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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÁSCARA DE RAPOSA - P.2 / Juliet Marillier
MÁSCARA DE RAPOSA - P.2 / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MÁSCARA DE RAPOSA

Segunda Parte

 

             Reconhecimento.

             Expiação.

                     NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

— Não te afastes de mim — avisou-a Guardião enquanto desciam a íngreme encosta na direção da enseada. — Não deves vir aqui sozinha, pelo menos até ao fim da caçada. Não é seguro.

— Mas tu disseste — começou Creidhe, utilizando mãos e pés para poder acompanhar o passo longo dele.

— Não é por causa deles. Eu protejo-te. É por causa das armadilhas que foram colocadas aqui para o inimigo. Não tens tempo para saber onde estão todas. Depois da caçada, são desmanteladas; na próxima estação, armadilhas novas, para que o inimigo não se possa lembrar. Eu mostro-te.

E mostrou, enquanto Pequenino, aparentemente consciente dos súbitos perigos e sabendo como se manter afastado, vagueava na sua forma de cão, farejando os arbustos e as pedras, correndo atrás das aves e comportando-se exatamente como um pequeno cão tirando partido de uma saída num dia de Verão. Creidhe ainda não tivera oportunidade de ver a transformação; a jovem supunha que, eventualmente, se habituaria àquela mudança de uma forma para outra. Havia ali um prodígio que ela nunca tinha experimentado e desejou que a sua irmã Eanna o pudesse ver. Eanna, sendo sacerdotisa, talvez soubesse a resposta.

O tempo estava pouco quente; o vento de oeste chicoteava o mar e fazia flutuar os longos cabelos de Creidhe. Apesar de tudo, o Sol mostrou-se, erguendo-se bem alto para lhes recordar que estavam próximos do solstício do Verão e da caçada.

Armadilhas. Tantas armadilhas, engenhosas, inteligentes, cruéis; a jovem não imaginava que aquela paisagem despida pudesse esconder tantas ciladas para os incautos. Creidhe abençoou os antepassados por a terem depositado ali inconsciente, de modo a não ter tentado atravessar a praia e subido o monte em busca de um abrigo, de uma gruta, de um buraco qualquer. Porque a verdade era que não havia segurança em lado nenhum, salvo nos lugares exatos por onde Guardião a conduzia. Havia buracos semeados com ossos afiados; súbitas saliências que pareciam seguras, mas que eram mantidas escorregadias com uma camada de uma substância que cheirava a peixe; cordas suspensas de longas cordas, que um passo incauto num determinado ponto libertavam e que atingiam a vítima indefesa, esmagando-lhe o crânio. Não tinha a certeza de como aquilo funcionava e nem perguntou. Guardião levou-a até um local onde nidificavam os papagaios-do-mar, para lhe mostrar a vista da grande ilhota, a oeste. As vagas, ali, batiam com força: para lá do ilhéu só a visão da margem mais longínqua do mundo. Desceram na direção da encosta rochosa perto da baía estreita. Alguns túneis perfuravam o terreno que pisavam, uma rede de passagens sombrias, algumas naturais, outras transformadas pelo trabalho do homem. Não viram sinais da outra tribo nem das suas vagabundagens.

— Há muitas passagens subterrâneas — disse-lhe Guardião muito sério — algumas seguras, outras perigosas. Esta, onde estamos agora — disse ele, apontando para uma abertura entre as rochas, suficientemente grande para admitir um homem — vai dar a uma gruta onde se podem esconder três guerreiros. Na maré baixa pode-se sair pelo outro lado, permitindo a retirada e o reagrupamento. No ano passado, eles souberam disso e fizeram uso dela.

— E desta vez? — Daquela vez ia ser diferente; o seu maxilar cerrado dizia-o claramente.

— Desta vez, quando o último homem entrar, a rocha vai mudar de posição; pode ser feito por meio de um ajustamento, uma alavanca, que é acionada de cima. Vão ficar presos lá dentro. Vão encontrar a entrada de baixo mais estreita, suficiente, apenas, para um coelho, ou uma gaivota. Mas, é claro, permite que a maré entre.

— Estou a ver — disse Creidhe, estremecendo. O olhar de Guardião era frio; era evidente que aquilo, para ele, era uma rotina. Em que mundo fora cair?

— Há mais — disse Guardião. — Lá em cima, na montanha, por trás da cascata, ao longo das falésias. No carreiro que percorremos para descer até aqui, há muitos lugares onde o chão cede por baixo de um pé descuidado; na praia, existem muitos locais onde as rochas e o mar se fecham sobre um homem; na encosta, carreiros que não vão dar a parte nenhuma, caminhos onde a menor bruma tapa qualquer saída. Eles são loucos ao virem aqui. Não se pode vencer a Ilha das Nuvens.

— E os outros? E...?

— Tenho mais para te mostrar — disse ele, pegando-lhe na mão. O jovem estava a olhar para os rochedos escarpados que coroavam a ilha. — Quando vires, percebes que, aqui, estás segura, tu e Pequenino. Ainda há dúvidas nos teus olhos, Creidhe. Não devias duvidar de mim. Eu cumpro as minhas promessas.

Subiram por um declive acima, abrandando Guardião o passo para que Creidhe o pudesse acompanhar. A jovem ainda não tinha recuperado totalmente da doença e do que se lhe seguira; doíam-lhe as pernas.

— Guardião?

— O que é? Queres descansar?

— Não, posso continuar. Estava a pensar. Tu tens algum barco? Para pescar, talvez? Deixas alguma vez esta ilha?

Ele sorriu; não havia alegria naquele sorriso. O seu olhar era gelado.

— Não preciso de um barco para pescar — disse ele. — Mas tenho barcos. Não os tenho aqui, à vista. São pouco utilizados. Eu não posso deixar a ilha.

— Por causa dele? — Creidhe olhou para Pequenino, escavando a terra junto de um arbusto rasteiro, perseguindo um animal qualquer. — Não há mais nenhum lugar seguro para ele? As ilhas do norte? Ou outro lugar qualquer, como, por exemplo, as minhas ilhas? Isto é tão... tão isolado; pareces tão só.

— Tu estás aqui, agora.

— Sim, mas... — A jovem não terminou a frase. Dizer Eu não vou estar aqui para sempre seria tentar o destino. Podia dizer Eu só vou estar aqui até Thorvald me vir buscar. Mas isso era, provavelmente, falso. Thorvald devia estar, conhecia-o bem, metido num ambicioso esquema qualquer e, se calhar, já não se lembrava dela. Sam, talvez; Sam não se esqueceria.

— Não posso levá-lo. — Guardião parara com os olhos fixos nela, com uma voz quase zangada. — Não há nenhum lugar seguro para ele. Só aqui. Toda a gente o quer. O povo de Asgrim, para que possam negociar e conseguir a paz. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz por causa do que ele é. Os irmãos, os cristãos, são os únicos que se mantêm à parte, os únicos que tentaram opor-se a Asgrim. Mas não têm poder nenhum. O único refúgio é aqui. Ficamos aqui, o meu irmão e eu.

— Para sempre?

— Para sempre. Foi essa a minha promessa.

Guardião conduziu-a a uma rede de grutas e fendas na parte norte, no outro lado do monte, onde só havia falésias escarpadas e aves de bicos afiados, um lugar escondido que nenhum invasor seria capaz de descobrir, já que a sua entrada era muito perigosa e muito periférica. A descida até à entrada deixou-a aterrorizada, mas não disse que não. Guardião conduziu-a pela mão, os seus pés ágeis e seguros na superfície rochosa escorregadia, abrindo o caminho. No interior estava escuro, mas não tanto que não conseguisse ver o que estava armazenado em numerosas prateleiras talhadas nas paredes daquela caverna estreita e sombria. Havia ali armas suficientes para um exército, se bem que um pouco diferentes das que o seu pai e os seus homens utilizavam nas Ilhas Brilhantes. Havia muitas lanças pequenas, de arremesso, com pontas aparentemente feitas de osso, habilidosamente entrançadas e atadas, decoradas com tufos de penas. Havia setas do mesmo material e também de pinho, que ele devia ter resgatado do mar. Os arcos, pensou ela, deviam ser do povo dos Facas Longas porque lhe pareceram familiares, de madeira boa, sem dúvida um presente do mar, já que as árvores, praticamente, não existiam naquelas ilhas varridas pelo vento. As facas estavam alinhadas numa prateleira de madeira presa por cordas; todas tinham punhos de pele, de lã ou de outro material qualquer e quando Guardião tirou uma para a mostrar, ela viu brilhar a lâmina de ferro, sem um único vestígio de ferrugem.

O seu pai teria ficado impressionado; a manutenção cuidadosa das armas era uma coisa a que ele dava valor. Não havia ali machados. Como filha de um Pele-de-Lobo, Creidhe percebeu que a maior parte daquele arsenal era constituído por armas de lançamento a curta distância. A jovem não viu qualquer espada, escudo, ou grandes lanças de arremesso.

— Já só há poucas — disse Guardião, testando o fio com o dedo. Surgiu, imediatamente uma gota de sangue. — Tirei a maior parte daqui, já que a caçada se aproxima. É necessário te-las suficientes aqui e ali, porque os homens de Asgrim podem atacar de diversos lados. Lanças, dardos, pedras. Não posso trazê-las quando os homens já estão na ilha.

— Estou a ver — disse Creidhe após uns momentos. — O que é aquilo? — A jovem reparara noutro tipo de arma de arremesso, algo parecido com uma seta mais comprida, farpada e com a ponta de osso algo descolorida. Creidhe estendeu o braço para indicar a arma, mas Guardião agarrou-lhe no braço, puxando-o para trás. O coração começou a bater com toda a força. A jovem percebeu que ele tinha força suficiente para lhe arrancar o braço.

— Não! — disse ele. — Um só toque e podes morrer. Desculpa. Magoei-te. Eu mostro-te. — O jovem abrandou o aperto e segurou-a pelo pulso. A palma da mão dele estava cheia de calos e os dedos eram rugosos, mas o toque era suave. — Estás ferida?

— Não — murmurou ela com o coração bater com toda a força.

— Veneno. Assustaste-me.

— Não estou ferida. Seria uma estupidez tocar nelas. Guardião, tu tens aqui armas suficientes para um exército inteiro. — Havia outra pergunta lógica a seguir, mas não foi a que ela fez. — Onde está Pequenino?

— Ele não entra aqui. Tem medo do ferro.

— Oh. — Ela olhou para os estranhos olhos dele, uns olhos onde era possível vislumbrar as profundezas insondáveis do oceano. Estava escuro dentro da gruta, mas os olhos dele brilhavam. Pareciam ter luz própria, instável e perigosa. — E tu? Tu és irmão dele; parente, pelo menos. O ferro não te deixa, também, pouco à vontade?

Ele continuava a segurar-lhe na mão com dedos quentes e fortes. O senso comum dizia a Creidhe que devia ter medo, e ela tinha, mas não dele.

— Mentiria se dissesse que não. O meu sangue retrai-se quando estou perto deste metal. Mas eu chamo-me Guardião, sou guerreiro e sou protetor. Sobrevivi cinco vezes à caçada; tenho sido fiel ao meu voto. Não me posso dar ao luxo de ter medo, porque Asgrim perceberia e exploraria a minha fraqueza. Assim, uso as armas que eles deixam para trás. Aprendi por mim próprio a manejá-las, a lançá-las como se não tivesse medo.

— Custa-me a acreditar que Asgrim seja teu pai.

— Também a mim. Mas é verdade. Sou filho dele, assim como Sula. Seria bom que um homem assim não casasse nem engendrasse filhos. Eu vou matá-lo. Este Verão, no próximo ou no outro. Hei de matá-lo pelo que fez.

Creidhe sentiu-se gelada. A voz dele era sem expressão, como se aquilo fosse inevitável.

— Gostava de regressar — disse ela em voz baixa. — Estou a ficar cansada.

— Vamos. — Guardião virou-se, segurando-lhe ainda na mão. — Por aqui, ao longo desta beira. Aguenta-te; olha para cima, não olhes para baixo. Vamos para a cabana para descansares. Foi uma caminhada muito grande para ti.

— Eu sinto-me bem. — Mas não sentia; e ainda ficou pior quando percorreram uma estreita passagem nas rochas; ela sabia que ele não a deixaria cair, mas Guardião apontou para cima e ela viu os crânios. A jovem ficou a olhar e pestanejou; continuavam lá. Apesar das centenas de aves apinhadas na face norte da falésia, lutando por espaço, ali não se via uma gaivota, uma cria no ninho, uma mãe a alimentar os filhos com peixe suculento no bico. No entanto, havia ali muito espaço: seguro, nichos profundos e fendas oferecendo abrigo. Mas não havia espaço para as aves. Cada espaço, cada recanto, cada fenda, estava ocupada com um crânio limpo e sem olhos de um homem. Em filas, aos dois e três, aqui um isolado, ali dois encostados um ao outro. Alguns eram velhos, a desfazerem-se, sem dentes; outros eram mais novos, com tufos de cabelo e pedaços de pele agarrados ao osso nu. Um tinha um capuz de pele com orelheiras, se bem que não houvesse nada para cobrir. Muitos tinham sinais de ferimentos: uma fenda entre os olhos, um queixo esmagado, maxilares que não se ajustavam. Creidhe ficou imóvel na beira, petrificada. Eram tantos, demasiados, para os poder contar. Tinham sido todos colocados ali, olhando de órbitas vazias para o mar. Troféus. Indicadores. Um testamento dos anos de sobrevivência.

— Creio que vou vomitar — disse ela, fechando os olhos. Colocados ali um a um, ano após ano, caçada após caçada. Colocados ali por um homem que passava pelas armadilhas com passo tão seguro como um animal, instintivamente; que atravessava as falésias e entrava nas grutas com tanta facilidade como um ser qualquer das histórias, pouco humano. Que caçada era aquela, exatamente?

— Vem. — A voz de Guardião era firme, gentil. — Não vomites; abre os olhos e segue-me. Eu tenho-te segura; não vais cair. A cabana é já ali em cima.

E, evidentemente, não vomitou e não caiu porque ele era Guardião e se ele dizia que a protegia, ela sabia que era verdade. A jovem também sabia, com um sentimento estranho na boca do estômago, que estava cheia de medo. De quê, exatamente, não sabia; parecia tolice chamar-lhe fatalidade, destino, morte, no entanto, eram essas as palavras que tinha na cabeça. Quando chegaram ao abrigo, Pequenino estava lá, sentado à lareira, uma criança envolta num cobertor coçado, oscilando para trás e para a frente, gemendo tão suavemente que mal se podia ouvir.

— Descansa — disse Guardião. — Deita-te; exigi demasiado de ti. Queria mostrar-te... esqueci-me que é... estamos aqui há muito tempo...

— Não peças desculpa. Foi melhor assim. — Creidhe sentou-se ao pé da criança; estava cheia de frio e embrulhou-se no seu cobertor. — Guardião?

— Hum? — Ele estava a acender a lareira e a pôr água ao lume. Ela tentou imaginar onde teria ele encontrado o recipiente e os outros apetrechos de cozinha. Presentes do mar? Mais troféus da caçada?

— Não há mais ninguém nesta ilha, pois não? Só tu e... Máscara-de-Raposa.

Ele pestanejou e cerrou os lábios.

— Não pronuncies esse nome — O tom da sua voz era frio.

— Muito bem. Mas é verdade, não é? Não há outra tribo; tudo, a caçada, todos os anos, é só tu, um homem, sozinho, contra eles.

— Eu sou Guardião. — Aquela declaração simples, verdadeira, dita sem ênfase, era de cortar a respiração na sua coragem.

— Por todos os antepassados — disse Creidhe — um homem, sozinho contra tantos. É... é terrível. Parece uma lenda, uma história antiga, demasiado estranha para que acreditemos nela. No entanto, é verdade. Eu vi-os, eu vi os homens que tu mataste. Tenho de acreditar.

— Desaprovas? Eu ajo de acordo com uma promessa solene. Tenho de proteger o meu irmão.

— Sim, mas... — Tinha dificuldade em compreender, se bem que desconfiasse há algum tempo, antes já de ele a ter levado àquela gruta secreta e de lhe ter mostrado o arsenal e a parede de rostos mortos. O homem que fizera aquilo era o mesmo que segurava na criança com mãos tão gentis como as de uma mãe, o mesmo que lhe fizera o vestuário enquanto ela estava a dormir, que escutara, arrebatado, a sua história. Aquele homem matara e voltara a matar, ano após ano. Roubara os filhos, os irmãos e os pais ao povo dos Facas Longas.

A jovem sentiu uma leve pressão no flanco; a criança tinha-se encostado a ela, tinha metido o dedo na boca e tinha os olhos quase a fecharem-se. Ingigerd deixara de chuchar no dedo aos dois anos e meio, tendo-se apercebido de que havia coisas mais interessantes a fazer durante o dia.

— Preciso de te perguntar uma coisa — disse Creidhe — de que, provavelmente, não vais gostar.

— Continua. — Os olhos de Guardião estavam desconfiados

— Eu sei que ele é teu parente: filho de Sula. Sei que deve ter sido muito cruel para ela e compreendo que isso te deve ter deixado furioso. Devias ser muito novo quando o raptaste: doze, treze anos?

Ele inclinou a cabeça.

— Novo, sim. Ainda não era homem.

— Foi um ato de homem, o que fizeste, e dou-te os parabéns pela tua coragem; poucos o teriam conseguido. Mas, quando olho para ele, não vejo um rapazinho como os das minhas ilhas, alegres, ativos, felizes. Parece-me... profundamente triste. Está muito magro e assusta-se com facilidade. Nesta ilha, ele leva uma vida muito solitária, apesar da tua companhia. Por favor, não fiques ofendido, sei muito bem que te tens sacrificado por ele. Na verdade, toda a tua existência gira em volta dele, da sua preservação. Mas esta criança não é normal. Não pertence, apenas, à tua linhagem, à linhagem de Asgrim, pertence também aos outros. Seja o que for que pensemos do que a tua irmã sofreu às mãos deles, uma coisa bárbara, esta é a criança d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Esta criança é Máscara-de-Raposa. Já perguntaste a ti próprio se não teria sido melhor para ele tê-lo deixado onde estava?

Guardião olhou para ela do outro lado da fogueira; os seus olhos pareciam, agora, muito escuros, as suas pálidas feições uma máscara de choque e de dor. Creidhe sentiu-se mais pequena perante aquele olhar: era como se ele a tivesse perfurado com uma daquelas lanças envenenadas, mas continuou.

— Para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, Máscara-de-Raposa é um vidente, um homem sábio, venerado, respeitado. Entre eles, teria um lugar especial; seria amado e protegido. Não estaria melhor com eles do que aqui? Além disso, se nós regressássemos, haveria paz. Não haveria mais necessidade de armadilhas, de lanças. Não haveria mais mortes. As mulheres do povo dos Facas Longas poderiam ver os seus filhos crescer e desenvolverem-se. Se o devolvesses, ele seria feliz. E tu ficarias livre.

A jovem esperou, pensando que Guardião não responderia, de tal modo a sua expressão era de sofrimento. A criança tinha-se encostado ainda mais e estava quase a adormecer; ela encostou-o ao seu joelho, embalando-o. Era tão leve, parecia um gato, um pequeno pássaro, um pequeno conjunto de pele e ossos. Os seus cabelos pareciam um ninho, emaranhados e sujos. Ela pensou se conseguiria penteá-los.

Guardião ficou por alguns momentos a olhar para ela, silencioso. Creidhe não lamentava ter falado; aquilo precisava de ser dito. Mas lamentava tê-lo magoado. A criança era o propósito da sua vida. Ela era, provavelmente, o primeiro estranho a pôr os pés na ilha fora da época da caçada e ele não tinha razões para confiar nela. No entanto, dera-lhe asilo. Agora, as suas palavras tinham-no ferido mortalmente.

Guardião inclinou-se para o fogo. Acrescentou-lhe combustível, deitou água quente numa tigela, acrescentou-lhe água fria de um balde que tinha junto de si e olhou para ela.

— Estás com frio — disse ele. — Deixei-te exausta. Talvez queiras lavar-te, aquecer-te... Eu já me esqueci dessas coisas, passou-se tanto tempo... Creio que te ofendemos, eu e o meu irmão... Somos sujos, desleixados...

Creidhe esboçou um sorriso.

— Não me ofendeste, de maneira nenhuma. Simplesmente, deixas-me espantada, perplexa. Não sei que pensar de ti. Lamento muito se te aborreci, tenho o maior respeito pelo modo como tens olhado pela criança. Só que... este lugar é tão remoto e... não interessa. Não tenho nada com isso. Tenho a mania de interferir na vida das outras pessoas. Thorvald diz que eu sou uma intrometida. — Creidhe ouvia-se a si própria a tagarelar como uma criança nervosa. — E sim, gostava muito de me lavar, estou habituada a fazer isso todos os dias. E gostava de fazer algo aos cabelos do teu irmão, penteá-los, talvez cortá-los, mas só se não te importares.

— Faz o que quiseres, desde que ele não se assuste. Cometi muitos erros. Não sabia como educar uma criança; tudo o que fiz foi tentar aprender por mim próprio. Agora vou pescar enquanto tu te lavas. Ainda não perdi as boas maneiras todas. — O seu tom de voz mudou, ficou mais sombrio. — Creidhe?

— Sim?

— Mostras-nos outra vez o teu trabalho, esta noite? Contas mais? — O seu olhar era, agora, diferente; havia uma fome nele que provocou nela um arrepio, um arrepio que não era de medo, algo inteiramente diferente, um sentimento arrebatado, perigoso, novo.

— Mostro, se quiseres.

— Obrigado. E eu também te digo. Digo-te por que razão o meu irmão não pode voltar, por que razão seria ainda mais cruel para ele do que o exílio aqui, entre os papagaios-do-mar e as focas. Mas não já; por favor, lava-te e descansa. Logo à noite, quando ele estiver a dormir.

Enquanto a criança dormia à lareira, Creidhe despiu-se, lavou-se o melhor que pôde com a pequena quantidade de água que Guardião lhe dera e voltou a vestir-se. Não havia sinal das suas roupas originais e a jovem deduziu que tinham ficado demasiado estragadas para ser salvas. Guardadas noutra gruta qualquer, suspeitava, devia haver outras túnicas, calças, capas e botas, tiradas aos proprietários daqueles crânios de órbitas vazias, na face da falésia. De que outro modo poderia ele ter-lhe feito aquelas roupas e as da criança, além das suas enquanto crescia, transformando-se num homem? Tinha, por isso, de lhe pedir outro favor. Não podia usar indefinidamente a mesma roupa, nem sequer numa ilha no fim do mundo apenas com três habitantes.

Desejava ter um pedaço de sabão; o que trouxera de casa desaparecera há muito e não metera nenhum no saco quando deixara o Fiorde do Conselho. Apesar disso, sentia-se melhor. O seu cabelo, pelo menos, estava mais limpo, se bem que todo emaranhado. Creidhe sentiu-se tentada a tirar a tesoura e a cortá-lo curto, mas decidiu, em vez disso, pentear as longas madeixas e entrançá-las. Depois de uma visita à privada, um buraco alarmante nas rochas que dava diretamente para o mar, Creidhe sentou-se com o pente na mão e iniciou o longo e cansativo trabalho de devolver alguma ordem aos seus cabelos. A jovem olhou de relance para a criança adormecida. Não sabia por onde começar com ele, mas certamente que uma lavagem ao rosto não o assustaria demasiado. Tentaria quando ele acordasse.

Creidhe observara Guardião a caminho da pesca, uma silhueta alta, esbelta, no seu traje coçado, esvoaçante, caminhando com grandes passadas pela encosta nua e ventosa, a caminho da costa ocidental da ilha. O jovem parecia passar como uma sombra pela paisagem, pisando o solo com tanta leveza que não deixava quaisquer pegadas. Tão novo: nem sequer era mais velho do que Thorvald, que parecia, tantas vezes, um rapazinho. Que vida para um rapaz. Tantas oportunidades perdidas, para ele e para Pequenino., que parecia mais um frágil proscrito do que um visionário. Que futuro para eles? No entanto, Guardião era forte. Não precisava de piedade. O jovem tinha um ânimo inquebrável; talvez fosse suficientemente forte para tomar conta do seu pequeno parente. Guardião via a morte com ligeireza; no meio do sangue e do terror, ainda arranjava tempo para alguma ternura, fazia de pai e de mãe, de irmão e de amigo. Creidhe achou, enquanto arrastava o pente pelos cabelos emaranhados, que aquela história só poderia acabar mal. Porque, o que quer que ela quisesse, ou apesar do que quer que Guardião quisesse, os homens de Asgrim atacariam. Tão certo como o Sol se seguir à Lua no céu, tão certo como o Verão se seguir à Primavera, a caçada regressaria e o sangue voltaria a ser derramado na praia solitária da Ilha das Nuvens. Desejar que não atacassem era desejar a morte dos filhos da tribo de Asgrim, desejar que mães jovens, como Jofrid, tivessem ainda mais desgostos.

No fim de contas, teria de utilizar a tesoura: alguns nós recusavam-se a ceder. Creidhe cortou aqui e ali e atirou as sobras para o fogo. O resto estava mais ou menos. Não podia fazer melhor; os dias em que lavava os cabelos com sabão e os enxaguava com camomila eram coisa do passado. A jovem entrançou-o e atou-o com dois pedaços torcidos de lã. Nos cobertores, Pequenino continuava a dormir, enroscado e com uma mão na face. Creidhe tentou imaginá-lo em Hrossey com a sua família, sentado nos joelhos de Brona e brincando com um cordel, ou correndo atrás de Ingigerd enquanto esta atravessava o pátio para ir ver as cabras ao redil. Imaginou-o às cavalitas de Eyvind, ou ao colo de Nessa. Mas não era ele; a criança que aparecia nos seus pensamentos era outra, um rapaz robusto de cabelos claros cujos olhos brilhantes e sorriso doce diziam que era da sua raça, não o Kinart que se tinha perdido, mas um outro como ele: o seu irmão, o irmão que não tinha. Pequenino, pensou ela, só tinha Guardião como família; talvez não precisasse de mais ninguém. Apesar disso, era tão vulnerável como um pintainho no ninho e ela temia por ele. Na sua forma humana, parecia não ter quaisquer capacidades.

Guardião dissera-lhe para descansar. A jovem percebeu que não queria dormir; passavam-lhe pela mente imagens sombrias, logo abaixo da superfície e ela não lhes abriria a porta provocada pelo sono. Assim, desenrolou a Jornada, pegou na agulha e começou a bordar.

Mais tarde, quando a criança acordou, falou com ela em voz baixa, mostrou-lhe a água e o pedaço de tecido e fez o gesto de quem lava a cara. Os seus grandes olhos observavam-na, muito sérios. Estava muito mais sujo do que Guardião. Talvez o jovem guerreiro nadasse no mar. Creidhe mergulhou o tecido na água previamente aquecida, espremeu-o e passou-o pelo rosto da criança.

— Menino lindo — murmurou ela. — Vais sentir-te muito melhor; eu sinto-me, pelo menos. — Parecia uma tolice; que importância tinha aquele pequeno ritual doméstico naquele lugar selvagem e remoto? — Muito bem. Agora, as orelhas... — Ele era tão pequeno; Creidhe sentiu-se de novo maravilhada com o rosto estranho, triangular; o pescoço, parecido com o caule de uma planta ainda jovem; as mãos de dedos longos com as unhas sujas e quebradas; mãos que eram uma miniatura das de Guardião. Os olhos também eram iguais, verdes-escuros e fluidos, como a luz através da água. — Pronto, assim está melhor. Agora, vou tentar pentear-te o cabelo. — A jovem mostrou-lhe o pente, passando-o pela ponta da sua trança. — Vês? O meu está preso, fi-lo enquanto estavas a dormir. Senta-te aqui na minha frente para eu ver o que posso fazer. Pode ser que doa um bocadinho. Diz-me, se isso acontecer, que eu paro logo.

Devia doer consideravelmente; aquele cabelo não devia ver um pente desde, provavelmente, o primeiro ano de vida de Pequenino. Creidhe apetecia-lhe cortar os nós e as madeixas retorcidas e a porcaria agarrada, palha, penas, gravetos, deixando-lhe o crânio livre para lhe poder lavar. Mas não era possível; sem a tesoura de ferro, a única maneira era continuar a penteá-lo lenta e meticulosamente. A jovem suspirou e começou e, para distrair a criança, ia cantando enquanto trabalhava. A sua irmã Ingigerd adorava canções; agora, conhecia muitas e juntava-se entusiasticamente a Creidhe e Brona quando estas atingiam o refrão. Creidhe cantou uma sobre um pescador que apanhou um bacalhau tão grande que quase lhe fez virar o barco no regresso a casa. Cantou uma sobre a Tribo Perdida, das Ilhas Brilhantes, e sobre a importância de deixar no exterior da casa leite e bolos em certas noites do ano, para que eles não pregassem partidas. Cantou uma sobre o Sol e a Lua e por que razão seguiam um atrás do outro no céu. No fim desta última já tinha conseguido desembaraçar uma pequena seção do cabelo da criança, transformando-a em madeixas sedosas. O jovem permanecera sempre imóvel, submetendo-se silenciosamente ao cerimonial. Não fora possível evitar os puxões; a jovem pensava por que razão o estava a submeter àquilo. Quem queria saber se ele andava sujo e desleixado senão ela?

— Chega por hoje — disse ela gentilmente, pousando-lhe uma mão no ombro. — És um lindo menino; se fosse a minha irmã, estaria a gritar e a queixar-se. Ela tem mais ou menos a tua idade, mas é maior do que tu e tem cabelos longos e dourados como os meus. Compreendes o que eu estou a dizer, Pequenino?

Ele olhou para ela com aqueles olhos muito grandes, consciente, pelo menos, de que ela estava a falar com ele.

— Eu quero ajudar-te, se puder. Posso ensinar-te canções, histórias. E outras coisas, também. Números. Jogos. Muitas coisas, se quiseres. — Quem sabia quanto tempo estaria ali? Certamente que tudo o que pudesse ajudar aquela criança abandonada a tornar-se uma criança normal seria bom. Era evidente que não poderia ajudar Guardião nas outras atividades, mas aquilo, pelo menos, podia fazer.

A mão de Pequenino estendeu-se e pousou-lhe na manga por um momento, os seus dedos delgados e pálidos como hastes de trigo. Em seguida, levantou-se e foi até à entrada, esperando por Guardião. Creidhe estremeceu enquanto ia lavar a tigela, o pedaço de tecido e guardar o pequeno pente que Sam lhe fizera. Aqueles dois, um sem o outro, eram incompletos. Precisavam um do outro para sobreviver. Sem Guardião, Pequenino morreria: de frio, de fome, de tristeza. Sem Pequenino, Guardião deixaria de ter um objetivo na vida, não teria razão para continuar. Quando Sula lhe arrancara a promessa, certamente que não se apercebera das limitações do futuro do seu irmão: como ele desistiria de si próprio para se manter fiel.

Sentaram-se à lareira, Guardião, Creidhe e Pequenino. A jornada mudara de novo. Silenciara Guardião; o jovem estudava-a com olhos sombrios. Creidhe observou que o seu cabelo estava encharcado e atado atrás com um cordel, deixando-lhe o rosto ossudo livre. Era sempre assim quando ele regressava da pesca, com o fruto prateado do seu trabalho pendurado no ombro. Ela reparara nos olhares que ele lhe lançava, na tímida admiração, em algo interior muito forte. A jovem podia ver o reflexo disso no seu próprio olhar. Talvez Guardião soubesse pouco acerca do mundo para lá daquela ilha, de como as pessoas viviam as suas vidas. Por isso mesmo, talvez, ela apercebeu-se de que os jovens que conhecera em Hrossey eram crianças ao pé dele.

Já tinham comido e Pequenino estava sentado nos seus joelhos, inclinado para ver o melhor possível. Creidhe perguntou a si própria se a criança conheceria algumas palavras; talvez tivesse nascido antes de tempo e não tivesse crescido como os outros rapazes, apesar de ter sido criado de maneira diferente. Ela sabia de crianças com deficiências. Em Hrossey, ajudara a nascer dois bebês assim. A mãe levara um coice de uma vaca enquanto estava grávida. A criança, uma rapariga, sobrevivera, mas era lenta a andar, a falar e a compreender. E Moya, que vivia perto de uma caverna da Tribo Perdida, uma câmara subterrânea onde eles se reuniam, à noite. O bebê de Moya nascera surdo. Dizia-se que os moradores do local lhe tinham tirado o poder de ouvir porque estavam fartos de ouvir a voz de Moya, a dela e a do seu companheiro, que eram conhecidos por estarem sempre a discutir. Provavelmente, os da Tribo Perdida pensaram que estavam a fazer um favor ao bebê.

A jornada estava totalmente aberta. Guardião continuava a olhar para a parte que ela fizera naquele dia, filas de rostos olhando em frente, cada um bordado no momento em que retinha a respiração, cada um mostrando o que lhe ia na mente naquele momento preciso: a minha filha, nunca mais a vejo... a minha mulher... a minha terra... como isto dói, nunca mais acaba... Tenho medo... a escuridão... Em redor daquela faixa de espíritos inquietos, Creidhe bordara uma barreira que poderia ser de pedra, ou de fumo, ou de alguma manifestação que não era deste mundo; fosse o que fosse, era evidente que aqueles homens estavam presos no seu interior, condenados a ficar ali para sempre a olhar, cada um deles revivendo eternamente o momento da sua morte. Por cima, Creidhe bordara o Sol e a Lua, o arco-íris, nuvens, aves voando. Fosse qual fosse a estranha razão da perplexidade daqueles homens, o ritmo da terra e do céu continuava, indiferente. No fim de contas, as vidas mesquinhas representadas por baixo tinham pouco significado.

— Conta isto — disse Guardião, estendendo um dedo para tocar numa boca a gritar, num olhar fixo, apavorado. — Conta porque fizeste isto. — A sua voz era tensa, quase acusatória e não olhava para a jovem.

— Não, — disse Creidhe — agora não, pelo menos antes de ele se ir deitar. Eu não bordei isto por uma razão determinada, ou para o comentar. Por vezes, bordo o que me vai na cabeça; eu vi isto hoje, não apenas os objetos, antes a essência deles. Por vezes, estas imagens, parece que... que se fazem a si próprias. Muitas vezes, nem tenho a certeza daquilo que os pontos me vão mostrar. Só quando acabo é que percebo. Não consigo explicar-te, a ti ou a outra pessoa qualquer. Tu tens, apenas, de olhar, pensar e decidir o que queres ver.

Guardião olhou para ela de lado com um olhar gelado.

— Achas que o que eu estou a fazer está errado — murmurou ele. — É o que eu vejo aí. Achas que sou selvagem e cruel.

— Não ouviste o que eu disse. A Jornada não mostra o que eu penso. Mostra o que deve ser visto. Não assumas que te estou a julgar, Guardião. Eu tento não julgar ninguém. Em vez disso, ajo como acho que devo agir e, entretanto, vou fazendo o meu bordado.

— Isso tem muito poder. — Os seus olhos estavam fixos nos minúsculos pontos, nos pequenos rostos selvagens, nas bocas agonizantes. — Magoa-me.

— Nesse caso, não olhes. Eu tenho uma história para contar a Pequenino, que começa na outra ponta da Jornada. Repara, Pequenino, está aqui um rapaz mais ou menos da tua idade e tamanho. Era o meu irmão, assim como tu és o irmão de Guardião. Bem, não exatamente; Kinart e eu tínhamos a mesma mãe e o mesmo pai.

Ela tencionava contar uma história curta, na qual a jovem Eanna, Kinart e Creidhe conheciam o seu amigo Thorvald e partiam numa aventura, atravessando um campo onde havia um grande touro. Mas a história prolongou-se e só terminou quando atingiu o ponto que devia atingir: quando o seu irmão, que ainda não tinha feito cinco anos, se afastara da família, na praia e fora encontrado, flácido e pálido, nos baixios. Então, Creidhe ainda nem sequer tinha quatro anos, mas recordava-se de todos os pormenores e apesar de não ser uma rapariga chorona, quase se desfizera em lágrimas ao ver a dor terrível do seu pai e a aceitação estóica da sua mãe ao ver que, finalmente, a Tribo das Focas reclamara o pagamento da dívida.

— Eles ajudaram a minha mãe numa tarefa mágica — explicou ela com a voz entrecortada. — Foi necessário fabricar uma harpa a partir dos ossos de um homem assassinado: uma harpa que dizia a verdade. O testemunho desse instrumento salvou a vida do meu pai e o futuro das nossas ilhas. Nessa ocasião, as mulheres do mar não pediram qualquer pagamento a Nessa; na verdade, deram-lhe a harpa de presente. Mas ela sempre acreditou que, mais tarde ou mais cedo, lhe cobrariam a dívida, e cobraram. Nessa pagou com a vida do seu único filho. Desculpa — pestanejou Creidhe, e enxugou os olhos. — Não tencionava contar esta história tão triste. Aconteceu há tanto tempo.

A jovem sentiu o Pequenino olhar para ela e erguer uma pequena mão para lhe tocar nas faces molhadas, um toque tão suave como o de uma pena. Ela rodeou-o com os braços, gentilmente, para não o assustar e fechou os olhos por um momento. Hrossey estava muito, muito longe. No seu espírito, algures, aquele momento continuava presente, olhando, impotente, enquanto a morte fazia desaparecer o sol da sua vida.

— Conheces muitas histórias acerca dessa tribo a que chamas Tribo das Focas? — A voz de Guardião continuava tensa; não havia dúvida de que estava preocupado com ela. No entanto, não podia esperar que ela se sentisse indiferente perante a panóplia de armas e os crânios na falésia.

— Muitas. Dizem que eles vivem em algumas partes das Ilhas Brilhantes; a Ilha Sagrada, onde os eremitas cristãos têm a sua comunidade, era uma delas. Mas creio que a chegada dos irmãos afastou dela o povo do mar.

— Alguma vez os viste?

— Não; pouca gente os viu. Dizem que as mulheres são muito bonitas e sedutoras; muitos pescadores suspiram por elas.

— Por que razão havia essa gente de afogar uma criança? — Creidhe inclinou a cabeça e olhou para Pequenino.

— Não sei — murmurou ela. — As anciãs dizem que a Tribo das Focas não sente o amor, a vida e a morte como nós. Para eles, a vida de uma criança não tem qualquer valor. Suponho que a levaram como forma de pagamento e que descobriram que não tinha qualquer utilidade para ela. Mas, não devíamos falar disto em frente de...

— Essa história é falsa — disse Guardião, friamente. Creidhe ficou espantada.

— Não é, não — protestou ela. — A minha mãe estava lá, ela sabe...

— Nem toda. Não está certo dizer que esse povo do mar afogou o teu irmão. Isso é uma acusação terrível, uma afirmação assassina. Não foi isso que aconteceu.

— Como é que sabes? Como podes ter a certeza?

— Sei, assim como tu sabes que o teu bordado mostra a verdade, mesmo quando uma força exterior guia a tua agulha. Lamento que o teu irmão se tenha afogado; compreendo a dor do teu pai. — Guardião estava a olhar para Pequenino, de olhos sombrios. A sua expressão fez parar o coração de Creidhe, de tal modo estava plena de amor e medo. — O que matou o teu Kinart foi um acidente, mais nada. Os Folk da terra e do mar não cobram dívidas àqueles que os honram. Não é assim que as coisas acontecem. Os homens e mulheres de boa vontade não têm razão para temer esses Folk.

— Não é verdade. Histórias destas têm sempre um cunho de verdade...

— As histórias estão erradas. Advêm do medo. Mas tu não devias ter medo. Não são as tribos antigas que não têm coração, são as dos homens.

— Os homens podem ser bem cruéis, é verdade — disse Creidhe, pensando em Somerled. — Mas também podem ser bons e nobres, bravos e fortes. O meu pai é assim. — A jovem olhou de relance para a imagem bordada de Eyvind, com a qual começava a Jornada: o guerreiro vigoroso de cabelos dourados com a pele de lobo pelos ombros. — E há os outros: homens que se esforçam por ser corajosos, leais, virtuosos, mas que falham; homens que começam bem, mas que se perdem. Mulheres que são egoístas, ou preguiçosas, ou ciumentas; outras que são sensatas e carinhosas. De toda a espécie.

Creidhe começou a dobrar, uma vez mais, a Jornada; as imagens daquele dia tinham sido sombrias, cheias de tristeza, mas a escolha não era sua; ela só bordava o que via.

— Estás triste — observou Guardião. O jovem não se aproximara para se sentar junto dela, ficara a alguns passos de distância, de pé, de braços cruzados. O vento estava mais forte, inserindo-se nas fendas das paredes de pedra, fazendo com que as chamas da lareira tremessem e vacilassem e agitando as penas da túnica de Guardião.

— Não exatamente triste. — Creidhe pensou, por momentos, naquilo. — Penso que sinto mais qualquer coisa para além da tristeza. Sinto-me... impotente. Há aqui muito sangue derramado, muitas mortes, muitas perdas; gostaria de poder mudar as coisas, mas não sei como. Tenho medo pelos meus amigos, que estão com Asgrim; não sei nada deles. Tenho medo por Pequenino e por ti... os riscos que corres são tão grandes que a minha mente mal os abarca. Estou muito longe de casa Guardião; parece que tudo o que acontece aqui ainda me afasta mais.

— Gostarias que o mar não te tivesse trazido para a minha ilha? — O seu rosto estava sombrio; a jovem não conseguiu ver nele qualquer expressão.

— É esquisito, mas não consigo dizer isso. Sempre acreditei que tinha um papel a desempenhar, na jornada de Thorvald e, apesar de estar separada dele, continuo a acreditar que assim é. Só espero descobrir em breve que papel é esse. O que me disseste hoje alarmou-me. Os espíritos andam inquietos, Guardião. Eu não acho que sejas um homem cruel. Mas é uma crueldade não permitires que eles repousem, finalmente.

— Eles é que foram os causadores. — De novo aquela declaração.

— É verdade que eles vieram até aqui na certeza de enfrentarem a morte. A caçada é um tempo de sangue. Mas eles vieram em busca da paz para a sua tribo, tentando salvar o futuro. Não para magoar Máscara-de-Raposa, apenas para o devolver a quem ele pertence. Eu não gosto do que Asgrim fez; não gostei do que ele me fez. Mas sou capaz de compreender as suas razões. Guardião, eu ajudei a nascer um bebê enquanto estive em Água Brilhante, um rapaz que teria morrido sem a minha ajuda. Não conseguia compreender o terror que ia no rosto da mãe, mesmo depois de o bebê ter nascido bem. Então, vieram Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, as vozes, e levaram-no. O bebê morreu nos braços dela, um rapaz que, momentos antes, era saudável. Foi uma coisa cruel, terrível. Foi o terceiro bebê perdido por Jofrid. Não compreendes por que razão os homens de Asgrim estão decididos a acabar com isto? Se esta guerra continua, o povo dos Facas Longas desaparece.

Guardião olhou para ela.

— Tu defendes aqueles que te venderam ao inimigo?

— Eu não os defendo — disse Creidhe, tremendo. — Se os defendesse, não teria tentado escapar. Eu também tenho as mãos manchadas de sangue, não és só tu: naquele dia, os homens afogaram-se por minha causa. Mas compreendo o desespero de Asgrim. Em tempos destes, os homens agem de uma maneira que pode parecer extrema em tempos de paz. O que eu não compreendo é por que razão, tendo derrotado o teu adversário e tendo-o morto, não lhe permites que repouse. Se tiras a cabeça do corpo de um homem, ele não pode continuar. Condenas o seu espírito à solidão.

Ele não respondeu. Pequenino saiu dos joelhos da jovem e saiu para o exterior do abrigo. Creidhe pôs-se de pé, pronta a segui-lo, porque já era tarde e o terreno era traiçoeiro.

— Não é preciso — disse Guardião em voz baixa. — A Lua está a nascer; ele vai olhar para ela, como sempre que está Lua cheia. Mais tarde, adormece. Senta-te; vou contar-te uma história.

Creidhe sentou-se com as mãos no colo.

— Quando o povo de Asgrim veio para estas ilhas, havia paz — disse Guardião, acocorando-se junto dela e utilizando as suas longas mãos para ilustrar a história. — Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham o seu vidente, o seu Máscara-de-Raposa. Eles ouviam a sua sabedoria e esta ajudava-os a viver lendo-lhes os ventos e as marés, a altura ideal para as sementeiras através da lua e a altura ideal para a colheita, cuidava-lhes dos animais e dos filhos. Uma vida dura, mas ordenada. As ilhas eram quase despovoadas; havia muito espaço para o povo dos Facas Longas e eles instalaram-se e iniciaram as suas vidas. Cada clã ficou com a sua ilha; os locais de pesca eram partilhados. Máscara-de-Raposa era um ancião, estava cego e as suas pernas eram inúteis. Não saía do seu lugar; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz cuidavam dele, levavam-lhe comida, mantinham-lhe a cabana limpa e seca. Quando precisavam de conselhos, iam ter com ele. No virar das estações cantava para eles e nessas canções frisava a importância de as suas vidas serem bem vividas.

Creidhe acenou com a cabeça; já sabia aquilo por intermédio do irmão Niall.

— Então, Máscara-de-Raposa morreu. Não havia outro para ocupar o seu lugar, nenhum filho de uma mulher de cabelos dourados cuja pele rivalizasse com a palidez da neve. Sem a sabedoria de que necessitavam, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tornaram-se selvagens e perigosos. Não demorou muito para que a guerra estalasse com o povo dos Facas Longas, um conflito durante o qual morreram muitos ao longo dos anos. Então, eles raptaram a minha irmã e, durante algum tempo, a guerra cessou. — Guardião fechou os olhos.

— Não precisas de falar nisso se...

— Para ti, parece simples, não parece? — O seu tom era amargo. — Sula já não sofre; morreu. Deu-lhes a criança, eles colocaram-na na posição de amor e respeito que um Máscara-de-Raposa merece e pronto. Melhor para ele; melhor para todos. É o que tu achas.

Creidhe não respondeu.

— Parte do que pensas que aconteceu ao meu irmão é verdade. Se os homens de Asgrim o tivessem entregado simplesmente Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, Pequenino teria, na verdade, sido um vidente venerado, tal como o seu predecessor. Mas, primeiro, eles queriam partir-lhe as pernas e cegá-lo.

— O quê? — A voz de Creidhe era um sussurro estrangulado.

— Esse ritual deveria acontecer assim que ele fosse desmamado — disse Guardião friamente. — Eu raptei-o mesmo a tempo. Eles acreditam, sabes, que, para desempenhar cabalmente o seu papel, Máscara-de-Raposa tem de ser exatamente como o velho. Eu sei. Estive no meio deles. Para isso, tive de lhes ganhar a confiança. Eles acreditam que fechar os olhos do corpo é abrir os do espírito, que retirar a capacidade de andar é prender o vidente à sua tribo. Assim o diz a tradição. Se ele regressar, eles fazem-no e eu não creio que ele seja capaz de sobreviver a isso.

— Oh, não... — Creidhe mal conseguiu falar. Aquela criança tão frágil, que se enroscara com tanta confiança nos seus joelhos: não admirava que Guardião o protegesse com uma dedicação tão violenta. — Oh não...

— Asgrim sabe isso. Talvez os homens dele também saibam. No entanto, o governador não percebe por que razão eu raptei o meu irmão. Para Asgrim, justifica-se sacrificar uma criança para o bem da tribo. Mesmo que seja da sua família. Ele já mostrou que não quer saber dos laços de sangue. Não foi o seu legado que nos uniu, a Sula e a mim, e que me liga, agora, ao filho dela.

— Não sei que dizer — murmurou Creidhe, envolvendo-se nos próprios braços — salvo que lamento ter duvidado do que disseste; se eu estivesse na tua posição, não sei se teria tido a coragem de fazer o mesmo. Isto é... muito triste, nem dá para acreditar. Não tenho uma resposta para te dar. — Era inevitável, a caçada continuaria, mais homens morreriam e Guardião arriscaria a sua vida vezes sem conta. A sua mente mostrou-lhe os homens de Asgrim a avançarem e a serem mortos um a um, os seus corpos espalhados pela ilha. Thorvald e Sam estavam com Asgrim; iriam, também eles, jazer no meio do seu sangue antes de aquele Verão acabar?

— Nem sempre é triste — disse Guardião. A caçada só acontece uma vez no ano e termina rapidamente. Temos longos períodos de calma. Os Invernos são duros; por vezes, ele fica doente, cheio de tosse e isso perturba-me. Mas também são tempos bons. Depois da caçada, podemos andar livremente pela ilha, sem receio de qualquer ataque. A Ilha das Nuvens é um lugar muito bonito e tem muitas belezas. Uma floresta de pedra; um poleiro tão alto como o ninho de uma águia. Creidhe?

— Sim?

— Eu tentei ensiná-lo, mostrar-lhe como desenvencilhar-se sozinho. Tentei falar-lhe, para que ele pudesse ir aprendendo algumas palavras. Mas, por vezes, esqueço-me; por vezes, penso que ele não é capaz de aprender. Eu posso protegê-lo dos homens de Asgrim; posso mantê-lo a salvo de qualquer ataque, mas, e se eu for ferido, ou me afogar enquanto pesco? E se eu ficar doente e morrer? Ele ficará só. Tu dizes que, de certo modo, eu errei, que ele não é como as outras crianças. Nesse caso, falhei e falhei na promessa que fiz à minha irmã. Isso entristece-me; mete-me medo.

Creidhe estendeu as mãos e tocou nas dele.

— Não — disse ela. — Eu estava enganada. Ele tem, em ti, o melhor exemplo que podia ter. — A jovem fez um esforço para esconder as lágrimas; não podia mostrar-se fraca. — Tu ama-o e és forte. Conheces a ilha e como sobreviver nela; podes ensinar-lhe isso. E... enquanto aqui estiver, posso ajudar. Talvez o possa ensinar a falar, e outras coisas. Posso tentar, de qualquer modo. Se quiseres. — Apesar de tudo, apesar de Thorvald, de Sam e de tudo o que deixara para trás, não podia fazer outra coisa.

A boca dele arqueou-se num sorriso.

— Quero, sim — disse ele, desviando os olhos dos dela no que pareceu o mesmo súbito e inexplicável ataque de timidez que ela observara antes. A jovem ainda tinha as mãos dele nas suas; ele moveu os dedos e as suas mãos maiores envolveram as dela e Creidhe sentiu a sua força, a força das mãos de um guerreiro.

A luz entrava pela porta; a Lua estava a nascer. Sentaram-se os dois em silêncio, de mãos juntas, enquanto o espaço sombrio ficava prateado à sua volta. O rosto de Guardião, pálido como nunca, parecia encher-se de um brilho estranho, os seus olhos estranhamente brilhantes, a sua pele translúcida devido à luz. Creidhe viu, pela expressão do rosto do jovem, que também ela brilhava daquela maneira; era como se ele tivesse uma deusa diante de si. A jovem prendeu a respiração.

No silêncio surgiu uma melodia, uma melodia de uma pureza tão grande que Creidhe pensou, por um momento, se os olhos de Guardião lhe estariam a dizer a verdade, ou se um espírito da noite os tinha honrado com a sua presença. As notas subiram de tom num arco perfeito, dolorosas na sua intensidade e permaneceram no ar, ecoando em cada rocha e arbusto da encosta, no mar, na Lua e nas estrelas, caindo depois, como uma cascata maravilhosa, até se transformarem em silêncio. E de novo subiu, parando o bater do coração, enchendo os olhos de lágrimas, banhando o espírito com um bálsamo de profunda sabedoria. Ao mesmo tempo que continuava, a luz no interior do abrigo intensificava-se, pulsando, brilhando, radiante e forte. Creidhe estava consciente de que Guardião se levantara e que estavam os dois a caminhar juntos na direção da saída. Ficaram os dois de mãos dadas a olhar para a Lua cheia no pálido céu de Verão, brilhante de certeza; para Pequenino sentado nas rochas de pernas cruzadas, os olhos fixos naquele disco de luz. Olhando e ouvindo enquanto Pequenino oferecia o seu hino maravilhoso e sem palavras à beleza daquele espírito celestial. Os braços de Guardião rodearam os ombros de Creidhe e os de Creidhe a cintura de Guardião. Ficaram os dois em silêncio enquanto a melodia subia e descia de novo, nobre, doce, plena de um poder antigo.

O vento amainara; a ilha estava em silêncio, não se ouvia um restolhar, um único grito. As águas escuras do oceano brilhavam sob aquela luz estranha, brilhante e perigosa. A Creidhe, parecia-lhe que a melodia atingira todos os cantos do mundo; Asgrim, no meio dos seus guerreiros, sonhando com a caçada; Thorvald e Sam, estivessem eles onde estivessem; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, desejosos do regresso do seu vidente. Parecia-lhe que aquele hino de amor devia ter atingido, até, as Ilhas Brilhantes e que as ultrapassara. Já não duvidava das capacidades de Pequenino. Talvez nunca viesse a aprender a falar como qualquer ser humano; talvez nunca viesse a brincar como as outras crianças. Depois daquilo, parecia não ter importância.

A melodia aproximou-se do fim, desaparecendo numa ondulação extremamente bela, uma filigrana de pequenas notas rodopiando cadenciadamente. Pequenino bocejou e pestanejou. Creidhe e Guardião separaram-se; nenhum deles, se apercebera, talvez, da posição em que tinham estado, um corpo contra o outro, abraçados.

— Descansar — disse Guardião, pegando a criança ao colo. Pequenino pôs os braços em redor do pescoço do jovem e encostou-lhe a cabeça ao peito, como uma criança qualquer depois de um longo dia de brincadeira, não como o receptáculo da voz antiga da Lua. — Hora de ir para a cama.

A criança já estava a dormir quando ele lhe colocou a cabeça na almofada. Então, Guardião olhou para Creidhe à luz da lareira, os olhos líquidos, perigosos, e Creidhe devolveu-lhe o olhar sem pestanejar, se bem que o seu coração batesse com toda a força. Um momento depois, ele virou-lhe as costas, retirando para o outro lado da lareira para desenrolar o seu cobertor e Creidhe preparou-se para dormir junto de Pequenino. A melodia terminara, mas, à luz suave do luar, o seu poder e beleza permaneciam. Esta canção é eterna: sempre a mudar, mas sempre a mesma. Ela chama-me e despede-se de mim. Eu morro e nasço de novo. Eu canto sempre o mesmo, no seu todo, limpo, puro; eu canto a Única História.

 

Com uma certa dificuldade, porque já não eram novos, os dois eremitas transportaram Colm para casa numa prancha e enterraram-no não muito longe da horta que ele tratara com tanta energia e amor. Breccan disse uma oração; Niall manteve-se de pé com a cabeça inclinada e as mãos juntas, e a cadência pacífica e justa da oração misturou-se, no seu cérebro, com outra, uma cadência de pensamentos sombrios, pensamentos que falavam mais de vingança e sangue do que de tristeza e aceitação. Mais tarde, Breccan serviu-lhe uma caneca de cerveja, obrigou-o a beber e serviu-se a si próprio.

— Tencionas tornar-me insensível para me salvares de mim próprio? — perguntou Niall ao seu amigo eremita sem lhe olhar para os olhos.

— Não, velho amigo. Só pretendo soltar-te a língua um pouco. Meios primitivos, talvez, mas eu também estou cansado e triste. Deus levou-nos o nosso jovem companheiro; Colm, neste momento, está em boas mãos. No entanto, sinto a sua falta e a da rapariga, que sofreu um destino tão terrível às mãos d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. A maldade do homem é muito forte neste lugar; nestas ocasiões, a dúvida assalta-me. Nós conhecemo-nos há muito tempo. Devíamos conversar. É melhor não guardarmos as nossas dúvidas para nós próprios.

— É uma maldição — disse Niall, olhando para a sua cerveja. Não havia qualquer expressão no seu rosto. — Tudo aquilo em que toco se transforma em poeira. É uma maldição que transporto comigo. Pensei que estaria livre dela nestas ilhas, mas parece que não é possível. Pensei que, por inação, poderia cumprir o que prometi, que não provocaria mais danos. Pareceu-me que uma vida contemplativa me ajudaria, mas esta sombra do passado segue-me para onde quer que eu vá; não me posso esconder dela. Que achas? É uma maldição? Nunca tive tempo para estas coisas, sabes isso muito bem. Se tivesse a tua fé, seria muito mais simples. Confiar implicitamente numa divindade de amor e perdão é uma coisa muito cômoda; desse modo, enjeitamos as nossas responsabilidades. Se pudesse, também fazia isso. Mas um homem não pode fingir que tem fé.

— Estes tempos e estas mortes não são fáceis — disse Breccan, solenemente — mesmo para um homem que está consciente da Graça de Deus. Acredita-me, nós somos totalmente responsáveis pelas nossas ações. Pensas que não sinto dor, ou culpa, pelo que ocorreu? Eu vi Creidhe ser raptada. Sou um homem fisicamente capaz, Niall. Imaginas que não pergunto a mim próprio se não poderia ter feito mais do que fiz? Se não a poderia ter salvo? Pensas que não luto com a minha consciência pelo fato de a ter levado daqui, arriscando-me a ser atacado em campo aberto? No entanto, é verdade, na minha dor e incerteza o amor de Deus é uma consolação. Assim como acontece contigo, meu amigo, quer te apercebas, quer não. Tu ainda não te apercebeste do quanto mudaste nestes anos de exílio.

— Estás enganado — disse Niall num murmúrio. — Eu não mudei nada. Aprendi, simplesmente, a controlar-me ainda mais. Sei quais são as soluções, sofro porque não as posso executar, grito internamente: Age, age agora, assume o controle e endireita as coisas. Mas não posso agir. Já mostrei antes aquilo de que sou capaz, o poder que sou capaz de exercer e o que ele pode provocar. Jurei que mudaria de caminho. Não vou quebrar esse juramento.

Os dois homens ficaram uns momentos calados diante da pequena lareira; o jarro de cerveja esvaziou-se lentamente. No exterior, o céu escurecia, transformando-se numa semiescuridão misteriosa, num crepúsculo de Verão, com uma lua cheia no céu, pálida e lustrosa.

— Sabes — observou Breccan — há uma falha no teu argumento.

— Sei — disse Niall.

— O que é que despoleta essa tua maldição? A ação ou a inação? O que é que tu fizeste mal, no fim de contas? Nós não podíamos ter recusado abrigo à rapariga, sabendo o que sabemos acerca de Asgrim. Fui eu que a levei, não tu. Foi Colm que se ofereceu para ir ao acampamento. Não creio que possas considerar-te como culpado deste desastre, Niall.

— Não — disse Niall — talvez não. Mas pergunto a mim próprio por que razão Creidhe e os amigos terão vindo às Ilhas Perdidas!

— Ah. O passado segue-nos. É verdade, o passado não pode ser refeito. Farias bem se te recordasses disso e que te capacitasses de que não és o mesmo homem que deu aqui à costa há alguns anos, nem o mesmo homem que confrontou, um dia, Asgrim com a verdade da sua maldade e que foi afastado por isso. Não esqueço como me recebeste, a mim e ao jovem Colm; como nos deste abrigo apesar do teu desejo de viveres sozinho. Foi a graça de Deus, irmão; e agora também é. Ele tocou-te, mesmo contra a tua vontade.

— Achas? — O tom de Niall era gelado.

— Acho, meu amigo. E agora, chega. Não podemos continuar no passado, salvo se pudermos tirar dele uma lição. Mas podemos, no entanto, influenciar o futuro. Um pouco contra a minha opinião, acredito que é um assunto que não podemos deixar de lado.

Niall olhou para ele de relance, os olhos escuros subitamente alerta.

— Que estás tu a propor? Que façamos de Asgrim um homem de paz?

 

O seu tom de voz era cáustico.

— Não sugiro tanto — disse Breccan suavemente. — Só Deus pode conseguir isso. No entanto, não pretendo deixar que o assassínio de Colm passe sem, pelo menos, expressar o meu ultraje aos seus prováveis perpetradores. Também acho que o rapto de Creidhe deve ser formalmente comunicado a Asgrim, como governador das Ilhas Perdidas; não importa o fato de ele, sem dúvida, já estar ao corrente, o que interessa é que há maneiras certas de fazer as coisas e é chegada a ocasião de lhe lembrar. O rapaz não merecia aquele fim cruel. Creidhe devia ter ficado sob a proteção do governador, não devia ter fugido, assustada. Devemos-lhes isso, pelo menos, acho eu.

— Queres ir ao Fiorde do Conselho, depois do que aconteceu?

— Não acredito que ele queira acabar com nós os três — disse Breccan friamente. — Pensei ir buscar os rapazes amanhã, a caminho de Água Brilhante. Ir com eles. Isso tornará um ataque menos improvável. Que achas?

Niall ficou silencioso. Era o silêncio intenso de um homem que anseia por dizer sim e que luta interiormente por dizer não.

— Além disso — acrescentou Breccan calmamente — devemos isso aos amigos de Creidhe, aqueles dois rapazes, contar-lhes a nossa versão do que aconteceu. Podíamos falar-lhes do tempo que ela passou conosco. Os pequenos pormenores podem ser de grande ajuda, sabes isso muito bem. Devíamos vê-los, tenho a certeza.

Niall olhou para o chão de terra.

— Asgrim não nos vai deixar entrar — disse ele convictamente. — Ele tem medo que influenciemos os homens. Não conseguiremos passar o perímetro do acampamento.

— Ora vamos — disse Breccan — com o teu talento para a tortuosidade, sei que há de arranjar uma solução.

Niall sorriu friamente.

— Isso sei eu — disse ele amargamente. — Mas acho que, aqui, o tortuoso serás tu, irmão.

 

Os dois rapazes não eram particularmente obedientes. Tinham dez ou onze anos, eram bons pescadores e caçadores de aves e tinham as suas próprias regras. Como coletores de comida e transportadores de mensagens tinham ganho alguma reputação na ilha porque, de fato, eram indispensáveis. Quando Niall e Breccan chegaram ao acampamento de Asgrim por volta do meio-dia, levavam os rapazes com eles, tão junto de si que qualquer ato de violência atingiria, também, os rapazes. Além disso, Breccan transportava ao ombro um bom pedaço de carneiro e Niall um queijo de cabra, e os homens de Asgrim tinham fome, mas isso não impediu os dois enormes guardas de lhes impedirem o caminho, apontando-lhes as lanças ao peito.

— Onde pensam que vão? — grunhiu Skapti. — Não pode entrar ninguém no acampamento.

— Especialmente a tua espécie — imitou-o Hogni. — Vocês, rapazes, toca a andar, o governador tem uma mensagem para Gudrun, quer que a leveis imediatamente.

Os rapazes, pagos adiantadamente e com a promessa de que receberiam mais, não se moveram. Niall e Breccan mantiveram-se calados. Aproximaram-se mais alguns homens.

— O que é que vocês querem, no fim de contas? — perguntou Skapti.

— O governador não vos recebe — disse Hogni. — Nada mudou. Não precisamos aqui de pregadores, não temos tempo para isso.

— Estamos aqui para ver os dois homens das Ilhas Brilhantes — disse Niall asperamente. — Thorvald e Sam. Eles estão por aí?

O irmão esperava uma recusa imediata. Nunca tinham sido admitidos no acampamento de Asgrim; até a aldeia de Água Brilhante lhes fora recusada, se bem que isso não os tivesse impedido de aparecer por lá na ausência do governador. Mas, para surpresa de Niall, a menção dos dois jovens pareceu mudar tudo. Um dos guardas olhou para o outro; ambos resmungaram qualquer coisa em voz baixa.

— És capaz de perguntar a Thorvald se me pode receber? — perguntou Niall polidamente. — Eu espero aqui pela resposta dele.

Mais resmungos, no meio dos quais se ouviram os nomes de Asgrim e Thorvald. Não era possível ver qualquer coisa do acampamento, porque os corpos dos dois enormes guardas e dos outros que se tinham aproximado bloqueavam a visão.

— Trazemos uma pequena contribuição para o vosso jantar — disse Breccan — e é pesada. Por favor, levai-a; podeis ficar com ela, quer consigamos o nosso propósito ou não. Tenho a certeza que os preparativos para a guerra abrem o apetite.

— Obrigado — grunhiu Hogni. — Segura aqui. A carne e o queijo foram levados por mãos ansiosas. Eu vou buscar Thorvald e perguntar-lhe o que ele acha. Fiquem aqui e nada de brincadeiras.

— Brincadeiras? — As sobrancelhas de Niall ergueram-se de uma maneira extravagante. — Nem saberia por onde começar.

Skapti ficou com a lança apontada ao coração de Niall. A sua expressão, no entanto, alterara-se.

— Thorvald é vosso amigo? — perguntou ele acanhadamente.

— Não exatamente. Um contato, apenas. Um amigo de um amigo. Ele é bom guerreiro?

— O melhor — disse simplesmente Skapti. — O melhor que por aqui apareceu. Um ótimo líder: duro mas leal, percebes? Inteligente. E não tem medo de arriscar o cabedal. O tipo de chefe que um guerreiro é capaz de seguir até onde for preciso.

Niall não respondeu.

— Interessante — disse Breccan, quebrando o silêncio. — E é um recém-chegado. Isso significa o virar da maré.

— Podes dizê-lo — resmungou Skapti. — Mas não o suficiente para deixarmos entrar uns pregadores no acampamento. Não penseis que, por isso, sois bem-vindos.

— Bem — disse Breccan, sorrindo — a esperança é a última coisa a morrer. E o outro rapaz, Sam?

— Bom rapaz. É bom em barcos. Útil.

— Rezo — disse Breccan, subitamente muito sério — para que ele, tu e os outros todos cheguem ao fim do Verão sãos e salvos, meu amigo. Estes tempos são duros. Deves ter sabido que também nós sofremos uma perda.

— Não tenho nada a ver com isso. — A boca de Skapti fechou-se como uma armadilha e os seus pequenos olhos tornaram-se distantes.

Esperaram algum tempo. O grupo de homens dispersou um pouco e foi possível avistar a baía onde Asgrim tinha a sua cabana e os anexos, os seus barcos e a faixa plana de terreno para os treinos de combate. Havia homens a treinar, disparando flechas para alvos de palha. Niall observou-os. Havia muito barulho: gritos, risos. No entanto, a atividade era disciplinada. Entre eles movia-se um homem de cabelo ruivo, encorajando, fazendo sugestões e demonstrações. Era evidente, pela maneira como os homens paravam para o ouvir, atenta e seriamente, pela maneira como gravitavam à sua volta, pela maneira como olhavam para ver se ele estava a olhar antes de largarem a corda do arco, que era ele o líder. Era evidente pela sua posição: muito direito, descontraído, confiante, mas encontrando tempo para ouvir quando eles tinham algo para lhe dizer, sempre pronto com uma palavra ou um elogio quando eles o mereciam. Niall observou-o intensamente e, subitamente, o jovem virou a cabeça para olhar para o alto da encosta, para o lugar onde eles esperavam. O cabelo era o de Margaret, vermelho-escuro, brilhante e bem penteado. Os olhos escuros, desconfiados, perscrutadores, avaliadores, calculistas, eram um espelho dos seus.

— Tudo bem? — murmurou Breccan nas suas costas.

Niall acenou com a cabeça. Teria de chamar a si todas as suas forças, porque o jovem caminhava agora encosta acima na direção deles com o segundo guarda-costas a seu lado. Nas suas costas, os jogos de guerra continuavam. Não havia sinal de Asgrim.

— Bom dia — disse o homem de cabelos ruivos, parando no carreiro diante deles com uma expressão neutral. As suas feições eram pálidas e intensas, o maxilar firme, a boca de lábios finos. Vestia roupas simples, uma túnica de lã e calças, botas leves de pele e um bom cinto; como líder, parecia ter poucas pretensões. — Hogni disse-me que nos tínheis trazido comida; obrigado pelo presente, os homens estão fartos de peixe. Não permitimos visitantes no acampamento. Pensei que Asgrim tinha tornado isso claro. — O jovem olhou para os dois garotos. — Toca a andar, rapazes — disse ele num tom algo suave. — Ide comer qualquer coisa e depois ide ter com o governador. Ele tem mensagens para vós. — Os rapazes obedeceram instantaneamente, afastando-se sem uma palavra. — Bem — continuou o jovem olhando para os dois eremitas com um olhar penetrante — estou a ver quem sois e pergunto a mim próprio se não terei sido pouco cortês. Mas regras são regras e a caçada aproxima-se. O meu nome é Thorvald. Não vos posso receber no acampamento. Por isso, pergunto-vos aqui a razão da vossa presença. Fizestes uma longa caminhada apenas para entregar um pedaço de carneiro, uma coisa que os rapazes podiam ter feito. Os vossos nomes?

— Eu sou o irmão Breccan e este é o irmão Niall. Trazemos uma mensagem. Queremos dar parte de um assassínio. O nosso companheiro, Colm, foi morto quando vinha para aqui há alguns dias e o seu corpo foi abandonado na encosta.

Thorvald franziu o sobrolho.

— Lamento ouvir isso. Eu respeito os homens da tua religião, temos homens como vós nas nossas ilhas, homens sábios, de conhecimento. É uma coisa lamentável. Mas é a Asgrim que deveis dizer isso, não a mim. Eu sou apenas o chefe de guerra. Não sou governador.

Não, pensou Niall com o coração a bater com toda a força, mas devias ser.

— Nós sabemos isso — disse ele, fazendo algum esforço para falar. — Mas é contigo que queremos falar. Nós demos abrigo à tua amiga, Creidhe, antes de ela ser raptada. Queremos oferecer-vos as nossas condolências. O seu rapto foi um golpe terrível; se houver a menor possibilidade de a resgatar, queremos que saibas que faremos tudo para te ajudar. Creidhe passou alguns dias conosco e nós conversamos um pouco. Há alguns assuntos... — Não era possível continuar. À medida que Niall falava, o jovem guerreiro ia perdendo o controle, o seu rosto pálido ia ficando cada vez mais pálido e os seus olhos traindo uma angústia que acordou em Niall velhas e dolorosas recordações.

— Vejo que ainda não conheces a história toda — disse Thorvald calmamente. — Devo dizer-te que Creidhe está morta. O barco d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz naufragou na Corrente dos Loucos. Disseram-me que foi ela mesma que provocou o naufrágio. Todos os que iam no barco se afogaram. — A sua dignidade era espantosa; o jovem falava com uma cortesia limitada, fazendo um esforço evidente para esconder a sua própria angústia. O coração de Niall gelou ao ouvir a notícia. Habitualmente, sobrepondo o intelecto ao sentimento, diria que a morte fora o melhor que poderia ter acontecido à jovem, tão cheia de vitalidade e calor, do que a que esperaria junto d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. No entanto, o coração tinha, agora, uma palavra a dizer. O golpe fora atroz.

— Lamento — disse Breccan com as feições coradas plenas de tristeza. — Mal consigo acreditar. Uma jovem tão alegre, tão corajosa. Devíamos falar mais acerca disto...

— Eu acho que não — disse Thorvald. — Isso já é passado. A caçada está a chegar, é uma questão de dias, vamos precisar de toda a nossa vontade, de toda a nossa energia. De que vale falar do que já aconteceu? Só provocaria inquietação e minaria a nossa confiança. Estás a pensar em rezar pelos outros que também morreram? As orações não mudam nada. Nós temos uma tarefa pela frente e as nossas mentes devem estar concentradas nela, unicamente.

Niall sentia o quanto aquele discurso estava a custar ao rapaz; os nós dos dedos de Thorvald estavam brancos, se bem que a sua voz parecesse tranquila.

— Nós já rezámos as nossas orações — disse Breccan. — Estávamos mais a pensar nalguns conselhos. Conselhos e informações.

— Thorvald? — disse Skapti em voz tensa. — O governador vem aí.

Era verdade: Asgrim aproximava-se do carreiro com as suas escuras feições carregadas.

— Sim — disse Thorvald de modo ausente. — Sim, obrigado. Conselhos? Que espécie de conselhos pode um monge dar a um soldado? Pedir perdão aos deuses no momento em que uma lança o atinge no coração? — O seu tom era gelado, demasiado gelado para um rapaz, mas Niall percebeu a centelha de interesse nos seus olhos.

— Não nos mandes embora — disse Niall num sussurro. — Nós podemos ajudar-te. É provável que estejas em perigo, mais perigo do que imaginas.

E foi nesse preciso momento que Asgrim chegou até junto deles, de feições severas e de faca na mão.

— Skapti! Hogni! — disse ele, asperamente, e os dois guardas puseram-se um de cada lado dos eremitas, de armas prontas. — Eu trato disto, Thorvald — continuou o governador suavemente. — Eu conheço estes homens; eles são uns intrometidos e só arranjam sarilhos, por mais presentes que tragam. Não têm nada de valor para nós. Vou mandar escoltá-los para fora daqui. Vai, filho; os homens precisam de ti.

O olhar de Thorvald continuava intensamente fixo no irmão Niall; havia uma pergunta nele.

— Estes homens vêm dar conta de um assassínio — disse ele — e também de qualquer coisa acerca de Creidhe. Acho que devíamos ouvi-los, intrometidos ou não. Não podemos deixar de ouvir o que eles têm para dizer...

As sobrancelhas de Asgrim franziram-se.

— Um assassínio, dizes tu? Que infelicidade. Muito bem, ouvi-los-ei em privado nos meus alojamentos. Se houver alguma coisa que te diga respeito, dir-te-ei depois. Parece-me justo. E agora vai, Einar está a chamar-te. Parece que não podem passar sem ti.

Thorvald manteve-se firme.

— Gostaria de falar pessoalmente com estes homens — disse ele. O pequeno sorriso de Asgrim não lhe chegava aos olhos.

— Isto não tem nada a ver com o papel que desempenhas aqui, Thorvald. Eu trato do assunto. Talvez mais tarde tenhas a tua oportunidade. Espero que compreendas o que te estou a dizer.

Por um momento, Thorvald olhou-o nos olhos, imóvel. Então, disse:

— Muito bem. — E virou-se, regressando para junto dos homens.

— Hogni, Skapti — a voz do governador era áspera — levem estes dois para os meus alojamentos. E ficai de guarda cá fora. Eles não podem falar com ninguém e ninguém pode falar com eles. Compreendido?

— Sim, meu senhor.

Mas quando chegaram à cabana de Asgrim, não foi o que aconteceu. Breccan foi levado para a antecâmara, onde se sentou tranquilamente num banco, ao mesmo tempo que Skapti pairava à entrada, encostado à sua lança. Hogni empurrou Niall para a câmara interior e o governador seguiu-o. Hogni saiu; a porta foi firmemente fechada. Parecia que a audiência ia ser privada.

— Muito bem. — A voz de Asgrim tinha o tom afável de um anfitrião; os seus olhos eram venenosos. — Aqui estás tu no nosso acampamento, em desafio total às minhas ordens para que ficasses longe de qualquer aldeia ou aglomerado populacional do povo dos Facas Longas. Nunca achei que fosse louco, irmão. No entanto, parece-me um ato da maior estupidez. Tu viste as forças que temos aqui; estão todos extremamente bem armados e as ordens que têm não incluem ser amáveis com sacerdotes. Oh, tenho a certeza que tens uma arma contigo, algures, não tem sido sempre assim? Pensei em pedir aos meus guardas que te revistassem, mas decidi que não. Um ferimento pode ser uma coisa complicada. Além disso, não acredito que estejas aqui como assassino; não juraste permanecer de fora dos assuntos dos homens? Um voto de inação? Não, eu acho que vieste aqui em busca de informações. Infelizmente, não tenho nenhuma para te dar. Vocês os dois vão-se embora, imediatamente, e não voltarão a aproximar-se deste local, ou dos meus homens. Estamos entendidos?

Seguiu-se um breve silêncio. Niall manteve-se direito e fixou os olhos de Asgrim. Os seus dedos tocaram no ferro frio por baixo do hábito; era capaz de matar, bastava-lhe querer. Fora mais bem ensinado do que alguma vez Asgrim imaginaria.

— A morte do rapaz — disse ele em tom neutro. — Colm. O rapaz estava com Breccan desde a infância. Ele estava de fora disto tudo, era um inocente. Tu não podes culpar Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz da morte dele; qual é a tua razão para teres feito aquilo? Porque o trabalho tem a tua marca, Asgrim. Colm foi calado. Sabes do que estou a falar. Que plano foi esse, uma combinação com o teu inimigo, para poderes atravessar outro ano sem perdas inúteis? Era isso que tinhas em mente quando a rapariga chegou aqui com os seus cabelos dourados? Aposto que os teus homens foram logo ter contigo. Viram a oportunidade, tal como tu. Outra oportunidade. Tu falhaste a primeira; o teu filho tratou disso. Com doze anos era mais homem do que tu nunca serás. Perdeste essa oportunidade. Mas, agora, havia outra rapariga, uma que tu tinhas a certeza de poder utilizar.

— Que se passa, Niall? — perguntou-lhe Asgrim com ar cansado. — Que esperas conseguir com isto? Persuadir o povo dos Facas Longas de que as suas esperanças estão numa caçada após outra, Verão após Verão, mutilações sangrentas após mutilações sangrentas? Essa situação não leva a lugar nenhum.

— E assim — continuou Niall, como se o governador não tivesse falado — afastaste os companheiros dela o mais rapidamente que pudeste, confinaste-a à aldeia com Gudrun como cão de guarda e iniciaste negociações. Infelizmente, parece que a rapariga era mais corajosa do que tu pensavas e o resultado foi a morte e mais um falhanço teu. Demonstraste a tua incapacidade mais uma vez, sem contar com a caçada, o exercício mais fútil que eu alguma vez vi.

— Não há um único homem da minha tribo que não me apoie nisto — disse Asgrim. — E tu sabes que é assim. Estás aqui há tempo suficiente para saber como as coisas funcionam. Tentares confrontar-me com qualquer sentimento de culpa da minha parte é pura perda de tempo. Não nego o que acabas de afirmar. Nós, aqui, fazemos o que é preciso para sobreviver. Algumas ações podem parecer cruéis, mas são para o bem comum.

— Até agora, o teu recorde prova o contrário.

— Achas que eras capaz de fazer melhor? — A voz de Asgrim tinha, agora, um tom nervoso; dos dois homens, quem se mantinha calmo e controlado era o outro.

— Sei que era. Disse-o na última vez, quando era a vida da tua própria filha que estava em questão.

— Ah! Um mongezinho cuja existência se baseia em observar enquanto os outros fazem o trabalho árduo e tomam as decisões difíceis? Eu sei tudo acerca de ti, Niall. Sei mais acerca de ti do que outra pessoa qualquer nestas ilhas. Recordo-me do dia em que aqui chegaste.

— Também eu. Talvez não tenhamos mudado muito desde então. As boas-vindas, se bem me lembro, não foram nada calorosas.

— Tu não eras, então, um monge e duvido que isso se tenha alterado nestes anos todos. Não precisas de me dizer por que razão estás aqui hoje, eu sei qual é. Queres ver o rapaz, Thorvald. Falar-lhe de mim, da minha maldade, das minhas ações malditas; persuadi-lo a não me ajudar. É isso?

— Ele e o amigo merecem a verdade. Imagino que se devem sentir culpados pela morte da rapariga.

— Culpa, culpa, todos temos culpa, faz parte da existência do homem. No caso de Thorvald e de Sam, está a resultar, a julgar pela agressividade deles. Não podes vê-los. Thorvald está ocupado. O rapaz provou ser muito útil. Com ele a comandar, temos hipótese este Verão, uma boa hipótese. Preciso dele na caçada. Não podes falar com ele.

— Estou a ver. — Niall cruzou os braços. — Isso interessa-me, Asgrim. Salta à vista que o rapaz é competente; os teus homens seguem-no com grande dedicação e eu detecto uma nova esperança na sua maneira de andar e no seu comportamento. Mas há algo de estranho em tudo isto. Creidhe disse-me que os amigos dela só estavam aqui no acampamento para ganhar a madeira de que necessitam. Já percebi, claro, que os retiveste aqui até conseguires o teu infeliz acordo com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. E agora, Creidhe está morta, mas tens, nada mais nada menos, do que Thorvald como comandante do teu exército e tudo pronto para pores a vida dele em risco noutra guerra. Ora, por que razão havia um jovem inteligente de fazer isso?

Asgrim sorriu levemente.

— Porque pensa que eu sou o pai dele — disse ele suavemente. — Finalmente, consegui uma coisa nunca antes conseguida: reduzi-te ao silêncio. Dói-te? A sua capacidade, a sua dedicação, toda a sua energia de jovem virada para a minha causa; ganhei tudo isso à custa da sua crença de que, finalmente, encontrou o homem que o abandonou, antes de ele ter nascido. Foi o que ele veio aqui procurar e foi o que conseguiu em troca da morte da sua amiga. Neste momento, só pensa em provar que é merecedor da minha confiança. Acredita que, se provar ser bom, haverá, no fim, uma espécie de reconhecimento. Um abraço, talvez, ao mesmo tempo que uma promessa de poder futuro.

— Não lhe disseste a verdade? — Niall podia ouvir a sua própria voz a tremer. De repente, sentiu um frio mortal.

— É claro que não. Ele é inestimável. Já te disse. Um ótimo chefe de guerra, um genuíno ponto de referência para os meus homens. É evidente que não lhe ia dizer.

— E depois da caçada?

Asgrim não respondeu. O governador começou a brincar com uma caneca de cerveja vazia que estava em cima da mesa, evitando olhar para o outro homem.

— Responde, Asgrim. E depois da caçada?

— Bem, bem, meu velho adversário, toquei num nervo sensível, não toquei? E não é preciso muito para perceber. Na verdade, é tudo muito simples: deste asilo à rapariga, enviaste o rapaz para avisar Thorvald, a tua estúpida viagem até aqui, hoje... Quem diria que um homem tão inteligente como tu havia de ter coração? Mal consigo acreditar. Depois da caçada, ele vai para casa, claro. Ou não, conforme as circunstâncias.

Niall cerrou os punhos para se obrigar a manter imóvel. Em tempos, não teria tido necessidade de uma ajuda tão primitiva. Era perito nesse jogo. Não podia ter mudado tanto.

— Ou não? — perguntou ele de sobrancelhas erguidas. — Não te podes dar ao luxo de o deixar ficar, penso eu.

— Bem, não — disse Asgrim. — O valor dele dura, precisamente, até ao momento em que acabar a caçada. Depois disso, vai, de uma maneira ou de outra.

Niall respirou fundo e deixou sair lentamente o ar.

— Deixa-me levá-lo — disse ele calmamente. — Por favor. — Asgrim riu de troça.

— Por todos os deuses. O excepcional, o impenetrável irmão Niall a pedir? Nunca pensei ver esse dia. Mas, é claro que não podes falar com ele. Penso que já enumerei, pelo menos, três razões para isso. Um homem não deve ter filhos se, depois, tenciona virar-lhes as costas, não achas?

Niall olhou para ele friamente.

— E tu percebes disso, evidentemente — disse ele.

— Tento na língua! Tu não estás em posição de me julgar. Além disso, posso lembrar-te que estás nos meus alojamentos, com guardas armados por trás da porta? Vou-te dizer o que vai acontecer. Tu e o teu companheiro vão sair daqui rapidamente enquanto as minhas forças estão na falésia, a sul, a praticar com cordas e pesos. Ides direto para casa e ides ficar longe daqui e de Água Brilhante até a caçada estar acabada.

— Eu não estou sujeito às tuas leis, Asgrim — disse Niall calmamente. — Tornei isso bem claro no dia em que pus os pés nesta ilha. Então, já não te tinha em boa conta e os anos não fizeram nada para melhorar a minha opinião.

— Mesmo assim, farás o que eu disse. Se não, terás de enterrar em breve outro companheiro. Então, será como quando vieste para aqui: terás uma vida muito solitária. Se o aviso não te chega, podes ter a certeza de que a tua desobediência não contribuirá em nada para o futuro de Thorvald. Os acidentes acontecem com frequência entre os guerreiros. E agora vai e mantém a boca fechada. Estamos entendidos? — O olhar de Asgrim era duro e a sua boca estava tensa. Niall aprendera, há muito, a ler o rosto daquele homem, o seu comportamento e os seus gestos. Por baixo da máscara de autoridade, o monge reconheceu o medo.

— Estamos. Farei como mandas, por agora. Mas é possível que aches outros menos obedientes, Asgrim. Sinto aqui uma mudança e acho que tu também sentes. Terão os teus homens descoberto a esperança? Eles não vão renunciar a ela só porque tu queres.

— Estás a dizer disparates. Sempre disseste. Já não tenho paciência. Os meus guardas vão escoltar-te até ao alto da encosta. Despacha-te e dá-te por feliz por eu te deixar ir.

— A tua hospitalidade, como sempre, não tem igual — disse Niall suavemente enquanto Asgrim abria a porta e passavam à antecâmara. Breccan continuava sentado, calmo e calado e com a cruz de madeira nas mãos. O monge estivera a murmurar algumas orações, talvez, e os guardas tinham estado a ouvir. As armas tinham sido postas de lado; os dois homens pegaram nelas assim que Asgrim apareceu.

— Levem-nos ao alto da encosta — ordenou o governador — e certifiquem-se de que não voltam.

Os homens tinham saído do campo de treino; agora, estavam a escalar a falésia no outro extremo da baía. Podiam ser vistos claramente do carreiro da encosta, organizados em equipes de quatro, um em cada extremo da corda por razões de segurança e outros subindo ou descendo, uma dança de força e destreza. Da praia, o homem de cabelos ruivos observava-os, uma figura direita, de ombros quadrados, nas suas simples roupas de guerreiro, de costas para o abrigo e para o carreiro por onde Niall e Breccan trepavam. Ninguém reparou na partida dos eremitas. Os homens estavam concentrados na instrução, preocupados em fazer tudo certo e Thorvald tinha toda a sua atenção focalizada nos seus homens, sem dúvida elogiando os seus progressos e corrigindo as suas fraquezas. Era evidente que era um líder nato.

Os monges atingiram o alto da encosta.

— Pronto — disse Breccan aos guardas. — Chegámos; daqui, vamos direto para casa.

— E nada de voltar para trás — avisou-o Hogni. Ele estava a falar a sério.

— Nós sabemos quando não somos desejados. — A voz de Breccan era calma. — Rezarei por vós.

— Não é preciso — resmungou Hogni.

— Mesmo assim — disse Breccan. — Bem, vamos embora. Espero que gostem do carneiro.

Niall fizera o caminho todo calado. Não se preocupava com a sua segurança; dava pouco valor à sua vida e, de fato, só continuava vivo devido a uma promessa. Mas o bem-estar dos outros era outra questão. Aqueles enormes guerreiros podiam ser o instrumento de um castigo que Asgrim tencionasse infligir-lhes por desobediência. No entanto, vira a maneira como eles falavam com o jovem líder, a expressão nos seus rostos ao olharem para ele.

— Diz a Thorvald para ter cuidado — disse ele em voz baixa. — Tem de ter muito cuidado. Diz-lhe que lamento muito não termos podido conversar um pouco.

— Não entrego mensagem nenhuma — grunhiu Skapti e com aquelas últimas palavras os dois guarda-costas viraram as costas e regressaram ao acampamento.

— Para casa — disse Breccan com firmeza. — A vaca precisa de ser mugida, as galinhas precisam de ser alimentadas e eu preciso de alguma meditação, um bom jantar e ir para cama cedo. Vamos. O caminho ainda é longo para dois homens que já ultrapassaram a juventude.

Niall não respondeu. O monge estava a olhar para o acampamento.

— É um belo rapaz — comentou Breccan. — Um filho de que qualquer pai se orgulharia. Parece ter uma grande força interior, apesar do que lhe caiu em cima.

— Sim — disse Niall. — Tem a força que falta ao pai. É como se o meu coração tivesse sido espetado num pau e colocado ao lume. Como é possível um homem afastar-se numa altura destas e não tentar intervir? No entanto, fazer qualquer coisa seria provocar ainda mais estragos. Mal consigo aguentar: Creidhe morta, aquela rapariga tão corajosa, e o rapaz à mercê de Asgrim... Eu devia voltar para trás. Devia confrontá-lo. Mas não posso. Que me deu para me atar, assim, a uma promessa?

— Tempo — disse Breccan, colocando uma mão no ombro do outro homem. — Dá a ti próprio algum tempo. Não fales de espetos e lume. Só agora é que descobriste que tens um coração. Deixa-o bater um pouco.

Os dois monges começaram a atravessar as encostas mais baixas, onde a erva e algumas flores pálidas eram comidas por ovelhas esguias e de pêlo comprido. Durante algum tempo, caminharam em silêncio. Finalmente, Niall disse:

— Há uma resposta para isto, eu sei que há. Uma resposta que está para além da compreensão de Asgrim. E pressinto que não reside numa oração.

 

           Em tempos de trevas, o homem simples pede luz.

           Em tempos de confusão, pede clareza.

           Eu, simplesmente, peço que alguém ouça.

                                         NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

— Não podíamos estar mais prontos — disse Thorvald, observando as pequenas ondas que morriam a seus pés. — E ainda bem. Dizem que faltam poucos dias.

Sam acenou com a cabeça.

— Knut diz que se percebe pela água. Uma calmaria. Ainda não é seguro, mas dentro de alguns dias será possível. Não que seja fácil, seja em que circunstâncias for, passar a Corrente dos Loucos. Mas teremos hipótese de regressar inteiros se fizermos as coisas como deve ser. Não gostava nada de ficar lá.

— Amanhã levamos os barcos para a Baía Pequena — disse Thorvald. — Disseram que ainda há algumas cabanas velhas. Podemos acampar na praia até o mar nos deixar atravessar até à Ilha das Nuvens. Temos de estar prontos; prontos para partir de madrugada quando chegar o dia crítico.

Sam olhou para ele.

— Estás excitado, não estás? — perguntou ele friamente.

— Não, Sam, não estou excitado. Estou, simplesmente, a fazer o que um líder deve fazer: antecipar o que pode acontecer, assegurando-me de que está tudo pronto.

— Um líder. Sim, tornaste-te num desses, não tornaste? Tal como o teu pai. Não me surpreende. Tu preocupas-me, Thorvald. Que vai acontecer quando isto tudo acabar?

Thorvald cruzou os braços e olhou de lado para o amigo. Sam estava igual a si mesmo, sério, honesto, confuso. Era um alívio depois da máscara agressiva que usara após terem sabido da morte de Creidhe.

— Pensei que querias participar na caçada — disse Thorvald. — Há alguns dias atrás, ninguém te teria impedido. Que aconteceu ao teu grande desejo de vingança? — Sam não respondeu. O jovem começou a caminhar ao longo da praia, afundando as botas na areia escura. Thorvald caminhava a seu lado. A luz estava a diminuir e as aves gritavam por cima, voando a caminho dos seus abrigos sob um céu cor de violeta. Thorvald manteve um tom de voz ligeiro —, por que não me dizes qualquer coisa?

— Está bem. — A voz de Sam era áspera. — Regressamos vitoriosos, para que os problemas de Asgrim se resolvam. Ele agradece-te e oferece-se para carregar o Sea Dove com provisões. Dizemos adeus e vamos para casa. Damos a notícia da morte de Creidhe à família dela e fazemos de Eyvind um inimigo para o resto das nossas vidas. Em seguida, continuamos a partir do ponto onde tínhamos ficado. Que te parece?

— Parece-me que faz sentido, como sempre da tua parte, Sam, é o que me parece.

— A pergunta é: E tu, ficas feliz? Depois disto? — Thorvald não conseguiu evitar uma risada amarga.

— Feliz? Quando é que eu alguma vez fui feliz?

Os dois jovens caminharam em silêncio durante alguns momentos, passando pelas formas sombrias dos pequenos barcos encalhados na praia e pelo vulto maior do Sea Dove. O casco parecia perfeito; mal se via o lugar onde começava e acabava o remendo.

— Como podes dizer isso? — perguntou subitamente Sam. — Como se a morte de Creidhe não mudasse nada, como se nada na tua longa e pessoal história de injustiça e miséria tivesse mudado? Isso é um disparate, Thorvald. Devias esquecer isso tudo e fazer o que tens de fazer. Pelo menos, é a minha opinião.

Thorvald ficou chocado, por momentos e não disse nada. Finalmente, disse:

— Pensei que era o que estava a fazer. Não podes negar que me tenho mantido ocupado.

— Não é isso que eu queria dizer — resmungou Sam. — Acontece que não és o único a sentir-se mal. Quando ela morreu, foi como se a luz tivesse desaparecido. Não espero que compreendas; tu tens a cabeça cheia de esquemas e estratégias, coisas que estão para além de tipos normais como eu.

Seguiu-se uma pausa; os dois jovens estavam nas rochas, no extremo da baía, por baixo da falésia onde tinham testado as perigosas subidas e descidas.

— Estás a dizer — perguntou Thorvald — que eu não quero saber de mais nada senão desta oportunidade para provar o meu valor, para comandar e vencer por Asgrim? Eu ter-me-ia ido embora; eu disse-lhe isso. Disse-o a todos. Tu ouviste-me.

Sam não respondeu.

— Não me posso dar ao luxo de ser fraco, Sam. Eles confiam em mim; tudo depende de mim. As coisas aconteceram, simplesmente, não fui eu que as fui procurar. Agora, parece-me que não há outra hipótese se não continuar. Mas...

— Mas o quê? — grunhiu Sam, nitidamente pouco convencido. A voz de Thorvald era um murmúrio.

— Tu achas que a morte de Creidhe não representou nada para mim. Pelo menos, foi o que eu percebi. Sam, eu nunca pensei que me doesse tanto. Foi como se... se me tivessem cortado um braço, como se me tivessem furado um olho. Depois disto, nunca mais serei o mesmo. Estás a ouvir? E agora deixa-me em paz, tenho uma batalha para ganhar e não posso pensar em mais nada.

Sam ficou onde estava. O jovem manteve-se de pé nas rochas, sólido, firme. Thorvald olhava para o mar; à luz difusa do crepúsculo, podiam ver as vagas a esmagarem-se, brancas, no recife.

— Desculpa — disse Sam em voz baixa. Thorvald respirou fundo.

— Não — disse ele. — Eu é que devo pedir desculpa e também agradecer-te. Tu deste o teu tempo e a tua energia ao teu barco, ao passo que eu tenho andado de tal modo envolvido que mal te tenho falado. Tu és um verdadeiro amigo, Sam. Não sei como me aguentas. Eu tenho de seguir em frente. Espero que compreendas isso.

Sam acenou com a cabeça.

— Pelo teu pai, sim. E por Creidhe.

— E por mim. Não posso fazer outra coisa. Quanto a depois, vamos para casa, claro. Que outra coisa havíamos de fazer? Espero que o teu ajudante continue à espera em Stensakir.

— Quanto a isso — disse Sam — tenho um voluntário ansioso por descobrir um lar novo longe de tudo isto e por um trabalho honesto: o jovem Knut. Mas tudo a seu tempo. Temos uma batalha pela frente. Aliás, duas batalhas; uma com a tribo da Ilha das Nuvens e outra com o mar e eu não sei qual delas prefiro.

— Tens medo? — perguntou Thorvald.

— Do mar não; vai ser duro, mas tenho a certeza de que o Sea Dove se aguenta. Quanto ao combate, a conversa é outra. E tu?

Thorvald pensou naquilo.

— Não tenho medo da caçada — disse ele lentamente. — E acho que também não tenho medo de morrer; a minha vida não tem sido uma coisa maravilhosa, no fim de contas. Mas o pensamento de falhar aterroriza-me, Sam. Desta vez não podemos perder. Tenho de fazer o impossível para que os homens consigam. Tenho de resgatar Máscara-de-Raposa. É a única coisa que interessa: capturar o vidente e conseguir a paz para este povo. É essa a minha missão. Só depois de a ter levado a cabo é que posso pensar em regressar.

 

Pairava uma bruma baixa sobre a Ilha das Nuvens, escondendo a paisagem, as rochas úmidas, os arbustos e a erva. A umidade não impediu Guardião de pescar; o jovem saiu cedo, assim que o céu começou a clarear e regressou a pingar com uma fiada de peixes no cordel. Pequenino também saíra, sob a sua forma de cão; agora, sacudia-se vigorosamente, espalhando gotas de água em todas as direções, no interior da pequena cabana.

Guardião pousou os peixes, pegou num saco e esfregou os cabelos emaranhados, que lhe ficaram espetados no alto da cabeça, numa confusão total. As suas roupas fumegavam ao calor da lareira que Creidhe espevitara.

— Só mais alguns dias — observou ele. — Três, quatro, talvez. Quando o céu clarear, mostro-te onde te podes esconder, tu e Pequenino, para quando eles vierem.

— Oh — disse Creidhe. Aquilo era real; não podia fingir que não ia acontecer. — Não posso ficar aqui, então?

Guardião olhou para ela com olhos sombrios.

— Aqui não é seguro — disse ele. — Demasiado aberto, fácil de encontrar. Vou levar-te para outro lugar. Terás de ficar lá. Eles vão permanecer dois dias na ilha; durante a noite, ficam nos barcos, ao largo. Durante esse tempo, não posso ir ter contigo. Tens de ficar escondida e calada. É sempre muito difícil para Pequenino. Desta vez vai ser melhor por tu estares aqui.

— Oh. — Parecia não haver mais nada a dizer. A jovem imaginou a criança confinada, muda e cheia de medo, escondida num lugar qualquer, completamente só. Esperando o regresso do irmão e receando que ele não regresse de todo.

— O que é? — perguntou Guardião, acocorando-se ao lado da jovem e começando a preparar o peixe. — Tens medo? Se ficares escondida, não há problema. Pequenino porta-se bem. Eu ensinei-o a comportar-se como deve ser. Não vos deixaria sós durante tanto tempo, mas não tenho outra hipótese. Não posso permitir que eles o apanhem. Ou a ti, Creidhe.

Ela acenou com a cabeça, sentindo a inevitabilidade daquilo tudo, aquele sentimento esmagador de desgraça que não conseguia afastar por mais que tentasse.

— Eu faço isso. Tu já os apanhaste — disse ela, porque não havia dúvida de que uma atividade prática, como cozinhar, era uma grande ajuda em momentos de dúvida.

— Como queiras. — Ele passou-lhe a faca e ficou a observá-la enquanto a jovem limpava o peixe com as suas mãos pequenas e experientes. Quando ela olhou para cima, viu que ele estava a sorrir, um sorriso de uma doçura de tal modo desarmante, que lhe fez acelerar o coração.

— O que é? — perguntou ela. — O que é que se passa? Achas que não sou capaz de fazer uma coisa de todos os dias? Faço isso todos os dias, em casa.

Guardião acenou com a cabeça; o sorriso desaparecera, mas o jovem continuava a olhar para ela.

— Pensei que tivesses pessoas para te servir — disse ele acanhadamente.

— Tenho, suponho — disse Creidhe — se lhes pedir. Nós temos muitos homens e mulheres a trabalhar na nossa casa. Mas eu gosto de cozinhar, assim como gosto de tecer, bordar e ensinar crianças. Faço esses trabalhos porque acho que são importantes; porque acho que são uma alegria.

Guardião acenou com a cabeça.

— Vê-se que tens essas tarefas no coração — disse ele. Creidhe sentiu as faces corarem, aquecendo-lhe, de certo modo, a alma. Era desconcertante ouvir aquele rapaz feroz traduzir em palavras os seus pensamentos mais íntimos.

— Sim — disse ela, cortando o peixe em pequenos bocados. — Este gênero de trabalho une as pessoas; dá-lhes algo a que se agarrarem; transforma as pequenas coisas num todo. Tal como uma boa sopa, para a qual contribuem o mar, a horta e os campos e nós juntamos tudo com mãos carinhosas, fazendo algo de novo e partilhando-o com aqueles de quem gostamos. Ou uma canção. — A jovem olhou para Pequenino, que estava sentado, envolto num cobertor, junto da lareira. — A melodia dele vem da terra, do ar e do fogo; das profundezas do mar, da Lua e das estrelas. É um grande dom, maior do que qualquer outro. Ele abre as nossas mentes às vozes das coisas antigas. Nunca pensei ouvir semelhante coisa da parte de uma criança.

O silêncio caiu entre os dois. Creidhe colocou o peixe na frigideira com uma colherada de óleo de foca que ele tinha dentro de um jarro e colocou-a nas brasas, a um dos cantos da lareira.

— Tens de tomar o pequeno-almoço — observou ela, estudando as feições magras de Guardião, a sua palidez, as suas olheiras. Por momentos, ele sorrira; mas a caçada estava próxima. A jovem nem queria acreditar no que ele ia fazer. Pequenino também. Gostava de o ver engordar mais um pouco. Se eu estivesse em casa dar-lhe-ia queijo, papas de aveia e vegetais.

Guardião não respondeu. O lume cuspiu e crepitou quando algumas gotas de chuva caíram pelo buraco aberto no teto. No exterior da cabana, a bruma estava tão próxima que não se via absolutamente nada. Num dia como aquele, a Ilha das Nuvens, com o seu solo íngreme, as suas falésias e fendas, era um lugar onde só um louco andaria à solta.

— Eu não pretendo criticar-te Guardião — disse Creidhe. — Eu sei que tu não lhe podes dar esse tipo de comida.

— Ele está magro. Fraco. Eu sei.

— Mas é saudável. Não podes fazer mais nada.

— Por vezes, os barcos deles trazem provisões — disse Guardião. — Pão, carne, queijo. Essas coisas podem ser roubadas. Se puder, fá-lo-ei.

— Oh, não faças — disse Creidhe apressadamente. — Não te arrisques demasiado, por favor...

Ele olhou para ela de muito perto.

— É o que eu faço — disse-lhe ele, algo confuso.

— Ficaria muito infeliz — explicou Creidhe cuidadosamente — se corresses ainda mais perigo só porque eu disse que Pequenino precisava de comer melhor. Se o fizeres, ainda ficarei mais preocupada. Por favor, tem cuidado.

— Não devias ter medo. Não ficarás com ele a cargo, sozinha. Eu já fiz isto cinco vezes; tornei-me especialista.

— Não é a perspectiva de ter de tomar conta de Pequenino que me preocupa. És tu. Já pensaste que podes ficar ferido, que podes ser capturado, ou morto? Já me falaste em acidentes, de doenças; é evidente que já pensaste nessas possibilidades. Isso é muito mais perigoso. Arriscas-te muito mais.

— Penso nisso, sim. Mas só antes. Assim que a coisa começa não fica espaço na minha cabeça para essas preocupações. Eles não me matam. Isto segue um padrão, ano após ano e eu conheço o padrão. Estou pronto para tudo o que eles possam fazer.

Ela não disse nada, limitando-se a estender a mão e a enroscar os dedos nos dele. Um momento depois, a outra mão dele pousou na dela. Creidhe sentiu um arrepio; o coração bateu-lhe com mais força.

— Eu não tenho importância, salvo como guardião dele — disse Guardião. — Só ele é importante, a sua segurança, o seu bem-estar. E, agora, também o teu. — O jovem disse aquilo com toda a simplicidade. Ao mesmo tempo, o seu polegar acariciou o pulso dela, hesitante, suave, como se lhe estivesse a enviar uma mensagem, para a qual não tinha palavras.

— Acontece — disse Creidhe, sentindo dificuldade em manter a voz calma — que tu podes dizer que não tem importância. Mas não podes impedir que as outras pessoas se preocupem contigo, não apenas porque dependem de ti, mas também porque significas qualquer coisa para elas. Pequenino gosta de ti, tu és a família dele; tu és o mundo dele, Guardião. Ele não te vê como um simples Guardião e abastecedor de comida. Para ele, tu és o pai, a mãe, o irmão e o melhor amigo.

— E tu? — sussurrou ele.

— Não sei. — A voz de Creidhe continuava, também, um sussurro. — No fim de contas, só aqui estou há alguns dias... — No entanto, algures, no interior do seu espírito, estava uma verdade que ela temia reconhecer, uma verdade que tinha a ver com Thorvald, com os laços que existiam entre os seus pais, ainda poderosos e verdadeiros após tantos anos e muito a ver com a aceitação de que a rapariga que deixara as Ilhas Brilhantes para ajudar um amigo tinha desaparecido, substituída por uma mulher com necessidades totalmente diferentes e expectativas totalmente diferentes. Como era possível ter mudado tanto tão depressa?

— Não devia ter falado nisto — disse Guardião firmemente, retirando a mão. — Estou há muito tempo afastado das pessoas. Desculpa se me esqueci de me comportar como deve ser. É claro que não queres estar aqui. É evidente que preferias estar em casa junto do teu pai, o guerreiro de cabelos dourados; com a tua mãe, a sacerdotisa. Com as tuas irmãs e os teus companheiros. Lá, tinhas tudo; aqui, não tens nada. Desculpa as minhas palavras precipitadas.

Creidhe sentiu de novo um arrepio, um frio provocado por algo que estava para vir. Durante todos aqueles anos em que tomara conta daquela criança, apercebeu-se ela, Guardião nunca se considerara outra coisa senão o guardião de Pequenino. A promessa que fizera a Sula era toda a sua existência. E agora, depois de tanto tempo, as coisas tinham mudado. Ela mudara-as; perturbara o equilíbrio da vida dele. Que lhe podia dizer? Que o seu desejo de ficar ali era mais forte, mais feroz, mais irresistível do que tudo o que sentira antes? Como lhe havia de dizer aquilo por meio de palavras? Quais seriam as palavras adequadas para explicar o turbilhão que lhe ia no coração e as ondas de calor que lhe invadiam a carne? Era ridículo; uma rapariga prática, a espécie de rapariga que nunca se esquecia de levar consigo uma faca, uma pederneira e um pente quando ia de viagem, não podia permitir que aqueles sentimentos se sobrepusessem ao sentido prático.

Guardião levantou-se e dirigiu-se para a entrada, onde ficou a olhar para a bruma matinal. Era como se toda a ilha estivesse a chorar.

— Podia dizer-te muitas coisas. — Creidhe conseguiu encontrar a voz, se bem que lhe faltassem as palavras. — Tantas, que um só dia não bastava para as dizer todas; nem uma noite. Não vou lhe dizer esta manhã. Depois da caçada, talvez tenha tempo e possa começar. Por agora, só quero dizer uma coisa. Não me parece que faça diferença o fato de eu ter aparecido aqui, que não pertenço a esta ilha, que só te conheço a ti e a Pequenino há pouco tempo. O senso comum não é para aqui chamado. Eu senti o chamamento desta ilha muito antes de ter posto os pés pela primeira vez em Água Brilhante, um chamamento antigo e poderoso, para além de tudo o que tu possas imaginar. Algo me trouxe aqui. E quero dizer-te que, enquanto durar a caçada, ter-te-ei no meu coração todos os momentos. O meu medo por ti não é por seres guardião e garantia de sobrevivência, mas por seres um homem que eu admiro muito, um homem de coragem incrível, de grande força e bondade. Nunca conheci ninguém como tu. Por isso, a tua dor é a minha dor. Se morreres, será... mudará a minha vida para sempre, Guardião. Deixarei de ser quem sou. É tudo o que te posso dizer por agora. — A voz da jovem vacilou; a jovem fez um grande esforço para se dominar. — E este peixe parece que já está cozinhado. Devíamos comer; é melhor seguirmos a rotina diária, mesmo em tempos como este.

Mais tarde, a bruma desvaneceu-se e Guardião levou-a por uma vereda que ele parecia conhecer, mas que, para Creidhe, era invisível. Pequenino seguia-os numa correria permanente; quase era preferível que se mantivesse permanentemente sob aquela forma, porque como criança, era muito menos auto-suficiente. No entanto, Creidhe estava consciente de que ele era humano, um rapaz de seis anos de idade, nascido de uma mãe muito jovem e indubitavelmente humana. A transformação era uma espécie de disfarce que, por vezes, provava ser conveniente, mas mais nada. Não se podia pedir a Pequenino que assumisse uma forma ou outra. Naquilo, ele era o seu próprio dono e senhor.

— Não olhes para baixo — disse Guardião, subindo a encosta à frente dela. A sua disposição alterara-se por completo desde a mútua troca de palavras anterior; o jovem caminhava rapidamente e os seus olhos estavam brilhantes. Ocorreu a Creidhe que aquela mudança poderia ser atribuída a algo que ela dissera. A jovem sentiu-se, ao mesmo tempo, lisonjeada e alarmada. — Espera até chegarmos ao topo.

A energia de Creidhe estava toda concentrada na marcha; olhar era a menor das suas preocupações. Doíam-lhe as pernas. Pequenino circulou uma vez à sua volta e desatou a correr monte acima.

— Já não estamos longe — disse Guardião com a respiração quase normal. — Toma, segura na minha mão. — E quando percebeu que ela estava demasiado cansada, que fazia um grande esforço para continuar, recusando-se a dizer-lhe fosse o que fosse, ele disse simplesmente: — Vem — e pegou-lhe ao colo como se ela não pesasse mais do que Pequenino. Creidhe não teve outra hipótese senão envolver-lhe o pescoço com os braços e encostar-lhe a cabeça ao ombro. A jovem não estava muito certa do que estava a sentir; a melhor maneira de descrever o fluxo de sensações que aquela proximidade lhe provocava era que se sentia confusa. Assim que Guardião pegou nela ao colo, o seu passo aumentou de velocidade; tornou-se evidente que, no fim de contas, o jovem tinha estado a andar lentamente para não a cansar. Começaram a subir a uma velocidade incrível; o peso adicional, aparentemente, não significava nada para ele e o jovem atravessou a encosta rochosa e íngreme sem pôr, uma única vez, um passo em falso. Pequenino trepava, saltava, serpenteava; ladrou, uma vez, perante um animal escondido por baixo de uma pedra. O Sol espreitou por entre as nuvens, uma luz brilhante, dourada e branca, e eles atingiram o topo da encosta.

— Fecha os olhos por um momento — disse Guardião, colocando cuidadosamente Creidhe no chão, de frente para ele. O jovem tinha as mãos em redor dos braços dela; ela tinha as suas nos ombros dele e, subitamente, tornou-se difícil respirar, se bem que tivesse sido ele a carregar com ela pela encosta acima, não o contrário. — Vira-te; não olhes sem eu dizer.

Creidhe obedeceu, sentindo as mãos do jovem em redor da cintura quando ele a colocou a seu lado.

— Agora — disse ele. — Já podes abri-los. Não é a vista mais bonita do mundo? Estamos no ponto mais longínquo que o homem atingiu. Adoro este lugar, Creidhe. Aqui é o ponto de encontro da terra com o céu, é aqui que os oceanos descansam. Daqui, vê-se tudo. Se eu tivesse uma melodia como a de Pequenino, cantá-la-ia, para que os ventos a levassem a todos os cantos da terra.

Creidhe acenou com a cabeça; a jovem não tinha palavras. Estavam a olhar para leste, para as Ilhas Perdidas; as silhuetas altas e rígidas das ilhas pareciam estar à deriva na bruma, como lugares apenas existentes nas lendas ou na memória antiga. O mar lavava-as, prateado, cinzento-escuro, verde-profundo, mudando como uma criatura viva, com mais mudanças de humor do que seixos há numa praia. Por cima, o Sol brilhava, lavando as rochas nuas do topo do monte com uma luz pálida, tocando nos cabelos loiros de Creidhe e fazendo-os brilhar. Para oeste, na direção oposta, podiam ver a longa encosta, a última ilhota varrida pelas ondas, onde os papagaios-do-mar e as outras aves marinhas voavam nas asas do vento e, para lá, o oceano selvagem, até ao fim do mundo. Ali era o reino do gelo, das grandes baleias, dos monstros e dos turbilhões. Só um louco, ou um visionário, tentaria essa aventura.

Podiam ter estado muito tempo a olhar, ou talvez não. Creidhe sentia no espírito um estranho sentimento de retidão, a certeza de estar no tempo certo no lugar exato, como raramente acontece na existência desordenada do homem. Mas não estava consciente da situação mais imediata, que, talvez, devesse ter tentado evitar: o fato de que os braços de Guardião a tinham rodeado por trás e que estavam, agora, cruzados firmemente no seu peito, apertando-a; o fato de que estava encostada, de modo que todo o seu corpo tocava o dele. A boca dele estava colada ao seu cabelo; as suas mãos descansavam nas dele, como se só pudessem estar ali. Aquela proximidade enchia-a de sensações ao mesmo tempo maravilhosas e entontecedoras; aquilo não era um sonho, uma visão ou produto da sua imaginação, era real e muito forte, acordando todas as fibras do seu corpo. A jovem não se mexeu; ficou imóvel como uma pedra. Ambos sentiam, talvez, que, para eles, não haveria muitos mais momentos de tanto contentamento.

Finalmente, Guardião disse:

— Os barcos, além, no Fiorde do Conselho. Juntaram os barcos perto do extremo oeste, prontos para partirem de madrugada no dia em que as águas acalmarem. Estás a ver?

Ela semicerrou os olhos; o mar estava brilhante à luz do Sol de Verão e era muito longe.

— Sete, oito... Conto nove barcos pequenos — disse Guardião. — E mais um: um barco que eu nunca vi antes. É maior e mais robusto do que os outros.

Creidhe não via nada; talvez a vida selvagem aguçasse a vista. No entanto, o seu coração parou. Por vezes, não é preciso ver as coisas para as compreender.

— O barco de Sam — disse ela. O Sea Dove. Que outro barco havia de ser?

Os braços de Guardião abriram-se; o jovem afastou-se dela, protegeu os olhos com a mão e olhou através da Corrente dos Loucos.

— Parece-me ser um barco de pesca — disse ele. — Pode transportar muitos homens. Asgrim apoderou-se dele, talvez, para o utilizar na caçada.

Creidhe não disse nada; o conflito de sentimentos tornava-lhe qualquer palavra impossível.

— Achas que não? — O tom de Guardião era cortante. — Achas que os teus companheiros vão participar na caçada ao lado do governador? Não disseste que eles não eram guerreiros?

— Não sei que pensar. Sam não desistiria facilmente do Sea Dove. Espero que não lhes tenha acontecido mal nenhum. Por que haviam eles de vir até aqui? Seria malfeito. Nem Thorvald seria capaz de fazer uma asneira tão grande, acho eu.

Guardião olhou para ela com olhos sombrios e maxilar cerrado.

— Vêm buscar-te — disse ele.

A jovem pensara naquilo, mas não o dissera; o pensamento enchia-a de prazer e dor ao mesmo tempo, uma exaltação e um horror tão grandes que quase sentiu enlouquecer. Calma, disse ela para si própria. Pensa.

— Não me parece — conseguiu ela dizer. — Como é que Thorvald sabe que eu estou aqui? Eles pensam que eu me afoguei; alguns homens de Asgrim estavam a observar da praia quando eu virei o barco. Eles deviam ter ido para casa. Eu pensei que eles tinham ido para casa. — A voz de Creidhe tremia. Thorvald estava ali, tão perto, do outro lado, pronto para embarcar para a ilha em que ela se encontrava; que o teria impelido a fazer tal coisa? E Guardião estava ali a seu lado, Guardião, com as suas mãos fortes e figura esguia, Guardião com as suas palavras tímidas e o seu sorriso maravilhoso; Guardião com as suas armadilhas, os seus truques e o seu arsenal formidável, pronto a enfrentar todos os guerreiros que aqueles oito, nove barcos transportassem... Thorvald e Guardião... Algures, nos seus pensamentos, a Jornada desdobrou-se e ela viu o que iria bordar a seguir e o seu espírito contraiu-se.

— Eu não tenho dúvidas — disse Guardião sem expressão. — Ele vem buscar-te. Que mais havia de ser? Ele sabe que estás viva. Não precisa de ver para saber; sente-o no coração. — O seu tom de voz era gelado, como o de um homem habituado à solidão.

— Não me parece — disse-lhe Creidhe. A luz, o bom tempo e o local tinham desaparecido. Thorvald tem tendência para agir com o cérebro; normalmente, põe de parte os sentimentos. No entanto, viajara até às Ilhas Perdidas. Que fora essa viagem, senão uma busca desesperada para tentar salvar um coração destroçado?

Guardião virara-lhe as costas, estudando os barcos distantes que ela não conseguia ver.

— Se o teu amigo vem por causa de Pequenino — disse ele — eu mato-o.

Não recebeu qualquer resposta. O animal com aspecto de cão estava ao lado de Guardião, pequeno, desleixado, as orelhas pontiagudas mal chegando aos joelhos do rapaz, uma coisa pequena, magricela. Na frente de ambos, o céu e o mar brilhantes estendiam-se a perder de vista, uma faixa maravilhosa de luz e sombras, uma imagem de eternidade. Os antepassados deviam, certamente, ter-se empenhado de modo especial naquele lugar, assinalando-o, mantendo-o à parte; esse empenho devia, também, ter atingido aquele homem e a criança que ele tanto amava. Certamente, por isso mesmo, sobreviveriam. Creidhe afastaria as imagens que vira, imagens essas que exigiam ser bordadas na Jornada; as imagens que não permitiria a si própria criar. Quanto a Thorvald, o jovem sempre fora dono das suas próprias decisões. Os riscos eram, certamente, calculados.

— Vem — disse Guardião abruptamente. — Vamos regressar. Consegues descer?

— Claro.

Ele não lhe deu a mão, avançando sem lhe oferecer ajuda. Algo nos seus ombros e no seu rosto a forçaram a manter-se silenciosa durante o caminho todo, até à cabana. Só quando já estavam dentro do abrigo é que ela lhe perguntou:

— Não me ias mostrar o esconderijo? Não seria melhor eu saber onde é? Não pode ser muito longe.

Guardião nem sequer se virou para a sua rotina habitual, avivando as brasas e pondo água ao lume. Encostou-se à parede de pedra e olhou em frente de maxilar cerrado. Foi Creidhe que pôs a água ao lume e tratou da criança.

— Espero — disse ela cuidadosamente — que não tenhas decidido que já não podes confiar em mim. Não nego que fiquei preocupada com o que viste e com o que disseste. É verdade que tenho medo por Thorvald. Por Thorvald e por Sam. Eles são velhos amigos meus e eu não quero magoá-los. Tenho saudades da minha família; não fiz esta viagem até às Ilhas Perdidas a pensar que nunca mais regressaria a casa. É verdade e tu tens de compreender. — Ela sentou-se nos calcanhares junto da lareira e olhou para ele. Guardião não se movera; não olhou para ela. — Apesar disso, é verdade o que eu disse antes. Tudo. E prometo-te solenemente que me vou esconder com Pequenino durante a caçada, sem fazer barulho, e que o protegerei o melhor que puder. Se Thorvald for à minha procura enquanto durar a caçada, suponho que terá de partir sem mim. É assim que vai ser. Eu não vou entregar Pequenino aos homens de Asgrim, Guardião, ainda por cima depois de saber o que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz lhe querem fazer. Sinto-me muito magoada por teres pensado isso de mim, mesmo por um momento.

Seguiu-se um longo silêncio. Então, ele disse, muito calmamente.

— A tua dor é a minha dor, Creidhe.

Ela acenou com a cabeça, sentindo um nó na garganta.

— E a tua a minha, como já te disse — disse ela. — A tua alegria a minha alegria, se a conseguirmos encontrar. Eu tomo conta dele na tua ausência.

— Creidhe? — O tom mudara de novo; agora era feroz, urgente. Ele acocorou-se junto dela, muito perto.

— Sim? — As suas mãos continuaram o que estava a fazer, alimentando o fogo, deitando água numa malga.

— Eu já te disse que não vou ser derrotado. É verdade. Apesar disso, se... se algo acontecer, quero que o leves contigo. Leva-o para longe, imediatamente, leva-o para a tua ilha, para um lugar onde eles não possam ir buscá-lo...

A jovem podia ouvir a voz entrecortada de Guardião e isso alarmou-a mais do que as suas palavras.

— É evidente que levo — disse ela. — Dou-te a minha palavra. Juro por... qual foi o voto que fizeste, foi um voto maravilhoso e solene... pelo vento e pelas asas...

— Pelas pedras e pelas estrelas. — O jovem terminou as palavras por ela. — Obrigado, Creidhe.

— Mas não será preciso — disse ela firmemente. — Vais sobreviver. Os antepassados protegem-te; a Ilha das Nuvens protege-te. Guardião, é melhor mostrares-me o esconderijo hoje. Já não temos muito tempo.

— Sim, em breve. Não tenhas medo. Daqui a pouco. Depois, teremos tempo para nós os dois. Agora, tenho de ir à pesca, tenho de arranjar o peixe suficiente para os dias em que estiveres sozinha. Não podemos fazer fogueiras enquanto eles estiverem aqui.

Ele aproximou-se da entrada e depois virou-se para olhar para ela; o olhar gelado desaparecera-lhe do rosto.

— Estou a exigir demasiado de ti — disse ele. — Esse homem, Thorvald, pareceu-me sentir uma certa doçura na tua voz quando falaste nele. Vi que o teu rosto mudou. Tu fizeste uma longa viagem por causa dele. Pai e mãe, irmãs e a tua terra natal, deixaste tudo isso para o seguir. Foste raptada por causa dele e quase te afogaste. Agora, ele vem à tua procura e tu escondes-te dele. Como posso pedir-te uma coisa assim? Quando o mar te trouxe até à minha ilha, não compreendia essas coisas. Como podes ficar silenciosa quando o teu homem vem à tua procura?

— Não sei. — Agora, era a voz de Creidhe que tremia. Ela olhou para Pequenino; o Pequenino tinha o seu pente na mão e estava a tentar passá-lo pelos seus cabelos emaranhados. Não era uma tarefa fácil; o jovem tinha os olhos trocados de tanta concentração. — Não sei como vou fazer; só sei que vou fazer, porque tem de ser. E agora vai, se queres apanhar peixe suficiente para vários dias. Suponho que teremos de fazer uma espécie de sopa.

Mais tarde, sentaram-se calmamente à luz da lareira enquanto o Pequenino adormecia, enroscado nos cobertores. Tudo o que se via dele era um tufo de cabelos escuros.

— Não desdobraste o teu trabalho esta noite — disse Guardião. — Esta noite não há histórias.

— Não me apetece. Nem bordar, nem contar histórias.

— O que vês perturba-te? Alarma-te? — O jovem tinha o dom de acertar no que ela queria deixar por dizer.

— Algo parecido. Não quis assustar Pequenino, tão perto da caçada. Por vezes, as imagens são sombrias, um mau presságio. É melhor não lhes dar forma.

Guardião estava a acabar o punho da sua faca, entalando as pontas dos cordões, arrancando uma linha solta com dentes aguçados e muito brancos.

— O meu irmão está no teu trabalho — comentou ele. — Isso quer dizer que vai correr tudo bem, que ele vai sobreviver?

Creidhe estremeceu.

— Bordar a Jornada não é a mesma coisa que prever o futuro — disse ela. — Eu não sou uma deusa dos espíritos, cuja agulha planeja cuidadosamente as vidas dos homens e das mulheres, cujo trabalho tem o poder de alterar o que está para vir.

Seguiu-se um pequeno silêncio.

— Tem certeza? — perguntou Guardião.

— Eu sou uma mulher comum. Não sou uma vidente como a minha mãe, ou uma sacerdotisa como a minha irmã, nem sou particularmente boa ou corajosa. Podes ficar tranquilo, não tenho poderes nenhuns. A Jornada é apenas a minha maneira de escrever o que sinto e, por vezes, os meus sentimentos são muito fortes. A minha viagem às Ilhas Perdidas é a prova de que sou uma pessoa comum, como me falta sabedoria. Pensei que poderia ajudar Thorvald, pensei que ele precisava de mim. Parecia-me terrivelmente importante estar com ele, estar a seu lado; na verdade, até um passado recente só pensava nele. — A jovem pensou no que dissera, sentindo-se algo relutante e olhar para a Creidhe da Primavera anterior, uma Creidhe em cuja mente a perspectiva de casar e assentar tinha a primazia sobre todo o resto. — Quando me escondi no barco de Sam, portei-me como uma rapariga tola — disse ela.

— Tola? — As mãos de Guardião detiveram-se; o jovem olhou para ela solenemente. — Não acho que sejas tola, Creidhe. Se não és uma deusa, foste tocada por uma deusa; reparei logo nisso quando te avistei, flutuando na direção da praia da minha ilha. Tens tantas coisas profundas em ti; sabedoria, bondade, amor.

— Mesmo assim — continuou ela, fazendo um esforço, torcendo as mãos — foi uma tolice. Pensei que Thorvald veria... pensei que se tornaria evidente para ele, que ele e eu... pensei que ele mudaria. Que conseguiria mudá-lo. Mas não foi o que aconteceu. Ou um homem aprende e muda, ou nunca aprende nem muda. Thorvald é como o pai dele, transporta as trevas no coração. Se, um dia, ultrapassar isso, não será por minha causa.

Guardião não comentou. A faca estava terminada; o jovem estava sentado com os joelhos encolhidos, com os braços a rodeá-los e fixava o fogo.

— Desculpa, estou outra vez a falar demais — disse Creidhe. — Estas coisas não te interessam.

— Interessam, sim. Ele é como o pai? O pai dele mudou. Ele contou-me muita coisa da sua juventude.

Creidhe ficou espantada.

— O pai de Thorvald falou-te do passado dele? A razão por que foi exilado? Quando? — Guardião não devia passar de um rapazinho.

— Eu sentia-me infeliz. Eles foram meus amigos: os dois eremitas e o rapaz que vive com eles. Teria ficado com eles se não fosse Sula. Asgrim tinha me proibido de ir a casa deles. Niall desafiou-o; o governador não gostou nada. Quando regressei, bateu-me. Na altura, desejei que Niall fosse o meu pai. Ele é um homem bom.

— Ele assassinou o irmão — disse Creidhe. — Foi Rei, uma vez, na minha terra. Foi responsável por muitas coisas más. Mas tens razão. Ele é a prova viva de que um homem pode mudar. Mas Niall diz que não. Ele diz que, por baixo, é o mesmo homem de sempre... Acabo de pensar numa coisa.

— Em quê?

— Quando ouvimos falar pela primeira vez no governador, Thorvald pensou que era ele o pai que procurava. Eu pensei o mesmo quando o conheci. Tem a mesma idade e a mesma aparência, e é um homem de autoridade, tal como Somerled, o pai de Thorvald. Se Thorvald se convenceu de que o governador é pai dele, isso explica por que razão ficou, por que razão o Sea Dove está além no meio da frota de Asgrim. Thorvald está a tentar agradar-lhe e provar-lhe que é digno de ser seu filho. — Assaltaram-na de novo imagens de sangue e de morte; a jovem levou as mãos aos olhos, mas não conseguiu fechá-los. — Se, ao menos, eu tivesse hipótese de falar com ele, de lhe dizer que está enganado.

— Por que havia ele de acreditar? — O tom de Guardião era confuso. — Bastava-lhe falar no assunto e muitos homens lhe diriam que era impossível. Eu sou o único filho de Asgrim; Sula foi a sua única filha. Qualquer homem destas ilhas pode atestar isso. Não compreendo.

— Não — disse Creidhe. — Não é fácil compreender Thorvald, ou amar. Não percebo como Sam e eu o aturamos. Ele queria guardar segredo. Queria descobrir que espécie de homem era o pai antes de lhe dizer. Sabes, Somerled abandonou as Ilhas Brilhantes antes de saber que tinha um filho. O próprio Thorvald só soube do pai na última Primavera, quando a mãe dele achou que já era tempo de ele saber a verdade.

— A mãe dele?

— Eu chamo-lhe tia Margaret, se bem que não seja do meu sangue. Uma mulher muito boa, corajosa, especialista na arte da agulha e do tear. Foi ela que ensinou o que sei. Uma mulher muito só, que ama muito o filho, mas que tem dificuldade em lhe dizer.

— É uma história muito triste — disse Guardião. — Um homem que poderia ter sido um bom pai, mas que não teve essa hipótese. Um homem que não merece ser pai, mas que ganha a lealdade de um filho que não é seu. No entanto, eu não consigo ter pena de Thorvald. Não gosto nada dele.

Creidhe não disse nada. A jovem tinha uma pergunta na ponta da língua, mas não sabia como fazê-la; era um assunto delicado.

— Eu... — começou ela.

— Eu... — disse Guardião no mesmo momento. Calaram-se ambos; nenhum deles tentou continuar. Creidhe foi para um dos lados da fogueira, arranjando a cama para se deitar ao lado de Pequenino. Guardião desdobrou o seu cobertor no outro lado, como era seu hábito. Entre ambos, as brasas brilhavam, aninhadas entre as pedras; naquela noite, o calor do fogo, o fogo não parecia oferecer grande conforto, porque o coração de Creidhe estava gelado, sentindo aproximarem-se as trevas.

A jovem permaneceu acordada durante algum tempo, olhando, através do buraco no teto, para o crepúsculo cinzento-azulado de Verão. Não precisava de virar a cabeça para saber que Guardião também estava de olhos abertos a alguns passos de distância.

— Guardião?

— Sim?

— Queria fazer-te uma pergunta, mas não sei se a devo fazer. — Uma pausa.

— Eu também tenho uma pergunta para te fazer — disse ele. — Pergunta tu primeiro. Se souber, respondo-te.

— Estava a pensar... estava a pensar se tu me poderias falar de quando raptaste Pequenino Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Eu sei que deve ser difícil para ti, mas pensei que me pudesses contar.

— Tens a certeza que queres saber?

— Tenho.

— Depois de eles a terem levado — a voz dele era muito baixa, mas as palavras saíam rapidamente, como se o jovem tivesse o desejo de contar aquilo há muito tempo — eu quis logo ir atrás dela. Pensei que podia lutar com eles, salvar a minha irmã, se fosse suficientemente rápido. Tinha armas, um pequeno barco e corri para a praia. Mas ele deteve-me. O meu pai deteve-me. Fechou-me; não pude ir.

— Talvez ele tivesse medo de te perder também a ti. Mas, ele não foi atrás deles? Ele e os guerreiros?

— Ah! — Uma explosão de troça. — Ninguém foi atrás d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Asgrim manteve-me prisioneiro durante muito tempo, na nossa própria casa. Não me deixava sair, apesar de eu me fartar de gritar, de lhe pedir. Quando me libertou era demasiado tarde. Ela já tinha passado de mão em mão; já lhe tinham destruído a inocência.

Cuidado, muito cuidado, agora.

— E a tua mãe? Ela não tentou fazer nada? — Um pequeno silêncio.

— A minha mãe morreu há muito tempo. Quando nós éramos muito pequenos. Praticamente, não me lembro dela.

— Conta-me o resto, Guardião.

— Era Inverno; não podia ir. O mar estava muito bravo e o vento era gelado. Esperei; esperei em silêncio. Odiei-o. A amargura parecia um veneno nas minhas veias. Assim que pude, fui ter com o irmão Niall. Várias vezes. Palavras doces, silêncio, bondade e corações abertos. Asgrim ia-me sempre lá buscar. Então, chegou a Primavera e eu meti-me no barco.

Creidhe escutava-o e desejava, com todas as suas forças, levantar-se, dar aqueles poucos passos, abraçá-lo e oferecer-lhe o pouco conforto que lhe podia oferecer. A força do seu desejo espantava-a; silenciava-a por completo. A jovem deixou-se estar, com o coração aos pulos.

— Tinha aprendido algumas coisas durante o tempo de espera. Sabia que não podia simplesmente aparecer lá, um miúdo com armas pequenas, e trazer logo Sula para casa. Assim, atraquei, fui até à aldeia deles e saudei-os, se bem que me soassem na boca como fel. Persuadi Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz de que era amigo, um rapazinho, apenas, que não constituía uma ameaça. Assim, deixaram-me ficar e eu vi a minha irmã.

— Estiveste lá no princípio, então? Antes de Pequenino nascer?

— Sim, Creidhe. Fiquei com ela, sem esperança de a poder levar para casa. Sula estava assustada, doente e desesperada. Ela só era mais velha do que eu um ano e o que eles lhe fizeram magoou-a muito, não só o corpo, mas também a alma. Ela estava a ponto de abrir os pulsos, ou de entrar pelo mar adentro. Fiquei junto dela. Ela suportou a gravidez e deu à luz. Assim que o bebê nasceu, as coisas mudaram. Sula estava fraca e doente, mas adorou o filho assim que o viu. Não interessava que fosse filho d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, o fruto de uma crueldade sem palavras. Era dela; quando ela olhou para ele pela primeira vez, Pequenino ficou-lhe para sempre no coração. E no meu, Creidhe.

— Compreendo — disse ela docemente. — Deve ter sido muito difícil para ti; tão difícil que me custa acreditar como pudeste suportá-lo.

— Eu queria tirar os dois de lá. Mas Sula estava muito magra, muito pálida, parecia uma sombra, incapaz de dar mais de três passos. Encolhia-se ao menor som; tinha medo de sair da cabana que lhe tinham dado. Ela sabia que quando o bebê deixasse de mamar, quando ela já não o pudesse alimentar, eles tirar-lhe-iam. Ela sabia que, quando eles fizessem isso, eu lutaria e que não conseguiria contra tantos. Eles celebrariam o ritual e Pequenino tornar-se-ia Máscara-de-Raposa. Se sobrevivesse. Nós sabíamos e, por isso, tínhamos de o tirar de lá.

— Mas ela morreu — disse Creidhe num sussurro.

— Ela morreu. Sula nunca esteve bem em si, enquanto esteve lá, nem sequer antes de Pequenino nascer. Era a antítese da minha irmã, sempre doce, sempre alegre. Qual é a rapariga que passa por uma coisa daquelas sem enlouquecer? Ela aguentou até o filho ter um ano; ensinou-o, em segredo, a comer outras coisas, a alimentar-se das coisas que lhe davam, peixe, ovos, vegetais. Eu ajudava-a no que podia, mas não era fácil. Não era normal um homem estar na cabana de uma mulher. Mas talvez eu parecesse uma criança; fosse como fosse, deixaram-me ficar junto dela, suficientemente perto para perceber quando ela ficou doente de morte. Sula sabia que tinha chegado a hora dela; falei-lhe em fugir, mas ela mandou-me calar. Ela sabia que não podia escapar, mas ajudou-me a planejar a nossa fuga; ensinou-me a cuidar de um bebê, se bem que ela ainda fosse, praticamente, uma criança. Eu chorei; não havia maneira de me convencer de que ela estava a morrer. Sentia-o e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz sabiam-no. Juntaram-se, como necrófagos em redor do corpo ainda quente do animal.

Creidhe estava quase a chorar. A jovem esperou em silêncio.

— Aconteceu mais cedo do que eles esperavam, de noite, depois de uma caça à baleia e de um festim. Dormiam todos; todos menos Sula e eu. Ela morreu em silêncio, na escuridão; vi o espírito dela a sair do corpo. Cortei uma mecha dos cabelos dela e guardei-a na minha túnica. Coloquei-lhe umas conchas nos olhos. Depois, peguei no bebê, desci até à praia e fugi num dos barcos deles antes do nascer do Sol. Ele esteve sempre quieto à proa, olhando para o céu; sabia o que estava a acontecer. Rumei à Ilha das Nuvens. A Corrente dos Loucos acalmou-se para nos deixar passar.

Creidhe sabia o que acontecera: tudo desde o princípio. Mas era diferente ouvi-lo daquela maneira. A simplicidade, a tristeza e a coragem destroçaram-lhe o coração.

— Ela confiou-me — disse Guardião. — E eu cumpro a promessa feita.

— Por que vieste para a Ilha das Nuvens? Por que não regressaste a casa, onde as pessoas te teriam ajudado? Eu sei que o teu pai não foi bom para ti, mas...

— Não compreendes — disse Guardião. — Ele vendeu-a. Asgrim vendeu-a. Trocou-a por uma promessa de paz. Exatamente como fez contigo. Eu sei. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz disseram-me.

Creidhe ficou incapaz de falar.

— É verdade. — A voz de Guardião era sem expressão. — O governador não quer saber dos laços de sangue. Foi o sangue da minha mãe que nos manteve unidos, a Sula e a mim, o mesmo sangue que me liga a Pequenino. Foi o sangue da minha mãe que me trouxe para esta ilha. Asgrim desprezava-nos, a mim e à minha irmã. Nós não éramos os filhos que ele desejava: uma filha dócil e um filho obediente. Em Sula, ele via uma rapariga de pele e cabelos claros, um tesouro que ele podia utilizar para suspender temporariamente os combates, os ataques, os feitiços d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Não se interessava se ela era sua própria filha. Em mim, ele via um rapaz sonhador, um filho que preferia conversar com monges cristãos a sonhar com o poder, uma criança cujo sangue maternal era evidente nos seus olhos e na sua recusa em obedecer. Em mim, ele via o único que podia evitar que ele atingisse o seu objetivo. Não podia levar Pequenino para casa. Asgrim teria pegado nele e tê-lo-ia devolvido Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz.

— Ele vendeu-a, sabendo o que eles lhe fariam? A própria filha? Por todos os antepassados, não admira que me tenha feito o mesmo! Aquele homem não tem coração?

— Ele escolheu mal — disse Guardião calmamente. — Tudo lhe correu mal. Qualquer outro teria feito as coisas de outra maneira. Mas não Asgrim. Asgrim vai a caminho das trevas. Se não for eu a matá-lo, será outro qualquer. Este ano, no ano que vem. Não se pode confiar naquele homem.

— Ele escolheu mal? Escolheu o quê?

— A ela. A minha mãe. Não conseguiu aguentá-la por muito tempo. Ela preferiu regressar ao mar.

Creidhe sabia, inconscientemente. Nos olhos de Guardião, nas suas mãos, no carácter fora do comum, em coisas difíceis de explicar.

— Não quero falar disso. — A voz dele era hesitante.

— Da tua mãe? Por que não?

— Porque tu ficas com medo. O que disseste da tua família, do teu irmão se ter afogado... Vais ficar com medo de mim. Não quero falar disso.

— Eu já sei — disse Creidhe. Ele ficou calado.

— Guardião?

Não obteve resposta.

— Eu tenho medo da caçada — disse Creidhe — e do que possa acontecer. Mas nunca terei medo de ti.

Ela ouviu-o respirar fundo, um grande suspiro. Era evidente que o jovem esperava, há muito, aquele momento; que a sua confiança lhe era preciosa. E como ela desejava estar junto dele, abraçando-o, não ali, sozinha com o corpo em fogo e a cabeça cheia de sentimentos que a arrepiavam e aterrorizavam. Não havia lógica nenhuma naquela situação. Diziam que a Tribo das Focas era capaz de fazer aquilo; que eram peritos em sedução, em encantamentos. No caso de Guardião, não acreditava, com a sua timidez e doçura. Não havia ali nenhuma magia, pensou ela, apenas a atração natural entre um homem e uma mulher, uma atração tão grande que podiam ser duas metades de um todo. As pessoas diziam que uma coisa assim só nas histórias, para deslumbrar. Mas Creidhe sabia que não era assim, porque crescera no meio da personificação dessa atração: Eyvind e Nessa, um o complemento do outro.

Não ia ser fácil adormecer. A jovem mexia-se, inquieta, virando-se de um lado para o outro.

— Guardião?

— Sim?

— Não tinhas uma pergunta para me fazer?

— Tinha e tenho. Mas não te posso fazer. É... não posso... não tenho palavras. Sei que te vais ofender. Não consigo dizer...

Ela ouviu-o virar-se, tal como ela, de um lado para o outro, inquieto; a jovem sentiu, sem precisar de olhar, que ele estava de olhos abertos, olhando para o céu. Não era difícil perceber a natureza da pergunta.

— A tua história é muito triste — disse ela suavemente — demasiado triste para uma história de embalar, apesar de ser uma história de grande coragem. Tu salvaste-o; cumpriste a tua promessa. Mas, esta noite, penso que necessitamos de outra história e eu conto-te, se tu quiseres.

— Por favor.

Creidhe mal o ouvia. O jovem estava demasiado longe; mais longe do que devia estar. No entanto, não conseguia tomar uma decisão.

— Já te falei da tia Margaret, a mãe de Thorvald — começou ela.

— Eu não quero ouvir a história de Thorvald. Estou farto dele. — Creidhe descobriu que estava a sorrir.

— Não é a história de Thorvald. É uma história que fala de Thorvald. E não me interrompas. No fim, vais gostar. A tia Margaret ensinou-me a fiar, a coser e a tecer. Eu adoro tecer; e parece que sou muito boa. Os meus cobertores são autênticas tapeçarias que são oferecidos como presentes de casamento ou a visitantes oficiais, como os chefes de guerra dos Caitt ou os jaris de Rogaland. Sinto orgulho por o meu trabalho ser assim valorizado, mas também triste, porque dá-lo é como dizer adeus a uma parte de mim mesma.

— Mas — disse Guardião — assim, tu partilhas o teu dom com os outros; a beleza que fazes viaja para longe e alegra muitos corações. Isso é bom. Mas, interrompi outra vez a história; peço o teu perdão.

— Bem — continuou Creidhe — pouco antes de sair de casa e vir para aqui, acabei um cobertor. Era um pouco diferente dos outros; escolhi eu própria o padrão e as cores e enquanto trabalhava nele... — a jovem sentiu-se corar na escuridão, feliz por ele não a poder ver — não pensei vê-lo na parede de um nobre qualquer, ou a decorar o quarto de uma dama. Sempre o imaginei na minha própria cama: a cama que eu partilharia com o meu marido na minha primeira noite de casada.

Silêncio.

— O cobertor era de uma bela cor azul-escura; eu própria fiz a cor. Tinha faixas vermelhas, um padrão de riscas estreitas e uma orla que eu desenhei no fundo, com árvores e animais. Fiz tudo com um grande amor; se se pudesse contar a história com que eu sonhava enquanto fazia o cobertor, seria uma história de luz e calor, de abraços, de alegres regressos a casa, de crianças sorridentes e do cheiro do pão acabado de sair do forno. De beijos e de gente a tocar-se, de suspiros de tirar a respiração, de... de um mundo de felicidade, que eu desejava enquanto tecia aquele pedaço de lã, Guardião. Quando acabei, dobrei-o e guardei-o em casa da tia Margaret e fui para casa. Então, fiz as malas e fui atrás de Thorvald para as Ilhas Perdidas.

Nem um som. A sua inclinação para interromper desaparecera.

— Então, eu era uma rapariga diferente — disse Creidhe cuidadosamente. A parte seguinte ia ser muito difícil de pôr em palavras. — Pensava que o amava. Pensava que aquilo é que era o amor, gostar tanto de um homem sem nos importarmos que ele nos magoe, que nos ignore, que nos bata, até. Eu pensava que não tinha importância o fato de ele não dar valor às coisas de que eu gostava. Os meus sonhos falavam sempre de um dia em que as coisas mudariam; um dia em que ele me veria como eu sou na realidade, e dormiríamos os dois por baixo do cobertor azul, marido e mulher, como eu sempre imaginara. Ele é meu amigo e companheiro desde crianças. Quando saí do barco, ainda acreditava nessa mudança: que estávamos destinados a viver juntos: Thorvald é capaz... é capaz de ser um bom homem, apaixonado e bom, quando se lembra.

— Não gosto dessa história, Creidhe.

— Queres que pare? — Seguiu-se uma pausa.

— Não disse ele. Quero ouvir o resto.

— Não foi Thorvald que mudou, fui eu. Mudei quando vim para aqui. O nosso barco quase naufragou e Sam ficou ferido. Thorvald ficou zangado comigo. Então, atingimos as Ilhas Perdidas e Asgrim levou-os. Depois disso, aprendi o que é a solidão, o medo e o que significa não poder ajudar, mesmo quando acreditamos que somos capazes de tudo. Aprendi que não podemos contar com os nossos amigos; aprendi que os estranhos podem tornar-se nossos amigos. Aprendi muitas coisas quando vim para as Ilhas Perdidas. Aqui, descobri a coragem, a lealdade e a resistência, num lugar que eu pensava ser selvagem. Descobri imaginação, bondade e generosidade. Vi uma beleza que eu nunca pensei existir neste mundo. — A sua mão descansou na silhueta adormecida de Pequenino, envolta no cobertor coçado. — Vi que o amor pode sobreviver mesmo nas piores circunstâncias. Que uma criança pode manter a fé apesar de ter de suportar o que muitos homens não suportariam, que pode manter-se verdadeira até se tornar ela própria num homem. Aprendi tudo isto.

Guardião não emitiu um som.

— E... e descobri que estava a iludir-me a mim mesma nos meus sonhos de futuro. Não podemos fazer com que um homem, ou uma mulher, nos ame; não podemos ajustar o outro à nossa visão de par perfeito, aquele que gostaríamos de abraçar acima de todos os outros. Esse outro é ele próprio; não muda só porque nós queremos. Tem o seu próprio caminho. Depois de muito tempo, reconheci que é assim. Se agirmos assim, poderemos ter, com o tempo, uma vida satisfatória: uma sociedade, na qual a amizade, a familiaridade e a confiança desempenham o seu papel. Há muitos assim. Não é o que acontece com a minha mãe e o meu pai, a mulher sábia e o guerreiro de cabelos dourados. Eles olharam um para o outro e souberam; o que existe entre eles é eterno, profundo, uma ligação que não tem fim. Ainda se vê nos olhos de ambos, em cada vez que se tocam. A voz dela quebrou e transformou-se num sussurro. Eu aprendi que não posso aceitar menos do que isso.

Seguiu-se um longo silêncio.

— A tua história de embalar chegou ao fim? — A voz de Guardião soava de modo estranho, como se os seus pensamentos o fizessem ter dificuldade em falar.

— Ainda não — disse Creidhe. Aquela história seria mais bem contada pelos outros sentidos: pelo suave tocar dos dedos, dos lábios, do sussurro da respiração e o lento movimento do corpo. Mas ainda era cedo, muito cedo. — Mas falta pouco. Tenho sonhado todas as noites desde que cheguei às Ilhas Perdidas: tantos sonhos, alguns sombrios e odiosos, outros tão doces que, quando chega a madrugada, não quero acordar. Muitas vezes, tenho o mesmo sonho do Inverno passado, quando estava a tecer o cobertor azul. E devo dizer-te que o homem que partilha comigo o seu calor, enquanto estou a dormir, não é Thorvald. Desde que me tocaste pela primeira vez que sei que é assim.

Ela ouviu um súbito e abrupto movimento e depois um silêncio total.

— Não imagino que possamos manter esta situação por muito mais tempo — disse ela — o teu cobertor aí e o meu aqui, quer dizer. Mas, Guardião... meu querido... penso que devemos esperar um pouco mais. A caçada está próxima. Tenho medo por ti, por Pequenino, por Thorvald e também por Sam. Farei como prometi: protegerei a criança. Aquilo que tens de fazer consterna-me e aterroriza-me. Não consigo perceber como sobreviveste estes anos todos. É isso que me obriga a pedir-te para esperar, apesar de desejar deitar-me a teu lado, tocar-te e... — Não estava a conseguir; os seus sentimentos ameaçavam levar a melhor sobre o seu senso comum. A jovem respirou fundo. — Aquilo que existe entre um homem e uma mulher deve ser partilhado com alegria — continuou ela. — Penso que devemos esperar até termos ultrapassado estes tempos de trevas. De outro modo, entraremos em desespero, procuraremos um no outro um modo de afastar o medo, de expulsar as sombras. Eu não quero que seja assim. Quero que seja uma coisa alegre, brilhante como o Sol, esperançosa, como imaginava enquanto tecia o cobertor. — Deuses, o seu coração parecia um machado a cortar madeira, e tinha o rosto a arder. Nunca, nunca teria falado assim a Thorvald; nem sequer sabia se estava a fazer as coisas como deve ser. Possivelmente, não era, de todo, o que ia na cabeça de Guardião. Ele tinha pela frente uma tarefa terrível; talvez os seus pensamentos estivessem concentrados em emboscadas, sortidas e mortes. Não suportava pensar que fosse assim.

— Eu... eu gosto muito da resposta — disse Guardião. Parecia que ele estava a sorrir. — Parece que não preciso de fazer a pergunta. Pergunto a mim mesmo se não estou a sonhar, Creidhe.

— Não — disse ela a tremer. — Estás acordado. Estamos ambos e parece que vamos continuar assim durante mais um bocado.

— A distância é pequena, entre esse lado da lareira e este — disse ele. — No entanto, parece que estamos um de cada lado do mundo. Nunca pensei que tivesse importância o lugar onde estendo o meu cobertor.

— É só mais alguns dias, mais nada. Boa noite, Guardião,

— Boa noite, minha querida. — A voz dele era muito suave na meia escuridão.

Só conseguiu adormecer de madrugada. Então, já Guardião tinha saído, talvez para estender o seu cobertor noutro lugar qualquer, talvez para patrulhar as suas armadilhas, as suas armas e os seus locais de vigia. A jovem só acordou quando ele regressava com Pequenino nos calcanhares, já o Sol ia alto.

Ele sorriu-lhe, um sorriso doce e triste, e disse:

— Temos de ir. Esta manhã. Vou levar-te para o esconderijo. Eles vêm amanhã. Vejo-o na água.

O coração de Creidhe deu um pulo enquanto ela saltava dos cobertores com os olhos ainda ensonados.

— Amanhã? Já? Eu pensei...

— Sim — disse Guardião muito sério. — Eu também pensava que não era para já. Temos de juntar tudo o que está aqui: cobertores, roupa, o trem de cozinha, tudo o que possa denunciar a nossa presença. Mais tarde, venho apagar os vestígios de fogo e cobrir o nosso rasto. — O jovem calou-se e olhou para ela. — Lamento — disse ele finalmente. — Lamento que tenhas de suportar isto por minha causa. Mas não quero que sintas medo.

Creidhe não encontrou palavras de conforto. O dia seguinte era real; o dia seguinte olhava-a nos olhos. O dia seguinte era Thorvald enfrentando Guardião de espada na mão e propósito no coração. Se Thorvald vencesse, poderia regressar a casa, para junto da sua família. Se Thorvald vencesse, Pequenino seria entregue Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. E Guardião morreria; ela sabia que ele lutaria até à morte para defender a criança. Na sua mente, Creidhe podia ouvir a sua voz, severa, determinada: Se os teus amigos vierem para resgatar Pequenino, mato-os.

Enquanto dobrava os cobertores e as capas, Creidhe esforçava-se por pôr os seus pensamentos em ordem. Pensou no que os seus pais fariam perante uma situação daquelas. Nessa, ainda uma verdadeira sacerdotisa apesar da sua vida entre a família e os Folk, procuraria ajuda na meditação, na adivinhação, no transe e na oração. Nessa agiria de acordo com a sabedoria dos antepassados. Creidhe não era uma mulher sábia. Por vezes, o que aparecia na Jornada, parecia refletir uma sabedoria antiga, uma sabedoria que fluía pelas imagens de lã independentemente dela, mas isso, agora, não era ajuda. Ela sabia o que a Jornada exigia a seguir. Estava claro na sua mente e transformou-lhe o frio que sentia num mau presságio. Quanto a Eyvind, nunca teria permitido que as coisas chegassem àquele ponto. Se ele estivesse ali, juntaria as partes num conselho e faria com que falassem abertamente. Insistiria que continuassem reunidos até chegarem a uma solução. Era a maneira dele, uma questão de justiça e eqüidade. Mas isso era nas Ilhas Brilhantes, um lugar próspero, de aldeias pacíficas, de barcos bem cuidados e campos cheios de gado saudável. Quem teria a força necessária para impor esse pensamento no autocrático Asgrim e no seu aterrorizado povo, ou nos terríveis homens da tribo d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz? Como poderiam o governador, o seu filho e os homens que tinham raptado e conspurcado Sula sentar-se à mesa do mesmo conselho? Se ao menos estivesse ali o irmão Niall, ou Breccan. Creidhe admirava a sua calma, as suas vozes experientes e os seus conselhos sábios.

— Creidhe? — Guardião acabara de juntar os potes e as panelas, os ferros do espeto e o seu cobertor esfarrapado. O peixe que tinham cozinhado na noite anterior estava pronto, numa panela de barro tapada.

— Chegou a hora?

— Leva isto — disse Guardião. O jovem segurava na mão a faca em que estivera a trabalhar, uma arma afiada, útil, cujo punho de osso tinha agora uma intrincada rede de cordões; torcidos, em nó e às voltas, que fez lembrar a Creidhe as vagas do oceano e as criaturas de longos membros que nele viviam.

— Obrigada — disse ela, pegando-lhe. — Espero não precisar de a usar. — A jovem olhou para Pequenino, que tentava dobrar, como ela, o seu próprio cobertor, em quadrado. Com a língua entre os dentes, o Pequenino ajoelhou-se e alisou a lã esfarrapada com as suas pequenas mãos de dedos longos. — Suponho que eu e ele vamos ter de ficar muito calados e quietos até eles se irem embora. Eu não estou habituada a magoar pessoas. Não sei se...

— Shhh — disse Guardião. — Leva-a. Fico mais descansado por saber que te pode se defender e a ele. Vai correr tudo bem; o esconderijo é difícil de encontrar e o povo dos Facas Longas tem medo da Ilha das Nuvens.

O esconderijo era, de fato, difícil de encontrar: uma gruta sombria, à qual se ia dar por um rebordo ainda mais estreito e mais perigoso do que aquele que ia dar ao arsenal de Guardião, situada no alto do flanco sul das íngremes encostas da ilha. O jovem já lá tinha colocado sacos de pele com água e um conjunto de velhas capas no chão de pedra, peles de ovelha, mantas de lã e de pele, restos de outras caçadas.

— É pequeno — disse Guardião — e não podes acender uma fogueira; não podes acender uma candeia. Têm de se manter juntos um do outro para se manterem quentes. Lamento muito, a sério que lamento. Lamento muito tudo isto.

Pequenino transportara ele próprio o seu cobertor. Agora, estava a estendê-lo junto da parede, puxando-o até ele ficar direito. Era evidente que ele sabia exatamente o que estava a acontecer e o que lhe era exigido.

Creidhe olhou em volta, para aquele espaço limitado. A entrada estreita deixava a gruta numa semi escuridão, mesmo àquela hora da manhã. A jovem olhou para os sacos de água, para a panela com o peixe congelado e para o chão de pedra onde, ela sabia, os cobertores que tinham trazido seriam poucos para aliviar as costas e o pescoço dorido. Creidhe olhou para a criança, que se sentara de pernas cruzadas no cobertor e que olhava para ela com os seus olhos da cor do mar, duas poças de uma escuridão fluida no seu rosto estranho, triangular. Creidhe pensou em Sula.

— É um bom esconderijo, Guardião — disse ela com firmeza. É seco e seguro. Estou certa que ficaremos bem, os dois. Alguma vez pensaste em... em te esconderes conosco até eles se irem embora? Não te encontravam.

— Quando estiverem todos mortos, deixará de haver caçada. Eu vou lutar até deixarem de vir à minha ilha. Prometi. E agora tenho de ir, Creidhe. Tenho muito que fazer.

— Oh... Já te vais embora? Não te posso ajudar, só até o Sol se pôr? Ainda é tão cedo...

— É melhor ficares aqui. — A sua voz era firme mas gentil; os seus olhos enviaram-lhe uma outra mensagem, na qual o amor e a dor, o desejo e a confusão estavam presentes. — Podes falar com ele hoje, até ao anoitecer. Depois, têm de ficar ambos calados até isto acabar.

— Não vens ter conosco esta noite? — Apesar de todos os seus esforços, a voz de Creidhe soou baixa e pouco firme.

— Não, minha querida. Tenho de te deixar e só regresso depois de eles se terem ido embora. A partir de agora, a partir do momento em que sair daqui, só devo pensar na caçada; não posso ter o pensamento noutra coisa. Lamento...

— Pára! — Creidhe cortou-lhe a palavra. — Pára de pedir desculpa, como se a culpa fosse tua! É claro que lamentas. Todos nós lamentamos, os três, por não podermos ficar juntos, por não podermos apanhar sol, estar perto das outras pessoas e viver as nossas vidas sem medo. Isto é um lugar de loucos, para gerar tanta miséria e tanto terror. Um dia, tudo isto mudará. Faremos com que mude. E agora é melhor dizeres adeus a Pequenino e ires antes que eu comece a chorar. Preferia não o fazer; não o quero preocupar.

No entanto, as lágrimas ardiam-lhe nos olhos enquanto via Guardião ajoelhar-se, uma figura longa e esbelta nas suas roupas de penas, e pegar no Pequenino ao colo. As suas mãos afagaram-lhe cuidadosamente os cabelos escuros emaranhados.

— Tenho de ir, irmãozinho — disse Guardião suavemente. — Tu vais ser corajoso, eu sei, como sempre tens sido, e vais estar calado e portar-te bem. Desta vez, não vais ficar sozinho. Agora, temos Creidhe; temos luz no nosso escuro esconderijo. Creidhe fica contigo até eu regressar. Com ela estarás seguro. Adeus, Pequenino.

A criança não disse uma palavra, não emitiu um som quando Guardião o depositou no cobertor e se virou para Creidhe.

— Tenho de ir.

— Sim. — E devia deixá-lo ir, devia deixá-lo sair daquele lugar sem outra coisa na cabeça que não a sua estratégia de sobrevivência. No entanto, ao vê-lo ali pálido e solene na sua frente com aqueles olhos sombrios, viu que não podia afastar-se, simplesmente, para o deixar passar.

— Também tens de te despedir de mim — sussurrou ela.

— Sim — disse Guardião sem se mexer. A voz dele também não era mais forte. — Mas não tenho palavras.

— Não precisas de palavras. — Creidhe deu um passo na direção dele e, rodeando-lhe o pescoço com os braços, beijou-o. Apenas um pequeno beijo, dissera ela a si própria, apenas um breve beijo de despedida para ter alguma coisa enquanto ele estivesse ausente. Mas os lábios dele entreabriram-se para os dela, a sua respiração tornou-se mais rápida, os seus braços rodearam-na num desejo feroz de possessão e Creidhe percebeu que um beijo breve não era o suficiente. O corpo da jovem apertou-se, com força contra o dele, a boca abriu-se, esfomeada e as mãos enclavinharam-se na carne do jovem: queria lá saber do que dissera acerca de esperar até que os tempos de desespero passassem. Os dedos de Guardião tinham-se afundado nas suas longas e brilhantes mechas louras. O corpo da jovem ardia de desejo, o mesmo que sentira na noite anterior, que lhe dirigira palavras de amor, mas mais profundo, mais apressado, selvagem, naquele momento de separação. Algures, no interior do seu espírito, ela sabia que, se as visões sombrias representavam a verdade, nunca mais o abraçaria daquela maneira.

Finalmente, pararam para respirar, lenta e entrecortadamente e separaram-se com dificuldade, os braços ainda agarrando, relutantes. Creidhe olhou para os olhos de Guardião e viu neles não só uma força assustadora, uma coragem espantosa e uma lealdade a toda a prova, mas também medo: o medo da sua própria mortalidade. Ele devolveu-lhe o olhar, como se quisesse gravar na memória as suas feições, para que, no meio do combate, a pudesse ter consigo.

— Que os antepassados estejam contigo, meu querido — sussurrou Creidhe. — Que eles velem por ti a cada momento e te tragam em segurança para junto de nós.

Guardião inclinou a cabeça e pegou-lhe nas mãos para as beijar.

— Adeus, Creidhe — disse ele suavemente. — Quero que saibas que, aconteça o que acontecer, trouxeste alegria à minha ilha, uma alegria que nunca pensei ser possível. E agora vou-me embora.

E, abruptamente, tão abruptamente que fez parar o coração da jovem, ele largou-lhe as mãos, virou-se e desapareceu.

Ela não queria chorar, apesar de ainda sentir o calor do corpo dele na sua pele, apesar do sabor do seu beijo ainda fresco e insistente na sua boca. Não choraria por causa de Pequenino. Creidhe sentou-se no cobertor, colocou a criança no colo e viu o vazio nos seus olhos, uma tristeza a que ele não dava voz porque prometera portar-se bem e ficar calado e, tal como o seu parente, Pequenino cumpria o que prometia. Creidhe pensou em todos os anos anteriores, quando ele ainda era mais novo e suportara tudo aquilo sozinho.

— Bem — disse ela — não precisamos de ficar completamente calados até ao pôr do Sol. Ainda bem. Pensei em contar-te uma história, uma história que a minha irmã Bronna conta, às vezes, sobre um guerreiro que foi matar um grande troll, e no caminho descobriu uma série de amigos novos, uns amigos muito estranhos. Queres ouvir? Ótimo. Aconteceu assim...

 

No solstício de Verão, as noites eram mesmo curtas nas Ilhas Perdidas. Os homens estavam à beira-mar à espera do momento em que o Sol emergiria do lugar onde estava escondido, na ponta leste do mundo, trazendo a luz suficiente para saber se Einar tivera razão. Thorvald sentia o coração a bater de antecipação; tinha de estar sempre a recordar a si mesmo que tinha de se manter calmo, acontecesse o que acontecesse. Um líder incapaz de controlar os seus próprios sentimentos não poderia controlar os seus homens. O jovem respirou lentamente, olhando através da grande extensão cinzenta de água entre a ponta mais ocidental da Ilha das Tempestades e a massa distante, sombria, da Ilha das Nuvens. Mais perto, do outro lado das águas abrigadas do Fiorde do Conselho, as duas ilhotas junto da sua abertura; as agulhas íngremes da Ilha do Dragão e a silhueta atarracada do Arco do Troll. Para lá delas estendia-se a Corrente dos Loucos, onde Creidhe se afogara.

O céu pálido ficou, subitamente, cor-de-rosa, depois laranja-escuro e depois dourado.

— Aqui vamos nós — resmungou Einar, fixando as águas abaixo deles, o caminho aquático que ia daquela praia àquela ilha a oeste, envolta em nuvens.

Asgrim não disse nada. Estava ao lado de Thorvald de braços cruzados e boca cerrada. Thorvald podia imaginar o pensamento do governador: Outra madrugada, outra hipótese. Talvez desta vez este ano seja diferente. Talvez ganhemos e termine o sofrimento. Que seja hoje. E, com aquele pensamento, outro: Se calhar, vamos perder outra vez. Não é assim há cinco anos? Não quero ver os meus homens a morrer. Não suportarei mais uma falha. Que não seja hoje. Thorvald pensou que seriam aqueles os pensamentos do governador. Quanto a ele, tinha os pensamentos em ordem. Tinha a estratégia na cabeça, os planos, os conhecimentos dos homens, do terreno e da missão. Tinha respostas para tudo o que a Ilha das Nuvens lhe opusesse. Confiava em Einar e em Orm. Dissera a Hogni e a Skapti tudo o que eles precisavam de saber. A sua estratégia final era desesperada e Sam era o único que tinha conhecimento dela. Seria posta em prática se tudo o resto falhasse; com sorte, não precisaria de se arriscar tanto.

O céu clareou. Uma ave gritou; uma outra respondeu. Por cima das suas cabeças, a luz floresceu e o coro de chilreios e assobios tornou-se num hino cada vez maior à madrugada. Passara-se mais uma noite: chegara um novo dia. As águas da Corrente dos Loucos passaram da cor da ardósia para a cor da pérola e depois para a pura azul-esverdeada pálida de um ovo de pata. Durante um curto período de tempo, o pequeno grupo de homens permaneceu silencioso, imobilizado pela imensidão do momento. Finalmente, Asgrim deu um grande suspiro e Einar, com uma careta feroz atravessando-lhe as feições cheias de cicatrizes, disse:

— Parece que vamos a caminho, homens.

Em seguida, as coisas seguiram um padrão bem ensaiado, tudo de acordo com os planos meticulosos de Thorvald. O resto dos homens estava à espera junto dos barcos já preparados, porque Einar predissera que aquele seria um dia de rara calmaria nas águas daquele estreito escuro, tornando a Corrente dos Loucos navegável para marinheiros experimentados. Os homens não precisavam que lhes dissessem que os sinais eram bons; eles viam-nos nos olhos dos seus líderes, e apressaram-se a lançar à água a sua coleção de pequenos barcos numa ordem predeterminada. A maioria daqueles barcos levava apenas dois ou três homens e Thorvald designara um líder para cada um. Estes eram os mais inteligentes do grupo: Orm, Wieland, Einar, Skolli. O Sea Dove podia levar um número maior e nele iriam Thorvald, Sam, Knut, Hogni, Skapti e vários outros homens.

Asgrim não ia. O governador, numa decisão que chocara todos, anunciara que, naquele Verão, confiava a missão a Thorvald, como era próprio de um pai para com o filho. A sua presença só confundiria a cadeia de comando. Ele conhecia os planos de Thorvald para a batalha e achava-os bons. Esperaria o regresso no Fiorde do Conselho e prepararia tudo para que qualquer ferido pudesse ser tratado. Era melhor assim.

Aquela declaração deixara os homens de queixo caído. No caso de Thorvald, provocara também uma onda de sentimentos, que ele fez um grande esforço para suprimir. O reconhecimento de Asgrim enchia-o de calor. Justificava as suas ações e devolvia-lhe a identidade. Mas, por baixo da grande alegria, permaneciam outros impulsos mais frios; nele, era raro o coração sobrepor-se ao intelecto. Asgrim era um homem cruel e impopular. Tinha razões para governar como governava, mas depois da caçada deixaria de as ter. Como chefe de guerra, Asgrim era inepto. Provara-o cinco vezes. Como chefe do povo dos Facas Longas não era melhor. As pessoas andavam inquietas, receosas. Não confiavam no seu governador. O reconhecimento do filho não alterava o estado de coisas. Depois da caçada, pensou Thorvald, haveria mudanças. O povo dos Facas Longas tinha de ser governado com justiça, em paz e tinha de ter voz nas decisões da comunidade. Aqueles homens, Einar, Wieland, Knut, aqueles homens corajosos e decentes não mereciam um tirano. Nenhum laço entre pai e filho era mais importante do que colocar as coisas no seu devido lugar.

Mas, primeiro, tinha de vencer aquela batalha. Dois dias, tinham dois dias e uma noite; dois dias até as águas da Corrente dos Loucos começarem a agitar-se de novo, atirando com qualquer barco de pantanas. Dois dias, resgatar o vidente com o mínimo de perdas: fora o que Thorvald lhes prometera. Se não cumprisse a promessa, disse ele a si próprio enquanto lançavam à água do Fiorde do Conselho o Sea Dove, não merecia nada da parte de Asgrim nem da parte dos homens. Se não conseguisse a vitória, não merecia ser seu líder.

A princípio, remaram; as águas do Fiorde eram abrigadas dos ventos dominantes e os progressos com a vela erguida eram erráticos e lentos. Uma vez passado os braços de terra que se projetavam a oeste, uma vez em frente do Arco do Troll e da monstruosa e denticulada silhueta da Ilha do Dragão, sentiram as velas enfunadas por um vento de feição, um vento que Thorvald ainda não sentira nas Ilhas Perdidas, firme e quente de leste. As proas dos barcos cortavam a água suavemente, deixando atrás uma esteira de espuma. Puseram os remos de lado. A Corrente dos Loucos estendia-se, plácida e brilhante à sua volta, descansando, dormindo, sustendo a respiração para deixar passar os intrusos. Agora que estavam no mar, havia poucas aves no ar; os gritos das gaivotas, que escoltavam diariamente os barcos de pesca do povo dos Facas Longas não estavam à vista. Sem a música áspera dos seus gritos o ar parecia vazio, as nuvens altas mais distantes; e quando Thorvald olhou para trás, a alta silhueta da Ilha das Tempestades, com os seus cumes escarpados e nus e falésias íngremes, retrocedia, como num sonho. E na sua frente, a oeste, cada vez mais perto, violeta suave, cinzenta-escura e verde profundamente impenetrável, estava a silhueta misteriosa da Ilha das Nuvens.

 

         Eu copio os salmos: a minha caligrafia é satisfatória.

         Copio-os ano após ano nesta casa tranquila.

         Escrevo, como, durmo.

         Hoje, algo em mim se agita e estremece.

         Está para acontecer qualquer coisa.

         De profundis clamavi ad te Domine...

                             NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

Fora uma noite sem sono. Agora, imóvel, encostado à rocha, sombra com sombra, Guardião via-os aproximarem-se. Estava tudo pronto. Depois de cinco caçadas, quase não precisava de pensar no que fazer; todos os seus sentidos estavam sintonizados na dança da defesa e da sobrevivência, no combate e na morte. Lá muito no fundo, fechara-os à chave: o seu Pequenino, cujo corpo frágil ainda sentia nos braços e a sua deusa, cujo beijo doce ainda sentia nos lábios. Não estavam esquecidos, estavam à parte até que a caçada terminasse mais uma vez, permitindo, então, que regressassem aos seus pensamentos. Naquele dia, no dia seguinte, seria tudo uma questão de passo rápido, agudeza de olhar, vontade forte e pontaria irrepreensível. Naquele dia e no seguinte, um único guerreiro tinha de se transformar num exército.

O vento era favorável aos homens de Asgrim. Os pequenos barcos velejavam a grande velocidade através da calmaria enganadora da Corrente dos Loucos e chegariam à sua ilha quando o Sol já fosse alto. Estava um daqueles dias bons, raros, que aconteciam de vez em quando no Verão, com nuvens brancas correndo através do céu azul e em que o ar estava quente. Naquele dia não choveria, o que tornava mais difícil a tarefa de Guardião; a bruma e a chuva davam-lhe vantagem, porque conhecia as encostas traiçoeiras como as crianças conhecem as suas mães. Praticamente metade dos crânios que possuía eram de homens que tinham morrido, não das suas lanças e flechas, ou das suas armadilhas, mas por terem caído de uma falésia ou por terem ido direto a um súbito, profundo buraco nas rochas. Conseguira recuperar os restos de alguns, nos lugares onde pudera. Os homens de Asgrim tinham capas quentes, botas de pele e casacos de ovelha. Tinham lanças e facas. Nada podia ser desperdiçado na Ilha das Nuvens.

Quando ficaram mais perto, mas não tanto que o pudessem ver, Guardião mudou para outro ponto de observação, onde tinha uma provisão de flechas. O jovem semicerrou os olhos, observando através de uma fenda entre as rochas que protegiam aquele refúgio em forma de concha, em algum lugar por cima do local de desembarque. Guardião olhava para um barco em especial, um barco que se destacava pelo seu tamanho ao lado dos outros, mais baixos e de construção simples, do povo dos Facas Longas. Aquele barco era robusto, bem construído, um navio que qualquer pescador teria orgulho em chamar seu. Trazia vários homens a bordo. Guardião conhecia cada um dos seus inimigos pelo nome, porque vivera no meio deles até os doze anos. A medida que o barco se aproximava, ele ia identificando Hogni e Skapti, que eram maiores do que os restantes. Knut vinha a bordo e reconheceu outros. Estavam a baixar a vela, pegando depois nos remos para guiar o navio através da estreita baía. Mas, afinal, não conhecia todos. O tipo alto, de pele clara, que dava ordens, era um estranho para ele. O que estava à proa, de lança na mão, perscrutando as rochas por cima das praias em busca de sinais de vida, tinha cabelos tão vermelhos como o sol de Inverno e um olhar de feroz determinação no rosto. Tinham vindo, então; os amigos de Creidhe tinham preferido ser seus inimigos. Não teria contemplações. Eles estavam ali e se se atravessassem no seu caminho, morreriam.

No ano anterior, Guardião atacara no momento em que as forças de Asgrim ficaram ao alcance de tiro, matando cinco homens com as suas flechas antes de os invasores terem completado a subida até o pequeno planalto por cima da praia. Naquele ano, o seu plano era esperar. Nunca usava o mesmo caminho duas vezes; a surpresa era uma das suas armas principais. Segui-los-ia até se separarem, como certamente fariam se fossem à procura de Pequenino. Seguiria um grupo, depois outro e deixaria que a ilha desempenhasse o seu papel. Ao cair da noite, regressariam aos barcos. O povo dos Facas Longas tinha medo de ficar na Ilha das Nuvens depois do anoitecer. Tentariam de novo no dia seguinte, até ao momento em que teriam de regressar a casa antes que a calmaria fosse substituída pela turbulência habitual do estreito. Abateria o maior número possível naquele dia. Conhecia-os: era uma gente desanimada, que se assustava com facilidade, que se confundia com facilidade. No dia seguinte, teria troféus para acrescentar à sua coleção e o inimigo estaria mais fraco. Depois, seria apenas uma questão de limpeza.

O jovem observava. As suas mãos ansiavam por pegar no arco, espetar uma flecha nas costas largas de Skapti ou no forte peito de Einar, que estava a reunir um pequeno grupo de homens para lá daqueles rochedos. O olhar de Guardião aguçou-se. Aquilo era um começo diferente do habitual por parte das forças de Asgrim. Pareciam estar organizados, formando três grupos e ao mesmo tempo havia homens colocados em pontos estratégicos, armados com arcos e lanças de arremesso. O olhar nos seus rostos também era diferente. Guardião sentiu o perigo naqueles maxilares cerrados, naqueles olhos ferozes. Perigo e desafio. De onde tinha vindo aquilo? Não tinha tempo para pensar; tinha de agir, rápida e invisivelmente, seguindo um ou outro daqueles pequenos pelotões, aquele que parecesse mais ameaçador. Tinham deixado homens a guardar os barcos; o tipo grande, louro, estava entre eles. Creidhe dissera que ele era pescador; aquele era o barco dele. Antes, nunca tinha ficado ninguém de vigia na praia.

Os grupos afastaram-se, espalhando-se pela encosta acima. Caminhavam cautelosamente, alguns espetando o solo em busca de armadilhas, enquanto outros cobriam os camaradas com escudos e armas, virados para fora. Os escudos eram coisa nova; nas caçadas anteriores, não havia mais de dois ou três entre eles. Alguém tinha andado ocupado, Guardião observou-os; seguiu-os por uns momentos. Os seus olhos estavam no homem de cabelos vermelhos. Creidhe dissera: Thorvald não é um guerreiro. Era evidente que Creidhe estava enganada, Guardião percebeu-o instantaneamente. Os homens seguiam-no, olhando para ele em busca de orientação. Guardião percebeu que fora ele quem planejara antecipada e cuidadosamente aquela defesa. Não fora Asgrim o causador das expressões diferentes nos seus rostos.

O amigo de Creidhe, não só era um guerreiro, como era o chefe. E o governador não estava presente.

Guardião avançou pela face da falésia, atravessou túneis, trepou pelas rochas, desceu encostas escorregadias cheias de pedras, acocorando-se, correndo, agarrando-se, escondendo-se. Ano após ano, caçada após caçada, praticara aquela navegação rápida, movendo-se como uma sombra naquele terreno rochoso e íngreme. O jovem avançava como um fantasma, como um sopro de vento.

O grupo de Skapti contornou o lado norte da ilha, rodeando as falésias, espreitando em buracos, fendas e grutas. O grupo de Hogni dirigiu-se para sudeste. Ali, a encosta oferecia uma ampla vista das ilhas onde Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham a sua estranha morada. E os guerreiros de Thorvald, com Einar no comando, avançaram pelo centro, sempre protegidos pelos escudos e de armas em riste como se, finalmente, tivessem aprendido a usá-las. Atingiram uma crista no topo das montanhas rochosas que rodeavam a Velha. Ali, pararam a coberto de um aglomerado rochoso, talvez para planejar o movimento seguinte. O avanço fora bem executado, suave e ordenadamente. Mas Guardião fora mais rápido. O jovem estava agora empoleirado bem acima do lugar onde eles pensavam estar escondidos. Ali, naquela fenda entre as rochas, tinha lanças de arremesso e dardos embebidos em veneno retirado de um certo molusco de concha raro. Um presente; a ilha fornecera-lhe os meios necessários. Guardião supôs que o inimigo subiria lentamente, talvez espalhando-se ainda mais para procurar possíveis esconderijos. Se investigassem as grutas no lado norte, encontrariam algumas surpresas. Não chegariam à câmara do lado sul, onde os seus dois entes queridos estavam escondidos. O jovem certificara-se disso.

Tinham evitado as mais óbvias das suas armadilhas, o que demonstrava mais inteligência do que ele esperava. Era evidente que aquele Thorvald achava que era esperto. Guardião deixá-lo-ia iludir-se a si próprio durante mais algum tempo. Então, mostraria ao homem de cabelos vermelhos quão louco fora por acreditar que qualquer homem podia ser mais astucioso do que a Ilha das Nuvens.

— Mantenham-se acocorados — sussurrou Thorvald. — Se eles tiverem engenho, vão esperar até que nos afastemos o mais possível para atacar. E se mandássemos dois homens lá para cima para aquela ravina para nos cobrirem com os arcos?

— Eu vou — voluntariou-se um dos homens.

— Eu vou contigo — disse um outro.

— Vão lá, então — sussurrou Thorvald. — Devagar. Quando lá chegarem, escondam-se por trás daquela rocha grande e fiquem de vigia. Se virem algo a mover-se, disparem.

— E se for ele? — perguntou alguém. — Máscara-de-Raposa? — A voz era jovem, com uma nota de acanhamento.

— É pouco provável — disse Thorvald. — Eles devem tê-lo fechado em algum lugar, acorrentado numa gruta, ou numa cabana. Tudo o que mexe é inimigo. Salvo nós, claro. E agora, vão.

Os dois homens afastaram-se sorrateiramente, mantendo-se acocorados enquanto trepavam na direção do espaço entre as rochas. Os outros esperaram em silêncio. Quando os trepadores estavam, talvez, a dois terços do alto, ouviu-se um som de matraca, algo a rolar do alto da encosta e uma chuva de pedras pequenas caiu sobre Thorvald, Einar e o resto do grupo. Os homens cobriram as cabeças com os escudos, ou acocoraram-se, protegendo as cabeças com os braços, enquanto a chuva de pedras se transformava numa tempestade, passando de pedras do tamanho de punhos a pedregulhos suficientemente grandes para esmagar o crânio de um homem. O barulho era ensurdecedor; Thorvald pensou ouvir uma voz, um grunhido, como se um gigante tivesse, subitamente, acordado: Quem se atreve a por os pés na minha ilha? E também ouviu um grito de dor, de um dos homens no alto da ravina. Um dos mísseis, pelo menos, atingira o alvo.

A avalancha de pedras parou; apenas uma ou duas continuava a rolar loucamente pela encosta abaixo.

— Mantenham-se quietos — disse Einar em voz baixa. — Depois disto, eles estão à espera que recuemos. Egil, vai lá acima ver quem está ferido. Thorvald? Que fazemos?

— Onde é que pensas que eles estão? — Thorvald arriscou uma olhadela rápida por cima das rochas onde estavam escondidos, virando a cabeça para perscrutar a encosta. Havia muitos pontos estratégicos lá no alto, maciços de arbustos retorcidos, pilhas de rochas grotescas, ondulações manhosas de terreno. Não era possível saber onde se escondia o inimigo, mas uma coisa era certa: aquilo não fora um desmoronamento natural.

— Einar?

Era um dos homens mais novos, Ranulf. O seu rosto estava pálido como o leite e a sua voz tremia.

— O que é? — disse Einar, irritado.

— Não ouviste? — murmurou Ranulf. — A voz?

— Cala-te — disse alguém de mau humor. — É claro que ouvimos. Se deixássemos que isso nos detivesse, não chegávamos a lado nenhum. Tens de aprender a tapar os ouvidos neste local, ou enlouqueces.

Passou por eles um sopro de vento a cheirar a maresia. Por cima das suas cabeças, as aves circulavam, gritando. Fosse o que fosse que tivesse silenciado as gaivotas naquela manhã, enquanto os barcos se faziam ao mar, não calara os habitantes daquela ilha, porque o céu estava vivo com tantas asas.

Egil regressou com uma expressão severa.

— Thorkel levou com uma pedra na cabeça; assim, de repente, não consigo ver se o ferimento é grave. Posso voltar lá e ajudá-lo a descer. Skolli está bem, apenas um pouco abalado. Parece que eles estão lá em cima, a sul, por trás daquele rochedo que parece um punho. Não é possível atacá-los lá, estão em vantagem. Vou lá em cima?

— Traz o Thorkel para baixo — disse Einar. — E não te demores. Vais ter de o levar para junto dos barcos, não podemos deixá-lo aqui. Depois, volta para aqui o mais depressa que puderes. Leva o jovem Ranulf contigo e tem cuidado com as armadilhas, estão por toda a parte. Skolli fica conosco; nós vamos continuar. — O guerreiro olhou para Thorvald. — A não ser que haja mudança de planos?

Thorvald abanou a cabeça.

— Não. Mas não vamos para cima, porque ficamos à vista deles. Egil tem razão; seria um convite ao ataque. Se eu fosse o inimigo, utilizaria flechas, apanhando-nos no momento em que nos mostrássemos. Se Asgrim estivesse aqui, que faria a seguir?

— Retiraria e reagruparia — disse Einar. — Faz sentido. Continuar a subir parece-me um suicídio.

— Hum — disse Thorvald. — E retirar é, exatamente, o que o inimigo espera que façamos. Aproximem-se todos. Tenho uma idéia...

 

No flanco sul da ilha, os homens de Hogni caminhavam ao longo de um estreito carreiro, tentando não olhar para baixo. A linha de costa da Ilha das Nuvens era, pelo menos, mais hostil para os intrusos do que a Ilha das Tempestades, que também tinha a sua quota de precipícios de fazer parar o coração e cristas aguçadas como agulhas. Em determinado ponto, Wieland avançou sozinho para experimentar um carreiro que prometia ser bom, mais largo e menos inclinado, que parecia ir dar ao ponto estratégico que tinham como objetivo. O guerreiro já dera um passo, dois, nas rochas planas da orla da falésia, quando o seu pé escorregou estranhamente. Wieland abriu os braços em busca de equilíbrio, mas no instante seguinte já mergulhava na direção das vagas furiosas, lá em baixo. O homem gritou e o som ecoou de modo estranho nas fendas rochosas, como se um coro de homens invisíveis gritasse em conjunto. Hogni abraçou-se a si próprio. A corda que tinha em redor da cintura, ligando-o a Wieland, esticou-se violentamente. Por trás de Hogni, dois outros homens saltaram para o apoiar e equilibrar, partilhando o peso. Os três guerreiros prenderam a respiração e depois começaram a puxar como tinham ensaiado na falésia perto do acampamento de Asgrim. Foi rápido e eficiente; em breve surgia o rosto branco como o leite de Wieland na borda do precipício, trêmulo e todo arranhado, mas mais nada. O rebordo fora esfregado com uma substância qualquer que o tornava escorregadio como um recife coberto de algas, mas que não podia ser detectado a olho nu.

— Portanto, não querem que vamos por aqui — observou Hogni. — Pergunto a mim próprio o que esconderão eles lá em cima? Muito bem, demoramos mais tempo. Vamos precisar das cordas outra vez; parece que o único caminho para o topo é ir reto.

Os homens continuaram. Na mente de cada homem, se bem que ninguém o mencionasse, estava o conhecimento de que fora Thorvald a ter a iniciativa das cordas. Sem elas Wieland estaria morto e Jofrid não teria nem filhos nem marido à lareira. Um dos homens começou a assobiar baixinho, um som furtivo que era em parte uma melodia de desafio vitorioso, em parte a expressão de um corpo a tremer de tensão nervosa.

— Cala-te — disse Hogni, irritado, e continuaram a avançar em silêncio, cuidadosamente, os olhos fixos na encosta, no carreiro e na retaguarda, perscrutando a paisagem em busca de sinais do inimigo.

Era evidente que os seus opositores esperavam que eles passassem por ali; podia-se presumir, então, que havia guerreiros à espera no alto, mas o grupo era vulnerável ali, em fila, onde as flechas, bem apontadas, podiam apanhá-los um a um. As cordas seriam, então, uma desvantagem.

— Depressa — disse Hogni. — Até àquela rocha que parece uma velha com um grande nariz. É ali que começamos a trepar. O grupo de Einar já deve estar lá em cima; nós queremos atingir aquela crista ao mesmo tempo que eles, para sabermos se alguém viu alguma coisa. Toca a andar.

Os homens de Skapti foram pelo lado norte, evitando os carreiros pelas falésias, porque naquele lado da ilha eram praticamente impraticáveis; era menos perigoso avançar em campo aberto, correndo de abrigo em abrigo e esperando que o inimigo estivesse noutro lugar qualquer. Progrediram bem, se bem que a subida fosse muito inclinada; as pernas doíam e quanto mais subiam sem sinais do adversário mais nervosos ficavam os homens. Tinham-lhes ordenado que não falassem e eles seguiam as ordens; só um louco atrairia as atenções. Mas um homem não podia calar os seus pensamentos e todos pensavam o mesmo: Foi ali, naquele amontoado de seixos, que perdemos Kolbein no ano passado. Além, onde os arbustos se curvam por ação do vento, vimos Havard morrer com um dardo envenenado. Além é a falésia onde caíram quatro homens durante a segunda caçada. Skapti percebeu o que lhes ia nas mentes, mas sentia-se impotente para alterar a situação, porque também se sentia atormentado pelas mesmas imagens: tantos camaradas perdidos, tantos homens bons chacinados e tudo para nada. Para além daquela litania de perdas, havia outro pensamento na mente de Skapti: obediência cega, culpa terrível, crimes e mentiras. O homem pestanejou e cerrou os dentes. Era um guerreiro e naquele dia chefiava um grupo de homens. Não tinha tempo para aquilo.

— Para a frente, homens — disse ele e começaram a trepar a íngreme encosta. Naquela parte da ilha, os contornos mergulhavam em bolsas aqui e ali, lugares bem protegidos por rochas, onde se podiam encontrar abrigos razoáveis. Havia restos de paredes rochosas e cabanas em ruínas, abandonadas. Os homens pararam num daqueles pequenos refúgios para recuperar o fôlego, deixando um homem de vigia no exterior; podia ser um esconderijo confortável, mas também era o local ideal para se ficar encurralado. A porta das traseiras, se assim se podia chamar, dava para um precipício, uma falésia habitada por aves marinhas que terminava nas águas raivosas lá bem no fundo. Skapti olhou em volta, procurando sinais do inimigo; um buraco daqueles devia ter algumas pistas, alguma evidência de habitabilidade. O guerreiro procedeu a uma busca exaustiva, mas não viu nada. Os homens descansaram um pouco as pernas e partilharam alguma água de um odre, ao mesmo tempo que verificavam as armas murmuravam palavras tranqüilizadoras. Todos concordavam que, entre aquele avanço inquietante através de uma paisagem que não parecia deserta, antes parecia estar sempre a observá-los, respirando, esperando, e uma investida aberta com guerreiros armados, preferiam a última hipótese.

Eram horas de continuar. Skapti abriu a boca para dar a ordem, mas depois fez uma pausa. Um dos homens mais novos, Hjort, estava a brincar com qualquer coisa, um minúsculo pedaço de cordel, ou fio, que só chamou a atenção de Skapti por causa da sua cor pouco habitual, vermelho-violeta. Aquilo parecia deslocado num lugar tão sombrio, tão cinzento e tão verde.

— O que é isso? — perguntou Skapti. — Hjort?

— Um pedaço de lã, mais nada.

— Deixa-me ver. — Skapti pegou no pequeno fio e segurou-o entre os dedos, sentindo a suavidade e regularidade da lã. — Lã de bordado: um utensílio de mulher, tão bem tingido como a melhor lã de uma dama. Onde é que arranjaste isto?

Hjort estava com um certo ar de culpa; não percebia a razão daquele súbito interesse.

— Estava além. Naquelas rochas.

Skapti atravessou o pequeno abrigo e perscrutou as prateleiras de pedra em busca de mais pistas, mas não encontrou nada. Momentos depois, disse:

— Nada. É melhor pormo-nos a andar se queremos chegar lá acima ao mesmo tempo que os outros. Toca a andar atrás de mim. — O guerreiro meteu o minúsculo fio de lã na algibeira e, de lança na mão, saiu do refúgio de rosto tranqüilo. Mas, por dentro, Skapti estava tudo menos tranqüilo. A culpa cravava-lhe as garras, o remorso e a confusão roíam-lhe o coração. Não podia mostrar aquilo a Thorvald. Era uma mensagem dos deuses apenas para ele, para o lembrar do mal que fizera. Porque vira o que os outros homens não tinham visto, ou não tinham compreendido: um único e longo cabelo estava enroscado na lã colorida, cabelo esse tão louro como o trigo sob a luz do Sol.

Os três grupos encontraram-se num determinado ponto no alto do flanco da Velha, onde o terreno era ligeiramente menos inclinado. Uma concavidade verdejante, por trás de uns arbustos raquíticos permitia que se reunissem ali todos; de ambos os lados foram colocados homens com os arcos prontos. Por cima, as nuvens acumulavam-se. O Sol aparecia e desaparecia, tão inconstante como uma jovem esposa aborrecida. O grupo de Thorvald fora o primeiro a chegar àquele ponto de encontro. Hogni perguntou a Einar como tinham feito e este disse, coçando as costas:

— Não perguntes.

Tinham subido um a um utilizando alguns homens como isco e trepando mais depressa do que estavam acostumados. Até o ferreiro, Skolli, estava ofegante, e tinha um peito que parecia um barril de cerveja.

Era a altura para trocarem as informações que tinham conseguido. Thorvald foi o primeiro a falar.

— Eles estavam a vigiar-nos de um ponto estratégico, por trás de um ressalto. Atiraram-nos com pedras; como vêem, sofremos três baixas, mas Egil e Ranulf estão desarmados e devem estar de regresso. Não sabemos se Thorkel está apenas atordoado, ou se o ferimento é mais sério. Os tipos que estão nos barcos farão o que puderem por ele. Esperava que o inimigo nos atirasse com flechas depois das pedras, mas não tiraram proveito da vantagem. Quando chegamos ao lugar onde tinham estado, já lá não estava ninguém. Apenas pegadas no solo. Hogni?

Hogni fez uma careta.

— Quase perdemos Wieland. Foi salvo por uma corda. Os rapazes portaram-se bem. Viemos pelo caminho mais íngreme, foi uma escalada dura. Não tenho mais nada para dizer. Não vimos sinais do inimigo. Mas, diria que têm qualquer coisa naquelas grutas ao sul, a que não querem que deitemos a mão. O carreiro que Wieland estava a experimentar com os pés foi engordurado com uma substância qualquer. Por que haviam de se preocupar com o local se ele não vai dar a nenhum lugar especial?

— Esta gente não é estúpida — disse Einar. — Algumas das armadilhas devem ter sido colocadas à sorte. Quero dizer, que têm eles a esconder senão o vidente? Não me convences, Hogni. É demasiado óbvio.

— Mesmo assim — observou Thorvald — a informação pode ser útil. Temos de considerar todas as possibilidades, por mais pequenas que sejam. Obrigado, Hogni. E tu, Skapti?

Skapti parecia pouco à vontade.

— Estamos todos aqui, não tivemos baixas nem ferimentos. Nada a relatar, exceto... — O grande guerreiro hesitou.

— Exceto o quê? — perguntou rispidamente Thorvald.

— Bem, encontramos uma velha cabana que mais parecia um esconderijo, abrigada e seca, com uma nascente perto e uma vista para o ancoradouro. Suponho que a utilizam. Há muito pouca coisa do gênero neste lugar maldito. Mas, se estiveram lá, fizeram um bom trabalho, porque não há rastro nenhum. Deixaram, apenas, uma coisa para trás.

— O quê? — Thorvald grunhia de impaciência; o Sol já estava a ultrapassar o zênite e tinham feito poucos progressos.

Hjort abriu a boca para falar, mas Skapti foi mais rápido.

— Um fio de lã de uma túnica, ou de uma capa — disse ele. — Esteve lá alguém, isso é certo.

Seguiu-se uma curta pausa e depois Thorvald disse:

— Obrigado. Pode ser que seja útil, essa informação. Muito bem, pessoal, não vejo como havemos de prosseguir. Não tivemos um ataque como deve ser. Não conto com a queda de pedras. Ainda não vimos o inimigo, quanto mais enfrentá-lo. Algumas teorias quanto ao fato de eles não nos terem atacado na baía enquanto estávamos a puxar os barcos para terra? De que estão eles à espera?

Seguiu-se um longo silêncio. Thorvald quase podia ver os seus homens a pensar.

Foi Einar, com as suas feições muito sérias cheias de cicatrizes, que falou. Os seus dedos brincavam com o colar de conchas que usava ao pescoço, talvez um talismã.

— A mim, parece-me que eles tencionam cansar-nos primeiro, e atacar-nos depois, quando estivermos mais fracos. Prevejo que se atirem a nós antes do anoitecer.

Hogni acenou com a cabeça.

— Têm de atacar, mais cedo ou mais tarde; é apenas uma questão de tempo.

— Hoje não há nevoeiro — observou Orm. — Não chove. Nos outros anos, sempre nos atacaram com nevoeiro. Quando ele desce, é como se eles conseguissem ouvir e nós não. Apanharam três dos nossos homens com aquelas pequenas lanças de osso, o ano passado. Atiraram com quatro de uma falésia abaixo na segunda caçada. Hoje está um tempo excepcional; é por isso que estão a agüentar. Isso pode ser uma vantagem para nós.

— Mais alguém? — Thorvald estava a pensar rapidamente, adaptando os seus planos ao momento. Ninguém falou. — Muito bem — disse ele — já passamos por isto antes, mas talvez devamos repensar. Vocês acham que o inimigo é constituído por... trinta? Quarenta homens?

— Mais do que nós — disse Einar. — Nós perdemos muitos todos os anos desde que isto começou; o inimigo é sempre o mesmo.

— São muitos, isso é certo.

— Qual foi o número maior que vocês viram? — perguntou Thorvald. — Já percebi que a maneira de eles atacarem é traiçoeira, pela calada; mesmo assim, preciso de ter uma idéia.

— Acontece que — disse Skapti — eles são muito rápidos. Como se não fossem humanos. Vê-se um de vez em quando a lançar um dardo por entre umas rochas, ou a correr pela face da falésia, ou a mergulhar na água, mas assim que a gente o vê, ele desaparece.

— A maior parte das vezes, só vemos as lanças a saírem do nevoeiro — acrescentou Orm. — A ilha protege estes tipos. Esconde-os.

— Compreendo — disse Thorvald — e já percebi que não entram em combate corpo-a-corpo; pelo que me disseram até agora, eles desenvolveram técnicas que tornam isso desnecessário, mesmo impossível. O terreno ajuda-os, percebe-se bem. Mas, respondam-me a uma coisa. Pode-se dizer que nunca viram mais de um ou dois desses homens ao mesmo tempo? Pensem bem, com cuidado e despachem-se, porque temos de continuar. — O jovem olhou em volta, pelo círculo de homens sentados nas rochas, ou acocorados na erva. Eram bons homens, leais e corajosos. Era uma pena não serem um pouco mais inteligentes. Quase desejava que Asgrim estivesse ali.

— E as vozes? — perguntou alguém. — As vozes vêm de toda a parte; mais vozes do que o número dos nossos homens, mulheres e crianças da Ilha das Tempestades.

Thorvald ia responder que nunca ninguém tinha morrido por causa de uma voz, mas depois lembrou-se do que lhe tinham dito acerca d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e das vozes que matavam os recém-nascidos.

— Vocês são guerreiros — disse ele. — Esqueçam as vozes; não passam de um artifício para vos desencorajar e fazer-vos esquecer a vossa força, a vossa coragem. Querem que vos diga no que eu acredito? — Seguiu-se uma série de acenos de cabeça e grunhidos de encorajamento. — Acredito que o inimigo é menos numeroso do que vocês pensam. Percebe-se pela maneira como atacam. Eles são ágeis e capazes, conhecem a ilha, são inteligentes e estão bem preparados. Com essas qualidades e com a ajuda do tempo, conseguem repelir ataques convencionais indefinidamente, apesar de vocês serem muitos mais do que eles. Pelo menos, suspeito que é assim. Pergunto a mim mesmo por que razão eles não se escondem e esperam que a Corrente dos Loucos nos obrigue a regressar a casa. Por uma razão qualquer, preferem assolar-nos. Muito bem, homens, já tornei claro o que quero fazer aqui. Não vamos permitir que este padrão continue. Vamos dar a volta a esta caçada. Vamos usar a mesma táctica deles. Pequenos grupos, três ou quatro no máximo, sempre cobertos, procurando qualquer coisa que esta gente possa ter deixado para trás: armas, pistas, o material com que fazem as armadilhas. Eles devem comer e dormir num lugar qualquer, devem deixar vestígios de fogueiras, a não ser que comam o peixe cru. Estejam sempre vigilantes; estejam atentos a qualquer sinal, seja ele qual for. E agora, separem-se e sigam as ordens dos vossos chefes. Se virem um inimigo, capturem-no, se puderem. Nós queremos o vidente, e só essa gente é que nos pode dizer onde ele está. Se tiverem de matar, matem. Percorram a ilha e trabalhem em equipe. Cubram os vossos camaradas. Vocês estão à procura do inimigo e de Máscara-de-Raposa. Não se esqueçam de quem é que anda à caça. Einar, Hogni, Skapti, nomeiem dois outros líderes dos vossos grupos, tal como planejamos, e separem-se.

— E tu? — perguntou Hogni, simplesmente curioso.

— Eu fico por minha conta — disse Thorvald tensamente. — Só mais uma coisa.

Os homens esperaram.

— Não vamos regressar aos barcos ao anoitecer. Vamos ficar aqui.

— O quê? — disse alguém, e os outros mandaram-no calar, mas os olhares eram de choque e de alarme.

— Sempre ficamos no mar de noite — disse Svein num sussurro horrorizado. — Ninguém dorme na Ilha das Nuvens.

— Assim — disse Thorvald o território que ganhamos no primeiro dia, tem de ser atravessado de novo no segundo. Não admira que nunca tenham encontrado o vidente. E eu não falei em dormir. Vamos deixar os mesmos homens a guardar os barcos, juntamente com os feridos. O resto reúne-se aqui. As ordens são estas. Einar conhece-as, assim como os outros chefes. Todos eles concordaram. Se quereis vencer, tendes de ficar em terra. O inimigo parece gostar de surpresas. Vamos surpreendê-lo esta noite. E agora vão. Encontramo-nos aqui ao anoitecer.

Não havia muito por onde pegar: duas pistas minúsculas e a sua convicção de que, por mais bizarro que parecesse, estavam a lidar, não com uma tribo de guerreiros selvagens, mas, na pior das hipóteses, com uma mão-cheia deles. Não fazia sentido, considerando as maciças perdas dos anos anteriores. Mas a superstição e o medo podiam desempenhar um papel importante naquele gênero de conflitos e quanto mais Thorvald pensava nos acontecimentos do dia, mais convencido ficava de que tinha razão. O inimigo era extremamente inteligente. Tirava um excelente proveito das vantagens que tinha: velocidade, mobilidade, o terreno e, nas caçadas precedentes, a natural propensão da Ilha das Nuvens para atrair o nevoeiro, a chuva e o vento. Muito provavelmente, a única coisa que limitara os seus assaltos durante aquele dia, fora o tempo bom. O povo dos Facas Longas prosseguira nas suas caçadas ano após ano apesar das perdas, da falta de coesão como unidade de combate, da lamentável falta de capacidade no manejo das armas e da liderança disparatada por parte de Asgrim. Aquela persistência obstinada não fora benéfica para o povo do governador. O inimigo era engenhoso. A única maneira de o derrotar era fazer o mesmo. O número, ali, não tinha importância.

Thorvald recapitulou o dia. Até ali, não tinham perdido nenhum homem: um progresso considerável face ao recorde de Asgrim até à data. Tinham atravessado uma parte considerável da ilha: isso também era bom, mas insignificante, a não ser que tirassem vantagem desse avanço ficando em terra durante a noite. Não tinham encontrado Máscara-de-Raposa. Assim, numa análise final, não tinham conseguido nada. Apenas duas pistas e um palpite. Muito bem, contaria apenas com esse pouco.

Algum tempo depois, quando o Sol já estava baixo e se erguia no mar uma bruma ligeira e brilhante, não uma verdadeira névoa, antes um espectro, o grupo de três homens de Hogni encontrou-se com Thorvald num local onde as falésias viradas a sul se precipitavam no mar alarmantemente e onde uma pequena nascente deixava cair uma longa coluna de água na direção das rochas em baixo. Nas margens daquele pequeno regato, o musgo e as pequenas plantas trepadeiras cobriam as rochas molhadas e, de vez em quando, aves minúsculas mergulhavam para encher os bicos com aquela água límpida antes de se lançarem de novo no céu. Thorvald estava deitado de barriga perto da borda, espreitando por cima da rocha. Quando ouviu os outros aproximarem-se, torceu o corpo e afastou-se da beira.

— Alguma coisa? — perguntou ele.

Hogni acocorou-se junto dele, uma figura sólida nas suas roupas de pele gastas que tinham sido certamente, em tempos, um uniforme de um tipo qualquer.

— Vi um deles — disse ele. — Perto daqui. Perseguimo-lo, obrigou-nos a correr. Não disparou nada, se bem que tivesse um arco e flechas. Jovem, de aspecto selvagem. Pensei que o tínhamos encurralado, mas desapareceu no meio das rochas e não conseguimos descobrir para onde foi. Este lugar está cheio de grutas e de túneis. Penso que tens razão; estes tipos estão a tentar cansar-nos antes de atacarem. — Hogni olhou para o céu. — E têm de o fazer rapidamente, o dia vai passando.

— Talvez ataquem de noite — disse Svein. — Eles conhecem o local e nesta altura do ano nunca fica muito escuro.

— E tu? — perguntou Hogni com os pequenos olhos fixos em Thorvald. — Que estás aqui a fazer? Aquilo era só eu a pensar. Viste alguma coisa? Não ouviste nada?

— Absolutamente nada — disse Thorvald. — Apesar de tudo, penso que tens razão. Ali em baixo há grutas, ou uma coisa parecida, e eu gostaria muito de vê-las. A pergunta é: como? Depois do que aconteceu com Wieland, seríamos estúpidos se confiássemos nestes carreiros estreitos e a falésia parece que está a cair aos bocados.

— Cordas — disse Hogni. — Temos algumas. — Eu podia segurar-te, se quiseres tentar. É claro que, se eles estiverem lá dentro, será como agitar uma galinha presa por uma pata diante de um cão esfomeado. Sei muito bem em que ponta da corda gostaria de estar.

Thorvald pensou nas opções. A luz estava a diminuir; mas ainda tinha tempo. Era um grande risco, mas se o seu instinto não o enganava, podia ser o ponto de viragem.

— Acho que vou tentar — disse ele. — Nunca servi de isca antes; será a primeira vez. Só quero dar uma olhada. Precisamos de ter uma certeza razoável de que o vidente está ali antes de desperdiçar tempo a obrigá-lo a sair.

— Engraçado — observou Hogni. — Ele é apenas um miúdo, não é? Máscara-de-Raposa, quero eu dizer. Os miúdos são barulhentos; eu sei que é assim. Tenho um par deles, apesar de não os ver há muito tempo. E este tem o quê? Seis, sete anos? Como é que eles fazem com que ele fique calado é o que eu gostaria de saber!

— Ele não é uma criança normal — disse o quarto homem, Paul. — Ele é um vidente, no fim de contas. Dizem que é metade rapaz, metade animal; que muda de forma por meio de feitiçaria. É esse o significado do nome: Máscara-de-Raposa. Esconde-se transformando-se num animal.

— Uma raposa? — perguntou Thorvald de sobrancelhas erguidas. — Não é lá grande disfarce. Aqui, faria melhor se se transformasse num ganso-patola, ou num papagaio-do-mar.

— É um nome antigo — disse Svein. — Antes dele, tinha-o outro tipo. A tradição vem de longe.

— Mesmo assim — disse Hogni, obstinado, inspecionando a corda que tinha atado em redor da cintura — o fato é que os miúdos são naturalmente barulhentos. Se ele está ali, devia ser possível ouvir qualquer coisa. Mantenham os ouvidos abertos. E agora vamos embora, homens. Svein, tu seguras na ponta da corda. Paul, mantém o arco pronto e os olhos bem abertos e diz-me logo se vires alguma coisa. Ficamos aqui expostos e aquele tipo desapareceu perto daqui há pouco tempo. Vamos tentar só uma vez.

Thorvald começou a descer a falésia, as mãos e os pés sondando, tateando, agarrando-se em busca de apoio, a corda ainda solta mas firmemente segura nas mãos dos homens, em cima. O jovem sabia que Hogni era capaz de agüentar com o seu peso no caso de uma queda súbita e que os três homens tinham a força necessária para o puxar, mas isso não impedia que o seu coração soasse como um tambor, ou que a sua respiração parecesse a de um homem depois de uma longa corrida enquanto descia pela vertiginosa face da falésia. Thorvald dirigiu-se para o lado oeste da queda d’água, evitando a rocha molhada e mais escorregadia. Não era possível passar ali despercebido. Caíam pequenos seixos, pequenos pedaços de pedra desfaziam-se sob os seus dedos ou sob os pés, caindo nas rochas abaixo. Talvez tivesse sido uma idéia estúpida. Provavelmente, era. Por outro lado, se o inimigo fosse tão inteligente como Thorvald suspeitava, era provável que tivesse escondido o seu tesouro naquela parte pouco provável e inacessível da ilha. Por isso, toca a andar, para baixo e com cuidado, sentindo a corda tensa lá no alto, encontrando uma fenda para colocar o pé, a raiz de uma planta obstinada para a mão estendida e sempre procurando, procurando através daquela extensão de rocha desigual em busca de uma gruta qualquer, ou de um buraco suficientemente grande para abrigar algo maior do que o ninho de uma gaivota. E escutar: porque, para lá dos gritos das aves, do barulho da água da cascata e do bater do seu próprio coração, tinha de haver outro som qualquer. Um suspiro de criança, um passo abafado, o tilintar do metal; se o seu instinto estava certo, quem estava escondido ali, naquela desolada parede de rocha, tinha de se denunciar de qualquer maneira, se mantivesse os ouvidos bem abertos. Só mais um pouco... mais um pouco... O jovem agarrou-se às rochas e esperou, imóvel como um morto.

 

A Jornada jazia estendida no chão, uma jóia de cores brilhando à luz difusa que entrava pela abertura estreita da gruta. Creidhe não tencionava olhar para o seu trabalho antes de terminar a caçada, porque olhar era imaginar as imagens que não fizera, as coisas terríveis que tinha alojadas na mente e que se recusavam a sair. Mas o dia era longo e o silêncio forçado fazia com que ainda fosse mais longo. Não podia contar histórias, ou cantar, ou até andar de um lado para o outro com medo de revelar a sua presença através do som de um passo, do restolhar da roupa, ou por deixar cair um objeto qualquer. E não podiam dormir durante o dia; isso seria um convite a uma noite sem sono, durante a qual os medos que já assolavam Creidhe redobrassem de intensidade na escuridão.

Pequenino preocupava-a. Não que o Pequenino os pudesse denunciar devido a um som qualquer; ele era, se não outra coisa, pelo menos invulgarmente obediente aos pedidos de Guardião, compreendendo perfeitamente o que lhe era pedido. Era o olhar de profunda tristeza no seu pequeno e estranho rosto que lhe fazia doer o coração, uma dor superior ao medo de ser apanhado, superior ao terror de saber que Guardião estava em algum lugar a travar uma batalha tão desigual que parecia impossível sobreviver mais um ano. Nos olhos de Pequenino estava aquilo tudo e muito mais; havia neles algo ainda mais forte, uma tristeza tão profunda como a mensagem de alegria prodigiosa que ela ouvira na sua melodia. Os olhos dele contavam uma história que não tinha nada a ver com o fato de ele ter seis anos e estar fechado numa gruta numa semiescuridão sem poder andar. Havia coisas antigas na mente daquele pequeno vidente, coisas do espírito que Creidhe sabia estarem para além da sua compreensão. Tudo o que podia fazer era tentar consolá-lo, e esperar tranquilizar-se a si própria.

Assim, olharam para a Jornada, usando as mãos e os olhos para trocarem uma espécie de comentários. Pequenino indicara com os dedos as histórias que Creidhe contara antes: Eyvind, o guerreiro, e o seu inteligente amigo Somerled; Eyvind conquistando a sua pele de lobo e tornando-se, mais tarde, líder de homens. Depois, a história do pequeno Kinart, que a Tribo das Focas levara e afogara. Talvez. E Creidhe e as suas irmãs; Creidhe deixando a sua casa, velejando para longe; Creidhe virando um barco e chegando à Ilha das Nuvens. As mãos de Pequenino descansaram suavemente na lã escura que representava a imagem da ilha, lã cinzenta como a pele das focas, verde-escura e violeta, como o crepúsculo. Depois, o jovem atingiu o local onde se via a sua própria imagem, pouco mais do que um par de olhos na sombra. O pequeno cobriu-a com a mão e apontou para si próprio. Creidhe acenou com a cabeça. Sim, tu estás na Jornada. Eu não podia bordar a ilha sem bordar a ti também.

O Pequenino descobriu a imagem de Creidhe no bordado, uma figura mole em cima de um barco virado ao contrário. Na descrição, umas mãos pálidas saíam da água para guiar o barco desgovernado na direção da praia. Pequenino afagou os cabelos dourados da figura de lã e depois estendeu os dedos para afagar a longa trança de Creidhe, que caía para a frente enquanto a jovem olhava para a Jornada. Creidhe acenou de novo com a cabeça, sabendo o que se iria seguir.

A pequena mão de Pequenino moveu-se através dos pontos que Creidhe bordara desde que chegara à ilha: ele mesmo sob a forma canina; as caveiras com as suas bocas abertas num grito silencioso; a bruma, a chuva, a pequena lareira com uma panela ao lado. Ele olhou para ela, com uns olhos muito grandes. A sua mão estendeu-se de novo, tocando no tecido vazio ao lado daquelas últimas imagens, como se buscassem algo. O pequeno apontou na direção da abertura da gruta, onde a luz sugeria que o Sol estava a pôr-se; olhou para ela, o rosto tão ansioso como o de um cachorro apanhado em falta. Não eram precisas palavras para nada. A sua mensagem era clara. Onde está ele? Onde está o meu irmão? Por que não puseste Guardião na tua tela?

E quando ela não lhe respondeu, não porque necessitasse de silêncio, mas porque não tinha uma resposta, Pequenino ficou mais agitado do que ela alguma vez vira. Sempre sem um som, ele puxou o saco de Creidhe, tentou tirar o tecido dobrado onde estavam guardadas a lã e as agulhas e, quando não conseguiu, imitou, com gestos, o que ela devia fazer. Agora, faz agora, põe o meu irmão na tua tela, agora, hoje! Os seus olhos estavam aterrorizados, a boca torcida, as mãos frenéticas enquanto tentavam mostrar à jovem aquilo que desejava. Creidhe estendeu os braços para lhe segurar nas mãos, mas Pequenino afastou-se violentamente. O coração de Creidhe batia com toda a força. Ela apontou na direção da abertura da gruta, tentou mostrar-lhe: Não tenho luz para bordar, não há luz suficiente, o que era verdade. Mas não era aquela a verdadeira resposta. Mas não lhe podia dar. Não vou bordar essa parte, porque vejo nela a morte. Sei que Guardião estava errado quando disse que eu tinha o poder de mudar o futuro com as minhas agulhas e as minhas lãs coloridas. Não é verdade. Como poderia ser? Se eu achasse que era verdade, teria bordado a imagem dele há muito tempo. Tê-lo-ia mostrado alegre e a sorrir, com uma mão na minha e a outra numa das tuas, Pequenino. Mas não voltarei a bordar, porque a imagem que apareceria no tecido não seria uma imagem boa, seria uma imagem má. Apareceria, mesmo contra a minha vontade. Na verdade, estava mesmo na sua frente, via-a mesmo com os olhos abertos. Como podia aquela caçada acabar sem uma morte, uma morte que lhe despedaçaria o coração? Creidhe sentiu umas lágrimas quentes a caírem-lhe dos olhos e a rolarem-lhe pelas faces; a jovem tentou reprimi-las, mas elas não obedeceram. Creidhe cobriu o rosto com as mãos; assim não podia ser, a adulta ali era ela e tinha de ser forte. Um momento mais tarde, sentiu Pequenino a subir-lhe para o colo e a rodear-lhe o pescoço com os braços. Ela baixou os braços para o abraçar e, quando o fez, sentiu que também ele estava a chorar, o seu frágil corpo tremendo convulsivamente, mas sem um único som. Pequenino chorava como se todo o seu espírito estivesse cheio de dor. Creidhe embalou-o, desejando poder consolá-lo com palavras, com uma pequena canção, com o conhecimento do que estava errado, para que o pudesse ajudar. Na outra noite, quando ele cantara para a Lua na sua dança imponente através do céu, Pequenino parecia poderoso, velho e sábio. Agora, aninhado nos seus braços, não passava de uma criança só e miserável. Creidhe apertou-o contra si, fechou os olhos e rezou aos antepassados com todas as suas forças. Por favor, fazei com que tudo saia certo. Por favor, fazei com que tudo acabe bem. Não deixeis que Thorvald mate Guardião. E não deixeis que Guardião mate Thorvald. E, por favor, permiti que esta criança seja feliz aconteça o que acontecer. Ele não merece isto; é tão pequeno.

Finalmente, Pequenino adormeceu contra o seu peito, com as pestanas cheias de lágrimas; ela envolveu-o em cobertores e instalou-o o mais confortavelmente que pôde. Em seguida, Creidhe aproximou-se da entrada, vendo a luz do Sol mudar enquanto o astro mergulhava no horizonte. Desejou que Guardião ouvisse a mensagem: O teu irmão ama-te; tu és tudo para ele. E eu amo-te. Gostaria de te ter dito. Por favor, tem cuidado, estejas onde estiveres. Tenho-te no coração a cada momento. Quero que saibas isto; quero que o saibas no fundo do teu coração.

A luz, no exterior, ficou cor de laranja e depois vermelha. As gaivotas trocavam gritos; ouvia-se uma débil música aquosa, vinda do ribeiro que descia pela falésia abaixo, perto do esconderijo. Creidhe sentou-se muito quieta. A sua respiração ficou mais lenta; o seu coração começou a bater a um ritmo certo. Se entrasse em pânico não ajudaria Guardião ou Pequenino. Não podia influenciar o que estava a acontecer. Prometera proteger o Pequenino, mas não podia fazer mais nada.

Ouviu-se um som no exterior, por cima da entrada da gruta e uma pedra caiu aos ressaltos, passando a dois passos do rosto dela. Creidhe sobressaltou-se, alarmada. Silêncio. Talvez tivesse sido apenas um desmoronamento natural da falésia. Mas não: a jovem ouvia, agora, um movimento, como uma bota a escorregar e pela abertura da gruta passou uma cascata de seixos. Creidhe ficou gelada. Recuar para o interior seria arriscar-se a ser detectada por menor que o barulho fosse. Ficar onde estava significava ser vista instantaneamente se, de fato, estava um homem a descer pela falésia, ou um grupo de homens numa missão de busca. Certamente que não era Guardião, que podia pisar qualquer terreno com a segurança de um animal selvagem.

Outra pedra. Os sons tinham cessado. Com uma lentidão dolorosa, Creidhe afastou-se de gatas da abertura, aproximando-se das sombras do interior da gruta, onde a criança dormia. Onde a criança, de repente, começou a rolar de um lado para o outro, inquieto, esfregando os olhos no seu sonho, deixando sair, depois, um pequeno queixume antes de cair num sono calmo. Um som muito débil, muito ligeiro: uma pista mortal. Quem estava lá fora? Teriam ouvido o choro de Pequenino? Na semiescuridão, os dedos de Creidhe estenderam-se para agarrar o punho da faca que Guardião lhe dera e, cerrando os dentes numa estranha mistura de raiva e terror, encolheu-se onde estava, à espera.

 

Ouviu-se um grito vindo do alto da falésia, áspero e sem palavras, um grito de dor. A corda agitou-se violentamente e depois imobilizou-se. Thorvald agarrou-se à rocha com o coração aos pulos. Um momento mais tarde ouviu-se a voz de Paul a gritar.

— Volta para cima, depressa!

O jovem obedeceu. A nota de horror daquelas palavras chocadas não admitia outra coisa. O jovem trepou, escorregando desajeitadamente, fazendo o possível por minimizar a sua dependência do homem que segurava na corda; quem sabia o que estava a acontecer? Apesar dos seus esforços, uma das mãos de Thorvald escorregou, ele perdeu o equilíbrio e ficou a balançar no vazio, a três batimentos do coração de distância do mar selvagem na base da falésia. A corda aguentou-se; graças aos deuses por Hogni.

— Depressa, despacha-te! — gritou a voz mais uma vez e Thorvald agarrou-se desesperadamente a um arbusto, começando, de novo a subir. Com o coração a bater como um martelo e o corpo encharcado em suor, o jovem subiu os últimos metros e chegou à plataforma onde estavam os seus companheiros. Só que eles já não estavam de pé. Svein estava de bruços nas rochas, imóvel salvo por alguns movimentos dos dedos das mãos. Nas suas costas estava espetada uma flecha. Paul estava a armar o seu arco com as mãos a tremer enquanto olhava para a encosta verdejante na sua frente, onde não parecia haver ninguém. E Hogni, tentando desajeitadamente desatar a corda que o unia a Thorvald, estava da cor da cinza e tremia

— O que...? — começou a dizer Thorvald, desatando a sua própria ponta da corda e caindo de joelhos junto do homem ferido. O jovem virou Svein e percebeu imediatamente que era demasiado tarde: aquele guerreiro tinha a morte nos olhos, nada o faria regressar. Por trás de si, Paul perdia flechas metodicamente, ao mesmo tempo que praguejava.

Hogni ajoelhou-se do outro lado de Svein, em frente de Thorvald e estendeu uma mão para fechar aqueles olhos subitamente fixos e opacos.

— Thorvald? — murmurou o grande guerreiro.

Thorvald sentiu-se abruptamente gelado até aos ossos. O jovem olhou para os olhos pequenos e aterrorizados de Hogni, para o tremor das suas mãos fortes. Do peito de Hogni, mesmo abaixo do ombro, surgia a ponta de uma lança; aquele projétil finamente trabalhado perfurara-lhe a sua pesada túnica de pele com a facilidade de uma agulha de coser. Thorvald levantou-se lentamente. O jovem fez um esforço e rodeou o guerreiro para ver a outra metade do longo dardo que saía das costas de Hogni; para observar a escura e oleosa camada que o revestia e que se misturava com o sangue do grande guerreiro. Svein morrera rapidamente, durante o espaço de tempo que ele levara a subir a falésia. Hogni fora ferido, mas continuara a segurar na corda, cobrira o seu camarada e seguira as suas ordens, sabendo que tinha a morte no corpo.

— Apanhou Svein no coração. — A voz de Hogni era um murmúrio rouco. — Paul feriu-o, creio. Ouvi um grito e depois ele fugiu. — A voz começava a faltar-lhe. — Tenho de ir... abrigo. É preciso... falar... irmão...

— Talvez possamos fazer qualquer coisa — disse Thorvald, tentando recordar qualquer coisa que pudesse ter aprendido acerca de venenos e antídotos. — Não posso tirar o dardo; mas, se fizermos um corte no ferimento e o ligarmos com força, talvez...

— Não há esperança — disse Hogni, respirando com dificuldade. — Esta coisa não... já vi antes... pouco tempo... não muito... vamos para baixo enquanto... posso... Skapti...

Thorvald sentiu um aperto no coração. Não valia a pena contestar o que era, provavelmente, verdade.

— Devíamos tirar o dardo, pelo menos — disse ele. — Ficas mais confortável. Eu...

— Não! — conseguiu dizer o guerreiro. — Não toques... espera... Skapti...

— Muito bem — disse Thorvald com o coração a bater com toda a força. — Esperamos pelo teu irmão. Consegues andar, Hogni?

— Força suficiente... — murmurou o grande guarda-costas.

— Paul! — chamou Thorvald. — Vamos, temos de o levar para o abrigo. Svein, por agora, fica aqui. E esperemos que aqueles miseráveis se dêem por satisfeitos, por agora. Por todos os deuses, hão de pagá-las. Vamos — disse ele para Hogni, que se tinha levantado e que, oscilando, tinha colocado um braço em redor dos ombros de Thorvald e o outro em redor dos de Paul. — Vamos ter com os outros antes que chegue a noite. Custa-me muito deixar um guerreiro para trás, mas não temos outra hipótese.

— Eu venho cá amanhã com dois camaradas — disse Paul. A sua voz soava de um modo estranho; quando Thorvald olhou para ele, viu que o rosto do arqueiro estava cheio de lágrimas. — Enterramos Svein, se pudermos. Já ficaram muitos dos nossos homens sem receber os ritos próprios neste maldito lugar.

Então, Hogni emitiu um gemido, estremeceu e o guerreiro foi percorrido por um grande tremor. Thorvald e Paul desceram a encosta abrupta à luz do crepúsculo com o grande guarda-costas cambaleando entre os dois. Quanto ao inimigo que lhes montara a emboscada e disparara aqueles dardos venenosos com uma crueldade mortal, desaparecera como uma sombra.

 

Mais acima, na escuridão de uma gruta pouco profunda, estava Guardião sentado, sozinho. Doía-lhe o braço, no lugar onde lhe acertara a flecha disparada por Paul; o jovem envolvera o ferimento num bocado de pano, porque não podia deixar nada que revelasse a sua passagem pela encosta. Colocou a dor num determinado ponto da mente, onde deviam ficar distrações como aquela. Era essencial permanecer alerta, manter-se sempre um passo à frente.

Tinham-no surpreendido. Tinham-se aproximado perigosamente do local onde estavam escondidos os seus dois entes queridos. Aquele Thorvald era esperto. A mão de Guardião quase pegara no arco para disparar uma única flecha, cortando a corda que sustinha o amigo de Creidhe na face da falésia, perto da gruta secreta. Teria ficado satisfeito por ver cair o homem de cabelos vermelhos; ter-se-ia esmagado nas rochas e o mar tê-lo-ia levado. Aqueles que invadiam aquela ilha, aqueles que procuravam fazer mal a Pequenino não mereciam melhor. Mas Guardião não conseguiu disparar; com aquele ferimento na parte de cima do braço, não podia apontar convenientemente e, se falhasse, ter-se-ia exposto a um contra-ataque. Thorvald teria de esperar.

Os homens estavam, agora, reunidos. Podia ouvi-los a falar e conseguia ouvir os sons que o homem ferido emitia. O veneno podia demorar algum tempo se o guerreiro era forte. Guardião podia atacar de noite; a ilha ajudá-lo-ia enviando vozes para a escuridão, usando todos os seus truques e armadilhas. Mas as forças de Asgrim eram substanciais e estavam juntas, com sentinelas a vigiar, e Guardião cometera um erro. Deixara-se ferir, o que limitaria a sua capacidade de manter o assalto uma vez começado.

Não podia, portanto, ser naquela noite, contra todos ao mesmo tempo. Nos outros Verões, eles tinham-se assustado com facilidade, tinha sido fácil dispersá-los, tinha sido fácil apanhar um a um à medida que iam fugindo. Guardião percebeu que, desta vez, ia ser diferente. Este ano, eles traziam um verdadeiro líder: o recém-chegado, o intruso, o arrogante Thorvald, metido numa contenda que não era da conta dele e fazendo-o com uma competência espantosa. Um homem daqueles não queria saber de Pequenino, salvo como troféu de guerra, um prêmio a conquistar. E não queria saber de Creidhe. Tratara-a mal e não merecia a sua lealdade.

Guardião semicerrou os olhos na semiescuridão, escutando as vozes baixas dos homens abrigados na concavidade por baixo da gruta.

Que faria Thorvald no dia seguinte? Como agiria um homem como ele? O jovem tentou concentrar-se no intruso, mas a sua mente não cooperava. Em vez disso, imaginou Pequenino e Creidhe calados na pequena gruta, escutando os sons no exterior, sabendo que alguém se aproximava, abraçados um ao outro, assustados e sós. Recordou o último abraço de Pequenino. Sentiu o beijo de Creidhe, o seu corpo maravilhoso, suave, vibrante, contra o seu, cheio de ternura e promessa. Guardião fechou os olhos. O jovem jurara que não pensaria neles até aquilo acabar; a caçada exigia toda a sua força e vontade. No entanto, tinha-os no coração, enchendo-o e afastando tudo o mais, salvo a visão de uma felicidade que ele nunca acreditara ser possível e um medo redobrado.

No fim de contas, tinha a resposta diante de si, os seus planos e a sua estratégia. Não atacaria, ficaria de guarda. Matar muitos era bom, porque reduzia a capacidade de Asgrim em futuras caçadas. Mas o essencial era proteger o seu tesouro; salvar Pequenino e assegurar-se de que Creidhe não era capturada. Antes do amanhecer instalar-se-ia na falésia virada a sul, por cima da cascata. Se Thorvald regressasse, Guardião matá-lo-ia. Se viessem mais homens com ele, matá-los-ia também. Só faltava um dia, só mais um dia para o inimigo retirar. Depois, regressaria a paz e poderia ir buscar os seus dois entes queridos.

 

— Quanto tempo? — perguntou Thorvald em voz baixa. Passara-se algum tempo; tinham atingido o ponto de encontro muito depois dos outros e, agora, Hogni estava encostado a uma grande pedra, tremendo de febre enquanto Skapti, com o rosto da cor da cinza, passava um pano molhado pela fronte do irmão. Os outros rodeavam-nos, calados e muito sérios à luz estranha da noite de Verão. Nem todos estavam presentes, porque Svein não fora a única vítima. Um dos homens do grupo de Einar caíra numa armadilha e fora parar no fundo de um precipício, nas rochas, a uma distância impossível do ponto onde os companheiros estavam chocados e impotentes. E um do grupo de Orm fora varado por uma lança; uma das suas armas, devolvida pelo inimigo. Helgi morrera a gorgolejar, engasgado com o próprio sangue. Os homens estavam silenciosos; ninguém queria dormir. De cada um dos lados da concavidade onde se encontravam, dois arqueiros montavam guarda com lanças de arremesso, se bem que não fosse fácil, naquela meia-luz, visar um alvo em movimento.

Skapti tratou do dardo. Com as mãos protegidas da camada venenosa por um pedaço de lã espessa tirada da sua própria túnica, conseguiu quebrar, com um estalido seco, a haste que saía do peito palpitante do irmão e puxou a outra parte das costas de Hogni com um som de sucção desagradável. Hogni não gritou; ele era um guerreiro, muito resistente. Emitiu, simplesmente, um pequeno gemido e cerrou os punhos. Thorvald ligou o ferimento; um pequeno ferimento, mas o suficiente para roubar àquele gigante robusto a sua parte do futuro que todos desejavam.

Agora, estavam todos à espera, como fantasmas reunidos à luz do crepúsculo, sem uma fogueira ou um abrigo, sem risos nem histórias, ou uma caneca de cerveja para os ajudar a comemorar as vidas e as mortes de tantos homens bons. Thorvald sentiu os olhares deles e imaginou os seus pensamentos: Tu é que és o culpado. Foste tu que o mataste com os teus belos planos, com as tuas sortidas, mandaste-os como carneiros para o matadouro. Isto era suposto ser uma grande vitória. Agora, Svein, Alof e Helgi morreram e Hogni é um moribundo. O que é que te dá o direito de pensar que és melhor do que Asgrim?

— Quanto tempo tem ele? — perguntou Thorvald de novo, sentado de pernas cruzadas ao lado do guerreiro. — Tens a certeza de que não podemos fazer nada?

— Ele é grande e o dardo não fez muito sangue — disse Einar em voz baixa. — É mau; quer dizer que vai demorar mais tempo. Durante a noite. Esperemos que o inimigo não decida atacar.

— Não há...?

Skapti abanou a cabeça.

— Um homem não sobrevive a isto — disse ele com uma voz áspera, sofredora. — A maioria morre rapidamente. O meu irmão luta. Ele é assim.

Pelo grande corpo de Hogni passou uma convulsão; os seus braços agitaram-se para cima e para fora, as suas costas arquearam-se e os seus pés matraquearam convulsivamente o solo. Em seguida, ficou de novo imóvel, a respiração asmática como único som, salvo os débeis gritos das aves noturnas. Era evidente, pelo cheiro, que ele perdera o controle das entranhas; Einar, calmamente, limpou-o o melhor possível naquele espaço confinado.

— Thorvald? — A voz de Skapti era fraca como a de uma criança, sem raiva.

— O que é?

— Importas-te de pedir aos homens que se afastem um pouco? Não muito; é que eu tenho de lhe dizer umas coisas antes... umas coisas que eu tenho de dizer enquanto ele é capaz de as compreender. Tu não, Einar, fica aqui. Hogni? Consegues ouvir-me?

— Não é preciso... — As palavras de Hogni saíram numa espécie de assobio.

— É preciso, é — disse Skapti calmamente. — Tenho de te dizer isto, ou não poderei continuar, por isso cala-te e ouve-me. Thorvald?

Depois de ter mandado os homens afastarem-se, o jovem ficou ao pé de Wieland e de Orm, não fora de alcance das palavras de Skapti, mas, pelo menos, a uma distância respeitável dos dois irmãos.

— Preciso de ti aqui perto — disse Skapti. — Se não te importas.

Sem dizer uma palavra, Thorvald regressou para junto de Hogni.

O jovem segurou numa das mãos do grande guerreiro e Skapti na outra, enquanto Einar molhava o pano num odre e o levava às pálidas feições de Hogni.

— Não demora nada — disse Skapti, olhando para Einar — Tu sabes como foi sempre conosco, guarda-costas do governador, velando por ele, tratando dos assuntos dele. Desde sempre: desde miúdos. Acontece que houve mais do que isso. Para mim, pelo menos. Assuntos especiais: coisas de que tu nunca soubeste, Hogni. Eu não gosto de guardar segredos, especialmente do meu próprio irmão. Não me sinto bem. Mas foi o que fiz. Nunca te consegui falar do que Asgrim me mandava fazer. Ter-me-ias desprezado. Na primeira vez, ele persuadiu-me de que tinha de o fazer para que os ataques parassem. “Tu és o meu braço direito, Skapti” disse-me ele. “Façamos isto pela paz.” Foi o que eu fiz, sem te dizer nada, e não me pareceu que fosse errado, mas a coisa correu mal. Depois disso, ele passou a dominar-me. Asgrim sabia como ficarias se soubesses que eu te tinha mentido. E disse-me que tínhamos agido bem; que o fizéramos pelo povo dos Facas Longas, pelas crianças todas que tínhamos perdido. Disse que tínhamos acabado com os anos maus. Na primeira vez, com Sula, acreditei nele; as outras coisas que fiz, fazia-as porque ele me metia medo. Mas na última vez, com a amiga de Thorvald, foi diferente. Senti-me mal, senti que algo sombrio e sujo se tinha metido dentro de mim. Percebi que tinha estado sempre errado. Errado o tempo todo ao fazer o trabalho sujo de Asgrim, errado por não te ter contado a verdade, Hogni. O governador é um homem mau. Devia ter-lhe feito frente.

Thorvald estava arrepiado, se bem que só tivesse compreendido parcialmente. Hogni estava calmo, com o olhar fixo no rosto duro do irmão.

— Fala claro, Skapti — disse Thorvald asperamente. — Que queres dizer com isso da primeira e da última vez? Primeira vez o quê, exatamente?

Skapti inclinou a cabeça.

— É que — disse ele — toda a gente pensou que Sula foi raptada, roubada; as pessoas admiraram-se por Asgrim não ter ido atrás dela, mas ele não é um homem a quem se possa dizer nada. Eu fui o único a saber que ele fez um acordo com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz; o único para além de Asgrim e de Erling, o irmão da rapariga. A filha do governador não foi raptada, foi vendida. Asgrim trocou-a com o inimigo por uma promessa de paz.

Seguiu-se um silêncio absoluto. Thorvald podia ver, pelos olhares admirados de Einar e de Hogni, que nenhum deles estava ao corrente dos fatos em relação ao homem que seguiam como governador e chefe de guerra. Mais longe, onde os homens estavam sentados junto das rochas, não se ouvia um som. Thorvald tinha a certeza de que eles tinham ouvido tudo. O jovem chamou a si todas as suas forças para fazer a pergunta seguinte.

— E Creidhe? — O jovem não conseguiu manter a voz firme.

— Sabes — disse Skapti, que agora chorava abertamente — eu quase que acreditei que estava a fazer uma coisa boa. Asgrim é bom, dá-nos a volta. Ele fechou o filho, não o deixou ir atrás de Sula. O rapaz quase enlouqueceu. Um bom rapaz. Um pouco sonhador, apesar disso, nunca gostou de lutar, não era capaz de pegar numa arma. Toda a gente pensava que ele ia acabar como eremita, como aqueles tipos no alto do monte. Finalmente, foi libertado, demasiado tarde para a rapariga, mas, mesmo assim, ele foi atrás dela assim que o tempo o permitiu. Mas, enquanto ela esteve com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, tivemos paz. E sabia bem. Quase nos chegamos a esquecer de como é bom. Então, o rapaz raptou Máscara-de-Raposa e começou tudo de novo.

— Fala-me de Creidhe — disse Thorvald, tentando manter a calma.

— Nós vimos logo, mal ela pôs os pés na ilha. O cabelo, quero dizer. Ela teve de o cobrir; tivemos que esperar até Asgrim conseguir um acordo, certificar-se de que nos deixariam em paz assim que a tivessem. Mantivemo-la na aldeia até ele conseguir outro encontro com o inimigo.

Thorvald manteve-se imóvel enquanto o frio o percorria lentamente, compreendendo que tinham estado a brincar com ele. Não conseguia falar.

— Tiramos você e Sam do caminho — continuou Skapti. — Então, ele conseguiu o encontro, apresentou-lhes as condições, eles concordaram e marcaram uma data e o local. Ele disse-me o que eu tinha a fazer. No fim, a rapariga facilitou-me as coisas, foi passear com um dos monges. Eu estava lá. Certifiquei-me de que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a levavam, vi-os partir de barco. Ela chamou-me, pediu-me para a ajudar. Nessa altura, eu já sabia que o meu coração estava errado. Todos nós queremos a paz, mas não a qualquer custo. Uma rapariga tão bonita, tão corajosa. Teria dado uma boa esposa, qualquer homem que ficasse com ela seria um homem de sorte. Quando a vi pôr-se de pé e atirar-se ao mar... quando a vi na água... Soube que tinha praticado uma maldade. Errei na primeira vez e errei na segunda. Errei quando matei o miúdo que ia ter convosco para vos dizer a verdade, Thorvald. Matar um homem em combate é uma coisa. Assassiná-lo a sangue-frio é outra. Os deuses enviaram-me um sinal, hoje, lembraram-me que não passo de um bandido. Mais valia ter feito com que Asgrim me matasse, em vez de entregar assim uma rapariga inocente àqueles selvagens, não uma, mas duas vezes. Mais valia não ter nascido. — Skapti passou uma das suas grandes mãos pelo rosto. — Pronto, contei-te tudo, meu irmão. Não espero que me perdoes. Não mereço isso. Só queria que soubesses a verdade antes de ires. Os irmãos não devem ter segredos uns para os outros.

Thorvald olhou para Einar; Einar encontrou o seu olhar com uma expressão na qual o desgosto, a ânsia pelo perdão e a impotência se misturavam.

— Vocês sabiam — murmurou Thorvald. — Sabiam desde o princípio o que ia acontecer a Creidhe e nenhum de vocês tentou impedi-lo. Aceitaram a minha ajuda, disseram que eram nossos amigos, meus e de Sam, mas estiveram sempre ao corrente das intenções de Asgrim... Por todos os deuses, não acredito, mas tenho de acreditar. Estou a ver a verdade no teu rosto, Einar; vejo-a na voz de Skapti. Suponho que o ferimento que impediu Sam de regressar a Água Brilhante também não foi um acidente. Talvez nem todos tenham sido cúmplices no que Asgrim fez à própria filha, mas foram todos cúmplices no caso de Creidhe. — O jovem queria dizer mais, mas mordeu as palavras porque continuava a ser o líder e um líder não perde o controle. Vocês nunca quiseram a minha ajuda e o meu pai também não. Ele manteve-me no comando apenas para que eu não me apercebesse do que ia acontecer a Creidhe, senão quando já fosse demasiado tarde. Ele deixa-me continuar a comandar-vos apenas porque Creidhe lhe fugiu e eu tornei-me, subitamente, útil.

— Skapti... — Por breves momentos, tinham-se esquecido do homem que jazia ali às portas da morte.

— O que é, irmão?

— Está... a ficar... frio — sussurrou Hogni. Os membros do guerreiro estremeciam agora com mais freqüência, um sinal do que estava para vir. A sua pele estava cinzenta, cheia de suor e os olhos encovados. Os dentes batiam.

— Toma. — Wieland apareceu ao lado de Thorvald com uma espessa capa de lã nas mãos. Thorvald pegou nela e cobriu o moribundo.

— Thorvald... — conseguiu dizer Hogni. — Tens de... perdoar... tens de... mudar...

Mas Thorvald não respondeu. A sua mente enevoara-se, transformando-se num caos de fúria, dor e desapontamento, impedindo-o de falar e fazendo-o levantar-se, virar as costas e dirigir-se para a extremidade da concavidade onde se encontravam, onde ficou imóvel, sozinho, olhando para a escuridão. O seu pai mentira-lhe. Todos lhe tinham mentido. Acreditara que aqueles homens o respeitavam, que confiavam nele, acreditara que o achavam digno da liderança que lhe fora parar às mãos de maneira tão estranha. Fora ingênuo, estúpido, enganado. Fora um louco, cego pelo seu sucesso com as cordas, as lanças e os discursos de esperança. Fora tolo e egoísta, tal como o pai. Como pudera esquecer-se da história de Somerled, uma história de crueldade, de ambição feroz e de carnificinas? Somerled assassinara o próprio irmão por uma questão de liderança; quase destruíra o povo de Nessa apenas para poder colocar uma coroa na própria cabeça. Somerled podia ter, agora, um nome diferente, mas era o mesmo homem. Thorvald deu um pontapé furioso nas pedras. As pessoas não mudavam, Não podiam. Fora um louco por acreditar que o seu pai o reconheceria publicamente, um idiota por pensar que Asgrim o poderia amar. O homem nunca quisera saber de laços familiares. Não sabia o que era o amor. Provavelmente, esquecera Margaret no momento seguinte ao seu pequeno encontro casual que, infelizmente, dera origem a um filho sem sorte, sem mais valor neste mundo do que o próprio pai. Porque um filho sai ao seu pai: não podia escapar a essa fatalidade. Não o demonstrara naquele dia, com três homens mortos nas encostas da Velha e um bom soldado a morrer ali lentamente, envenenado? Estava amaldiçoado pelos deuses; soubera-o no momento em que a mãe lhe contara a verdade e sabia-o agora, finalmente, de modo amargo. Falhara com Creidhe, falhara com aqueles homens e falhara consigo próprio. A sua missão não passava de uma mentira.

— Thorvald?

— Deixa-me em paz! — grunhiu ele, sem se virar para ver quem falara.

— Thorvald, vem para o pé de nós. Tens de nos ouvir.

— De que é que vale? — perguntou asperamente Thorvald. — O que é que vocês me podem dizer?

— Todos os homens merecem ser ouvidos — disse Wieland calmamente, colocando-se no seu campo de visão. — Hogni está a morrer e quer o comandante a seu lado.

— Eu não sou comandante nenhum — disse Thorvald ferozmente. — Todos vocês sabem isso. Todos vocês sabem por que razão Asgrim me trouxe para o acampamento. Foi uma armadilha, para que eu não me apercebesse o que se estava a passar. Ele é que é o vosso verdadeiro comandante.

Wieland olhou para ele com o rosto sombrio.

— É aí que te enganas — disse ele. — Vem para o pé de nós e nós explicamos-te. Não deixes que Hogni morra sabendo que viraste as costas ao irmão, Thorvald. Ele tem de ver a tua força e tu tens de reconhecer a dele. Anda lá, homem.

Juntaram-se de novo; havia um espaço nas rochas entre eles, onde era suposto Thorvald sentar-se, perto do lugar onde Hogni jazia de olhos fechados e com a cabeça no colo do irmão. De vez em quando, o seu corpo torcia-se e estremecia à medida que o veneno se ia espalhando e Orm e Einar aproximaram-se dele para lhe segurar nas pernas e nos braços, no caso de o guerreiro se ferir ou ferir alguém

— Depressa — murmurou Skapti, olhando para Wieland. — Já falta pouco, ele tem de ouvir.

— Queremos contar-te o que vai nas nossas mentes — disse Wieland com os olhos postos em Thorvald. — Tu não compreendeste. Nós não negamos a verdade e não estamos à espera de desculpas. Sim, sabíamos quais eram as intenções de Asgrim a respeito da rapariga e não gostamos. Mas não sabíamos que era tua amiga, era uma estranha e para nós é mais fácil sacrificar um estranho. A verdade é essa.

— Como se sacrificar um dos seus não fosse um problema para Asgrim — disse Orm. — Não acredito; não acredito que ele tenha entregue a própria filha.

— Thorvald — continuou Wieland — tu não imaginas o que tem sido para nós. Mas posso contar-te a minha parte nesta história toda. Não gosto de falar nela, mas vejo que tem de ser. É a única maneira de te poder explicar. Eu sou casado há seis anos; a minha mulher chama-se Jofrid. É uma jóia de rapariga, irmã de Orm. Éramos namorados desde os doze anos. Casamos no ano anterior à primeira caçada. Jofrid adora crianças; as outras mulheres estão sempre a pedir-lhe que as ajude com as delas, ela é muito boa com crianças. Acalma os rabugentos e cativa os envergonhados. No Outono depois da primeira caçada, estávamos à espera do nosso primeiro filho. Eu fiz um berço e Jofrid bordou muitas coisas. Mal podíamos esperar. No dia em que ela deu à luz, apareceram as vozes; chamaram o espírito do nosso filho e ele nasceu morto. Foi o castigo por termos falhado a caçada.

No ano seguinte foi a mulher de Hjort que perdeu o filho e a filha de Einar deu à luz um filho deformado, que morreu pouco depois. No ano da terceira caçada, Jofrid ficou grávida outra vez. Pedi a Asgrim que me deixasse levá-la para longe, para leste, para outras ilhas, para que pudesse dar à luz em segurança. Mas o governador não nos deixou ir. No fim de contas, o barco não era meu; além disso, ele precisava dos homens todos para a caçada. Assim, ficamos e voltou a acontecer. Na primeira vez, choramos juntos e confortamo-nos um ao outro, com esperança numa próxima vez. Na segunda vez, Jofrid ficou calada. Não queria falar no assunto, nem a mim nem às outras mulheres. Talvez tivesse falado com os cristãos, mas Asgrim não os deixava aproximar da aldeia. Aquele tipo, Niall, tinha-o desafiado várias vezes e ele não gostava de ver a sua autoridade posta em questão. Jofrid mudou. Era como ter um fantasma em casa. Arrumou o berço e meteu os bordados que tinha feito numa arca. Era como se o nosso filho nunca tivesse nascido. Falhamos outra vez na quarta caçada. Morreram três bebês nesse ano, todos antes de o Sol nascer no segundo dia de vida. Jofrid ajudou a nascer esses bebês, mas ela não me contou nada. Estava fechada para o mundo, demasiado assustada para falar, assustada só de pensar fosse no que fosse. Já não queria saber das crianças das outras mulheres; nem sequer queria olhar para elas. Então, veio a quinta caçada, no ano seguinte. O padrão foi o mesmo. Voltamos menos e sem o vidente. E, no fim do Outono, Jofrid ficou outra vez grávida.

Wieland fez uma pausa; a voz faltara-lhe aqui e ali, como se fosse chorar, se pudesse. Estava um homem a morrer; tinham de ser postos de lado outros sofrimentos.

— Dizem que a tua amiga, Creidhe, foi quem ajudou o meu filho a nascer — continuou ele num murmúrio. — Salvou-o, porque ele nasceu enrolado no cordão. Salvou-o, para depois Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz o levarem dos braços de Jofrid. O meu filho. E eu nem pude estar ao pé dela para lhe secar as lágrimas, ou para chorar com ela. Não a pude proteger, não pude evitar que os meus filhos morressem. — Finalmente, Wieland não conseguiu reter as lágrimas; o guerreiro calou-se, soluçando. Orm estendeu um braço e colocou uma mão no ombro do companheiro mais novo.

— Eu não contei isto para desculpar o que fizemos. — Wieland fez um esforço para se controlar e conseguiu-o endireitando os ombros e enxugando as lágrimas das faces, no lugar onde cinco cicatrizes paralelas assinalavam que tinha passado por cinco caçadas. Todos nós sabemos que não temos desculpa, que foi uma violação cruel das leis da hospitalidade e das que, supostamente, devem proteger os inocentes. Contei apenas para explicar que somos homens normais, com corações normais. Todos nós temos as nossas mulheres e as nossas famílias, as nossas namoradas, os nossos anciãos. Temos os nossos barcos de pesca, os nossos carneiros, os nossos pequenos campos. Pelo menos, tínhamos: não muito, talvez, mas era o suficiente para sobrevivermos. Não pedimos mais nada: a vida que tivemos em tempos e a crença em nós próprios. A hipótese de vermos os nossos filhos crescer.

— Não sei por que me contas isso. — Thorvald ouviu a sua própria voz áspera e fria, como se pertencesse a um estranho. — Não tem nada a ver comigo. Fosse qual fosse a minha importância neste jogo de poder por parte de Asgrim, morreu com Creidhe. Já não faço parte disto.

— Errado... Thorv... errado... — Era a voz de Hogni. O guerreiro continuava de olhos fechados, agarrando no braço do irmão com tanta força que tinha os nós dos dedos brancos.

Thorvald ajoelhou-se junto do moribundo; ali, pelo menos, podia fingir, durante mais alguns momentos, que ainda tinha um papel a desempenhar.

— O que é, Hogni?

— Tu... comanda... — conseguiu dizer Hogni, meio engasgado. — Tu... vence...

— Como é que posso comandar? — perguntou Thorvald calmamente, segurando na mão do grande guarda-costas. — Eu não sou ninguém. A minha liderança é baseada numa mentira. Eu não sou nada.

— Tu... comanda... Promete-me... — Hogni fez um esforço para abrir os olhos; podia estar a morrer mas a sua expressão era de desafio feroz. — Promete!

Thorvald sentiu um nó na garganta; o sangue batia-lhe nas têmporas.

— Como posso prometer? — murmurou ele.

Os olhos de Hogni fecharam-se. O guerreiro não disse mais nada.

— Está bem. — Thorvald encontrou a voz. O jovem olhou para Skapti, que segurava o irmão nos braços. O guerreiro tinha os olhos vermelhos e inchados; o luar permitia ver as cicatrizes no seu grande rosto. — Perdôo ao teu irmão o que ele fez. Skapti fez coisas horríveis, é verdade. O fato de as ter feito a mando de Asgrim não o desculpa. Eu gostava muito de Creidhe; fazia parte de mim. A morte dela pesa-me muito, assim como a Sam. Mas Skapti pagou caro por isso e há de continuar a pagar até morrer. Mas, pela minha parte, não precisa de carregar esse fardo. Eu perdoo-lhe. Tem a minha amizade; na verdade, nunca deixou de a ter.

Skapti exalou um grande suspiro e acenou com a cabeça. Hogni não respondeu; por um momento, Thorvald pensou que o guerreiro tinha morrido. Então, os seus olhos abriram-se de novo, fantasmagóricos à luz do luar, duros e exigentes.

— Tu... comanda... — disse ele firmemente. — Promete.

Thorvald ficou calado. Não ia prometer, se não podia cumprir.

— Precisamos de ti, Thorvald — disse Einar. — Não podemos fazer isto sem ti.

— Eu? — disse Thorvald, trocista. — Um boneco de Asgrim, a quem todos vocês mentiram? Não me parece. — Maldição, parecia uma criança petulante a quem tinham tirado um brinquedo. Por que não o deixavam em paz? Que mais queriam dele?

— Thorvald — disse Orm, pondo-se de pé — tu és o melhor chefe que alguma vez tivemos. Tu és a única hipótese de conseguirmos vencer.

— A única hipótese de nos vermos livres de Asgrim — acrescentou Einar.

— Chefia-nos amanhã — disse também Wieland — e depois disto tudo. Estamos fartos de ter medo de dizer não. Ajuda-nos a encontrar Máscara-de-Raposa e ajuda-nos, depois, a encontrar o que tínhamos e que perdemos.

— Acontece — disse Skapti, com o irmão moribundo, mole e pálido encostado ao peito — que não tínhamos esperança nenhuma até tu chegares.

— Mas...

— Começou tudo como tu disseste, tu e Sam, impedidos de interferir. Mas nós vimos, rapidamente, que tipo de homem eras. Tu conseguiste-nos tempo. Preocupaste-te conosco. Foste inteligente e não te importaste de partilhar conosco os teus conhecimentos. Tu tinhas idéias, vias longe. Enfrentaste Asgrim. Só outro homem conseguiu isso, desde que ele é governador. Enfrentaste Hogni e eu, mesmo sabendo que te podíamos fazer em pedaços. Tu és o nosso líder, Thorvald. Tens de continuar.

Ouviu-se um coro de aprovação: sussurros, murmúrios, acenos de cabeça. Não muito alto: estavam na ilha, era de noite e nenhum deles se esquecia do inimigo.

Thorvald agradeceu a luz difusa, porque sentia as faces coradas devido a uma lamentável perda de controle e as lágrimas fizeram-lhe arder os olhos.

— Como é possível vocês dizerem isso? — conseguiu ele dizer. — Eu sou como ele! Eu não sou melhor do que Asgrim! Prometi-vos baixas mínimas e já morreram três homens. Estamos, neste momento, a assistir à morte do melhor. E ainda não temos o vidente. Até agora, tenho sido um fracasso. — Apesar das palavras, o jovem sentiu o calor regressar ao coração.

— A verdade é que — disse Skapti em tom de desculpa — nenhum de nós acreditou nisso das perdas mínimas. Os homens morrem numa batalha. Nunca o conseguirias sem perdas. Mas soava bem; deu-nos coragem. Nós confiamos em ti, Thorvald. A segunda parte da promessa é que interessa. Encontra o vidente. Chefia-nos amanhã, apanhemos Máscara-de-Raposa, regressemos a casa e ponhamos tudo em pratos limpos. Diz que sim. Precisamos de ouvir isso.

Naquele preciso momento, Hogni começou de novo com convulsões, dessa vez maiores e Thorvald inclinou-se para aquele corpo sacudido violentamente, enquanto Einar segurava nas pernas do moribundo envenenado e Skapti, soluçando, o abraçava. Quando o espasmo terminou, Thorvald percebeu que não conseguia reter por mais tempo as lágrimas. Pegou numa das mãos do grande guerreiro e levou-a ao rosto.

— Hogni — disse ele calmamente — espero que me possas ouvir. Não sei se consigo. O mais provável é que Asgrim vença mais uma vez. Tudo aponta nesse sentido. Tudo o que te posso dizer é que prometo dar o meu melhor. Espero que fiques contente. E, outra coisa, és um homem de sorte. Tens o melhor irmão e os melhores camaradas que um tipo pode ter. E agora descansa, grande guerreiro. Thor está à tua espera; o seu chamamento soa nos teus ouvidos. Descansa.

Então, todos se revezaram, um a um, no meio das convulsões cruéis que agitavam cada vez mais o corpo de Hogni, despedindo-se com uma palavra, um afago: tudo muito simples mas com muita força, cada um abençoando-o à sua maneira. Depois de acabarem, sentaram-se de novo em círculo, silenciosos e, por fim, os espasmos cessaram e Hogni ficou imóvel como uma criança nos braços do irmão. A Lua já não estava cheia, mas brilhava, fria; iluminou as feições fortes e rudes do guerreiro e suavizou a dor nos seus olhos pequenos e nas rugas em redor da sua boca cerrada. O astro iluminou o momento em que a boca, por fim, se descontraiu, os olhos ficaram fixos e as mãos se abriram, não mais apertando os braços do irmão.

Skapti chorara todas as lágrimas que tinha. O guerreiro pousou Hogni no chão, cobriu-lhe o rosto com uma capa e sentou-se a seu lado de pernas abertas, olhos fechados, completamente exausto. Durante largos momentos, ninguém falou. Finalmente, Einar disse-lhes que eram horas de render a guarda e Ranulf e Hjort levantaram-se, enquanto os outros se agitavam, estendiam as pernas e passavam o odre de água de mão em mão.

Thorvald levantou-se e olhou para os seus homens. Era preciso dizer qualquer coisa, rapidamente, antes que as suas expectativas se transformassem em algo mais do que o desejo geral de que ele continuasse o líder. Não iam gostar, pelo menos a curto prazo; paciência, mas tinham de se habituar a aceitar as suas decisões, mesmo as que parecessem erradas, a princípio.

— Homens! — disse ele calmamente. As cabeças deles viraram-se; o jovem conseguiu instantaneamente a atenção de todos. — Vou ser breve — disse-lhes Thorvald. — Tivemos quatro baixas e ainda não temos o vidente. Não tenciono ter mais; vou precisar de todos, quando regressarmos ao Fiorde do Conselho. Tenciono capturar Máscara-de-Raposa. Não regresso sem ele. Não permitirei que o sacrifício de Hogni, de Svein, de Alof e de Helgi tenha sido em vão. O preço tem sido alto; por isso, só aceito a vitória. Vamos fazer o seguinte. Assim que houver luz suficiente, Paul vai tratar de arranjar alguns homens para trazerem Svein e Helgi para aqui. Quanto a Alof, não podemos fazer nada; o corpo dele está fora do nosso alcance. Os restantes regressarão aos barcos. Assim que os nossos camaradas mortos estiverem a bordo, vocês vão para casa. Não teremos mais baixas. Temos de pensar no futuro, um futuro no qual todos vocês têm um papel a desempenhar na reconstrução da vossa comunidade destruída.

— Espera aí — disse Skolli. — Isso não faz sentido. Como podemos levar o vidente se nos formos já embora? A Corrente dos Loucos vai ficar calma até ao crepúsculo de amanhã, se seguir o padrão habitual. Só precisamos de pensar em abandonar a ilha amanhã à tarde.

— Nós não vamos desistir — disse Thorvald, sentindo os lábios esticados num sorriso triste. — Estamos, simplesmente, a devolver ao nosso inimigo a sua táctica preferida: a surpresa.

— Queres dizer que vamos voltar aqui depois de escondermos os barcos? — perguntou Paul.

— Não — disse Thorvald. — Tu, Einar, Skapti e os restantes vão fazer o que eu acabo de dizer. Viram as costas à Ilha das Nuvens e regressam ao Fiorde do Conselho. Ides deixar esta praia pela última vez. Dou-vos a minha palavra de que nunca mais tereis de enfrentar outra caçada.

Seguiu-se um silêncio, enquanto os homens tentavam compreender. Ninguém parecia preparado para fazer a pergunta óbvia. Finalmente, foi Skapti quem falou; Skapti, que continuava sentado de pernas abertas e olhos fechados, ao lado do corpo do irmão.

— E tu, o que é que tu vais fazer? — perguntou ele. — Tencionas ser um herói solitário? Pensas que te vamos deixar fazer isso?

Thorvald sorriu.

— Eu, um herói? Não. Tenho um plano. Sam e eu vamos ficar, com um barco. Paul quase que acertou. Vamo-nos esconder e esperar. Tenho uma boa idéia de onde pode estar o vidente; creio que quase o encontrei, hoje, antes de o inimigo apanhar Svein e Hogni. Mas não tenciono ser nenhum herói, não tenciono escalar a falésia sozinho, nem fazer nenhum feito de armas espetacular, podes ter certeza. Apenas uma surpresa. O inimigo verá a nossa partida, seguida por um longo período de tempo, durante o qual tudo estará calmo. Tenciono esperar até eles terem a certeza de que fomos todos embora e de que o vidente está são e salvo. Tenciono esperar até que eles apareçam. Então, rapto a criança e ponho-me a andar daqui para fora.

— Hum — disse Orm. — E quanto tempo é que vai durar esse período?

— Até depois de amanhã, se for preciso — disse Thorvald. — Até o inimigo ver que a Corrente dos Loucos não permite a navegação.

Einar assobiou.

— Isso é uma loucura, Thorvald! Ninguém consegue atravessar a Correntes dos Loucos depois da calmaria! Por que é que pensas que a caçada é nesta ocasião?

— Sam é um grande marinheiro — disse Thorvald com mais confiança do que a que sentia. — É a única maneira. O meu plano é este. São as minhas ordens. Recolher os nossos mortos, assegurarmo-nos de que eles chegam aos barcos, cobrir os camaradas no caminho para a praia e para casa o mais depressa possível. Knut leva o Sea Dove. Einar fica no comando. Não pode haver mais mortes. Alguma pergunta?

— Eu tenho uma — disse Skapti. — Não achas que o inimigo vai estar a vigiar-nos quando partirmos? Contar os barcos, quer dizer? Se tu tencionas regressar, vais precisar de um barco; onde é que o vais pôr? Eles vão lá abaixo e chacinam-vos aos dois.

— Sam está a tratar disso — disse-lhe Thorvald com mais confiança do que a que sentia. — Enquanto temos estado aqui, ele e Knut andaram a explorar a linha de costa à procura de outras baías, tentando encontrar os barcos do inimigo. Eles têm de ter um ou dois; de outra maneira, como é que eles pescam? Se pudermos, fugiremos num dos deles. Quanto a passar despercebidos, seremos só dois e teremos cuidado.

— Pelos ossos de Odin, Thorvald — grunhiu Skapti. — Primeiro, dizes que nos vais chefiar e logo a seguir mandas-nos embora e ficas aqui sozinho a fazer as coisas. Dá-nos uma hipótese, sim? Nós queremos ajudar. Devemos-te isso. — O guerreiro olhou para a silhueta imóvel de Hogni. — E aos camaradas que morreram. Como é possível fazeres tudo sozinho, apenas com a ajuda de Sam? Sam não é nenhum guerreiro, por mais que pensemos que sim.

— Tens uma tarefa para cumprir — disse-lhe Thorvald. — Tens de levar Hogni para casa e assegurar-te de que ele vai para junto do pai da Guerra, como ele quereria. O mesmo quanto aos outros. Além disso, tu és um dos meus capitães. Os homens vão precisar de ti nos barcos e quando lá chegarem. As minhas ordens são estas, Skapti.

— Nós ficamos todos a lutar ao teu lado, se nos deixares — disse Einar. — Mas ficar depois de a corrente mudar é uma loucura. Não queres pensar melhor?

— É a única maneira — disse Thorvald. — Nunca deixei que o coração escolhesse o caminho por mim, mas desta vez ele está a enviar-me uma mensagem que eu acho estar certa. Vou resgatar Máscara-de-Raposa e levá-lo comigo. Não à força, não indo à procura dele, não com habilidades. Vou esperar, simplesmente. Confiem em mim.

— Está bem — disse Einar de modo algo pesado. — E Asgrim? Que lhe dizemos?

— Digam-lhe o que quiserem — disse Thorvald. — Mas é melhor dizerem-lhe a verdade. Digam-lhe que o governador destas ilhas nunca mais tentará comprar a paz à custa da vida de uma rapariga. Digam-lhe que vai haver mudanças.

— Ficas, então? — A voz de Skapti continuava rouca devido às lágrimas. — Mesmo depois disto tudo?

— Primeiro, tenho de tratar de Máscara-de-Raposa. Depois falamos. Por agora, descansem e pensem no regresso a casa. Eu e alguns dos que comandaram esta expedição ficamos de guarda aos nossos camaradas que tombaram. Amanhã, deixam esta ilha pela última vez. Prometo-vos.

Então, os homens deitaram-se, ou encostaram-se às rochas, enquanto Thorvald e Skapti montavam guarda no extremo sul, enquanto Einar e Orm faziam o mesmo no extremo norte. A Lua continuava a percorrer o céu, remótica e pálida e, por vezes, parecia vir da sua forma, fria e distante, uma música tênue, não uma melodia, antes a recordação de uma, uma vibração misteriosa do ar, sutil, enganadora, assustadora no seu poder. A melodia entrou na mente de todos os homens, esquadrinhando-lhes os pensamentos, fazendo-os suspirar, gemer ou tapar as orelhas com as mãos. Alguns dos mais novos choraram, receosos; os outros consolaram-nos com palavras em voz baixa. Wieland tinha as mãos no rosto, imóvel como uma pedra.

No ponto de sentinela mais a sul, Skapti olhou para a noite, silencioso. Quanto a Thorvald, que estava perto dele, tinha na mente um turbilhão de pensamentos sombrios. No fim de contas, era um líder; era desejado, respeitado, amado, até. Sentia o coração quente e as faces coradas; vinham-lhe aos lábios palavras de tributo à lealdade dos seus homens. E levaria Máscara-de-Raposa. Sabia que conseguiria do fundo do coração, como um animal que escolhe a sua presa. Podia e teria sucesso: precisava, apenas, de ter paciência e a habilidade de Sam para atravessar a Corrente dos Loucos. Evidentemente, havia a possibilidade de Sam e Knut não encontrarem um barco para o regresso. Se assim fosse, teria de usar um dos deles, um dos pequenos e esperar que o inimigo não os tivesse contado. Haviam de conseguir, de uma maneira ou de outra.

Não era aquela parte da expedição que não o deixava saborear a alegria de saber que, no fim de contas, era aceito e reconhecido pelos seus homens. Era o depois que o perturbava. Ele sabia o que queria: ele próprio como líder e apoiado pelos mais inteligentes: Einar, Orm, Wieland, um conselho que governaria com justiça. Paz, prosperidade, preocupação com os melhores métodos de pesca e agricultura, um tratado com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz; mais tarde, barcos melhores, comércio com as Ilhas Brilhantes e com outras terras mais a leste... Oh sim, estava otimista quanto ao futuro, as perspectivas eram brilhantes. Era capaz: seriam todos capazes.

Havia apenas uma falha naquela imagem sedutora. Ele era filho de Asgrim: filho de Somerled. Apesar de isso lhe dar alguma legitimidade como governador, também o marcava como legado do pai. Somerled conseguira o poder nas Ilhas Brilhantes e usara-o para matar, para destruir, para devastar o que existia desde tempos imemoriais, apenas por uma questão de autoridade absoluta. Somerled fora para aquelas ilhas e conseguira novamente o poder com um nome suposto. Como Asgrim, conduzira o seu povo a uma espiral de morte, derrota, dor e devastação. Thorvald era filho desse homem. Era feito à imagem de Somerled: sentia-o no sangue, aquelas trevas, aquela necessidade feroz de reconhecimento, de controle. Cegara-o para o perigo que Creidhe corria. Tornara-o cruel para a sua mãe. No fundo, era igual ao pai: se lhe dessem o poder, talvez matasse, destruísse e queimasse, tal como Somerled. Quem poderia garantir que não arriscaria as vidas do seu povo, tal como Asgrim, o homem que vendera a própria filha? Sula fora meia-irmã de Thorvald: era estranho pensar naquilo. E o rapaz, qual era o nome que eles tinham dito? Erling? Uma espécie de irmão. Thorvald nunca tivera um irmão, ou uma irmã. Supunha que o rapaz não devia ter durado muito naquele ambiente selvagem da Ilha das Nuvens, ainda por cima se era tão sonhador como eles diziam. Os nativos deviam ter-se desembaraçado rapidamente dele. Mas a criança que ele raptara ainda vivia. Thorvald sentia-o. Pensava tê-la ouvido, um som minúsculo vindo daquela gruta, naquela tarde, como um suspiro durante o sono. Tinha a certeza de que não fora uma ave; tinha a certeza de que não fora imaginação, mas a morte interviera antes que tivesse podido investigar melhor; a curiosidade de Thorvald matara Hogni, quando o guerreiro tentava manter a corda firme. Thorvald transformara o seu camarada num alvo perfeito.

Por isso, tinha de continuar. Devia-o a Hogni; devia-o a todos. Tinha de continuar e se se transformasse num homem igual ao seu pai, esperava que alguém tivesse a coragem de o matar antes de provocar demasiados danos. Ou que tivesse ele próprio a coragem de o fazer com as próprias mãos. Não tinha um amigo leal para o mandar para o exílio se se transformasse num perigo. Sam regressaria a casa. Creidhe tinha morrido. Estava sozinho entre os seus homens, sozinho perante a perspectiva de um poder que o excitava e aterrorizava. Como é possível um homem não sair ao pai? Como pode ele conseguir a força necessária para renegar o sangue que lhe corre nas veias, sombrio e irresistível, empurrando a mente, enchendo-lhe o coração, poluindo-lhe o espírito? Sem Creidhe para o aquietar, sem Sam para o apoiar, como poderia seguir aquele caminho sem os conduzir ao desastre?

 

           Pousa a tua pena, irmão; tapa o teu tinteiro.

           Este texto está gravado no coração

           Com faca e sangue.

                     NOTA A MARGEM DE UM MONGE

 

À medida que a luz ia desaparecendo, no segundo dia, Creidhe forçou os membros entorpecidos a obedecerem-lhe e juntou as magras provisões que lhes restavam. Estivera tudo calmo durante muito tempo; apenas se ouvia o pipilar das aves por cima do barulho das ondas nas rochas. Não tinham caído pedras naquele dia, nenhuma bota tinha perturbado as pedras soltas por cima da abertura da gruta. Não ouvira gritos, sussurros, trocas de palavras furtivas. Nada: era como se a Ilha das Nuvens estivesse deserta, à exceção dela própria e da criança. O seu coração vacilava e o frio tomara conta dela, se bem que mantivesse uma expressão calma por causa de Pequenino. Se o que os seus sonhos lhe diziam era verdade, tinha de sair pelos seus próprios meios daquele esconderijo precário; teria de ajudar a criança a trepar pelo mesmo caminho íngreme que Guardião os obrigara a descer. Teria, também, de transportar as provisões. Se ele não regressasse, teria de o fazer. Se ele não regressasse, ficaria com o coração destroçado.

Tinha muito tempo para imaginar um futuro na ilha, apenas ela e Pequenino, enfrentando sozinha os Invernos, a fome e a solidão. Pensara na alternativa: mas se entregasse a criança, seria a sua morte, muito provavelmente. Cada vez pensava mais naquilo. Não podia ser; não o permitiria. Creidhe respirou profundamente e fechou os olhos. Agora, sei. Sei por que lutaste tanto por ele. Se for preciso, farei o mesmo. Ele merece. Uma vida solitária; uma vida difícil. Tivera tanta sorte, a sua vida fora, até ali, tão confortável. Na Primavera anterior, antes de ter embarcado no Sea Dove e partido para um mundo diferente, teria ficado chocada só de pensar que passaria dois dias e uma noite dentro de uma gruta minúscula sem fazer qualquer barulho, utilizar um balde para as suas necessidades e comer peixe frio que de frescura já não tinha nada. Em casa, tinha os seus cobertores quentinhos. Orgulhava-se das refeições que cozinhava para agradar ao pai, sem pensar em como era bom ter farinha, manteiga e vegetais à mão sempre que precisava.

Pequenino estava pronto. O Pequenino dobrara o seu cobertor e calçara os sapatos e agora olhava para ela muito sério, com uma expressão desconfiada nos profundos olhos azuis. A luz fraca de fim de tarde entrava pela abertura da gruta, tocando-lhe nas feições pálidas e dando-lhe um ar saudável. Creidhe passara mais tempo a tratar-lhe do cabelo, já que tinha pouco mais que fazer e agora o cabelo saí-lhe do crânio com muito melhor aspecto. A jovem reparou que Pequenino recolocara os pedacinhos de erva e as pequenas penas que ela lhe tirara.

A Jornada foi dobrada e pronta para partir; o seu saco apertado. Os seus cobertores estavam dobrados junto da parede e os baldes tapados. Esperaria mais um pouco. Não muito; os dias de Verão prolongavam-se, mas tinham de chegar ao alto da falésia, atravessar a ilha e chegar ao abrigo antes que ficasse demasiado escuro. Trepar por ali acima, pensou Creidhe friamente, ia ter mais a ver com rezas e dentes cerrados do que com habilidade. Pequenino ficaria mais seguro se mudasse de forma: era uma pena não poder pedir para o fazer.

Só mais um pouco e a Corrente dos Loucos já teria mudado, tornando a travessia para o Fiorde do Conselho numa impossibilidade até ao Verão seguinte. Podiam sentar-se junto da abertura da gruta e deixar que o Sol lhes tocasse nos rostos. A jovem instalou-se, encostando-se à rocha e olhando para sul, onde se viam as ilhas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, erguendo-se do mar como enormes baleias escuras. Pequenino acocorou-se ao lado dela, agarrado ao seu cobertor. Não fizeram qualquer som; tinham prometido silêncio até ao regresso de Guardião e talvez, apesar dos seus pressentimentos, apesar da ansiedade anterior de Pequenino, o impossível ainda pudesse acontecer. Esperaria até não poder mais.

Creidhe deu por si com a mente às voltas, como uma criança, fazendo combinações com os espíritos, que eram sinceros apesar dos seus disparates. Há muito tempo, teria sido: Se eu coser isto bem, talvez o pai me deixe ir com ele a cavalo a Stensakir, amanhã. Se eu emprestar o meu xale a Brona, apesar de saber que, provavelmente, nunca mais o vejo, talvez Thorvald deixe de estar zangado comigo. Agora, tolamente, era: Se eu for paciente, se não chorar, se acreditar, talvez Guardião não esteja morto. Por favor, faz com que ele não esteja morto.

As feições de Pequenino não mostravam apreensão ou esperança. O pequeno limitava-se a estar sentado, à espera do que se seguiria. Tão emaranhada estava naquela rede de pensamentos, que foi apanhada de surpresa quando Guardião apareceu de repente, deslizando silenciosamente como uma sombra, acocorando-se junto de Pequenino, tocando-lhe nos cabelos com uma mão suja, pousando-lhe os lábios na fronte pálida e virando para ela um sorriso de dentes brilhantes e uns olhos plenos de alegria.

— Acabou — disse ele simplesmente. — Foram-se embora.

Então, Creidhe viu a ligadura manchada de sangue no braço esquerdo dele, uma nódoa negra na têmpora e tentou falar, mas conseguiu, apenas, emitir um som de alívio, de amor e de confusão. Nada de lágrimas: prometera a si própria. Seria forte, como aqueles dois.

— Vamos, meus queridos — disse Guardião. — Vamos para casa.

Então, a impossível vereda foi transposta com pés tão ligeiros como os de uma gaivota e a falésia escalada como se tivessem asas. A mão dele na dela parecia uma âncora, uma canção, como a luz do Sol depois de um longo Inverno. Subitamente, o dia era maravilhoso. Quando atingiram o topo, Guardião fez uma pausa, agarrando-lhe sempre na mão, para olhar para o mar, virando as costas ao pôr do Sol, semicerrando os olhos na direção do Fiorde do Conselho.

— Consegues vê-los? — perguntou Creidhe, sentindo uma sombra, porque tinha outra pergunta para fazer e a resposta ia esfriar-lhe o júbilo instantaneamente.

— Não, Creidhe. Eles foram-se embora cedo, pouco depois da alvorada. Pensei que fosse um truque para me apanharem desprevenido. Esperei. Mas não; limpei a ilha da presença deles.

Ela não perguntou se ele acrescentara alguns troféus à sua coleção. Não era preciso muito para imaginar como tinha sido o dia.

— Tens a certeza, então, de que eles se foram embora?

— Tenho. Estive a vigiá-los e contei os barcos, um a um. O barco dos teus companheiros também ia com eles. E agora a Corrente dos Loucos já não está calma; só voltará a haver possibilidade de atravessar no próximo Verão. Chegou o tempo da paz.

Pequenino trepara sem ajuda. O pequeno estava a uma certa distância a olhar para o mar, mas para sul, na direção das ilhas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e parecia muito calmo. Para além da resposta possessiva ao regresso do seu parente, não demonstrara qualquer emoção. E Creidhe tinha de fazer a pergunta.

— Thorvald — conseguiu ela dizer. — Ele esteve cá? Tu...? — Era impossível dizer o que tinha de dizer. A jovem estremeceu ao ver Guardião semicerrar os olhos e cerrar os dentes.

— Veio, sim. Era ele que os comandava; eles seguiam as ordens dele.

Thorvald? Não podia ser verdade; Guardião estava enganado, certamente.

— Thorvald não é um guerreiro. Além disso, nós não somos de cá...

— Ele era o líder deles, Creidhe. Um líder capaz: o povo dos Facas Longas lutou mais por ele do que nos outros anos todos por Asgrim. Mas eu continuo aqui e eles foram-se embora.

— Guardião, tens de me dizer. Tu...?

Ele olhou para ela, muito sério.

— Eu não matei o teu amigo — disse ele — se bem que o pudesse ter feito. Havia quatro homens no grupo dele; matei dois e deixei que a ilha se encarregasse dos outros. Ele está vivo e foi-se embora.

Não havia mais nada a dizer. Creidhe sentiu-se aliviada, mas logo a seguir desapontada, confusa e até um pouco divertida ao ver o olhar no rosto de Guardião, onde eram evidentes o orgulho, o ciúme e a linha fina da boca. Sob esses sentimentos todos, um outro: um desejo profundo que, em breve, se sobreporia a todos os outros sentimentos. Ali, na ilha, nada se lhe oporia, nem costumes, nem família, nem perspectivas futuras. A jovem sentiu-o na alma e leu o seu reflexo no rosto de Guardião quando se viraram na direção da velha cabana. Sentiu-o quando ele lhe rodeou a cintura para ajudá-la a descer uma encosta íngreme; ouviu-o na respiração dele e na sua. Quase lhes fora negado; as imagens persistentes dos seus sonhos pareciam torná-lo impossível.

Ele tinha preparado tudo para o regresso dela e da criança; só os fora buscar depois de estar tudo pronto. A lareira ardia entre as pedras e havia peixe fresco, pronto para ser cozinhado. Havia água quente.

Ele dissera-lhe: Vamos para casa, e era o que sentia, naquele canto perdido do mundo, onde as paredes eram feitas das mesmas pedras de que era feita a ilha e onde o buraco, por onde saía o fumo, se abria para um céu que ia ficando com a cor indefinível de um longo crepúsculo de Verão. Guardião tirou a faca e preparou o peixe; Pequenino sentou-se no lado oposto de pernas cruzadas, solene, observando tudo. E Creidhe, tendo reparado que Guardião não estendera o seu cobertor, deixando-o dobrado a um canto, pegou no seu e no dele e colocou-os lado-a-lado. Ele olhou para ela, de olhos brilhantes, mas não disse nada.

— Deixas-me limpar essa ferida enquanto o peixe está a assar?

— Isto não é nada.

— Deixas?

— Se queres.

Ele estava estranhamente diferente e quando Creidhe começou o processo percebeu porquê. Não era o ferimento em si, um golpe profundo, provavelmente provocado por uma flecha: Creidhe lavou-o e ligou-o com um pedaço de tecido rasgado de uma peça de roupa antiga feita por Guardião. O problema era a proximidade, o aflorar da pele, especialmente depois de ele ter tirado a camisa para lhe permitir o acesso ao braço bem musculado que a flecha tinha ferido. As mãos da jovem tremiam; a respiração dele alterou-se. O outro braço do jovem envolveu-a e os dedos afagaram-lhe os cabelos; os lábios dele tocaram-lhe no ombro e os seus olhos fecharam-se ao sentir a doçura salgada da sua pele. O peixe crepitou nas brasas; Pequenino continuava sentado em silêncio, olhando, muito sério.

— Eu desejei-te na última noite — sussurrou Guardião. — Desejei-te na escuridão. Tentei afastar-te dos meus pensamentos, mas não consegui.

— Nem eu — murmurou Creidhe com a mão no peito dele, sentindo o calor do seu corpo esguio.

— Pergunto a mim próprio se serás capaz de dar um nó — disse Guardião — ou se terei eu próprio de o fazer.

— Estás a brincar comigo. — Creidhe ficou um pouco surpreendida. A jovem fez um esforço para regressar ao que estava a fazer, ao mesmo tempo que sentia o rubor a subir-lhe às faces.

— Ofendi-te? — Ele parecia outra vez desconfiado, tímido, como um animal selvagem. Creidhe pensou que ele nunca tivera oportunidade de aprender as regras, se as havia; tinha doze anos quando abandonara a sua tribo por aquela vida de exílio.

— Muito — disse Creidhe — com uma gravidade trocista, conseguindo atar as pontas da ligadura e prendendo-as razoavelmente. — Talvez devesses ir buscar outra camisa, se tiveres mais alguma. É costume ter roupa vestida numa noite como esta. E eu gostaria de ter algum tempo para mim própria, se for possível. E não te preocupes com o peixe, eu olho por ele.

Guardião acenou com a cabeça, sério como uma coruja. O jovem levantou-se e, levando Pequenino pela mão, saiu da cabana sem dizer mais nada.

Era, apercebeu-se Creidhe, a sua noite de núpcias. Imaginara aquela ocasião vezes sem conta, sentada diante do tear. Via-se vestida com uma saia e uma túnica de lã de uma cor azul suave e uma grinalda de flores na cabeça. Teria os cabelos lavados com camomila, antes de os escovar até brilharem. Brona ajudá-la-ia; a sua família assistiria com orgulho ao ouvi-la pronunciar os votos. Haveria música, dança, uma grande festa e, certamente, um dos bolos de Zaira. Mais tarde, na tranqüilidade do quarto, o despir, a doce troca de carícias... então, nunca pensara seriamente no que viria depois. Sempre houvera uma espécie de bruma entre esse momento e o acordar para a madrugada, aquecida pelo corpo do marido e pelo cobertor azul. Aqueles sonhos eram uma fantasia de rapariga, encantadora, mas irreal. Estavam tão longe daquela noite como a terra das estrelas.

Aquela noite não teria boda; não haveria ervas para perfumar os cabelos e o corpo; não haveria cobertas de lã nem cama macia. Apenas a noite e a ilha. Creidhe despiu-se e, tremendo, lavou-se o mais rapidamente que pôde no que restava de água quente. Nem sequer pôde mudar de camisa. A jovem limpou-se a uma das velhas capas e voltou a enfiar a saia e a túnica que Guardião lhe fizera. O peixe estava a assar bem e ela virou-o nas brasas. Creidhe soltou os cabelos e penteou-os, atando-os depois com uma fita na nuca, deixando-os cair pelas costas. E pronto: a noiva estava pronta. A jovem tirou o peixe das brasas, envolto em algas e colocou-o num prato, pensando se voltaria, um dia, a comer pão.

Quando Guardião e Pequenino regressaram, aquele vestia uma camisa diferente. Era muito parecida com a primeira, velha e maljeitosa, mas não tinha manchas de sangue. O jovem lavara o rosto e as mãos no ribeiro e fizera um esforço para pôr alguma ordem nos cabelos. Agora, estava à entrada, hesitante, com Pequenino um passo atrás.

— Estás... muito bonito — disse Creidhe, olhando para ele. — Sinto-me orgulhosa de ti. Gostaria de te poder mostrar aos meus pais; é assim que se faz, geralmente. Mas a nossa família, aqui, é Pequenino. Vamos comer o peixe?

Guardião não disse nada, mas os seus olhos, fixos nela, falavam por ele. Tu és a minha deusa. Aquele olhar silenciou Creidhe; tirou-lhe o apetite pelo peixe, mas a jovem obrigou-se a comê-lo. Ele dera-se a algum trabalho para organizar aquela festa, acendera a lareira para ela, mesmo depois de dois dias de duros combates. Não ia magoá-lo por nada deste mundo.

— É estranho — disse ele após alguns momentos. — Não consigo comer.

— Não? — disse Creidhe. — Mas o peixe está bom.

— Não consigo comer — repetiu Guardião, de olhos brilhantes. — No entanto, tenho fome. Uma fome terrível.

— Eu também me sinto assim — murmurou Creidhe. — Mas temos, primeiro, de deitar Pequenino.

A Lua estava a diminuir. No entanto, parecia que Pequenino tinha necessidade de a ver progredir no espaço, saudando-a mais uma vez com uma melodia. Creidhe pensava que a criança estaria exausta depois da tensão e do desconforto daquele tempo de espera, esgotado pela preocupação da segurança de Guardião, contente por estar de regresso à cabana e enroscar-se no seu canto mais uma vez. Esperava que ele adormecesse no momento em que acabasse de comer. Em vez disso, o Pequenino saiu da cabana e foi-se sentar nas rochas, pequeno, muito direito e com a Lua a refletir-se nos seus estranhos olhos. Creidhe cometera o erro de se esquecer, por breves momentos, de que aquela criança de seis anos não era uma criança normal. Era impossível imaginar as visões que aquele pequeno vidente tinha na mente, que tipo de sentimentos se agitavam no seu espírito. A sua melodia começou suavemente, tristemente. Não era um hino de vitória, uma história triunfante acerca de mais uma caçada, de mais uma experiência sombria. Era um lamento. Talvez a música sem palavras daquilo que não podia acontecer; talvez uma recordação dos homens que tinham derramado o seu sangue na ilha naquele Verão e nos anos precedentes. Creidhe não sabia. A jovem olhava para Guardião, do outro lado da lareira, e ele olhava para ela. Nenhum deles se mexeu. Ambos reconheceram que não se poderiam tocar enquanto Pequenino não estivesse a dormir, porque seria demasiado perigoso. Assim que unissem as mãos, assim que unissem as bocas, assim que unissem os corpos, nada faria parar o fogo que brotara neles, até à consumação final. E, pensou Creidhe, esse processo seria rápido uma vez começado. Não que tivesse alguma experiência do assunto, mas parecia-lhe que agüentar seria uma impossibilidade.

A melodia de Pequenino soou através da noite, penetrante e triste, falando de perdas e de solidão, de dor, de desentendimentos e de desperdício. Creidhe inclinou a cabeça; não lhe parecia errado estar tão alegre, sentir o corpo arder de antecipação enquanto aquela criança dava voz àquela música profundamente melancólica.

— Ele canta sempre assim depois da caçada — murmurou Guardião. — É sempre a mesma. Não é para ti, ou para mim.

— Então, para quem é? Para ele?

— Talvez. Não tem palavras; penso que a mensagem é diferente para cada pessoa. Acho que ele está triste por a caçada se repetir, ano após ano.

— Ou por causa de tantos homens mortos — sugeriu Creidhe. Guardião cuspiu para o chão.

— Os homens não significam nada — disse ele em voz baixa enquanto a criança continuava a cantar à luz, no exterior. — Por que havia ele de ter pena deles?

Creidhe não respondeu, pois fazê-lo, honestamente, seria ofender amargamente Guardião, e ela não queria feri-lo, nunca. Especialmente naquela noite. Mas a jovem fez a si própria uma pergunta em silêncio, uma pergunta que não tinha resposta. Se ele está triste, quer dizer que ele desejaria que a caçada tivesse acabado de modo diferente? Talvez ele queira, apenas, regressar a casa. E talvez para ele, a sua casa não seja a Ilha das Nuvens. Aquela criatura poderosa, cuja canção ia direto ao coração, era, ao mesmo tempo e apenas, um rapazinho. Como podia compreender o que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz pretendiam dele? Como podia compreender que, se regressasse ao local onde tinha nascido, à nascente da sua sabedoria, sacrificaria o olhar e o movimento, talvez a vida antes de chegar a ser homem? O desejo de regressar parecia-lhe ser uma parte muito poderosa da canção. As promessas eram uma coisa difícil e perigosa. O que mantinha o vidente na Ilha das Nuvens era, talvez e apenas, a promessa de uma criança ao seu irmão, a promessa de se manter calado, de se portar bem.

 

— Em nome de Odin, o que é isto? — perguntou Sam, arrepiado, que lutava por encontrar uma posição cômoda para o seu longo corpo na depressão por baixo das rochas onde os dois homens se tinham abrigado para passar a noite. — Parecem aquelas vozes de que eles estão sempre a falar, umas vozes que roubam almas. Se conseguirmos atravessar aquele estreito, vou ter um prazer pessoal em te estrangular, Thorvald, seu teimoso miserável. Prefiro uma boa tempestade em mar aberto em qualquer dia. — O jovem levou as mãos às orelhas e fechou os olhos com força. — É como se estivesse dentro da minha cabeça. Não admira que o povo de Asgrim tenha tanto medo. Este lugar é maldito e não consigo perceber como me obrigaste a ficar. Quando concordei, não sabia que ia ficar sem o Sea Dove.

Thorvald estava sentado de pernas cruzadas, de costas retas, mantendo a calma através de exercícios respiratórios, apesar daquele som ameaçar desequilibrar-lhe os pensamentos, falando de morte, de sangue e de erros.

— Tu és o melhor marinheiro das Ilhas Brilhantes, Sam — disse ele. — É evidente que consegues regressar ao Fiorde do Conselho. É evidente que o consegues fazer. Mesmo com isto.

O jovem olhou na direção do pequeno barco, encalhado não muito longe do lugar onde se tinham escondido. Enquanto Thorvald liderara os seus homens na busca infrutífera pelo vidente, Sam e Knut tinham seguido outras ordens. Como Thorvald suspeitara, o inimigo tinha barcos na Ilha das Nuvens, escondidos numa pequena enseada, à qual se chegava unicamente descendo uma falésia extremamente íngreme onde as aves marinhas nidificavam. Algumas concavidades e recortes pouco profundos permitiam que os barcos ficassem abrigados num semiabrigo. Os barcos estavam ali há muito tempo; não parecia que o inimigo se aventurasse no mar com muita freqüência. No entanto, pareciam bem conservados e alguns deles tinham até sinais de terem sido reparados de modo algo excêntrico, mas eficaz. Sam escolhera o mais forte. Lá dentro tinha um par de remos e uma espécie de vela. A embarcação era pequena, leve, um barco feito para pescar perto da costa e em águas calmas. Ao lado do Sea Dove era um mosquito ao lado de uma gaivota, um rato ao lado de um cão de caça. Thorvald suspirou. Sam tinha razão; no Sea Dove, talvez tivessem algumas hipóteses de atravessar o estreito, mesmo depois da calmaria. Naquela casca de noz, feita de pele por cima de um esqueleto de madeira, precisariam de toda a maestria, que no seu caso era praticamente nula e de toda a sorte que os deuses se dignassem conceder-lhes. Mas fora a única maneira. O Sea Dove era grande, forte, destacava-se na flotilha de barcos menores. O inimigo não era estúpido. Contar os barcos à chegada e à ida era apenas uma questão de bom senso, como Einar dissera. O número de barcos era igual. O número de homens não, mas Thorvald achara isso de pouca importância. Tinham perdido quatro; se mais um ou dois desaparecessem antes de as embarcações abandonarem a ilha pela última vez, era pouco provável que o inimigo reparasse. Se reparasse, não ligaria uma coisa à outra. Ficar na ilha depois de a Corrente dos Loucos acordar de novo era uma estupidez. O restante da campanha de Thorvald, se bem que com pouco sucesso no seu objetivo primário, não fora planejada de forma tola, ou executada descuidadamente. Tinham ganhado terreno; tinham perdido muito menos homens do que normalmente, com Asgrim; tinham retirado ordenadamente e abandonado a ilha sem outras baixas. O inimigo julgá-lo-ia por isso; aquela gente não fazia idéia da surpresa que a esperava. Quantos seriam? Dez, cinco, três? Poucos, pensou Thorvald, muito poucos. Chegado o momento, sabia que entre ele e Sam seriam capazes de resgatar o vidente.

— Cala-te, cala-te — resmungava Sam com os ouvidos tapados. O jovem pescador era a imagem da desolação, enrolado de qualquer maneira na capa e de olhos cerrados como se, pelo fato de não poder ver, pudesse deter o tormento daquela voz sobrenatural.

— Sam — disse Thorvald — não te esqueças de que te devo um favor. Eu prometi, lembras-te, pagar-te e tu disseste que não.

Sam grunhiu qualquer coisa.

— O quê?

— Eu disse: esquece. — O tom de voz de Sam era constrangido, quase zangado. — O que eu tinha em mente já não pode acontecer. Esquece os favores. Se conseguir chegar inteiro a casa já me dou por contente.

— Que tinhas tu em mente? — perguntou Thorvald. O jovem, não só estava curioso, como aproveitava a ocasião para esquecer um pouco a melodia que lhe ecoava no cérebro, como se quisesse acordar tudo o que estava escondido dentro dele.

— Nada — grunhiu Sam. Após um momento de silêncio, o pescador acrescentou: — Creidhe morreu. Não a podes trazer de volta. Por isso, não me podes pagar o favor. E agora esquece o assunto, sim?

Thorvald ficou calado. A vida estava cheia de pequenas surpresas. Com a melodia a pairar à sua volta, o jovem permitiu-se pensar, por breves momentos, num outro tipo de futuro, um futuro possível antes daquela viagem, daquela expedição, do povo dos Facas Longas, de Asgrim. Uma vida que seguia um padrão de que os homens como Sam gostavam, uma vida de trabalho, de casamento e de filhos, durante a qual trabalhavam nos campos, pescavam, ou participavam em conselhos. O jovem tentara imaginar a cabana em Stensakir com Sam e Creidhe à porta, imaginara Creidhe à espera com o filho de Sam nos braços enquanto o Sea Dove se aproximava à hora do crepúsculo. Era estúpido. Errado. Só de pensar ficava irritado.

— O que é que te mordeu? — perguntou Sam, de olhos abertos, fixos em Thorvald, na sombra.

— Nada — disse Thorvald, irritado. O jovem estava aborrecido consigo próprio por perder o controle com aquela facilidade e por uma coisa tão pouco importante. Creidhe estava morta; tinha de o aceitar. Sam que tivesse os seus pequenos sonhos; não tinham importância nenhuma.

— Estou a ver que te irritei — disse Sam sem expressão. — Não vale a pena. Nunca teria acontecido, ela e eu. Era impossível.

— Porquê? — Thorvald não conseguiu deixar de perguntar.

— Bem, é óbvio. Eyvind e Nessa andavam à procura de um homem conveniente para ela e outro para Brona, para daqui a um ano ou dois. Não andavam à procura de um pescador, nem sequer de um tipo inteligente como tu, Thorvald. Eles andavam à procura de chefes de guerra e de fidalgos, príncipes dos Caitt, talvez um rei dos Dalriada. Justificava-se. As filhas de Nessa têm o sangue real dos Folk; os filhos delas podiam vir a ser Rei e como Nessa não teve rapazes, ainda é mais importante. Como seria possível escolherem-me a mim para pai de príncipes? Foi um sonho, mais nada.

Thorvald sentiu os lábios esticarem-se numa espécie de sorriso.

— Creidhe tinha muita personalidade — comentou ele. — Se ela se interessasse por um tipo qualquer, era capaz de dar a volta a Eyvind, mais tarde ou mais cedo.

Seguiu-se um silêncio.

— Sam?

Não obteve resposta.

— Sam, o que é?

— Sabes — disse Sam num tom estranhamente abafado — tu és um tipo inteligente, mas, por vezes, és mesmo cego. Eu, casar com Creidhe? Impossível. Ela nunca pensou em mim desse modo, nem por um momento.

— Não sabes ao certo... — disse Thorvald, se bem que, intimamente, concordasse.

— Sei, sim, tal como sei que o Sol se põe todos os dias. Creidhe nunca gostou de mais ninguém senão de ti. Por vezes, ficava doente ao ver todo aquele amor desperdiçado num homem demasiado preocupado consigo próprio para reparar, sequer, nela. Eu estaria presente quando ela precisasse de mim. Ter-lhe-ia dado tudo o que ela quisesse.

— Oh sim — disse Thorvald, sarcástico, antes de o poder evitar — uma cabana de duas divisões, um marido que só sabe falar de peixe e um filho todas as Primaveras: teria sido um belo presente.

Uma vez as palavras ditas, não as podia engolir. Tornou-se impossível continuar sentado ao pé do amigo. Thorvald levantou-se e desceu até à praia aos tropeções na semiescuridão, onde ficou a olhar para o mar com os punhos cerrados. Malditos amigos, maldita ilha, maldita melodia, que agora se dirigia para um fim plangente, deixando apenas o seu eco. Maldito espírito sombrio que o fazia magoar aqueles que procuravam apenas dizer a verdade. Maldito pai por ter feito dele o homem que era.

— Thorvald? — Sam aproximara-se calmamente e agora estava em cima das rochas, a seu lado.

— Deixa-me em paz.

— É melhor vires para cima — disse Sam suavemente. — Podemos ser vistos. Não vale a pena estragar a única hipótese que temos.

— Cala-te.

— Tu és um homem, não uma criança. — A voz de Sam era notavelmente uniforme.

— Não quero falar mais acerca do assunto. — E não vou deixar sair nenhuma lágrima, porque tu tens razão: eu sou um homem.

Sam esperou um pouco e disse:

— São coisas boas. Uma casa, comida na mesa, um bebê no berço. Não devias fazer troça dessas coisas, coisas de que Creidhe gostava. Mesmo assim, eu sabia que não tinha hipótese. Contigo era diferente. Se quisesses mesmo, podias ter conseguido: és educado, inteligente e és filho de um nobre. Um marido conveniente, desde que a mulher em questão gostasse de ti.

— Ah! — Thorvald tentou um encolher de ombros negligente. — Eu? Devia estar no fundo da lista de Eyvind, muito depois de ti, pescador. Bastava-lhe saber quem era o meu pai para me pôr fora da competição. Sangue mau. Tu sabes o que Somerled fez nas Ilhas Brilhantes. Viste o que ele fez aqui. Já te falei de Sula e de Creidhe. O filho de um homem assim não pode ser o marido de uma princesa de sangue real das Ilhas Brilhantes. Aliás, não serve para marido de mulher nenhuma. Desculpa ter-te falado daquela maneira. Mas, agora, já não posso engolir o que disse. Fui cruel, mas eu sou assim. Sou igual ao meu pai.

Seguiu-se uma curta pausa e depois Sam disse, suavemente:

— Foi a coisa mais estúpida que eu já ouvi. Não acredito nisso.

— É verdade. Sinto-o como uma sombra e não me consigo libertar dela. Eu não sou uma pessoa que tu queiras ter por amigo, Sam. Basta olhares para o lugar onde estamos e o que estamos a fazer para perceberes.

— Queres que te diga o que penso?

— Se quiseres. Não posso mudar a verdade.

— Eu acho que não te pareces nada com Asgrim. Olho para ele e vejo um líder cansado e desanimado, que recorre ao medo como único meio de controlar as pessoas; um homem derrotado, que perdeu a noção do bem. Por que outra razão desistiria da própria filha se não fosse assim? Pelo contrário, olho para ti e vejo um tipo inteligente, capaz, mas que pensa demasiado em si próprio. Um homem que exige demasiado de si próprio também, e que se castiga por não atingir os objetivos que se propõe. Um homem fechado e que, por vezes, não reconhece que precisa dos amigos. Um tipo que tem medo de rir, medo de amar, medo dos seus próprios sentimentos, porque é a coisa mais difícil de controlar. Sabes uma coisa? Vejo um homem muito parecido com a mãe dele, não com Asgrim. Não que sejas igual a lady Margaret. Um homem é ele próprio, na hora da verdade. O caminho é nosso, Thorvald, não nos é destinado por um equívoco, ou pelos nossos antepassados. Tu ainda agora começaste. Eu vi como os homens olhavam para ti, ontem. Tu começaste a mudar as coisas e para melhor. Lamento muito que Creidhe não esteja aqui para ver. Lamento que nunca mais tenhas a hipótese de lhe dizer o que me disseste a mim: que perdê-la era perder um pouco de ti mesmo. Oh sim, lembro-me muito bem; como seria possível não me lembrar? E agora vamos, temos de nos esconder outra vez. Aquela maldita melodia parou e, aqui a falar, podemos chamar a atenção. E eu quero voltar para casa. Apetece-me muito sentar-me outra vez à lareira.

— Mesmo sem Creidhe?

Sam não respondeu e alguns momentos depois os dois homens regressaram ao abrigo e instalaram-se desconfortavelmente. Podiam ouvir o mar a rugir na Corrente dos Loucos. Não havia necessidade de falar no dia seguinte; tinham tudo cuidadosamente planejado e cada um sabia o seu papel. Mais tarde, Sam quase adormeceu, mas Thorvald permaneceu acordado, recordando o espantoso discurso de Sam com o som das vagas como pano de fundo. Sam era um homem simples e via as coisas com simplicidade. Não podia esperar uma análise profunda da sua própria situação por parte de um homem daqueles. Não podia esperar que ele expusesse, em termos claros e inflexíveis, o que era, sem dúvida, a verdade. Pelo menos, uma espécie de verdade. Se fosse possível acreditar que era assim tão simples, seria uma grande consolação. Teria esperança, ou quase. Aqueles sentimentos eram, de certo modo, estranhos para Thorvald; não o visitavam com freqüência. E não tinha a certeza se seriam bem-vindos. O jovem sentou-se calmamente na escuridão, pensando naquilo e esperando pela manhã.

 

Esgotado pela força da sua voz interior, o Pequenino adormeceu assim que se deitou. Guardião e Creidhe ficaram a observá-lo durante alguns momentos. Agora que chegara o momento, Creidhe sentia uma estranha incerteza, porque apesar das mensagens que o seu corpo lhe enviava há já algum tempo, o território era novo, estava em águas desconhecidas e não sabia ao certo como avançar. A jovem sabia os rudimentos básicos, claro; crescera numa herdade. Sabia, também, algumas subtilezas, porque Eyvind e Nessa eram um exemplo terno e consolador. Creidhe vira a ternura de um pelo outro, as carícias mútuas e as mensagens que os seus olhos enviavam mutuamente, ainda cheias de paixão e promessas apesar dos anos passados, com cinco filhos e uma série de anos ao serviço das duas comunidades das ilhas. Apesar disso, a teoria era uma coisa e a prática outra. Numa palavra, a jovem sentia-se tímida.

— Aquilo que disseste — o tom de Guardião indicava que também ele estava confuso — acerca de ser costume uma pessoa lavar-se e lavar as roupas, quer dizer... eu acho que, se calhar, há mais qualquer coisa, se bem me lembro.

— Mais?

— Palavras — disse ele. — Palavras de promessa. Não devia haver isso? Um anel, ou outro talismã qualquer?

Creidhe sorriu ao ver a palidez dele e a solenidade dos seus olhos Teria de ser ela a tomar a iniciativa, com ou sem nervos.

— Há palavras — disse-lhe ela. — Tu tens de segurar nas minhas mãos, assim e devemos dizer aquilo que queremos para os dois, um voto, uma promessa. — Subitamente, enquanto Guardião fechava as pequenas mãos dela nas suas de dedos longos e fortes, ela ficou muito quieta, consciente da seriedade da situação. Aquele momento era um ponto de viragem; era o fim do Eu e o começo de Nós. Viver um momento assim era dar um presente precioso e receber, em troca, um igual.

— Diz tu primeiro. — A voz de Guardião era um pouco constrangida. — Eu não sei o que dizer.

As palavras surgiram sem querer; Creidhe falou em voz baixa, porque Pequenino dormia apenas a dois passos do lugar onde estavam de mãos juntas e olhos fechados.

— Prometo ser tua, amar-te e estar sempre a teu lado enquanto vivermos. — disse ela com a voz a tremer.

Guardião tossiu nervosamente para aclarar a voz.

— Juro proteger-te e amar-te sempre — disse ele. — A minha casa abrigar-te-á, a minha lareira aquecer-te-á e eu caminharei a teu lado até ao fim dos meus dias. Prometo-te solenemente.

— Pensei que tinhas dito que não sabias o que dizer — sussurrou Creidhe. — Foi maravilhoso o que disseste. Fizeste-me chorar.

— Oh não... oh não, por favor, não...

Alarmado, Guardião ergueu uma mão para limpar a lágrima que lhe corria pela face, mas foi imediatamente abraçado, porque Creidhe não agüentava mais. Com os lábios no pescoço dele e com o corpo a arder, ela murmurou:

— Não devíamos acabar assim, a meio caminho. Eu devia dizer: Juro pelas pedras e pelas estrelas... — A boca bela afagou-lhe o queixo, embriagada de desejo. Creidhe sentiu as mãos dele nas costas, apertando-a com força. E ouviu as palavras dele, ternas e tímidas, apesar do seu corpo esguio e forte.

— Juro pelo vento e pelas aves, até à morte e para lá dela. Tu és o meu amor, a minha deusa, a minha mulher.

— E tu és o meu amante e marido, a minha outra metade. E penso que chegou a hora, finalmente, de tentar isto...

Quando chegou o momento, inexperientes como eram, desenvencilharam-se sem dificuldades maiores. Umas mãos esfomeadas lidaram rapidamente com os impedimentos de uma túnica, de um cinto ou de uma saia; lábios ardentes deixaram a sua sutil mensagem na pele suave de um ombro, de um seio, das fendas secretas do corpo; a respiração transformou-se em suspiros, em arquejos, em semi-murmúrios de amor e desejo. Era verdade, nenhum deles desempenhara aquela tarefa antes, mas eram jovens e saudáveis e feitos um para o outro. Através da estreita abertura por cima da lareira, a Lua, decrescente, observava tudo; a mão esbelta e áspera dele na pele dela; os cabelos cor de trigo dela espalhados, como uma torrente dourada, em cima do corpo rijo dele; os lábios de ambos unindo-se, traquinas, saboreando, até que, demasiado cedo, não conseguiram agüentar e atingiram o êxtase juntos numa urgência doce e misteriosa. Guardião movia-se como o mar, firmemente, com força, contendo ferozmente o desejo, adorando a sua deusa, a sua mulher de pele branca e rosada, de cabelos dourados, tal como a vira pela primeira vez à lareira, se bem que, espantosamente, ali, nos seus braços, as suas faces corassem de paixão e os seus lábios, as suas mãos e o seu corpo, oferecendo-se, lhe inflamassem o desejo. E Creidhe, que esperava ter algumas dores e talvez algum desapontamento, como é normal com as raparigas na noite de núpcias, descobriu, encantada, que era uma verdadeira filha do seu pai, generosa para o parceiro e sentindo-se deliciada com o que recebia dele. Finalmente, ele golpeou-a, com força e ela apertou-se contra ele, estremecendo e gritando ambos quando Guardião ejaculou dentro dela e o corpo de Creidhe respondeu, arqueando-se de dor e prazer. Depois, foi o silêncio. Deslumbrados, espantados, descrentes, ficaram nos braços um do outro enquanto os corações abrandavam gradualmente. A Lua brilhava por cima deles, remota e imparcial e o único som que se ouvia naquela noite de Verão era o do Pequenino a dormir.

Passados alguns momentos, Guardião mudou de posição e ficou de costas, assegurando-se de que Creidhe podia descansar a cabeça no seu ombro e enroscar-se nele o mais confortavelmente possível naquela cama dura. O jovem puxou o cobertor e cobriu-a. E em breve ela dormia como uma criança com o braço por cima do peito dele, os cabelos, como uma carícia, sobre a pele dele, os lábios abertos num ligeiro sorriso. Mas Guardião ficou acordado, olhando para o céu, e os seus pensamentos já estavam no dia seguinte, no Verão seguinte e nos anos vindouros.

Creidhe acordou cedo. Ficou imóvel por alguns momentos, pensando nas sensações do seu corpo, as dores de satisfação, que eram um sentimento inteiramente novo, o calor do corpo de Guardião, a sua respiração na sua testa, agitando-lhe ligeiramente os cabelos. Ele dormia profundamente, enroscado em redor dela numa atitude de proteção. O interior da cabana estava frio; a lareira transformara-se num monte de cinzas. E Pequenino não estava à vista, o seu cobertor todo amarrotado e as botas perfeitamente alinhadas junto à parede, no seu canto. A tremer, Creidhe saiu de sob os cobertores, cuidadosamente para não acordar Guardião e meteu-se na saia e na túnica, acrescentando-lhes, depois, uma capa quente. Meteu os pés nos pequenos sapatos que tinham pertencido a Sula. Ainda havia brasas por baixo do cobertor de cinza; ela soprou-as, colocando por cima alguns gravetos que não tinham ardido para provocar as primeiras chamas. Havia uma provisão de madeira e de turfa. Guardião era um homem previdente.

Creidhe estremeceu, pensando em como teria sido se as suas visões tivessem sido verdadeiras e ele tivesse caído perante as forças de Asgrim durante a caçada. Como se teria arranjado sozinha com o Pequenino, tão frágil, durante o Inverno? O pensamento era aterrorizador. Guardião era um homem, forte e capaz, habilidoso e inteligente. Acima de tudo, estava determinado a cumprir a sua missão. Mas, tinha doze anos quando fugiu para aquela ilha, uma criança. Como era possível compreender um tal encarceramento, uma tal dedicação àquela vida de luta e sacrifício? O jovem vivera tudo sozinho, apenas com o seu pequeno sobrinho: sozinho durante aqueles anos todos, com o vento e as tempestades, as falésias e o mar tempestuoso. Talvez fosse do sangue que lhe corria nas veias, o sangue da mãe, que tornava possível essa resistência. Ela pertencera à Tribo das Focas, a raça tão temida pelo povo de Creidhe. As pessoas da Tribo das Focas eram diferentes, eram capazes de viver ao mesmo tempo em terra e no mar, temiam o ferro, os seus corpos eram semelhantes aos dos homens e das mulheres, mas tinham diferenças sutis. Para além dos seus dedos estranhos, longos e finos, da sua palidez e dos seus olhos profundos, que podiam mudar de cor, Guardião era um homem perfeito; a sua forte compleição, que Creidhe sentira na noite anterior enquanto saboreava cada canto do seu corpo esbelto e musculoso, o modo como se completavam na perfeição, movendo-se como um todo, parecia prová-lo sem qualquer dúvida. Talvez fosse mais filho de Asgrim do que da mãe, se bem que nunca o reconhecesse. Ali, não era Guardião. O outro, era Pequenino, o vidente cuja mãe transportava nas veias, ao mesmo tempo, o sangue da Tribo das Focas e o do povo dos Facas Longas e o sangue dos homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, os homens que o reclamavam como Máscara-de-Raposa e a quem pertenceria até ao fim da sua vida uma vez celebrado o ritual de estropiação.

Ajoelhada à lareira, Creidhe sentiu um arrepio. O fogo pegara e ardia com alguma segurança, espalhando uma luz rosada e quente pelas feições de Guardião ainda adormecido. A caçada terminara. Estava sã e salva, por agora, aquela pequena família tão nova, mas que era, indiscutivelmente, a sua. Mas haveria outros Verões e outras caçadas. Naquele momento, ficaria contente se Pequenino regressasse para poder tê-lo debaixo de olho. Devia estar um frio de rachar, no exterior, e ele não calçara as botas. Que andaria ele a fazer?

Creidhe saiu para o ar da manhã. O nevoeiro pairava, baixo; a jovem conseguia ver até uma distância, talvez, de vinte passos, antes de a cortina branca velar por completo a encosta. Pequenino, sob a forma canina, estava um pouco abaixo, de orelhas espetadas, como que à espera. Creidhe abriu a boca para o chamar, mas fechou-a logo a seguir, gelada de terror. Emergindo da bruma, surgiu um homem, um homem alto de cabelos claros que ela reconheceu, se bem que as faces largas e sorriso luminoso, apanágio de Sam em Stensakir, tivessem sido substituídos por um olhar mais duro, o olhar de um guerreiro. O jovem tinha uma lança na mão e era evidente, pela maneira como pegava nela, que aprendera a usá-la. Pequenino virou as costas e correu para junto dela. Em seguida, por trás de Creidhe e à esquerda, ouviu-se um pequeno som: um único passo nas pedras da encosta. A jovem virou-se e deu de caras com Thorvald a menos de quatro passos de distância, de sobrolho carregado, boca cerrada, os olhos escuros muito abertos num rosto branco como a cal, um reflexo, sem dúvida, do seu. Que sentimento era aquele que estava a sentir? Alegria ou angústia? Alegria pelo reencontro, ou um terror inconsciente?

Falaram os dois ao mesmo tempo, pouco firmes, dizendo uma única palavra: o nome um do outro. Por trás de si, Creidhe podia ouvir os passos de Sam aproximando-se, já sem se preocupar com o barulho que pudesse fazer; a jovem também podia ouvir os passos pequenos e rápidos de Pequenino. Um instante mais tarde, surgiu Guardião à entrada da cabana com um olhar no rosto que os silenciou a todos, porque parecia uma força terrível e antiga da natureza, sombria e implacável. O jovem estava completamente nu, sem qualquer arma de ataque ou de defesa, mas Creidhe viu Thorvald dar um passo atrás. Naquele momento, a imagem apoderou-se de novo da jovem, fria e inevitável: não era na caçada, no dia anterior, era naquela manhã, afinal de contas era verdade, a terrível visão dos antepassados era real. Uma noite apenas, tivera apenas uma noite. Agora, as trevas iam regressar e Pequenino seria levado... Thorvald, apertando o arco na mão, não vacilou um instante, nem sequer naquele momento de fazer parar o coração. A jovem viu os dedos dele moverem-se ligeiramente, preparando-se para largar a flecha na direção do peito de Guardião. A jovem viu o subtil movimento da mão direita de Guardião, onde tinha uma tira de pele com uma pedra, tudo o que tivera tempo para agarrar quando acordara subitamente, sentindo o perigo. Por trás, Creidhe ouviu os passos de Sam aproximando-se. Pequenino agitava-se em redor dos pés da jovem, inconsciente do perigo.

Até os antepassados se enganavam, por vezes, certamente, certamente que não eram assim tão cruéis? Devia ser possível alterar as coisas. Por que outra razão se teria sentido impelida a fazer aquela viagem? Os dedos de Thorvald retesaram-se na corda do arco; a mão de Guardião recuou, pronta para largar a pedra. Subitamente, ouviu-se a voz de Creidhe.

— Não! — gritou ela, e atirou-se para a frente, inconsciente para tudo, senão para a necessidade de os parar, de os salvar, custasse o que custasse. A jovem sentiu-se como se tivesse asas, como se transportada pelo vento, os braços abertos, as pernas mal tocando no solo, tal era a urgência. Então, sentiu uma dor terrível no braço esquerdo e outra na cabeça, e caiu inconsciente.

Thorvald era um líder. Nem naquele momento o esqueceu. Creidhe jazia no solo pedregoso. O sangue escorria-lhe do braço, onde a sua flecha a ferira, mas fora a pedra que a fizera cair; a jovem levara com a pedra que lhe era destinada. O rosto de Sam estava contorcido de angústia, estava quase a chorar. Com um aceno da mão, rápido, Thorvald silenciou-o. Tinham um momento para agir, não mais. Porque o inimigo estava indefeso. Quando Creidhe caíra, o tipo lançara um grito terrível, o grito de dor de animal selvagem e deixara-se cair aos pés dela, sem se preocupar com Thorvald ou com Sam. Guardião amparou-lhe a cabeça e os seus longos dedos apalparam o local onde a pedra lançada pela sua funda acertara, provocando-lhe um grande galo na pele pálida. Os seus olhos pareciam cegos pelo choque. As suas mãos tremiam visivelmente, como se tivesse cometido um ato demoníaco, inimaginável: como se tivesse morto uma deusa. A seu lado, o pequeno cão observava, imóvel.

Thorvald olhou para Sam e acenou com a cabeça. Sam deu dois passos em frente e quando aquele tipo de aspecto selvagem se virou para ele e começou a levantar-se, a sua lança atingiu-o na nuca, fazendo-o cair de borco no chão. O vento agitava-lhe os cabelos emaranhados, frio, implacável, à luz da madrugada. O animal parecido com um cão continuava por perto, ganindo e lambendo o rosto branco do homem caído por terra.

— Creidhe! — arquejou Sam, deixando cair a lança, afastando o corpo do guerreiro e ajoelhando-se para a erguer nos braços.

— Pelos ossos de Odin, ela esteve viva este tempo todo, prisioneira! — O jovem apalpou-lhe o pescoço e inclinou-se para lhe escutar a respiração. — Louvada seja Freya, ainda respira! Depressa, temos de parar a hemorragia. Que lhe deu, para fazer uma coisa daquelas?

Thorvald reprimiu uma lágrima súbita. Creidhe estava viva. O seu coração foi atingido por uma confusão de sentimentos sem sentido. Portanto, era mais fácil fazer aquilo que sabia ter de ser feito. Mesmo depois daquilo, continuava a haver uma missão e ele não podia desviar-se dela até estar terminada.

— O vidente — disse ele em voz rouca. — Temos de encontrar o vidente...

— O quê? — A voz de Sam parecia um rugido. O jovem rasgara um pedaço da sua camisa e ligara o ferimento do braço da jovem. Agora, estava a envolvê-la na sua capa. Os cabelos de Creidhe, soltos, espalhavam-se pelos seus joelhos como um ribeiro dourado.

— Temos de o encontrar. Não deve estar longe. Não saio daqui sem ele. — Virando a cabeça, Thorvald começou a andar na direção da pequena cabana, onde ardia uma fogueira no meio de algumas pedras. O interior era rude, mas tinha sinais de alguma vida doméstica; havia peixe pronto para ser cozinhado, capas penduradas nas paredes, potes e panelas. Havia um espaço para dormir. O jovem viu como estavam estendidos dois cobertores, um ao lado do outro, em desordem, e outro mais longe, junto de um par de botas para criança. Thorvald pensou em Creidhe ali deitada à mercê daquele animal selvagem. A evidência dizia-lhe que não só estivera prisioneira, como fora usada; não havia dúvidas de que aquela esteira primitiva fora o lugar onde o tipo se satisfizera à custa dela. A fúria encheu-o, quase se sobrepondo à disciplina que aprendera a impor a si mesmo. O jovem colocou o arco a tiracolo e tirou o punhal do cinto. O inimigo era apenas um homem. Sempre acreditara, no fundo, que assim era. Aquele homem condenara aquele soldado honesto, Hogni, a um fim lento e cruel pelo veneno. Aquele miserável raptara-lhe a sua maior amiga, Creidhe, a sua sombra leal, a quem ele ligara pouco ao longo de todos aqueles anos, a quem censurara, de quem fizera troça, sem reconhecer que a amava até ao dia em que pensou que tinha morrido. E, afinal, tinha estado sempre viva ali, prisioneira daquele filho do diabo. Aquela criatura infernal tinha-a raptado e tinha-se servido dela, tratara uma criança inocente como uma puta vulgar. Mas, agora, ia morrer. Como poderia ser de outra maneira?

Thorvald saiu da cabana. O tipo continuava imóvel com o pequeno cão a seu lado, ansioso. Sam estava a envolver Creidhe na sua capa. A expressão no seu rosto fez com que Thorvald se sentisse pouco à vontade, porque era o olhar de um homem que tomou uma decisão e que não permitiria que o fizessem mudar de idéias.

Thorvald ajoelhou-se junto do guerreiro com a faca na mão. Demoraria apenas um instante: um simples golpe na garganta e vingaria Creidhe, Hogni, Svein, Alof, Helgi e todos os homens que tinham morrido ao longo dos anos. Fácil: rápido. O pequeno cão ganiu de novo, olhando para ele com uns olhos vermelhos, estranhos, num focinho triangular. Pelo martelo de Thor, nunca vira um cão como aquele em toda a sua vida, ou um gato, ou outro animal qualquer de que se recordava. Parecia um animal saído de uma história de magia e mistério, uma coisa que não pertencia ao mundo dos homens, velha, misteriosa, estranha... Thorvald sentiu os pêlos arrepiarem-se-lhe na nuca e um frio percorrer-lhe o corpo ao olhar para aqueles olhos líquidos. Por todos os deuses, conseguira, vencera... O jovem descobriu que estivera a prender a respiração e deixou-a sair num longo suspiro. A sua mão, segurando o punhal, tremia como uma folha.

— Despacha-te! — disse Sam asperamente. — Temos de regressar ao Fiorde do Conselho e depois para casa. Creidhe está ferida, tem frio e eu vou levá-la para as Ilhas Brilhantes, nem que morra. Maldito seja o teu vidente. Não desperdiço nem mais um momento do meu tempo. Se vais matar esse tipo, despacha-te e vamos embora, porque ainda temos pela frente o pesadelo da travessia.

Sam tinha razão, claro. Por um milagre qualquer, Creidhe fora-lhes devolvida e, agora, Thorvald tinha a hipótese de remediar tudo, dizer-lhe o que sentia, emendar os seus erros... Tinham de salvá-la. Tinha de se despachar para que pudessem ir-se embora rapidamente. Thorvald olhou para o rosto imóvel do homem, um rosto magro e forte, marcado por um maxilar forte, uma boca firme e severa apesar da inconsciência, umas longas pestanas escuras e uns cabelos emaranhados. O jovem encostou a faca à garganta, a faca que os seus homens lhe tinham feito como sinal da sua liderança, um sinal de respeito e confiança. De que estava à espera? Era um guerreiro, não era? Devia ser tão fácil como degolar um carneiro, mais fácil, de fato, já que a vítima estava indefesa, oferecendo a carne para o sacrifício. Mas a mão de Thorvald não se mexia. Porque naquelas feições sérias e disciplinadas estava a sombra do rosto de um outro homem; aquele tipo selvagem tinha os traços de Asgrim nos maxilares, nas faces, na robustez dos ossos. Aquele tipo era o filho do governador. Era o miúdo que raptara Máscara-de-Raposa há cinco anos: o rapaz que as pessoas diziam ser um sonhador, sem talento para os jogos de guerra. Um rapaz que sobrevivera e se transformara num homem e que, nesse processo, ensinara a si próprio como ser um exército de um só homem. Tal era a força que tinha dentro de si: uma força moral fantástica. O coração de Thorvald ficou dividido entre o ódio e a admiração. Pelo que fizera, aquele homem merecia a morte. Não tinha dúvidas da atitude de Skapti, de Einar, de Skolli; esperariam que Thorvald o fizesse. Mas o jovem não conseguia fazer o gesto; não conseguia que a arma fizesse o seu trabalho.

— Anda lá! — gritou Sam com um tom cortante na voz.

A criatura com aspecto canino aproximou-se. Tocou no joelho de Thorvald; o jovem podia sentir o seu pequeno corpo a tremer, quase como que o movimento de um corpo líquido, uma vibração constante. Thorvald continuou de joelhos, imóvel, com a faca na mão. Se aquele homem era filho de Asgrim, era seu irmão. Não sentia qualquer ligação; na verdade, sentia nojo, aversão e uma vontade de acabar com o tipo e com os seus atos de violência deliberada. Mas não podia matar o seu próprio irmão. Fazê-lo seria provar que não era melhor do que Asgrim, que gerara ambos, porque não fora pelo crime de fratricídio que Somerled fora expulso das Ilhas Brilhantes para sempre, chegando através das estrelas e por entre recifes até àquele canto distante do mundo? Ali, recomeçara de novo a sua vida maldita como Asgrim, governador das Ilhas.

Thorvald meteu a faca na bainha e pôs-se lentamente de pé. Não era igual ao pai. Era ele próprio e escolheria o seu próprio caminho. Quanto àquele seu meio-irmão, que causara tanta perturbação e tantas mortes, aquela criatura selvagem que lhe roubara Creidhe, que ficasse por sua própria conta.

— Thorvald! — gritou Sam. — Eu vou-me embora e se tu não estiveres no barco a tempo, Creidhe e eu vamos sem ti. Estou a falar a sério.

Havia um tom novo na voz de Sam, um tom de determinação e esperança renascidas apesar da viagem que tinha pela frente. Thorvald também sentiu uma esperança nova enquanto olhava para o pequeno animal estranho a farejar o homem imóvel no chão e a olhar para cima, como que em busca de tranqüilização. Tinha razão para ter esperança. Tinha Máscara-de-Raposa. Espantosamente, Creidhe estava viva. E no outro lado da Corrente dos Loucos, no Fiorde do Conselho, os seus homens esperavam-no. O vento soprava com força de oeste, agitando os caracóis escuros e selvagens do guerreiro e percorrendo-lhe o corpo com os seus dedos gelados. Não precisava de usar a faca, pensou Thorvald; o clima acabaria com o tipo mal ele saísse dali.

O pequeno animal ganiu. Sam desaparecera na encosta envolta em nevoeiro com Creidhe nos braços.

— Está bem, pronto — resmungou Thorvald, sem saber ao certo com quem estava a falar. Durante os treinos para a caçada ele tornara-se mais forte. Na última Primavera, não teria sido capaz de arrastar um homem adulto para o interior da cabana sem ficar esgotado, sem fôlego. Thorvald estendeu o homem nos cobertores tentando não pensar em Creidhe, porque, se o fizesse, a fúria apoderar-se-ia dele de novo. O jovem cobriu o homem com o que tinha à mão: capas, cobertores, peles e outras peças de roupa. Deitou alguma turfa para a lareira. Era o suficiente; não sentia nada pelo tipo, irmão ou não. O tipo é que escolhera aquela ilha, no fim de contas; a Ilha das Nuvens que o safasse, já que gostava tanto dela. Quanto à tribo feroz, o exército selvagem que Asgrim acreditava enfrentar, era apenas um homem, o seu próprio filho, mais nada, um homem e a ilha. Thorvald não diria a verdade aos outros; deixá-los-ia acreditar numa vitória há muito desejada!

Tinha de ir; não podia pôr de parte as ameaças de Sam. Thorvald deu alguns passos para pegar no pequeno animal, mas este tinha-se afastado um pouco e estava a puxar qualquer coisa encostada à parede, uma correia, ou um cinto. Não, era um saco, bem fechado e apertado: um saco familiar, o saco que Creidhe trouxera consigo das Ilhas Brilhantes, cheio de coisas tolas, nomeadamente o bordado e as lãs coloridas. Só uma rapariga se lembraria de trazer consigo aquelas porcarias numa viagem ao fim do mundo!

O animal começou a rosnar; pegara no saco com os seus pequenos dentes aguçados e não o queria largar. Por todos os deuses, pensou Thorvald, seria bom que tivesse razão, para não chegar ao acampamento de Asgrim apenas com um cão enfezado nas mãos. Sentia que estava certo. Escutara cuidadosamente o que os homens diziam acerca da natureza daquilo que caçavam.

— Está bem, pronto — disse ele, estendendo um braço para pegar no saco e esperando que o animal não lhe ferrasse os dentes. — Levamos também isso. Creidhe ficaria fula se deixássemos isto aqui; ela gosta muito deste bordado. Ponho-o às costas e levo-te, a ti, ao colo...

Mas não ia ser assim. O animal viu-o pegar nos pertences de Creidhe e depois saiu da cabana a correr. Thorvald sentiu um baque no coração. O cãozinho era minúsculo e muito ágil; era capaz de fazê-lo correr a ilha toda enquanto Sam regressava ao Fiorde do Conselho, levando consigo o seu único meio de fuga.

Mas quando saiu da cabana, deixando o guerreiro estendido, imóvel, junto da lareira, o animal de aspecto canino descia a encosta em direção ao ancoradouro, parando de vez em quando para ver se Thorvald o seguia. Não precisava de capturá-lo, de o prender, de o forçar a abandonar a Ilha das Nuvens. Era evidente que Máscara-de-Raposa decidira regressar a casa.

 

Passara-se muito tempo desde que o homem de cabelos brancos aprendera a manter um pequeno barco a flutuar em mar aberto. Então, era jovem e forte, de cabelos escuros e brilhantes como a madeira polida do carvalho. Aprendera rapidamente, tendo de escolher entre morrer, faltar a uma promessa, ou navegar, viver e permanecer fiel a si próprio. Aprendera da maneira mais dura possível. Uma lição assim não se esquece. Agora, as suas mãos moviam-se com eficiência, aparelhando e carregando o barco com as coisas que trouxera: menos coisas do que as ferramentas básicas de sobrevivência que lhe tinham permitido levar consigo quando o tinham enviado para o exílio. Tinha alguma água, uma capa extra e alguma corda. Não levava comida: esperava não precisar. Não levava linha de pesca. Aquela viagem só tinha um propósito.

O homem lançou o pequeno barco à água da Baía Sangrenta, empurrando-o ao longo da areia escura antes de subir para bordo. O processo era tudo menos elegante; já não era um homem novo, pensou ele enquanto pegava nos remos, mas também não era tão velho que não agisse quando achava necessário. Esperara muito tempo, receoso de que aquela decisão o forçasse a quebrar um voto que não devia. Prometera ao seu único amigo, ao seu único e verdadeiro irmão, que quando aportasse a qualquer lugar, depois da sua longa viagem, se esforçaria por ser sensato e equilibrado, um verdadeiro condutor de homens. Mas, como podia uma criatura imperfeita como ele manter uma promessa solene, senão afastando-se do mundo dos homens? Desejava ardentemente liderar, ansiava pelo respeito e admiração dos homens, mas sentia que, por mais poderoso que pudesse ser, nunca se sentiria satisfeito. Assim, a única coisa a fazer era eliminar essa possibilidade de poder, ou faltaria à promessa, provocando uma era de trevas. No entanto, o desejo de poder sempre existira, de algum modo, ao longo dos anos, durante a sua vida como monge, vivendo o dia-a-dia em redor das horas, das Matinas Completas, empunhando a pena e escrevendo outras coisas que não mensagens secretas de estratégia e intriga. Misturara pigmentos, embelezara as suas páginas delicada e engenhosamente. Copiara as Escrituras para Breccan. Até desenhara mapas para o governador, apenas para não perder o jeito, por assim dizer. Aprendera que mungir uma vaca e trabalhar na horta era, para os fiéis, um verdadeiro ato de oração. E vira os patéticos esforços de Asgrim para estabelecer ali uma comunidade, reparara nas injustiças e nas loucuras que o governador impunha aos ilhéus assustados. Desafiara-o enquanto o povo dos Facas Longas se desgastava numa guerra fútil contra um inimigo que não conhecia, contra um adversário que não compreendia.

Mas não podia intervir. Avançar e tomar o lugar de Asgrim, como ansiosamente desejava, seria tornar-se, mais uma vez, no líder que mostrara ser nas Ilhas Brilhantes: um líder que só sabia governar através da crueldade e do terror, um governador menos digno, ainda, do que Asgrim. Estivera por pouco, algumas vezes. Uma delas, pouco depois de chegar e cheio de saudades, confrontara-se com Asgrim e vira o medo nos olhos dele, um medo que acordava nele recordações amargas. Niall retirara, optando pela solidão, por uma vida de estudo. Mais tarde, quando os homens do Ulster apareceram e ele descobrira com espanto que a amizade ainda era possível, no fim de contas, travara conhecimento com o rapaz, Erling. Uma mente perspicaz, uma vontade forte, apesar dos seus modos sonhadores: Niall descobrira em si próprio o desejo de proteger o jovem do pai, dar-lhe a oportunidade, pelo menos, de crescer e aprender, livre da influência negativa de Asgrim, que não o achava digno de ser seu filho.

Havia uma centelha de qualquer coisa rara em Erling. Breccan apercebera-se disso, também, enquanto o rapaz fazia perguntas sem fim acerca das Escrituras, procurando encontrar significado nas histórias de Cristo e dos seus discípulos, coisas que não faziam parte do padrão da sua própria vida entre o povo dos Facas Longas. Bem, Erling quebrara, certamente, o padrão, mas não como Breccan esperava, que desejava que o rapaz fosse para o eremitério e, em devido tempo fizesse, também, o voto de pobreza, de castidade e de obediência. Erling surpreendera toda a gente. Suportara os castigos corporais do pai, os abusos, o encarceramento, esperando até chegar a ocasião para fugir. Então, roubara a criança Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Espantara todos raptando o vidente e colocando-o fora do alcance. Um ato daqueles, de uma extrema coragem, de um dedicado auto-sacrifício, era, certamente, digno de se transformar numa lenda.

O problema, disse Niall para si mesmo enquanto aproava o pequeno barco a sul, na direção da Ilha das Nuvens, o principal problema era que o heroísmo de Erling não conseguira nada para além de uma momentânea amolgadela na autoridade de Asgrim. As vozes continuavam a surgir durante a noite; as crianças continuavam a morrer. A caçada continuava com a sua colheita de morte e desespero. Provavelmente, o vidente morrera no primeiro Inverno na Ilha das Nuvens, no meio da bruma e da chuva. Era natural que o rapaz não tivesse podido fazer melhor, porque a capacidade de argumentar com lógica e o gosto por histórias não eram os dons ideais para uma vida de luta contra o frio, a fome e a solidão. Provavelmente, já não havia nenhum vidente. Mas havia quem ainda tivesse fé nele. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham fé, o povo dos Facas Longas caçava-o e aquela guerra estúpida continuava. Com o tempo, destruiria a todos.

Antes, Niall teria ficado no eremitério, observando, pensando. Teria visto os barcos saindo no solstício do Verão e regressando no dia seguinte com menos alguns homens a bordo. Breccan teria rezado pelos guerreiros de Asgrim e ele teria ajoelhado tranquilamente ao lado do seu irmão, respeitando a sua fé. Se Deus preferia recompensar a coragem do povo dos Facas Longas com o falhanço, quem era ele para o criticar?

Mas agora era diferente. Deixara-os levar a rapariga, a própria filha de Eyvind, que ele devia ter protegido, aquela jovem encantadora com os cabelos cor de manteiga e olhos azuis sinceros do seu amigo, suaves como um céu de Verão sem nuvens, de extrema bondade e simplicidade. A jovem era a imagem do pai, mas era-lhe superior, porque também tinha a inteligência rápida da mãe, a sua capacidade de entendimento. Mas, agora, Creidhe estava morta: e a culpa era sua, a culpa era de Somerled, a mão, de novo, de Somerled, transformando tudo em cinzas. Podia ter agido mais cedo, mas preferira não o fazer. Mas, agora, tinha de fazer qualquer coisa. Era demasiado tarde para Creidhe, mas não para o rapaz. Não, um rapaz não: um homem. O seu filho. O seu filho, Thorvald, a imagem de Margaret na atitude digna, no ar de autoridade contida, nas feições orgulhosas e nos cabelos ruivos... No entanto, tinham sido os seus próprios olhos escuros e perturbados no rosto daquele guerreiro, que tinham olhado para ele, os seus próprios olhos, plenos de convicção e propósito, olhos que nunca conseguira dominar, como era desejo de Eyvind. Asgrim, provavelmente, tinha vergonha do seu próprio filho. Para Niall, não era assim. O monge reconhecera, logo naquele primeiro momento esmagador, que o seu coração, afinal de contas, não estava gelado para sempre; que aquele jovem era como ele próprio devia ter sido, um grande líder sem entraves, livre dos grilhões do passado, grilhões que Somerled nunca conseguira afastar de si. Se pudesse ter gritado para que todo o mundo o ouvisse, teria gritado: Ele é meu filho.

Por isso, era hora de agir. Asgrim podia prosseguir com a caçada, ano após ano, destruindo as vidas dos seus homens, como se fossem meras ferramentas. Mas não permitiria que acontecesse o mesmo a Thorvald. Thorvald viveria; seria um líder como aquela gente nunca tinha visto.

Niall pensara no seu plano durante muito tempo. Achou que teria sucesso, sem grandes danos para quem quer que fosse. O que era um vidente, no fim de contas, senão alguém que podia aconselhar razoavelmente as pessoas quanto às suas vidas? Os pormenores não tinham importância. Nove em cada dez homens de Rogaland tinham mães de cabelos claros. Os restantes tinham pouco significado: provavelmente, tanto como ele, que era um miserável. Certamente menos do que o castigo que impusera ao seu próprio irmão num tempo em que apenas conhecera a luxúria do poder, a luta amarga para fazer de si próprio aquilo que acreditava ser: Rei dos homens. Podia suportar o ritual. À sua maneira, até talvez fosse interessante, se fosse capaz de permanecer consciente enquanto levavam a cabo a cirurgia.

O pequeno barco deslizava através do oceano, oscilando como um brinquedo nas águas profundas entre a Ilha das Tempestades e as ilhas ao sul, lar misterioso d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Niall olhou à sua volta, retendo tudo na memória: os tons da água; o céu grande e pálido cheio de gaivotas; as silhuetas íngremes e escuras das ilhas, franjadas de falésias habitadas por milhares de aves marítimas. O dia estava bom; o Sol estava quente, o ar fresco e as focas nadavam de um e de outro lado do barco, como se o escoltassem.

Gostaria de ter podido ver Thorvald mais uma vez, só mais uma, antes de lhe tirarem a visão. Gostaria de ter podido olhar para o seu filho e dizer-lhe como se sentia orgulhoso por ter gerado um jovem como ele; como lamentava por não o ter visto crescer. Uma tolice. Nenhum rapaz gostaria de ter Somerled como pai. Thorvald era o que era, precisamente porque o seu pai não estivera presente enquanto ele crescera. Estivera livre da sua influência. Margaret fizera um bom trabalho. Niall gostaria de ter podido dizer-lhe.

Breccan não ficaria feliz. Breccan descobriria que ele se tinha ido embora, lamentaria e rezaria por ele. Se o homem do Ulster o pudesse ver agora, pensou Niall, descobrindo que tinha um sorriso sem qualquer amargura nos lábios, ficaria surpreendido. Porque o homem de cabelos brancos trouxera consigo quatro coisas ao deixar a Ilha das Tempestades pela última vez. A primeira era a capa, já que tinha de se manter quente para poder usar as mãos com eficácia. O barco não navegava sozinho. A segunda era a corda; era uma loucura viajar sem uma corda. A terceira era a água, para o manter vivo em caso de emergência. A quarta era a cruz de madeira que trazia ao pescoço. Niall descobrira que podia pôr facilmente de lado a pena e o pergaminho, sabendo que não poderia voltar a escrever. O último salmo estava escrito, copiado na perfeição, as maiúsculas desenhadas com folhas e flores e, aqui e ali, o texto, os locais onde os seus pensamentos tinham desafiado os limites do manuscrito, ansiando, atingindo e ultrapassando as margens. Aquele trabalho estava feito. Não haveria mais cartas, ou mapas. Um homem não pode escrever na escuridão. Não voltaria a velejar, não trataria da horta, não iria à aldeia, ao lago ou ao alto do monte. Estava mentalizado; a decisão para acabar com a vida que levava era sua. No entanto, a cruz ainda lhe pendia do peito, um pedaço simples de madeira de freixo, que lhe parecera, até ao dia em que conhecera o seu filho, apenas um símbolo sem qualquer significado de uma fé que pertenceria sempre a outros, como Breccan e Colm, mas nunca a si próprio. Somerled, crente de um deus de paz e perdão? Somerled, convertido por um ruivo do Ulster a um caminho de bondade e de luz? A idéia era tão absurda que até Eyvind, o melhor e mais tolerante dos amigos, se riria dela. No entanto, a cruz: o monge fechou-a na palma da mão e fechou os olhos numa oração. Deprofundis clamam adte, Domine... Sempre, como antes, apenas as palavras, um eco de Breccan e de Colm, os movimentos como padrão para os seus dias, para que pudesse continuar a viver aquela vida de clausura, aquela imitação grotesca de existência... No entanto, naquele momento, não era o eco, eram palavras sentidas, intensas, majestosas, diretas ao coração, porque aquela voz terrível falava-lhe de sacrifício e redenção, de uma vida infinitamente mais valiosa do que a sua, falava de salvação, não apenas de duas tribos desafortunadas de um grupo de ilhas isoladas, mas da espécie humana, para sempre. Aquela voz murmurava-lhe ao ouvido como o rolar de um trovão distante, falando de pais e filhos. Aquela voz fazia-o chorar e tremer. Fazia-o desejar profundamente o estado de graça.

Niall continuou a navegar firmemente e as ilhas a sul aproximaram-se cada vez mais enquanto o Sol lhe passava por cima da cabeça. As gaivotas gritavam; a água abria-se por baixo do casco da embarcação. A sua mão esquerda tocava na madeira quente da cruz e a direita segurava no leme enquanto o vento o empurrava na direção do seu destino. O momento das trevas, o momento em que tudo se decidiria, seria o momento do acordar; o desaparecimento da visão humana seria o da madrugada da alma, comprada com amor e sacrifício. A voz cantava-lhe no espírito, ao mesmo tempo aterrorizadora e consoladora. Esperara por aquilo toda a sua vida.

 

Creidhe começou a emergir da inconsciência. Primeiro, foram os sons: o estalar de uma vela, passos no tombadilho, a voz de Sam, curta, tensa. Depois, o movimento: uma ondulação, para baixo e para cima, familiar desde a viagem indescritível a bordo do Sea Dove. Era como se tivesse uma faca encostada às têmporas. Estava deitada sobre algo fofo, uma capa, estendida sobre uma superfície agreste, desconfortável: as pranchas do convés de um barco, provavelmente. Doía-lhe o braço. Tinha algo a ligá-lo, com força e de modo artesanal. À medida que a visão regressava através do nevoeiro que lhe envolvia os olhos, também regressava a memória, dolorosa como um pontapé na barriga. Guardião... Pequenino... Creidhe sentou-se abruptamente e quase vomitou de dor. A jovem tentou falar, mas não conseguiu. O pequeno barco, não o Sea Dove, mas uma minúscula e frágil embarcação de madeira e pele, era sacudida com uma violência que ultrapassava a tempestade que tinham sofrido durante a viagem das Ilhas Brilhantes. A espuma estava por toda a parte, fina e torrencial; enquanto tentava respirar, passou-lhes por cima uma vaga e ela ficou numa poça fria e com as roupas completamente ensopadas. Foi então que viu Thorvald com um balde, ou outra coisa semelhante na mão, as feições tensas enquanto se dobrava para baldear a água que inundava aquela amostra de barco. O vento fustigava-lhe os cabelos ruivos e as roupas com dedos gananciosos. Havia vozes nele, gritando, vozes iradas: Pensas que podes atravessar a Corrente dos Loucos, tu, um simples homem e ainda por cima um recém-chegado? Louco! Por trás dele, via Sam a lutar com a vela, perfeitamente equilibrado, como um verdadeiro marinheiro, lendo a ondulação como se fosse uma extensão do próprio corpo. Creidhe fez um esforço para se pôr de joelhos; obrigou a cabeça a virar-se numa direção e noutra apesar da dor, obrigou os seus olhos a procurarem da proa à popa, em todos os cantos do barco, recusando-se a acreditar no que sabia ser verdade: Thorvald não era capaz daquilo, os antepassados não permitiriam... A jovem viu apenas os dois homens, o mar tormentoso à sua volta e, por trás deles, a Ilha das Nuvens, desvanecendo-se já na bruma da memória, como se não tivesse passado tudo de um sonho, uma fantasia de rapariga tola, como se fosse possível ela poder alterar o padrão de algo tão antigo, tão grandioso e tão terrível; mas que podia, de certo modo, se fosse suficientemente corajosa, se amasse verdadeiramente. Dos seus lábios saiu um grito de pura angústia. Aquele lamento primitivo, de arrancar o coração, imobilizou Thorvald com o balde na mão e obrigou Sam a fazer uma pausa, o rosto branco como a cal, enquanto lutava para evitar que o pequeno barco os atirasse ao mar.

O grito terrível transformou-se numa torrente de palavras. Creidhe conseguia ouvir a sua tagarelice selvagem, sentia-se a si própria agarrando as roupas de Thorvald e gritando a sua furiosa dor enquanto olhava para ele, mostrando o jovem, pela sua expressão desorientada, que não compreendia o que ela lhe estava a tentar dizer. Mas, agora que começara, parecia que nada a faria parar.

— Onde está ele? Onde estão eles? Que lhes fizeste? Mataste-o, mataste-o, não mataste? Destruíste-o para teu benefício, para alimentares o teu orgulho... como pudeste, Thorvald? Deixaste Pequenino entregue a si próprio. Eu prometi olhar por ele, prometi, ele é tão pequenino, ele não pode...

Thorvald esbofeteou-a. Foi um golpe calculado, pouco doloroso, apenas o suficiente para a fazer parar. Ela olhou para ele, chocada. Naquele momento, ele parecia um estranho.

— Onde está ele, Thorvald? — murmurou ela com os dedos ainda enclavinhados na túnica dele. — Que lhe fizeste? Responde-me!

Ele ouvira-a, tinha a certeza; ele compreendera aquelas palavras por cima do rugido do vento e da música irada da Corrente dos Loucos.

— Creidhe — disse ele cuidadosamente — tu acabas de passar tempos terríveis, vê-se perfeitamente e falaremos deles quando Sam nos conseguir levar até ao Fiorde do Conselho. Estas águas são perigosas; tens de ficar muito quieta e deixar-nos governar o barco...

— Diz-me! Diz-me o que fizeste! Onde está ele? Onde está...?

— Pára, Creidhe. Tu estás salva, está tudo bem. Nós estamos aqui, vamos tomar conta de ti. Foi um choque, eu sei. Para nós também foi. Pensamos que estavas morta...

— Thorvald! — disse Creidhe com os dentes cerrados. — Onde está a criança? — E naquele preciso momento ela viu as pequenas orelhas, pontiagudas como as de um pequeno cão, a única parte visível do vidente no meio das cordas da embarcação, por trás do seu pequeno saco e de duas outras trouxas. Pequenino estava ali; eles tinham-no trazido. Tinham-no trazido e iam entregá-lo a Asgrim e, se o tinham trazido, queria dizer que Guardião estava morto.

— Creidhe? — A voz de Thorvald suavizara-se um pouco. — Prometo-te que daqui para a frente será tudo diferente. Acabou tudo. Estás sã e salva. — Era o tom de voz de um homem a tentar tranqüilizar uma mulher assustada, dizendo-lhe que estava tudo bem, acreditando que era o suficiente; acreditando que ela não podia compreender o verdadeiro significado das coisas e que, portanto, não valia a pena tentar explicar-lhe. Ela também achou que ele travava uma batalha com a sua própria ira, com o seu próprio tumulto de sentimentos. Mas não lhe apetecia ser simpática. Não naquele momento.

— Creidhe? — perguntou Thorvald calmamente. — Compreendeste o que eu disse? — Tinha de fazer a pergunta seguinte, se bem que já soubesse a resposta; estava ali, no frio que sentia no corpo e no aperto que sentia no coração.

— Diz-me — sussurrou ela. — Diz-me, Thorvald. Que fizeste? Que aconteceu ao homem que estava comigo na ilha?

Por vezes, as mentiras são necessárias, mesmo quando um homem é um líder. Para Thorvald, aquele era um desses momentos. Quase não suportava olhar para Creidhe, olhar para aqueles olhos que, certamente, deviam estar aliviados, agradecidos ou pedindo desculpa: — tinham-na salvo, não tinham? A ela e ao vidente? Mas o olhar dela era de fúria, acusatório e trágico. Perante o seu terrível poder, a sua coragem pareceu naufragar e ele tentou encontrar as palavras certas. O jovem não quisera bater-lhe; fora a única maneira de a acalmar. Ela estava histérica; se não a tivesse controlado, talvez tivesse virado o barco como fizera com o d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, afogando-os naquelas águas vorazes. Não estava furioso por causa dela, estava furioso por causa de todos os homens que tinham abusado dela, que a tinham mantido prisioneira, que a tinham transformado numa imitação grotesca dela própria. Batera-lhe, quando, no fundo, tudo o que queria era abraçá-la, oferecer-lhe afeto e consolação. Mas não tinha tempo para aquilo; ainda estavam apenas a meio caminho da salvação e era evidente a luta de Sam a cada instante que passava, lutando por manter a rota através daquelas correntes erráticas e daqueles ventos insanos. Tinha de lhe responder. E só havia uma resposta possível, porque ela fora ferida, abusada e aterrorizada e precisava absolutamente de se sentir segura. Precisava de ter a certeza.

— O homem que te tinha prisioneira? O miserável que raptou o vidente e que começou isto tudo? Matei-o. Era ele ou eu. Sam também teria morrido. Acabou, Creidhe. Acabou e nós vamos levar-te para casa.

Por um momento, ele esperou que ela deixasse de lhe agarrar na camisa e o abraçasse em busca de conforto; que poderia, por breves instantes, abraçá-la, talvez apenas como um irmão, qualquer coisa, fosse o que fosse, para lhe poder mostrar o que a sua língua confusa e os seus olhos eram incapazes de fazer por ele. Mas Creidhe largou-o, levou ambas as mãos ao rosto e caiu num silêncio terrível, um silêncio anunciador de um profundo choque. A jovem parecia estar para além das lágrimas, para além de qualquer consolo, para além de qualquer ajuda. Então, Sam gritou uma ordem e Thorvald agarrou-se ao leme que oscilava loucamente, deixando de ser possível fazer qualquer coisa senão seguir as ordens de Sam enquanto a embarcação prosseguia na sua rota louca através das águas ondulantes. Aquilo era uma batalha, dois homens e uma casca de noz contra a Corrente dos Loucos. As histórias eram verdadeiras; não se podia prever o que viria a seguir, uma rajada caprichosa de vento, um súbito redemoinho, sugando como uma criatura raivosa das profundezas, um turbilhão que os puxava na direção das rochas. Sam parecia furioso; o seu sobrolho estava carregado e a boca, geralmente afável, era uma linha fina de cólera. Quando Thorvald olhou novamente para Creidhe, um pouco mais tarde, viu que o pequeno e estranho animal saíra sem ser visto do seu esconderijo e que se abrigara nos seus braços, estendendo o pescoço de vez em quando para lhe lamber o rosto pálido, onde a bofetada de Thorvald deixara uma marca rosada e púrpura. Os olhos da jovem fixavam a íngreme Ilha das Nuvens. Naquele momento, Thorvald pensou ver nela um ser de uma história antiga: tão remota como uma deusa.

O mar castigou-os até à Ilha do Dragão e ao Arco do Troll; quase até à boca do Fiorde do Conselho. O rosto de Sam estava cinzento de exaustão e Thorvald obedecia às suas ordens quase inconscientemente. Creidhe seguia sentada no tombadilho com o pequeno animal nos braços. As suas roupas estavam encharcadas e os cabelos, saturados de água, caíam-lhe pelos ombros curvados. Era como se, subitamente, tivesse ficado cega e surda, como se não se apercebesse do perigo que corriam ou do horror que enfrentara na ilha. A jovem não parecia compreender que tinha sido salva. Thorvald pensou se a experiência não lhe teria perturbado a mente; até ali não dissera nada que fizesse sentido. Mas não podia ser. Assim que passassem o Arco do Troll o mar ficaria mais calmo; aquelas correntes não podiam continuar a segui-los até ao fiorde, onde as falésias altas ofereciam proteção, salvo dos ventos cruéis de oeste. Estavam quase lá e tinham Máscara-de-Raposa. O jovem permitiu a si próprio, prudentemente, pensar no futuro imediato: em Einar, em Skapti e nos outros quando soubessem que tinham vencido, que um futuro de paz já não era um sonho impossível. Seria agradável. Seria agradável apertar-lhes as mãos e ver o calor a regressar aos seus rostos severos, ouvir a alegria nas suas vozes cansadas. Ficaria muito contente; o futuro encarregar-se-ia do resto.

— O pior já passou — observou Sam, mais ou menos no seu tom normal enquanto se dirigia para o leme. — Assim que chegarmos à Ilha do Dragão, fica a faltar apenas um trecho difícil, mas podemos contorná-lo, a norte. Parece que, afinal, não vamos dormir com os peixes esta noite. Espero que Knut tenha tomado conta do meu barco.

Quando lhe cedeu o lugar, dirigindo-se para a proa, Thorvald pestanejou, espantado e ouviu, por cima do rugido incessante do mar, o grito de sobressalto de Sam. O pequeno barco seguia firmemente na direção do abrigo do Fiorde. A estibordo avistava-se a silhueta íngreme e denteada da Ilha do Dragão; depois a forma atarracada do Arco do Troll e por trás deste último as encostas rochosas da Ilha das Tempestades, sólidas e escuras. Mas o jovem não estava a olhar para aquilo, porque, a bordo, acontecia algo prodigioso: nos braços de Creidhe, que continuava silenciosamente sentada, não estava nenhum cão, nenhum gato nem qualquer animal terrestre, estava uma criança toda esfarrapada de membros esqueléticos e com uma cabeça cheia de cabelos emaranhados. O coração de Thorvald parecia um tambor. Uma transformação daquelas não podia ser real, mas estava a acontecer, indubitavelmente, diante dos seus olhos. O jovem sentiu uma alegria imensa. O seu instinto acertara: tinham resgatado o vidente e a missão fora cumprida.

— Pelo martelo de Thor! — exclamou Sam, incrédulo.

— Conseguimos — disse Thorvald em voz rouca. — Resgatamos Máscara-de-Raposa.

Num instante, a luz do Sol transforma-se em sombras, a luz em escuridão: basta um piscar de olhos, se os antepassados assim o quiserem. Estavam a passar o estreito entre os dois ilhéus, o do Troll e o do Dragão. Thorvald viu a criança a estender os braços esqueléticos para abraçar Creidhe, apertando com força. O jovem viu os dedos de Creidhe a afagarem-lhe os caracóis emaranhados, movendo-se com uma grande suavidade; viu o vidente pressionar o seu pálido rosto triangular contra a face de Creidhe, não exatamente um beijo, antes um gesto de afeto, de respeito... de adeus... e depois, rápido como um raio, o Pequenino subiu para a amurada e mergulhou nas águas turbulentas que rodeavam a Corrente dos Loucos. Gelados de pavor, os três jovens ficaram a ver os braços magros a movimentarem-se, pálidos como varas de salgueiro, nas águas agitadas; enquanto a corrente o levava na direção daquele estreito canal, para o sul. Então, abruptamente, o oceano engoliu-o e Máscara-de-Raposa desapareceu.

Thorvald aspirou desesperadamente, como se, também ele, se estivesse a afogar.

— Muda de rumo! — gritou ele. — Pára, volta para trás!

Sam olhou para ele sem se mexer.

— Não posso — disse ele pesadamente. — O barco não deriva e o vento está de feição. A não ser que queiras esmagar o barco e afogar-nos aos três.

Era verdade: aquele canal só era navegável em dias muito calmos e a remos. Além disso, o vento já os levara até ao Arco do Troll. Mesmo que conseguissem virar, de que serviria? Não havia sinais da criança. Mesmo supondo que, por milagre, o rapaz sobrevivesse às águas geladas, como o encontrariam? Sam tinha razão. Tentar ir em busca dele seria o sacrifício inútil das suas próprias vidas.

Thorvald sentiu-se invadido por um tumulto de sentimentos: amargura, raiva, angústia, desapontamento e o frio reconhecimento do insucesso. A tremer, o jovem disse:

— Como pôde ele fazer aquilo? — gritou ele para Creidhe. — Como é que o deixaste fazer aquilo? Deste cabo de tudo!

Creidhe olhou para ele com o rosto da cor da cinza e com os olhos muito abertos, muito estranhos. A jovem não disse uma palavra.

— Não compreendes o que isto significa? — A voz de Thorvald saía-lhe áspera e descontrolada e o jovem tentou suavizá-la. — Há homens bons na Ilha das Tempestades, homens que combateram e sofreram durante anos por isto! Aquela criança era a sua última esperança de paz! Dei-lhes a minha palavra de que a traria!

— Chega! — grunhiu Sam. — Cala essa boca e faz qualquer coisa de útil, porque ainda não estamos livres de perigo.

Mas Thorvald não parecia capaz de parar. O silêncio de Creidhe, a sua expressão vazia, de olhos muito abertos, enchia-o de terror, porque lhe parecia a confirmação de uma verdade que quase esquecera: errara mais uma vez, a missão era um fracasso e o povo dos Facas Longas ficava, mais uma vez, condenado a lutar contra a miséria e a infelicidade, ao mesmo tempo que a sua amiga se transformava numa concha vazia diante dos seus olhos. A culpa era sua. Falhara redondamente. O jovem acocorou-se junto de Creidhe e agarrou-a pelos ombros.

— O que é que te deu? Não compreendes nada? — disse ele. — O que é que eu vou dizer ao meu pai? Como é que vou dizer aos homens que encontramos o vidente e que o deixamos fugir por entre os dedos?

— Thorvald! — rugiu Sam. — Deixa-a em paz!

Subitamente, as lágrimas começaram a rolar pelas faces de Creidhe.

A jovem não tentou enxugá-las, limitando-se a olhar para Thorvald, muda como antes. Talvez tivesse enlouquecido. Thorvald sentiu um arrepio. Que grande notícia levaria ao pai dela quando regressassem.

— Pelos ossos de Odin — disse ele. — Diz qualquer coisa!

— O que é que tu queres que eu diga? — A voz dela soou débil e longínqua.

Thorvald respirou fundo e largou-a lentamente. A culpa não era dela; não podia acusá-la, nem devia estar zangado. Ele é que era o líder. A responsabilidade era toda sua.

— Desculpa — disse ele. — Descontrolei-me. A verdade é que a expedição correu mal e regressamos derrotados para junto do povo do meu pai.

Seguiu-se um momento de silêncio e depois Creidhe começou a rir com um riso terrível, louco, que o fez ranger os dentes. Os olhos doces e sinceros dela estavam cheios de amargura.

— O povo do teu pai — disse Creidhe numa voz confusa, hesitante. — Essa tem piada. Armas-te em condutor de homens em nome do povo do teu pai; invades a ilha, trinta guerreiros contra um; matas um homem que só agiu por amor; raptas uma criança inocente e tentas sujeitá-la a um futuro de sofrimento indescritível! Foi o teu pai que te pediu para fazeres isto tudo, Thorvald? É verdade?

O jovem olhou para ela, tentando tirar sentido das suas palavras.

— Que queres dizer com isso de um futuro de sofrimento indescritível? — perguntou ele. — O vidente veio conosco de livre vontade. Tu viste como ele estava magro e fraco; foi um milagre ele ter sobrevivido na Ilha das Nuvens. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tê-lo-iam protegido. Máscara-de-Raposa é o vidente venerado deles; seria tratado como um rei, como um deus.

O olhar de Creidhe tornou-se frio, de cólera.

— Isso é mesmo teu, Thorvald. Tu sempre correste atrás das coisas sem quereres saber dos pormenores. Não admira que estivesses ansioso por comandar aqueles homens. Não admira que te tenhas convencido de que Asgrim é o teu pai. É evidente que ele nunca se deu ao cuidado de te dizer o que aconteceria a Máscara-de-Raposa quando o entregasses Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz. Ele não te falou no ritual, pois não?

Houve um momento de silêncio carregado. De maxilar cerrado, Sam conduzia o pequeno barco para norte de um trecho de água cuja superfície eriçada deixava antever algum perigo submarino: um recife submerso, ou restos da traiçoeira Corrente dos Loucos.

— Que ritual? — Thorvald manteve a voz calma e prudente, se bem já sentisse uma premonição nas palavras de Creidhe.

— A mutilação. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz teriam cegado e estropiado Pequenino, para o tornar igual ao velho vidente, aquele cuja morte despoletou tudo isto. — Creidhe fungou e passou uma mão pela face. — Eles acreditam que um vidente não pode dizer as profecias sem passar primeiro pela tortura. Mas não é verdade; eu ouvi-o. Ele pode fazê-lo. Ele... ele podia fazê-lo.

Thorvald engoliu em seco. Quase desejava que Creidhe tivesse mantido aquele comportamento estranho e frio, porque lhe estava a custar cada vez mais vê-la a chorar abertamente. Abruptamente, a jovem voltara a si, a rapariga que era a sua sombra desde a infância, a jovem cuja morte ele não conseguira chorar em voz alta.

— Isso é terrível — disse ele mais gentilmente. — Não, não me disseram nada. Suponho que os homens não sabiam. Deixaste-o ir por causa disso? Não percebes que ele não pode ter sobrevivido nestas águas?

— Deixar? — perguntou Creidhe. — Eu não tenho influência sobre Pequenino. Ele faz o que quer. Eu não esperava que ele fizesse aquilo. Nem depois de ver morrer Guardião. Tu não podes compreender a dor dele.

— Creidhe... — Thorvald hesitou; ela não passava de uma rapariga, no fim de contas. — Teria sido melhor se a criança tivesse sido entregue Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, por mais cruel que possa parecer. Podíamos ter conseguido a paz para o povo dos Facas Longas, para os homens, para as mulheres e para as crianças. Tem havido muitas mortes de crianças ao longo destes anos todos de caçadas, bebês mortos por Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz antes, sequer, de verem o segundo dia de vida. Achas que uma coisa destas deve continuar por causa de um miúdo? O povo de Asgrim sofre há anos. Não sei como lhes hei de dar a notícia. Como enfrentá-los? Como enfrentar o meu pai?

— Thorvald — disse Creidhe, olhando-o fixamente — Asgrim não é o teu pai.

De novo aquele frio. Sentira-o mesmo antes de ela ter dito aquilo.

— Que queres dizer? É claro que é. Foi ele que me disse...

— Ele não é o teu pai. E a cicatriz?

— Cicatriz? — repetiu Thorvald ao mesmo tempo que a vela estalava ao vento e eram afastados da rota. — Que cicatriz?

Creidhe olhou para ele com os olhos azuis muito abertos.

— Quer dizer que não sabias? A tia Margaret não te disse?

— Dizer-me o quê? De que estás a falar?

— Não disse; estou a ver que não. Nunca me passou pela cabeça falar disto. Pensei que soubesses. O meu pai tem uma igual no braço. Eu vi-a.

Thorvald olhou para ela.

— Então... — começou ele.

— E já a vi aqui nas ilhas, mas não foi no braço de Asgrim.

— Mas... — A cabeça de Thorvald começou a andar à roda. O acampamento, os treinos, o trabalho todo com os homens... As expressões de desconfiança de Asgrim, o reconhecimento implícito de paternidade por parte do governador... tudo mentiras, tudo fingimento, mais uma demonstração da sua total inaptidão, a herança que fazia com que tudo aquilo em que tocava se transformasse em pó. Não era verdade. Não podia ser verdade.

— Por Freyr — observou Sam. — Que reviravolta. Mas deve ser um alívio, acho eu, descobrir que o governador não é o teu pai. Pelo menos, eu não gostaria de ter um pai como ele. A pergunta é: se não é ele, então quem é?

— E o mapa? — perguntou Thorvald subitamente, agarrando-se a tudo. — Eu vi o mapa, Asgrim tinha-o na cabana dele, com penas e tintas. Era um mapa desenhado pela mesma mão que escreveu a carta que a minha mãe tinha, tenho a certeza...

A boca de Creidhe abriu-se num sorriso alegre.

— Foi outro homem que fez o mapa, Thorvald. Um homem com uma cicatriz no braço. Esse é que é o teu pai. Ele é que é Somerled, se bem que use um nome diferente, agora. Passou-se muito tempo desde o dia em que ele abandonou as costas de Hrossey. Foi uma viagem desesperada: uma viagem tão desesperada, tão horrível, que lhe embranqueceu os cabelos.

As palavras dela soavam-lhe a verdade. Uma estranha calma apoderou-se de Thorvald, como se uma tempestade violenta tivesse passado e varrido tudo à sua frente, deixando a paisagem nua.

— Um homem de cabelos brancos — disse ele. — O eremita. Queres que eu acredite que Somerled, Somerled, se tornou cristão? Um homem que torturou o próprio irmão até à morte e que impôs um reino de terror e de sangue nas Ilhas Brilhantes?

— Não quero saber se acreditas ou não — disse Creidhe secamente. — O irmão Niall é que é o teu pai. As coisas podem mudar muito em dezoito anos, Thorvald. Um rapaz cresce e transforma-se num homem. Aprende o que é a coragem, a devoção e o sacrifício, ou torna-se egoísta e cego. Uma rapariga fica a saber que estava errada acerca de muitas coisas importantes, tão importantes que, perdê-las, é como se morresse. Talvez um homem possa perceber que o perdão é possível, por maiores que tenham sido os seus erros. Pergunta-lhe.

Thorvald não respondeu. Tinha uma imagem na mente, a imagem de uns olhos escuros a olharem para os seus com uma inteligência penetrante, de uma voz ao mesmo tempo suave e incisiva, de umas feições austeras devido à autodisciplina, por baixo de uma cabeça de cabelos brancos tonsurados. Pensara que o monge era um ancião. O tipo tinha querido falar com ele a sós... não aproveitara a oportunidade... deixara que Asgrim o dominasse, não compreendera... Creidhe tinha razão, convencera-se demasiado cedo de que tinha razão. Ficara cego. Que louco fora.

— Creidhe? — disse Thorvald suavemente.

Ela olhou para ele com uns olhos vermelhos e inchados.

— Desculpa — disse ele, com um esforço, sentindo a amargura no coração. — Lamento muito.

— Pelo que fizeste, — as palavras de Creidhe pareciam gotas de chuva gelada — nunca te poderei perdoar, Thorvald. Nunca.

Não havia mais nada a dizer, se bem que não fosse justo da parte dela, pensou Thorvald, culpá-lo pela morte da criança. Talvez estivesse a falar do malogro da expedição, uma expedição que só provara a sua total incapacidade. Em silêncio, continuaram a navegar por entre os braços de terra na direção da segurança do Fiorde do Conselho.

 

— Pelo martelo de Thor! — exclamou Sam. — Uma recepção de boas-vindas! — Não estava nada à espera. Porque, navegando na direção deles, no meio da grande baía, progredindo firmemente contra o vento, vinha a silhueta compacta e agradável do Sea Dove. À medida que a sua pequena embarcação se ia aproximando, o jovem podia ver algumas figuras familiares a bordo: Orm ao leme; o grande Skapti à proa; e, sentado em cima de um fardo, a meio do tombadilho, um homem vestido com o hábito castanho e coçado dos eremitas cristãos, com uma expressão de ansiedade desesperada nas feições rudes.

Vou ter de lhes dizer agora, pensou Thorvald. Tenho de encontrar as palavras certas. Tenho de lhes dizer que não cumpri a minha promessa: que falhei.

Mas quando se aproximara do Sea Dove e Skapti estendeu um gancho para encostar a pequena embarcação ao barco maior, Breccan chamou-os com uma voz tensa, angustiada.

— Thorvald! Tens de me ajudar!

Seguiu-se uma história extraordinária, confusa. Apesar disso, o clérigo, de rosto branco como a cal, contou-a com a voz inegável da verdade. Breccan falou de um homem que se tinha ido embora, navegando para as ilhas do sul para se oferecer como vidente Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz... Um homem que não era vidente, mas que, apesar disso, era tão persuasivo, tinha um tal dom da palavra que, possivelmente, teria sucesso na sua missão bizarra... Um eremita que estava disposto a sacrificar a visão e a mobilidade se, com isso, acabassem os anos de dor e perdas inúteis nas ilhas... Que estava preparado para ser um cego estropiado se isso salvasse o seu filho.

— Sabes — disse Breccan com toda a simplicidade — ele sabia que, mesmo que sobrevivesses à caçada, Thorvald, os teus dias estavam contados. O governador tem medo de ti: este ano, tu serviste os objetivos dele, mas a longo prazo as tuas capacidades, o teu poder, a liderança que exerces sobre os homens dele são uma ameaça demasiado grande para a sua autoridade. Como poderá Asgrim deixar-te viver para além deste Verão?

— Gostava de o ver tentar qualquer coisa — resmungou Skapti. — As coisas mudaram.

— Com isto — Breccan continuou — Niall tenciona acabar com a guerra, permitindo-te, assim, assumires o controle com mais facilidade. Pelo menos, é o que eu penso. Ele tem-se mantido à parte estes anos todos, com medo do que poderia provocar se se opusesse a Asgrim. — O monge do Ulster tentava explicar calmamente, controlar a voz trêmula. — Mas não podia ver a vida do filho em perigo sem intervir. Ele já tinha falado dessa possibilidade, mas eu não lhe dei crédito; é um esquema louco, bárbaro e Niall é um homem de lógica fria, de ações meticulosas e de um autodomínio perfeito. Nunca pensei que ele fosse para a frente com isto. Fez as coisas como deve ser: manteve-me acordado até tarde, para que eu dormisse até depois das Matinas. Quando acordei já ele ia longe e com este vento é capaz de já estar perto da Ilha das Sombras, onde eles celebram o ritual. Precisamos do Sea Dove, Sam, e contigo aos comandos. E precisamos de ti, Thorvald. Niall, a mim, não me ouve, nem a nenhum dos homens do povo dos Facas Longas. Mas ouve, certamente, a voz do filho. Tens de o fazer mudar de idéia. Se ele fizer o que tenciona, perdoa a violência, os rituais primitivos, as práticas pagãs daquelas almas perdidas.

E enquanto Thorvald olhava para ele em silêncio, espantado, Breccan olhou por cima do ombro do jovem e viu quem vinha com eles no pequeno barco de madeira e de pele.

— Creidhe! Por todos os santos!

Thorvald reparou que Skapti não conseguia deixar de olhar para Creidhe e que o grande guerreiro parecia ter os olhos rasos de água. O jovem reparou que Breccan se movia em perfeito equilíbrio no barco, o que não era uma surpresa, compreendeu ele, se se pensasse na longa viagem que o monge fizera desde as costas do Ulster. Thorvald e Sam saltaram para o Sea Dove. Seguiu-se uma breve discussão.

— Creidhe não pode ir conosco — disse Sam sem expressão. — Ela foi ferida, está exausta e, além disso, quando aqueles selvagens a virem, vocês sabem o que eles vão decidir. Ao escolherem o monge, eles arriscam-se, têm de confiar na palavra de um inimigo. Se ficarem com Creidhe, têm outra vez a rapariga de cabelos dourados, os meios de criar, de novo, aquele maldito Máscara-de-Raposa. E nós somos poucos. Ela não pode ir.

 

— Eu levo-a para terra no barco pequeno, se vocês quiserem — ofereceu-se Orm, olhando para Thorvald. — Mas...

— Eu vou no Sea Dove. — O tom de Creidhe era frio e peremptório. — Tenho de lá ir. Tenho de lá estar quando tudo acabar. — A jovem permanecia no pequeno barco oscilante, agarrando na corda que Skapti deixara cair para os ajudar a subir para o Sea Dove. — Tu estás em dívida comigo, Thorvald — disse ela.

Thorvald abriu a boca para argumentar, mas fechou-a de imediato.

— Tu não podes deixar Creidhe com Asgrim — observou Breccan calmamente. — Seria o mesmo que entregá-la ao inimigo.

— Eu vou convosco. — Creidhe começou a subir, mas Skapti estendeu os braços, agarrou-a por baixo dos braços e, com um puxão, colocou-a no tombadilho do Sea Dove. Orm desceu para o pequeno barco.

Finalmente, Thorvald encontrou a voz.

— É melhor dizer-lhes — disse ele em voz pouco firme enquanto Orm pegava nos remos e se dirigia para a praia onde se viam alguns homens à espera. — Diz-lhes que falhei. Encontramos Máscara-de-Raposa; tivemo-lo durante algum tempo. Mas... — o jovem virou-se para Creidhe. — Mas ele escapou-nos. Diz-lhes que lamento muito. Diz-lhes que lamento mais do que tudo na minha vida.

Orm acenou com a cabeça, fez força nos remos e a pequena embarcação afastou-se na direção da praia. No Sea Dove, Creidhe sentou-se de novo em silêncio e sem expressão. Parecia que lhe faltava qualquer coisa; como se algo lhe tivesse sido arrancado do espírito, deixando um buraco vazio. Skapti tirou a sua espessa capa de feltro, colocou-lhe pelos ombros e ela agarrou-se a ela, tremendo. Sam estava a olhar para a vela com olhos conhecedores e fazendo um gesto para o grande guarda-costas, para que fosse para o leme. O Sea Dove estremeceu, endireitou-se e avançou de novo para oeste. O Sol ainda não atingira o zênite. Talvez ainda fossem a tempo.

— Obrigado, Thorvald — disse o irmão Breccan em voz calma. — Foi uma alegria tão grande para ele descobrir que tinha um filho. Ele tem muito orgulho em ti.

Thorvald mordeu o lábio, receoso de falar e de perder o controle que lhe restava. Apesar dos esforços para o dominar, o seu coração parecia querer desfazer-se em pedaços.

— Eu percebo que deve ser difícil — continuou Breccan, sentando-se junto de Thorvald, longe da azáfama de Sam e de Skapti. — Se não fizermos nada, se deixarmos que Niall faça o que decidiu, pode ser que a paz volte às Ilhas Perdidas. As mortes, as almas roubadas, o terror e o derramamento de sangue podem acabar. Podemos consegui-lo se não fizermos nada. E tu serás um herói para esta gente.

Thorvald olhou para ele.

— Ele não pode fazer uma coisa dessas — murmurou o jovem. — Não se pode sacrificar assim, sem mais nem menos. Uma vitória conseguida assim não compensa.

Os olhos de Creidhe, profundamente azuis, estavam fixos nele, como se conseguissem ler-lhe o espírito, e o jovem sentiu uma tristeza profunda, duradoura, porque não tinha uma resposta. Quem era ele para se meter em assuntos tão grandes e perigosos, padrões antigos de vida, de poder e de fé? Que fizera naquelas ilhas desde que chegara senão aumentar a tristeza? Thorvald fechou os olhos porque não conseguia suportar o olhar de Creidhe, ou de Breccan, ou de todos eles, não fosse ver o reflexo da sua própria miséria.

 

Até ali, tudo bem. A rápida percepção auditiva de Niall e o dom da palavra tinham sido úteis. A língua era a mesma, se bem que diferente na inflexão e na ênfase, com uma certa aspereza em alguns sons; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham compreendido rapidamente o seu propósito. Se estavam preparados para aceitar a oferta era uma coisa que não sabia. O monge sentia-se cansado; a longa viagem tirara-lhe as forças. Enquanto caminhavam na direção dos edifícios baixos da aldeia, pensou que podia fixar a si próprio alguns objetivos, que tornariam aquilo mais fácil de suportar. Tinha de manter a dignidade. Tinha de saber lidar com o medo e com a dor. Alguns padrões eram sempre úteis. Não gritar, esse era o primeiro objetivo.

Não perder o controle da bexiga nem dos intestinos: isso seria difícil em determinada altura. Não mudar de idéias e pedir misericórdia. Sabia que conseguiria esse, o mais importante. Tinha, simplesmente, de pensar no filho, um homem infinitamente mais merecedor de um futuro do que ele, um homem que não existiria se não fosse ele. A única coisa que conseguira: o seu único legado. Para preservar Thorvald suportaria muito mais. Suportaria tudo o que lhe quisessem fazer.

Puseram-no numa cabana baixa e escura com guardas no exterior. O monge esperou. Depois de muito tempo, apareceu um idoso alto e sentou-se a seu lado, os olhos escuros fixos nos seus, o rosto escarpado cinzento na sombra. Seguiram-se algumas perguntas, não muitas, mas todas difíceis de responder. Se Niall respondesse mal, expulsá-lo-iam e teria sido tudo em vão. Não se podia enganar. Não podia hesitar. Não fora sempre bom em jogos, um subtil utilizador de máscaras, um manipulador habilidoso das crenças e emoções dos outros? Assim, tentou adivinhar, respondeu e pensou ver as feições fortes do ancião descontraírem-se um pouco e os seus olhos profundos, estranhos, suavizarem-se. Terminada a inquisição, o ancião retirou-se. Seguiu-se outro grande período de espera.

O monge ouvia Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a conferenciar em voz baixa, mas não percebia o que diziam. De vez em quando passavam em frente da entrada da cabana onde ele estava e, uma vez ou duas, espreitaram: rostos magros, cheios de rugas; olhares escuros, intensos; colares de osso; roupas de pele, cheirando a ranço, como se não tivessem sido secas convenientemente. Niall esperou e enquanto esperava murmurou para si próprio o salmo que copiara no seu último ato como homem letrado no mundo dos homens com visão: speravit anima mea in Domino... E após alguns momentos a voz minúscula, poderosa, pareceu falar de novo, um sopro de tranqüilidade, um murmúrio de esperança e o ritmo do seu coração diminuiu um pouco, o seu cérebro desanuviou-se e sua respiração normalizou-se. Fé... Tinha de ter fé para poder ultrapassar aquilo, confiar em Alguém cuja sabedoria ultrapassava a de qualquer mortal, deixar-se ir... finalmente, desistir e aceitar a vontade de Deus... Como conseguiria fazê-lo, ele, que fora sempre dono de si próprio, que desbravara o seu próprio caminho, que fora senhor, não só da sua própria fé, mas também da daqueles que se atravessaram no seu caminho?

— Fé, — murmurou a voz, terrível na sua verdade simples. — Esperança... Amor...

E apesar de Niall pensar que conseguiria aguentar-se, esconder os sinais de fraqueza enquanto eles estivessem a levar a cabo o ritual sombrio, perante aquele terrível murmúrio tremeu como o pequeno ramo de uma árvore sob uma brisa de Primavera. Sentir o coração aberto assim e deixar que a luz o tocasse era a coisa mais difícil que alguma vez fizera. Na sombra da pequena cabana, o irmão Niall ajoelhou-se no chão de terra com a cruz entre as mãos. Os seus lábios moveram-se numa oração.

— Vê, a porta, finalmente, está aberta — sussurrou ele, sentindo as lágrimas quentes rolarem-lhe pelas faces. — Sê bem-vindo...

Não soube quanto tempo se passou. Pela posição do Sol, estava ajoelhado há muito tempo. Doíam-lhe as articulações; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tiveram de o pôr de pé. Sentia a mente vazia, lavada; as coisas que eles faziam pareciam não ter qualquer ligação com ele. Na verdade, mal compreendia os seus propósitos. Tiraram-lhe as roupas todas; o hábito coçado, as sandálias, a camisa e a roupa que trazia por baixo para se manter quente. Os seus dedos agarraram na cruz quando um deles agarrou no cordel onde estava pendurada. Então, largou-a. Havia um propósito naquilo, se bem que, por um momento, lhe tivesse escapado. E, de súbito, compreendeu e não pôde evitar um arrepio. Era evidente que iam celebrar o ritual naquele momento, imediatamente. Tão depressa; não pensava que fosse tão cedo. Passara o teste. Se conseguiria representar o papel que a si próprio destinara, era uma incógnita. Esperava conseguir, para que a paz pudesse ser duradoura. Que levassem a cruz, porque, agora, a força estava no seu coração e protegê-lo-ia de tudo. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz vestiram-lhe uma túnica, uma peça de lã escura fina, com muitas conchas. Deram-lhe uma malga com um líquido de odor forte a beber. O monge tinha sede; deu uma golada e afastou-a.

— Bebe, bebe — disse o homem mais alto com insistência e com o sobrolho franzido. — A dor é muito grande... bebe, dormir...

Mas Niall não conseguiu beber, porque lhe parecia que devia suportar aquilo em todo o seu terror e grandeza, ou não serviria para nada. Além disso, não queria que os seus sentidos se sentissem entorpecidos pela droga, as pálpebras cerradas num falso repouso, nem sequer por um instante. Queria ficar de olhos abertos para o céu até ao último instante, para a luz, para um mundo que nunca percebera que era belo até ao dia em que vira o seu filho.

Conduziram-no para o exterior, não como um prisioneiro, antes com um respeito que raiava o medo. Havia muita gente em volta do recinto relvado e ele pôde ver que havia uma grande pedra ao centro, uma monumental laje de granito com a erva luxuriante em redor da sua base salpicada aqui e ali de flores, pequenas e de cores vivas. Amarelas, rosas, azuis, vermelhas, cada uma um reflexo suave da alegria da estação. Algumas ovelhas olhavam para ele do campo cercado de muros, um pouco mais longe, uns animais esguios e de pêlo longo, de olhos plácidos e bocas sempre a mastigar.

Os homens conduziram-no até perto da laje e a assistência começou a entoar cânticos. Havia ali mulheres, magras, de olhar selvagem, mulheres tão ferozes como os homens, vestidas com o mesmo tipo de peles e túnicas ou calças de lã rude por baixo. O monge não viu qualquer criança. O ancião esperava junto da laje de pedra. Os seus cabelos eram tão longos e emaranhados como a lã das ovelhas e nos seus olhos, escuros e profundos, podia ver-se um propósito duro como o ferro, mas, também, respeito e compaixão. Junto dele estava um homem atarracado com umas cordas nas mãos.

— Não é preciso vendares-me — disse Niall. A sua própria voz soava-lhe longínqua, como se pertencesse a outro homem, a uma outra vida. — Eu vim de livre vontade.

— Vai ser difícil — disse o homem alto erguendo as sobrancelhas. — Ninguém consegue ficar imóvel depois de lhe tirarem os olhos.

— Nesse caso, segura-me com as tuas mãos. — Niall olhou para o segundo homem, tentando um sorriso tranqüilizador. Não sabia ao certo se conseguiria a expressão; subitamente, sentia-se estranho. O seu coração recusava-se a obedecer às suas ordens para que abrandasse o ritmo; faltava-lhe a respiração.

O homem atarracado acenou com a cabeça.

— Eu seguro-te — grunhiu ele. — E mais alguns. Será rápido.

Niall estendeu-se na laje, de costas. O céu estava extremamente brilhante, mas não fecharia os olhos perante aquele último vislumbre do dia. Tinha um arco azul por cima de si, tão azul como o olhar de Eyvind que tanto o espantara com a sua sinceridade, há muito tempo, em Rogaland. Decidiu outra coisa enquanto o homem atarracado lhe colocava uma mão forte de cada lado da cabeça, imobilizando-o, e sentia as de quatro homens nos braços, nas pernas, como se a dor pudesse fazer com que todo o seu corpo entrasse em convulsão e desviasse a faca. Talvez não usassem uma faca, antes outro instrumento qualquer, uma colher, ou outra coisa parecida, ou até umas unhas afiadas. Não olhara para ver as ferramentas que teriam à mão. Decidiu, fazendo um esforço para normalizar a respiração, que suportaria aquilo da mesma maneira que Eyvind, o seu único amigo, o seu irmão do coração, o homem que gostaria de ter sido se fosse possível poder escolher. Eyvind, energicamente não cristão, era, no entanto, a imagem da fé, da esperança e do amor: um homem exemplar, como criança e como homem. Eyvind ficaria imóvel e silencioso; Eyvind era forte. Que aquele sacerdote, ou fosse o que fosse, utilizasse a faca com a rapidez e a limpeza de Eyvind quando Somerled o vira pela primeira vez, degolando um carneiro num momento de puro e perfeito sacrifício a Thor. Aquele golpe, misericordioso na sua certeza, e aqueles quentes olhos azuis tinham mudado a vida de Somerled para sempre. Que o ato daquele dia marcasse outra mudança: depois de cego, depois de ter os ossos partidos, que o seu espírito se dirigisse para a luz.

— Estás pronto, irmão? — murmurou o homem alto.

Niall não pôde acenar com a cabeça porque a tinha entre duas fortes mãos, como se estivesse entalada num torno. O monge engoliu em seco e, com uma certa dificuldade, conseguiu dizer:

— Estou — murmurou ele.

 

Uma viagem desesperada: quatro homens, forçando um barco a dar o seu máximo na direção da costa onde, dissera-lhes Breccan, Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham o santuário. O homem do Ulster conhecia-o; nos primeiros tempos, ele e os seus irmãos tinham levado a Palavra ao coração daquele domínio pagão. Na verdade, tinham persistido durante algum tempo, até se tornar evidente que aquelas mentes seriam sempre surdas à palavra de Deus. Tinham retirado: a sua missão, naquele lugar isolado, não era converter pagãos, era rezar, encontrar a solidão e a verdade, à semelhança daqueles que procuravam a voz de Deus nos desertos da Terra Santa. Mas Breccan ainda se lembrava do local e indicou-lhes a direção com bastante precisão.

O vento soprava de oeste e a navegação era difícil, mesmo depois de terem ultrapassado o pesadelo da Corrente dos Loucos. Apesar disso, com a destreza de Sam, que era capaz de conseguir coisas incríveis apesar das condições adversas, progrediram razoavelmente. As focas cruzavam a esteira branca do Sea Dove. A pequena embarcação que Niall levara era muito mais lenta, por isso tinham, pelo menos, algumas hipóteses de chegar a tempo. Por outro lado, a rota de Niall era mais curta, a direito para sul a partir da Baía Sangrenta, o dia estava mais claro; o Sol brilhou, pálido, numa grande extensão de céu azul.

Creidhe não conseguia deixar de tremer. Os homens afadigavam-se à sua volta e ela via os seus olhares de esguelha, os seus sobrolhos franzidos, mas pareciam não ter qualquer significado. Já nada fazia sentido. A sua mente girava em círculos: Se eu não tivesse ido para a ilha, se eu não estivesse lá, eles não teriam apanhado Guardião desprevenido. Se não tivesse tentado detê-los, Guardião ainda estaria vivo. Se Guardião não tivesse morrido, não teriam levado Pequenino e Pequenino não teria feito o que fez... A culpa foi minha... e agora morreram os dois. A dor estava no seu espírito, sentia um nó no estômago. Os gritos, a fúria e as lágrimas não a tinham diminuído. A jovem sabia que a transportaria toda a vida consigo; tornara-se parte dela, tal como Guardião e Pequenino. Para sempre... O voto de Guardião murmurado ao seu ouvido: As paredes da minha cabana abrigar-te-ão, a minha lareira aquecer-te-á, caminharei a teu lado até ao fim dos meus dias. Para ele, esses dias tinham chegado depressa.

Ela sabia. Vira-o nas suas visões, nos pontos que se recusava a bordar, nas imagens que não queria rever. No entanto, Pequenino pedira-lhe que completasse o trabalho. Coloca-o no teu bordado, agora, agora!

Se o tivesse feito... talvez se se tivesse atrevido... não, era uma loucura. Se os antepassados queriam que ela perdesse ambos, a sua pequena família, os seus entes queridos, que assim fosse. Nenhuma rapariga, só porque tinha uma agulha e lãs coloridas tinha o poder de contradizer uma sabedoria tão antiga. No entanto, nunca pensara, quando se sentira impelida a seguir Thorvald, quando se sentira atraída pela Ilha das Nuvens no carreiro por cima de Água Brilhante, que acabaria daquele modo, com tanta dor. O seu coração encontrara a felicidade naquele lugar solitário. E Thorvald matara-o; fora Thorvald, o centro do seu mundo desde que se recordava, que lhe destruíra a felicidade. Era o que a sede de poder podia fazer a um homem: podia fazer dele um assassino.

Creidhe mexeu-se, pouco à vontade, sentindo a mordedura do frio através da capa de Skapti. Estava a ser injusta, claro. A dor terrível que a atingira não lhe retirara a capacidade de raciocinar. Se Thorvald não o tivesse matado, Guardião teria acabado com ele, assim como com Sam. Guardião matara inúmeros homens na sua missão de proteger o seu pequeno sobrinho. Teriam sido as órbitas vazias de Thorvald, assim como as de Sam, que ficariam a olhar para ela daquelas saliências rochosas semelhantes a predadores na face norte da falésia, se Thorvald não se tivesse defendido.

A jovem olhou de relance para Thorvald, que tomara o seu lugar ao leme; o jovem estava branco como a cal, os seus olhos semicerrados e ferozes, a boca marcada por rugas de tensão. A jovem compreendia o que ele sentia; não o compreendera sempre? Encontrar finalmente o pai e perdê-lo cruelmente, antes de se encontrarem, antes de poderem falar um com o outro, era terrível. Mas não era mais terrível do que a morte de Guardião e o afogamento de Pequenino e ela não era capaz de olhar para Thorvald sem se sentir inundada de amor e saudade. Já não era uma criança, já sabia o que era o amor; sabia o que significava perder alguém querido. Os seus olhos passaram pela figura do seu velho amigo e não sentiu qualquer simpatia no coração. Se ainda continuava junto dele, se obedecia ao impulso de continuar a seu lado naquela última viagem a caminho do desconhecido, não o fazia por Thorvald, antes pelo seu pai, o monge de cabelos brancos. Naquela terra de gente estranha, Niall fora a voz da sabedoria, da bondade, da moderação. Vira nele algo que se harmonizava com as palavras do seu pai, quando este falava daquela criança solitária que fora seu amigo e inimigo há muitos anos atrás. Que dissera ele? Algo acerca de uma centelha de grandeza, de bondade, de tal modo escondida que poucos a podiam ver. Creidhe achava que a perigosa viagem, os anos de solidão e as dificuldades sentidas naquelas ilhas tinham forjado no espírito de Somerled um novo homem, um homem cuja centelha se transformara numa chama de calor e compaixão, por mais que ele dissesse que não. Era por aquele homem e pelo seu próprio pai que estava ali, olhando para outra ilha a aproximar-se e observando os homens enquanto eles arriavam a vela do Sea Dove e o aproximavam da baía à força de remos. Creidhe não sentia medo, ou apreensão, ou arrependimento. Já não estava zangada, ou magoada. Sentia apenas frio, uma dor no peito e as vozes dos antepassados ao ouvido, aconselhando-a a continuar. Tinha de fazer aquilo; com o tempo, compreenderia porquê.

Os homens saltaram do barco para a água de armas na mão. Até Breccan segurava no seu bastão. Não encontraram qualquer resistência; Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz não tinham uma única sentinela na baía. Havia um caminho que seguia por entre as rochas; no alto da encosta parecia haver cabanas com telhado de turfa e, mais acima, ouvia-se um cântico ritmado, um som poderoso que ressoava profundamente.

— Uma cerimônia — disse Breccan, muito pálido. — Talvez já tenham iniciado o ritual. Vamos, temos de nos apressar.

— Cuidado — avisou Thorvald. — Não podemos aproximar-nos às cegas. Mantenham as armas prontas e olhem à volta. Deixem a conversa para mim. Skapti, vamos precisar de ti.

— Não podes deixar Creidhe sozinha no barco — disse Sam.

— Ela que se esconda — disse Thorvald secamente. — Skapti é o mais forte de todos, não podemos fazer isto sem ele. Vamos precisar todos dele.

— Não gosto nada — resmungou Skapti, olhando para Creidhe com olhos ansiosos antes de saltar, também ele, do barco para a água e de seguir os companheiros até à praia. — Esconde-te, rapariga. Nós não nos demoramos.

Creidhe esperou algum tempo antes de os seguir: pouco antes de desaparecerem de vista, mas o suficiente para que não se virassem e não a mandassem regressar ao Sea Dove. A jovem levantou a saia, mas molhou-a na mesma enquanto caminhava na direção da estreita faixa de areia negra. Havia ali barcos baixos e compridos, gêmeos da embarcação que ela virara na Corrente dos Loucos, matando os seus ocupantes. Creidhe tremeu, inclinando-se para segurar na saia. Talvez estivesse a ser tola. Talvez devesse obedecer a Thorvald, que parecia acreditar que era ele que comandava. Seria ela apenas um estorvo, que mais valia esconder-se onde não pudesse prejudicar nada nem ninguém?

Uma ave marinha, totalmente branca, voou por cima da sua cabeça, gritando queixosamente para o céu vazio. O cântico subiu e desceu, um som hirto que parecia tão velho como as falésias nuas das ilhas, uma coisa para lá da memória humana. Creidhe alisou as roupas molhadas. As cores suaves na bainha os pontos pequenos e cuidadosos de Guardião atingiam-na no coração como uma flecha aguçada. Continua, parecia gritar a ave. Continua, cantavam as vozes no alto da encosta. Creidhe endireitou as costas e ergueu a cabeça. Enquanto Thorvald, Sam, Skapti e Breccan se dirigiam decididamente na direção do local do ritual, Creidhe seguia-os silenciosamente, tão tranqüila e pálida como um espírito. À ave que voava por cima da sua cabeça juntou-se uma segunda e uma terceira, os seus gritos juntaram-se ao cântico e por trás daqueles sons podia ouvir-se um outro, o som infindável do mar. Os passos de Creidhe eram silenciosos; no entanto, num determinado ponto, Sam virou a cabeça para olhar para trás e quase deixou cair a sua faca.

— Creidhe! — disse ele, horrorizado e naquele preciso momento os outros homens atingiram o topo do carreiro.

Creidhe viu Thorvald imobilizar-se, olhando para além dela; a jovem viu Skapti erguer a sua arma, prestes a lançá-la. A mão de Breccan segurou no cajado com força, mas ela sabia que o monge só o usaria para se defender. Um momento mais tarde, o cântico morreu e ouviram-se uns gritos, as vozes ultrajadas d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz num desafio feroz, e a jovem pôde ver Thorvald gesticular para os outros: não, não ataquem, embainhando a espada e erguendo as mãos, vazias, como se pretendesse dizer ao inimigo que viera em paz. A jovem podia ouvir um barulho de vozes zangadas, transformando-se num rugido; era de esperar. Não se interrompia de ânimo leve um ritual solene. Dois d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz aproximaram-se e agarraram em Thorvald pelos braços. Skapti gritou para o seu chefe, exigindo-lhe que o deixasse utilizar a sua arma, ou, pelo menos, os punhos, e o rugido aumentou, o som perigoso de uma multidão frustrada por não ter conseguido atingir o seu propósito. Creidhe começou a correr, tropeçando nas pedras. A jovem atingiu o topo do carreiro e parou a olhar.

Havia uma larga extensão de terreno em frente dos edifícios baixos de pedra da aldeia. A erva crescia, fresca e verde, salpicada de pequenas flores de cores vivas, mas estava a ser pisada por um grande ajuntamento, homens e mulheres, magros, marcados pelas intempéries e de aspecto selvagem, vestidos com roupas rudes por baixo de peles mal curtidas. Alguns tinham ornamentos de osso ao pescoço, seguro por cordões de pele; a maior parte tinha cabelos longos e entrançados, aqui e ali com pequenos ossos, brancos, cor de creme ou amarelos.

Os seus olhos tinham uma única expressão: uma expressão de fúria. Era evidente que os visitantes inesperados tinham interrompido uma cerimônia extremamente solene.

No centro do círculo estava um grupo de homens, cinco ou seis, e entre eles estava outro mais alto, que parecia comandá-los. O ancião estava a olhar para Thorvald com um olhar de fúria. Nas mãos tinha um pequeno instrumento de osso, algo entre uma faca e uma colher. O objeto estava manchado de vermelho. E o coração de Creidhe bateu descompassadamente de horror, se bem que pensasse que nada mais a poderia atingir, ao mesmo tempo que os seus companheiros se agitavam, revelando o que sentiam.

Numa grande laje de pedra estava estendido um homem de costas, vestido com uma leve túnica de lã. O homem parecia descontraído, como se estivesse a dormir; não estava acorrentado, ou atado, se bem que as marcas vermelhas nos braços e pernas sugerissem que fora sujeitado por aqueles homens magros e de olhar feroz que ainda se encontravam a seu lado. A sua cabeça estava rapada à frente, tal como a do irmão Breccan; do lugar onde estava, petrificada, Creidhe podia ver-lhe os cabelos brancos, pálidos como as penas de um cisne e a mancha de sangue que lhe cobria o rosto, manchando-lhe de vermelho as madeixas brancas como a neve. A jovem sentiu-se engasgada com o choque e arquejou violentamente. Então, Thorvald, um homem capaz de se dominar na perfeição, que não se importava com as pessoas e com o mundo, de tal modo estava habituado a mostrar o que sentia, deixou sair um grande grito, afastou os homens que o seguravam como se eles fossem de palha e lançou-se na direção da laje ritual. O jovem movia-se como um raio furioso, como uma ave a caminho do ninho. Naquele momento, nada no mundo o teria detido. Os homens que estavam junto da laje afastaram-se ao verem o seu olhar.

Skapti moveu-se. Com a lança na mão, o guerreiro atravessou o espaço e aproximou-se de Thorvald, uma presença maciça, furiosa. Thorvald estava inclinado sobre a pedra, falando suavemente. Creidhe viu-o levantar a cabeça do homem ferido e colocar-lhe um braço cuidadoso por baixo dos ombros. A expressão do ancião tornara-se alarmantemente tensa e os homens à sua volta puxaram das suas facas como que sob uma ordem silenciosa. Ao lado de Creidhe, Sam também puxou da sua faca. As armas apareceram imediatamente em redor do círculo, armas de osso, de pele, de pedra. Dentro de momentos, aquele ritual transformar-se-ia num caos de sangue e morte. Não podia ser. Aquilo não podia acontecer.

— Parem! — gritou Creidhe e, avançando um passo para que todos a pudessem ver, retirou a grande capa que trazia em redor dos ombros, a capa de Skapti, para revelar os seus longos cabelos louros ao sol da tarde de Verão. — Parem todos imediatamente! Não podem ferir mais esse homem! Ele é um sacerdote cristão e não pode ser um verdadeiro vidente!

O silêncio que se seguiu foi profundo, um silêncio de choque, de descrédito e de surpresa: um silêncio de algo próximo do terror enquanto os homens e mulheres d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz olhavam, de rostos cada vez mais pálidos, de olhos enlouquecidos fixos na silhueta esguia de Creidhe, nas suas roupas encharcadas, na capa rude e nos cabelos que lhe caíam pelos ombros. Até o ancião ficou imóvel. Por trás dele, Thorvald estava encostado à laje de granito, segurando nos braços o monge ferido. Breccan aproximara-se e estava a usar a faca de Thorvald, rasgando pedaços do seu hábito e tentando estancar o sangue do ferimento.

— Morta — sussurrou o ancião, olhando para Creidhe. — Morreu na Corrente dos Loucos. Morta, mas continua a andar.

— Não — disse Creidhe, não encontrando dificuldade em lhe agüentar o olhar porque parecia estar para além de qualquer medo. — Eu estou viva, como vês, em carne e osso, salva pela intervenção dos antepassados e por um ato de grande bondade. Salva para isto. Deixa partir o eremita; já não o podes utilizar, o ritual foi interrompido. Ficou imperfeito e os espíritos não gostam. Fica comigo em vez dele. Eu ofereço-me, se as hostilidades cessarem como resultado disso. Não tenho nada a perder.

— Creidhe! — A jovem ouviu o grito horrorizado de Sam, viu pelo canto do olho dois homens da tribo agarrarem no pescador antes que ele se pudesse aproximar dela. Breccan olhou para ela, enquanto tratava do seu amigo eremita, de olhos chocados.

— Não podes fazer isso, Creidhe — protestou ele. — Se calhar, não sabes o que te vai acontecer...

— Sei, sim — disse ela secamente.

O ancião pousou o instrumento que tinha na mão; este ficou em cima de uma pequena pedra para outros usos que ela não queria adivinhar, uma longa faca serrilhada de metal; um cacete pesado e curto; espetos aguçados de osso. O ancião avançou dois passos na direção dela e olhou-a intensamente nos olhos. Os seus longos dedos ergueram-se para lhe tocar nos cabelos brilhantes, percorrendo-lhe as madeixas sedosas; com a outra mão afagou-lhe o pescoço, onde a pele cor de pérola estava exposta através da abertura da túnica que Guardião lhe fizera. Por trás de si, algures, Sam arquejava de fúria. Skapti avançou um passo com o rosto tempestuoso, mas foi detido pela mão de Thorvald.

Ouviu-se uma outra voz, uma voz cheia de dor, mas que soava, de algum modo, controlada.

— Creidhe... — conseguiu dizer Niall — assim não... Eu... eu...

— Shhh. — Era a voz de Thorvald, a voz que ela sempre desejara ouvir, terna e sincera. Aquele tom de voz não era para ela, era para o seu pai. — Shhh. Vai correr tudo bem. Irmão...? — Thorvald virou-se para Breccan e o homem do Ulster substituiu-o, segurando no homem ferido. Creidhe agüentava o olhar do ancião; a jovem ainda não conseguira ver o que já fora feito, mas, pelo menos, Niall estava vivo e estava consciente. Talvez, entre todos, conseguissem levá-lo e salvá-lo. Talvez a paz fosse possível e Thorvald pudesse fazer algo da sua vida.

— Aceitas a oferta? — perguntou ela calmamente ao homem alto. — Eu sou jovem e saudável. A minha mãe deu à luz cinco filhos. Eu e as minhas irmãs crescemos saudavelmente. Por favor, deixa que estes homens se vão embora. A guerra acabou.

Seguiu-se um período de silêncio: um momento igual ao que acontece quando a maré muda e tudo fica em suspenso. A jovem olhou para Thorvald. Este, olhando para ela, parecia sem qualquer defesa. Se a tribo aceitasse a sua oferta, a paz seria conseguida; ele tinha o pai e o futuro na sua frente, novo e esperançoso, vibrante de possibilidades. Finalmente, o caminho abria-se na sua frente, límpido e a reto.

— Creidhe — começou ele, e parou, como se as suas próprias palavras o chocassem. Orgulho, e confuso, e uma grande e profunda tristeza podiam-se ler no seus olhos. — Creidhe...

— Está tudo bem, Thorvald. — Creidhe ouviu a sua própria voz como se fosse a de um estranho, breve, fria e remota. — A escolha não é tua, é minha.

— Não! — A sua voz era um sussurro áspero e o jovem tinha os punhos cerrados. — Não...

— Vem — disse o ancião, fazendo um gesto da direção da assistência e duas das mulheres aproximaram-se e agarraram Creidhe pelos braços, aparentemente para a levarem. Talvez a fossem meter numa cabana escura, como tinham feito com Sula. Então, de noite, os homens iriam ter com ela. A jovem sentiu o cheiro a ranço dos corpos das mulheres, o toque áspero e duro das suas mãos, a luz nos seus olhos. Para Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, Creidhe era a esperança renascida.

— Não! — O tom de Thorvald mudara; agora, era um tom de comando. — Não! Não a podem levar!

As mulheres pararam, segurando em Creidhe. A jovem olhou para o carreiro que descia na direção da praia, na direção do Sea Dove. Fuga, asilo. Afastou esse pensamento.

— Não podemos? — repetiu o ancião. — Vocês são quatro; nós somos muitos. Não temos medo de morrer por isto. Esperamos por isto durante muitas estações

— Não podeis levá-la. — Thorvald deu um passo em frente, enfrentando o ancião; a sua mão deslocou-se na direção da espada. — Tem de haver outra maneira. Creidhe é... — O jovem ficou sem voz e sentiu as faces corarem violentamente, contrastando de modo estranho com a autoridade dos seus modos. — Ela é minha — disse ele simplesmente. Creidhe olhou para ele. Thorvald era esperto, não havia dúvida; quem, senão ele, se lembraria de utilizar aquele argumento, por mais falso que fosse? O jovem era demasiado esperto.

O homem alto olhou de relance para a laje do ritual onde o homem do Ulster estava sentado junto do seu amigo, limpando-lhe o sangue do rosto branco como a cal.

— Um ou outro — disse ele. — Não podeis levar ambos. Os deuses estão zangados; vocês apareceram aqui, num local a que não pertencem e interromperam o ritual. Ficamos com o homem, se quereis a mulher. A mãe de Máscara-de-Raposa tem de estar pura, intocada, limpa. De que outro modo podemos saber que a criança é filha da tribo? Se a mulher da cor do Sol e da Lua é tua, nesse caso não nos serve. Ficamos com este homem a quem ela chama sacerdote. Ele é corajoso: merecedor. Temos de completar o ritual.

— Nesse caso, lutaremos — disse Thorvald, puxando pela espada — e tu vais descobrir o poder de quatro contra muitos. Prefiro morrer a deixar que ponhas as mãos em cima deles. Skapti?

A seu lado, a boca de Skapti abriu-se num esgar que afastou a assistência; a maneira como segurava na lança mudou e o homem deixou de ser um gigante pesado, desajeitado, para se transformar numa coisa maravilhosa, vivo, tenso, pronto como um predador. Em redor do círculo, Sam lutava contra os que o seguravam, gritando; Breccan segurava o irmão Niall nos braços e não podia ajudá-los, se bem que os seus lábios se movessem numa oração, que talvez fosse mais poderosa do que qualquer arma. Creidhe apercebeu-se rapidamente do que estava para acontecer, como se se tratasse de pequenos pontos no seu bordado, para que a história perdurasse quando já se tivessem todos apagado da memória dos homens: um confronto terrível heróico, não de quatro contra muitos, mas de dois, Thorvald e Skapti, costas com costas, lutando como lobos, como dragões, como verdadeiros heróis; Skapti e Thorvald ensangüentados enquanto os outros olhavam, impotentes; Thorvald a morrer perante os seus próprios olhos, Niall mutilado, a paz conseguida à custa de uma dor imensa. Errado, estava tudo errado: os antepassados tinham-lhe mentido.

— Não! — gritou ela, arrancando-se das mãos ossudas que a seguravam. — Não! Não está certo, não pode estar certo, tem que haver outra maneira! — A jovem olhou selvaticamente para o céu e do seu peito saiu um grande grito, um lamento de frustração e de dor. Até os deuses deviam ter ouvido aquele apelo. Era um som primitivo de dor. — Ajudai-nos! — gritou ela para o céu por cima da sua cabeça. Então, Creidhe fechou os olhos. O eco vibrante da sua voz subiu no ar; em redor, ficaram todos silenciosos. Parou o som de metal contra metal, as quedas, as palavras, as respirações apressadas. Apenas o sussurro do vento e o murmúrio do mar.

Por fim, a canção. Chegou-lhes aos ouvidos como um doce sussurro de esperança; alojou-se nas mentes de todos como a voz do que estava para vir, clara e prometedora; tocou-lhes nos corações como um bálsamo. A canção flutuou, e percorreu o ar e até as aves se calaram perante o seu encanto. Era uma melodia simples; sem valor, sem arte, mas o seu poder era tanto que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, homens e mulheres, caíram por terra, prostrados como se na presença de um deus. Sam, Thorvald e Skapti ficaram estáticos. E Creidhe abriu os olhos, olhando para o carreiro que se dirigia para sul. Nele encontrava-se uma figura pequena e esfarrapada, de braços e pernas escanzelados; cabelos emaranhados que lhe caíam pelos ombros. Enquanto a jovem olhava, estarrecida, ele abanou-se como um cão e as gotas de água espalharam-se à sua volta como uma chuva prateada. O Pequenino aproximou-se, sozinho e firmemente nos seus sapatos molhados e nas suas roupas de penas encharcadas e com o rosto delicado, pálido e triangular e os olhos como dois faróis, brilhantes, confiantes e verdadeiros. O pequeno continuava a cantar, um cântico suave, maravilhoso, terrível e único. Enquanto ele se aproximava, abrindo caminho por entre a assistência até junto da laje onde se encontrava o ancião numa postura de profundo espanto, a canção de Pequenino mudou, transformando-se numa melodia de alegria que enchia os corações, fazendo chegar as lágrimas aos olhos e transformando as feições do pequeno num sorriso tão feliz que Creidhe sentiu um aperto no coração. A criança deu dois, três passos na direção da laje ritual e inclinou-se para ajudar o ancião alto, que estava de joelhos a levantar-se, como se fosse Pequenino o mais idoso. Então, o homem, chorando, estendeu os braços e Pequenino abraçou-o com tanta ternura que mais parecia estar a abraçar o próprio pai. Os longos dias de exílio tinham terminado. Máscara-de-Raposa regressara a casa.

O coração de Creidhe parecia um tambor, tinha o corpo ensopado em suor. As mulheres tinham-na largado, prostrando-se como os outros. Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz ergueram-se e aproximaram-se da criança e do homem que o tinha nos braços. Por alguns momentos, os intrusos foram esquecidos. Creidhe abriu caminho com os cotovelos até junto de Breccan, onde ele continuava a amparar o homem de cabelos brancos. Junto deles, o espaço era pouco; Thorvald mantinha-se numa atitude de ataque, de arma na mão e Skapti andava de um lado para o outro, brandindo a lança para afastar quem se aproximasse. Mas nenhum deles estava, agora, a olhar para eles; os olhares estavam todos postos em Máscara-de-Raposa, os ouvidos atentos à voz que continuava a cantar, enchendo o ar com uma melodia acerca de vidas novas e de caminhos verdadeiros.

Creidhe debruçou-se; era a primeira vez que via com nitidez o homem ferido. O seu rosto parecia o de um fantasma, de tal modo que quase se poderia pensar que estava morto, exceto o seu único olho escuro e penetrante, brilhando, perspicaz e resistente. A sua boca tensa era uma rede de dor. O monge mantinha-se silencioso. E onde estivera o seu olho esquerdo havia um enorme buraco, por onde saía o sangue aos borbotões. As mãos de Breccan tremiam, como se o monge quisesse reter o fluxo. Ligar o ferimento seria inútil sem um pedaço de tecido limpo, água e ervas curativas.

O pai de Creidhe falara-lhe na autodisciplina severa de Somerled. Aquilo, no entanto, ultrapassava tudo o que ela era capaz de imaginar. Niall não conseguia controlar a respiração; no entanto, ainda não gritara, nem uma vez. Creidhe encontrou o seu único olho, brilhante de dor e disse:

— Ele ficaria muito orgulhoso de ti. Ficará, quando nós lhe dissermos. Não só por hoje, mas por tudo. Cumpriste a tua promessa.

A jovem viu os lábios de Niall mexerem-se numa tentativa para reconhecer as suas palavras; o monge não podia acenar com a cabeça, não podia falar, ou gritaria, choraria, ou desmaiaria e, assim, quebrar o que ela suspeitava ser uma regra terrível, auto-imposta. Então, o olhar dele dirigiu-se para Thorvald, de pé com a arma na mão, pronto para defender até à morte o seu pai, os seus camaradas, a companhia tantas vezes desejada na sua infância. Havia tanto amor naquele olhar, que Creidhe sentiu-o no seu próprio coração.

— Temos de o levar para o barco e para fora daqui — disse Breccan. Preciso de ligaduras e de bálsamos, de ervas para as dores. Achas que eles nos deixam ir embora?

Mas Creidhe não lhe respondeu, porque naquele momento o amontoado de gente rodeava o ancião e a criança e a melodia morreu lentamente, em todas as direções, seguida por um profundo silêncio. A jovem viu o ancião pousar a criança no solo, perto do local onde os instrumentos para o ritual estavam prontos. O homem robusto, com braços como troncos de árvores, pegara novamente nas cordas. Pequenino manteve-se muito quieto, de olhar tranqüilo, de mãos descontraídas. Era uma criança. Como poderia compreender?

O ancião virou-se para Thorvald, olhando para a ponta da sua espada, firme.

— Deixai esta ilha — disse o homem alto com gravidade, fazendo um gesto com a mão para envolver Thorvald, Creidhe e os dois monges, assim como a figura indefinida de Skapti por trás deles. — Levai este homem convosco e tratai-lhe do ferimento. Ele é muito forte: merecedor da honra que lhe concedemos. Um verdadeiro sacerdote, de corpo e alma. Tê-lo-íamos venerado. Não podeis fazer menos, porque este homem foi forjado, através de uma vida de treva, transformando-se numa arma de fé. Deveis deixar-vos guiar por ele, porque é um homem sábio. Quanto a nós, este é um dia de alegria, porque o nosso verdadeiro filho regressou, o nosso amado espírito o nosso Máscara-de-Raposa. Recebemo-lo nos nossos corações e somos de novo um só. Falta, apenas, o ritual e, para isso, não podemos ter aqui estranhos. — Os seus olhos desviaram-se na direção dos espetos de osso, da colher e da moca.

— Obrigado. — A voz de Thorvald era a voz de um líder. O jovem embainhou a espada e fez um gesto na direção de Skapti, que baixara ligeiramente a lança; a expressão do grande guerreiro continuava feroz, desafiadora. — Vamo-nos embora imediatamente. O ferimento do meu pai é terrível; ele precisa de cuidados urgentes. — Havia uma nota de censura nas suas palavras.

O ancião olhou para ele, imperturbável.

— Ele é forte — disse ele. — E agora, ide.

Um olhar na outra direção do círculo e Sam foi libertado. Estavam livres. Skapti passou a lança a Sam e começou a levantar Niall nos braços. Thorvald foi o primeiro a avançar pelo carreiro abaixo.

— Creidhe? — disse Sam suavemente. — Acabou. São horas de ir para casa. — E o jovem pôs-lhe uma mão no ombro, como se a quisesse guiar.

— Não! — exclamou Creidhe, afastando-o com alguma violência. — Não! Eu não posso permitir que isto acabe assim, prometi a Guardião... — A jovem atravessou o relvado nas pequenas botas de Sula e pegou na criança. Ouviu um grito rouco vindo da parte da assembléia; Thorvald ficou subitamente imóvel e Skapti parou com o monge ferido nos braços. Os olhos do ancião fixaram-se na criança; era evidente que, a partir dali, a tribo não escolheria outro ser humano senão Máscara-de-Raposa. O pequeno rosto estava tranqüilo e límpido. Os olhos verdes, profundos, cambiantes como o mar, olharam para Creidhe e Pequenino ergueu uma mão para lhe tocar na face.

— Eu sei como funciona o ritual — disse Creidhe, tremendo mas tentando manter a voz firme. — Eu compreendo as suas razões. De modo a poder dizer a verdade, a cantar as canções, Máscara-de-Raposa tem de perder a visão do mundo. Para o guiar no caminho da verdade, o vidente tem de deixar de ver como um homem, viajar pelas estrelas através de visões, de sussurros e recordações. Mas tu não podes inutilizar esta criança. Eu podia dizer-te que ela é muito pequena, frágil e inocente. Podia dizer-te que ao celebrares o ritual para que o vosso vidente possa desempenhar o papel que lhe destinas, és muito capaz de o matar. Mas sei que não ouvirás as minhas palavras. Por isso, vou deixar que o vidente fale por mim. Tu ouviste a canção dele enquanto saía dos braços fortes do mar e vinha para junto de vós mais uma vez, cheio de amor e sabedoria, pronto para se entregar à tua tribo como guia e homem de sabedoria para o resto da sua vida. Ele ama-te: isso vê-se nos seus olhos. Ele já tem a sabedoria e o conhecimento dos antepassados. Máscara-de-Raposa só tem seis anos, mas as suas canções enchem-nos os corações de esperança. Eu ouvi-o na Ilha das Nuvens, onde vivi a seu lado antes de vir para aqui. A voz dele cantou para a Lua enquanto ela atravessa o céu; abriu caminhos que eu nunca pensei serem possíveis. Tu ouviste-o hoje. Quem, entre vós, duvida das notas alegres do seu regresso a casa? Quem pode questionar a sua sabedoria, a sua compreensão muito maior do que a nossa, muito para lá da das estrelas sob as quais nós acendemos as nossas pequenas candeias para afastar a escuridão? Eu digo-te que esta criança já é sábia; aos seis anos, já é um verdadeiro ancião. O seu espírito é brilhante; ele tem, dentro de si, toda a luz dos antepassados.

A jovem sentiu o peso ligeiro da criança nos braços, as cócegas que os seus cabelos emaranhados lhe faziam na face; os seus braços delgados em redor do seu pescoço. Era preciso que a ouvissem, pediu ela; era preciso que compreendessem a verdade, ou não cumpriria a promessa feita a Guardião.

— Não é preciso cegar a criança — continuou ela, fazendo um esforço para manter a voz firme. — Ele já tem, dentro de si, os olhos do espírito totalmente abertos. Não precisais de o estropiar. Não regressou ele para vós através do mar desde a Ilha das Nuvens? Máscara-de-Raposa regressou a casa; regressou a casa porque quis. Ele não vos abandonará de novo, servir-vos-á fielmente e durante muitos anos. Peço-vos, pensai nisto, e não magoeis aquele que vos ama acima de tudo.

Seguiu-se um pequeno silêncio e depois alguns murmúrios e resmungos entre a assistência. O homem com as cordas não se movera. Talvez não estivesse consciente dos olhos de Sam fixos nele com um brilho perigoso. O pescador estava perto dele; entre os dois homens a distância era curta, suficiente para o jovem poder atirar a lança com segurança. O ancião franzia o sobrolho e coçava o queixo.

— Creidhe! — disse Thorvald. — Temos de ir, o meu pai está ferido, tenho de o ajudar.

Ela virou-se um pouco e olhou para ele sem expressão, com os braços em redor da pequena figura da criança.

— Nesse caso, vai-te embora — disse ela secamente.

— Não sejas estúpida — começou a dizer Thorvald, mas calou-se quando o ancião começou a falar. O ancião não estava a olhar para Creidhe, ou para Pequenino, ou para Thorvald, como líder daquele bando de intrusos. Em vez disso, estava fixo no homem que jazia, sangrando, nos braços de Skapti.

— Que dizes? — perguntou ele e havia um profundo respeito na sua voz. — Ela não passa de uma rapariga, não podemos guiar-nos pelas suas palavras. Mas o vidente confia nela, agarra-se a ela como a um amigo do coração. A nossa tradição exige que Máscara-de-Raposa cumpra o ritual. No entanto, o que ela diz é verdade. Que devemos fazer?

E Niall, chamando a si todas as suas forças, respondeu-lhe com um suspiro esganiçado.

— Em que outra voz vais tu confiar se não na da criança? Que outro caminho vais seguir senão o dele? Ele fala pela voz de Deus. Creidhe está a dizer a verdade; não sabe falar de outra maneira. Se a sua voz não te chega, pergunta ao vidente.

O ancião inclinou solenemente a cabeça. Todos os olhares se viraram para a criança nos braços de Creidhe. A jovem sentiu a pequena mão dele na sua face, os seus dedos frios, o seu toque suave. O pequeno estava a dizer-lhe adeus.

— Espero que tenhas razão, Pequenino — murmurou ela. — Desde que fiques são e salvo... ele ficaria feliz por isso, acho eu... — Por um momento, ela sentiu o abraço da criança e também o abraçou; o Pequenino só tinha seis anos de idade, apesar de toda a sua sabedoria, e toda a sua vida seria de sacrifício e resignação. O seu fardo não seria leve. Então, ele afastou-se e a jovem viu o seu pequeno sorriso, estranho e tranqüilo e o seu olhar da cor do mar. A jovem pousou-o no chão; as suas mãos tocaram-lhe nos braços frágeis uma última vez e depois largou-o.

O Pequenino cantou outra canção. A sua melodia suave flutuou e todos se quedaram imóveis. As suas notas delicadas rodearam a pedra antiga e, a um gesto do ancião, os homens d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz pegaram nos instrumentos, colocaram-nos num saco e fizeram-nos desaparecer. As suas frases cadenciadas seguiram o pequeno grupo de intrusos enquanto eles se afastavam para sul e os homens e mulheres d’Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz se afastavam para os deixar passar. A canção subiu de tom para encher o ar com a sua vivacidade, com a sua doce, forte, mensagem de amor, de lealdade, de aceitação, vibrando na madeira do Sea Dove quando os homens o empurraram para a água, soando nas suas velas como um vento de verdade enquanto rumavam ao Fiorde do Conselho.

Skapti e Thorvald é que governavam o barco; Sam estava ocupado a mexer nas suas provisões, procurando panos para fazer ligaduras, água fresca e os meios para fazer uma tala, porque era evidente que a perda de um olho não era o único ferimento de Niall. A sua perna direita estava inutilizada, os ossos da perna tinham sido esmagados por um único golpe da moca. Sam encontrou um tônico forte num pequeno frasco de metal, tapado por um pedaço de osso envolto em pele e, desta vez, Niall bebeu sem protestar, engolindo a bebida que o pescador lhe oferecia com dois goles custosos. A sua respiração estava mais difícil; Creidhe só desejava que ele gritasse, porque o silêncio devia custar-lhe muito. Quando a bebida fez efeito e a pestana começou a pesar no único olho do monge, Sam e Breccan colocaram-lhe a tala na perna, com os dedos habilidosos de Creidhe a atarem os nós dos pedaços de tecido em redor da madeira de pinho que tinha sobrado dos trabalhos no Sea Dove. Os ossos de um homem não se consertavam com facilidade. Talvez o membro solidificasse como devia ser; com sorte, voltaria a andar, se bem que não como antes. Niall permaneceu consciente. Creidhe ouviu o assobio da sua respiração e sentiu os tremores que lhe percorriam o corpo. Tanta dor... Até o seu pai, certamente, teria gritado sob aquela agonia. No entanto, ao olhar para cima, a jovem viu uma espécie de paz nas feições brancas do monge, uma aceitação nas profundezas sombrias do seu único olho escuro que falava de uma alegria que transcendia qualquer dor. Fosse o que fosse que tinha encontrado naquele dia, parecia um escudo duro e resistente.

Quando acabou, Sam virou a sua atenção de novo para o barco e Breccan permaneceu junto do ferido com Creidhe no lado oposto.

— Descansa — disse o homem do Ulster em voz baixa. — A viagem está quase a acabar.

 

Niall emitiu um pequeno som que significava um agradecimento ou um reconhecimento.

O olhar de Breccan estava pensativo e o seu rosto agradável muito sério.

— A palavra de Deus — disse ele abstratamente — Tu disseste que ele fala pela voz de Deus. Como pode ser? Esta gente é pagã, descrente. Os seus ritos são selvagens e cruéis. Partirem as pernas à criança, tirarem-lhe os olhos... isto é uma coisa do diabo, não a palavra do nosso pai. No entanto... no entanto, a própria criança... A mensagem dele, tão poderosa, tão boa... Ele alterou a minha percepção, fazendo-me ver na escuridão? Não compreendo...

— Irmão... — O murmúrio da voz de Niall perdera alguma clareza; a bebida forte fazia-o tropeçar nas palavras, mas eles ouviram-no. — Muito que aprender... tu e eu... toda a vida...

Breccan olhou para Thorvald, que ia agora ao leme, com as feições concentradas, enquanto o Sea Dove cavalgava as ondas na direção do mundo dos homens.

— Tu vais começar uma vida diferente, meu amigo — disse ele suavemente. — Creio que os tempos mudaram para ti. O teu filho tem uma grande tarefa pela frente nestas ilhas. Ele vai precisar de ti. — Mas havia uma pergunta no seu tom de voz.

— Achas? — perguntou Somerled, sorrindo.

 

Era noite, mas o Verão apenas via o Sol esconder-se ligeiramente por trás do fim do mundo, deixando uma luz fria e estranha nas encostas redondas, no lago tranqüilo, nas paredes de pedra da cabana, do celeiro e da robusta casa grande. Perto da costa ocidental de Hrossey, a luz filtrava-se através das fendas da porta e das portadas das janelas, acrescentando a sua frialdade ao brilho vacilante da pequena candeia de Margaret.

A dama estava na sala do tear, a malga de óleo de foca com o seu pavio junto de si, numa prateleira de pedra e olhava, à luz difusa, para a peça meio acabada que tinha estendida no tear. Era muito simples, sem cores, apenas os tons naturais da lã, branco e creme e o sombrio, rico e escuro do seu rebanho especial de ovelhas de pêlo negro.

O desenho tinha apenas simples listas nas pontas e um ponto uniforme, forte; Margaret era habilidosa e aquela peça teria muito valor. Mas nunca teceria como Creidhe, com verdadeira magia nos dedos, com uma delicadeza no coração quando decidia as cores e tons brilhantes, as complicadas barras, os desenhos vivos e arrojados. Era preciso ter mais do que simples habilidade para fazer o que Creidhe fazia; era preciso amor.

Margaret pegou na pequena lâmpada e foi descalça à grande sala onde tudo estava perfeitamente arrumado, a mesa limpa, a lareira pronta, os potes e as panelas lavados e alinhados. No quarto minúsculo a seguir, dormiam as suas criadas, cansadas dos dias de trabalho na casa ou nos campos. A pequena criada que trouxera consigo na grande viagem de Rogaland era agora uma matrona, casada com um homem das ilhas, mãe de cinco filhos e com uma herdade própria para tratar.

Margaret estremeceu. As recordações daqueles dias aproximavam-se naquelas noites, entrando-lhe no vestido e impedindo-a de dormir. Tantas mudanças, tantas oportunidades e quase todas elas desperdiçadas. Tudo o que conseguira salvar dos tempos sombrios fora o seu filho e, agora, parecia que também ele se tinha perdido. Estava-se no pino do Verão; a cevada crescia, luxuriante, as ovelhas estavam gordas e até o vento tinha perdido a sua mordedura feroz. Mas Thorvald não regressara; o lugar de Creidhe em frente do tear continuava vazio. Não havia alegria na casa. Na estação mais alegre do ano, a sua casa era um lugar sombrio. Os seus pés descalços sussurraram no chão de pedra, dirigindo-se para onde umas pesadas portadas cobriam a única e estreita janela da grande sala. Os seus dedos abriram o fecho; a dama abriu-as com um rangido e olhou para o exterior.

Não se viam quaisquer estrelas; a claridade da longa noite de Verão escondia-as. A paisagem parecia um lugar de sonho, coisas normais transformadas por aquela semiescuridão. As formas compactas das ovelhas eram como que pequenos outeiros prateados emergindo da erva; as pedras dos telhados moviam-se sob a ação do vento ligeiro, como se tivessem vida própria. Uma capa, pendurada para secar, abria as asas como um animal pronto para levantar vôo na direção da Lua invisível. O ar chegou-lhe às narinas puro e frio.

Margaret suspirou. Aquilo não era nada bom. Como era possível continuar naquele estado? Parecia um ribeiro interrompido no seu curso, enchendo, enchendo sempre, mas sem nunca conseguir ultrapassar a barreira por os desgostos lhe pesarem tanto. Não estava certo. Numa noite daquelas, com o mundo lá fora, grandioso, maravilhoso, como podia ficar ali como uma mulher encarquilhada, fechada de tal maneira que a única coisa que conseguia sentir era o desgosto? Oh, ter de novo dezessete anos e ter a hipótese de tentar outra vez, recomeçar de novo. Margaret fechou as portadas. Que loucura, desejar tal coisa. Não havia segundas hipóteses. Se houvesse, quem poderia garantir que não voltaria a cometer o mesmo erro? Só havia uma vida e essa vida seria o que os deuses quisessem. A dama imaginou-a: dez anos, vinte, se tivesse sorte. Meia-idade, terceira idade, passadas em obediência aos seus próprios princípios de restrição, controle, ordem, disciplina... sempre só, se Thorvald não regressasse, só, sem pai nem mãe, irmã ou irmão, marido ou filhos à sua volta... Que tinha ela? As suas capacidades, certamente, se bem que não fossem grande coisa depois de ver o que a sua aluna era capaz de fazer com o tear. No entanto, fora ela que ensinara a Creidhe e outras raparigas, que agora desenvolviam a sua atividade em diversas partes das ilhas. Sentia uma certa satisfação por causa disso. A sua casa, a sua herdade... ambas eram bem dirigidas, ordenadamente e eram prósperas; mas o crédito pertencia a outro, pensou ela. A sua mente pensou em Ash com alguma relutância, sentindo que os seus pensamentos estavam a ficar demasiado perigosos. Tinha amigos, amigos velhos e verdadeiros. Mas Nessa estava à espera de bebê e a sua pequena família parecia ter-se fechado sobre si própria naqueles tempos de risco e preocupações. Sem Creidhe, Margaret sentia-se afastada daquele círculo de amor e proteção, limitada às suas ofertas para os ajudar com o gado, ou a alguns presentes de lã, ou queijo. Participava nos conselhos, por vezes, como viúva de um antigo chefe de guerra da ilha e como proprietária de terras, mas aquelas coisas significavam cada vez menos. Talvez, com trinta e seis anos, estivesse a ficar velha.

Domínio, disse ela para si própria, pegando na lâmpada e regressando ao seu quarto. A dama fez um esforço para normalizar a respiração; conseguiu reter as lágrimas que lhe ardiam nos olhos. A autopiedade não era uma coisa produtiva; não resolvia nada. Se a lógica, a razão e a força de vontade não lhe mostravam o caminho, tinha, muito simplesmente, de aceitar que o destino a transformara numa solteirona seca, envolta nas sombras do passado. Era um castigo: um castigo dos deuses pelo que tinha feito. No entanto, naquela noite, algo se agitava nela, uma pequena voz, uma canção murmurada, terrível, mas maravilhosa, dizendo-lhe que não era verdade... ainda estava viva, lá muito no fundo... tinha, simplesmente, de respirar, de abrir os olhos e de mudar... seria fácil...

Assim, quando os seus passos passaram por uma determinada porta coberta apenas por uma cortina de lã, Margaret fez uma pausa e ficou silenciosa. No interior do quarto, o homem que até ali estivera acordado, escutando-lhe todos os passos, todos os movimentos de dúvida, viu a luz da sua pequena lâmpada através do tecido e disse, muito suavemente:

— Estás bem? — perguntou Ash.

Margaret engoliu em seco e sentiu o coração a acelerar. Não sabia o que dizer; talvez uma simples afirmativa e depois uma fuga na direção do santuário que era o seu quarto. No entanto, a voz dele parecia-lhe abrir-lhe algo no fundo da alma, tocando em todos os cantos de onde, até ali, todas as sensações tinham estado ausentes.

— Estou gelada — murmurou ela, batendo os dentes como se as palavras fossem verdadeiras. A lâmpada agitou-se na sua mão; o óleo caiu nas lajes de pedra. Um momento mais tarde, ele estava à entrada junto dela, estendendo uma mão para a lâmpada e com uma peça de roupa, uma camisa, talvez, para tapar a nudez. Ele sempre fora cuidadoso, sempre observara as regras de conduta entre criado e patroa; nunca o vira assim, despido, em todos aqueles anos que levavam de vida partilhando a mesma casa. Aquelas mesmas regras deviam tê-la obrigado a desviar o olhar, em vez de o fixar. Mas Margaret compreendeu que não conseguia. Gostava do corpo dele: esbelto, compacto, seco, o corpo de um homem que trabalhara duramente e que tivera pouco descanso. O peito dele estava coberto de pêlos cinzento-escuros; os ombros dele eram fortes, os braços musculosos, apesar da compleição esbelta. À luz difusa da lâmpada, os olhos dele encontraram os dela, firmes e simples, se bem que ela não deixasse de ver neles alguma cautela. As palavras escaparam-lhe de novo; não sabia que lhe dizer porque, se lhe perguntasse, e ele dissesse não, como era provável, achava que nunca mais poderiam ser amigos. E ele era o seu único e verdadeiro amigo, o seu melhor companheiro; ao longo daqueles anos todos tão solitários, provara-o vezes sem conta, se bem que ela o tivesse recompensado pela sua lealdade.

— Já o disse antes — o tom de Ash era suave — mas creio que tenho de arranjar coragem para dizer de novo. Servir-te-ei até ao meu último suspiro: com o meu trabalho, as minhas mãos, com toda a vida que tenho dentro de mim. — A voz dele transformou-se num sussurro, tal como a dela. — E com o meu corpo, se quiseres. Para te aquecer, se preferires. Se houve uma coisa que aprendi alguma coisa nesta casa foi a exercitar o meu autodomínio.

Era um homem corajoso, pensou Margaret, sentindo, contrariada, as lágrimas, finalmente, a rolarem-lhe pelas faces

— Eu preferia... Eu... — A voz dela tremia; por todos os deuses, tinha de ser assim? Mal baixava a guarda todas as defesas caíam? Era como se tivesse de novo dezessete anos, tremendo em frente do primeiro namorado.

Ash pousou a lâmpada e estendeu a mão para lhe afagar o rosto; as lágrimas dela caíram-lhe por entre os dedos.

— Diz — disse ele.

Margaret respirou fundo. A dama estendeu um braço e a camisa que Ash tinha diante de si caiu no chão frio de pedra. As mãos dela moveram-se de novo e ele, por sua vez, respirou fundo, desta vez bruscamente.

— Preferia mostrar-te, talvez — disse ela docemente, aproximando-se de modo que o seu corpo se encostasse ao dele, sentindo o seu calor, a sua força. Subitamente, deixou de ter medo, deixou de se sentir insegura. — Mas uma senhora não faz as coisas assim; pelo menos, foi o que me ensinaram em rapariga. A não ser que o homem seja o seu marido.

Ash não disse nada; os lábios dele beijaram-lhe os cabelos e as mãos percorreram-lhe as costas, pressionando-a contra si.

— Eu pensei... — disse Margaret, fechando os olhos. As sensações já eram mais fortes do que a disciplina, o controle, a lógica fria. Sentia apenas o coração batendo com força contra o peito, a carícia maravilhosa das mãos dele, o corpo vigoroso dele despertando o seu, como se fosse uma rapariga e ele fosse o seu primeiro e único amor. — Eu pensei... que tu talvez quisesses que... que isto fosse... fosse...

— Mais tarde — sussurrou Ash. — Mais tarde falamos.

— Vem, então — disse Margaret, afastando-se, pegando-lhe na mão e conduzindo-o ao longo do escuro corredor na direção do seu quarto. — Vem e sê bem-vindo, querido amigo.

— Confesso que tenho tido pouca prática. — Ela ouviu a voz dele à luz difusa do quarto tranqüilo; reconheceu, pelo tom de voz, que ele não estava a brincar. Ela estendeu um braço a desatar a fita da camisa de noite, mas Ash já lá estava, com dedos ágeis e seguros. O corpo dele estava, de novo, colado ao dela: quente, duro, sem necessidade de palavras.

— Também eu — disse-lhe ela, tirando a camisa pela cabeça. — Passaram-se muitos anos. Por que esperamos tanto? — Subitamente, ela percebeu como fora tola; tantos anos perdidos, anos que podiam ter sido preenchidos com amor, com risos, com alegria partilhada. Teriam tido filhos.

— Shhh — disse Ash, deitando-a a seu lado, corpo contra corpo, a doce harmonia de dois corpos nus. A idade, a timidez e a falta de prática deixaram de ter importância; a linguagem do corpo é imediata, poderosa e tem as suas próprias regras. — Esperamos por esta noite, mais nada. E pelas que se seguem.

Mais tarde, quando a meia-luz fria começou a transformar-se no presságio do Sol nascente, Margaret ouviu Ash dizer-lhe ao ouvido:

— Amo-te.

E ela ter-lhe-ia dito o mesmo, mas as regras que impunha a si mesma não lhe permitiam mentir.

— Não sei se sou capaz de amar de novo — disse ela acariciando-lhe a curva das costas onde a espinha acabava e começavam as nádegas bem musculadas: o corpo dele era uma delícia, um mundo de descobertas. — Tu sabes que eu me deitei com o meu marido e com outro homem. Meu querido, nunca senti tanto prazer como o que me deste esta noite. Nunca pensei que fosse possível um prazer assim.

— Honras-me — disse Ash em voz baixa porque havia mais gente na casa e a manhã estava a chegar. — Tu disseste... antes... falaste de casamento, penso. Ouvi corretamente? Seria lady Margaret, filha de Thorvald, Braço-de-Ferro, capaz de casar com um empregado? Como é possível?

— Ouviste muito bem — disse Margaret, sentindo o tom cauteloso da voz dele; tinha-o aborrecido, de algum modo. — Se bem que tu não sejas um empregado, meu querido, e tu sabes isso.

Seguiu-se um silêncio. Ash afastara-se dela; ela sentiu frio. Por fim, ele disse, muito calmamente:

— Casarias com um homem que não amas?

Ela sentiu parar o coração. Ele era o seu querido amigo, tão sábio, tão bom, tão generoso e magoara-o.

— Eu só disse que não sei se consigo — disse-lhe ela. — Tudo o que te posso dizer é que não sei se serei capaz de aprender se não estiveres a meu lado. Na verdade, não sei se serei capaz de continuar sem ti. Algo mudou esta noite; as sombras afastaram-se, como se tivéssemos aberto uma porta para deixar o Sol entrar. Como se tivéssemos quebrado uma barreira e nos tivéssemos libertado. Não sei o que é. Só sei que não quero passar mais nenhuma noite sozinha nesta cama, sem o teu corpo para me aquecer, os teus braços para me abraçarem, o teu coração contra o meu. Só sei que não quero continuar sem ti a meu lado, não como empregado, mas sim como marido. Isto devia ter acontecido há muito tempo, quando éramos jovens. Talvez isto seja amor. Seja o que for, parece o sol da Primavera, o cheiro da chuva depois de uma longa seca. Com o tempo, perceberei o que é. Se me ajudares. — Tão doce, tão nova, aquela sensação de deixar andar as coisas, de partilhar, de saber que nunca mais teria de as fazer sozinha.

— Amo-te — disse ele de novo, tão docemente que ela mal o ouviu, e apertou-a contra si. Uns momentos depois, dormiam nos braços um do outro. Quando as mulheres da casa se levantaram, acenderam o lume e começaram a preparar o novo dia, ainda eles estavam nos braços um do outro.

 

           A voz dele

           Um suspiro no vento de oeste

           Uma canção nas águas

           Um murmúrio no coração

           A voz dele e um novo dia.

                       NOTA À MARGEM DE UM MONGE

 

Quando o Sea Dove chegou ao Fiorde do Conselho já os corpos de Helgi e de Svein tinham sido enterrados com o ritual próprio. Tinham sido rezadas orações por Alof, que continuava à deriva algures, nas águas da Ilha das Nuvens, separado da sua ilha para sempre. Com Hogni seria diferente. Hogni era um guerreiro de profissão e tinha de ter o ritual dos guerreiros.

— Não pode ser esta noite — disse Einar a Thorvald enquanto os homens se apressavam na direção do lugar onde o Sea Dove estava encalhado e onde muitas mãos conduziam o monge ferido e a rapariga exausta até ao abrigo acima da baía. — A mulher dele ainda não chegou; ela vive no outro lado da ilha, na aldeia de Starkfell, de onde os barcos partem para a Ilha das Tempestades. Vai demorar algum tempo até ela chegar com as crianças. São miúdos, ainda; o mais novo foi o último a nascer na ilha antes de começar a caçada. Além disso, convocamos um conselho para esta noite. Asgrim não queria, mas nós insistimos. Tens de falar por nós, Thorvald, e rapidamente, antes que ele comece tudo de novo.

— Esta noite? — A cabeça de Thorvald girava-lhe, tentando lidar com tudo o que acontecera, tanto para uma só cabeça. O vidente devolvido, o seu pai, Creidhe, depois os homens e agora aquilo... O jovem respirou fundo e endireitou os ombros. — Sim, é claro que tem de ser esta noite. Vocês fizeram bem em tê-lo convencido. Mas, primeiro, tenho de ir ver se o meu pai é bem tratado; ele foi terrivelmente ferido.

Os olhos de Einar abriram-se.

— O teu pai? — repetiu ele, virando a cabeça para olhar para os homens que transportavam o eremita ferido para o interior do abrigo. — O cristão é teu pai?

— É uma longa história. E agora diz-me rapidamente, eles estão todos aqui, Wieland, Orm, Skolli? Se eu os liderar eles apoiam-me?

— Apoiamos-te, sim. — A boca de Einar distendeu-se num grande sorriso de satisfação. — E com ferro, se for preciso.

— Espero que a força não seja necessária — disse Thorvald. — No fim de contas, ele é só um homem. — Por outro lado, Asgrim mantivera o povo dos Facas Longas sob o seu poder ao longo daqueles anos todos de dificuldades e sofrimento. Era um homem forte e um bom orador.

— Não te preocupes com o eremita — disse Einar. — Skolli tem jeito para consertar ossos e há uma mulher que percebe de ervas e coisas assim. Não fiques espantado, Thorvald. Há baixas em todas as caçadas. As mulheres vêm ajudar a tratar dos feridos e reclamar os mortos. Nestas ocasiões, Asgrim permite que elas entrem no acampamento. Além disso, as notícias correm depressa. Assim que se soube que tinhas ido para sul para te confrontares com o inimigo, as pessoas começaram a aparecer vindas de Água Brilhante, da Baía Sangrenta, de toda a parte. Elas sentem que as coisas estão a mudar. Querem estar aqui quando isso acontecer.

Ainda era dia quando se reuniram no abrigo, se bem que o Sol já se tivesse posto, porque o céu ainda tinha a cor pálida e fria das noites de Verão. O irmão Niall estava estendido numa esteira no extremo da longa câmara; Skolli retirara-lhe a tala provisória, endireitara-lhe os ossos da perna esmagada o melhor que pudera e ligara-lhe de novo o membro, enquanto o homem de cabelos brancos tremia e mordia o lábio, mas sem nunca gritar. Em seguida, uma boa dose de um bálsamo concedera ao eremita algum repouso e agora ele descansava com as mãos descontraídas e as feições em paz. O lugar onde estivera o seu outro olho estava coberto com um chumaço e uma ligadura, em redor da cabeça tonsurada, ajudava a mantê-lo no lugar. Junto da esteira estava sentado Breccan, pálido mas calmo e Creidhe, silenciosa e branca como a cal. Sam permanecia perto, na sombra.

Asgrim estava a demorar algum tempo para descer da sua cabana. Após alguns cumprimentos iniciais, algumas palavras de felicitações, uma expressão de choque ao ver Niall ferido e Creidhe viva, regressara rapidamente para os seus alojamentos privados, não protestando quanto ao fato de o local onde todos dormiam estar ocupado com mulheres e eremitas cristãos. Talvez, observou Orm, secamente, o governador se tivesse apercebido de que estava encostado a um canto e estivesse, agora, a tentar descobrir como libertar-se. Skapti estava de vigília junto do corpo do irmão numa pequena antecâmara. O governador já não tinha guardas pessoais. E já todos sabiam a verdade acerca do que Asgrim fizera à própria filha. A questão era: que iria fazer Thorvald?

Era esquisito as pessoas fazerem os trabalhos de rotina normais, cozinhar peixe, passar pratos de mão em mão, sentarem-se nas prateleiras de terra para comer, homens e mulheres juntos. Não era um festim alegre: muitos tinham morrido, demasiados tinham sofrido. No entanto, ouviam-se vozes murmurar de antecipação, sem medo. Aquele seria o primeiro conselho desde que a guerra começara; o primeiro desde muito antes da caçada. Muito dependia dele. Os homens conheciam Thorvald; as mulheres não e a dúvida estava nos seus olhos.

O tempo passou. Skapti entrou para se juntar a eles. O guerreiro sentou-se ao lado de Thorvald e pegou num prato com comida. Passado algum tempo, Einar saiu e regressou. Esperaram mais algum tempo até que Thorvald, tomando uma decisão, levantou-se.

— Einar, Skapti, vão lá buscá-lo. — disse ele secamente. — As pessoas estão cansadas; quanto mais cedo começarmos, mais cedo acabamos para podermos ir dormir.

— Não é preciso. — A voz vinda da entrada era sem expressão, discreta. — Comecemos, façam favor. Não vejo necessidade para isto, como disse a Einar. Não há nada para discutir. Mas como os homens insistiram, suponho que tenho de os ouvir. — Os olhos escuros encontraram-se com os de Thorvald, enigmáticos, ilegíveis. — Quem é que se vai sentar no topo, tu ou eu?

— Eu estou bem aqui, entre os meus homens — disse Thorvald, imitando o tom cauteloso do outro, se bem que o seu coração batesse com toda a força e tivesse as mãos suadas. — Por quem és, ocupa o teu lugar.

Asgrim deslocou-se para a cabeceira da longa lareira. O governador tinha um traje escuro e um cinto com uma fivela de prata; os seus cabelos estavam atados atrás e as mãos descontraídas ao lado do corpo. Se tinha algum pressentimento, não dava sinais disso.

— Muito bem — disse ele. — Tenho de admitir que fiquei surpreendido quando Einar e os outros pediram formalmente um conselho logo a seguir à caçada e com um dos nossos sem receber, ainda, os ritos funerários. — Ouviu-se um som de trovão da parte de Skapti, como um rugido de aviso por parte de um cão. — Pensei que preferissem cerveja e companheirismo numa noite destas — continuou Asgrim, imperturbável. — Mas, enfim, aproveito a oportunidade para felicitar o jovem que, parece, nos salvou a todos. Ver o Sea Dove aproximar-se com a missão cumprida foi uma bela visão. — O governador virou-se uma vez mais para Thorvald, acenando com a cabeça com uma certa graciosidade. — O vidente foi devolvido ao seu povo e os dias de caçada terminaram. Agradecemos-te do fundo dos nossos corações, Thorvald. Esta nunca foi a tua guerra. Nunca foi a tua missão. Sentimo-nos muito felizes por a tua amiga Creidhe estar viva. Estamos gratos a Sam pelo papel que ele e o seu barco desempenharam. Não sabemos como havemos de pagar o vosso valor e persistência. É claro, faremos com que regresseis a casa generosamente abastecidos e o barco em perfeitas condições.

Thorvald tinha de responder. Ouviram-se várias vozes, todas elas zangadas.

— Que queres dizer, nunca foi a guerra dele?

— Regressar a casa? A casa dele, agora, é aqui!

— Deixem Thorvald falar!

A voz de Einar silenciou-os a todos, calma e segura.

— Ainda não — disse ele. — Thorvald falará depois de mim. Fui eu que convoquei o conselho; pelas regras da precedência, compete-me a mim estabelecer o assunto em discussão. Talvez alguns de vocês tenham esquecido isso. Já se passaram muitos anos.

— Muito bem. — O tom de Asgrim era gelado.

— Todos nós sabemos o que Thorvald fez — disse Einar. — E outros, também; eu ouvi a história toda e é evidente que todos os homens e a mulher que foram no Sea Dove desempenharam um papel importante no processo de paz. Não são precisos agradecimentos formais ou recompensas. Thorvald sabe o que eu sinto. É demasiado grande para traduzir em palavras.

Seguiram-se acenos de cabeça, grunhidos de assentimento, olhares e sorrisos na direção de Thorvald. Apesar das suas palavras cuidadosas, Einar estava nervoso; o guerreiro tinha as mãos unidas atrás das costas e as cinco cicatrizes viam-se com nitidez na palidez do seu rosto. Mandaria gravar mais uma, mas seria a última. Wieland estava sentado ao lado da mulher, uma jovem magra de rosto triste e cansado; os dedos dele estavam entrelaçados nos dela e ela tinha a cabeça encostada no ombro dele.

— De qualquer modo — continuou Einar — o que vos quero dizer é que este conselho não é para assinalar o fim da caçada, como tal, ou para agradecer àqueles que o conseguiram, já que estão a par da nossa gratidão. Este conselho é para decidir o que fazer a seguir.

As palavras permaneceram no ar cheio de fumo do abrigo durante um longo momento.

— A seguir? — repetiu Asgrim. — Que queres dizer com isso?

— A eleição de um governador. — Orm pusera-se de pé. — É possível quando o povo decide. Eu acho que até me lembro como se faz, se todos estes anos sem conselhos como deve ser não me fizeram esquecer...

— Estou a ver. — O tom de Asgrim continuava sem expressão e as suas feições maliciosas. — Um desafio. É claro que tens razão. Em tempos, houve regras. Mas, em tempos de conflito, como aquele a que temos assistido, essas coisas têm de ser postas de lado. Um conflito, devo salientar, a que vocês sobreviveram devido à qualidade da minha liderança, da minha vontade inexorável em me opor ao inimigo. Quem, entre vós, teria feito o que eu fiz por vós? Se não fosse eu, muitos mais teriam perecido. O povo dos Facas Longas teria desaparecido há muitos anos. Não podeis continuar sem mim. Tentai e Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz estarão de novo à vossa porta já amanhã com outra exigência qualquer e quando vocês não puderem pagar, eles regressarão para vos levar os filhos, cantar-lhes na sua jornada para o esquecimento...

— Chega! — Fora Wieland, espantosamente, que falara, Wieland que se levantara com um dedo acusatório apontado para Asgrim. — Como te atreves a falar assim diante da minha mulher e diante das outras mulheres do nosso povo que viram os seus filhos sacrificados desse modo? Como te atreves a ensombrar as nossas mentes com as tuas mentiras assustadoras? A guerra acabou! O vidente foi devolvido! Não queremos saber mais das tuas falsidades e da tua crueldade! — O jovem deixou-se cair na prateleira de terra e a mulher passou-lhe um braço pelos ombros. Ouviu-se um coro de vozes, masculinas e femininas, todas elas de aprovação.

— Bem dito, rapaz — disse Asgrim, cruzando os braços. — Estou a ver que as emoções andam à solta nos tempos que correm. Mas tem sido duro para todos. É por isso que não me parece que a ocasião seja a melhor para um debate formal acerca de assuntos tão sérios. Vocês não estão bem. Deviam deixar passar, pelo menos, alguns dias, tempo para falar no assunto, tempo para permitir que Hogni descanse e que todos procedam a um período de luto conveniente, de alguma dignidade. Além disso — o governador olhou para o fundo do abrigo, onde Breccan estava sentado junto do seu amigo — temos aqui estranhos, gente que não devia ser admitida nesta assembléia. Tu falaste de regras, Einar. Uma delas é essa.

— O irmão Niall é meu pai. — Thorvald ficou espantado pelo orgulho que sentiu ao dizer aquilo, pela coragem que sentiu quando falou. No fim de contas, talvez não fosse assim tão difícil. — Eu acho que é possível vires a descobrir que as regras lhe permitem estar aqui por direito e por parentesco. Sam e eu, apesar de recém-chegados, somos teus guerreiros e merecemos o nosso lugar entre vós. O irmão Breccan está aqui para tratar de um homem ferido; assim como Creidhe. Prossigamos. Pelo que sei, se há candidatos à liderança, deve ser-lhes dado tempo para falar, para apresentarem as suas queixas, um de cada vez. Depois, podem pedir que dois ou três falem em seu apoio. Depois, o povo escolhe. É assim?

Asgrim olhou para ele.

— Já passou muito tempo desde a minha eleição para governador — disse ele, muito sério. — Substituí no cargo um homem que morreu e não tive oposição. O que tu sugeres pode ser demorado. Se houver muitos pretendentes, passamos aqui a noite.

— Só há dois pretendentes. — A voz profunda de Skapti percorreu a câmara. — Tu e Thorvald. E nós não precisamos de ouvir ninguém que nos ajude a escolher entre os dois. Vai ser tudo muito rápido.

Os olhos escuros de Asgrim pousaram-se em Thorvald.

— É verdade? — perguntou ele. — Tencionas concorrer contra mim? — O tom de voz era o mesmo que sempre fizera tremer os homens.

— Não — disse Thorvald, provocando um coro de exclamações que ele silenciou com uma mão erguida. — Eu quero ser o líder destes homens e destas mulheres. Quero guiá-los e ajudá-los a conseguirem um futuro melhor, um futuro no qual trabalhemos todos juntos pela paz e pela prosperidade. Não quero concorrer contra ti. Mas, se for eleito governador, quero que te vás embora daqui para sempre.

Os olhos de Asgrim semicerraram-se alarmantemente.

— E já que comecei — continuou Thorvald, aproximando-se para se colocar ao mesmo nível do governador e virando-se para a assistência — que este seja o meu discurso formal. Nós conseguimos uma grande vitória; ganhamos o futuro. Não preciso de te dizer como isso é precioso. Todos nós sabemos que não o podemos desperdiçar; que temos de trabalhar juntos para reconstruir o que se perdeu e aproveitar novas oportunidades. Eu lutei ao vosso lado. Vi a vossa coragem e a vossa camaradagem, a vossa visão e o vosso empenhamento. Alguns de vós não me conheceis. Eu sou um recém-chegado e isso é uma coisa que tendes de aceitar. Mas a minha promessa não se altera: se me escolherdes como líder, esforçar-me-ei arduamente para conseguir o melhor futuro para as ilhas, para todos os homens, mulheres e crianças. Sois boa gente e não mereceis menos. Não vou enumerar as faltas de Asgrim; se ainda não percebestes que ele vos desvalorizou, insultou com a sua falta de confiança e procurou aterrorizar até o mais forte de vós, então nada do que eu possa dizer alterará a vossa opinião. Ofereço-me a mim próprio, muito simplesmente, para o substituir. Não me chamarei a mim próprio governador. Não posso governar sozinho; se me escolherdes, instituirei um conselho de homens eleitos para me aconselharem. Convocaremos uma Assembléia regularmente para resolver as nossas disputas à face da lei e discutiremos, também, a forma de conseguirmos uma trégua formal com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, para prevermos o futuro. Mas isso é para mais tarde. Primeiro, temos de nos assegurar de que todos têm aquilo de que necessitam, que as colheitas são semeadas e colhidas, que o gado é bem tratado, que os barcos e as casas são reparadas. Disseram-me que temos uma grande dívida para com as mulheres da ilha por terem continuado a tratar de tudo com grande dificuldade. Sois todos trabalhadores esforçados: bons trabalhadores. Sois fortes de espírito; apercebi-me disso na Ilha das Nuvens e vejo-o nos vossos rostos, esta noite. Passastes por grandes dificuldades e sobrevivestes. Se me elegerdes, ajudar-vos-ei a continuar, a tirar o melhor partido deste tempo de paz. Governar-vos-ei com justiça e lealdade. Dar-vos-ei tudo o que tenho. Juro.

O discurso foi saudado por um coro de vivas, por aplausos e pelo bater de botas no chão de terra.

— Discurso estimulante — observou Asgrim secamente. — Eu não desejo fazer nenhum depoimento emotivo. Limito-me a apontar que Thorvald é um homem muito novo e que, apesar do seu inegável sucesso na caçada, nunca foi um líder em tempo de paz. Não permitais que a euforia do momento altere o vosso julgamento ou vos faça esquecer o bom senso. Tereis de viver durante, pelo menos, três anos, com aquilo que decidirdes esta noite à face da lei de que Einar gosta tanto. Thorvald não é um de nós. É um recém-chegado que chegou às nossas ilhas por acidente. Não testemunhou aquilo de que o nosso inimigo é capaz. Não sofreu o que nós sofremos. As mulheres não o conhecem e eu vejo, pela dúvida nos olhos delas, que não confiam nele. Quem sabe no que ele se transformará se o elegerdes? Num tirano? Num fraco incapaz? Ponde-o no comando e tudo pode acontecer.

Ouviu-se um murmúrio geral e então uma mulher levantou-se, uma figura alta, sólida, de idade indeterminada, com os cabelos atados na nuca e com uma expressão severa.

— Isso é tudo muito bonito, Asgrim — disse ela sem expressão — mas, o que tu nos ofereces é melhor? Sinto-me revoltada ao ouvir-te como se representasses as mulheres depois do que nos obrigaste a passar. Nós obedecemos às tuas ordens e vivemos segundo as tuas leis há muito tempo e toda a nossa existência tem sido só medo e desconfiança. Tu obrigaste-nos a fazer coisas que poderíamos ter evitado se não estivéssemos demasiado assustadas com os teus rufiões para desobedecer. — A mulher lançou um olhar de relance para Skapti. — Qual de nós deixaria ir o marido, os filhos, os irmãos, ano após ano, sabendo que podiam regressar estropiados, ou mortos, ou que podiam, até, nem regressar? Sabendo que não valia a pena? Qual de nós o teria permitido se não tivesse medo de falar? Foste tu que nos obrigaste a praticar os teus próprios crimes, Asgrim, em nome de uma paz que nunca poderá acontecer, pelo menos enquanto fores tu a governar. Tu fizeste com que nós enganássemos a rapariga para poderes dá-la; fizeste-nos conspirar contra uma criatura que só demonstrou bondade para conosco. Agora, ouço dizer que aconteceu o mesmo com Sula: a tua própria filha. Isso põe-me doente. Põe doente qualquer homem ou mulher no seu perfeito juízo. Mas não são os teus crimes que nós rejeitamos, foi a maneira como tu nos transformaste, tornando-nos iguais a ti. Não quero ter essa nódoa nas minhas mãos. Não quero ter esse sabor na boca. No que me diz respeito, qualquer líder é melhor do que tu, quer seja Orm, Einar, ou outro qualquer. Se os homens acham que o jovem Thorvald é o homem indicado, eu apoio-o, assim como as mulheres aqui presentes. — A mulher sentou-se abruptamente, de rosto vermelho.

— Bem dito, Gudrun — disse Einar calmamente. — Thorvald, penso que podemos considerar isto como um discurso de apoio à tua candidatura. Mais alguém quer acrescentar algumas palavras?

Ouviram-se muitas vozes; ergueu-se no ar uma floresta de mãos.

— Quem escolhes, Thorvald? — Einar sorria.

— Eu gostaria de os ouvir a todos, se pudesse — disse Thorvald, sentindo as faces coradas. — Mas é tarde e precisamos todos de dormir. — O olhar do jovem percorreu a assistência: o próprio Einar, veterano de muitos combates; Skolli, com os seus ombros quadrados de ferreiro; o robusto Orm e o Wieland de olhos tristes. Sam estava na retaguarda, alto e loiro. E havia outro que estava sentado calmamente, sem exigir nada, fixando simplesmente, com os seus olhos pequenos e vermelhos, a figura de Thorvald com uma expressão tão leal como a de um cão.

— Skapti — disse Thorvald. — Quero que Skapti fale por mim. — O jovem percebeu, pela respiração de Asgrim, que aquilo era a última coisa que o governador esperava. O grande guerreiro era, sem dúvida, o único com que Asgrim contava como aliado.

Skapti pôs de pé toda a sua estatura. A assembléia calou-se.

— Eu sou um homem de poucas palavras — disse Skapti. — Não sou nenhum orador. Cometi alguns crimes, todos vós sabeis, ou sabereis dentro de pouco tempo. Foi ele que me obrigou — disse ele, olhando para o governador, cujas feições se tinham tornado tão rígidas como uma máscara — mas isso não é desculpa. Eu pensava que tinha acabado tudo. Quase acabei com a vida. Mas ele puxou-me para trás, Thorvald. O melhor amigo que se pode ter. O melhor líder que se pode ter. Graças a ele, posso ir em frente, agora, mesmo sem o meu irmão. — Uma lágrima surgiu na sua larga face; o gigante enxugou-a com o punho. — Mesmo sem Hogni, tenho razão para viver. Thorvald devolveu-me a fé, a fé de que posso fazer o que está certo. Deu-me esperança.

— Ele deu-nos esperança a todos — disse Orm calmamente.

— Não podeis passar sem ele —disse Skapti. — Ele é o melhor. — Depois daquele discurso, tudo se desenrolou rapidamente.

Asgrim, de rosto duro como uma pedra, recusou apontar qualquer homem ou mulher para falar por ele. Votou-se; o resultado não foi surpreendente para ninguém. Depois de os gritos, as aclamações, o rufar dos pés e as palmas terem morrido, Thorvald virou-se para o homem que até ali era o governador. O jovem escolheu cuidadosamente as palavras; seria bom que aquilo se concluísse com dignidade, se bem que os seus dedos ansiassem por se fechar na garganta de Asgrim pelo que ele fizera a Creidhe.

— Sairás da tua cabana e desta área logo que possível depois da alvorada — disse ele asperamente. — Não regressarás à Ilha das Tempestades nem à Ilha das Torrentes. Não te quero ter por perto, para que não perturbes os nossos esforços. Os teus crimes tiraram-te a hipótese de continuares nesta comunidade. Não tentaremos nada contra ti na tua viagem, seja ela para onde for. — O olhar de Thorvald percorreu a sala, fixando os olhos furiosos de muitos homens. — Se quiseres, podes levar um dos barcos mais pequenos e partir do Fiorde do Conselho para o destino que escolheres. Por favor, leva o que te pertence contigo. Queremos começar de novo.

Asgrim não disse uma palavra. A sua boca era uma linha fina e o rosto parecia o de um fantasma. Certamente, esperava luta; a derrota, talvez. Mas era evidente que não esperava um repúdio como aquele. Os seus olhos escuros percorreram a câmara, perigosos como os de uma serpente e depois virou-lhes as costas e saiu porta fora. Einar fez menção de o seguir, mas Thorvald disse:

— Não, deixa-o. Ele fará o que lhe mandaram. Não tem outra hipótese.

Quando acordaram na manhã seguinte, ainda cansados depois do breve descanso, mas já discutindo os novos desafios, o trabalho que tinham pela frente, Asgrim já se tinha ido embora. A sua cabana estava vazia, tinha desaparecido tudo: a cama, a arca, as armas, as penas, a tinta e os pergaminhos. Um dos barcos tinha desaparecido; parecia que o governador queria tentar a sorte na Corrente dos Loucos, a não ser que tencionasse circundar os ilhéus e rumar a sul. Fizeram-se apostas, na brincadeira, para saber quem venceria se Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz e Asgrim se encontrassem. Depois viraram a sua atenção para coisas mais importantes. A meio do dia, uma mulher de rosto severo entrou no acampamento com dois rapazes: a mulher de Hogni e os seus dois filhos. Ao fim do dia, reuniram-se todos à beira-mar para enviar o marido para o seu longo descanso.

 

Tinham construído uma bela jangada de madeira e o guerreiro foi colocado em cima dela, coberto por uma capa de feltro azul e com as armas a seu lado; a lança, o machado, as facas e o chuço. Hogni levava o elmo de pele colocado na cabeça, a couraça, também de pele, no peito, as suas melhores botas de Inverno, a capa de pele de ovelha, as calças de lã espessa e a túnica. As feições do guerreiro estavam distorcidas devido ao sofrimento da sua morte; não se podia disfarçar aquilo. Mas o irmão lavara-o com mãos grandes e gentis, penteara-lhe os cabelos e instalara-o o mais serenamente possível. Todos sabiam que o espírito já não sentia as dores da última noite cruel, quando o veneno se espalhara pelo corpo todo. Fora um ataque que nenhuma fortaleza humana podia suportar.

Encheram a jangada de panos embebidos em óleo, ramos secos, tudo o que ardesse bem e depressa. Esperaram num local onde a corrente arrastaria a embarcação, até o Sol se pôr para lá do fim do mundo e o céu ficar com a cor azulada e branca das noites de Verão. Estavam todos presentes, todos os que tinham sobrevivido à última caçada: Orm, Einar e Wieland; Skolli, o ferreiro e Knut, o pescador, com o recém-chegado Sam a seu lado; os mais novos, Ranulf, Thorkel, Paul e outros. Breccan não estava, nem o ferido Niall, que não se podia levantar. Creidhe também ficara na aldeia, mas as outras mulheres estavam junto dos seus homens, muito sérias e silenciosas. A mulher de Hogni, flanqueada pelos dois filhos, estava junto de Skapti e de Thorvald, perto da jangada onde o seu marido esperava a hora ideal

E a hora chegara. Skapti devia ter dito as palavras de despedida, mas quando chegou a ocasião pareceu incapaz de falar. A sua boca abriu-se, os seus olhos encheram-se de lágrimas e as suas largas feições cederam. Assim, foi Thorvald quem falou.

— Vai, guerreiro, na tua última jornada. — O jovem não gritou. O seu tom de voz não era nem alto, nem estridente, era baixo, respeitoso, íntimo: era como se estivesse a falar com Hogni, diretamente, honestamente, como se estivesse a falar com um amigo. À sua volta, os homens engoliam em seco, esfregavam as faces, assoavam os narizes. — Foste sempre bravo e forte, honesto e franco. Ensinaste-nos bem: todos nós temos ferimentos para o provar, de uma maneira ou de outra. Deste-nos tudo o que tinhas; tudo o que eras. Descansa, agora, certo do amor do teu irmão, da tua mulher e dos teus filhos. Vai na tua jornada, transportado pelo vento. Vai direto para a mão direita do deus, porque morreste como viveste, como um verdadeiro Pele-de-Lobo. Fica a saber que, neste lugar, os teus filhos crescerão em paz e segurança, porque faremos um mundo novo para eles, para todos: um mundo onde não possam regressar o sangue e a dor. Chegou a hora de nos despedirmos. Vamos! — Thorvald olhou para Skapti, para Einar e para os dois miúdos de sete ou oito anos que se mantinham agarrados, de olhos esbugalhados, às saias da mãe. Os quatro avançaram e começaram a empurrar a jangada para a água; o mar chegou-lhes aos joelhos, depois às coxas e, finalmente, a embarcação ficou livre.

— Cuidado — disse Thorvald para o miúdo mais pequeno, que tropeçara, arriscando-se a cair na água gelada. — Agarra na minha mão.

Skapti deu um último empurrão e a jangada começou a afastar-se, enquanto os outros regressavam à areia negra onde estava Orm com um archote aceso e Paul, o arqueiro, a seu lado. Mas Skapti continuou metido na água até aos joelhos, vendo a jangada levar-lhe o irmão cada vez para mais longe, para oeste, para a sua última e longa jornada.

Então, Paul colocou uma determinada seta no arco, esticou-o com força e Orm aproximou o archote, incendiando-lhe a ponta. A corda vibrou; a seta descreveu um arco no ar e foi cair na jangada. Uma chama vacilante, um brilho súbito, e a jangada ficou envolta em fogo quase instantaneamente, transformando o guerreiro num archote. Hogni ardeu durante muito tempo; viram-no atravessar o Fiorde do Conselho na direção das silhuetas invisíveis do Arco do Troll, da Ilha do Dragão e da Corrente dos Loucos. Ficaram todos a vê-lo desaparecer, uma luzinha na noite de Verão, e depois regressaram todos juntos.

As crianças tremiam, bocejavam, cansadas da estranheza daquela cerimônia. A mãe apertava-os contra as saias; quando Thorvald lhe falou, ela olhou-o nos olhos, como que a avaliar o homem por quem o seu marido dera a vida.

— Ele era um homem bom e corajoso — disse Thorvald em voz baixa. O jovem olhou para os dois rapazes. — Faremos com que não vos falte nada — acrescentou ele, sem saber como o faria, mas sabendo que, a partir dali, aquelas coisas seriam da sua responsabilidade e que tinha de aprender rapidamente. — E agora é melhor descansarem e aquecerem-se. Há uma lareira no abrigo, lá em cima. Aquele edifício fora, em tempos, o local de encontro do povo dos Facas Longas, nos tempos anteriores à caçada. Seria bom devolvê-lo ao seu propósito original.

— Nós vamos para casa — disse Gerd. As suas feições gastas tinham uma expressão de coragem; o mesmo olhar que Hogni teria naquele momento. — Esta noite, para Água Brilhante. Amanhã, para Starkfell. Estivemos fora muito tempo; o gado precisa de cuidados.

Thorvald ia protestar, dizendo que era noite, que o caminho era longo e perigoso. Mas o jovem mordeu as palavras; à sua volta, todos os homens estavam a colocar pequenas trouxas às costas, a apertar as capas e a pegar em chuços para ajudar na escalada. Skapti regressou do mar, limpou o nariz à manga da camisa e segurou nas mãos dos rapazes.

— São horas de ir — disse o grande guerreiro. — Se não te importas.

— É claro que não — disse Thorvald. — É evidente que tens de ir. Leva o tempo que quiseres. Mas não te esqueças que preciso de ti aqui, Skapti. Conto contigo para me ajudares e aconselhares. Vou convocar um conselho para a próxima lua cheia e quero todos os homens presentes.

— Estarei presente. — Os olhos de Skapti brilhavam.

— Entretanto, temos todos de pensar no futuro, no que há a fazer e na melhor maneira de o conseguir. Temos todos um papel a desempenhar. Lamento muito por Hogni não estar aqui, muito mesmo.

— Ele está a ver — disse Skapti. — Não tenhas dúvidas. E agora, é melhor irmos. Vamos embora, rapazes, toca a andar.

A história de Asgrim ainda não tinha acabado. Thorvald e o seu grupo ficaram no Fiorde do Conselho durante mais alguns dias, até que Niall estivesse suficientemente bom para poder ser transportado. Alguns dos homens, os que não tinham família, ficaram para ajudar. A maioria foi para casa tratar dos campos, dos barcos ou de outros modos de vida e para passar algum tempo com a família antes do longo trabalho de reconstrução da comunidade. No segundo dia, Thorvald estava sentado no exterior do abrigo com Sam e Knut, remendando a vela do Sea Dove, quando Paul apareceu a correr vindo do acampamento, tropeçando nas palavras, desejoso de dar uma notícia. O jovem não parecia preocupado, apenas excitado. Obrigaram-no a sentar-se, deram-lhe cerveja e esperaram até que recuperasse o fôlego. Os outros homens, alertados, juntaram-se em redor dele para ouvir.

A família de Paul vivia num local isolado, uma minúscula aldeia no lado noroeste da Ilha das Tempestades, instalada no alto de uma falésia, muito acima do mar. O jovem fora para lá naquela manhã, tencionando atingir a herdade antes do anoitecer e fazer uma surpresa à mãe. Percorrera um carreiro através da falésia durante a maior parte da jornada; não era um caminho seguro, mas era mais rápido e Paul conhecia bem o terreno. Foi assim que o viu: o barco de Asgrim.

— Ia para norte — disse o arqueiro — e ia bem depressa. Pela posição, achei que tinha estado na Baía Pequena e que tinha prosseguido esta manhã. Provavelmente, vai para as ilhas exteriores; só lá há meia dúzia de pessoas e talvez ele pense que lhe possam dar asilo, já que eles não sabem o que aconteceu aqui. O vento era favorável. Ele deve ter contornado a Corrente dos Loucos pelo norte. Quanto a mim, gostava de ter podido acertar-lhe com uma seta, mas Thorvald deu-lhe um salvo-conduto e, além disso, estava, provavelmente, fora de alcance. Ou longe de provocar sarilhos. Pelo menos, era o que eu pensava. — O jovem bebeu um gole de cerveja e limpou a boca com a mão.

— Que aconteceu? — perguntou Knut apressadamente, porque todos pressentiam ali algo de prodigioso, uma conclusão sombria. Era visível nos olhos do jovem.

— A coisa mais estranha que eu alguma vez vi — disse Paul num tom subitamente receoso. — O mar estava calmo, a brisa era constante e o barco parecia perfeitamente controlado. Então, vi umas... umas mãos, ou uns braços, ou... Não sei o que era aquilo, mas vi, em redor do barco, puxando, empurrando. Ouvi-o gritar. O único som naquele oceano todo. E então... e então eles afundaram o barco, viraram-no, partiram-no todo, desfizeram-no em bocados. A última coisa que vi foi uma... — Paul engoliu em seco — uma mulher, uma coisa parecida com uma mulher, estendendo os braços e abraçando-o, só que não foi como se uma mulher abraçasse o marido, sabem o que quero dizer, foi como que uma execução... ela continuou abraçada a ele mesmo depois de ele cair na água... Um momento mais tarde só se viam pedaços de madeira a flutuar. Tudo perfeitamente calmo.

Durante um momento, ninguém falou. A imagem nas mentes dos homens roubava-lhes quaisquer palavras.

— A Tribo das Focas — disse Knut, finalmente, com a voz a tremer. — Eles vieram buscá-lo.

— É claro, a mulher dele pertencia à Tribo — disse Paul, acenando com a cabeça. — Retribuição, foi o que foi. Vejam o que ele fez à própria filha. À filha. Tinha de ser. Mesmo assim, gostava de lhe ter acertado com uma seta. Teria ficado mais satisfeito.

Thorvald estremeceu. Talvez tivesse sido justo; por outro lado, não desejava um fim daqueles a homem nenhum. As ilhas, assim parecia, exerciam o seu próprio castigo em seu devido tempo.

Arranjaram-lhes uma cabana em Água Brilhante, aconchegada e seca. Havia um quarto minúsculo para Creidhe, não muito maior do que um canto para arrumações e com uma prateleira para ela dormir. Gudrun oferecera-lhe uma cama, assim como Jofrid, uma Jofrid ainda triste, porque os filhos que perdera ensombrá-la-iam para sempre, mas, pelo menos, uma jovem com esperança nos olhos. Wieland mantinha-se por perto, olhando pela mulher como uma vaca pela cria. Mas Creidhe não quis morar com as mulheres da aldeia. Assim, ficou alojada com Breccan, Niall, Thorvald e Sam, até que todos seguissem o seu caminho. Niall tinha febre e, entre os dois, Creidhe e Breccan passavam-lhe um pano pelo corpo a arder, administravam-lhe bálsamos e asseguravam-se de que os visitantes faziam o menor barulho possível. Thorvald tinha muitos visitantes, apesar da pausa que propusera no conselho. Os homens procuravam o seu conselho acerca das ovelhas, dos barcos, dos filhos que viviam nas ilhas mais afastadas. Falavam-lhe das ansiedades das mulheres, dos medos dos filhos. Pediam-lhe que falasse no funeral de um ancião. Queriam construir um templo, restaurar a casa do conselho, imitar a construção do Sea Dove para construir barcos melhores, se conseguissem a madeira. Alguns deles já falavam de comércio e tratados. Thorvald escutava, comentava e felicitava-os pela iniciativa. Dava-lhes conselhos. Sam olhava para ele, maravilhado. Seria aquele o mesmo homem que ainda há pouco se revoltava contra a herança do seu sangue, em Hrossey? Seria aquele o mesmo rapaz que mal sabia o que fazia quando pediu emprestado o Sea Dove e o seu mestre desgraçado e partiu para aquela viagem louca para o desconhecido?

Por vezes, o irmão Niall estava lúcido, se bem que como um cordeiro recém-nascido, com o rosto cheio de suor. Nessas ocasiões, Breccan e Creidhe descansavam e era Thorvald que se sentava junto do pai, limpando-lhe a fronte com um pano, segurando-lhe na mão e falando-lhe em voz baixa. Nessas ocasiões, podia ver-se uma expressão nova no rosto de Niall. O monge sempre usara uma máscara, sabendo que ela não o protegeria das farpas do mundo, mas reconhecendo que podia, pelo menos, esconder os seus sentimentos quando o feriam. Se tivesse sentido amor antes, e talvez o tivesse sentido, um amor duradouro e leal, aquela máscara tê-lo-ia escondido bem. Agora, pusera aquele artifício de lado. Era maravilhoso ver o olhar que ele lançava com o seu único olho ao filho e o seu reflexo nos olhos de Thorvald.

Niall queria ir para casa. Queria as suas penas, as suas tintas, os seus pergaminhos; queria a tranqüilidade do eremitério, o vazio da encosta sob o céu pálido. O monge falou da vaca, das galinhas, da pequena horta que Colm fizera.

— Em breve — disse Breccan. — Quando estiveres bom.

Sam já quase acabara de abastecer o Sea Dove para o regresso às Ilhas Brilhantes. O povo dos Facas Longas era generoso; o barco faria a viagem mais bem abastecido do que quando saíra de Stensakir para aquela viagem louca. Fariam uma rota diferente, desta vez, disse Sam: mais para leste do que para sul, a princípio, para rodear as costas das Ilhas do Norte antes de rumar a casa. Knut também ia, não apenas porque, sem Thorvald, Sam não conseguiria manobrar sozinho em alto mar, mas pela mudança, pela aventura, pela oportunidade. Os olhos do jovem pescador brilhavam de antecipação. Estariam prontos dentro de um dia ou dois.

Discutira-se um pouco, entre o povo dos Facas Longas, acerca de Creidhe. Pelo menos quatro dos homens solteiros fizeram perguntas sobre se a mulher de cabelos louros tencionava ficar nas ilhas e, se sim, se era verdade que não pertencia nem a Sam nem a Thorvald, que era apenas uma amiga. A resposta dependia de quem perguntava. Desistiram de perguntar a Sam, que quase lhes arrancou as cabeças com a resposta brusca de que Creidhe ia para casa com ele, claro, e que eles já deviam saber que não lhe deviam fazer uma pergunta estúpida daquelas. Skapti, questionado sobre o assunto quando regressou a Água Brilhante, parecia acreditar que havia um entendimento entre a rapariga e Thorvald, entendimento esse que o novo líder estabelecera sob determinadas condições quando negociara com Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz a sua libertação. A notícia espalhou-se rapidamente e os homens deixaram de fazer perguntas. No entanto, alguém ouviu Skapti comentar que Creidhe era a namorada de Thorvald, só que tinham tido um arrufo, porque a rapariga era uma sombra dela própria, mal comia, pálida e exausta, e nunca trocava mais de uma palavra ou duas com Thorvald, se bem que os olhos dele a seguissem muitas vezes com uma expressão que o grande guerreiro parecia conhecer bem. Ele próprio a tivera durante algum tempo. Agora, reconhecia que tinha sido tolo, um pouco como um cão perdido a olhar para uma princesa. Mas, agora, tinha mais que fazer, tinha a família de Hogni, Gerd e os miúdos, para se preocupar. Não tinha tempo para sonhos. Lamentava que a rapariga parecesse tão triste. Havia ali uma história que só Creidhe conhecia, mais ninguém, e ela não a contava a ninguém.

— Pai? — chamou Thorvald junto da esteira, enquanto os outros dormiam.

Niall virou um pouco a cabeça para poder ver o rosto do filho.

— O que é?

— Breccan disse que tu podes sair daqui dentro de um dia ou dois, agora que a febre baixou. Ele tem de regressar ao eremitério, de qualquer maneira; tem de tratar dos animais, os rapazes não podem continuar lá. Mas...

— Mas o quê, Thorvald? Sentes-te embaraçado por ter um pai clérigo? Tens outro ofício para mim? Talvez um em que eu avance com uma espada na mão e uma pala no olho?

Thorvald corou.

— Esperei muito tempo por ti — disse ele, olhando em redor para ver se alguém o estava a ouvir. — Toda a minha vida. Esperava que preferisses ficar aqui, ao meu lado. Para me ajudar. Eu tenho muito que aprender. Eu posso fingir que sou o líder que eles querem, forte, sábio, justo. Mas, na verdade, não sei nada de nada. Tenho andado a inventar à medida que vou avançando. No fim de contas, foi Creidhe quem ganhou a batalha, não fui eu.

— Ah — disse Niall com um sorriso torcido — um pouco de humildade. — É bom ver isso. É uma qualidade que eu devia ter aproveitado quando tinha a tua idade, mas que me faltou. Thorvald, tu és o líder que eles querem. Escolheram-te. Respeitam-te e amam-te. Se a verdade te espanta e te faz ser humilde, é assim que deve ser. A confiança deles em ti aumentará com os anos.

Seguiu-se um silêncio.

— Pai?

— Hum?

— Não sei se conseguirei fazer isto sozinho.

— Tu não estás sozinho. Estás rodeado de homens e mulheres bons e fortes, com vontade e leais, cujos corações estão virados para um futuro de paz e prosperidade. Além disso, não estarei longe. Espero poder descer a encosta de vez em quando e a minha porta estará sempre aberta para ti.

— Não é a mesma coisa. Tu és mais sábio do que eu; tens uma autoridade muito maior, basta quereres utilizá-la. Tu é que devias ser o líder do povo dos Facas Longas. Devia ter sido assim há anos, acho eu, quando aqui chegaste.

— Oh não. Oh não — O rosto de Niall ficou sombrio. — Isso nunca. Eu desafiei Asgrim, é verdade. Mas desisti de lhe tirar o poder das mãos, apesar de ele ser um tirano. Não te esqueças do que sabes acerca de mim, Thorvald. Eu sou o que sou agora. Mas cometi crimes que fizeram os homens estremecer de horror. Fui um homem cego, naqueles dias, e segui um caminho retorcido e lamacento, um caminho que nem o próprio Demônio teria imaginado. Se perguntas a ti próprio por que razão eu não quero o poder deste mundo de homens, aí tens metade da resposta. Um homem cujas mãos estão manchadas com o sangue do próprio irmão não pode liderar. Um homem que não pode agir sem mergulhar nas trevas todos aqueles em que toca deve ser posto de parte; deve colocar-se onde não tenha tendência para intervir. Eu tornei-me eremita. Deixei de procurar Asgrim; deixei-o seguir o seu próprio caminho. Até ao dia em que rumei à Ilha das Sombras.

— O que mudou na tua mente? — murmurou Thorvald. E Niall disse, simplesmente:

— O amor.

Após alguns momentos, Thorvald pegou na mão do pai, engoliu em seco e perguntou-lhe:

— Tu disseste que eu tinha metade da resposta. Qual é a outra metade?

— Descobri que Deus tem sentido de humor. Desempenhei, durante estes anos todos, o papel de um monge: permaneci ao lado dos meus irmãos e decorei as palavras que eles diziam com verdadeira fé; copiei as escrituras, não porque acreditasse numa única palavra, mas porque não queria perder a prática de ler, de escrever, de traduzir. Discuti filosoficamente com Breccan: tinha verdadeiro prazer nisso. Fiz o possível para que o meu cinismo não confundisse o rapaz. Encontrei uma certa calma no padrão de vida deles; a ordem e a disciplina da vida deles servia-me. Mas eu não era cristão. A minha mente estava cheia de dúvidas e descrenças. Vi aquilo de que os homens são capazes. Tinha tanta culpa no coração que não era capaz de acreditar num deus bom e luminoso, por mais eloqüência que Breccan pusesse na sua defesa. Até agora.

— Que queres dizer?

— Foi uma brincadeira de Deus: Ele deixou-a ficar para o fim, enquanto testava a minha resistência durante estes anos todos. Foi simples, Thorvald, simples e esmagador. Tu chegaste, Creidhe disse-me que eu tinha um filho e eu vi-te, vi a maravilha que tinha feito. Não sabia nada de ti, antes. Algo mudou dentro de mim; algo se abriu, se partiu, se estilhaçou. É tudo aquilo de que Deus precisa. Deixei de lhe resistir e ouvia a Sua voz. Ele, agora, ri-se, se calhar. Ganhou a batalha e eu pertenço-Lhe. — O olho de Niall brilhava. Thorvald achou que a luz que brilhava no rosto do monge tinha pouco a ver com a luz da candeia. Aquela luz vinha do interior da alma.

— Não sei que dizer — disse Thorvald ao pai — salvo que, se estas notícias chegarem ao irmão Tadhg, nas Ilhas Brilhantes, ele ainda vai ficar mais espantado do que eu.

Niall sorriu.

Ah, Tadhg. Creidhe disse-me que ele ainda era vivo e que ainda percorre as ilhas com o saco às costas e o livro de histórias. Como eu temia esse homem! Ele tinha um poder extraordinário; o amor de Deus ainda era mais forte nele. Sim, ele há de achar piada. E vai ficar encantado. Uma vez, ofereceu-se para me ensinar os caminhos da fé dele e eu não o quis ouvir. Thorvald?

Thorvald sentiu a mudança no tom de voz do pai e não respondeu. O jovem sabia o que ele ia dizer.

— Que aconteceu a Creidhe? Ela não fala comigo, ou com Breccan. Parece que não fala com ninguém. Eu ouvia-a na Ilha das Nuvens, orgulhosa e forte, enfrentando Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, protegendo a criança com todas as forças. Mas, depois disso, algo mudou terrivelmente... a rapariga bondosa e sorridente transformou-se num fantasma, num ser sem espírito e sem esperança. Ela sofreu um desgosto qualquer que nós desconhecemos, tenho a certeza. Mas Creidhe recupera facilmente e é corajosa, tal como o pai dela. Não compreendo. Não consegues falar com ela?

A breve risada de Thorvald foi amarga, trocista e cheia de dor.

— Eu? Eu sou a última pessoa em quem ela confia, pai. Eu era amigo dela. Ela veio nesta viagem unicamente por minha causa, para me proteger e para me guiar. Achei que tinha sido tola por causa disso, mas eu é que fui o tolo. Foi a intervenção de Creidhe que nos conseguiu a paz. Mas algo mudou. Ela está ferida e assustada. Esteve prisioneira na Ilha das Nuvens e não tenho dúvidas de que aquele homem abusou dela. Mas, parece-me que ela ainda não percebeu que está sã e salva.

— O homem?

— Estava lá um guerreiro; era ele que a tinha a ela e ao miúdo prisioneiros. Devia estar há muito tempo sem uma mulher, imagino. — Thorvald podia ouvir a ira na própria voz. — Penso que era filho de Asgrim.

— Erling? Aquele rapaz calado e sonhador ainda está vivo ao fim destes anos todos naquela ilha? Mas claro, faz sentido; quem mais teria o amor e a força para preservar a criança durante aqueles anos todos?

— Amor — repetiu Thorvald com alguma amargura. — Ele não mostrou grande amor por Creidhe; abusou dela, desonrou-a. Tu viste no que ela se tornou.

Niall ficou silencioso durante alguns instantes. Em seguida, disse:

— Isto não parece nada do rapaz que eu conheci, Thorvald. Mas, foi muito tempo e os homens mudam quando as circunstâncias são extremas. Ele morreu no último combate, suponho? Um fim triste para um jovem tão pacífico.

— Começo a acreditar que não é o mesmo — disse Thorvald — porque este não era nenhum pacifista. Era um assassino, profissional, experimentado e impiedoso. Merecia o castigo que nós lhe demos. Na verdade, ainda merecia pior.

Niall esperou.

— Quase o matei — disse Thorvald com uma certa relutância. — No fim, algo me deteve a mão. Provavelmente, não sobreviveu. Foi ferido e eu deixei-o onde estava. — Não diria a verdade toda, não fosse parecer fraco.

— Estou a ver. Portanto, acabou tudo para ele e também para Creidhe, os tempos maus. No entanto, ela parece mergulhada em desespero. Pergunto a mim mesmo porquê? Pelo que vi, quando testemunhamos a morte cruel de um bebê que ela tentou salvar, Creidhe não me pareceu uma pessoa que entre facilmente em desespero.

— Eu pensei que — havia sofrimento na voz de Thorvald — uma vez salvo o vidente, depois de ver que ele estava feliz e que não sofreria, ela me perdoaria por me ter metido onde não era chamado. Que talvez tudo voltasse a ser entre nós como antes.

— E como era isso?

— Era... — Perante o olhar perscrutador do pai, Thorvald tentou contar a verdade. — Durante aqueles anos todos, desde que éramos crianças, ela seguiu-me sempre, como uma sombra, sempre presente, ouvindo, esperando, caminhando nos meus calcanhares. Quando estava triste, ela consolava-me. Quando me sentia ferido, ela ajudava-me. E era mais nova; muitas vezes, eu ficava impaciente, ou zangava-me, e ela chorava, ou remetia-se ao silêncio. Eu... habituei-me àquilo, a tê-la por perto. Tomei-a como certa, pai. Até que pensei que tinha morrido. Então, eu... — Niall esperou.

— Mal podia acreditar como me doía. Não compreendia como podia um homem sofrer daquela maneira e continuar.

— Mas tu continuaste.

— Os homens precisavam de mim — disse simplesmente Thorvald. — Os meus sentimentos não eram importantes. A minha dor, a culpa que sentia... não tinham importância quando o futuro do povo dos Facas Longas estava em jogo. Fechei-as dentro de mim e continuei.

— E agora, que Creidhe regressou, continuas a tomá-la como certa? — As sobrancelhas de Niall arquearam-se, interrogativamente.

— Não! — disse Thorvald ferozmente. — Nunca! Quando soube que aqueles tipos andavam a falar dela; se ia para casa, se ia casar com um deles, fiquei tão furioso que tive de desaparecer para não ter de pôr as mãos num deles.

— Porquê, Thorvald? Isso parece-me pouco razoável, na circunstância. Ela é uma rapariga bonita e aqui há poucas mulheres casadoiras.

— Nunca pensei muito nisso antes — murmurou Thorvald. — No casamento, quero dizer. Tinha a mente noutras coisas. Além disso, sabia que Eyvind nunca permitiria... mas quando eles começaram a falar... Como poderia Creidhe casar com outro qualquer? Não seria... não seria... — O jovem não conseguiu continuar.

— Mas, tu não lhe dizes o que sentes?

— Tu viste-a, pai. Ela já não quer saber de mim. Não quer saber de ninguém. É como se uma parte dela tivesse desaparecido, como se lhe tivessem tirado uma coisa qualquer. Não sei como posso ajudá-la.

— Tens de a deixar ir para casa — disse Niall calmamente. — Para junto da família, para junto do povo dela.

Thorvald inclinou a cabeça.

— Thorvald, ela não é para ti. As almas como ela tocam-nos profundamente, encantam-nos com a sua beleza e bondade transparente. Somos atraídos por elas como moscas por uma candeia. Talvez queiramos possuí-las o mais possível, esperando que alguma da magia passe para nós e nos faça melhores, mais inteligentes. Mas não são para ti ou para mim, filho. As nossas serão sempre a dúvida e a luta. É essa a nossa natureza. Tu tens um papel a desempenhar entre os teus homens, um papel nobre e merecedor, e desempenhá-lo-ás bem. Talvez, com o tempo, te cases e tenhas filhos, ou talvez não. Mas tens de continuar a sorrir, agradecer aos teus amigos pela sua bravura e apoio e dizer-lhes adeus quando o Sea Dove partir. Nós temos o nosso próprio caminho.

E apesar de Thorvald quase não compreender o discurso do pai, porque o monge parecia não a estar a falar com o filho, ou com Creidhe, antes com outras pessoas, parecia que as palavras de Niall tinham a sabedoria da sua longa experiência, dos seus anos de contemplação e estudo.

— Estás cansado, pai — disse Thorvald. — É tarde. Devias tentar dormir. — O jovem ajeitou Niall na esteira e colocou-lhe por baixo da nuca uma almofada de penas de ganso.

— Thorvald?

— Pai, tens de deixar de falar e tens de descansar, se queres ficar melhor...

— Preciso de uma pena, de tinta e de um pergaminho. Amanhã. Tens de...

— Tu não estás suficientemente bom para escrever. Ainda não.

— As minhas mãos não têm nada de errado. Amanhã. Por favor. — Thorvald suspirou.

— Suponho que posso mandar alguém buscar-te essas coisas. É assim tão urgente? Tens anos pela frente.

— Tenho de escrever uma carta. Antes de o Sea Dove partir.

— Oh.

— A tua mãe merece, pelo menos, uma carta. Eu tratei-a da mesma maneira que tu trataste Creidhe. Vai ser duro para ela quando o Sea Dove regressar sem o filho.

— Ela não vai querer saber. — Thorvald sabia que não era verdade.

— Disparate — disse Niall, estendendo o braço para agarrar na mão do filho quando Thorvald lhe ajeitou os cobertores. — Apesar de muitas vezes não o dizerem, as mães amam sempre os filhos. Margaret sempre foi uma rapariga fechada. Era uma das coisas que eu gostava nela. Vê se me trazem a pena e a tinta amanhã.

— Sim, pai.

 

Quando Guardião acordou, estava tudo mortalmente calmo. O jovem soube instantaneamente que se tinham ido embora, porque sentia o ritmo e oscilação da ilha em cada fibra do seu ser; estava sintonizado com ela. O local estava deserto, com exceção das focas e das aves. E dele próprio.

Apesar disso, procurou. Procurou como quando se preparara para a caçada, com um cuidado meticuloso, com um propósito frio, com pés ágeis e a capacidade de visão de um predador. Guardião vasculhou a ilha de ponta a ponta, desde as praias rochosas às falésias vertiginosas, da baía escondida à gruta mais profunda, até as pernas lhe tremerem de cansaço e a visão se enevoar de exaustão. Então, regressou ao abrigo e tentou limpar o sangue seco da cabeça. Sentou-se junto da lareira apagada com a mão no colar que usava, uma coisa pálida, apagada, feita de madeixas dos longos cabelos da sua irmã. As botas de Pequenino estavam encostadas à parede; a sua curta capa jazia amarrotada no chão. Guardião estendeu a mão para o cobertor onde, ainda naquela manhã, estivera aninhado com Creidhe; o jovem levou o tecido gasto ao rosto e pensou sentir, ainda, o seu aroma. Guardião não chorou. Ficou sentado, vazio, silencioso. Tinham levado Pequenino. Guardião não cumprira a promessa. Creidhe tinha-se ido embora. Fora o seu próprio golpe que a atingira; ferira-a. E agora tinham-na levado. O jovem manteve-se sentado durante longos momentos, pensando se conseguiria mexer-se de novo, pensando se a dor e o sentimento de culpa fariam com que deixasse de ser o homem que era, um lutador, um guardião digno do nome que escolhera para si próprio, ou se deixaria apenas para trás uma concha para ser quebrada e dispersa pelo vento. Quase adormeceu por estar ali tanto tempo com o cobertor tão perto, talvez sonhasse com a sua deusa. Talvez conseguisse esquecer a visão de Pequenino frio, ferido, a sangrar, assustado, a imagem de Creidhe correndo, caindo, jazendo pálida e imóvel na encosta rochosa. Talvez conseguisse esquecer o triunfo nos olhos do homem de cabelos vermelhos. Mas não adormeceu, porque lhe parecia que tinha de se manter de vigília. Assim, ficou sentado de olhos abertos e com o tempo ouviu a canção, vinda de muito longe, tão longe que quase não a conseguia ouvir, mas ouvia, como se Pequenino lhe estivesse a dedicar. Era um fragmento transportado pelo vento, umas notas que já quase não se ouviam quando lhe chegaram aos ouvidos, mas ele compreendeu-as.

Então, surgiram as lágrimas. A melodia suave, sem palavras, disse-lhe que Pequenino estava vivo, salvo, feliz. Mas as lágrimas também eram de dor, um desgosto que lhe despedaçou o coração, o suficiente para o fazer gritar de dor. Pequenino estava em casa, regressara à Ilha das Sombras. E estava feliz. Fosse o que fosse que lhe tinham feito com as facas e mocas enquanto Guardião estava sem sentidos, inútil, a sua canção transportava a sua mensagem de paz, perdão, amor e esperança. E aquilo era o mais amargo, porque dizia a Guardião que ele estivera errado. Parecia que o que o Guardião pensara ser proteção era prisão. Acreditara que a vida que conseguira para Pequenino era melhor, mais livre, mais segura. Mas tudo o que fizera fora manter a criança afastada do seu verdadeiro lugar. Durante todo aquele tempo, aqueles anos, enquanto via o seu pequeno parente crescer, o protegia de todo o mal e o guardava tão ferozmente como um lobo protege as suas crias, vira sempre a tristeza nos olhos da criança e nunca percebera que era ele a causa. Escondera Pequenino e pedira-lhe para se manter silencioso enquanto a caçada seguia o seu curso e o rapaz obedecera-lhe. As crianças bem-comportadas não obedecem sempre aos mais velhos? No entanto, durante todo aquele tempo, na mente profunda e estranha do vidente, estivera sempre uma tristeza terrível, secreta. À medida que os anos passavam e sobreviviam a uma caçada após a outra, a tristeza de Pequenino devia ter-se aprofundado ao saber que o mais leal dos seus irmãos nunca o deixaria ir para casa.

A amargura daquela revelação roeu o espírito de Guardião. A canção terminou e o jovem ficou imóvel, olhando para a lareira apagada sem a ver e com o cobertor coçado encostado ao peito. Não podia negar a verdade. A tarefa que fora o objetivo da sua vida não passara de um erro cruel. Tinham morrido homens para nada. Não precisava de ter feito de si mesmo um guerreiro. Não precisava, sequer, de ter fugido para a ilha.

De manhã, o jovem desceu à baía escondida onde tinha os barcos. O melhor, o único que usara uma vez, tinha desaparecido. Os outros estavam danificados, as peles rasgadas, os esqueletos de madeira partidos; mesmo supondo que fosse capaz de chamar o povo da sua mãe, e eles conseguissem acalmar a Corrente dos Loucos para o deixar passar, só o poderia fazer depois de construir um barco suficientemente forte para atravessar o traiçoeiro estreito. E depois? Guardião vira os olhos escuros daquele homem, uns olhos ferozes, implacáveis, de posse. Havia um laço entre eles, entre a sua deusa e o amigo de infância; não apareciam juntos no bordado, onde ele próprio nunca conseguira um lugar? Não fora para proteger Guardião que ela se interpusera naquele último momento de desespero. Fora para proteger o homem de cabelos vermelhos. Quando, finalmente, tivesse o barco pronto, já ela estaria longe, na sua ilha, sã e salva, fora de alcance. O jovem sabia, assim como sabia as horas das marés: no próprio sangue.

Não tinha para onde ir. Com uma dor no coração, reconheceu-o. O povo de Asgrim detestava-o: por cada vida que tirara ao longo dos anos de caçada haveria um homem à espera de vingança, na praia. Não podia seguir Pequenino. Nunca mais veria o seu ente querido porque Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tinham boa memória e apesar de terem violado Sula, ele próprio ferira-os profundamente quando lhes raptara o vidente. Não podia viver entre os homens. Não sabia como. Só conhecia a ilha e a caçada.

A disciplina que impusera a si próprio durante tantos anos não desaparecia com facilidade. No segundo dia após ter perdido os seus dois entes queridos, Guardião percebeu que tinha frio e fome e que o ferimento na cabeça precisava de cuidados. Tomou uma decisão: a única que podia tomar. Ser forte ou desistir. Viver ou morrer. O jovem acendeu a lareira com uma grande quantidade de turfa e deixou-a a arder em segurança no meio das pedras. Foi buscar água fresca. Foi à pesca e apanhou os peixes à moda do povo da sua mãe, com as mãos e com palavras carinhosas. Matou-os com respeito e gratidão, porque a sua espécie tinha-o sustentado e a Pequenino durante muito tempo. Levou-os para a cabana e colocou-os nas brasas a assar.

Em seguida, arrumou tudo. Os cobertores e as capas foram dobrados e armazenados. O mais difícil foi guardar as botas de Pequenino, a sua capa e o chapéu de pele de ovelha que ele sempre se mostrara relutante em usar. No entanto, Guardião também o guardou. Aquelas peças de vestuário nunca mais seriam precisas. Talvez olhasse para elas de vez em quando; ou talvez não. Como recordações, eram desnecessárias.

A dor por aquela perda nunca o abandonaria; estava-lhe entranhada no fundo da alma. Ocorreu-lhe que nunca mais teria botas de pele, roupas quentes, artefatos de ferro e pedaços de madeira. A caçada terminara. Teria de passar a ser frugal.

Guardião comeu o peixe. Depois de acabar, ficou sentado a olhar para o fogo durante algum tempo, pensando que, se deixasse a mente à deriva talvez a visse de novo, muito séria e calada no outro lado da lareira, olhando para ele por cima das chamas com os seus doces olhos azuis plenos de mistério e encanto. Mas não a conseguiu ver. Talvez a visse unicamente em sonhos durante o resto da sua vida.

Após um certo tempo, Guardião pegou na faca que utilizara para pescar e sopesou-a na mão, pensativo. Então, rapidamente, antes que pudesse mudar de idéias, cortou o pequeno colar que usava ao pescoço e o objeto caiu-lhe na mão, uma madeixa suave de cabelos entrançados. O jovem olhou para ela por um momento e disse mentalmente: lamento. Mas estávamos ambos errados. E atirou o colar para o fogo.

No dia seguinte, visitou a gruta mais afastada, onde estavam armazenados muitos artigos provenientes das caçadas. Entre eles, bem lá no fundo, estavam os restos das roupas que Creidhe usava no dia em que a Corrente dos Loucos a lançou para a ilha. Estavam demasiado estragadas para se poderem usar, mas ele lavara-as, secara-as e colocara-as ali; como podia deitar fora algo que estivera em contato com a pele dela? O jovem levou-as para o exterior, tirou uma pequena faca e uma agulha de osso da algibeira, a sua preciosa linha, e confecionou uma peça de roupa para si próprio, uma que pudesse usar secretamente por baixo da camisa, junto ao coração. Vestiu-a e pensou que a sentia contra si, quente, suave, generosa, forte. Guardião pôs de lado os apetrechos e regressou à cabana, onde estava tudo arrumado e limpo. O jovem comeu e dormiu. Na manhã seguinte, foi buscar apetrechos para cavar e para deslocar pedras, foi até ao local que escolhera e começou a construir. Não interessava se a tinham levado. Não interessava se a iam levar para longe, para o outro lado do mar, demasiado longe para a poder seguir. Creidhe fizera-lhe uma promessa. Tinha, também, de manter a fé.

 

A mensagem chegou quando Eyvind estava em conselho na sua própria casa. Ele, Ash e mais cinco homens, representando as diferentes aldeias de Hrossey e as ilhas a sul. A ameaça dos Caitt era real, apesar das promessas de paz dos seus chefes de guerra; naquele dia, o conselho debatia, calma e urgentemente, em quem se podia confiar. Sabia-se, na casa de Eyvind, que aquelas reuniões não deviam ser interrompidas. Assim, quando Nessa afastou a cortina de lã da entrada e entrou na sala, o seu marido pôs-se de pé, não conseguindo disfarçar a súbita palidez do rosto. No outro lado da mesa, Ash levantou-se lentamente.

— Ela está de volta — disse Nessa simplesmente. — O barco atracou em Stensakir ontem à noite. Sam mandou um rapaz avisar-nos. Pediram cavalos emprestados em Grim e estarão aqui por volta do meio-dia.

Eyvind não sorriu, mas os seus olhos brilhavam quando segurou no braço da mulher para a acompanhar ao exterior da câmara, para a privacidade do átrio.

— Vou imediatamente ter com eles — disse ele, vendo a ansiedade nos olhos de Nessa, o modo como ela apertava as mãos uma na outra por cima da barriga inchada. Não fora aquilo e ela teria, provavelmente, tomado parte no conselho daquele dia. — Levo Ash comigo...

— Eyvind? — Ele esperou.

— Temos de mandar uma mensagem a Margaret. Eu tenho um homem pronto para partir. Creidhe chegou sã e salva, assim como Sam e um outro homem. Mas Thorvald não veio com eles. Não sei como lhe dar a notícia.

— Onde é que está Thorvald? Ele está vivo? — Nessa abanou a cabeça.

— Não sabemos. Temos de esperar até que Creidhe chegue a casa.

Ash aparecera silenciosamente por trás deles. Eyvind virou-se para ele.

— Gostaria que me acompanhasses a cavalo a Stensakir — disse ele muito sério — porque parece que o Sea Dove está de volta, finalmente e a minha filha vem nele. Mas receio que as notícias não sejam todas boas.

— Que aconteceu? — Ash já estava a tirar a sua capa do cabide, na entrada, preparando-se para partir.

— Não sabemos — disse Nessa suavemente. — Apenas que Thorvald não veio com Creidhe e com Sam. Temos de esperar que cheguem. Mas não podemos permitir que Margaret saiba a notícia por acaso. Tenho um homem pronto...

— Eu digo-lhe. — A voz calma de Ash não admitia réplica. — Vou buscá-la e trago-a para aqui. Ela vai querer estar aqui: ouvir o que aconteceu da boca de Creidhe. Vou imediatamente. São boas notícias, em parte, pelo menos; sinto-me feliz por ti. — As suas feições secas, bem definidas, estavam tão bem controladas como sempre; tal como Margaret, nunca dava a entender o que sentia.

— Lamento — disse Nessa, pousando a mão na dele. — Lamento muito. Talvez não seja tão mau como parece. Vai com cuidado.

Na cozinha, a azáfama era grande e a maior parte era provocada por Brona. Quando Nessa regressou à sala do conselho para apresentar uma explicação acerca do comportamento do marido e para se despedir dos homens, a sua filha assumiu o controle das servas, ordenando a preparação de um carneiro com alho e iniciando, com as suas próprias mãos, uma empada especial com ovos, queijo de cabra e cogumelos secos. Eyvind dirigiu-se a cavalo para nordeste, mais depressa do que a sua mulher gostava, se bem que Nessa compreendesse a urgência. Quanto a si, o sentimento que tinha no peito era tanto de ansiedade como de alívio e alegria; ansiara durante aquele tempo todo pelo regresso de Creidhe, preocupara-se, rezara e esperara por aquele dia, mas agora sentia qualquer coisa esquisita. Não era só o fato de Creidhe regressar sem Thorvald, se bem que Nessa soubesse que só isso era causa para desgosto. Sempre estivera ao corrente da inclinação do coração da filha. Mas aquilo que sentia era mais profundo, mais sombrio, um sussurro dos antepassados. Algo estava errado.

Brona cantava, terminando a empada com um enfeite de pastelaria no topo. A jovem estava corada e bonita, as mãos ágeis enquanto trabalhava. A seu lado, Ingigerd observava, solene como uma pequena coruja.

— É possível que Creidhe não tenha fome — comentou Nessa, torcidamente, da entrada. — Se a viagem foi longa, ela vai querer, muito simplesmente, dormir. Tens farinha na cara e na saia, filha. Talvez fosse melhor penteares-te e mudar de roupa. Ingi e eu metemos isso no forno por ti.

Brona olhou para a mãe, muito corada. A jovem não disse nada.

— É claro que, — continuou Nessa solenemente — Sam pode decidir ficar em Stensakir e deixar que Eyvind traga Creidhe para casa.

— Eu não... — começou Brona, mas depois mordeu as palavras. Por vezes a capacidade da mãe de ver para além do que era óbvio era desconcertante. — Eu só...

— Estou a brincar contigo, filha. — Nessa sorria. — Espero que ele venha, já que é um homem responsável. Vai lá e veste as tuas coisas bonitas. Estou contente por te ver sorrir. Nem consigo acreditar que eles tenham regressado.

Mas depois de Brona ter beijado a mãe e de ter partido a correr para o seu quarto com Ingigerd nos calcanhares, o sorriso de Nessa morreu. A dama meteu a empada no forno e ficou junto do fogo a aquecer as mãos e a olhar para as chamas. Apesar do calor da cozinha, sentia um frio interior que não havia meio de desaparecer.

 

As feições de Sam estavam tensas de ansiedade enquanto cavalgava e o jovem sentia um nó no estômago. A presença de Eyvind só piorava as coisas, porque depois do primeiro abraço de boas-vindas, em que pai e filha se fecharam nos braços um do outro enquanto ele segurava nas rédeas dos cavalos, pouco mais se dissera e ele podia ver Eyvind a olhar para Creidhe não com alegria e alívio, antes com incredulidade e choque. Depois de ter cumprimentado o pai, Creidhe não disse mais nada. Foi Sam que disse a Eyvind, em poucas palavras, que Thorvald estava bem e que decidira ficar nas Ilhas Perdidas. Foi Sam que apresentou Knut, que viajava com eles, e que explicou a sua presença. Sam disse para si próprio que, se calhar, teria de ser ele a contar a história toda ao formidável Eyvind, a Nessa e à mãe de Thorvald. Porque o silêncio de Creidhe não era daquele dia. Durante a longa viagem, enquanto ele e Knut conversavam, brincavam e conduziam o Sea Dove através do oceano na direção das Ilhas Brilhantes, Creidhe estivera sempre fechada dentro de si própria, muda, gelada. Ela percebia o que ele dizia: mudava de lugar quando ele lhe dizia e ajudara nas raras ocasiões em que ele lhe pedira. Preparara comida para os dois homens, comera pouco, ou nada. Não admirava que Eyvind olhasse insistentemente para ela. A sua formosa filha estava da cor da cinza, o rosto redondo magro e marcado, como o de uma mulher velha. Os olhos azuis doces tinham perdido o brilho. Estava assim, recordou Sam, desde o dia em que a tinham resgatado da Ilha das Nuvens. Excetuando a breve e estranha cena em que desafiara Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz acerca do destino do vidente. Mas nem naquela ocasião fora a Creidhe que ele conhecia. A jovem parecera-lhe feroz, orgulhosa e distante. Parecera-lhe uma rainha. E assim que percebera que a criança estava salva, transformara-se no que era agora, como se toda a vida lhe tivesse sido drenada do corpo. Como havia de explicar aquilo?

Quando chegaram os quatro à grande casa onde viviam Eyvind e Nessa e Sam viu a família reunida no exterior para os receber, os seus olhos pousaram de imediato em Brona, com os seus quinze anos, vestida com uma túnica e uma saia de lã verde e uma fita a condizer nos cabelos longos e escuros. A jovem sorriu, um sorriso generoso, brilhante, de delícia, muito simples. A sua pele estava tostada pelo sol e tinha as faces rosadas; os seus olhos cinzentos dançavam, vivos. Brona correu para abraçar Creidhe, assim que esta desceu do cavalo ajudada por Eyvind. Depois, Brona virou-se para Sam e olhou para ele timidamente através das longas pestanas. Sam não conseguia tirar os olhos dela. Há muito tempo que o jovem não via um quadro tão simples, tão saudável; a visão provocou-lhe um estremecimento de prazer por todo o corpo. Talvez, no fim de contas, o seu velho mundo ainda existisse.

— Bem-vindo a casa, Sam — disse Brona. O sorriso parecia ser só para ele.

— Estás com bom aspecto, Brona.

— E tu pareces cansado. E deves ter fome. Fiz uma empada.

Como um raio de sol, pensou Sam. Como um sopro de ar do mar.

O jovem seguiu-a para dentro de casa, chamando a si toda a sua coragem. Se tivesse de contar sozinho a história, contá-la-ia e diria a verdade. No fim de contas, também tomara parte nela: uma parte maior e mais sangrenta do que sonhara quando partira de Stensakir para ajudar Thorvald na sua sombria missão. Contá-la-ia e regressaria à sua velha vida.

Mas foi Creidhe quem contou a história com uma voz clara e precisa, com uma distância fria que manteve a família toda silenciosa. Sentaram-se todos à mesa; ninguém comeu muito. Custava a acreditar na história de Creidhe, mas eles sabiam que ela não mentia e, além disso, nem Sam nem Knut a contradisseram. Num determinado ponto, Sam tentou interromper, como se uma parte da história tivesse ficado por contar; ninguém perdeu o olhar que Creidhe lhe lançou, um olhar que silenciou imediatamente o pescador.

Tinham de acreditar. Tinham chegado, os três, a umas ilhas distantes, onde os jovens tinham sido forçados a treinarem-se como guerreiros, já que o Sea Dove ficara danificado e tinham de ganhar a madeira necessária para o reparar. Com o tempo, Thorvald tornara-se numa espécie de senhor da guerra e levara as suas forças à vitória contra outra tribo. E encontrara o seu pai, o que lhe dera duas razões para ficar quando os outros regressaram a casa. Somerled era um monge, um cristão. Estivera em perigo de vida e eles tinham-no salvo. Agora, tinha um nome diferente. No fim, Sam e Creidhe tinham-se despedido de Thorvald e tinham regressado a casa.

— O irmão Niall, Somerled, é um bom homem; tem um lugar nas ilhas, assim como a sua fé, e agora tem um filho. — O tom de voz de Creidhe alterara-se um pouco; momentaneamente, os seus ouvintes apanharam um eco do seu antigo calor. — E Thorvald mudou. Em algumas coisas. É um homem muito mais importante lá do que alguma vez seria em Hrossey. — A jovem falava, agora, diretamente para Margaret, uma Margaret que, apesar da sua calma aparente, apertava as mãos com força e estava suspensa de cada palavra.

— Os homens respeitam-no muito — continuou Creidhe. — Eu acho que ele vai fazer um bom trabalho.

— Creidhe — disse Eyvind cuidadosamente — onde estavas tu enquanto Sam e Thorvald faziam os preparativos para a guerra? Que andavas a fazer?

Creidhe olhou para o pai com uns olhos grandes e vazios.

— Nada de especial — disse ela.

Sam abriu a boca; Creidhe olhou para ele; e fechou a boca mais uma vez.

— Tu estás cansada, filha — disse Nessa com um ligeiro franzir de sobrancelhas. — Creio que estamos a exigir muito de ti. Por que não vais descansar? Temos muito tempo para conversar. — A dama olhou para Sam e para Knut. — Por favor, aceitem a nossa hospitalidade esta noite. É uma longa viagem a cavalo depois de um dia tão longo.

— Obrigado — disse Sam — mas acho que é melhor ir para casa. Estive muito tempo fora; tenho de ver como está o barco, arranjar alojamento para Knut e começar a faina da pesca o mais depressa possível. Mas volto dentro de pouco tempo. Se não for nenhuma maçada. — O jovem não conseguiu deixar de olhar na direção de Brona enquanto dizia aquilo; ela estava sentada com a irmã no colo e lançou-lhe um sorriso e um olhar ardente.

— Serás bem-vindo — disse Nessa, apesar de Eyvind não ter feito qualquer comentário. — Agradecemos-te por teres trazido a nossa filha sã e salva, apesar de a viagem ter sido uma loucura.

— Viagem que, sem dúvida, o meu filho te persuadiu a fazer. — O tom seco de Margaret não escondia o fato de que estava quase a chorar. — Eu também te quero agradecer, Sam; e a ti, Knut, por teres vindo com eles. Ainda bem que já estás em casa. Espero que Thorvald nos visite, um dia. Parece que a distância é menor do que vocês supunham.

Creidhe quebrou o silêncio que se seguiu.

— Tenho uma carta para si, tia Margaret. Deram-me para que lhe entregasse.

Margaret olhou para ela com os seus olhos escuros muito atentos, como se quisesse defender-se de mais sofrimento.

— Não é de Thorvald — acrescentou Creidhe, e tirou um pequeno pergaminho da bolsa que tinha no cinto. A carta estava atada com um cordel encarnado.

A mão de Margaret tremia quando pegou nele.

— Desculpem-me — disse ela e levantou-se, afastando-se na direção da porta. Os homens levantaram-se respeitosamente. Junto da entrada, Margaret fez uma pausa e virou-se para eles. O seu rosto estava pálido; os olhos estavam marejados de lágrimas.

— Ash? — chamou ela e estendeu uma mão. Ele atravessou a sala em três passadas e passou-lhe um braço pelos ombros em frente de toda a gente. Ficaram todos a saber o que se passava, sem necessidade de quaisquer palavras. O casal saiu e a porta fechou-se.

— Eu estou bem, mãe — protestou Creidhe enquanto Nessa lhe aconchegava os cobertores à luz difusa do quarto que a jovem partilhava com Brona. — A sério. Tu é que devias estar a descansar, com essa criança na barriga. Tens a certeza de que não é um par de gêmeos? Devias ter-me dito antes.

— Não tinha a certeza. — A expressão de Nessa era muito séria enquanto se sentava na cama, perscrutando as feições magras e os olhos parados, sem vida, da filha. — Estou tão contente por estares em casa, Creidhe. — A dama desejara falar com Creidhe acerca do bebê, dos seus medos quando do parto e do preço que a Tribo das Focas lhe poderia exigir. Creidhe compreendia aquelas coisas melhor do que Eyvind. Creidhe consolá-la-ia, tranquilizá-la-ia e dar-lhe-ia conselhos práticos. Mas não podia sobrecarregar Creidhe com os seus problemas. Sentia que aquela sua filha, antes tão forte e capaz, transformara-se no espaço de uma única estação, numa pessoa tão frágil e delicada como um ovo. Tinham de ir com cuidado; tinham de dar tempo ao tempo. — Dorme — disse Nessa, afastando-lhe o cabelo da fronte. — Já estás em casa.

— Mãe? — A voz da jovem era um suspiro.

— Sim?

— Não deixes que o pai encha o Sam de perguntas. Eu já vos contei o que aconteceu. Saberão mais pela carta do irmão Niall. Mais nada. Sam tem de voltar à vida que tinha. Ele não teria ido se não fosse Thorvald.

— E tu?

Creidhe olhou para ela.

— Eu? — perguntou ela sem expressão.

— Que vais fazer?

— Não sei — disse Creidhe, e fechou os olhos.

 

Durante algum tempo, Nessa pensou que Creidhe chorava a perda de Thorvald, a quem sempre fora profundamente leal desde a infância, a quem seguira até ao fim do mundo. Eyvind fizera o possível por arrancar a verdade a Sam, mas com pouco sucesso. O guerreiro descobriu que Creidhe estivera prisioneira por um breve período de tempo; de que havia a possibilidade de ter sido abusada durante esse tempo. Ao ouvir aquilo, Eyvind quase descarregou a sua fúria sobre Sam por não a ter protegido, por não ter previsto um tal ultraje, mas a dignidade natural e dor óbvia de Sam esfriaram a fúria do homem mais velho. Era evidente que o pescador dera o seu melhor; era evidente, também, que o que acontecera naquele lugar remoto não só magoara Creidhe, como provocara em todos uma mudança profunda.

Thorvald, um condutor de homens: era um pouco difícil de engolir, porque apesar de o rapaz ser inteligente e capaz, era também taciturno, volátil e sujeito a acessos de autodesprezo. Quem seguiria um homem assim? Sam também estava diferente: mais duro, mais velho. E Somerled. Esse era o mais espantoso. Somerled, um eremita. Somerled, um cristão que, revelara Margaret depois de ter lido a carta, preferira a solidão e o saber depois de ter corrido o risco de se deixar seduzir, de novo, pelo poder. Somerled cumprira, de fato, a sua promessa; tornara-se o homem que Eyvind lhe rogara que fosse. Era estranho e prodigioso. Era profundamente comovedor, como se, finalmente, um artista terminasse uma tapeçaria e o trabalho se revelasse uma coisa bela, quando a princípio tudo levaria a crer que fosse uma coisa torta, feia. Somerled devia ser um homem verdadeiramente feliz, pensou Eyvind apesar da ansiedade que sentia por Nessa, para não falar em Creidhe. A mudança nela era chocante, assustadora; deixava-o profundamente inquieto.

Todos concordaram que ela precisava de tempo. Assim, o mês das colheitas veio e terminou, os dias ficaram cada vez mais pequenos e os ventos mais frios e a família movimentou-se à sua volta com cuidado, evitando perguntas estranhas, exigindo-lhe pouco, poupando-lhe a necessidade de comparecer em reuniões públicas, como casamentos e dias de festa. E viram, com grande desgosto, que o tempo, por si só, não curava a dor que Creidhe sofria. A jovem fazia a sua rotina diária mais ou menos normal, ajudando na casa e indo a casa de Margaret para fiar ou tecer. Andava sempre asseada e falava a todos com uma cortesia distante. Mas parecia uma imitação da velha Creidhe, outra rapariga tentando imitar aquela que eles conheciam e amavam e que não sabia que, em tempos, ela fora o centro vibrante das atenções quando entrava num lugar qualquer. Não era o atributo da beleza, ou do encanto, da gentileza, ou da bondade, eram todos eles juntos com mais qualquer coisa, algo esquivo cujo nome ninguém conhecia, mas cuja perda todos lamentavam.

Com o tempo, habituaram-se. Enquanto Creidhe estivera ausente, Brona assumira muitas das responsabilidades domésticas da irmã e agora mantinha-as, planejando-as antecipadamente para que tudo estivesse sempre pronto em caso de visitas, supervisionava Ingigerd, preparava refeições especiais. Era para Brona que a pequena Ingi se virava, depois da mãe; esta irmã mais nova era tímida em relação à nova Creidhe, que não gostava de contar histórias, de mimos ou de lhe pentear os longos cabelos. Quanto a Nessa, fechava-se cada vez mais sobre si própria à medida que a data do parto se aproximava. A dama escondia a sua preocupação para não preocupar Eyvind mais do que o necessário. E Eyvind deixou de procurar possíveis pretendentes quando viajava pelas ilhas consultando os proprietários de terras e participando em conselhos, porque era evidente que já não era apropriado e talvez nunca mais fosse. Faltava Brona, claro. Todos sabiam da preferência de Brona; Sam tornara-se visitante freqüente e se bem que, por vezes, conversasse sozinho com Creidhe e parecesse capaz de lhe animar um pouco as feições, passava a maior parte do tempo a olhar para Brona e ela para ele com uma expressão indesmentível. E Eyvind, que nunca pensara que as filhas de Nessa, descendentes da antiga linhagem real dos Folk, pudessem casar com camponeses ou pescadores, olhava para Creidhe, abatida e desanimada, e para Brona, cintilante de saúde e felicidade e sabia que teria de dizer sim quando Sam, finalmente, conseguisse a coragem para lhe falar no assunto. Mas não já, no entanto; eles que esperassem um pouco e que provassem que o que sentiam era forte e sério. O próximo Verão não estava longe.

Quando faltava apenas um mês para o bebê de Nessa nascer, a filha mais velha de ambos, Eanna, a sacerdotisa, chegou com o seu gato num cesto e instalou-se por algum tempo. A sua presença trouxe a calma; a jovem mulher sábia era profundamente respeitada nas ilhas como guardiã dos costumes antigos dos Folk, uma fé que perdurara ao lado de outras mais novas, como os rituais de Odin, de Thor e de Freyr trazidos pelo povo de Eyvind e os ensinamentos cristãos espalhados pelo irmão Tadhg e seus camaradas. A família de Eyvind seguia os velhos costumes apesar da juventude do guerreiro em Rogaland e da sua vida como guerreiro de Thor. As ilhas tinham-no mudado; Nessa mudara-o.

Eanna consultara os antepassados a propósito de Creidhe. Enquanto observava Creidhe, a sacerdotisa guardava algumas imagens na mente; pensava em certos conhecimentos que guardara para si até ali. Devido à sua posição, Eanna estava instalada numa pequena casa à parte, mas tomava as refeições com a família. O gato desertara e aproximara-se de Ingi, que andava com ele por toda a parte, mostrando-lhe os cantos da casa, o pátio, os estábulos e os campos murados. Eanna observava. A sua família era infeliz, profundamente, apesar da aparência. Havia segredos. Algumas coisas estavam destinadas a permanecer secretas e assim deviam continuar. Mas não aquilo, fosse o que fosse. Aquilo estava a destruir a sua família. Nessa andava pálida e ansiosa, Eyvind demasiado calado, a criança passava por Creidhe em bicos dos pés, como se esta fosse um fantasma. Brona era a única que parecia feliz, mas até ela parecia cansada.

Eanna tentou a sua sorte uma tarde, quando Nessa tinha ido descansar por ordem do marido e as mulheres andavam ocupadas nos campos. Brona levara Ingi e fora apanhar ovos; um olhar da irmã mais velha dissera-lhe que devia demorar-se. Eanna sentou-se com Creidhe num banco em frente das chamas da lareira de turfa.

— Eu preciso... — começou Creidhe a dizer, levantando-se.

— Não. — A voz de Eanna era calma mas firme; um tom que não admitia réplica. — Deixa-te estar aí. Quero falar contigo.

Creidhe voltou a sentar-se, muda. Os seus cabelos louros estavam presos atrás com rigidez. Não havia cor nas suas faces. As suas mãos torciam-se no colo.

— Brona disse-me que tu deixaste de bordar a Jornada — disse Eanna.

Creidhe pestanejou; a pergunta espantou-a.

— Porquê, Creidhe?

Creidhe começou a falar, hesitou e tentou de novo.

— Não consigo — disse ela, — sem forças.

— Não consegues? Por que não?

— Porque... porque não consigo ver o que vem a seguir. — Havia um som sem esperança na voz de Creidhe, uma terrível resignação. — Vejo tudo branco, como se tivesse feito qualquer coisa mal e tivesse parado. Não sei o que hei de fazer.

Eanna suspeitou que ainda ninguém conseguira mais de Creidhe desde que ela regressara a casa. A gentileza da família não fora de grande ajuda. Talvez fosse melhor adotar outra atitude.

— Isso é muito egoísta da tua parte, Creidhe.

Creidhe não respondeu.

— E a mãe? A última coisa de que ela precisa neste momento é de ti, a vaguear pela casa preocupada apenas com as tuas tristezas, quando tem uma criança com que se preocupar. Ela anda tão preocupada contigo que nem dorme e precisa muito de dormir. Tu não eras egoísta.

— Ela não precisa de se preocupar. Não precisa de se preocupar comigo. — O tom de voz de Creidhe não mudara.

— Não? Nesse caso, tenta comportar-te um pouco mais como uma mulher viva e menos como uma boneca de trapos, sim? Se parasses um pouco para pensar na mãe, verias que ela anda aterrorizada com o nascimento, com medo que o bebê morra, com medo que a Tribo das Focas lhe roube outro filho como pagamento pelo favor que lhe fez em tempos. E o pai tem medo de a perder a ela ou ao bebê, ou ambos. Ingi parece fingir que tu não estás aqui: já viste como ela te evita? Isso é bom para uma criança? Fosse o que fosse que tenha acontecido, tu deves falar, atirar tudo cá para fora. Estás a magoar toda a gente. Isso tem de parar.

Creidhe olhou para as mãos e não disse nada.

— Responde-me, Creidhe. — De novo aquele tom: não a voz de uma irmã, antes a de uma sacerdotisa, idosa e exigente.

— Eles deviam dar-se por felizes — disse Creidhe, olhando para cima. — Sam e eu regressamos sãos e salvos, Thorvald é feliz, Somerled tornou-se um homem bom... Que mais querem eles?

— Querem a velha Creidhe. Querem que tudo seja como antes.

— A velha Creidhe já não existe. Morreu. Morreu quando... quando...

Qualquer coisa, pensou Eanna. Por fim, qualquer coisa, se bem que a irmã tivesse mordido o lábio e tivesse deixado de falar.

— Quando Thorvald decidiu ficar e te mandou para casa? — arriscou ela. — Pelo menos, é o que a mãe pensa.

Creidhe olhou para ela com os olhos muito abertos, surpreendida.

— Thorvald? — repetiu ela.

— Pareces espantada — disse Eanna, secamente. — No entanto, passaste a tua infância a segui-lo por todo o lado como um escravo fiel. Foste com ele nessa viagem louca. É evidente que esperavas qualquer coisa disso tudo. — Era cruel, talvez. Mas se a crueldade forçasse Creidhe a acordar, acenderia uma centelha nos seus olhos, nem que fosse de ira, então, usá-la-ia.

— Eu não casava com Thorvald nem que ele fosse o último homem do mundo — disse Creidhe naquela voz miúda, fria. — Sinto-me feliz por ele ter encontrado o pai e um futuro, para bem da tia Margaret. Mas é só isso. Espero nunca mais o ver na minha vida.

— Creidhe — disse Eanna calmamente. — Thorvald magoou-te? Foi ele que...?

— Que o quê? — Era evidente que Creidhe ia facilitar as coisas à irmã.

— Sam disse qualquer coisa... sugeriu... ao pai, que tinhas sido magoada, de certo modo, quando estiveste prisioneira... que talvez algum homem te tivesse forçado...

— Sam não sabe nada. Não percebe nada de nada. E Thorvald também não. Tudo o que ele quis foi vencer uma guerra e impressionar o pai. Nem no fim compreendeu o que fez quando... quando...

Eanna aproximou-se e pegou nas mãos da irmã. Estavam tão frias como as de um cadáver.

— Conta-me, Creidhe. O que é que ele fez? Que coisa foi essa tão terrível, que tu nem te atreves a bordá-la na Jornada?

Creidhe abanou a cabeça e fechou os olhos.

— Não posso. Não consigo contar-te. De certo modo, se não contar, se não partilhar isto, posso guardá-lo... guardá-los... como eles eram, vivos dentro de mim, no fundo da minha alma. Consigo vê-los e ouvi-los... Se falar deles, desaparecem e se isso acontecer não sei se conseguirei continuar, nem sequer a fingir...

Finalmente, a verdade. Posso guardá-lo... Não Thorvald, nem Sam, mas outro. E Eanna pensou que talvez soubesse quem era.

— Procurei no fogo por ti — disse ela lentamente. — Fiz um padrão de bom augúrio, procurei o conselho da mãe Terra. Tenho coisas para te dizer, irmã, se as quiseres ouvir.

— Não é preciso — disse Creidhe sem expressão. — É demasiado tarde para mudar as coisas.

— Nunca é tarde — disse Eanna. — As coisas estão sempre a mudar. E não o fiz por ti, acredita-me, fi-lo pela mãe e por Margaret, ambas tão ansiosas pelos filhos que tanto amam. Os antepassados têm muito a dizer a teu respeito e da tua viagem. Parece-me que a verdade é mais complexa do que a história que tu contaste à família.

— Eu não menti.

— Talvez não; e Sam é leal. Disseram-me que ele se recusa a preencher os espaços em branco. Eu vi uma criança na história, uma criança poderosa e um guerreiro jovem. Não falei a ninguém destes dois por serem o que são. A mãe tem razão para estar ansiosa por causa da Tribo das Focas. Como já te disse, ela tem medo por causa do bebê.

— Isso é um disparate! — Creidhe desprendeu as mãos das de Eanna. — Eles nunca o levariam e também não levaram Kinart! Os da Tribo das Focas amam as ilhas e protegem todos aqueles que honram os poderes antigos. Eles dão valor à vida; não roubam crianças. Isso são histórias antigas contadas à lareira às crianças para as manter afastadas das praias perigosas. Eles não farão mal à mãe ou ao bebê.

— Pareces muito segura disso. — Eanna observou Creidhe de perto.

— Tenho a certeza. Ele disse-me.

— Quem?

Silêncio. Creidhe fechou a boca, que se transformou numa linha fina.

— Deixa-me dizer-te uma coisa, Creidhe. Eu tive uma visão na última lua cheia, quando desenhei um círculo e me mantive vigilante durante toda a noite. Vi um homem, selvagem e feroz, despedaçando rochas com um martelo, trabalhando como se quisesse associar todo o seu ser ao que estava a fazer. Usava umas roupas diferentes, decoradas com muitas penas. Era um homem muito esbelto, desgastado pelo tempo, com cabelos escuros atados atrás com uma fita de pele. Jovem; pouco mais velho do que tu. A encosta onde ele estava era íngreme e coberta de erva; voavam muitas aves por cima. Não percebi o que ele estava a fazer, talvez um muro para abrigar algumas ovelhas, talvez uma cabana para o gado. Chovia e ele continuava a trabalhar como se não a sentisse. Falava para si próprio enquanto trabalhava e eu percebi o teu nome. Muitas vezes. Ele repetia-o como se fosse uma espécie de talismã. Eu já o tinha visto antes, em visões. A última vez também te vi a ti bordando a Jornada e com uma criança toda esfarrapada nos joelhos.

Eanna olhou para a irmã. O momento era parecido com aquele em que um dique começa a transbordar; primeiro, tremeu uma lágrima nos olhos azuis, que lhe caiu para a face, logo seguida por outra, depois outra, depois outra e, num silêncio total, Creidhe levou as mãos ao rosto e chorou. Eanna não disse nada. Não lhe ofereceu o conforto de uma carícia ou de umas palavras. Ambas sabiam que as visões dos antepassados mostravam o antes, o agora e o depois misturados, juntamente com um cruel talvez e um podia ter sido. Cada um interpretava o seu significado como se estivesse a resolver um quebra-cabeças, um quebra-cabeças com muitas soluções possíveis.

Os ombros de Creidhe tremiam e a jovem continuava com o rosto metido nas mãos, como se tentasse conter o fluxo da dor. Tinha guardado aquelas lágrimas durante muito tempo.

— A Tribo das Focas — disse Eanna, finalmente. — Estás a chorar por um dos da Tribo das Focas.

— Não precisas de te preocupar — disse Creidhe meio sufocada. — Ele está morto. Thorvald matou-o.

Eanna absorveu aquilo. Creidhe dissera: Ele está morto,

— E a criança? — perguntou ela.

— Está bem e feliz... um grande vidente... salvou o povo e conseguiu a paz. Mas foi demasiado tarde para Guardião.

— Guardião. É esse o nome? E tu ama-o. — Não havia julgamento naquele tom de voz.

— Com toda a minha alma. — Creidhe disse aquelas palavras num tom de voz tal, que a irmã sentiu um formigueiro na espinha; não era a voz de uma rapariga apaixonada, era um juramento profundo, real. — Nunca pensei que um laço assim fosse possível... Ele não merecia morrer, era tão corajoso, tão leal e tão forte...

— Viste-o morrer? Testemunhaste-o? — Cruel, de novo, mas tinha de aproveitar a vantagem que conseguira; Creidhe tinha de lhe contar tudo.

— Não. Eu estava inconsciente. Disseram-me mais tarde. Thorvald. Foi ele que me disse. Eles eram inimigos. Um jurou proteger Pequenino... o vidente... e o outro jurou caçá-lo. Guardião morreu por minha culpa. — A voz muito baixa, agora, como a de uma criança. — Tentei detê-los. Se não o tivesse feito, Guardião teria ganho. Ele era muito melhor. Nunca perdeu uma batalha, até àquele dia.

— Nesse caso, Thorvald teria morrido. — Nenhuma resposta.

— Sabes, Creidhe — disse Eanna cuidadosamente — como são difíceis de decifrar as mensagens dos antepassados; podemos passar uma vida inteira sem o conseguirmos. Na verdade, alguns de nós não fazem outra coisa. Diz-me uma coisa, será possível tu estares errada? Achas que será possível esse homem estar vivo? — Eanna não contou a Creidhe a sua própria interpretação da visão, nem a sua quase certeza de que ela lhe mostrara o agora, não o antes. Creidhe abanou a cabeça.

— Por que havia Thorvald de mentir? Por que havia de poupar a vida de Guardião? Thorvald odiava-o pelo que ele fizera, por todos os homens que ele matara ao longo dos anos, por fazer com que a guerra continuasse. Nunca compreendeu por que razão Guardião o fez, nem sequer sabia o que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz tencionavam fazer a Pequenino. É claro que o matou.

— Mesmo assim.

— Não tentes consolar-me com falsas esperanças, Eanna. É uma crueldade. Desejaria ter as tuas visões, ouvi-las, encontrar consolo nelas. Mas não acredito nelas. Não vejo nenhuma razão para Thorvald me dizer aquilo se não fosse verdade.

— Porque tinha ciúmes? — perguntou Eanna suavemente. Creidhe olhou para ela por um momento e depois desatou a rir perdidamente, um som que gelou a irmã, de tal modo era amargo.

— Thorvald? Com ciúmes? Ele nunca olhou para mim, sequer. Thorvald só gosta dele mesmo.

— Não houve alguém que disse que ele agora é um condutor de homens? Respeitado? Um homem egoísta não pode ser um condutor de homens.

— Talvez tenha mudado — concordou Creidhe relutantemente. — Um pouco, só.

— E também pode ter mudado no que respeita ao que sente por ti. Isso faria alguma diferença para ti, Creidhe?

— Nada pode fazer diferença.

Eanna respirou fundo e deixou sair um suspiro. Não passaria tudo daquilo, de um argumento atrás do outro, sempre à roda?

— Creidhe — disse de novo a sacerdotisa — eu quero fazer-te um pedido e dar-te um conselho. Não te vou dizer que deixes de ter piedade de ti própria e que arranjes outro homem; pela tua voz, percebo que este foi o único, e lamento, se bem que, ao contrário de ti, eu ache que nada é certo. Peço-te, como tua irmã, que fales com a mãe hoje, que a tranqüilizes e que lhe prometas que a ajudas quando do nascimento, como sempre. Pode parecer-nos óbvio, mas ela precisa de o ouvir da tua boca. E tens de lhe falar da Tribo das Focas.

— Mas...

— Não interessa quanto lhe dizes ou como lhe dizes. Certifica-te, apenas, de que ela deixa de ter medo. Ela precisa de ti, Creidhe. Todos nós precisamos.

— Tu não, certamente. — O tom de voz era seco.

— Ficarias surpreendida — disse Eanna. — E agora o pedido. Quero que comeces outra vez a trabalhar na Jornada.

— Não posso...

— Tu disseste que não sabias como iria ser daqui para a frente. Mas eu acho que há uma parte do teu trabalho que tu és capaz de fazer, mas que não queres fazer porque tens medo. Se ele morreu e a criança está salva, de que tens medo? — Aquilo também não foi nada caridoso; as faces pálidas de Creidhe ainda ficaram mais pálidas. — Por isso, tira o teu trabalho cá para fora, tira as tuas linhas e faz essa pequena parte, pelo menos. E escuta o que os antepassados te murmuram ao ouvido, irmã. Por mais escuro que esteja o dia, por mais difícil que seja o caminho, eles estão sempre presentes. Arranja espaço no teu coração para eles, por mais destroçado e triste que esteja. Talvez fiques surpreendida.

 

Esta vida contemplativa é muito mais segura, acredita-me, tanto para mim como para aqueles que se cruzam no meu caminho. Não esqueço o passado; lembro-me do que fui. Ao olhar para ele, não sinto a falta do que outros homens têm: o calor da família, a segurança do lar e da comunidade e um lugar no mundo dos homens. Essa é a vida do nosso filho, não a minha. Ele não precisa de ter medo de mim. Nunca o desafiaria. Ele já é um homem melhor do que eu alguma vez serei e agradeço-te por isso do fundo do coração. Tratei-te mal; não sabia mais. Em troca, deste-me um presente sem preço. Prometo-te que o ajudarei, que o aconselharei e que o amarei como um bom pai deve fazer. É tudo o que te posso dar como recompensa.

Quero que saibas que a minha vida de trevas se transformou em luz não só por causa do regresso deste filho que não sabia que tinha, mas também por causa do amor e orientação de um Deus cuja existência, até ao último Verão, era, para mim, um mistério maior do que Thorvald. Não sou digno de tanta alegria: festejo, maravilhado, cada dia. Com toda a sinceridade, desejo-te uma vida de igual contentamento. Por me teres dado este filho e por o teres criado até se tornar no homem que é, não mereces menos.

               EXTRATO DE UMA CARTA

 

Era novamente Primavera: passara-se um ano desde que Margaret dera a carta ao filho e o enviara a correr, através do oceano, em busca do homem que era o seu pai. Agora, os montes verdes de Hrossey tinham cordeiros novos e nas falésias a sul de Whaliback os dentes-de-leão floresciam em grande profusão sob o calor suave do sol.

Creidhe estava cansada de tecer. Fizera um certo número de cobertores simples, pesados, e uma tapeçaria para ser oferecida a um nobre em Rogaland. Eyvind ia lá no Verão com uma delegação em busca de oportunidades de comércio junto dos Jaris da região. O desenho da tapeçaria não era da sua autoria; as idéias que em tempos tinham sido a sua força tinham desertado da sua mente. A jovem já não procurava criar novos tons, novas cores, ou orlas intrincadas. Fizera o que Margaret lhe pedira e estava bem-feito, mas não era obra sua. Fosse o que fosse que tivesse perdido quando Guardião morrera, era o mesmo que criara os seus belos e mágicos trabalhos. Não valia a pena continuar a tentar. Não conseguia.

As costas doíam-lhe e os olhos estavam fartos da tarefa monótona: o trabalho era simples, tinha a cor natural da lã do rebanho de Margaret e a única habilidade requerida era manter a urdidura justa. Creidhe levantou-se, espreguiçou-se e caminhou ao longo da grande sala da casa de Margaret. De Margaret e de Ash. Tinha de se habituar ao fato de que eles se tinham casado; tinha de se acostumar à visão espantosa de uma Margaret feliz. Aqueles dois, que tinham partilhado a casa como patroa e empregado, tinham-se transformado pelo que acontecera. Pareciam um par de jovens apaixonados, tocando-se mutuamente à passagem, trocando sorrisos tímidos e murmurando palavras doces. Creidhe vira corar as feições de Margaret; vira um certo olhar nos olhos cinzentos de Ash que significavam, muito simplesmente, um desejo ardente. Receberam Creidhe em sua casa com alegria, como sempre fora o caso; preocupavam-se com ela, tal como os pais. Por outro lado, também era evidente, quando Creidhe se despedia e ia para casa, que ficavam satisfeitos por ficarem sozinhos, com exceção dos discretos e bem treinados homens e mulheres da herdade. Os laços entre Ash e Margaret podiam interpretar-se no modo como se moviam, como olhavam um para o outro, em cada nota das suas vozes.

Creidhe sentia-se feliz por eles. Mas, por baixo dessa felicidade, havia algo difícil de suportar, uma recordação dolorosa da alegria que podia existir na descoberta do par perfeito e no golpe mortal sofrido quando esse par morre. A jovem tentara, arduamente, abstrair-se desse sentimento. Tentara ser um pouco como Margaret em tempos fora, calma, distante, atravessando os dias imune à dor ou à alegria. Mas Creidhe não conseguira. Bastava uma coisa pequena, observar, por exemplo, Sam e Brona partilhando uma anedota à lareira, ou a maneira como o pai segurava o recém-nascido nos braços, como se o bebê fosse um tesouro mais valioso do que todo o ouro na caverna de um dragão, ou reparar na mão áspera de Ash estendendo-se para tocar nos cabelos ruivos da mulher num gesto de ternura. Coisas como aquelas reavivavam a dor de Creidhe de tal modo, que a jovem sentia o coração despedaçado, incapaz de suportar a sua intensidade.

Um ano. Era evidente que a família esperava que ela já estivesse melhor, que tivesse começado a esquecer. Mas tudo parecera piorar, tudo a fazia recordar-se. O nascimento do pequeno irmão, Eirik: fora uma ocasião de alegria porque, uma vez a sua mãe tranqüilizada a propósito da Tribo das Focas, de uma maneira um tanto vaga, o parto decorrera calma e facilmente. Eirik era um rapaz robusto de cabelos louros, bem constituído; saía ao Pele-de-Lobo que era o seu pai. E Creidhe pensara em Guardião, que tão bem tomara conta do seu pequeno e frágil parente; Guardião, a quem a lâmina rápida de Thorvald roubara a possibilidade de ter um filho ou uma filha para amar como amara Pequenino. A jovem agarrara-se à esperança, durante algum tempo, de que talvez transportasse no ventre o seu filho, mas não fora assim. Fora um dia bem negro, aquele em que o período lhe aparecera; tão negro que quase contara toda a verdade a Brona, para poder dizer em voz alta o nome de Guardião. Mas não o fizera; Brona sentia-se feliz, isso fazia Sam feliz e por que razão haveria Creidhe de estragar essa alegria merecida? Eles não tinham culpa do que lhe acontecera. Além disso, manter a verdade dentro de si, secreta, parecia-lhe necessário; o pior seria quando as recordações começassem a desvanecer-se. Eram tudo o que lhe restava.

A jovem sentou-se nos degraus com o saco a seu lado e deixou que o sol tépido da tarde a aquecesse. Em breve, iria para casa; estava um dia bom para caminhar e as viagens solitárias de sua casa até a casa de Margaret e a volta eram, de certo modo, calmantes. Sob o grande céu, com a música do mar nos ouvidos e a curva suave da encosta na sua frente, era capaz de se lembrar de como era pequena na memória dos antepassados, quão minúscula e insignificante era a sua dor na longa história do seu povo. Não lhe provocava alívio, mas fazia com que a aceitação se aproximasse mais. Ainda não a conseguira, porque a aceitação parecia-lhe ser a morte da esperança. E, sem esperança, de que valia a pena viver? A princípio, pensara que não tinha esperança nenhuma, mas não podia ser: se a esperança não existisse, algures no interior do seu espírito, porque se dera ao trabalho de regressar a casa? Por que não atirar-se de uma falésia, ou cortar os pulsos com uma faca, pondo fim à dor de uma vez por todas?

Tivera razões para continuar, claro: ajudar o filho da sua mãe a nascer, ver Sam e Brona casados e evitar mais desgostos à sua família. Mas ela sabia que, mesmo sem elas, nunca conseguiria pôr fim à sua vida. A vida era demasiado preciosa para ser tratada com tanto desprezo. Cabia aos antepassados decidir quanto tempo devia durar um ser humano, não aos homens, ou às mulheres. Se ainda estava viva, apesar da dor, era porque havia um propósito. E propósito significava, de certo modo, esperança.

Apesar disso, não seguira os conselhos da sua irmã Eanna, pelo menos não na totalidade. Tirara a Jornada do saco, olhara para ela e guardara-a de novo. Renovara a provisão de lãs coloridas, substituíra agulhas perdidas e afiara a sua pequena tesoura. Mas não bordara um único ponto. Os seus dedos pareciam não ter vontade para essa tarefa e a sua mente não tinha um padrão de idéias.

O Sol estava quente; o seu calor fazia-lhe doer menos as costas e fazia-lhe reviver as mãos entorpecidas. Por cima, passavam pequenas nuvens gordas; a jovem podia ver a sua sombra através da encosta, dos diques e dos aglomerados rochosos. Luz... sombra... luz... sombra... Uma gaivota passou-lhe por cima, gritando alto, com voz áspera. Uma voz silenciosa, feroz no seu apelo, ouviu-se por trás daquele chamamento, gelando-lhe o sangue. Borda-o no teu trabalho, agora, agora! Pequenino acreditava, assim como Guardião. Seria possível que também Eanna, uma mulher sábia, acreditasse que Creidhe, com a sua agulha e lãs, tinha um poder extraordinário? Poderia tê-lo salvo? Precisaria apenas, na verdade, de bordar a sua imagem no tecido para determinar se teria seguido em frente, ou se teria tombado sob a espada de Thorvald? Creidhe estremeceu. Não era nenhuma deusa, apesar das palavras doces de Guardião. Era uma mulher de carne e osso, normal, fraca, impotente... e era demasiado tarde.

Uma lógica fria falou no seu coração: a voz da sua irmã, a sacerdotisa, ou talvez a sua própria voz. Se é demasiado tarde, nesse caso não pode provocar dano nenhum. Porque não tentas? Porque não acabas o que começaste? Pelo menos, o esforço de fiar, de tingir e pôr de parte todos esses materiais não terá sido em vão. Pega no teu trabalho outra vez. Enfia a linha na agulha. Vê se a tua mão faz um ponto, ou dois, ou três. Não continuar é o mesmo que morrer. Significa que desististe da vida. Avança com a Jornada. Guardião não merece menos.

Foi estranho descobrir, depois de tanto tempo afastada da mais querida das suas tarefas, que os seus dedos lhe obedeciam instantaneamente, que a escolha da cor, o ponto de partida e o padrão surgiam como sempre na Jornada, sem qualquer decisão da sua parte; como as suas mãos trabalhavam cada vez mais rapidamente e os seus olhos perscrutavam a extensão vazia do tecido cada vez com mais intensidade à medida que as imagens que a encheriam se formavam na sua mente, prontas para serem desenhadas pela agulha e pela lã, dando-lhes uma forma física. A jovem bordou enquanto o Sol ia descendo, a brisa subindo e as ovelhas se dirigiam para o redil com as suas crias. Creidhe bordou enquanto o céu arrefecia e escurecia; a jovem continuou até quase não conseguir distinguir o azul-marinho do verde das searas, o vermelho do púrpura. A certa altura, Ash apareceu com uma capa e colocou-lhe pelos ombros; acendeu uma candeia e pousou-a nos degraus. Um pouco mais tarde, Margaret trouxe-lhe um pouco de sopa e de pão e deixou tudo a seu lado. Um homem passou por ela em direção a norte, provavelmente com uma mensagem para Nessa e Eyvind, para que soubessem que ficava ali naquela noite. À parte essas pequenas coisas, não a perturbaram. A jovem não tinha consciência do tempo, do lugar, do frio ou da escuridão, apenas da necessidade de continuar, uma necessidade tão feroz e urgente como a súplica de Pequenino naquele dia, quando os dois tinham esperado, escondidos enquanto a caçada rugia por cima deles, nas falésias da Ilha das Nuvens.

Creidhe estava enroscada nos degraus quando Ash e Margaret foram ver se tudo estava bem, pouco depois do jantar. A jovem tinha a cabeça encostada a uma mão; a outra apertava o tecido contra o peito. As agulhas e as linhas tinham sido guardadas; Creidhe sempre fora uma trabalhadora ordenada. A sua respiração era calma; as suas longas pestanas estavam pacificamente fechadas sobre os olhos azuis. A jovem dormia como uma criança.

Enquanto Ash transportava Creidhe para a cama que a mulher lhe tinha preparado, Margaret pegou na Jornada, no pequeno saco e levou tudo para dentro, ao abrigo do orvalho. Aquele bordado sempre fora o trabalho mais precioso de Creidhe e o seu maior segredo. Apesar disso, a curiosidade foi superior a Margaret. Quando Ash regressou à sala, ela estava junto da mesa com o tecido de cores delicadas e intrincados pormenores misteriosos aberto diante de si, sob a luz dourada de uma candeia. Margaret estava imóvel, em transe.

— Olha — disse ela simplesmente — olha para isto.

Estava tudo ali: uma vida inteira e também uma outra, secreta, de visões doces, terríveis e estranhas. Estava ali uma família com o seu calor e a sua força, as suas alegrias e tristezas. Depois, as imagens mostravam um passado mais distante, no qual dois rapazes rasgavam a carne com uma faca de caça e faziam um juramento de lealdade. As imagens moviam-se no tempo. Não contavam uma história. Por vezes, nem sequer mostravam o que podia ser real ou possível, mas diziam sempre a verdade. Ninguém, ao olhar para aquele trabalho maravilhoso, podia duvidar. Ali estava a própria Creidhe, voando pelo céu e estendendo os braços para tocar na Lua. Ali, Thorvald, sozinho. A sua pequena figura fora bordada com grande cuidado, os cabelos vermelhos voando ao vento, selvagens, os olhos escuros, a expressão ameaçadora. O barco, a viagem, a imagem das ilhas íngremes, escarpadas, solitárias no oceano vazio. Uma ilha envolta numa bruma perpétua, sobrevoada por aves. Depois, coisas estranhas: olhos escondidos em arbustos, uma parede de rostos gritantes, mãos na água, guiando um pequeno barco através de mares selvagens.

Creidhe deixara um espaço em branco antes de começar de novo, como se a história tivesse uma parte desconhecida, ou ainda não decidida. No lado direito daquele espaço vazio, a jovem bordara o trabalho daquele dia. Uma imagem de tanta alegria e amor que provocou um nó na garganta de Margaret. Um homem e uma mulher voando, ou flutuando, de mãos dadas; ele escuro, esbelto, feroz na aparência; ela arredondada, de olhos azuis, com longos cabelos dourados dançando em redor das feições deslumbradas. Pareciam pairar no ar, ambos e em redor deles uma nuvem de pequenas coisas, coisas belas, como se Creidhe quisesse mostrar ali todas as belezas do mundo, bastava que as pessoas abrissem os olhos para elas: aves de muitas espécies, peixes brilhantes, escaravelhos com carapaças brilhantes. Um animal parecido com um cão, ou um gato, ou talvez uma raposa: Margaret recordava-se de ter visto raposas em Rogaland e aquele animal tinha o mesmo aspecto prudente e os mesmos olhos vivos. Flores, cereais e ervas, musgo e fetos frondosos. Dentes-de-leão vibrantes, rosa-púrpuras, celidónias, ranúnculos amarelos. Homens a trabalhar: um pequeno texto em tinta negra, se bem que Creidhe não soubesse escrever; uma peça de roupa da cor de um dente-de-leão; um par de pequenas botas, de criança. No meio daquele friso circular prodigioso, os dois olhavam um para o outro como se fossem o único homem e única mulher do mundo. Só mais tarde, depois de passado o primeiro choque, é que Margaret reparou noutra figura: na base, sentada de pernas cruzadas em cima de uma pedra, estava uma criança toda esfarrapada a cantar.

— Temos estado completamente enganados — murmurou Margaret, percorrendo com os dedos os cabelos brilhantes da alegre jovem voadora. — Ela não encontrou crueldade e abuso naquela ilha, ela encontrou o amor.

— Encontrou-o e perdeu-o — disse Ash. — Mas, o que é isto? — Ele apontou para a parte em branco, a parte que Creidhe preferira não bordar.

— Não faço idéia — disse Margaret. — Ou não sabe o que aconteceu, ou está relutante em bordá-lo. Talvez ele tenha morrido, ou a tenha mandado embora, se bem que me pareça pouco provável se esta imagem for verdadeira. Eanna é capaz de saber um pouco mais, mas, se é assim, guarda-o para si própria, sempre o fez. O mais certo é a dor de Creidhe não ser por Thorvald; o amor que ela pode ter sentido pelo meu filho eclipsou-se perante isto. Estas imagens têm um poder enorme. É como se os deuses falassem através dela. Compreendo por que razão ela deixou de bordar; e por que razão, assim que começou, só parou quando acabou.

— Pergunto a mim mesmo se é assim — devaneou Ash. — Pergunto a mim mesmo se ela acabou mesmo?

 

Ao fim de um ano nas Ilhas Perdidas, Thorvald já aprendera a ser prudente. Apesar disso, o barco estava pronto, uma cópia quase perfeita do Sea Dove e os homens estavam mortos por testá-lo em mar aberto. Não havia dúvidas de que precisavam de estabelecer contato com outras terras, particularmente com as Ilhas Brilhantes, agora mais conhecidas sob o nome nórdico de Ilhas Orcades, as Ilhas das Focas. Precisavam de madeira para construir barcos — o jovem sabia que Eyvind tinha um acordo com o jarid e Freyrsfjord nesse sentido e de ferro de qualidade. Precisavam de gado para substituir o que se perdera ao longo dos anos de caçada. Não tinham muito para oferecer em troca, mas isso mudaria no futuro; Thorvald trataria disso. Entretanto, uma viagem àquelas ilhas, apenas para encetar as primeiras discussões, era desejável. Uma vez lá, seria melhor se Thorvald encetasse o processo aproximando-se dos homens influentes que conhecia pessoalmente, como Grim e Thord. E com Eyvind. Não tinha muita vontade de se encontrar de novo com Eyvind, mas tinha de o fazer e quanto mais cedo melhor, dissera-lhe Niall. Eyvind estaria zangado, sem dúvida. Mas Creidhe regressara a casa há algum tempo, desde que o Sea Dove tivesse feito boa viagem e o pai dela estaria reconciliado, em parte, com o que Thorvald fizera. Eyvind ainda tinha força suficiente para arrancar a cabeça a um homem com um só golpe, mas isso não queria dizer que o fizesse. O Pele-de-Lobo era um líder; por mais furioso que estivesse por a filha ter fugido, ouvi-lo-ia, certamente. Provavelmente, Creidhe já estava casada e com o primeiro filho a caminho, brincou Ranulf, e teria esquecido Thorvald por completo. Este não respondeu. Tinha assuntos a tratar com Creidhe, assim como com o pai dela, assuntos que lhe ocupavam mais os pensamentos do que desejava.

Partiram na Primavera. Depois de passarem as Ilhas do Norte, rumaram a sul e quando avistaram as Ilhas Brilhantes circundaram a costa oeste até à baía abrigada de Hafnarvagr. Deixaram ali o Swftwing fundeado e arranjaram cavalos para se deslocarem até à casa de Thorvald, a norte. O jovem informou os seus companheiros de que aquela viagem seria feita segundo uma ordem preestabelecida: primeiro a mãe, para que ela não soubesse da sua chegada por outros; depois, enviar uma mensagem a Eyvind e a Nessa, uma mensagem formal dele próprio como emissário das Ilhas Perdidas, pedindo encontros sobre comércio e tratados. Depois, Creidhe, se os seus pais não a tivessem já casado com um nobre qualquer e ela tivesse ido para Caitt, ou para Rogaland. Um encontro a sós com Creidhe. Teria de pedir isso a Nessa.

Aquilo aborrecia-o, irritava-o, era como uma pedra no sapato: a necessidade que tinha dela, a recordação dela, o fato de saber que tinha falhado. O fato de que ela não lhe perdoara: nunca lhe perguntara o que fizera de tão errado, ao ponto de estragar a velha amizade de ambos. O jovem esperava que o tempo, o fato de estar em casa, e o apoio da família a tivessem feito mudar de idéias; que seria da velha Creidhe a recebê-lo à porta da casa dos pais, de braços abertos e com aqueles olhos azuis assestados na sua direção. Havia uma rapariga nas Ilhas Perdidas, filha de um dos líderes da região norte, que aparecera nos últimos dois conselhos em Água Brilhante. Thorvald trocara apenas uma ou duas palavras com ela, mas reparara como ela o fixava, friamente, solenemente, como que a avaliá-lo. A jovem tinha uns cabelos escuros e suaves, uns olhos verdes serenos e não se comportava como as outras raparigas na sua presença, sempre com risinhos e comportamentos tímidos. Ele gostava disso. Gostava dela. Mas não era Creidhe, nem nunca seria.

Até um determinado ponto, tudo correu como planejado. Skapti, Ranulf e Orm soltavam exclamações, maravilhados perante a suavidade e gentileza dos contornos do terreno, das ovelhas gordas e lustrosas, dos campos murados plantados com aveia e centeio luxuriantes. De oeste soprava um vento áspero, transportando chuva; Ranulf, estremecendo, comentou que o clima, pelo menos, era parecido. No entanto, era uma ilha bonita; provavelmente, Knut, disse Orm, encontrara uma mulher e não devia ter vontade nenhuma de regressar a casa.

Até ali, tudo bem. Chegaram a casa de Margaret e desmontaram no pátio. Thorvald sentiu-se nervoso, como se ainda fosse o jovem impulsivo que dirigira palavras de ressentimento à mãe, partindo depois sem qualquer explicação. Quando Ash apareceu na entrada com uma expressão de espanto, os seus modos foram mais bruscos do que era sua intenção.

— Ash, estou a ver que continuas cá. Por favor, diz à minha mãe que estou aqui com três companheiros. Espero que eles possam ficar.

O jovem não sabia ao certo como ia responder Ash; parecia que o empregado, impassível, estava a reprimir um sorriso divertido. Mas Ash não teve oportunidade de lhe responder, porque Margaret apareceu ao lado dele e, um instante mais tarde, corria para Thorvald com maneiras muito pouco próprias de uma dama e o jovem desmontou para sentir os braços dela em redor do pescoço num abraço que ela não lhe dava desde a infância. Quase teria chorado, se fosse essa espécie de homem. Era bom. Era mesmo muito bom. A seu lado, sentiu que Ash dava as boas-vindas aos seus companheiros como se fosse o dono da casa e convidando-os a ficar o tempo que quisessem, já que a casa era grande e podia facilmente receber vários visitantes.

Thorvald ainda só tivera tempo de pestanejar de surpresa quando a sua mãe se afastou, recuou e se aproximou de Ash, agarrando-lhe na mão como uma rapariga apaixonada.

— Estamos casados — disse Margaret com um sorriso novo, que Thorvald achou, foi forçado a admitir, agradável. — Digo-te já, para que não haja mal-entendidos.

— Oh... — Thorvald não encontrou palavras. Em tempos, teria achado a idéia repugnante. A sua própria mãe, lady Margaret, filha de Thorvald, Braço-de-Ferro, casada com um... um empregado? Mas tivera tempo para refletir desde a última Primavera. Como criança e jovem, desprezara a contribuição de Ash para a sua educação, quando tinha de suportar os treinos infindáveis de combate com e sem arma, de equitação e de estratégia. Acabara por compreender, no decorrer da caçada, que sem os ensinamentos de Ash, sem o seu paciente ensino das artes da guerra, ter-lhe-ia sido impossível ganhar a confiança de Hogni, de Skapti e dos outros homens. Nunca os poderia ter liderado em combate. Ash nem sempre fora um empregado. Se ficara junto de Margaret aqueles anos todos, fizera-o por escolha. Thorvald viu naqueles calmos olhos cinzentos, virados para Margaret numa atitude tranqüilizadora, que Ash ficara por amor. Como podia o filho de Margaret mostrar ressentimento perante aquele momento de felicidade? Ele próprio não lhe tinha facilitado as coisas, ou a Ash.

 

— Bem, são boas notícias — disse ele com algum esforço. — Que surpresa. Os meus parabéns aos dois.

— Vens por muito tempo? — perguntou Margaret e Thorvald sentiu-se aliviado por não ter de explicar que a visita seria breve, que nunca regressaria para juntar os cacos da sua velha vida.

— Talvez um ciclo de lua. Preciso de falar sobre comércio; conto-lhe mais assim que estivermos instalados. Mãe, como é que está...?

— Creidhe? Não muito bem, Thorvald. Terrivelmente mudada. Ainda luta para tirar algum sentido daquilo tudo, acho eu. Contou-nos muito pouco. Sam está ótimo. Namora Brona e está feliz como um porco no chiqueiro.

— Creidhe ainda não se casou, então? — Iam a subir os degraus e ele falou em voz baixa, apenas para os ouvidos da mãe. O jovem tentou manter a voz fria e desinteressada.

— Não, Thorvald — disse Margaret, e a ele pareceu-lhe, estranhamente, que ela tinha pena dele. — Ela está muito triste; demasiado triste para pensar nessa perspectiva. Temos andado todos muito preocupados. — Era uma afirmação sem qualquer censura. Depois de entrarem, ele teve de apresentar os companheiros e não pôde perguntar-lhe mais nada.

Enviaram um mensageiro e enquanto esperavam pela resposta o pessoal da casa entrou numa grande e eficiente azáfama, preparando uma ótima refeição de carne assada acompanhada por uma cerveja particularmente boa. Skapti, sorridente, namoriscou as servas; Orm iniciou com Ash uma longa discussão acerca de ovelhas e Ranulf instalou-se confortavelmente à lareira com uma caneca de cerveja na mão e os pés estendidos na direção das chamas. Thorvald passou algumas mensagens à mãe e ouviu algumas novidades. Mais um filho para Eyvind e Nessa; uma decisão para breve: deviam ser estreitados os laços preferencialmente com Rogaland, ou com Caitt? Um grande conselho em Freyrsfjord no Verão, a que Eyvind deveria comparecer, se bem que sentisse alguma relutância em separar-se de Eirik durante tanto tempo: e se a criança aprendia a andar, protestara o guerreiro, e ele não estava presente para ver?

O mensageiro da casa de Eyvind chegou rapidamente; devia ter sido despachado mal o outro chegara. Iriam ter com Eyvind na manhã seguinte. Eyvind não conseguiria reunir todos os proprietários em menos de três dias, mas queria estar com Thorvald a sós no dia seguinte. Nessa e Eyvind estavam contentes por Thorvald ter chegado a casa são e salvo e mandavam cumprimentos a Margaret e a Ash.

Só Skapti foi com ele. Ranulf tinha uma dor de cabeça monstruosa e não pôde sair da cama e Ash quis mostrar a Orm os seus dois melhores carneiros e falar com ele acerca de lã. Thorvald sentia-se um pouco aliviado; o encontro daquele dia não ia ser fácil. Talvez só Skapti tivesse uma idéia do que representava para ele.

Não foi uma cavalgada longa. A chuva tinha cessado; em seu devido tempo chegaram a uma elevação de terreno e diante deles, do outro lado de uma manta de retalhos feita de campos murados de diversas cores, surgiu uma grande casa de telhado de colmo e mais algumas construções em redor de um pátio onde várias pessoas se moviam com propósito, algumas conduzindo cavalos e outras cães pela trela. Thorvald não viu ninguém conhecido. Os dois homens desceram a encosta. Thorvald ensaiou mentalmente o que diria a Eyvind. A barriga agitava-se-lhe, como se não fosse um condutor de homens, antes um jovem tolo apanhado a fazer uma asneira qualquer.

— Thorvald? — disse Skapti em voz baixa. O guerreiro estava a apontar na direção do muro de pedra que rodeava o campo mais exterior onde se podiam ver duas figuras de cestos na mão, baixando-se para apanhar ervas que cresciam na lama, junto de um pequeno regato. Duas figuras; duas não, três, porque uma rapariga transportava um bebê no dorso, atado com um pedaço de tecido, um bebê com os cabelos da mesma cor dos dela. O coração de Thorvald deu um baque e depois voltou a bater. Sem uma palavra, o jovem deu a volta ao cavalo e Skapti seguiu-o. Um pouco mais tarde, ambas as raparigas estavam direitas, vendo-os aproximarem-se.

Os homens foram até ao muro e desmontaram. O silêncio era pesado; Thorvald e Skapti ficaram a olhar para Creidhe, uma Creidhe que quase não reconheceram, porque estava tão magra e pálida que mais parecia um fantasma. Fosse o que fosse que a afligira naqueles últimos dias nas Ilhas Perdidas, não sarara depois do seu regresso. A jovem tinha olheiras e a boca cerrada. A visão da rosada e alegre Brona a seu lado só fazia com que o estado de Creidhe ainda parecesse mais chocante.

Brona encontrou a voz.

— Bem-vindo a casa, Thorvald. Que bom ver-te. E tu...?

— Skapti — resmungou o grande guerreiro, baixando a cabeça numa espécie de cumprimento. — Tu deves ser a irmã de Creidhe.

— Sou. O meu nome é Brona. Estou noiva de Sam. Ouvi falar muito de ti. Não foste tu que venceste Thorvald uma vez, numa luta? Ou talvez tenha sido o teu irmão. Sam disse-me que ele foi um grande guerreiro, também. — Brona olhou de relance para a irmã e depois para Thorvald. — Creidhe, vou levar o cesto para casa, acho que já apanhamos o suficiente. Vou mostrar a Skapti onde é a cavalariça e apresentá-lo à mãe.

Creidhe manteve-se silenciosa, olhando na direção do mar, para longe de Thorvald.

— Queres que leve Eirik? — ofereceu-se Brona.

— Não — disse Creidhe sem se virar. — Ele está a dormir. Eu levo-o. — Na verdade, o bebê dormia profunda e pacificamente no dorso da irmã com a cabeça loura e pequena encostada ao pescoço dela e com um polegar na boca. As suas pálpebras agitavam-se suavemente. O bebê estava a sonhar.

Brona afastou-se em passo vivo na direção da casa. Skapti seguiu-a, conduzindo os dois cavalos pela brida. A jovem não sabia se Eyvind queria ou não, mas Creidhe e Thorvald ficaram os dois sozinhos.

— Que belo bebê — comentou ele, olhando para o petiz. — Os teus pais devem ter ficado contentes.

A jovem não disse nada. O silêncio prolongou-se.

— Estás com um aspecto horrível — disse Thorvald finalmente. — Doente. Triste. Não sei o que hei de dizer-te. — Era verdade; não valia a pena disfarçar.

— Não precisas de dizer nada, Thorvald. — A voz de Creidhe era sem expressão.

O jovem tentou outra abordagem.

— O meu pai está bem. O irmão Breccan também. Ele, agora, tem um pequeno grupo de seguidores em Água Brilhante. Tem esperança de batizar três ou quatro no próximo Natal. Ambos mandam cumprimentos.

Creidhe recebeu a notícia com um aceno de cabeça. Era melhor do que nada.

— Com que então, Sam e Brona vão casar-se — disse ele. — O teu pai concorda? Surpreende-me. Sam e eu sempre acreditamos que Eyvind não aceitaria senão um Jarl para ti e para as tuas irmãs. Fico contente por Sam; é bom homem e um grande amigo. Sempre pensei que era a ti que ele preferia.

Então, ela olhou para ele com uns olhos muito grandes e uma expressão desconfiada.

— É estranho, não é, como pensamos que sabemos aquilo que nos interessa — disse ela. — E como nos podemos enganar. Durante muito tempo, pensei que eras o único homem no mundo. Se via uma rapariga a olhar demasiado para ti, apetecia-me matá-la. Depois, durante algum tempo, desprezei-te. Agora, só gostaria que te fosses embora e que ficasses longe de mim.

Durante uns momentos, Thorvald não conseguiu dizer nada. As palavras dela tinham-no magoado mais do que poderia imaginar.

Creidhe voltou a olhar para longe, para oeste, sem expressão nas feições.

— Tornaste bem claro o que pensas de mim — conseguiu ele dizer, finalmente — e suponho que tenho de o aceitar, se bem que esperasse... tinha uma leve esperança de que as coisas pudessem ser um pouco diferentes entre nós, que talvez pudessem ser como eram antes...

— E como era isso, Thorvald? Tu a fazeres a tua vida e eu atrás de ti, invisível até tu achares que precisavas de ser consolado? Era isso que esperavas? — Ela virara-se para ele; a ira nos seus olhos era, pelo menos, melhor do que a simples indiferença anterior. — Tenho pena da rapariga que casar contigo. Ela estará sempre em segundo lugar, ou talvez em terceiro. Depois de ti e da missão que tiveres em mente no momento.

Thorvald engoliu em seco.

— Isso nem parece teu, Creidhe. — O jovem sabia que as suas palavras eram frágeis.

— Parece sim. Simplesmente, já não sou o que era. Se não gostas do que sou agora, procura uma razão na tua maneira de ser. Mas não interessa. Depois de hoje, nunca mais nos voltaremos a ver.

— Creidhe! — A palavra saiu, vibrante de sentimento; o jovem não conseguiu evitá-la. — Não digas isso!

— Já disse.

— Pelo menos, diz-me... pelo menos, dá-me uma hipótese...

— Dizer-te o quê? — A voz dela era fria e tensa.

— O que eu fiz de tão terrível, o que não pode ser perdoado. Esperava mais amizade da tua parte. Pelos vistos, estava enganado. Mas perder a tua amizade toda é... é... — Thorvald parou, alarmado por ouvir as suas próprias palavras. E considerava-se ele um condutor de homens.

— Perder uma parte de ti próprio — disse Creidhe calmamente. — Não acredito que ainda não tenhas percebido isso, Thorvald. Sempre foste tão inteligente, tão bom em quebra-cabeças. Terias entregado Máscara-de-Raposa Àqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz, se bem que a intenção deles fosse cegá-lo e estropiá-lo. Tudo para tua glória. Isso já foi suficientemente mau. Ao raptares o vidente, limitaste-te, apenas, a ferir-me profundamente. Mas mataste o homem que era a minha outra metade. Arrebataste-lhe a felicidade, assim como a minha, com um único golpe da tua espada. Por tua causa, só tenho meia vida. Por tua causa Guardião nunca conhecerá uma existência para além do horror daqueles anos na ilha e dos dias sombrios da caçada. Foi o que tu fizeste. Mas, agora, já não podes mudar nada. Não o podes devolver. — A voz dela parecia a de uma vidente, profunda e estridente. As suas palavras fizeram vacilar o coração do jovem. Ela estava enganada a respeito dele, profundamente enganada, e ele queria explicar. Queria dizer-lhe tudo, como a sua missão tinha começado, talvez, apenas para impressionar Asgrim, para provar o seu valor, mas que se transformara noutra coisa muito maior: a vontade de conseguir a paz, devolver aos homens o orgulho perdido, construir uma nova comunidade. Ansiava por lhe contar tudo o que aprendera. Mas já não tinha importância. Não o podes devolver, dissera ela. Se percebera bem as suas palavras, podia, sim. Podia devolver-lhe a única coisa cuja perda lhe esvaziara a vida e lhe retirara a alegria dos olhos; mas ao fazê-lo, perdê-la-ia para sempre.

— Creidhe — disse ele cuidadosamente, sabendo que não tinha outra hipótese — em nome dos laços que nos uniram em tempos, da amizade que partilhamos durante aqueles anos todos, peço-te que me escutes. Isto é importante: não te apercebes de como é importante. Por favor, não me vires as costas; por favor, fala. Quem é esse Guardião? Estavas a referir-te ao jovem que te tinha prisioneira na Ilha das Nuvens? O filho de Asgrim, Erling?

— Ele não gostava desse nome — disse Creidhe calmamente. Thorvald apercebeu-se da mudança de tom; suavizara-se, ficara mais quente. — Ele chamava-se a si próprio Guardião, porque era esse o objetivo da sua vida, proteger o filho da irmã. Ele chamava à criança Pequenino. Nunca Máscara-de-Raposa: vivia no horror do que Aqueles-Cujo-Nome-Não-Se-Diz fariam ao rapaz se lhe pusessem as mãos em cima.

— No fim, estava errado.

— Errado, sim; mas não viveu para o descobrir. E eles quase o fizeram.

— Se não fosses tu. Foste muito corajosa naquele dia. Parecias uma deusa.

Então, aconteceu algo inexplicável: num total silêncio, as lágrimas começaram a cair pelas faces de Creidhe abaixo. A jovem levou as mãos ao rosto para as enxugar, como qualquer criança. No seu dorso, o seu pequeno irmão continuava a dormir, esquecido. Thorvald ficou petrificado; aquela mudança súbita, primeiro fria e depois aquele fluxo de lágrimas, encheu-o de angústia. Ela era a sua maior amiga e não lhe podia tocar, não lhe podia oferecer um abraço de consolação. Ela detestava-o. Dissera-o.

— Creidhe. — A sua voz era insistente. — Pára. Pára de chorar, por favor, não consigo suportar. E ouve-me. Tens de me ouvir. — A sua mente já estava na ilha remota, embebida nos caprichos da Corrente dos Loucos, na natureza selvagem do tipo, na quantidade de homens mortos: era evidente que aquilo era impossível, ridículo. Mas tinha de lhe dizer. — Senta-te aqui. — O jovem procurou um lenço na algibeira e entregou-lhe com as mãos a tremer. — Assim está melhor. Deixa-me ver a tua cara, Creidhe. Tens de olhar para mim enquanto eu te digo isto.

A jovem ergueu os olhos marejados de lágrimas para ele; as suas faces estavam molhadas e os seus lábios tremiam.

— Menti-te, Creidhe. Só o fiz uma vez e fi-lo porque pensei ser o melhor para ti. Pensei que tinhas sido feito prisioneira e que tinhas sido violada. Pensei que o teu comportamento era devido a isso: choque e terror. Por isso, menti.

— O que... o que é que estás a dizer?

— Tê-lo-ia morto. Por conta dos quatro homens que morreram durante a caçada; ao longo dos anos, ele matou muitos mais, homens bons, homens honestos como o irmão de Skapti, que morreu lenta e cruelmente, envenenado. Pensei que o homem tinha abusado de ti. Mantive-me pronto, de espada na mão, enquanto ele jazia ali aos meus pés, inconsciente. Mas, não te esqueças, então, ainda acreditava que Asgrim era meu pai. Isso fazia daquele Erling uma espécie de irmão. Quando chegou a altura, não consegui. Não podia matar o meu irmão. Arrastei-o para dentro da cabana e deixei-o lá.

Creidhe estava muda, os olhos muito abertos do choque, fixando os dele. Naquele momento, o jovem compreendeu que a felicidade dela era infinitamente mais importante do que a sua.

— Ele ainda está vivo, Creidhe. Ele era o único habitante da ilha, não era? Alguns dos homens têm-me dito que têm visto o fumo de uma pequena fogueira. Eles dizem que é a Tribo das Focas, como pescadores que são. Mas há alguém na Ilha das Nuvens; só pode ser esse Guardião.

Os olhos dela resplandeceram. As suas faces coraram. A sua boca curvou-se num sorriso de tanta alegria que os olhos dele se encheram de lágrimas. Um instante mais tarde, a jovem punha-se de pé e atirava-se ao pescoço dele e, cruelmente, Thorvald sentiu o corpo dela contra o seu, frágil e magro, mas fazendo-o pensar em como as coisas poderiam ter sido se não tivesse sido tão cego.

— Oh! — suspirou Creidhe. — Oh, Thorvald, oh, Thorvald, obrigada! Quando podemos regressar? Temos de estar lá no solstício de Verão, por causa da maré... oh, Thorvald, meu querido, meu amigo, não imaginas como me fizeste feliz! Só de pensar que ele tem estado lá este tempo todo sozinho, deve ter pensado... oh, que terrível, sem Pequenino, sem mim, teria ele acreditado... mas não desistiu, esperou por mim... quando podemos ir?

Para quem estivesse a observar de longe, e vários membros da família de Creidhe estavam a fazer justamente isso, a interpretação era óbvia. Uma discussão, uma argumentação, lágrimas e em seguida um grande abraço, moderado pela presença do pequeno Eirik: que outra coisa senão um arrufo de namorados, que terminara da melhor maneira possível? Em seguida, Creidhe a correr para casa apesar da criança no dorso, Creidhe levando Thorvald pela mão, Creidhe com as feições radiantes e felizes: como interpretar de outra maneira aquela mudança?

Nessa estava à espera nos degraus da entrada. A dama era uma mulher sábia, uma sacerdotisa, apesar de ter posto o ofício de lado por uma vida de esposa e mãe, conselheira e árbitro. Ela, pelo menos, sabia que as coisas raramente são o que parecem.

— Mãe! — chamou Creidhe, sorrindo. — Mãe, vou voltar lá! Ele está vivo, está à minha espera! — E a jovem atirou-se ao pescoço de Nessa, abraçando-a com uma força que parecia ter ressuscitado súbita e miraculosamente. Eirik acordou e começou a emitir sons que sugeriam que tinha fome; o petiz era uma criança forte. Nessa olhou por cima do ombro da filha, para os olhos escuros de Thorvald. A dama viu a dor no rosto dele, o olhar ferido, perdido, transformar-se, por uma ordem interior qualquer, na expressão calma, cautelosa, de um homem de negócios, de um líder. O jovem era, sem sombra de dúvida, um digno filho do seu pai.

— Bem-vindo, Thorvald — disse Nessa, estendendo os braços para desatar o pano que segurava a criança. — É bom ver-te.

— Obrigado. Sinto-me feliz por ter voltado, se bem que um pouco nervoso, devo dizer. Creidhe tem mais novidades para ti; provavelmente não te vão agradar, nem ao pai dela, receio bem.

Nessa pegou em Eirik; o petiz estava encharcado e a começar a berrar.

— Creidhe conta-me a mim primeiro e depois falamos as duas com Eyvind — disse ela encaminhando-se para dentro de casa. — Depois de dar de comer a este tirano. O meu marido está no campo; tens algum tempo para pôr em ordem os teus pensamentos. Brona arranja-te um pouco de cerveja. — A dama fez uma pausa, reparando nos punhos fechados dele. — Thorvald — disse ela — nós temos passado por tempos muito preocupantes, tempos difíceis. Devo dizer-te que tudo o que possa devolver um sorriso ao rosto de Creidhe e avivar-lhe o andar é bem-vindo da parte de Eyvind. Seja o que for. Mesmo que isso signifique perdê-la de novo.

 

— É ridículo — disse Eyvind, andando de um lado para o outro no interior do quarto de ambos. — É demasiado longe. Nunca mais a vemos.

— Pergunta a ti próprio — disse Nessa — se não irias até lá, se fosse eu que estivesse naquela ilha. Pergunta a ti próprio se deixarias que alguém te impedisse.

— Que tem o tipo para oferecer? — perguntou Eyvind, carrancudo. — Pelo que Creidhe diz, ele só sabe lutar. Que tipo de vida pode um tipo assim oferecer à nossa filha?

Nessa não respondeu, limitando-se a olhar para ele. Os seus lábios curvaram-se num ligeiro sorriso.

— Conosco foi diferente — disse ele após uma curta pausa. — Eu fiz o possível por mudar. Tu ajudaste-me a mudar.

— E Creidhe ajudará Guardião, se for preciso — disse Nessa tranquilamente.

— Talvez. Mas aquele tipo não é um homem comum; o tipo é uma mistura de homem e animal marinho. Que vai ser dos filhos deles? Como poderão viver no meio dos homens? É impensável.

— Pelo que Creidhe — diz disse Nessa — Guardião é muito homem.

 

— Tu não és casada — disse Eyvind à filha rigidamente. — A aliança que propões não pode ser sancionada. A tua reputação...

— Nós tocamos votos, pai — disse Creidhe. — Votos solenes à luz da Lua e das estrelas, promessas testemunhadas pelos próprios antepassados. Nós somos marido e mulher, para sempre. Nenhum juramento é mais legal.

— E se tiveres um filho? — perguntou Nessa à filha na privacidade do seu quarto. — Como conseguirás, sozinha na ilha, tão longe de toda a gente? Por mais capaz que seja, não me parece que Guardião possa ser de grande ajuda nisso. Como poderás olhar por um bebê sem uma casa quente, boa comida e gente para te apoiar? Não tens medo do que possa acontecer?

— Havemos de nos arranjar — disse Creidhe com inteira confiança. — Não te esqueças, Guardião tomou conta do filho da irmã quando ele era do tamanho de Eirik. Ele é um bom ganha-pão, mãe.

— Nunca mais te vemos — disse Eyvind para Creidhe, secamente. O seu tom de voz era desolador. — Nunca mais regressas. É evidente que aquele tipo é selvagem e diferente; não pode, nunca, viver no meio dos homens.

— Surpreendes-me, pai — disse Creidhe, segurando-lhe na mão. — Sempre foste generoso na tua avaliação dos homens. Como podes dizer uma coisa dessas quando nem sequer conheces Guardião.

— Já ouvi o suficiente acerca dele — grunhiu Eyvind.

— Ele pode aprender — disse Creidhe. — Não muito rapidamente; ele tem vivido sozinho na ilha, exceto quando teve lá a criança, desde os doze anos. Vai levar tempo. Mas, um dia, havemos de regressar. Nunca digas nunca.

 

— Eu ia contigo, se pudesse — disse Eyvind para Thorvald. — Pelo menos, conheceria o tipo e poderia avaliá-lo antes de dar o meu consentimento. Não gosto dele, apesar das descrições todas de Creidhe. Parece-me um tipo muito pouco conveniente.

Thorvald não disse nada, se bem que, interiormente, concordasse inteiramente.

— Maldito conselho! Maldita viagem a Freyrsfjord! Não podia vir em pior altura.

— Não podemos atrasar mais a nossa partida — disse Thorvald. — Como já vos dissemos, Creidhe tem de atravessar o estreito para a ilha no solstício de Verão, ou as marés tornarão a travessia demasiado perigosa. — Thorvald e Creidhe tinham-se dado ao cuidado de não contar a verdade toda acerca da Corrente dos Loucos: que, na verdade, só a podiam atravessar durante dois dias no ano. — E o conselho é crucial. Rogaland pode oferecer-te excelentes perspectivas de comércio; proteção, também, em tempo de guerra. Tens de estar lá para reforçar os laços.

Eyvind olhou para ele algo zombeteiramente.

— Já te apercebeste, claro, de que o rei norueguês pode meter na cabeça colocar aqui um soberano, um dos seus chefes de guerra preferidos, um Jarl, aqui, nas Ilhas Brilhantes? Seria esse o preço a pagar pela madeira e pela proteção contra invasores do sul.

 

— Mesmo assim.

— Sim, tens razão; eu já decidi, por isso tenho de lá ir defender a minha causa.

— Nada te impede de ir às Ilhas Perdidas num outro Verão e ver com os teus próprios olhos se Creidhe está bem e a prosperar com o marido. — Havia uma pergunta no tom de voz de Thorvald.

— Achas que ele não se importa? — Ambos sabiam que Eyvind não se estava a referir a Guardião.

— De maneira nenhuma — disse Thorvald suavemente. — Aliás, não tenho dúvida nenhuma. Ele está morto por saber notícias tuas.

— Não sei — disse Eyvind. — Depois destes anos todos, depois de tantas mudanças. Não sei se suportaria vê-lo de novo.

 

— Um bom pai teria dito não — disse Eyvind a Nessa. O seu tom de voz era pesado. — Um bom pai teria pensado um pouco.

— Como podias ter dito não? Viste o aspecto dela. Imagino que, em tempos, também olhei para ti assim: como se tivesses a minha felicidade na palma da mão.

— Em tempos?

— Ainda olho, meu querido, acredita-me. E Creidhe também olhará assim para Guardião daqui a vinte anos, quando forem de meia-idade, quando tiverem a vida organizada, tal como tu e eu.

— Meia-idade? — Eyvind ergueu as sobrancelhas. — Para mim, ainda tens a idade de Creidhe, e tão misteriosa e sedutora como na primeira vez que te vi. — Ele olhou para a criança que dormia no colo dela. — Temos tido tanta sorte. Tanta sorte.

— Sim — concordou Nessa suavemente. — Não podemos negar a mesma felicidade à nossa filha.

 

— É estranho — observou Nessa, vendo o pequeno barco à vela a zarpar de Hafnarvagr. — Afinal, a Tribo das Focas sempre me levou um filho.

— Pensei que querias que ela fosse. Foste tu que me persuadiste.

— E quero. Quero que ela seja feliz. Mas isso não quer dizer que me doa menos. Nunca hei de ver os filhos dela; nunca hei de conhecer as filhas dela, as filhas que transportam nas veias o sangue real que eu jurei proteger.

— Nunca digas nunca. — O tom de Eyvind era suave. — Uma vez, Eanna disse-me que tudo muda. Creidhe há de regressar, um dia e o marido há de vir com ela. Tenho a certeza.

Ao lado de ambos, na praia, Ingigerd, uma miúda de sete anos saboreando pela primeira vez o seu papel de irmã mais velha, esforçava-se por evitar que o irrequieto Eirik saísse do carreiro e caísse à água. Brona e Sam estavam de braço dado, acenando enquanto a embarcação ficava cada vez menor nas águas prateadas.

— Bem — disse Margaret com a voz a tremer e enxugando os olhos — isto exige uma boa cerveja, uma boa lareira e uma boa conversa entre amigos. A nossa casa está aberta para todos; vamos até lá, celebremos e gozemos a companhia uns dos outros.

— Celebrar? — repetiu Eyvind. — Não sei se haverá motivo para júbilo.

— É claro que há, pai — disse Brona, dando uma risada. — Viste-te livre de duas filhas no mesmo ano! Que mais podes querer? Vamos embora. Estou cheia de fome. A tia Margaret disse-me que tem bolo de especiarias. — Com os olhos a dançar, a jovem abriu o caminho de regresso aos cavalos e os outros seguiram-na.

As suas filhas tinham uma qualidade rara, pensou Eyvind: o dom da felicidade. O guerreiro não sabia de onde vinha. Se tinha de as deixar ir para ver brilhar e crescer essa chama, melhor. Quem era ele para as impedir?

 

— Não lancem âncora — disse Creidhe aos homens com aspereza. — Nem encalhem o barco. Mantenham-no estável enquanto eu saio borda afora com os meus sacos. Depois, vão-se embora. Não esperem.

— Creidhe — protestou Thorvald enquanto aproximavam o Swftwing da estreita enseada, único lugar seguro para se poder desembarcar na Ilha das Nuvens. — É ridículo. Pelo menos, temos de ter a certeza de que ele está aqui e preparado para te receber. Além disso, não podes levar tudo. Temos de ir a terra com as tuas coisas. Vais estar aqui um ano inteiro.

Enquanto tinham esperado no Fiorde do Conselho que a Corrente dos Loucos acalmasse, Thorvald ordenara que o barco fosse carregado com as provisões necessárias à estadia de Creidhe na ilha. Como amigo dela, como líder, ali, não podia fazer menos.

— Eu vou ficar aqui mais tempo do que isso — disse Creidhe. — E não vou levar as provisões. Só preciso do meu pequeno saco e daquele rolo de cobertores.

— Pelos ossos de Odin, Creidhe. — Thorvald passou os dedos pelos cabelos, frustrado. — Não há cereais nesta ilha, ou vegetais, ou um abrigo como deve ser, ou gado... Pelo menos, leva o saco de farinha e a trança de cebolas. Tens de levar as ferramentas. E não te podemos deixar cair à água, temos de te levar a terra...

— Guardião tratará do meu sustento.

— Creidhe...

— Ele tratará do meu sustento. Isto é importante, Thorvald. Não percebes quanto. Tem a ver com o que ele é; com o que fez aqui. Levar estas coisas, que ele não me pode oferecer, é insultá-lo, e desafiar a sua razão de viver. Eu só levo o que trazia na última vez que aqui estive: as roupas que trago no corpo e o meu saco. Mais nada.

— E isto? — desafiou-a Thorvald, apontando para o rolo de cobertores coberto com um oleado, que ela insistira em levar. Não tinhas isto, antes.

Creidhe corou.

— Isso é diferente. — É um presente. Fui eu que escolhi. Não venhas a terra. Não te esqueças, ele só conhece a caçada. Sente muita animosidade por ti. Não sabemos se ele não ataca mal ponhas o pé em terra; tem sido sempre assim.

Finalmente, chegaram a uma espécie de compromisso. Enquanto Thorvald e Orm seguravam no barco com água até à cintura, utilizando os remos para impedir que ele oscilasse demasiado, Skapti saltou borda afora. Creidhe trepou para cima da amurada com o saco às costas e o rolo dos cobertores por baixo do braço. Skapti carregou-a nos braços até à praia, pousou-a na areia molhada e chapinhou ruidosamente de regresso ao barco.

— Adeus — gritou Thorvald, mas ela pareceu não o ouvir. A jovem ficou durante um momento a olhar para o carreiro rochoso e íngreme, na direção do terreno mais horizontal, lá no alto. A baía pouco mais era do que uma fissura na falésia e o carreiro um desafio para as pernas mais fortes. Não havia sinal de vida na ilha, com exceção das aves que sobrevoavam no céu, enchendo o ar com os seus gritos repetitivos. Creidhe respirou fundo e começou a trepar.

A jovem virou-se, uma vez, mas não para lhe dizer adeus. Creidhe pousou o rolo e gesticulou bruscamente. O significado era óbvio: virem o barco, vão-se embora, saiam daqui como prometeram. Os homens viraram o Swftwing à força de remos; não se foram imediatamente embora, afastaram-se apenas o suficiente, para que Creidhe continuasse a sua escalada. Thorvald não tencionava ir-se embora sem ficar com uma idéia, pelo menos, de que ela ficaria bem.

Quando Creidhe se aproximou do topo, surgiu uma figura acima dela. O homem ficou ali um momento, escuro e imóvel, como um homem de pedra. Tinha uma lança na mão direita, um arco a tiracolo e uma aljava. A brisa agitava as pequenas penas que lhe decoravam a roupa; fazia-lhe esvoaçar os cabelos em frente das feições magras, ferozes. Thorvald sentiu um arrepio, uma recordação de morte. Mal conseguia respirar.

Creidhe parou e olhou para cima. A jovem deixou cair o rolo de cobertores no chão e abriu os braços. Quanto a Guardião, a sua extrema imobilidade pareceu durar apenas um momento. Deixando cair a lança e passando o arco por cima do ombro e deixando-o cair, cobriu a distância tão depressa como um gamo. O jovem chegou ao pé dela e fez uma pausa. Em seguida, deu um passo em frente e ambos se abraçaram, não apaixonadamente, não selvaticamente, mas com a maior suavidade e Thorvald pensou ver, na verdade, duas metades de um todo, juntando-se prodigiosamente. Havia uma justeza na sua postura imóvel, um sentido de perfeição: a cabeça de Guardião inclinou-se por cima da cabeça de Creidhe, a testa dela encostada ao pescoço dele. Thorvald sentiu-se de tal modo confuso, que ficou tonto e quase desmaiou. Nunca mais voltarei a sentir isto, pensou ele, espantado. Este tumulto de emoções, o coração dilacerado: nunca mais voltarei a sentir isto. E pensou que, como condutor de homens, ainda bem que era assim. Mas, como homem, sentiu a derrota, porque era como se a Primavera da vida tivesse passado por si com a sua turbulência e as suas promessas. Então, virou-se, ladrou uma ordem e rumaram a casa.

— ... levaram-no... — murmurava Guardião com a boca encostada ao cabelo dela. — Eles levaram-no... eles levaram Pequenino...

— Eu sei — disse Creidhe, sentindo o coração dele no peito, saboreando o calor do corpo dele. — Ele está bem, Guardião, está bem e feliz. Foi ele que quis ir. Eles não lhe fizeram mal. Não houve ritual nenhum, ninguém o cegou.

— Estavas lá? — perguntou ele, espantado.

— Estava lá e fui eu que os impedi. Pensei que estavas morto, meu querido. Não havia mais ninguém para o ajudar.

— Eu estava enganado, Creidhe. Enganado. Este tempo todo... — Ele estava a ficar cada vez mais agitado; a jovem sentia-o tremer todo.

— Shhh — disse Creidhe. — Temos muita coisa que contar antes que as coisas possam fazer sentido. Tu fizeste tudo por amor e isso é que importa. E ele também: por que outra razão havia de ficar aqui, senão por amor a ti, a sua única família? Meu querido, acabo de fazer uma grande viagem. Vamos para casa?

Os dois jovens treparam juntos até ao topo do carreiro, ele pegou nas suas armas e meteu o rolo de cobertores debaixo do braço. Creidhe reparou numa mudança nele; estava mais magro, tal como ela, e as feições mais duras, de certo modo, como se tivesse envelhecido mais de um ano desde que ela o vira pela última vez. O cabelo estava diferente. Estava penteado e atado atrás com uma fita de pele. Apenas algumas madeixas lhe caíam para a testa. A jovem estendeu um braço para lhe acariciar os caracóis nas têmporas, para lhe afastar as madeixas dos olhos.

— Estás... lindo — disse-lhe ela. — Estou tão feliz por teres esperado. Tão contente que nem tenho palavras.

— Tinha de esperar! — murmurou Guardião. — O nosso voto foi para toda a vida. Teria esperado até ao fim dos tempos. Até mais, se pudesse.

Continuaram a caminhar. Creidhe reparou que o caminho não era o mesmo que ia dar ao velho abrigo, o lugar onde ela levara com a pedra na cabeça.

— Onde vamos? — perguntou-lhe ela.

A voz de Guardião soou, subitamente, extremamente tímida.

— Construí-te uma casa, como prometi — disse ele. — Uma boa casa, quente e segura. Suficientemente grande para três, apesar de Pequenino se ter ido embora.

Creidhe sorriu.

— Suponho que havemos de ter um filho, ou uma filha, dentro de algum tempo — disse ela. — No próximo Verão, se os antepassados tomarem bem conta de nós. A nossa casa ficará cheia.

Aquilo silenciou-o por completo, mas Creidhe não perdeu a mudança nos seus olhos, nem o sorriso doce e hesitante que lhe curvou a boca solene. Aquilo seria um passo importante para que tudo ficasse certo, finalmente.

A casa estava numa dobra abrigada de terreno, junto de um pequeno ribeiro. Ele dissera a verdade; era espaçosa e bem construída, com um telhado de erva segura por pedras penduradas e paredes de rocha aparelhada. Creidhe podia ver alguma madeira aqui e ali; tinha feito parte, talvez, de um barco. Havia dois quartos; o maior tinha uma lareira central, onde ardia um pequeno fogo. Havia um espaço seco para armazenar turfa, pregos de madeira para pendurar roupa e prateleiras de pedra lisa. Havia uma ampla plataforma para dormir, suficientemente grande para dois.

Creidhe exclamou, deliciada:

— É maravilhosa! Adoro-a! E tenho mesmo o que falta... — A jovem fez-lhe sinal para pousar o rolo em cima da plataforma. — Importas-te de abrir isso, por favor? Pode ser que precises de utilizar a faca para cortar o atilho, creio que os nós estão muito apertados...

Nada se perdia na Ilha das Nuvens. Guardião não cortou o cordel, desfez os nós com dedos longos e ágeis. O conteúdo do rolo desenrolou-se parcialmente, um alegre cobertor de lã azul e vermelha.

— É do tamanho exato.

— É fantástico — disse Creidhe com um nó na garganta enquanto observava as diversas expressões no rosto dele, enquanto via as recordações nos seus líquidos olhos verdes. — Fi-lo exatamente para esta cama.

Guardião desenrolou completamente o cobertor, que cobria a plataforma de uma ponta à outra, da cabeça aos pés. Os seus dedos acariciaram a superfície suave, o azul profundo vivo, o vermelho cor de sangue, a orla intrincada de pequenas árvores e pequenos animais.

— Para mim? — perguntou ele a custo.

— Para ti. Para o meu marido.

 

Nem sempre os sonhos se tornam realidade. Na verdade, a maior parte das vezes dão-nos versões confusas e retorcidas da verdade, mostrando-nos o que desejávamos, ou o que temíamos. Não foi assim com Creidhe. Quando ela acordou na manhã seguinte, na Ilha das Nuvens, foi exatamente como sonhara enquanto tecia aquela coisa maravilhosa com lãs coloridas, enquanto tecia as suas belas visões. Quase igual. O sol da manhã entrou através da entrada da bela casa de Guardião, tocando no cobertor com a sua luz vibrante, cheia de vida. A jovem deixou-se estar sob ele, quente, com dores lânguidas no corpo. Os braços do marido rodeavam-na, fortes e firmes, protegendo-a de qualquer mal. E se ele não era o homem dos seus sonhos, que importância tinha? Era o seu único amor, o desejo do seu coração. Sem ele, teria passado a vida incompleta. Quem havia de se deitar por baixo do cobertor azul senão ele?

Creidhe encostou-se a ele, sorrindo, e sentiu a mão dele nos cabelos, puxando-a para si. O seu desejo por ela era grande; dos dois, fora ele quem sofrera mais. Tinha de ir suavemente, lentamente e ajudá-lo o melhor que pudesse. Com o tempo, talvez ele conseguisse dar o passo seguinte, tentar novos caminhos, conhecer outra gente. Guardião tinha capacidades que alguns homens sem escrúpulos poderiam tentar explorar; teriam de enfrentar alguns perigos, perigos que ainda nem sequer tinham forma. Precisavam de tempo. Certamente que os antepassados, se vivessem bem as suas vidas, se apercebessem que tinham sido abençoados, lhe concederiam.

 

                                                                                Juliet Marillier  

 

 

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