu, os preconceitos judeus se ergueram contra ele. O próprio Jesus Cristo, para não revoltar seus espíritos cegos, parece extremamente reservado sobre o artigo de sua divindade: “Ele queria” – diz São Crisóstomo – “acostumar insensivelmente seus auditores a crer num mistério grandemente elevado acima da razão”. Se toma a autoridade de um Deus perdoando os pecados, isto revolta todos os que o testemunham; seus milagres mais evidentes não podem convencer de sua divindade aqueles mesmos em favor dos quais opera. Quando perante o tribunal do soberano sacrificador ele admite com modéstia ser filho de Deus, o sumo sacerdote rasga-lhe a roupa, rompendo em blasfêmias. Antes do enviado do Espírito Santo os apóstolos nem sequer suspeitavam a divindade de seu mestre; ele os interroga sobre o que pensa o povo a seu respeito: respondem-lhe que uns o tomam por Elias, outros por Jeremias ou qualquer outro profeta. São Pedro precisa de uma revelação particular para conhecer que Jesus é o Cristo, o filho de Deus vivente.

Os judeus, revoltados contra a divindade de Jesus Cristo, recorreram a toda sorte de meios para destruir esse grande mistério; deturpam o sentido dos seus próprios oráculos, ou não os aplicam ao Messias; pretendem que o nome de Deus, Elói, não é particular à divindade, sendo até concedido pelos autores sagrados aos juizes, aos magistrados, em geral aos elevados em autoridade; citam, com efeito, grande número de passos das Santas Escrituras que justificam esta observação, mas que não concedem a mínima atenção aos termos expressos dos antigos oráculos que falam do Messias.

Enfim, pretendem que se o Salvador, e depois dele os evangelistas, os apóstolos e os primeiros cristãos chamam Jesus o filho de Deus, esse termo augusto não significava nos tempos evangélicos senão o oposto dos filhos de Belial, isto é, homem de bem, servidor de Deus, em oposição a um malvado, um homem que não teme a Deus.

Se os judeus contestaram a Jesus Cristo a qualidade de Messias e sua divindade, nada esqueceram para torná-lo desprezível, para atirar sobre o seu nascimento, sua vida e sua morte, todo o ridículo e todo o opróbrio imaginado pela sua obstinação criminosa.

De todas as obras produzidas pela cegueira dos judeus, nada há de mais odioso e extravagante do que o antigo livro intitulado: Sepher Toldos Jeschut, extraído da poeira dos arquivos pelo sr. Wagenseil, no segundo tomo de sua obra intitulada: Tela ignea, etc.

É nesse Sepher Toldos Jeschut que se lê uma história monstruosa da vida do nosso Salvador, forjada com toda paixão e má fé possíveis. Assim, por exemplo, ousaram escrever que um tal Panter ou Pandera, habitante de Betlêm, se apaixonara por uma mulher casada com Jocanã. Teve desse comércio impuro um filho que foi chamado Jesuá ou Jesú. O pai desse menino foi obrigado a fugir, retirando-se para Babilônia. Quanto ao jovem Jesú, foi enviado à escola; mas, – acrescenta o autor – teve a insolência de levantar a cabeça e de se descobrir diante dos sacrificadores, em lugar de se apresentar à sua frente com a cabeça baixa e o rosto coberto, como era costume: ousadia que foi vivamente punida; o que deu lugar ao exame de seu nascimento, que se revelou impuro e em breve o expôs à ignomínia.

Esse detestável livro Sepher Toldos Jeschut era conhecido desde o segundo século; é citado por Celso com confiança e Orígenes refuta-o no nono capítulo.

Existe outro livro também intitulado Toldos Jeschut, publicado no ano de 1705 pelo Sr. Huldrich, que segue mais de perto o Evangelho da infância mas que comete, a todo momento, os anacronismos e faltas mais grosseiros. Faz nascer e morrer Jesus Cristo no reinado de Herodes, o Grande; pretende terem sido dirigidas a esse príncipe as queixas sobre o adultério de Panter e de Maria, mãe de Jesus.

O autor, que toma o nome de Jonatã, que se diz contemporâneo de Jesus Cristo e morador em Jerusalém, adianta que Herodes consultou os senadores de uma cidade da terra de Cesárea sobre o caso de Jesus Cristo. Não seguiremos um autor tão absurdo em todas as suas contradições.

No entanto é a favor de todas essas calúnias que os judeus se entretêm em seu ódio implacável contra os cristãos e contra o Evangelho; nada esqueceram eles para alterar a cronologia do Velho Testamento e para espalhar dúvidas e dificuldades sobre o tempo da vinda do nosso Salvador. Ahmed-ben-Cassum-al-Andacusi, mouro de Granada que viveu nos fins do século XVI, cita o antigo manuscrito árabe que foi encontrado junto a seis lâminas de chumbo, gravado em caracteres árabes, numa gruta perto de Granada. D. Pedro y Quinones, arcebispo de Granada, prestou ele próprio testemunho. Essas lâminas de chumbo que chamamos de Granada foram depois transladadas para Roma, onde, após um exame de vários anos, foram finalmente condenadas como apócrifas, sob o pontificado de Alexandre VII; não continham senão histórias fabulosas concernentes à vida de Maná e seu filho.

O nome de Messias, acompanhado do epíteto falso, ainda se dá a esses impostores que, em épocas diversas, procuraram mistificar a nação judaica. Houve desses falsos Messias antes mesmo da vinda do verdadeiro ungido de Deus. O sábio Gamaliel fala (52) de um certo Teodas cuja história se lê nas Antigüidades Judaicas de José; livro 20, capítulo 2. Jactava-se de haver passado o Jordão a pé seco; conseguiu grande número de adeptos que o seguiam; mas os romanos, caindo sobre sua tropa, dizimaram-na, cortaram a cabeça do desgraçado chefe e a expuseram em Jerusalém.

Gamaliel fala também de Judas, o Galileu, que é sem dúvida o mesmo mencionado por José, no capítulo 12 do segundo livro da Guerra das Judeus. Diz que esse falso profeta reunira quase trinta mil adeptos; porém a hipérbole é o característico do historiador judeu.

Desde os tempos dos apóstolos viu-se Simão, cognominado o Mágico (53), seduzir os habitantes de Samaria a ponto de o considerarem como a virtude de Deus.

No século seguinte, no ano 178 e 179 da era cristã, sob o império de Adriano, apareceu o falso Messias Barco Queba, à testa de um exército. O imperador enviou contra ele Júlio Severo, que depois de vários encontros encerrou os revoltosos na cidade de Biter; manteve um assedio obstinado e foi violentíssimo em suas represálias; Barco Queba foi preso e condenado à morte. Adriano julgou não poder prevenir as revoltas contínuas dos judeus, senão proibindo-os por édito de irem a Jerusalém; estabeleceu, mesmo, postos de vigilância nas portas dessa cidade, para proibir a entrada ao resto do povo de Israel.

Lemos em Sócrates, historiador eclesiástico(54), que no ano 434 apareceu na ilha de Cândia um falso Messias chamado Moisés. Dizia-se o antigo libertador dos hebreus, ressuscitado para os libertar de novo. Um século depois, em 530, houve na Palestina um falso Messias chamado Julião; anunciou-se como um grande conquistador que, à frente de sua nação, destruiria pelas armas todo o povo cristão; seduzidos por suas promessas, os judeus, armados, massacraram muitos cristãos. O imperador Justiniano enviou tropas contra ele. Travou-se batalha contra o falso Cristo: foi preso e condenado ao suplício extremo.

No princípio do século VIII Sereno, judeu espanhol, apresentou-se como Messias, pregou, teve discípulos e morreu como eles na miséria.

Vários falsos Messias surgiram no século XII. Apareceu um na França, sob o reinado de Luís, o Jovem; foi enforcado, ele e seus correligionários, sem que jamais se conhecessem os nomes nem do mestre nem dos discípulos.

O século XIII foi fertilíssimo de falsos Messias; contam-se sete ou oito, aparecidos na Arábia, na Pérsia, na Espanha e na Morávia. Um deles, que se fazia chamar David el Re, passou por ter sido um grande mártir, seduziu os judeus, vendo-se à testa de um partido considerável; mas esse Messias foi assassinado.

Jacques Zieglerne, da Morávia, que viveu em meados do século XVI, anunciou a próxima manifestação do Messias, nascido, segundo afirmava, havia catorze anos. Ele o tinha visto, dizia, em Estrasburgo, e guardava com cuidado uma espada e um cetro para lhos entregar quando ele estivesse em idade de ensinar.

No ano de 1624 outro Zieglerne confirmou a predição do primeiro.

Em 1666 Sabatê Seví, nascido em Alepo, se apresentou como o Messias predito pelos Zieglerne. Principiou por pregar nas estradas reais e no meio dos campos; os turcos riram-se dele, apesar da grande admiração dos seus discípulos. Parece que não agradou à maioria da nação hebraica, pois os chefes da sinagoga de Smirna lavraram contra ele uma sentença de morte; mas livrou-se da pena, sofrendo somente o medo e o exílio

Contratou três casamentos que não chegou a realizar, segundo se diz. Associou-se a um certo Natã Leví: este fez o papel do profeta Elias, que devia preceder o Messias. Dirigiram-se a Jerusalém e Natã anunciou Sabatê Seví como o libertador das nações. A população judaica declarou-se a seu favor; mas os que tinham alguma coisa a perder o anatematizaram.

Seví, para fugir à borrasca, retirou-se para Constantinopla, e de lá para Smirna. Natã Leví enviou-lhe quatro embaixadores que o reconheceram e saudaram publicamente na qualidade de Messias; essa embaixada teve certa influência no povo e mesmo em alguns doutores, que declararam Sabat Seví Messias e rei dos hebreus. Mas a sinagoga de Smirna condenou seu rei a ser empalado.

Sabatê pôs-se sob a proteção do cadi de Smirna, e teve em breve ao seu favor todo o povo judeu. Fez erguer dois tronos, um para ele e outro para sua esposa favorita; tomou o nome de rei dos reis e deu a José Seví, seu irmão, o de rei de Judá. Prometeu aos judeus assegurar a conquista do império otomano. Chegou mesmo à insolência de fazer riscar da liturgia judaica o nome do imperador, substituindo-o pelo seu. Foi remetido à prisão dos Dardanelos. Os judeus tornaram público que: só se poupara a sua vida por que os turcos sabiam muito bem que ele era imortal. O governador dos Dardanelos enriqueceu-se à custa dos presentes que os hebreus lhe prodigalizaram para visitar o seu rei, o seu Messias, prisioneiro que, entre grades, conservava toda a sua dignidade, deixando que lhe beijassem os pés.

Entretanto o sultão, que tinha a sua corte em Andrinopla, resolveu acabar com essa comédia; mandou chamar Seví e disse-lhe que se ele fosse Messias deveria ser invulnerável; Seví concordou. O grão senhor mandou que o colocassem como alvo das flechas de seus pagens; o Messias compreendeu logo nada ter de invulnerável e pretextou que Deus apenas o enviara para render testemunho à santa religião muçulmana. Fustigado pelos ministros da lei, tornou-se mafomista e morreu desprezado igualmente por judeus e muçulmanos: o que desacreditou de tal forma a profissão de falso Messias que Seví foi o último deles. (55).

METAMORFOSE, METEMPSICOSE

Não é muito natural que todas as metamorfoses de que a terra está repleta tenham feito imaginar, no Oriente, onde tudo foi imaginado, que nossas almas passam de um corpo a outro? Um ponto quase imperceptível torna-se um verme, esse verme se transforma em borboleta; uma bolota se transforma num tronco, um ovo num pássaro; a água torna-se nuvem e trovão; a madeira troca-se em fogo e cinza; tudo enfim, na natureza, parece metamorfose. Não tardamos em atribuir às almas, que olhamos como tênues figuras, o que vemos sensivelmente nos corpos mais grosseiros. A idéia da metempsicose é talvez o mais antigo dogma do universo conhecido, e reina ainda em grande parte da Índia e da China.

É ainda bastante natural que todas as metamorfoses de que somos testemunhas hajam produzido essas antigas fábulas que Ovídio recolheu em sua obra admirável. Os próprios judeus tiveram também suas metamorfoses. Se Níobe foi transformada em mármore, Edite, mulher de Ló, foi transmutada numa estátua de sal. Se Eurídice ficou nos infernos por ter olhado para trás, é também pela mesma indiscrição que essa mulher de Ló foi privada da natureza humana. O burgo habitado por Baucis e Filêmon, na Frigia, transformou-se em um lago; a mesma coisa sucedeu a Sodoma. As filhas de Anjo transformavam a água em óleo; temos nas Escrituras uma metamorfose mais ou menos parecida, porém mais verdadeira e mais sagrada. Cadmo foi transformado em serpente; a virgem de Aarão tornou-se serpente também.

Os deuses também mudam-se muitas vezes em homens; os judeus jamais viram anjos senão sob a forma humana: os anjos comeram na casa de Abraão. Paulo, em sua Epístola aos Coríntios, diz que o anjo de Satã lhe deu bofetadas: Angelos Satana me colaphisei.

MILAGRES

Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.

Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.

Vários físicos afirmam que, nesse sentido, não existe milagre algum, e eis aqui seus argumentos.

Um milagre é a violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa única exposição, um milagre é uma contradição nos termos. Uma lei não pode ser mutável a violada. Mas uma lei, diz-se-lhes, sendo estabelecida por Deus mesmo, não poderá ser suspensa pelo seu autor? Têm a ousadia de responder que não e que é impossível que o Ser infinitamente sábio tenha estabelecido leis para as violar. Um homem, dizem eles, não desmonta sua máquina senão para fazê-la melhor; ora, é claro que, sendo Deus, ele fez essa imensa máquina o melhor que pode: se viu que haveria alguma imperfeição, resultante da natureza da matéria, ele a preveniu desde o começo; assim jamais há de mudar nada.

Demais, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão poderia levá-lo a desfigurar por algum tempo a sua própria obra? É em favor dos homens, diz-se-lhes. Será, pois, ao menos em favor de todos os homens respondem eles: pois é impossível conceber que a natureza divina trabalhe para alguns homens em particular e não para todo o gênero humano; mesmo o gênero humano é pouca coisa: é muito menos do que um pequeno formigueiro em comparação com todos os entes que preenchem a imensidão. Ora, não é a mais absurda das loucuras imaginar que o Ser Infinito invertesse em favor de três ou quatro centenas de formigas nesse pequeno pedaço de lodo, o movimento eterno dessas molas imensas que fazem mover o inteiro universo?

Mas suponhamos que Deus desejou distinguir um pequeno número de homens com favores particulares: seria preciso que mudasse tudo o que estabeleceu para todos os tempos e todos os lugares. Ele não tem, por certo, necessidade alguma dessa mudança, dessa inconstância, para favorecer suas criaturas: seus favores estão encerrados em suas próprias leis. Ele tudo preveniu, tudo ordenou para elas; todas obedecem irrevogavelmente à forca que imprimiu para todo o sempre na natureza.

Por que faria Deus um milagre? Para realizar um plano qualquer concernente a alguns seres vivos! Portanto: não pude, com os meus decretos divinos, com minhas leis eternas, preencher um certo plano; vou mudar minhas idéias eternas, minhas leis imutáveis, e tratar de executar o que não consegui fazer por elas. Tal fato seria um sinal de sua fraqueza, e não de sua potência. Seria, parece, nele, a mais inconceptível contradição. Portanto, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo (se é que os homens podem insultar Deus); é dizer-lhe: “Sois um ente frágil e inconseqüente”. Portanto, é absurdo crer em milagres, é desonrar de certo modo a Divindade.

Insiste-se com esses filósofos, dizendo-lhes: “É inútil exaltardes a imutabilidade do Ente Supremo, a eternidade de suas leis, a regularidade de seus mundos infinitos; nosso pequeno pedaço de lodo está repleno de milagres; as histórias estão tão repletas de prodígios que estes se tornam acontecimentos naturais. As filhas do sumo sacerdote Agno trocavam tudo o que bem entendiam em trigo, em vinho ou óleo; Atálida, filha de Mercúrio, ressuscitou várias vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou Alceste dos braços da Morte; Éros voltou ao mundo após ter passado quinze dias nos infernos; Rômulo e Remo nasceram de um deus e uma vestal. O Paládio tombou dos céus na cidade de Tróia; a cabeça de Orfeu concedia oráculos depois de sua morte; as muralhas de Tebas se construíram por si próprias ao som das flautas dos gregos; as curas realizadas no templo de Esculápio eram numerosas, e temos ainda monumentos repletos de nomes de testemunhas oculares dos milagres de Esculápio.

“Citai-me um único povo no qual não se tenham operado prodígios incríveis, principalmente nos tempos em que mal se sabia ler e escrever”.

Os filósofos não respondem a essas objeções senão rindo e dando de ombros; mas os filósofos cristãos dizem: “Cremos perfeitamente nos milagres operados em nossa santa religião; cremo-los mediante nossa fé, e não pela nossa razão, que nos guardamos bem de ouvir: porque, quando fala a fé, sabemos que a razão não deve dizer palavra. Temos uma crença firme e integral nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas permiti-nos duvidar um pouco de vários outros; permiti, por exemplo, que suspendamos nosso julgamento sobre o que concerne a um homem simples ao qual se deu o nome de grande. Ele afirma que um pequeno monge estava tão acostumado a realizar milagres que o prior lhe proibira exercer seu talento. O pequeno monge obedeceu; mas tendo visto um pobre telhador cair do alto de um telhado, ficou indeciso entre salvar-lhe a vida e manter a santa obediência. Ordenou apenas que o telhador permanecesse suspenso a meio caminho do solo, até nova ordem, e correu de pressa a contar ao seu prior o estado das coisas. O prior absolveu-o do pecado que cometera iniciando um milagre sem licença e permitiu que o terminasse, contanto que nunca mais o repetisse. Concede-se aos filósofos desconfiar um pouco dessa história”.

Mas como ousaríeis negar, diz-se-lhes, que S. Gervásio e S. Protásio tenham aparecido em sonho a Santo Ambrósio, que lhe tenham ensinado o lugar onde estavam escondidas as suas relíquias, que Sto. Ambrósio as tenha desenterrado e que elas curaram um cego? Sto. Agostinho estava nessa época em Milão; é ele quem nos conta o milagre: Immenso populo teste, diz em sua Cidade de Deus, livro 22. Eis um milagre dos melhor averiguados. Os filósofos dizem que não acreditam em nada disso; que Gervásio e Protásio não apareceram a pessoa alguma; que pouco importa ao gênero humano saber onde estão os restos de suas carcassas; que não concedem maior crédito a esse cego que ao de Vespasiano; que é um milagre inutilíssimo; que Deus nada faz de inútil; e se mantêm firmes em seus princípios. Meu respeito a S. Gervásio e S. Protásio não me permite ser do pensar desses filósofos: apenas registo sua incredulidade. Fazem grande caso da passagem de Luciano que se encontra na Morte de Peregrino. “Quando um trapaceiro chega a se transformar em cristão, é porque tem certeza de ficar rico”. Mas como Luciano é um autor profano, não deve ter nenhuma autoridade entre nós.

Esses filósofos não podem se resolver a crer nos milagres operados no segundo século. Perdem tempo as testemunhas oculares em escrever que o bispo de Smirna, S. Policarpo, tendo sido condenado a ser queimado, e sendo atirado às chamas, ouviram uma voz do céu gritar: “Coragem, Policarpo! Sê forte, mostra que és homem!”; que então as chamas da fogueira se separaram de seu corpo, formando um pavilhão de fogo ao redor de sua cabeça, e que do meio da fogueira saiu uma pombinha; enfim, foi necessário decepar a cabeça de Policarpo. “Que vale um milagre desses?” – dizem os incrédulos: – “por que motivo as chamas perderam sua natureza e por que o machado do carrasco não perdeu a sua? Como se explica que tão elevado número de mártires tenham saído sãos e salvos do óleo fervente, e não puderam resistir ao gume do facão? Responde-se que é a vontade de Deus. Mas os filósofos desejariam ter visto todas essas coisas com os seus próprios olhos antes de acreditar.

Os que fortificam seus raciocínios pela ciência vos responderão que os padres da igreja perceberam várias vezes por si próprios já não se realizarem, os milagres de seus tempos. S. Crisóstomo diz expressamente: “Os dons extraordinários do espírito eram dados mesmo aos indignos, porque então a igreja necessitava de milagres; hoje, porém, eles não são concedidos nem mesmo aos dignos, pois a igreja já não os necessita”. Em seguida ele concorda em que não há mais pessoas capazes de ressuscitar mortos, nem mesmo que curem os doentes.

O próprio Sto. Agostinho, apesar do milagre de Gervásio e de Protásio, diz em sua Cidade de Deus: “Por que não se repetem hoje os milagres de outrora?” E ele mesmo explica as razões: “Cur, inquiunt, nunc illa miracula quae praedicatis facta esse none fiunt? Possem quidem, dicere necessaria prius fuisse quam crederet mundus, ad hoc ut crederet mundus”

Objeta-se aos filósofos que Sto. Agostinho, não, obstante tal confissão, fala no entanto de um velho remendão Hipônio que, tendo perdido sua casaca, foi pregar na capela dos vinte mártires; que ao regressar encontrou um peixe em cujo corpo. estava um anel da ouro, e que o cozinheiro que fritou o peixe disse ao remendão:, “Eis o que os vinte mártires vos dão”

A isso respondem os filósofos que nada existe nessa história que contradiga as leis da natureza, que a física não chega a ser abalada pelo fato de um peixe encerrar um anel de ouro e que um cozinheiro tenha dado esse anel a um remendão; que não há nisso nenhum milagre.

Se se lembrar a esses filósofos que segundo S. Jerônimo, em sua Vida do Eremita Paulo, esse eremita teve várias conversações com os sátiros e faunos, que um corvo lhe levava todos os dias, durante trinta anos, a metade de um pão para o seu jantar e um pão inteiro no dia em que Sto. Antônio foi visitá-lo, eles poderão responder ainda que esse grande fato não se choca com a física, que sátiros a faunos podem ter existido e que, em todo caso, se essa história é uma puerilidade, nada tem de comum com os verdadeiros milagres do Salvador e seus apóstolos. Vários bons cristãos combateram a história de S. Simão Estilita, escrita por Teodoreto. Muitos milagres que passam por autênticos na igreja grega foram postos em dúvida por muitos latinos, da mesma forma que vários milagres latinos foram desacreditados pela igreja grega; vieram em seguida os protestantes, que maltrataram os milagres tanto de uma como de outra igreja.

Um sábio jesuíta (56) que pregou durante muito tempo nas Índias lamenta-se de que nem ele nem seus confrades jamais puderam fazer um milagre. Xavier lamenta-se em muitas de suas cartas de não possuir o dom linguístico; diz que entre os japoneses ele é como uma estátua muda. Entretanto, os jesuítas escreveram que ele ressuscitou oito mortos; é muito; mas é também preciso considerar que ele os ressuscitou há cem mil léguas daqui. Ao depois houve gente que pretendeu ser a abolição dos jesuítas na França um milagre muito maior do que os de Xavier e Inácio.

Seja como for, todos os cristãos convêm em que os milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos são de uma verdade incontestável, mas que se pode duvidar de todo ponto de alguns milagres feitos nos últimos tempos e que não têm uma autenticidade positiva.

Desejar-se-ia, por exemplo, para que um milagre fosse bem constatado, que se realizasse na presença da Academia das Ciências de Paris, ou da Sociedade Real de Londres, e da Faculdade de Medicina, assistido por um destacamento do regimento de guardas a fim de conter a multidão, que poderia, com uma indiscrição, impedir a prática do milagre.

Perguntou-se um dia a um filósofo o que diria se visse o Sol deter sua marcha, isto é, se o movimento da Terra ao redor desse astro cessasse, se todos os mortos ressuscitassem e se todas as montanhas se precipitassem ao mar, tudo para provar alguma importante verdade, como por exemplo a graça versátil. “Que diria?” – respondeu o filósofo: – “Tornar-me-ia um maniqueu, diria que existe um princípio que desfaz o que o outro fez”.

MOISÉS

Vários sábios julgaram que o Pentateuco não pode ter sido escrito por Moisés. Dizem que da própria Escritura se evidencia que o primeiro exemplar conhecido foi encontrado no tempo do rei Josias, e que esse único exemplar foi apresentado ao rei pelo secretário Safã. Ora, entre Moisés e essa aventura do secretário Safã existem mil cento e sessenta e sete anos pelo cômputo hebraico. Porquanto Deus apareceu a Moisés no espinheiro ardente no ano do mundo dois mil duzentos e treze, e o secretário Safã publicou o Livro da Lei no ano do mundo três mil trezentos e oitenta. Esse livro encontrado sob o reinado de Josias foi desconhecido até o retorno da sujeição a Babilônia; e diz que foi Esdras, inspirado de Deus, que deu à luz todas as Santas Escrituras.

Ora, seja Esdras ou outro quem escreveu esse livro, isso é absolutamente indiferente desde que o livro foi inspirado. Não está dito no Pentateuco que Moisés tenha sido seu autor; é pois permitido atribuí-lo a outro homem qualquer, a quem o espírito divino o terá ditado.

Alguns contraditores acrescentam que nenhum profeta citou os livros do Pentateuco, que não é referido nem nos Salmos nem nos livros atribuídos a Salomão, nem em Jeremias nem em Isaías nem, enfim, em livro canônico algum. Os termos que respondem aos de Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio, não são encontrados em nenhum escrito, quer seja do Novo ou do Velho Testamento

Outros mais ousados formularam as seguintes questões:

 

1a. – Em que língua Moisés teria escrito, estando num deserto selvagem? Não poderia ter sido senão em egípcio: porque, por esse próprio livro, vê-se que Moisés e todo o seu povo nasceram no Egito. É provável que não falassem outra língua. Os egípcios não se serviam ainda do papiro, os hieróglifos eram gravados sobre mármore ou madeira. Diz-se até que as tábuas dos mandamentos foram gravadas sobre pedra. Portanto teria sido necessário gravar cinco volumes sobre pedras polidas, o que requereria esforços e tempo prodigiosos.

 

2a. – É possível que num deserto onde o povo judeu não tinha nem sapateiros nem alfaiates, e onde o Deus dos universos foi obrigado a realizar um milagre contínuo para conservar as velhas roupas e sapatos dos judeus, se tenham encontrado homens suficientemente hábeis para gravar os cinco livros do Pentateuco sobre mármore ou madeira? Responder-se-á que, entretanto, foram encontrados operários capazes de fazer um bezerro de ouro, e que em seguida reduziram o ouro em pá; que construíram um tabernáculo; que o adornaram com trinta e quatro colunas de bronze com capitéis de prata; que urdiram e recamaram véus de linho, de jacinto, de púrpura e escarlate; porém esses próprios fatos fortificam a opinião dos contraditores. Respondem não ser possível que, num deserto onde tudo faltava, se houvessem feito obras tão requintadas; que teria sido preciso começar por fazer sapatos e túnicas; que os que carecem do necessário não se podem entregar ao luxo, e que é evidente contradição afirmar a existência de fundidores, gravadores, escultores, tintureiros, recamadores, quando não se tinham nem roupas, nem sandálias, nem pão.

 

3a. – Se Moisés houvesse escrito o primeiro capítulo do Gênesis, ter-se-ia proibido a todos os jovens a leitura desse primeiro capítulo? Ter-se-ia respeitado tão pouco o legislador? Se fosse Moisés quem disse que Deus pune a iniqüidade dos pais até a quarta geração, teria Ezequiel dito o contrário?

 

4a – Se Moisés houvesse escrito o Levítico, poderia ter-se contradito no Deuteronômio? O Levítico proíbe casar com as cunhadas, o Deuteronômio o ordena.

 

5a. – Teria Moisés falado em seu livro a respeito de cidades que ainda não existiam no seu tempo? Teria dito que as cidades que para ele estavam ao oriente do Jordão, ficavam ao ocidente?

 

6a. – Teria ele registado quarenta e oito cidades levíticas num país onde jamais houve dez cidades, e num deserto por onde errou sempre sem ter uma casa?

 

7a.- Teria prescrito regras para os reis de Deus quando não só não existiam reis entre esse povo como, pelo contrário, estava ele em estado de completa ruína, sendo provável que nunca os possuísse? Como! Teria Moisés ditado preceitos para a conduta de reis que não vieram senão quinhentos anos depois dele, sem nada deixar dito aos juizes e pontífices que o sucederam? Esta reflexão não induz a crer que o Pentateuco foi composto nos tempos dos reis e que as cerimônias instituídas por Moisés apenas foram uma tradição?

 

8a. – Como pode ter ele dito aos judeus: “Eu vos fiz sair em número de 600 mil combatentes da terra do Egito, sob a proteção de vosso Deus?” Não lhe teriam os judeus respondido: “É preciso que tenhais sido bem tímido para não nos atirar contra o faraó do Egito; ele não nos poderia opor um exército de duzentos mil homens. Jamais o Egito teve tal número de soldados em pé de guerra; nós os teríamos vencido facilmente, seríamos os donos do seu país. Como o Deus que vos fala assassinou para nos agradar todos os primogênitos do Egito, e, se houver nesse país trezentas mil famílias, isto faz trezentos mil homens mortos numa noite, a fim de nos vingar; e vós não imitastes o vosso Deus! E vós não nos destes esse país fértil que ninguém poderia defender! Vós nos fizestes sair do Egito de mãos a abanar, para fazer que morrêssemos nos desertos, entre os precipícios e as montanhas! Teríeis podido, ao menos, conduzir-nos diretamente a essa terra de Canaã sobre a qual não temos direito algum, mas que nos prometestes e na qual ainda não pudemos entrar.

 

“Era natural que da terra de Gessen marchássemos para Tiro e Sidon, ao longo do Mediterrâneo; mas vós nos fizestes passar quase todo o istmo de Suez; vós nos fizestes penetrar no Egito, quase passar Menfis, e nós nos encontramos em Beel Sefon, nas margens do Mar Vermelho, voltando as costas à terra de Canaã, tendo caminhado 80 léguas nesse Egito que desejávamos evitar, e enfim prestes a perecer entre o mar e o exército do faraó! “Se houvésseis desejado livrar-nos dos nossos inimigos não teríeis tomado outra rota e outras medidas? Deus nos salvou com um milagre: o mar foi aberto para que passássemos; mas, após um tal favor, seria preciso deixar-nos morrer à fome e à fadiga nos horríveis desertos de Etam, de Gades Barne, de Mara, de Elim, de Orebe e de Sinai? Todos os nossos pais pereceram nessas solidões atrozes, e vós vindes dizer, depois de quarenta anos, que Deus teve um cuidado particular com nossos pais!”?

Eis o que esses judeus murmuradores, esses filhos injustos dos judeus vagabundos mortos nos desertos poderiam ter dito a Moisés se ele lhes houvesse lido o Êxodo e o Gênesis. E o que não deveriam eles dizer e fazer a respeito do bezerro de ouro! “Como! Ousais dizer-nos que vosso irmão fez um bezerro de ouro para nossos pais quando estáveis com Deus na montanha, vós que ora nos dizeis ter falado com Deus face a face e ora que apenas o vistes pelas costas! Mas, enfim, vós estivestes com esse Deus e vosso irmão funde num só dia um bezerro de ouro e no-lo dá para que o adoremos; e, em lugar de punir o vosso indigno irmão, fazeis dele nosso pontífice e ordenais a vossos levitas degolar vinte mil homens do vosso povo! Te-lo-iam sofrido nossos pais? Dizeis-nos que, não contente com essa carnificina incrível, fizestes ainda massacrar vinte e quatro mil dos vossos pobres acompanhantes porque um deles se deitara com uma madianita, quando vós mesmo desposastes uma madianita; e acrescentais que sois o mais doce de todos os homens! Ainda algumas ações dessa doçura e ninguém restaria para contar a história.

“Não, se fôsseis capaz de uma tal crueldade, se a tivésseis podido exercer, seríeis o mais bárbaro de todos os homens, e todos os suplícios seriam insuficientes para expiar um tão estranho crime.”

São essas, pouco mais ou menos, as objeções feitas pelos sábios àqueles que julgam Moisés autor do Pentateuco. Mas responde-se-lhes que os caminhos de Deus não são os dos homens; quer Deus experimentou, conduziu e abandonou o seu povo por uma sabedoria que nos é desconhecida; que os próprios judeus durante dois mil anos julgaram haver sido Moisés o autor desses livros; que a igreja, que sucedeu à sinagoga e que é infalível como ela, decidiu esse ponto de controvérsia, e que os sábios devem calar-se quando a igreja fala.

PÁTRIA

Pátria é um conjunto de várias famílias; e, como se sustenta comumente a própria família por amor próprio, quando não se tem um interesse contrário pelo mesmo amor próprio se sustenta sua cidade ou sua aldeia que se chama sua pátria.

Quanto mais essa pátria se torna grande menos é amada, porque o amor repartido se debilita e é impossível amar enternecidamente uma família muito numerosa, que apenas se conhece. Aquele que se queima na ambição de ser edil, tribuno, pretor, cônsul, ditador, grita que ama a sua pátria, e não ama senão a si próprio. Cada qual deseja estar seguro de poder deitar-se, de ter sua cama própria, sem que outro homem se arrogue o poder de o mandar deitar-se alhures; cada um deseja estar seguro de sua fortuna e de sua vida. Todos formam assim os mesmos desejos, e então o interesse particular se transforma em interesse geral: não se vota senão por si próprio quando se vota pela república.

É impossível existir sobre a terra um estado que não seja governado a princípio como república: é a marcha natural da natureza humana. Algumas famílias se reúnem, de início, contra os ursos e contra os lobos; a que tem sementes de trigo fornece-as, em troca, àquela que apenas tem lenha.

Quando descobrimos a América encontramos todas as tribos divididas em repúblicas; apenas existiam dois remos em toda essa parte do mundo. De milhares de nações somente duas encontramos subjugadas.

Foi assim, também, no Velho Mundo; tudo era república na Europa antes dos régulos de Etrúria e Roma. Encontramos ainda hoje repúblicas na África, – Trípoli, Tunis, Argélia, na nossa parte setentrional, são repúblicas de bandidos. Os hotentotes do meio dia vivem ainda como se diz que viveram nos primeiros anos do mundo, livres, iguais entre eles, sem senhores, sem submissões, sem dinheiro e quase sem necessidades.

A carne de seus carneiros nutre-os, sua pele os veste, choças de madeira e de pedra são seus refúgios; são os mais grosseiros de todos os homens, mas não o sentem, vivem e morrem mais docemente do que nós.

Restam na nossa Europa oito repúblicas sem monarcas: Veneza, Holanda, Suíça, Genebra, Lucas, Ragusa, Gênova e São Marinho(57). Pode-se considerar a Polônia, a Suécia, a Inglaterra como repúblicas sob um rei; mas a Polônia é a única que usa o seu nome.

Pois bem, o que será melhor – que vossa pátria seja um estado monárquico ou um estado republicano? Há quatro mil anos se discute essa questão. Perguntai a solução aos ricos, eles preferem a aristocracia; interrogai o povo, ele quer a democracia: apenas os reis preferem a realeza. Como, portanto, é possível que quase toda a terra seja governada por monarcas? Perguntai-o aos ratos que propuseram pendurar uma campainha no pescoço do gato (58). Mas, na verdade, a verdadeira razão é, como se disse, que os homens são mui raramente dignos de se governar por si próprios.

É deplorável que quase sempre para ser bom patriota deva-se ser inimigo do resto dos homens. O velho Catão, esse ótimo cidadão, dizia sempre no senado: “Tal é minha opinião, e que se arruine Cartago”. Ser bom patriota é desejar que sua cidade se enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas armas. É claro que um país não pode ganhar sem que outro perca e que não pode vencer sem fazer desgraçados.

Tal é, pois, a condição humana, que desejar a grandeza do seu país é desejar mal aos seus vizinhos. Aquele que pretendesse que a sua pátria não fosse jamais nem menor nem maior, nem mais rica nem mais pobre, seria o cidadão do universo.

PEDRO

Em italiano Piero ou Pietro; em espanhol Pedro; em latim Petrus; em grego Petros; em hebraico Cepha. Por que os sucessores de Pedro tiveram tantos poderes no Ocidente e nenhum no Oriente? É o mesmo que perguntar por que os bispos de Wurtzburg e de Salzburg se atribuíram direitos regalianos nos tempos da anarquia, de passo que os bispos gregos sempre foram súditos. O tempo, a ocasião, a ambição de uns e a fraqueza de outros tudo fizeram e farão neste mundo.

A essa anarquia ajuntou-se a opinião e a opinião é a rainha dos homens. Não que na realidade tenham uma opinião bem determinada, mas palavras fazem-lhe as vezes.

Conta-se no Evangelho que Jesus disse a Pedro: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus.” Os partidários do bispo de Roma sustentaram, pelo século XI, que quem dá o mais dá o menos; que os céus rodeiam a terra e que Pedro, tendo as chaves do continente, tinha também as chaves do conteúdo. Se se entender por céus todas as estrelas e todos os planetas, é evidente que, segundo Tomásio, as chaves dadas a Simão Barjone, cognominado Pedro, eram um passaporte. Se se entender por céus as nuvens, a atmosfera, o éter, o espaço em que rolam os planetas, não existem serralheiros, segundo Meúrsio, capazes de fazer uma chave para essas portas.

As chaves na Palestina eram uma cavilha de madeira que se ligava a uma correia. Jesus disse a Barjone: – “O que ligares na terra será ligado nos céus” – Os teólogos do papa concluíram que os papas tinham recebido o direito de ligar e desligar os povos do juramento de fidelidade feito aos seus reis e de dispor ao seu bel prazer de todos os reinos. É concluir magnificamente. As comunas, nos estados gerais da França, em 1302 dizem em seu requerimento ao rei que “Bonifácio VIII era um b... que pensava que Deus prendia e ligava ao céu o que Bonifácio ligava na terra”. Um famoso luterano da Alemanha (segundo penso, Melanchton) custava um pouco a digerir que Jesus houvesse dito a Simão Barjone, Cefa ou Cefas: “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei o meu templo, minha igreja”. Não podia conceber que Deus tivesse empregado semelhante jogo de palavras, uma agudeza tão extraordinária, e que a potência do papa fosse baseada num trocadilho.

Pedro passou por ter sido bispo de Roma; sabe-se porém que nesse tempo e muito depois não houve bispo algum particular. A sociedade cristã só tomou forma em fins do segundo século.

Pode ser que Pedro tenha feito a viagem a Roma; pode ser, também, que tenha sido posto na cruz, com a cabeça para baixo, não obstante não ser esse o costume; não há, porém, prova alguma de tudo isso. Temos uma carta firmada por ele, na qual diz estar em Babilônia: alguns canonistas judiciosos pretenderam que por Babilônia se deveria entender Roma. Assim, supondo-se que ele a tenha datado de Roma, poder-se-ia concluir que a carta foi escrita em Babilônia. Durante muito tempo tiraram-se conclusões iguais e é assim que o mundo foi governado.

Em Roma pagou-se regiamente a um santo homem por uma simônia; perguntaram-lhe se acreditava em que Simão Pedro estivera no país; respondeu: “Não vejo que Pedro aí tenha estado, mas Simão, tenho a certeza” (59).

Quanto à pessoa de Pedro, é preciso levar em consideração que Paulo não é o único que se escandalizou pela sua conduta; foi contestado face a face, ele e seus sucessores. Esse Paulo reprovava-lhe acremente o comer carnes. proibidas, isto é, porco, presunto, lebre, enguia, ixião e Pedro defendeu-se dizendo que vira o céu abrir-se na sexta hora proximamente, e uma grande toalha que descia dos quatro cantos do céu, a qual estava repleta de enguias, de quadrúpedes e pássaros, e que a voz de um anjo gritara: “Matai e comei”. É, segundo as aparências, essa mesma voz que gritou a tantos pontífices: “Matai tudo e comei a substância do povo”, diz Wollaston.

Casaubon não podia aprovar a maneira por que Pedro tratou o bom Ananias e Safira, sua mulher. Com que direito, diz Casaubon, um judeu escravo dos romanos pende ordenar ou admitir que todos os que acreditassem em Jesus deveriam vender suas herdades e trazer o resultado de sua venda a seus pés? Se algum anabatista, em Londres ordenasse a mesma coisa a seus irmãos, não seria preso como sedutor sedicioso, como ladrão que não se deixaria de enviar a Tyburn? Não é horrível fazer Ananias morrer porque, tendo vendido seus fundos e dado o dinheiro a Pedro, reteve para si e sua mulher alguns escudos a fim de não morrer de fome? Apenas Ananias foi morto, sua mulher chegou. Pedro, em vez de adverti-la caridosamente de que acabava de matar seu marido de apoplexia por haver guardado alguns óbulos e de lha recomendar que tomasse cuidado consigo própria,. deixa-a cair numa armadilha. Pergunta-lhe se seu marido deu todo seu dinheiro aos santos. A boa mulher responde que sim e recebe morte instantânea. Isso é duro.

Conríngio pergunta por que Pedro, que matou assim esses que lhe deram todos os seus bens, não mandou antes matar todos os doutores que fizeram Jesus Cristo morrer e que o fustigaram a ele próprio mais de uma vez? Ó Pedro! fazeis morrer dois cristãos que vos deram sua esmola e deixais viver aqueles que crucificaram vosso Deus!

Por muito que pareça que Conríngio não estava em país de inquisição ao fazer esses quesitos ousados, Erasmo, a propósito de Pedro, acentuou uma coisa bem singular: que o chefe da religião cristã começou seu apostolado por renegar Jesus Cristo, e que o primeiro pontífice dos judeus começara seu ministério por construir um bezerro de ouro e adorá-lo.

Seja como for, Pedro nos é descrito como um pobre que catequizava pobres. Ele se parece com esses fundadores de ordens que viviam na indigência e cujos sucessores se tornaram grandes senhores.

O papa, sucessor de Pedro, ora ganhou, ora perdeu; mas ainda lhe restam cinqüenta milhões de homens mais ou menos sobre a terra, submissos em muitos pontos às suas leis, além de seus súdito imediatos.

Ter um senhor a trezentas ou quatrocentas léguas da própria casa; esperar para pensar que esse homem tenha parecido pensar; não ousar julgar em último recurso um processo entre alguns de seus concidadãos atendendo às comissários nomeados por esse estrangeiro; não ousar tomar posse dos campos e das vinhas que se obtiveram do próprio rei sem pagar uma soma considerável a esse senhor estrangeiro; violar as leis de seu país que proíbem desposar uma sobrinha, e casar com ela legitimamente pagando a esse senhor estrangeiro uma soma ainda mais considerável; não ousar cultivar seu campo no dia em que esse estrangeiro quer que se celebre a memória de um desconhecido que ele instalou no céu por sua própria conta; é isso mais ou menos o que significa admitir um papa; são essas as liberdades da igreja galicana.

Há alguns outros povos que levam ainda mais longe sua submissão. Vimos em nossos dias um soberano (60) solicitar ao papa a permissão de fazer julgar pelo seu real tribunal alguns monges acusados de parricídio, não obter tal permissão e não ousar cumprir o julgamento. Sabe-se perfeitamente que outrora os direitos dos papas iam mais longe; estavam colocados muito acima dos deuses da antigüidade; pois esses deuses passavam por dispor dos impérios, e os papas dispunham deles de fato.

Disse Esturbino que se pode perdoar àqueles que duvidam da divindade e da infalibilidade do papa quando se reflete:

Que quarenta cismas profanaram o púlpito de S. Pedro e vinte e sete o ensangüentaram;

Que Estevão VII, filho de um padre, desenterrou o corpo de Formoso, seu predecessor, e fez cortar a cabeça do cadáver;

Que Sérgio III, réu convicto de assassinato, teve um filho de Marózia, o qual herdou do papado;

Que João X, amante de Teodora, foi estrangulado em seu leito;

Que João XI, filho de Sérgio III, foi célebre pela sua devassidão;

Que João XII foi assassinado em casa da amante;

Que Benedito IX, comprou e revendeu o pontificado;

 

Que Gregório VII foi o autor de quinhentos anos de guerras civis sustentadas por seus sucessores;

Que enfim, entre tantos papas ambiciosos, sanguinários e devassos, houve um, Alexandre VI, cujo nome é pronunciado com o mesmo horror que os de Nero e Calígula.

É uma prova, diz-se, da divindade de seus caracteres, o terem subsistido a tantos crimes; mas se os califas tivessem tido uma conduta ainda mais afrontosa, teriam então sido ainda mais divinos. É assim que arrazoa Dérmio; porém os jesuítas lhe responderam.

PRECONCEITOS

O preconceito é uma opinião sem julgamento. Assim em toda a terra inspiram-se às crianças todas as opiniões que se desejam antes que elas as possam julgar.

Existem preconceitos universais, necessários, e que representam a própria virtude. Por toda parte ensina-se às crianças reconhecer um Deus remunerador e vingador; a respeitar, a amar seu pai e sua mãe; a considerar o roubo como um crime, a mentira interessada como um vício, antes que elas possam adivinhar o que vem a ser um vício e uma virtude.

Há pois ótimos preconceitos: são os que o julgamento ratifica quando se raciocina.

Sentimento não é mero preconceito, é alguma coisa muito mais forte. Uma mãe não ama a seu filho porque se lhe disse que o deve amar; ela o quer extremosamente mesmo contra sua vontade. Não é absolutamente por preconceito que correis em socorro de uma criança desconhecida prestes a cair num precipício ou a ser devorada por uma fera.

É porém por preconceito que respeitareis um homem revestido de certos hábitos, andando gravemente, falando da mesma forma. Vossos pais vos disseram que devíeis inclinar-vos diante desse homem: vós o respeitais antes de saber se merece vossos respeitos; cresceis em idade e conhecimentos – percebeis que esse homem é um charlatão empedernido de orgulho, de interesse e artifício; desprezais o que reverenciáveis, e o preconceito cede lugar ao julgamento. Acreditastes por preconceito nas fábulas com que embalaram vossa infância; disseram-vos que os titãs moveram guerra aos deuses e que Vênus foi amante de Adónis; aos doze anos tomastes tais fábulas por verdades, agora, aos vinte anos, como alegorias engenhosas.

Examinemos em poucas palavras as diferentes espécies de preconceitos, a fim de pôr nossos negócios em ordem. Seremos, talvez, como aqueles que, no tempo do sistema de Law, perceberam que tinham calculado riquezas imaginárias.

Preconceitos dos sentidos

Não é curioso que nossos olhos nos enganem sempre, mesmo quando temos a melhor vista do mundo, e que ao contrário nossos ouvidos não nos enganem nunca? Se vosso ouvido bem conformado ouvir: – “Sois bela, eu vos amo,” estais bem certa de que não vos disseram – “Odeio-vos, sois feia”. Mas vedes um espelho liso: está demonstrado que vos enganais, é uma superfície muito desigual. Vedes o Sol com mais ou menos dois pés de diâmetro: está demonstrado que ele é um milhão de vezes maior do que a Terra.

Parece que Deus tenha posto a verdade em vossos ouvidos e o erro em vossos olhos; estudai porém a ótica, vereis que Deus não vos enganou de forma alguma, e que é impossível que os objetos vos pareçam diferentes do que os podeis ver no estado presente das coisas.

Preconceitos físicos

O Sol se ergue, a Lua também, a Terra está imóvel: – eis aí preconceitos físicos naturais. Mas que as lagostas sejam boas para o sangue, pois estando cozidas são vermelhas como ele; que as enguias curem a paralisia, pois se agitam; que a Lua influa nas nossas doenças, pois um dia observou-se que um doente teve um aumento de febre durante o curso da Lua: essas idéias, e milhares de outras, são erros de velhos charlatães, que julgaram sem raciocinar e que, enganando-se, enganaram os outros.

Preconceitos históricos

A maioria das histórias foram cridas sem exame, e essa crença é um preconceito. Fábio Pictor relata que, muitos séculos antes dele, uma vestal da cidade de Alba, indo buscar água com o seu cântaro, foi violada e deu à luz a Rômulo e Remo, que eles foram nutridos por uma loba, etc. O povo romano acreditou nessa fábula; não perdeu tempo em examinar se naqueles tempos existiam vestais no Lácio, se era possível que a filha de um rei saísse de seu convento com seu cântaro, se era provável que uma loba amamentasse dois meninos em vez de os comer como fazem todos os lobos. Estabelece-se então o preconceito.

Um monge escreveu que Clovis, estando num grande perigo na batalha de Tolbiac, fez voto de se tornar cristão se conseguisse escapar; é porém natural que uma pessoa se dirija a um deus estrangeiro em tal ocasião? Não é precisamente num momento desses que a religião na qual se nasceu age mais fortemente? Qual é o cristão que, numa batalha contra os turcos, não se dirigirá antes à Santa Virgem que a Mafoma? Acrescenta-se que um pássaro levou a santa ampola em seu bico a fim de ungir Clovis e que um anjo trouxe a auriflâmula para o conduzir. O preconceito crê em todas as historietas desse gênero. Os que conhecem a natureza humana sabem que o usurpador Clovis e o usurpador Rolão ou Rol se tornaram cristãos para governar mais seguramente a cristãos, como os usurpadores turcos se tornaram muçulmanos para governar mais seguramente os muçulmanos.

Preconceitos religiosos

Se vossa sina vos contou que Ceres preside ao trigo ou que Vichnú e Xaca se transformaram em homens várias vezes, ou que Samonocodom veio destruir uma floresta, ou que Odin vos espera em sua sala lá na Jutlândia, ou que Mafoma ou outro qualquer fez uma viagem ao céu; enfim se vosso preceptor vem em seguida refundar em vosso cérebro o que vossa ama aí gravou, tendes com que vos divertir para o resto da vida. Vosso julgamento quer elevar-se contra tais preconceitos; vossos vizinhos, e sobretudo vossas vizinhas, berram contra a impiedade, e vos assustam; vosso dervís, temendo ver diminuídas as suas rendas, denuncia-vos ao cadi, e esse cadi vos manda empalar se o puder, porquanto o seu desejo é mandar sobre idiotas, e crê que os idiotas obedecem melhor do que os outros. E esse estado de coisas durará até que vossos vizinhos e o dervís e o cadi comecem a compreender que a cretinice não serve para coisa alguma e que a perseguição é abominável.

RELIGIÃO 

Primeira questão

O bispo de Glocester, Warburton, autor de uma das mais sábias obras que já se escreveram, assim se exprime, página 8, tomo 1o.:

“Uma religião, uma sociedade que não está fundada sobre a crença numa outra vida deve ser sustida por uma providência extraordinária. O judaísmo não está fundado sobre a crença numa outra vida; portanto o judaísmo foi sustido por uma providência extraordinária”.

Vários teólogos se ergueram contra ele; e como se retorquem todos os argumentos, retorquiram o seu; disseram-lhe:

“Toda religião que não estiver baseada sobre o dogma da imortalidade da alma e sobre as penas e recompensas eternas é necessariamente falsa; ora, o judaísmo não conheceu esses dogmas; portanto o judaísmo, longe de ser sustido pela Providência, era, segundo vossos princípios, uma religião falsa e bárbara que atacava a Providência”.

Esse bispo teve alguns adversários que lhe afirmaram que a imortalidade da alma era conhecida entre os judeus, nos próprios tempos de Moisés; ele lhes provou porém mui evidentemente que nem o Decálogo, nem o Levítico, nem o Deuteronômio tinham uma única palavra a respeito dessa crença, e que é ridículo pretender turvar e corromper algumas passagens dos outros livros para concluir daí uma verdade que não está absolutamente anunciada no livro da lei.

O senhor bispo, tendo escrito quatro volumes para demonstrar que a lei judaica não propunha nem penas nem recompensas depois da morte, jamais pôde responder a seus adversários de maneira satisfatória. Estes lhe diziam: “Ou Moisés conhecia esse dogma e então enganou os judeus não o manifestando; ou ignorava-o, e nesse caso não tinha conhecimentos suficientes para formar uma boa religião. Com efeito, se a religião fosse boa, por que teria sido abolida? Uma religião verdadeira deve ser para todos os tempos e todos os lugares; ela deverá ser como a luz do Sol que ilumina todos os povos e todas as gerações”.

Esse prelado, por esclarecido que fosse, teve muito trabalho em se livrar de todas essas difíceis proposições; porém qual o sistema isento de dificuldades!

Segunda questão

Outro sábio muito mais filosófico, que é um dos mais profundos de nossos dias, apresenta fortes razões para provar que o politeísmo foi a primeira religião dos homens, e que se começou por crer em vários deuses antes que a razão fosse suficientemente esclarecida para não reconhecer senão um Ente Supremo.

Ouso crer, ao contrário, que se principiou por reconhecer um único Deus, e que em seguida a fraqueza humana adotou vários deles; e eis como concebo a coisa:

É indubitável haverem existido burgos antes que se construíssem grandes cidades, e que todos os homens foram divididos em repúblicas antes de ser reunidos em grandes impérios.

É bem natural que um burgo atemorizado pelo trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo burgo vizinho, sentindo todos os dias a própria fraqueza, pressentindo por toda parte um poder invisível, tenha terminado por dizer: “Existe algum ser acima de nós que nos causa bens e males”.

Parece-me impossível que tenha dito: “Há dois poderes”. Por que vários? Principia-se sempre pelo simples, em seguida vem o composto e amiúde, enfim, volta-se ao simples mercê de luzes superiores. Tal é a marcha do espírito humano.

Qual é esse ente que se teria invocado a princípio? Seria o Sol? Seria a Lua? Não creio. Examinemos o que se passa entre as crianças; representam mais ou menos o que são os homens ignorantes. Não percebem a beleza nem a utilidade do astro que anima a natureza, nem os socorros que a Lua nos presta, nem as variações regulares do seu curso; não o pensam, estão muito acostumadas a todas essas coisas. Não se adora, não se crê senão aquilo que se teme; todas as crianças olham para o céu com indiferença; mas estruja o trovão e elas tremerão, irão se esconder.

Sem dúvida, os primeiros homens agiram de forma idêntica. Apenas umas espécies de filósofos que assinalaram o curso dos astros ensinaram também a admiração e adoração; os cultivadores simples e sem luz alguma não conheciam o bastante para perfilhar tão nobre erro.

Portanto, uma aldeia ter-se-á limitado a dizer: “Há uma potência que troveja, que atira neve sobre nós, que faz morrer nossos filhos: acalmemo-la; mas como? Vemos que acalmamos com pequenos presentes a cólera das pessoas irritadas: façamos pois pequenos presentes a essa potência. É também preciso dar-lhe um nome. O primeiro que se oferece é o de Chefe, Dono, Senhor; essa potência é pois chamada Senhor. É provavelmente a razão pela qual os primeiros egípcios chamaram ao seu deus Knef; os sírios, Adonai; os povos vizinhos, Baal ou Bel, ou Melch, ou Moloch; os citas, Papeu: palavras que significam Senhor, Mestre.

Foi assim que se encontrou quase toda a América dividida numa multidão de pequenas populações, tendo todas seu deus protetor. Os próprios mexicanos, os peruvianos, que eram grandes nações, tinham apenas um deus: uns adoravam Manco Capaque, outros o deus da guerra. Os mexicanos davam ao seu deus guerreiro o nome de Vitzlipufzli, assim como os hebreus haviam cognominado o seu senhor de Sabaoth.

Não é por uma razão superior e cultivada que todos os povos começaram a reconhecer uma única divindade. Se tivessem sido filósofos, teriam adorado o deus de toda a natureza, e não o deus de uma aldeia; teriam examinado essas relações infinitas de todos os seres, que provam um ente criador e conservador; porém eles não examinaram nada, eles sentiram. Aí está o progresso de nosso frágil entendimento; cada burgo sentiu sua fraqueza e a necessidade de um forte protetor. Imaginou esse ser tutelar e terrível residindo na floresta vizinha, ou na montanha, ou numa nuvem. Apenas imaginou um só deus, pois o burgo não tinha senão um chefe na guerra. Imaginou-o corporal, porque era impossível figurá-lo de outra forma. Não podia crer que o burgo vizinho não tivesse também o seu deus. Eis por que Jefté disse aos habitantes de Moabe: “Possuís legitimamente o que vosso deus Camos vos fez conquistar; deveis deixar-nos gozar dos bens que nosso deus nos concedeu por suas vitórias” (61).

Tais palavras ditas por um estrangeiro a outros estrangeiros são notáveis. Os judeus e os moabitas tinham desapossado os naturais do país; uns e outros apenas tinham o direito da força, e uns disseram aos outros: – “Vosso Deus vos protegeu em vossa usurpação, tolerai agora que nosso Deus nos proteja na nossa”.

Jeremias e Amos perguntaram um ao outro “que razão teve o deus Melcom para se apoderar do país de Gade”. Parece evidente, por essas passagens, que a antiguidade atribuía a cada país um Deus protetor. Encontram-se ainda hoje vestígios dessa teologia em Homero.

É bem natural que havendo-se aquecido a imaginação dos homens e tendo seu espírito adquirido conhecimentos confusos, tenham eles multiplicado seus deuses, e estipulado protetores para os elementos, mares, florestas, fontes, campos. Quanto mais examinaram os astros, mais foram feridos pela admiração. Poder-se-á não adorar o Sol, quando se adora a divindade de um ribeiro? Desde que o primeiro passo foi dado, a terra em breve foi coberta de deuses; e enfim desce-se dos astros aos gatos e às cebolas.

Entretanto é preciso que a razão se aperfeiçoe; o tempo forma, enfim, os filósofos que percebem que nem as cebolas, nem os gatos, nem mesmo os astros concertaram a ordem da natureza. Todos esses filósofos babilônicos, persas, egípcios, citas, gregos e romanos admitem um Deus supremo remunerador e vingador.

Eles não o dizem a princípio ao povo: pois quem falasse mal das cebolas e dos gatos diante das velhas e dos padres teria sido lapidado; quem quer que reprochasse aos egípcios o fato de comerem os seus deuses, acabaria sendo ele próprio devorado, como, de feito, Juvenal nos relata que um egípcio foi morto e comido completamente cru numa disputa de controvérsia (62).

Mas que se fez? Orfeu e outros estabeleceram mistérios, que os iniciados prometeram mediante juramentos execráveis nunca revelar, e o principal desses mistérios é a adoração de um único Deus. Essa grande verdade penetra metade da terra; o número dos iniciados torna-se imenso. É verdade que a antiga religião sempre subsistiu; mas, como não é contrária ao dogma da unidade de Deus, deixa-se que subsista. E por que aboli-la? Os romanos reconhecem o Deus optimus maximus; os gregos têm o seu Zeus, seu Deus supremo. Todas as outras divindades são apenas intermediárias: imperadores e reis são instalados no posto de deuses, isto é, de bem-aventurados; é porém certo que Cláudio, Otávio, Tibério e Calígula não são considerados como criadores do céu e da terra.

Numa palavra, parece provado que, no tempo de Augusto, todos os que tivessem uma religião reconheciam um Deus superior, eterno, e várias ordens de deuses secundários, cujo culto foi chamado mais tarde idolatria.

Os judeus jamais foram idólatras: porque, não obstante terem admitido alguns malakhim, anjos, seres celestes de uma categoria inferior, sua lei não ordenava de forma alguma que tais divindades secundárias tivessem culto entre eles. Adoravam os anjos, é verdade, isto é, prostravam-se diante deles quando bem entendiam; mas, como isto não sucedia com freqüência, não havia cerimonial nem culto estabelecido para eles. Os querubins da arca não recebiam homenagem alguma. Era costume adorarem os judeus abertamente um único Deus, assim como a multidão inumerável dos iniciados o adoravam secretamente em seus mistérios.

Terceira questão

Foi ao tempo em que o culto de um Deus supremo estava universalmente estabelecido na opinião de todos os sábios, na Ásia, na Europa e na África, que a religião cristã nasceu e se desenvolveu.

O platonismo auxiliou bastante a compreensão de tais dogmas. O Logos, que para Platão significava a sapiência, a razão do Ser Supremo, tornou-se em nossos tempos o Verbo e uma segunda pessoa de Deus. Uma metafísica profunda e acima da inteligência humana foi um santuário inacessível no qual se desenvolveu a religião.

Não procuremos repetir aqui como Maria foi declarada mãe de Deus, como se estabeleceu a consubstancialidade do Pai e do Verbo e a processão do Pneuma, órgão divino do divino Logos, duas naturezas e duas vontades resultantes da hipóstase, e enfim a manducação superior, a alma nutrida tal como o corpo dos membros e do sangue do Homem-Deus adorado e comido sob a forma do pão, presente aos olhos, sensível ao paladar, e contudo anulado. Todos os mistérios foram sublimes.

Começou-se, desde o segundo século, por esconjurar os demônios em nome de Jesus; depois se expulsavam em nome de Jeová ou Ihaho: pois conta S. Mateus que tendo os inimigos de Jesus dito que ele esconjurava os demônios em nome do príncipe dos demônios, ele lhes respondeu: “Se é por Belzebú que eu esconjuro os demônios, em nome de quem o fazem vossos filhos?”

Não se sabe em que tempo os judeus reconheceram por príncipe dos demônios a Belzebú, que era um Deus estrangeiro; sabe-se porém (e é José quem no-lo diz) que havia em Jerusalém exorcistas especiais para esconjurar os demônios dos corpos dos possessos, isto é, dos homens atacados de doenças singulares, as quais se atribuíam então em grande parte da terra a gênios malfeitores.

Exconjuravam-se pois os demônios com a verdadeira pronunciação de Jeová hoje perdida, e com outras cerimônias esquecidas hoje em dia.

Esse exorcismo por Jeová ou outros nomes de Deus estava ainda em uso nos primeiros séculos da igreja. Orígenes, disputando contra Celso, diz-lhe, no. 262: “Se, invocando Deus ou jurando em seu nome, chamam-no o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, alguma coisa há de haver nesses nomes, cuja natureza e força são tais que os demônios se submetem a quem os pronuncia; mas se o chamamos com outro qualquer nome, como Deus do mar ardente, suplantador, esses nomes não terão virtude. O nome de Israel traduzido em grego nada operará; pronunciai-o porém em hebreu, com os outros termos necessários, e imediatamente operareis a conjuração”.

O próprio Orígenes, no número 19, diz estas palavras notáveis: “Há nomes que têm uma virtude natural, como os que empregam os sábios entre os egípcios, os magos da Pérsia, os brâmanes da Índia. O que chamamos magia não é uma arte vã e quimérica, tal como o pretendem os estóicos e os epicuristas: nem o nome de Sabaote nem o de Adonai foram feitos para seres criados; mas pertencem a uma teologia misteriosa que se liga ao Criador; de lá vem a virtude desses nomes quando coordenados e pronunciados segundo as regras, etc.”.

Assim falando Orígenes não apresenta seu sentimento particular: exprime a opinião universal. Todas as religiões então conhecidas admitiam uma espécie de magia; distinguia-se a magia celeste e a magia infernal, a necromancia e a teurgia: tudo aí era prodígio, adivinhação, oráculo. Os persas não negavam os milagres dos egípcios, nem os egípcios os dos persas; Deus permitiu que os primeiros cristãos fossem persuadidos dos oráculos atribuídos às sibilas, e lhes deixou ainda alguns erros pouco importantes, que não corrompiam o fundamento da religião.

Coisa grandemente notável é que os cristãos dos dois primeiros séculos votavam o maior horror aos templos, aos altares e às imagens. É o que diz Orígenes, no. 374. Tudo mudou depois com a disciplina, quando a igreja recebeu uma forma constante.

Quarta questão

Desde que uma religião é legalmente estabelecida num estado, todos os tribunais se ocupam imediatamente de impedir que se modifiquem a maioria dos atos praticados nessa religião antes de ter sido publicamente acatada. Os fundadores reuniam-se secretamente apesar dos magistrados; hoje não se permitem as assembléias públicas senão sob os olhos da lei, e todas as associações que se afastarem dela são proibidas. A antiga máxima era que é melhor obedecer a Deus do que seguir as leis do estado. Apenas se ouvia falar em obsessões e possessões, o diabo andava à solta na terra: já hoje o diabo não sai de sua morada. Os prodígios, as profecias, eram necessárias então: já não se admitem. Um homem que profetizasse calamidades nas praças públicas seria metido num manicômio. Os fundadores recebiam secretamente dinheiro dos fiéis; um homem que recolhesse hoje dinheiro para dele dispor sem ser autorizado pela lei teria que responder perante a justiça. Assim, estão completamente fora de uso todos os caibros que serviram para construir o edifício.

Quinta questão

Depois da nossa santa religião, que sem dúvida alguma é a única boa, qual será a menos má?

Não seria a mais simples? Não seria aquela que ensinasse muita moral e pouquíssimos dogmas? a que tendesse a tornar os homens justos sem os tornar absurdos? a que não ordenasse absolutamente crer em coisas impossíveis, contraditórias, injuriosas à Deidade e perniciosas ao gênero humano, e que não ousasse ameaçar com as penas eternas os que tivessem o senso comum? Não seria aquela que não sustentasse sua crença por intermédio de tribunais nem inundasse a terra de sangue por causa de sofismas ininteligíveis? aquela que de um equívoco, um jogo de palavras e duas ou três cartas sobrepostas não fizesse um soberano, e um Deus de um padre freqüentemente incestuoso, homicida e envenenador? a que não submetesse os reis a esse padre? a que não ensinasse senão a adoração de um Deus, a justiça, a tolerância e a humanidade?

Sexta questão

Diz-se que a religião dos gentios era absurda em muitos pontos, contraditória, perniciosa; mas não se lhe teriam imputado maiores males do que na realidade praticou, e mais tolices do que pregou?

“Pois em ver Júpiter mudado em touro, – serpente, mono ou outra coisa qualquer, – nada de belo encontro – nem me admirará se suceder”. (Prólogo de Anfítrion).

Sem dúvida isto é muito impertinente; mostrem-me, porém, em toda a antigüidade um templo dedicado a Leda deitando com um mono ou com um touro. Houve em Atenas ou Roma algum sermão para encorajar as moças a fazer crianças com os macacos do seu pátio? As fábulas recolhidas e ornadas por Ovídio constituem a religião? Não se parecem elas à nossa Lenda Dourada, à nossa Flor dos Santos? Se algum brâmane ou dervis nos viesse objetar a história de Santa Maria egipciana, a qual, não tendo com que pagar aos marinheiros que a conduziram ao Egito, deu a cada um deles o que chamamos favores, à guisa de dinheiro, diríamos ao brâmane: “Meu reverendo padre, estais enganado, nossa religião não é a Lenda Dourada”.

Reprovamos aos antigos seus oráculos, seus prodígios: se eles voltassem ao mundo e pudéssemos contar os milagres de Nossa Senhora de Loreto e os de Nossa Senhora de Éfeso, para que lado penderia a balança?

Os sacrifícios humanos foram estabelecidos em quase todos os povos, mas muito raramente postos em uso. Apenas temos a filha de Jefté e o rei Agague imolados entre os judeus, porque Isaque e Jônatas jamais o foram. A história de Ifigênia não é muito acreditada entre os gregos; os sacrifícios humanos são muito raros entre os antigos romanos. Numa palavra, a religião pagã fez derramar pouquíssimo sangue, enquanto a nossa alagou a terra. A nossa é sem dúvida a única boa, a única verdadeira; mas fizemos tanto mal por seu intermédio que quando falamos das outras devemos ser modestos.

Sétima questão

Se um homem quiser persuadir de sua religião a estrangeiros ou compatriotas não deverá empregar a doçura mais insinuante e a mais acareante moderação? Se começar por dizer que o que ele anuncia está demonstrado, encontrará uma multidão de incrédulos; se ousar dizer-lhes que eles não rejeitam a sua doutrina senão porque ela condena as suas paixões, que o seu coração corrompeu o seu espírito, que eles apenas têm uma razão falsa e orgulhosa, ele os revolta, anima-os contra si, arruina ele próprio o que quer edificar.

Se a religião que anuncia é verdadeira, torná-la-ão a insolência e o arrebatamento mais verdadeira? Ficais encolerizados quando dizeis que é preciso ser dócil, paciente, benfeitor, justo, preencher todos os deveres da sociedade? Não, porque todo mundo é do vosso parecer. Por que, pois, dizeis injúrias ao vosso irmão quando lhe pregais uma metafísica misteriosa? É que o seu bom senso irrita o vosso amor próprio. Tendes o orgulho de exigir que vosso irmão submeta a sua inteligência à vossa; o orgulho humilhado conduz à cólera, nem é outra a sua origem. O homem ferido por vinte balas numa batalha não fica encolerizado; mas um doutor ferido pela recusa de um sufrágio torna-se furioso e implacável.

RESSURREIÇÃO

Conta-se que os egípcios não construíram as suas pirâmides senão para fazer túmulos e que os seus corpos embalsamados por dentro e por fora esperavam que suas almas viessem reanimá-los ao fim de mil anos. Mas se os seus corpos deviam ressuscitar, por que a primeira operação dos perfumistas era perfurar-lhes o crânio e tirar-lhes o cérebro? A idéia de ressuscitar sem cérebro faz supor (se se permitir a expressão) que os egípcios não o tinham muito vivo; é preciso, porém, considerar que a maioria dos antigos julgava que a alma estivesse no peito. E por que deveria estar no peito mais do que em qualquer outra parte? É que, com efeito, em todos os nossos sentimentos um pouco violentos experimentamos perto do coração um confrangimento ou uma dilatação, que fez pensar ser ali o alojamento da alma. Essa alma era qualquer coisa de abstrato, de aéreo; era uma figura leve que vagava pelo espaço até encontrar de novo seu corpo. A crença da ressurreição é muito mais antiga do que os tempos históricos. Atálida, filha de Mercúrio, podia morrer e ressuscitar ao seu bel prazer: Esculápio restituiu a vida a Hipólito; Hércules a Alceste; Pélopes, tendo sido cortado em pedaços pelo pai, foi ressuscitado pelos deuses. Conta Platão que Eros ressuscitou por quinze dias somente. Os fariseus, entre os judeus, só adotaram o dogma da ressurreição muito tempo depois de Platão. Há nos Atos dos Apóstolos um fato bem singular e digno de atenção Jacó e vários dos seus companheiros aconselharam S. Paulo a ir ao templo de Jerusalém observar todas as cerimônias da antiga lei, por cristão que ele fosse, “a fim de que todos saibam”, dizem-lhe, “que tudo o que se diz de vós é falso e que continuais a guardar a lei de Moisés”. Então S. Paulo foi durante sete dias ao Templo, mas no sétimo foi reconhecido. Acusaram-no de lá ter ido com estrangeiros e de o ter profanado. Eis como ele se livrou da entaladura: “Ora, sabendo Paulo que uma parte dos que lá estavam eram saduceus e outra fariseus, gritou na assembléia: “Meus irmãos, eu sou fariseu e filho de fariseu; é por causa da esperança duma outra vida e da ressurreição dos mortos que me querem condenar” (63). Não houvera nenhuma questão da ressurreição dos mortos em todo esse negócio; Paulo dizia-o apenas para atirar os fariseus e saduceus uns contra os outros. V. 7. “Paulo, tendo assim falado, motivou uma dissensão entre os fariseus e saduceus, e a assembléia foi dividida. V. 8. “Porque os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito, enquanto os fariseus reconhecem um e outro, etc.”. Pretendeu-se que Jó, que é muito antigo, conhecesse o dogma da ressurreição. Citam-se as suas palavras: “Sei que o meu redentor está vivo e que um dia a sua redenção se erguerá sobre mim, ou que eu me erguerei do pé, que minha pele voltará e que ainda verei Deus em minha carne”.(64) Mas vários comentadores entendem por essas palavras que Jó espera que há de melhorar em breve de sua doença, e que não permanecerá sempre deitado na terra como estava. Há provas de que essa explicação seja verdadeira, porque ele gritou aos seus falsos e empedernidos amigos: “Por que então dizeis: persigamo-lo?” ou então: “Porque direis: porque nós o perseguimos”. Isso evidentemente não quer dizer: “Arrepender-vos-eis de me haver ofendido quando me virdes no meu primeiro estado de saúde e opulência?” Um doente que diz: “Eu me levantarei”, não diz: “Eu ressuscitarei”. Dar sentidos forçados a passagens claras é o meio seguro de jamais se entender. S. Jerônimo coloca o nascimento da seita dos fariseus muito pouco tempo antes de Jesus Cristo. O rabino Hilel passa por ser o fundador da seita farisaica, e esse Hilel foi contemporâneo de Gamaliel, o mestre de São Paulo. Vários desses fariseus acreditavam que somente os judeus ressuscitariam e que o resto dos homens não valiam a pena. Outros sustiveram que não se ressuscitaria senão na Palestina, e que os corpos daqueles que forem enterrados alhures serão secretamente transportados para Jerusalém, a fim de se juntarem à sua alma. Mas São Paulo, escrevendo aos habitantes de Tessalônica, diz-lhes que “O segundo advento de Jesus Cristo é para eles e para ele, que eles serão testemunhas”. V. 16. “Porque logo que o sinal for dado pelo arcanjo e pelo som da trombeta de Deus o próprio Senhor descerá do céu, e os que estiverem mortos em Jesus Cristo ressuscitarão por primeiros”. V. 17. “Depois nós que somos vivos e que tenhamos sobrevivido até então seremos elevados com eles às nuvens para irmos perante o Senhor, no meio do ar, e assim viveremos para sempre com o Senhor” (65). Essa importante passagem não prova evidentemente que os primeiros cristãos esperavam ver o fim do mundo, como de feito se prediz em S. Lucas, no tempo mesmo em que viveu S. Lucas? Acreditava Sto. Agostinho que as crianças, e mesmo as crianças natimortas, ressuscitariam na idade madura. Os Orígenes, os Jerônimos, os Atanásios, os Basílios não creram que as mulheres pudessem ressuscitar com o seu sexo. Enfim, sempre disputamos sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que seremos.

SALOMÃO

Teria sido Salomão rico como se disse? Afiançam os Paralipômenos que o “melk” Davi, seu pai, deixou-lhe cerca de vinte milhões de nossa moeda corrente, segundo o cálculo mais modesto. Não há tal soma de dinheiro corrente em toda a terra e é muito difícil que Daví tivesse podido amealhar tamanho tesouro no pequeno país da Palestina. Salomão, segundo o terceiro livro dos Reis, tinha quarenta mil coudelarias para os cavalos de suas carruagens. Quando mesmo cada coudelaria não contivesse mais que dez cavalos, isso somaria apenas o número de quatrocentos mil que, juntos a seus doze mil cavalos de sela, teria feito quatrocentos e doze mil cavalos de batalha. É muito para um “melk” judeu que jamais praticou a guerra. Essa magnificência não tem exemplo num país que apenas produzia asnos e onde hoje não existe outra montaria. Mas parece que os tempos mudaram. É verdade que um príncipe tão sábio, que tinha mil mulheres, podia ter também quatrocentos e doze mil cavalos, quando mais não fosse para levá-las a passeio ou ao longo do lago de Genezaré ou de Sodoma, ou à torrente de Cedrão, que é um dos sítios mais deliciosos da terra, embora, na verdade, essa torrente esteja seca durante nove meses do ano e o terreno seja um tanto rochoso. Mas teria esse sábio Salomão realmente escrito as obras que lhe atribuem? É verossímil, por exemplo, que seja o autor da égloga intitulada Cântico dos Cânticos? Pode ser que um monarca que possuía mil mulheres dissesse a uma delas: “Que ela me beije com um beijo de sua boca, pois seus seios são melhores do que o vinho”. Um rei e um pastor, quando se trata de beijar na boca, podem se exprimir da mesma maneira. É verdade que é muito estranho haver-se pretendido que foi a moça quem assim falou elogiando os seios do amante. Não negarei que um rei galante tenha podido fazer que sua amante dissesse: – “Meu bem amado é como um ramilhete de mirra, ele morará em meus seios”. Não entendo muito bem o que significa esse ramilhete de mirra; mas enfim, quando a bem amada diz ao bem amado que lhe passe a mão direita sobre o pescoço e a abrace com a direita, entendo muito bem. Poder-se-ia pedir algumas informações ao autor do Cântico quando diz: “Vosso umbigo é como uma taça na qual há sempre algo que beber; vosso ventre é como um alqueire de trigo; vossos seios são como duas crias de cervo e vosso nariz é como a torre do monte Líbano”. Confesso que as églogas de Virgílio são de outro estilo; mas cada um tem o seu, e um judeu não é obrigado a escrever como Virgílio. É aparentemente um belo efeito de eloquência oriental dizer: “Nossa irmã é ainda pequena, ela não tem seios. Que faremos de nossa irmã? Se é um muro, construamos sobre ele; se é uma porta, fechemo-la”. Belas coisas, belas anedotas para Salomão, o mais sábio dos homens... Era, dizem, seu epitálamo para o seu casamento com a filha do faraó; é porém natural que o genro do faraó deixe sua bem amada durante a noite para ir passear em seu jardim das nogueiras, que a rainha corra sozinha, descalça, atrás dele, que seja espancada pelos guardas da cidade e que estes lhe tirem a roupa? Poderia a filha de um rei ter dito: “Eu sou morena, mas sou bela como as peliças de Salomão”? Tais expressões poder-se-iam atribuir a um pastor, porquanto ao cabo de contas não há grande relação entre peliças e a beleza de uma moça. Mas, enfim, as peliças de Salomão poderiam ter sido admiradas em seu tempo, e um judeu do povo, que fazia versos à amante, poderia ter dito, em seu linguajar judeu, que jamais rei algum tivera roupas de pele tão bonitas como as dela; quanto ao rei Salomão, deveria estar muito entusiasmado com suas peliças para compará-las à amante: se um rei de nossos dias compusesse um tal epitálamo para o seu casamento com a filha de um rei vizinho não passaria, com toda certeza, pelo melhor poeta de seu reino. Vários rabinos sustiveram que não só essa pequena égloga voluptuosa não era do Salomão, mas que também não era autêntica. Teodoro de Mopsueste tinha idêntica opinião, e o célebre Grótio chama ao Cântico dos Cânticos obra libertina, flagitiosus; contudo ela está consagrada, e é considerada como uma perpétua alegoria dos esponsais de Jesus Cristo com sua igreja. É preciso não esquecer que a alegoria é um pouco forte, nem se sabe que poderia a igreja deduzir do ponto em que o autor diz que sua irmã não tem seios, e que, se é um muro, é preciso construir sobre ela. O livro da Sabedoria tem um tom mais sério; porém não pertence mais a Salomão do que o Cântico dos Cânticos. Atribui-se comumente a Jesus, filho de Siraque, outros a Fílon de Biblos; mas, seja quem for o autor, parece que no seu tempo ainda não existia o Pentateuco, porque ele diz no capítulo 10 que Abraão quis imolar Isaque no tempo do dilúvio, e, por outro lado, fala do patriarca José como de um rei do Egito. Os Provérbios foram atribuídos a Isaías, a Elzias, a Sobna, a Eliacin, a Joaquê e a vários outros. Mas, quem quer que seja que compilou essa coletânea, de sentenças orientais, não há o menor viso de verdade em que tenha sido um rei quem se deu a tal trabalho. Teria ele dito que “O terror do rei é como o rugido de um Leão?” É assim que fala um súdito ou um escravo, que a cólera do seu senhor faz tremer. Teria Salomão falado tanto da mulher impudica? Teria dito: “Não olheis o vinho quando se afigura claro e sua cor brilha através do copo”? Ponho francamente em dúvida a existência de copos no tempo de Salomão: é uma invenção muito recente; toda a antigüidade bebia em taças de madeira ou de metal; e essa única passagem indica que essa obra foi elaborada por um judeu de Alexandria muito tempo depois de Alexandre. Resta o Eclesiastes, que Grótio pretende ter sido escrito sob o reinado de Zorobabel. Sabe-se perfeitamente com que liberdade o autor do Eclesiastes se exprime; sabe-se que ele disse que: “Os homens nada têm mais do que as bestas; que mais vale nunca ter nascido, do que existir; que não existe nenhuma outra vida; que a única coisa boa em tudo isso é podermos diverti-nos com aquela a quem amamos”. Pode ser que Salomão tenha feito tais discursos a algumas de suas mulheres; pretende-se tratar-se de objeções; porém essas máximas, de ar um tanto libertino, nem de leve se parecem a objeções, e entender num autor o contrário do que ele diz é zombar da humanidade. Aliás, vários padres pretenderam que Salomão tenha feito penitência; assim, pode-se perdoá-lo. Porém, que esses livros tenham ou não sido escritos por um judeu, que nos importa? Nossa religião cristã alicerceia-se sobre a judaica, mas não sobre todos os livros que os judeus escreveram. Por que será o Cântico dos Cânticos mais sagrado para nós do que as fábulas do Talmude? Porque, diz-se, nós o incluímos no cânon dos hebreus. E que é esse cânon? Uma coletânea de obras autênticas. Essa é boa! Uma obra, por ser autêntica, é divina? Uma história dos reis de Judá e de Siquêm, por exemplo, será algo mais que uma história? Eis um estranho preconceito. Nós abominamos os judeus, e queremos que tudo o que por eles foi escrito e por nós recolhido traga o sinete da Divindade. Jamais se viu contradição tão palpável.

SENSAÇÃO

As ostras têm, diz-se, dois sentidos; as toupeiras, quatro; os outros animais, como os homens, cinco. Algumas pessoas admitem um sexto, mas é evidente que a sensação voluptuosa de que pretendem falar reduz-se ao sentimento do tato e que cinco sentidos constituem o nosso quinhão. É nos impossível imaginar ou desejar mais que isso. Pode ser que em outros planetas existam sentidos de que não fazemos a mínima idéia; pode ser que o número de sentidos aumente de planeta em planeta e que o ser que tem sentidos inúmeros e perfeitos seja o termo de todos os seres. Mas, nós outros com os nossos cinco órgãos, qual é o nosso poder? Sentimos sempre contra nossa vontade, e jamais por que o desejemos; é-nos impossível deixar de ter a sensação que a nossa natureza nos destina quando o objeto nos fere. O sentimento está em nós mas não depende de nós. Nós o recebemos; e como o recebemos? Sabe-se perfeitamente que não há nenhuma relação entre o ar agitado e as palavras que me cantam e a impressão que essas palavras gravam no meu cérebro. Admiramo-nos do pensamento; mas o sentimento é igualmente maravilhoso. Um poder divino lampeja na sensação do último dos insetos como no cérebro de Newton. Contudo, que milhares de animais morram à vossa vista, não vos inquietareis pelo que possa vir a ser a sua faculdade de sentir, embora tal faculdade seja obra do Ser dos seres; vós os olhais como máquinas da natureza, nascidas para morrer e dar lugar a outras. Como e por que a sua sensação deveria subsistir quando eles já não existem? Que necessidade teria o autor de tudo o que existe de conservar as propriedades cujo sujeito está destruído? Equivaleria a dizer que o poder da planta chamada sensitiva de retrair suas folhas subsiste mesmo quando a planta deixa de existir. Perguntareis sem dúvida como, se a sensação dos animais morre com eles, o pensamento do homem jamais perecerá. Não posso responder a essa questão, não sei o bastante para resolvê-la. Só o autor eterno da sensação e do pensamento sabe como a concede e como a conserva. Toda a antigüidade afirmou que nada existe em nosso entendimento que não tenha passado por nossos sentidos. Descartes, nos seus romances, pretendia que tivéssemos idéias metafísicas antes de conhecer os seios de nossa ama; uma faculdade de teologia proscreveu esse dogma, não porque fosse um erro, mas porque era uma novidade; em seguida adotou esse erro, porque fora destruído por Locke, filósofo inglês, e era necessário que o inglês errasse. Enfim, depois de haver mudado tantas vezes de princípios, ela tornou a proscrever essa antiga verdade, que os sentidos são as portas do entendimento. Fez como esses governos sobrecarregados de dívidas que ora dão livre curso a certas cédulas e ora as interdizem; mas desde muito tempo que ninguém quer saber das cédulas dessa faculdade. Todas as faculdades do mundo jamais impedirão os filósofos de ver que nós começamos por sentir e que nossa memória não é senão uma sensação contínua. Um homem que nascesse privado dos seus cinco sentidos seria privado de toda idéia, se pudesse viver. As noções metafísicas não nos chegam senão pelos sentidos: pois como medir um círculo ou um triângulo se não se viu ou tocou um círculo e um triângulo? Como conceber uma idéia mesmo imperfeita do infinito sem estabelecer limites? E como estabelecer limites sem os ter visto ou sentido? A sensação envolve todas as nossas faculdades, disse um grande filósofo (66). Que concluir de tudo isso? Vós que ledes, que pensais, concluí.

SONHOS

 Somnia, quae mentes ludunt volitantibus umbris, non delubra deum nec ab oethere nurnina mittunt, sed sibi quisque facit (67).

Mas como, estando todos os sentidos mortos no sono, existe um sentido que vive? Como, nossos olhos não vendo mais, vossos ouvidos nada entendendo, vedes, contudo, e ouvis em vossos sonhos? O cão está na caça, em sonho; late, segue a presa. O poeta faz versos dormindo; o matemático vê figuras; o metafísico raciocina bem ou mal: temos exemplos contundentes. Serão esses os únicos órgãos da máquina que funcionam? É a alma pura que, subtraída ao império dos sentidos, usufrui dos seus direitos em liberdade? Se os órgãos, por si sós, produzem os sonhos à noite, por que não produzirão também, sós, as idéias de dia? Se a alma pura, tranqüila, no repouso dos sentidos, agindo por si própria é a causa única, o sujeito único de todas as idéias que tendes dormindo, por que serão essas idéias quase sempre irregulares, desarrazoadas, incoerentes? Como! É no momento em que essa alma está menos turbada que ela tem mais perturbações em todas as suas imaginações! Ela está livre e é louca! Se houvesse nascido com idéias metafísicas como o dizem tantos escritores que sonham de olhos abertos, suas idéias puras e luminosas do Ser, do infinito, de todos os primeiros princípios deveriam despertar em si com a maior energia quando o corpo está adormecido: nunca se seria bom filósofo senão em sonho. Seja qual for o sistema que abraceis, sejam quais forem os esforços vãos que façais para provar a vós mesmos que a memória agita o vosso cérebro, que vosso cérebro agita vossa alma, é mister convirdes em que todas as vossas idéias vos acodem durante o sono, sem vós e apesar de vós: vossa vontade não intervêm aí. É portanto certo que podeis pensar sete ou oito horas seguidas sem ter a mínima vontade de pensar, sem mesmo estar seguro de que pensais. Ponderai isto tudo: procurai adivinhar o que vem a ser o complexo do animal. Os sonhos foram sempre um grande objeto de superstição; nada mais natural. Um homem vivamente comovido pela doença de sua amante sonha que a vê morrer; ela morre no. dia seguinte: portanto, os deuses predisseram-lhe a sua morte. Um general do exército sonha que vence uma batalha; ganha-a, com efeito: os deuses o advertiram de que seria vencedor. Não se levam em consideração senão os sonhos que foram confirmados; esquecem-se os outros. Os sonhos participam grandemente da história antiga, tal como os oráculos. Assim traduz a Vulgata o fim do versículo 26 do cap. 19 do Levítico: “Não observareis os sonhos”. Mas o termo sonho não existe no hebraico e seria muito estranho que se reprovasse a observação dos sonhos no próprio livro em que se diz que José se tornou o benfeitor do Egito e de sua família mediante a explicação de três sonhos. A explicação dos sonhos era uma coisa tão comum que a gente não se limitava a essa prática: era preciso ainda adivinhar algumas vezes o que outro homem sonhara. Nabucodonosor, tendo olvidado um sonho que tivera, ordenou aos seus magos a sua adivinhação, e os ameaçou de morte caso não chegassem a bom fim; mas o judeu Daniel, que era da escola dos magos, salvou-lhes a vida adivinhando o sonho do rei, com a respectiva interpretação. Essa história e muitas outras poderiam servir para provar que a lei dos judeus não proibia a oneiromancia, isto é, a ciência dos sonhos.

SUPERSTIÇÃO

(Capítulo extraído de Cícero, Sêneca e Plutarco)

Quase tudo o que vai além da adoração de um Ser Supremo e da submissão do coração às suas ordens eternas é superstição. O perdão aos crimes acompanhado de certas cerimônias é uma das mais perigosas.

Et nigras mactant pecudes, et manibu divis inferias mittunt (68). Ah! nimium faciles qui tristia crimina coedis fluminea tolli posse putatis aqua! (69).

Pensais que Deus olvidará vosso homicídio se vos banhardes num rio, se imolardes um cordeiro preto e se se pronunciarem sobre vós algumas palavras. Um segundo homicídio vos será pois perdoado ao mesmo preço, e assim um terceiro, e cem mortes não vos custarão mais do que cem cordeiros negros e cem abluções! Fazei melhor, miseráveis humanos: nada de mortes e nada de cordeiros negros. Que infame idéia imaginar que um sacerdote de Isis e de Cíbele, tocando címbalos e castanholas, vos reconciliará com a Divindade! E quem é pois esse sacerdote de Cibele, esse eunuco errante que vive de vossas fraquezas, para se arvorar intermediário entre o Céu e vós outros? Que espécie de patentes recebeu ele de Deus? Recebe de vós algum dinheiro para balbuciar algumas palavras, e credes que o Ser dos seres ratificará as palavras desse charlatão? Há superstições inocentes: dançais nos dias de festa em honra de Diana ou de Pomona, ou de qualquer desses deuses secundários de que está repleto o vosso calendário: pois podeis continuar. A dança é muito agradável, é útil ao corpo, alegra a alma, não faz mal a ninguém; não acrediteis porém que Pomona e Virtuna se comovam por haverdes saltado em sua honra e que vos puniriam se o não houvésseis feito. Não existem outra Pomona nem outra Virtuna que a enxada e a pá do jardineiro. Não sejais tão imbecil a ponto de acreditar que vosso jardim se queimará por haverdes deixado de dançar a pírrica ou a cordácia. Existe provavelmente uma superstição perdoável e mesmo reconfortante para a virtude: é a de colocar entre os deuses os grandes homens que foram benfeitores do gênero humano. Melhor sem dúvida seria olhá-los simplesmente como homens veneráveis e sobretudo procurar imitá-los. Venerai sem culto um Sólon, um Tales, um Pitágoras; não adoreis porém um Hércules por ter limpado as estrebarias de Augias e por ter-se deitado com cinqüenta mulheres numa noite. Guardai-vos de instituir um culto para certos patifes que não têm outro mérito que a ignorância, a vivacidade e a sordidez; que fizeram um dever e uma gloria do ócio e da glotonaria: esses que quando muito foram completamente inúteis durante sua vida, merecerão por acaso a apoteose depois da morte? Lembrai-vos de que os tempos mais supersticiosos foram sempre os dos crimes mais horríveis.

TIRANIA

Chamamos tirano ao soberano que não conhece por leis senão o próprio capricho, que se apodera dos bens de seus súditos e que em seguida os arrola para ir tomar os dos vizinhos. Não existe tal espécie de tiranos na Europa. Distingue-se a tirania de um só e a de vários. Essa tirania de vários seria a de um corpo que invadisse os direitos dos outros corpos e exercesse o despotismo a favor das leis por ele corrompidas. Tão pouco existe essa espécie de tiranos na Europa. Sob qual tirania gostaríeis de viver? Sob nenhuma; mas se fosse preciso escolher, eu detestaria menos a tirania de um só do que a de vários. Um déspota tem sempre alguns bons momentos; uma assembléia de déspotas jamais. Se um tirano me faz uma injustiça, poderei desarmá-lo por intermédio de sua amante, por seu confessor ou por seu pagem; mas uma companhia de graves tiranos é inacessível a todas as seduções. Quando não é injusta é no mínimo impiedosa, e jamais concede favores. Se tenho apenas um déspota, salvo-me com o simples colar-me a um muro à sua passagem; ou por me prosternar, ou por bater a fronte no solo, segundo o costume do país; mas se houver uma companhia de cem déspotas, estarei exposto a repetir essa cerimônia cem vezes por dia, o que é exaustivo, quando não se tem os fundilhos reforçados. Se eu tiver uma pequena herdade nas vizinhanças de um de nossos senhores, serei esmagado; se reclamar contra um parente dos parentes de nossos senhores, estarei arruinado. Que fazer? Temo que neste mundo estejamos reduzidos a um triste dilema: ser bigorna ou martelo. Feliz de quem escapar a essa alternativa!

 TOLERÂNCIA 

Que é a tolerância?

É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza. Que na bolsa de Amsterdã, de Londres, de Surata ou de Bassorá, os guebros, os banianos, os judeus, os mafomistas, os deícolas chins, os brâmanes, os cristãos gregos, os cristãos romanos, os cristãos protestantes, os cristãos quakers façam suas traficâncias juntos: eles não brigarão de punhal. Por que motivo, pois, nos esganamos quase sem interrupção desde o primeiro concílio de Nicéia? Constantino começou por baixar um édito que permitia todas as religiões; terminou por perseguir. Antes dele os cristãos apenas eram perseguidos quando começavam a ter alguma força dentro do estado. Os romanos permitiam todos os cultos, até o dos judeus, até o dos egípcios, pelos quais tinham tanto desprezo. Por que tolerava Roma esses cultos? É que nem os egípcios nem mesmo os judeus procuravam exterminar a antiga religião do império, não perdendo tempo em revolver terras e mares para angariar prosélitos: o que queriam era ganhar dinheiro; é porém incontestável que os cristãos desejavam que sua religião fosse a dominante. Os judeus não queriam que a estátua de Júpiter estivesse em Jerusalém; mas os cristãos não admitiam que estivesse no Capitólio. Sto. Tomás tem a boa fé de convir em que, se os cristãos não destronavam os imperadores, é que o não podiam fazer. Sua opinião era que toda a terra devia ser cristã. Eram portanto inimigos de toda a terra, até que esta se convertesse. Havia entre eles inimigos uns dos outros em todos os pontos de sua controvérsia. Antes de mais nada é preciso considerar Jesus Cristo como Deus, os que o negam são anatematizados sob o nome de ebionitas, que anatematizam os adoradores de Jesus. Alguns deles desejam que todos os bens sejam comuns, como pretendem que o tenham sido no tempo dos apóstolos: seus adversários os chamam nicolaitas, acusando-os dos crimes mais infames. Outros, tendentes a uma devoção mística, são chamados gnósticos e perseguidos com furor. Marcião é tratado de idólatra por disputar sobre a Trindade. Tertuliano, Praxedes, Orígenes, Novato, Novaciano, Sabélio, Donato, são todos perseguidos por seus irmãos antes de Constantino; e apenas Constantino fez reinar a religião cristã; os atanasianos e eusebianos se separaram; e desde então a igreja cristã foi inundada de sangue até hoje. O povo judeu era, reconheço, um povo bastante bárbaro. Degolavam sem piedade todos os habitantes de um desgraçado e pequeno país sobre o qual não tinham mais direito do que sobre Paris e Londres. Entretanto, quando Naamã é curado de sua lepra por se haver banhado sete vezes no Jordão; quando, para testemunhar sua gratidão a Eliseu, que lhe ensinou esse segredo, conta-lhe que adorava o Deus dos judeus por reconhecimento, reserva-se a liberdade de adorar também o Deus de seu rei; pede licença a Eliseu, e o profeta não hesita em conceder-lha. Os judeus adoravam o seu Deus; mas nunca se admiraram de que cada povo tivesse o seu. Achavam muito natural que Camoes concedesse um certo distrito aos moabitas, contanto que o seu Deus também lhes desse um. Jacó não hesitou em desposar as filhas de um idólatra. Labão tinha seu Deus assim como Jacó tinha o seu. Eis belos exemplos de tolerância entre o povo mais intolerante e cruel de toda a antigüidade: nós o imitamos em seus furores absurdos, e não em sua indulgência. É claro que todo indivíduo que persegue um homem, seu irmão, porque não é da sua mesma opinião, é um monstro. Isto está fora de dúvidas. Mas o governo, mas os magistrados, mas os príncipes, como deverão proceder para com indivíduos que têm um culto diferente do seu? Se forem estrangeiros poderosos, é claro que um príncipe fará aliança com eles. Francisco I., muito cristão, unir-se-á aos muçulmanos contra Carlos V, muito cristão. Francisco I dará dinheiro aos luteranos da Alemanha para sustentá-los em sua revolta contra o imperador; mas principiará, segundo o costume, por fazer queimar alguns luteranos em sua própria casa. Paga-os em Saxe por política; por política queima-os em Paris. Mas que acontecerá? As perseguições criam prosélitos; em breve a França estará repleta de novos protestantes. A princípio deixar-se-ão enforcar, em seguida começarão também a enforcar. Haverá guerras civis, em seguida o S. Bartolomeu e esse recanto do mundo será pior que tudo o que antigos e modernos já disseram do inferno. Insensatos, que jamais soubestes render um culto puro ao Deus que vos criou! Desgraçados, que o exemplo dos noaquidas, dos letrados chineses, dos parsis e de todos os sábios jamais pode edificar! Monstros, que necessitais de superstições corno o urubu de carniça! Já se vos disse, e não temos outra coisa que dizer-vos: se tiverdes duas religiões, elas se trucidarão; se tiverdes trinta, viverão em paz. Vede ó grão-turco: governa guebros, banianos, cristãos gregos, nestorianos, romanos. O primeiro que experimentar provocar um tumulto é empalado, e todos permanecem em santíssima paz.

VIRTUDE

Que é virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei chamar virtude a outra coisa senão ao bem que me fazem? Eu sou indigente, tu és liberal; eu estou em perigo, tu vens em meu socorro; enganam-me, tu me dizes a verdade; esquecem-me, tu me consolas; eu sou ignorante, tu me instruis: chamar-te-ei sem dificuldade virtuoso. Mas que acontecerá com as virtudes cardinais e teologais? Algumas delas ficarão nas escolas. Que me importa que sejas temperante? É um preceito de saúde que observas; beneficiar-te-ás com isso e eu te felicito. Tens fé e esperança, redobro-te minhas felicitações: elas te concederão a vida eterna. Tuas virtudes teologais são dons celestes: tuas virtudes cardinais são excelentes qualidades que servem para te conduzir ao bom caminho; mas não são virtudes que se relacionem com o teu próximo. O prudente faz o bem a si, o virtuoso fá-lo aos homens. S. Paulo teve razão ao dizer que a caridade implica a fé e a esperança. Mas como! admitiremos apenas as virtudes que são úteis ao próximo? Então! como poderei admitir outras? Vivemos em sociedade; nada existe de verdadeiramente bom para nós senão o que beneficia a sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso; revestir-se-á de um cilício: pois bem, será santo; porém não o chamarei virtuoso senão quando praticar algum ato de virtude em proveito dos homens. Enquanto for só, não será nem malfeitor nem benfeitor; nada é para nós. Se S. Bruno pacificou as famílias, se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou, rezou na solidão, foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios; o que não participa desse comércio não deve ser considerado. Se esse santo estivesse no mundo, sem dúvida praticaria o bem; mas enquanto não o estiver o mundo terá razão em não lhe conceder o nome de virtuoso: será bom para consigo próprio, e não para nós. Mas, dizeis-me, um solitário glutão, bêbedo, entregue à devassidão secreta consigo mesmo, é um vicioso: será portanto virtuoso se tiver qualidades contrárias É no que não posso convir: será um homem muito vil se tiver de fato os defeitos que dizeis; mas não pode ser um vicioso, mau, susceptível de punição, no que diz respeito à sua relação com a sociedade, a quem suas infâmias não fazem mal algum. É de presumir que se entrar na sociedade praticará o mal, será um grande criminoso; é até muito mais provável que venha a ser um homem mau do que incerto é que outro solitário, casto, temperante, venha a ser um homem de bem: pois na sociedade os defeitos aumentam e as boas qualidades diminuem. Faz-se uma objeção mais forte; Nero, o papa Alexandre VI. e outros monstros dessa espécie fizeram benefícios; ouso responder que foram virtuosos nesse dia. Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico tençoeiro que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverterem a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade, e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso exclamarei: “Meu Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!”

 

NOTAS

 

(1) – Esta inscrição acha-se gravada na fachada do templo de Delfos.

 (2) – Virgílio, Geórgicas, III, 244.

 (3) – Ovídio, Metáforas, X, 84-5.

 (4) – Isaías, XIV, 8 e 12.

 (5) – Justino o Mártir, nascido por volta do ano 114, foi condenado à morte por Rústico, prefeito de Roma, em 168.

 (6) – Livro V, capítulo XXXIII.

 (7) – História da Igreja, livro VII, capítulo XXV.

 (8) – Comparação entre Aristófanes e Menandro.

 (9) – J. Fr. Arpe, autor da Apologia pro Julio Caesare Vanino.

 (10) – Horácio, Epigr., II, ii, Sat., II, i.

 (11) – Em seus Ensaios de Teodicéia sobre a Bondade de Deus, etc., Amsterdã, 1710, in-8.

 (12) – Li – medida itinerária chinesa equivalente a. 576 metros.

 (13) – Sinus denominação dada pelos chineses aos judeus das dez tribos que, em sua dispersão, penetraram até a China.

 (14) – Os cinco livros sagrados chineses, que contêm a doutrina de Confúcio.

 (15) – Salmos, LXVII, 16-17.

 (16) – Anagrama do abade Castel do Saint-Pierre

 (17) – Anagrama de Lelièvre.

 (18) – Anagrama de Arnoult.

 (19) – Anagramas do príncipe de Condé e do duque de Brunswick.

 (20) – Neste diálogo o japonês figura um inglês; os cozinheiros designam os padres; o grande lama, o paga; o imperador mencionado, o rei Henrique VIII; paiscopie, anagrama de episcopais, são os bispos; breuseh, hebreus; pispatas, papistas; Teluro, Lutero; Vicalno, Calvino; quekars, batistanaos, diestas, etc., respectivamente, quakers, anabatistas, deistas, etc. (Nota de Avenel).

 (21) – Canusi – antigos sacerdotes japoneses.

 (22) – Anagrama de Horácio Flaco.

 (23) – Anagrama de Racine. Trata-se de Louis Racine, filho do grande Racine.

 (24) – Trata-se de Abraham Chaumeix, crucificado a 2 de março de 1749, na rua Saint-Denis. Foi quem denunciou a Encyclopédie ao parlamento.

 (25) – Jerusalém Libertada, canto IV, 3.

 (26) – Ilíada, livro XXII.

 (27) – O Testament Politique de Charles V, due de Lorraine et de Bar, en faveur du roi de Hongrie, Leipzig, Weitman (Paris), 1696, in-12, foi editado pelo abade de Chevremont; tem por autor Henri de Straatman, membro do conse1ho áulico do imperador.

 (28) – Testament Politique de M. de Vauban, etc., dans lequel ce seigneur donne les moyens d’augmenter considérablement les revenus de la Couronne par l’établissement d’une dime royale, etc., 1707 ou 1708, 2 vol. in-i12. A obra aparecera em 1695 sob o título Le Détail de la France sons le règne de Louis XIV.

 (29) – Sát., I, ii, 127.

 (30) – Les Femmes Savantes, III, ii.

 (31) – Foi em virtude deste passo que Larcher chamou Voltaire “besta fera de que se tem tudo a temer”.

 (32) – Veja-se, nos Romans, Le Monde comme il va.

 (33) – Gavacho em espanhol quer dizer canalha.

 (34) – Denominação dada pelos espanhóis aos árabes e que, segundo Littré, se tornou uma injúria significando traidor, pérfido, tratante. Do espanhol marrano – porco e também maldito.

 (35) – Satyricon, capítulo XLIV.

 (36) – Sat., I, VIII.

 (37) – Livro VIII, epigr., XXIV.

 (38) – De Ponto, II, VIII.

 (39) – Teb., XII.

 (40) – Livro IX, 578.

 (41) – Ovídio, Fastos, IV.

 (42) – 617-618.

 (43) – Sua obra intitula-se Apologie de M. Petit-Pierre sur son Système de non Éternité des Peines à Venir, 1761, in-12.

 (44) – Jean Le Pelletier é autor de uma Dissertation sur l’Arche de Noé, Ruão, 1704, in-12.

(45) – Opinião de Descartes professada nas escolas ao tempo de Voltaire.

(46) – Veja-se capítulo XI dos Juizes.

(47) – Levítico, capítulo XXVII, 29.

(48) – Codorlaomor – rei dos elamitas contemporâneos. de Abraão. Mentzel – chefe da ala austríaca na guerra de 1741. Tomou Munich a 15 de feverero de 1742.

(49) – Na Défense du Mondain, do próprio Voltaire.

(50) – Ovídio, Met., I, 32.

(51) – III dos Reis, capítulo XIX, 15 e 16.

(52) – Atos dos Apóstolos, capítulo V, 34, 35 e 36.

(53) – Atos dos Apóstolos, capítulo VIII, 9.

(54) – Sócrates, História Eclesiástica, livro II, capítulo XXXVIII.

(55) – Cf. Ensaio sobre os costumes, capitulo CXCI.

(56) – Ospiniam, p. 230.

(57) – Isto foi escrito em 1764.

(58) – La Fontaine, livro II, fábula II.

(59) – Cf. Owen, livro V, epigr. VIII.

(60) – O rei de Portugal José II.

(61) – Juizes, XI, 81-83.

(62) – Sátira XV, 81-83.

(63) – Atos dos Apóstolos, capítulo XXIII, 6.

(64) – Jó, XIV, 26.

(65) – Epístola aos Tessálios, cap. IV.

(66) – Condillac, Traité des Sensations, t. II, p. 128.

(67) – Petrônio, CIV 1-3.

(68) – Lucrécio, III, 52-3.

(69) – Ovidio, Fastos, II, 45-6.

 

                                                                                            Voltaire

 

Parte 1 ABRAÃO  -  ALMA - AMIZADE - AMOR - AMOR PRÓPRIO -  AMOR SOCRÁTICO  - ANJO - ANTROPÓFAGOS - APIS - APOCALIPSE - ATEU, ATEÍSMO - BATISMO - BELO, BELEZA - BEM (SUPREMO) - BEM (TUDO ESTÁ)

Parte 2 CADEIA DOS ACONTECIMENTOS - CARÁTER - CATECISMO CHINÊS - CATECISMO DO JAPONÊS (20) - CATECISMO DO PÁROCO - CERTO, CERTEZA - CÉU DOS ANTIGOS (O) - CHINA (DA) - CIRCUNCISÃO - CONVULSÕES - CORPO – CRISTIANISMO - CRÍTICA 

Parte 3 DESTINO - DEUS - ESCALA DOS SERES - ESTADOS, GOVERNOS - EZEQUIEL (DE) - FÁBULAS - FALSIDADE DAS VIRTUDES HUMANAS - FANATISMO - FIM, CAUSAS FINAIS - FRAUDE - FRONTEIRAS DO ESPÍRITO HUMANO - GLÓRIA - GRAÇA - GUERRA - HISTÓRIA DOS REIS JUDEUS E PARALIPÔMENOS

Parte 4  ÍDOLO, IDÓLATRA, IDOLATRIA - IGUALDADE - INFERNO - INUNDAÇÃO - IRRACIONAIS - JEFTÉ - JOSÉ - LEIS (DAS) - LEIS CIVIS E ECLESIÁSTICAS - LIBERDADE (DA) - LOUCURA - LUXO

Parte 5 MATÉRIA - MAU - MESSIAS - METAMORFOSE, METEMPSICOSE - MILAGRES - MOISÉS - PÁTRIA - PEDRO - PRECONCEITOS - RELIGIÃO - RESSURREIÇÃO - SALOMÃO - SENSAÇÃO - SONHOS - SUPERSTIÇÃO - TIRANIA - TOLERÂNCIA - VIRTUDE

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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